parentalidades impensáveis pais mães homossexuais, travestis e transexuais

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Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, p. 123-147, jul./dez. 2006 PARENTALIDADES “IMPENSÁVEIS”: PAIS/MÃES HOMOSSEXUAIS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS Elizabeth Zambrano Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil Resumo: O aumento do número de famílias formadas por pais/mães homossexuais, travestis e transexuais tem se tornado não apenas um fato social, como também um fato socioantropológico, requerendo uma revisão das nossas convicções tradicionais. O propósito deste artigo é demonstrar como o modelo tradicional da família – considerada uma família “normal” – tem influenciado a construção de parentalidades consideradas, até recentemente, impensáveis, seja socialmente ou perante a lei. O desafio deste momento é enfrentar as novas demandas e desconstruir antigas certezas da antropologia, da psicologia/psicanálise e do direito, favorecendo a legitimação dessas famílias dentro da sociedade. Palavras-chave: família, homossexualidade, parentalidade, sexualidade. Abstract: The rising number of families formed by homosexual, transvestites and transsexual fathers/mothers has become, not only a social fact, but also a socio- anthropological one, requiring a mandatory review of traditional convictions. The purpose of the present paper is to demonstrate how a traditional model of family – considered a “normal” family - has been is to able to influence the construction of parenthoods considered, until recently unthinkable, either socially or in the law. Therefore, I suggest it is time to face the new demands and deconstruct former certainties of Anthropology, of Psicology/Psicanalisis and of the Law, for the sake of the families. Keywords: family, homosexuality, parenthood, sexuality. Introdução A emergência de famílias constituídas por pais/mães homossexuais, tra- vestis e transexuais no campo social torna obrigatório o enfrentamento de no-

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, p. 123-147, jul./dez. 2006

    Parentalidades impensveis

    PARENTALIDADES IMPENSVEIS: PAIS/MESHOMOSSEXUAIS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS

    Elizabeth ZambranoUniversidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil

    Resumo: O aumento do nmero de famlias formadas por pais/mes homossexuais,travestis e transexuais tem se tornado no apenas um fato social, como tambm umfato socioantropolgico, requerendo uma reviso das nossas convices tradicionais.O propsito deste artigo demonstrar como o modelo tradicional da famlia considerada uma famlia normal tem influenciado a construo de parentalidadesconsideradas, at recentemente, impensveis, seja socialmente ou perante a lei. Odesafio deste momento enfrentar as novas demandas e desconstruir antigas certezasda antropologia, da psicologia/psicanlise e do direito, favorecendo a legitimaodessas famlias dentro da sociedade.

    Palavras-chave: famlia, homossexualidade, parentalidade, sexualidade.

    Abstract: The rising number of families formed by homosexual, transvestites andtranssexual fathers/mothers has become, not only a social fact, but also a socio-anthropological one, requiring a mandatory review of traditional convictions. Thepurpose of the present paper is to demonstrate how a traditional model of family considered a normal family - has been is to able to influence the construction ofparenthoods considered, until recently unthinkable, either socially or in the law.Therefore, I suggest it is time to face the new demands and deconstruct former certaintiesof Anthropology, of Psicology/Psicanalisis and of the Law, for the sake of the families.

    Keywords: family, homosexuality, parenthood, sexuality.

    Introduo

    A emergncia de famlias constitudas por pais/mes homossexuais, tra-vestis e transexuais no campo social torna obrigatrio o enfrentamento de no-

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    vas demandas e a desconstruo de velhas certezas, tanto para a antropologiaquanto para a psicologia/psicanlise e para o direito.

    As questes que essa parentalidade (homossexual, travesti e transexual)coloca para a antropologia atingem um dos campos de estudo mais tradicionaisda disciplina, o da famlia e do parentesco. Tambm a psicanlise necessitaenfrentar e colocar essas possibilidades dentro do seu corpo terico, relativizandoa idia de serem a subjetivao e a construo do simblico dependentes dadiferena dos sexos. Da mesma maneira, o direito se v impelido a acompa-nhar essas configuraes criando novas possibilidades legais de conjugalidadee filiao de forma a no deix-las margem da proteo do Estado.

    A condenao generalizada da homossexualidade que persiste nas socie-dades contemporneas, ainda muito influenciadas pela lei religiosa , segundoDanile Hervieu-Lger (2003), a principal resistncia visibilidade dessas fa-mlias, percebidas como atentatrias ao carter sagrado adquirido pela fa-mlia nas sociedades modernas.

    Essa sacralidade, que toma como apoio a ordem natural das relaesentre os sexos, torna impensvel qualquer outra configurao de famlia queno seja a composta por pai-homem, me-mulher e filhos. A autora alerta,entretanto, que esse impositivo divino no est presente apenas nas religies,encontra-se, tambm, em outras reas do saber.

    A influncia religiosa se expressa nos trs campos mencionados. No direito,temos o cdigo napolenico que mantm vivo, depois da Igreja, o carter sagra-do estabelecido pela natureza entre aliana e filiao, com a afirmao de queo pai o marido da me. Para a psicanlise, a subjetivao do sujeito e suahumanizao passam pela necessidade de elaborao do chamado complexo dedipo, processo psquico que exige a presena dos dois sexos e a obedincia aoNom du Pre.1 Essa mesma ordem simblica da diferena dos sexos pode serencontrada na antropologia com a idia de serem a proibio do incesto e a trocade mulheres responsveis pela passagem da humanidade da natureza para a cul-tura, segundo o pensamento estruturalista de Lvi-Strauss e Franoise Hritier.

    A transformao da famlia humana nessa sagrada famlia, como lugarnico e exclusivo da sexualidade e procriao legtimas, desconsidera o fato de

    1 O uso da expresso Nom du Pre foi estabelecido por Lacan e faz um trocadilho, em francs, indicandoque a lei se insere no psiquismo, simultaneamente, atravs do nome do pai e do no do pai,fazendo a interdio necessria para a humanizao do sujeito e sua entrada na ordem simblica.

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    DanielaNota sinalizadoramudanas nas nas 3 reas do saber: antropologia, psicologia/psicanlise e direito

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    que ela , apenas, uma construo histrica que se imps ao Ocidente muitorecentemente (Hervieu-Lger, 2003).

    O objetivo deste trabalho analisar as relaes entre esses trs domniose evidenciar como essa concepo de famlia capaz de influenciar a constru-o de parentalidades consideradas, at ento, impensveis, tanto social quantojuridicamente, por serem estabelecidas por pessoas do mesmo sexo. Os dadosempricos que do suporte essas reflexes so oriundos do projeto O Direito Homoparentalidade, realizado em Porto Alegre entre os anos de 2004 e 2005,sob a minha coordenao (Zambrano, 2006).

    Algumas consideraes sobre a famlia ocidental contempornea

    Na nossa sociedade contempornea ocidental, a famlia percebida comoa mais natural das instituies, o ncleo organizador a partir do qual iroestruturar-se e sero transmitidos os valores mais importantes da nossa cultu-ra. Essa naturalidade remete, como conseqncia, idia de universalidade.Entretanto, a definio de famlia, assim como a sua universalidade, no umconsenso entre os estudiosos do tema (Cadoret, 2002; Stephens, 2003). A mai-oria dos antroplogos concorda que uma instituio chamada famlia en-contrada em praticamente todas as sociedades, mas sua configurao tovariada que a sua universalidade estaria condicionada forma como for defini-da. Segundo Nadaud (2002) colocar a famlia como uma entidade nica e cons-tante no tempo pode ser mais um prejulgamento, baseado na nossa experinciapessoal, do que uma realidade.

    No Ocidente, o modelo familiar mais comum corresponde ao da famlianuclear: um pai, uma me e filhos. Ele est apoiado em uma realidade biolgicairredutvel at esse momento: necessrio um homem e uma mulher para produ-zir uma criana. Como conseqncia, a famlia nuclear procriativa parece seimpor como uma verdade incontestvel, justamente por estar socialmente de acordocom o fato biolgico. Da ser to fcil pensarmos que ela tem suas razes no inciodos tempos, consider-la como sendo a unidade fundadora da sociedade, a clulagerminativa da civilizao e o suporte para a evoluo da sociedade (Freud, 1973).

    Porm, se pensarmos nas diferentes formas de expresso da famlia, ob-servaremos que existem variaes temporais, espaciais e em uma mesma po-ca e local. Em decorrncia disso, seria preciso ter clara a diferena que existeentre uma noo geral de famlia, de um lado, e suas diferentes manifestaes,

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    DanielaNota sinalizadoraa definio de famlia no pode ser universal.

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    de outro. Estudos histricos e antropolgicos (Aris, 1981; Donzelot, 1986, en-tre outros) demonstram que a instituio famlia vem sofrendo muitas mu-danas ao longo do tempo, passando a ser o local privilegiado da afetividade,uma das caractersticas da famlia nuclear, apenas no sculo XIX.

    A naturalizao desse modelo de famlia torna-o incontestvel e leva aopensamento, comum na nossa cultura, de que uma criana pode ter apenas umpai e uma me, juntando na mesma pessoa o fato biolgico da procriao, oparentesco, a filiao e os cuidados de criao. Isso acontece porque, ao per-cebermos pai e me apenas como aqueles que do a vida criana, con-cebemos essa relao como to natural que nem pensamos possa ser elasubmetida lei social.

    Entretanto, o vnculo familiar ligando um adulto a uma criana pode serdesdobrado em quatro elementos que nem sempre so concomitantes: 1) ovnculo biolgico, dado pela concepo e origem gentica; 2) o parentesco,vnculo que une dois indivduos em relao a uma genealogia, determinando oseu pertencimento a um grupo; 3) a filiao, reconhecimento jurdico dessepertencimento de acordo com as leis sociais do grupo em questo; 4) aparentalidade, o exerccio da funo parental, implicando cuidados com alimen-tao, vesturio, educao, sade, etc., que se tecem no cotidiano em torno doparentesco. Esses elementos podem estar combinados entre si de maneirasdiversas, dependendo de como estabelecido o peso de cada um em relaoaos outros, evidenciando a relatividade das escolhas feitas por uma determina-da cultura em uma determinada poca.

    A diversidade das configuraes familiares de outras sociedades permiteafirmar que parentesco e filiao so sempre sociais (Hritier, 2000) e noapenas derivados da procriao, j que as regras adotadas por elas no sosempre a rplica exata da natureza. preciso lembrar que embora sejaexato que as regras relativas filiao tenham por objetivo institucionalizar areproduo da espcie humana, essa institucionalizao se efetua segundo cri-trios que variam de uma sociedade a outra e de uma poca a outra (Gross etal., 2005, p. 31, traduo minha).

    Devido a essa variao dos papis sociais parentais desempenhados nasdiferentes culturas e perodos histricos, podemos, tambm, compreender queparentalidade no sinnimo de parentesco e filiao e pode ser exercida porpessoa sem vnculo legal ou de consanginidade com a criana como ocorre,por exemplo, nas famlias recompostas, nas quais o cnjuge do pai ou da meparticipa cotidianamente da criao do filho.

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    DanielaNota sinalizadoraparentesco e filiao so sempre sociais, j que no so derivados necessariamente da natureza

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    Na nossa cultura, devido ao grande valor dado aos aspectos biolgicos doparentesco, esses so considerados os formadores dos vnculos familiares maisverdadeiros. Entretanto, depois do advento das novas tecnologias reprodutivas,quando se podem separar artificialmente os momentos naturalmente indivisveisda fabricao de um ser humano: a fecundao, a gestao e o parto, at averdade biolgica incontestvel da maternidade pode ser questionada (Godelier,2005). So as regras estabelecidas socialmente em cada lugar que determinama verdade do parentesco, confirmando as afirmaes de diversos antroplo-gos de que o parentesco fundamentalmente um universo de vnculosgenealgicos, simultaneamente biolgicos e sociais (Cadoret, 2002; Godelier, 2005;Hritier, 2000). No existindo um a priori de verdadeira me ou verdadeiropai, apenas uma deciso moral e social determinar a quais elementos da noode famlia se dar prioridade em uma determinada sociedade (Parseval, 1998).

    Lvi-Strauss (1976) tambm apontou que a famlia no uma entidadeem si nem, tampouco, uma entidade fixa, ela , antes, o lugar onde se desenvol-vem as normas de filiao e de parentesco, construindo sistemas elementarescuja finalidade ligar os indivduos entre eles e sociedade. So os vnculosentre os indivduos que criam a famlia e so as variaes possveis dessesvnculos intrafamiliares que caracterizam as formas possveis de famlia.

    Embora seja a mais comum entre ns, a famlia nuclear, monogmica,heterossexual e com finalidade procriativa no a nica na nossa sociedadeocidental. Depois do advento do divrcio, houve uma multiplicao de novosarranjos familiares permitindo aos indivduos a construo de novos tipos dealianas, como as famlias de acolhimento, recompostas e monoparentais.

    As famlias cujos pais/mes so homossexuais, travestis e transexuais

    dentro desses novos arranjos que surge a famlia homoparental,2 pro-pondo um modelo alternativo, no qual o vnculo afetivo se d entre pessoas domesmo sexo incluindo, tambm, os casos da parentalidade de travestis etransexuais. Tais unies no possuem capacidade procriativa (no sentido biol-gico), embora seus componentes possam t-la individualmente.

    2 Homoparentalidade um neologismo criado em 1997 pela Associao de Pais e Futuros Pais Gayse Lsbicas (APGL), em Paris, nomeando a situao na qual pelo menos um adulto que se autodesignahomossexual (ou pretende ser) pai ou me de, no mnimo, uma criana.

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    DanielaNota sinalizadoraregras sociais determinam a verdade sobre o paresntesco.

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    O uso do termo famlia homoparental costuma ser objeto de muitosquestionamentos, pois coloca o acento na orientao sexual (homoertica)dos pais/mes e a associa ao cuidado dos filhos (parentalidade). Essa associa-o (homossexualidade dos pais/mes e cuidado com os filhos) , justamente, oque os estudos sobre homoparentalidade se propem a desfazer, demonstrandoque homens e mulheres homossexuais podem ser ou no bons pais/mes, damesma forma como homens e mulheres heterossexuais.3 Os estudos demons-tram que a capacidade de cuidar e a qualidade do relacionamento com osfilhos o determinante da boa parentalidade, e no a orientao sexual dos pais.

    Entretanto, o seu emprego estratgico e se justifica pela necessidade decolocar em evidncia uma situao cada vez mais presente na sociedade atual.Ao nomear um tipo de famlia at ento sem nome, permite-se que ela adquirauma existncia discursiva, indispensvel para indicar uma realidade, possibili-tando o seu estudo e, principalmente, sua problematizao (De Singly, 2000).Favorece, ao mesmo tempo, a emergncia de um campo de luta poltico ondeas demandas de (homo)parentalidade ficam fortalecidas.

    Por outro lado, o conceito de homoparentalidade torna-se insuficientequando se trata da parentalidade exercida por travestis e transexuais. Isso por-que, da forma como foi concebido, o termo homoparentalidade se refereapenas orientao sexual, aludindo s pessoas cujo desejo sexual orientadopara outras do mesmo sexo, o que deixaria de fora as pessoas com mudana desexo (transexuais) e de gnero (travestis). Embora sejam comumente percebi-das como fazendo parte do mesmo universo homossexual, travestis e transexuaisapresentam especificidades na sua construo identitria e, conseqentemen-te, na sua relao de parentalidade.4 As transexuais e algumas travestis sesentem e se consideram mulheres, mesmo tendo nascido homens biolgicos.

    3 Utilizamos os termos homossexual/homossexualidade, criados pela psiquiatria como uma entida-de clnica para se referir s pessoas que fazem sexo com pessoas do mesmo sexo, considerandoque a sua existncia no est vinculada a uma essncia identitria.

    4 Desde uma perspectiva antropolgica, a identidade uma ferramenta conceitual cuja caracterstica ser relacional e ter a propriedade de estabelecer conexes e separaes entre um indivduo e outro.Ela se constri tanto do ponto de vista do sujeito quanto do observador. No possui estabilidadeessencial, sendo mais um percurso e um deslocamento, construtores de um sujeito em constanteprocesso de formao. Segundo Lvi-Strauss (1995, p. 344), a identidade poderia ser consideradacomo um foco virtual, acionado em diferentes momentos, indispensvel para servir de refernciae para explicar muitas coisas, mas sem ter, verdadeiramente, uma existncia real. Assim, noolhamos essas diferentes identidades como tendo existncia concreta, o que reduziria em muito suasinmeras possibilidades.

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    Para elas, o sexo/gnero transformado que conta para sua classificao comomulheres. Desse modo, as travestis e transexuais se consideram mulherese mantm relaes sexuais com homens, percebidas por elas como heterosse-xuais e no homossexuais. Da mesma forma, quando constroem uma relaode parentalidade, na maioria das vezes, o fazem ocupando o lugar materno eno paterno, como veremos adiante. Nesses casos, fica evidente a insufici-ncia das categorias binrias para classificar as identidades e a sexualidadedas travestis e transexuais.

    Porm, embora reconhecendo a singularidade de tais situaes, para afinalidade deste trabalho, ao falarmos em homoparentalidade, estaremos en-tendendo que o termo abarca todas essas identidades dos pais, considerandoque, para as travestis, o acento identitrio ser dado ao gnero, para astransexuais, ao sexo e para os homossexuais, orientao.

    Mesmo assim, essa configurao familiar parece ainda estar margemdo conceito de famlia usado por alguns operadores do direito, por mais elsticoque ele possa ser atualmente. Exemplo disso so as decises do judicirio noreferente aos direitos dos casais homossexuais, com alguns juzes reconhecen-do, e outros no, a unio homossexual como uma entidade familiar. No RioGrande do Sul, o desembargador Jos Carlos Teixeira Giorgis proferiu umadeciso pioneira no reconhecimento dessa relao como entidade familiar (TJRS,2001).5 Tambm no Rio Grande do Sul a desembargadora Maria BereniceDias (2001) trata da questo enfatizando a unio homossexual como baseadaem laos de afeto, sendo includa no direito de famlia, enquanto Roger Rios(2001, 2002) a discute do ponto de vista dos direitos humanos, o que coloca aquesto sob a tutela dos direitos constitucionais, no princpio da igualdade e dano-discriminao.

    Recusar chamar de famlia esses arranjos, negar a existncia de umvnculo intrafamiliar entre os seus membros (ainda que esses vnculos possamter um aspecto extremamente polimorfo e variado) e impedir que tenham umestatuto legal, significa fixar a famlia dentro de um formato nico, que nocorresponde diversidade de expresses adotadas por ela nas sociedades con-temporneas.

    Isso acontece, em grande parte, devido influncia da psicanlise comocampo legtimo de saber nas questes envolvendo a sexualidade.

    5 Ver tambm Giorgis (2002).

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    A influncia da psicanlise

    A maior parte das consideraes utilizadas pelos diferentes profissionais(juristas, operadores do direito, psiquiatras, psiclogos e assistentes sociais)sobre a homoparentalidade est apoiada nos princpios tericos da psicanlise.Dentro dela encontramos posies muito divergentes a respeito dahomoparentalidade, no havendo evidncia emprica do acerto de uma ou deoutra opinio. Tais opinies tampouco esto conectadas a uma especialidadeou corrente da psicanlise que as fundamente teoricamente. Alm disso, mui-tos psicanalistas preferem no falar sobre o tema, pois consideram que seupapel exclusivamente da ordem do individual, no tendo legitimidade, nemclnica nem terica, para emitir parecer sobre questes sociais. Entretanto, apsicanlise uma das disciplinas mais solicitadas pela sociedade para o debatesobre as novas configuraes familiares, interferindo, dessa forma, no campoda ao poltica. Esse apelo psicanlise funciona, na maioria das vezes, comoum chamado ordem, mais explicitamente ordem simblica, terreno sobreo qual se construiu a teoria psicanaltica.

    A influncia das formulaes tericas da psicanlise fica evidente nosdebates ocorridos na Frana nos anos anteriores criao do Pacs.6 Alm dasquestes referentes conjugalidade, foram abordadas as possibilidades da ado-o e utilizao das novas tecnologias reprodutivas pelos homossexuais, o queacabou por se tornar o foco central das discusses. Entre os profissionais docampo psi (psicologia, psiquiatria, psicanlise) que se manifestaram publica-mente sobre o tema (e ainda se manifestam atualmente), principalmente naFrana, Mehl (2003) identifica trs correntes de pensamento.

    A primeira contrria ao reconhecimento do casal e da parentalidadehomossexual pela sociedade e pela legislao. Misturando religio e psicanli-se, considera a homossexualidade uma questo privada e uma perverso e, porisso, no merecedora de reconhecimento legal. Esse discurso, mais conserva-dor, utiliza argumentos que atuam em defesa da famlia tradicional e se apiamnas tradies e crenas religiosas, embora se apresentem revestidas de umvocabulrio psicanaltico ou psicolgico.7

    6 Pacs o Pacto de Solidariedade Civil aprovado em novembro de 1999 na Frana visando regula-mentar as unies entre pessoas do mesmo sexo.

    7 Tem, como principais representantes, Tony Anatrela (padre e psicanalista) e Pierre Legendre(jurista e psicanalista).

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    DanielaNota sinalizadora3 correntes psi no debate sobre a homoparentalidade na Frana

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    A segunda corrente no opina sobre o casal e a homossexualidade, masse ope homoparentalidade sob o argumento de que a diferena dos sexosest no ncleo das representaes identitrias, afirmando ser impossvel paraas crianas imaginar que possam ter sido concebidas fora dessa diferena. Emdecorrncia disso, a criao de crianas por pessoas do mesmo sexo seria umadestruio dos fundamentos antropolgicos da constituio do parentesco, dafamlia e da procriao. Partem do pressuposto de que os homossexuais negama diferena dos sexos e no permitem aos filhos um contato adequado com osexo oposto, o que uma afirmao sem fundamento emprico.8

    A ltima das correntes composta por pessoas contrrias utilizao deum saber psicolgico e psicanaltico para se posicionar contra novas formas deexperimentao familiar. Consideram no caber aos psicanalistas fazerem jul-gamentos morais a respeito de tipos de famlias j existentes na nossa socieda-de, sendo preciso reconhecer as novas formas de famlia, em favor de umapluralidade de organizaes contemporneas. O argumento terico utilizadopor essa corrente para refutar a importncia da diferena dos sexos dos paispara o bom desenvolvimento da criana diz que a identidade no se restringeapenas identidade sexual e que a percepo do outro, a alteridade, no estbaseada apenas na diferena do sexo. Argumentam, tambm, que as normasmudam, tm uma histria, e seu contedo varia de acordo com o tempo e olugar, no podendo ser fixadas pelas posies ideolgicas do momento, emflagrante desrespeito aos resultados das pesquisas, s normas democrticas eaos direitos humanos.9

    Torna-se evidente, a partir dos posicionamentos acima, quais so os prin-cipais argumentos utilizados nas discusses: a ameaa de destruio da socie-dade e os provveis prejuzos causados s crianas pertencentes famliashomoparentais. Sustentando ambos, est a necessidade da diferena dos sexos.

    Apesar desses temores e opinies, cabe ressaltar que as famliashomoparentais j existem h muito tempo na realidade social, como demons-tram os estudos e as pesquisas feitas sobre elas h 30 anos, faltando apenas oseu reconhecimento legal.10 Atualmente, esto adquirindo maior visibilidade

    8 O psicanalista Jean Pierre Winter seu principal porta-voz.9 Tem, como porta-voz, Michel Tort (psicanalista), Sabine Prokhoris (filsofa e psicanalista),

    Genevive Delaisi de Parseval (psicanalista e antroploga) e, mais tardiamente, Elizabeth Roudinesco(psicanalista e historiadora da psicanlise).

    10 Um levantamento dessas pesquisas pode ser encontrado em Zambrano (2006).

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    atravs da mdia, em grande parte como conseqncia da atuao dos gruposque lutam pelos direitos dos homossexuais e pelos direitos humanos.

    Como homossexuais, travestis e transexuais podem exercer a parentalidade

    Esto descritas na literatura quatro formas principais de acesso homoparentalidade. A primeira delas por filhos havidos em uma ligao hete-rossexual anterior. Depois do rompimento da unio, o pai ou a me (ou ambos)podem estabelecer uma relao com parceiro/a do mesmo sexo, constituindoassim uma nova famlia. A nova configurao ser considerada um tipo defamlia recomposta, cuja especificidade o contexto homoparental.

    A segunda maneira pela adoo, podendo ser legal ou informal. Atual-mente, a adoo legal por homossexuais buscada, na maioria das vezes, indi-vidualmente. Existe o temor da recusa se o pedido for feito pelo casal, quandoficaria explicitada a homossexualidade. A adoo legal implica o estabeleci-mento de um vnculo de filiao irrevogvel, unindo o adulto adotante e a crian-a adotada, com os direitos e deveres da decorrentes. Quando a adoo informal, no estabelece vinculao legal entre os participantes, apenas vncu-los afetivos, sem os direitos de filiao. Podemos considerar tambm a chama-da adoo brasileira, quando um adulto registra como sendo seu filho biol-gico o filho de outra pessoa.

    Uma terceira forma a busca de filhos pelo uso de novas tecnologiasreprodutivas, possibilitando o nascimento de filhos biolgicos. O mtodo maisutilizado pelas mulheres lsbicas a inseminao artificial ou fertilizao medi-camente assistida. Pode ser com doador conhecido, geralmente um amigo gay,ou doador desconhecido, atravs de um banco de esperma. Os homens gaysque quiserem filho biolgico sem relao sexual com uma mulher tm de fazeruso da barriga de aluguel, procedimento considerado ilegal no Brasil. Nessescasos, se for cumprido o anteriormente combinado com o pai, a me entregara ele o filho recm-nascido e abrir mo dos direitos e vnculos legais com acriana.

    Finalmente, a quarta possibilidade a chamada co-parentalidade, na qualos cuidados cotidianos so exercidos de forma conjunta e igualitria pelos par-ceiros, podendo aparecer entrelaada com as formas de acesso citadas anteri-ormente. A parceria pode dar-se pelo planejamento conjunto do casal homos-sexual, no qual os parceiros decidem pela adoo de uma criana ou pelo usode novas tecnologias reprodutivas para formar uma famlia, sendo a parentalidade,

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    desde o incio, exercida igualmente pelos dois, mesmo que apenas um delesseja o pai biolgico ou legal. Em outros casos, pode ser uma parentalidadeexercida conjuntamente pelo companheiro/a do pai/me legal de um filho nas-cido antes da relao de parceria como, por exemplo, na situao muito co-mentada na mdia, vivida por Eugnia, parceira da cantora Cssia Eller. O pla-nejamento conjunto pode, tambm, incluir dois casais homossexuais, um mas-culino e o outro feminino, que decidem ter um filho atravs de inseminaoartificial caseira (coleta de smen do pai e introduo do esperma na vagina dame, com o auxlio de uma seringa, sem a presena do mdico) ou medicamen-te assistida (feita em clnica mdica especializada). Nesse caso, a criana terdois pais e duas mes, sendo dois deles pai e me biolgicos.

    Em pesquisa antropolgica realizada em Porto Alegre sob a minha coor-denao e que tomou como ponto de partida as representaes de parentalidadede indivduos nascidos homens biolgicos (homens homossexuais, homens tra-vestis e transexuais homem para mulher), a forma de acesso ao projeto parentalpreferida pela totalidade dos entrevistados a adoo. Nenhum deles utilizouou planeja utilizar tecnologias reprodutivas, mostrando que a parentalidade so-cial , para eles, mais importante do que os laos biolgicos. O fato de nossosentrevistados serem homens biolgicos faz com que tenham pouca autonomiacorporal para chegar parentalidade, precisando de um corpo feminino paradar seguimento gestao. Para as mulheres essa autonomia maior, poispodem obter o esperma em bancos de esperma e dar seguimento gestaosem necessidade de um homem. Como conseqncia, a busca desse tipo depaternidade biolgica para os homens gays acaba se tornando menos prioritria.Essa tendncia dos nossos entrevistados est de acordo com os dados obtidosno Brasil sobre homoparentalidade, indicando que a valorizao da parentalidadebiolgica mais importante entre as mulheres.11

    11 Tarnovski (2003), em sua pesquisa realizada com homens que se identificavam como gays, emFlorianpolis, refere que existe pouca demanda de novas tecnologias reprodutivas por parte dehomens, sendo a adoo formal ou informal a forma de acesso parentalidade mais procurada.Uziel (2002) mostra que a maior incidncia de pedidos de adoo, no Rio de Janeiro, feita porhomens. Dos oito casos analisados por ela, apenas um era apresentado por mulher. Os dados deEugnio (2003) apontam uma demanda maior de inseminao artificial por mulheres lsbicas, emseus projetos parentais. Sousa (2005) relata que, no Canad, prevalece a busca de novas tecnologiaspor mulheres lsbicas, enquanto no Brasil, a maioria das famlias lsbicas estudadas pela autora composta pela incorporao dos filhos de relacionamentos heterossexuais anteriores.

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    Nas famlias de travestis e transexuais, o acesso parentalidade se d,em geral, pela adoo informal de crianas, oriundas de familiares, amigos,vizinhos ou, simplesmente, qualquer criana abandonada. Esse modo informalde circulao de crianas uma caracterstica das classes populares brasilei-ras, conforme mostrado por Fonseca (2002). Comumente, essa parentalidadeacontece devido a uma situao casual. A adoo informal, desse modo, resul-ta de uma conjuno entre o desejo de ter filhos e o compadecimento em rela-o situao de abandono das crianas. Mais do que pena, a criana abando-nada desperta uma identificao com a sua trajetria pessoal de preconceito eabandono.

    Quando perguntadas sobre as preferncias por sexo ou raa das crianas,elas tendem a responder que tanto faz.12 Algumas informantes dizem, inclu-sive, que nem iriam se importar se a criana no fosse perfeitinha, aceitariame criariam com muito amor a criana mesmo que faltasse um pedacinho.Assim, elas geralmente recorrem ao poder judicirio apenas para pedir a guar-da da criana de que j cuidam.

    O recorte de classe torna-se obrigatrio para a compreenso do modoescolhido pelas travestis e transexuais para chegar parentalidade. Alm daescolaridade (apenas uma das oito informantes completou o primeiro grau)pesa, tambm, a profisso das entrevistadas que, com exceo de uma, so ouforam profissionais do sexo. A baixa escolaridade e o tipo de profisso obje-tos de restries por parte das instituies oficiais dificultam no apenas apossibilidade de adoo e guarda, mas, tambm, o acesso aos meios para lutarpor ela.

    A mudana nos documentos de identidade , para as transexuais, de enor-me importncia para o acesso parentalidade, pois pelo uso de documentosadequados sua identidade social que pensam conseguir a adoo legal deuma criana. Assim, algumas fazem planos de adotar legalmente, mesmo tendopresente a possibilidade de serem impedidas devido s diferentes formas dopoder judicirio tratar a questo.

    As travestis, porm, raramente pensam na possibilidade de acionar a viajudicial para adotar, devido ao preconceito que temem sofrer quando tentarem

    12 O uso do gnero gramatical feminino visa acompanhar o gnero reivindicado pelas travestis etransexuais.

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    uma adoo. Como no fazem a cirurgia de transgenitalizao, dificilmenteconseguem trocar os documentos, o que, junto com a classe social (popular), aescolaridade (baixa) e a profisso (prostituio), torna muito pouco provvel odeferimento de um pedido de adoo. Como diz uma informante: Se para osheterossexuais j complicado adotar, imagina pra ns travestis que j sofre-mos tanto preconceito.

    As anlises sociolgicas mais recentes salientam o papel do estigma naproduo e reproduo das relaes de poder e controle dos sistemas sociais,fazendo alguns grupos sentirem-se desvalorizados e outros superiores. Foucault(1988) j demonstrou que as formas de elite de conhecimento, entre elas apsicanlise/psiquiatria, ajudam a constituir diferenas nas sociedades moder-nas, sinalizando-as e criando categorias diferentes de pessoas. O poder/saber usado para legitimar essas diferenas. Assim, as pessoas estigmatizadas e dis-criminadas aceitam e internalizam o estigma por estarem sujeitas a um aparatosimblico opressivo cuja funo legitimar essa desigualdade. Segundo Parkere Aggleton (2002), os indivduos estigmatizados ficam com pouca capacidadede reao. Essa disposio pode ser evidenciada na fala citada acima, cujoargumento perpassa muitas das outras entrevistas.

    Como so vivenciados os papis de gnero

    O questionamento freqente sobre quem ser o pai e quem ser a menuma famlia homoparental uma artificialidade que desconsidera o fato deque um homem gay no se torna mulher por ter o seu desejo sexual orientadopara um outro homem, assim como uma mulher lsbica no se torna homempela mesma razo. Se pensarmos em termos de funo parental, podemosdizer que a funo materna ou paterna poder ser desempenhada por qual-quer dos parceiros, mesmo quando exercida de forma mais marcante por umou outro dos membros do casal, sem que isso os transforme em mulher ouhomem.

    Do ponto de vista da psicanlise, considera-se necessria a presena deum terceiro para a separao psquica entre me e filho, uma das atribuiesda chamada funo paterna. Entretanto, nas discusses sobre famlias nasquais os pais so do mesmo sexo, h uma confuso entre o entendimento doque seja a funo psquica cumprida pelo terceiro e a sua nomeao comopaterna. Tanto nos casais gays quanto lsbicos, a funo de terceiro pode

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    ser exercida pelo parceiro/a do pai/me. Ao ser ele/ela o objeto de desejo dopai/me, introduz-se na fuso me-filho inicial, mostrando ao filho a existnciade um outro desejado e, com isso, inaugura a alteridade. Para o filho, noimporta o sexo da pessoa para a qual o desejo do pai/me est direcionado. Oimportante a descoberta da existncia de uma outra pessoa, que no ele/ela,por quem o pai/me sente desejo. A manuteno da idia de que o terceiroteria que ser o pai-homem promove um deslizamento do simblico para o real,evidenciando o vnculo que a psicanlise sustenta com a manuteno de umaordem familiar patriarcal.

    Entre o nossos informantes, usualmente, o exerccio das funes maternae paterna se d de acordo com as caractersticas e preferncias de cada um,no havendo necessariamente, nos casais homossexuais, uma diviso rgida depapel de gnero: feminino para o que cumpre uma funo dita materna emasculino para uma funo dita paterna. Um dos dois pode exercer mais opapel de autoridade, normalmente aquele considerado o verdadeiro pai, porser o pai biolgico ou por ser o pai adotante, o nico reconhecido pela lei. Osegundo pai ou o companheiro do pai, em geral, ocupa um lugar mais mater-nal, no porque seja mais feminino na sua identidade, mas porque se encarre-ga das tarefas nas quais o reconhecimento do verdadeiro ou do legal no solicitado, geralmente os cuidados domsticos. Nas famlias em que um doscomponentes travesti ou transexual, a diviso dos papis parentais maisdefinida e parece se dar de acordo com o sexo/gnero de escolha de cadaum: mulheres transexuais e travestis so consideradas mes e seus compa-nheiros, pais.

    Cada grupo familiar pesquisado por ns reinventa seus prprios termos denomeao, para possibilitar a incluso de outros tipos de cuidadores parentais,alm da nomeao tradicional pai e me. Encontramos nomes como dindo,painho mainha e equivalentes femininos para as travestis e transexuais e alguns diminutivos dos nomes prprios sendo utilizados pela criana paranomear o segundo cuidador, todos indicando a existncia de uma ligao afetivamais significativa. Por no haver uma definio, nem social nem legal, paraesses outros cuidadores, no existem, ainda, termos de parentesco que permi-tam nome-los. Mesmo assim, importante salientar que as crianas no fa-zem confuso sobre o gnero dos pais (os homens so chamados de pai ouequivalente e as mulheres de me ou equivalente) e no so prejudicadas, emtermos do aprendizado das diferenas sexuais dos pais, pelo fato de seremcriadas em famlias homoparentais.

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    preciso levar em conta que os casais de homens que criam filhos, dificil-mente escapam da presena das mulheres no cotidiano, pois os trabalhos coma primeira infncia so profundamente feminilizados. Confirmamos isso comos nossos informantes homossexuais, os quais, embora justifiquem o no-re-curso s novas tecnologias reprodutivas pela idia de no querer depender deuma mulher, em sua maioria, reconhecem a necessidade de uma pessoa dosexo feminino, durante a vida cotidiana, para ajudar nos cuidados com a crian-a. Essa necessidade alude ao cumprimento das tarefas domsticas e valori-zao de uma mulher que sirva como modelo de feminino para a criana.Contam para isso com empregada, me, irms e at amigas para auxiliar nocuidado com os filhos.

    Um dado que vai no mesmo sentido o de muitos dos homossexuaisentrevistados pretenderem adotar uma criana mais crescida, que no deman-de cuidados especiais, para os quais as mulheres so entendidas como maisaptas. Os entrevistados demonstram querer que as crianas mantenham con-tato com pessoas de ambos os gneros. Assim, o fato de ser criada por doishomens no implica que a criana crescer sem referncias femininas no seucotidiano familiar.

    Apesar da incorporao, na configurao familiar, de espaos para outrostipos de cuidadores, as representaes das figuras parentais principais continu-am sendo maternas e paternas, s quais se atribuem diferentes tipos decuidados parentais, dentro dos modelos de gnero tradicionais. Mesmo os ca-sais de homens que adotam e criam o filho em conjunto, buscam figuras femi-ninas (suas mes ou empregadas domsticas) para os cuidados cotidianos queenvolvem alimentao, vesturio e sade.

    As travestis e transexuais que planejam ser mes tambm esperam en-contrar um homem que as ajude a criar o filho. Permanece com ele o papeltradicional de pai, ficando ao encargo delas os cuidados maternos com a crian-a, numa representao de famlia que opera segundo os papis tradicionais degnero e parentalidade.

    A maternidade das travestis e transexuais

    Apesar de serem percebidas como fazendo parte de um mesmo universohomossexual, as travestis e as transexuais tm algumas caractersticas espe-cficas na construo da identidade sexual e de gnero que precisam ser bem

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    compreendidas para que possamos perceber com clareza as conseqnciassobre o tipo de parentalidade que possam vir a exercer.

    A viso do senso comum considera que tanto travestis quanto transexuaisfazem parte de um grupo mais amplo, abarcando tambm homossexuais. Essacategorizao incorre numa confuso entre o que chamamos de orientaodo desejo sexual (com as prticas sexuais correspondentes: homossexualida-de, heterossexualidade, bissexualidade) e as identidades de gnero (a per-cepo de si como homem, mulher, travesti, transexual). Ambas as categorias(travestis e transexuais) identificam a si prprias como mulheres, vtimas de umerro da natureza, tendo nascido com um corpo trocado: alma de mulher emcorpo de homem. A diferena entre elas seria que, para as transexuais, segun-do a medicina, haveria o aparecimento precoce do sentimento de pertencer aooutro sexo e o desejo de fazer a cirurgia de troca de sexo.

    Entretanto, existem outras diferenas que so acionadas pelas prpriastravestis e transexuais na sua construo identitria. As transexuais tm a ne-cessidade permanente de provar que a sua alma de mulher provm desde onascimento, caracterstica que as colocaria dentro do diagnstico detransexualismo verdadeiro legitimando as suas demandas frente s institui-es mdicas e jurdicas (cirurgia de transgenitalizao e troca de documenta-o). Esse diagnstico tambm alivia o peso das acusaes sociais de condutadesviante. A diferenciao reivindicada pelas transexuais em relao s tra-vestis vem da necessidade de se separar da imagem de violncia, marginalidadee prostituio comumente ligada a estas ltimas. Essa conduta uma estrat-gia de enfrentamento do estigma e do preconceito social contra a sua diferen-a. O desejo de legitimidade social est apoiado na idia de que, por seremvtimas da natureza, o seu comportamento no implicaria nenhum tipo de des-vio moral, como o atribudo socialmente homossexualidade e ao travestismo(Zambrano, 2003).

    As travestis igualmente se consideram mulher em corpo de homem,embora no se enquadrem em todos os parmetros diagnsticos da medicinapara o transexualismo. Elas tambm apresentam os cdigos da feminilidade,porm a sua apresentao em excesso que confere a elas a identidade detravestis, tendo o seu glamour um sentido tanto de fantasia quanto de artifcio(Cornwall, 1994).

    Por se sentirem mulheres, tanto travestis quanto transexuais conside-ram que as relaes afetivo/sexuais com parceiros homens so hetero e nohomossexuais. Com isso, os casais constitudos dessa forma so percebidos

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    por elas como heterossexuais, contemplando as expectativas dos papis degnero intrafamiliares mais tradicionais. Pela mesma razo, a posio parentalque pretendem ocupar em relao aos filhos materna e no paterna. A suaposio de me complementada pela posio de pai do companheiro.

    Todavia, como o poder judicirio, apoiado nas consideraes mdicas, sconsidera possvel a troca de sexo e nome nos documentos de identidade dastransexuais depois da cirurgia, essas constroem expectativas diferentes dastravestis no que respeita adoo de crianas.13 Os traos que as diferenciame os que as aproximam vo determinar a maneira como pretendem constituiruma famlia e criar seus filhos.

    O discurso das travestis e transexuais sobre a sua capacitao para aparentalidade o mesmo e se desenvolve no sentido de mostrar que so pos-suidoras de um instinto materno. Enfatizam muito suas experincias anterio-res de cuidados maternais, legitimando essa capacidade parental materna, per-cebida por elas como instintiva, com narrativas de situaes nas quais, aindana infncia e na adolescncia, cuidaram de crianas de sua famlia, comoirmos mais novos, sobrinhos, filhos de outros familiares, de vizinhos e amigosde suas famlias de origem.

    Chodorow (1990) argumenta que o aprendizado do cuidado com as cri-anas parte fundamental da socializao das mulheres, em nossa sociedade. importante salientar, tambm, a existncia de trabalhos clssicos, como o deElisabeth Badinter (1985), contrapondo-se s teorias que postulam a existnciade um instinto materno, inato e universal, compartilhado por todas as mulhe-res. A autora defende que amor materno , na verdade, um mito, que assumeum valor social incalculvel e exerce uma imensa coero sobre os nossosdesejos. Isso, porm, no implica ser ele universal, nem estar presente nasmulheres sob forma de um instinto.

    Os nossos dados corroboram essas idias mostrando que no necess-rio ser mulher biolgica para se sentir portadora de um instinto materno.Parece-nos que, da mesma forma que a maior parte das mulheres, as travestise transexuais entrevistadas no apenas incorporaram, atravs da socializao,esse instinto que as qualifica como naturalmente aptas maternidade, mas,

    13 Recentemente, no dia 5 de abril de 2006, a Stima Cmara Civil do TJRS aprovou o pedido de trocade nome na documentao para uma transexual no-operada, porm negou a troca de sexo.

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    tambm, por meio dele, corroboram socialmente a afirmativa de serem psiqui-camente mulheres.

    Talvez por isso, a totalidade das travestis e transexuais entrevistadas de-clara no querer fazer uso de coleta de smen e de novas tecnologiasreprodutivas para terem um filho biolgico. Muitas reagiram de forma indigna-da sugesto dessa possibilidade, remetendo a uma representao de paterni-dade associada ao uso do smen. Afirmam que essa alternativa seriaimpensvel, porque ao coletar smen o fariam como homens, enquanto seudesejo de filhos est relacionado ao desejo de ser mes e no pais. Talmaneira de encarar essa possibilidade nos remete importncia, para essasinformantes, da representao da maternidade como confirmadora do seu g-nero feminino. Esse dado, entretanto, no pode ser generalizado, pois o traba-lho de campo relacionado a esse segmento do universo emprico ainda est emfase inicial. possvel que, em lugares onde a maternidade e a paternidadeestejam relacionadas a outras representaes, as novas possibilidadestecnolgicas possam vir a ser utilizadas.

    Entrevistamos apenas uma travesti e uma transexual com filhos proveni-entes de relao heterossexual anterior. Ambas evidenciam que a representa-o parental ligada a esses filhos continua sendo paterna, mesmo aps a trans-formao corporal. Nesses casos, percebe-se a coexistncia da representaoparental masculina, construda anteriormente, e da representao parental fe-minina, construda na atualidade. interessante assinalar que a representaopaterna dada pelo corpo, est ligada aos fluidos (smen, hormnios) produzi-dos anteriormente pelo corpo masculino, enquanto a representao materna dada pelo social e est relacionada percepo subjetiva de si como possuido-ra de uma essncia feminina dentro de um corpo tambm feminilizado.

    Constatamos a presena de diferentes investimentos dos informantes emrelao aos filhos provenientes de contexto heteroparental e filhos planejadosem contexto homoparental. Nesse sentido, Eugnio (2003, p. 11) sugere que seanalise essa diferena a partir das categorias de filhos memria e filhosprojeto, centradas na percepo de diferentes temporalidades da parentalidade,evidenciando vivncias distintas. Os filhos memria seriam a materializaoda lembrana de que os homossexuais j foram heterossexuais e as travestis etransexuais j foram homens. Desse modo, as relaes com os filhos mem-ria so marcadas pelas tenses da nova construo identitria desses sujeitos,as quais podem acarretar, inclusive, rupturas das relaes parentais. J os fi-

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    lhos projeto, esto sujeitos a um investimento diferenciado, porque conjugam odesejo de filhos com a consolidao da identidade sexual ou de gnero atual.

    Sugerimos que, devido ao grande peso do valor famlia na nossa socie-dade, a parentalidade pode ser um elemento usado para positivar a homossexu-alidade, o travestismo e o transexualismo, assumindo um papel importante noprocesso social de afastamento do estigma, o que, como conseqncia, leva auma considervel ampliao da cidadania.14 Essa possibilidade de relativizaodo estigma aparece na fala de um dos operadores do direito quando diz uma criana infectada [pelo HIV], a mais cuidada do ambulatrio, a mais papa-ricada, a que no tinha uma assadurinha, era cuidada por uma travesti achoque em relao a travestis e transexuais a gente teria que repensar, estudar,desconstruir alguma coisa ou reconstruir, no ?

    Como j referimos anteriormente, os dados coletados demonstram que,embora tenham um sexo de nascimento masculino, as travestis e transexuaispodem evidenciar representaes parentais femininas e maternas. Essas estomais relacionadas aos filhos efetivos ou projetados depois das transformaescorporais, indicando a maior importncia da identidade de gnero do que opertencimento ao sexo biolgico, para construir essa representao. Dessemodo, a parentalidade materna refora a identidade feminina das travestis etransexuais.

    Repercusses sobre o campo jurdico

    A legislao brasileira no incide da mesma maneira sobre as diferentespossibilidades de existncia de famlias homoparentais. A co-parentalidade, porexemplo, uma das formas possveis de famlia homoparental sobre a qual odireito no tem nenhuma ingerncia na construo. O nosso Cdigo Civiltampouco prev a complexidade de alianas e filiaes decorrentes da co-parentalidade homossexual. Dessa forma, no pode garantir criana nem aestabilidade nem a memria de seus vnculos parentais, pois, ao reconhecer aexistncia legal de apenas um pai e uma me, deixa fora da proteo do Estadoos outros participantes dessa nova configurao, juntamente com os direitos edeveres que lhes so inerentes.

    14 O trabalho de Tarnovski (2003) confirma esse dado no referente aos pais homossexuais.

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    Nos casos de co-parentalidade, a criao do filho se d de forma conjun-ta, pelo contrato entre duas pessoas (ou dois casais) de sexo oposto, que nomantm entre si relao de conjugalidade. Essa modalidade inscreve a concep-o num contexto heterossexual e a criao em contexto deliberadamente ho-mossexual. Assim, os co-parentes asseguram criana, pelo menos teorica-mente, o conhecimento das origens biolgicas e afetivas, mas no garantem aproteo legal das relaes derivadas delas. O recurso ao uso de novastecnologias reprodutivas tambm no est regulamentado pelo Cdigo Civilbrasileiro. Segundo Brauner (2003), a nica normatizao existente uma re-soluo do Conselho Federal de Medicina, o que deixa a cargo das opiniespessoais e posies ideolgicas dos mdicos o acesso ou no dessas pessoashomossexuais s novas tecnologias.

    Nessas duas situaes os problemas legais acontecem depois do nasci-mento do filho e so relativos aos direitos e deveres dos parceiros/as dos pais/mes biolgicos, que ainda no encontraram lugar nem social nem legalmentereconhecido.

    Nos casos em que o contexto familiar homossexual posterior a umarelao heterossexual desfeita, o problema legal que poder surgir ser relativoao uso da homossexualidade de um dos pais como justificativa para impedi-mento do exerccio do seu direito de parentalidade como guarda, visita, pernoi-te, frias, etc. Em outros casos, pode haver uma exigncia por parte do pai/meheterossexual de no-convivncia da criana com o novo parceiro/a do pai/me homossexual, sob alegao de ser necessrio proteger a criana do co-nhecimento desse tipo de relacionamento. Nessas situaes, o impedimentoconstitucional de discriminao, por qualquer razo, deveria ser suficiente paraevitar que os direitos parentais das pessoas homossexuais sejam desrespeita-dos. Entretanto, as pesquisas mostram que uma das grandes preocupaes dasmes lsbicas , justamente, perder a guarda dos seus filhos devido a tal tipo desituao. Quando isso acontece, a justificativa apresentada na sentena costu-ma ser a defesa do melhor interesse da criana, ao ser considerada a homosse-xualidade do pai/me um fator de prejuzo para o bom desenvolvimento do filho(Julien; Dub; Gagnon, 1994).

    Quando a escolha pela adoo, os diferentes obstculos jurdicos cons-tituio de uma famlia adotiva homoparental decorrem, de um lado, da impos-sibilidade de desvincular os aspectos biolgicos, sociais e jurdicos da filiao e,de outro, da norma da diferena dos sexos. A adoo legal a situao naqual o poder judicirio sempre chamado a se manifestar e, como tem por

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    finalidade dar uma famlia a uma criana, a inteno criar uma filiao o maisprximo possvel da biolgica, mesmo que a adoo seja o exemplo tpico defiliao instituda pelo direito e no pela natureza (Gross, 2003). Como nahomoparentalidade por adoo essa fico jurdica no pode ser mantida, ficadificultada a adoo pelos casais homossexuais.

    Embora a lei no traga impedimento adoo por casais homossexuais,todos os nossos informantes que buscaram a adoo legal o fizeram individual-mente, mesmo estando em parceria conjugal.15 Entendemos que a representa-o da famlia nuclear vigente na nossa sociedade, e muitas vezes compartilha-da pelos informantes, pode trazer como implicao o temor de um indeferimentodo pedido da adoo pelo fato de serem homossexuais, o que explica sua con-seqente opo por no demandar a adoo conjunta. Assim, os homossexuaisentrevistados que tm ou planejam ter acesso parentalidade, em sua maioria,optam pela adoo legal por parte de apenas um dos parceiros.

    A escolha da adoo como via principal de acesso parentalidade nopode ser pensada sem considerar as peculiaridades dos nossos informanteshomossexuais, pertencentes s camadas mdia e mdia alta da populao, altonvel de escolaridade, militncia ou amizade com militantes de grupos que lutampelos direitos dos homossexuais. Essas caractersticas se afirmam como sig-nificativas no fato de todos buscarem a adoo atravs do sistema judicirio,mesmo admitindo a possibilidade de enfrentar preconceitos. preciso levar emconta que existe, para esses informantes, no apenas uma conscincia maior dosdireitos de cidadania, mas, tambm, recursos financeiros para lutar por eles. Paratravestis e transexuais a situao bem diferente, como vimos anteriormente.

    Nos dados coletados entre os operadores do direito, pudemos observarque a preocupao maior sempre em relao ao bem-estar da criana. Se oadotante homossexual aumenta a apreenso quando comparado com adotantesheterossexuais. Em relao a isso, Uziel (2002) analisa que a alegao dosoperadores do direito sobre uma maior avaliao das condies de adotanteshomossexuais est centrada na possibilidade de a homossexualidade dos paisinterferir no bem-estar da criana. Desse modo, os operadores tendem a inter-pretar a adoo por homossexuais como menos favorvel para a criana. EmPorto Alegre, os discursos dos operadores do direito so muito cuidadosos em

    15 Para maior esclarecimento, ver Lorea (2005).

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    relao possibilidade de haver preconceito pela orientao sexual e no sopoucas as vezes em que as avaliaes das demandas dos homossexuais tmresultado positivo. Apesar disso, os questionamentos relativos sexualidade e capacidade parental dos pais so sempre mais profundamente pesquisadosquando o demandante percebido como gay ou lsbica.

    Consideraes finais

    A necessidade da diferena dos sexos perpassa todos os campos de saberque, de alguma maneira, influenciam e decidem as questes da parentalidadehomossexual, travesti e transexual. Tomando como base essa necessidade soconstrudas as idias que questionam a sobrevivncia das sociedades e a sademental das crianas. Esse discurso, construdo histrica e culturalmente, atin-ge, entretanto, de forma diferente cada um dos grupos considerados.

    Em relao aos homossexuais, a prpria falta da presena dos doissexos o fator que justifica as reservas quanto sua parentalidade. Os argu-mentos so de que as crianas iro crescer sem ter referncias do masculino efeminino ficaro psicticas, sero discriminadas e, ao final de tudo, sero tambmhomossexuais, colocando em risco de desaparecimento a prpria civilizao.

    O paradoxo que o argumento usado para impedir a parentalidade ho-mossexual a falta de diferena dos sexos o mesmo que deveria autorizara parentalidade transexual. Fizeram cirurgia de troca de sexo arrumando oerro da natureza, foram reconhecidas como mulher (ou homem) juridica-mente, podendo, com isso, adotar legalmente (pelo menos na teoria). Alm domais, caso a parentalidade seja compartilhada com um homem, fica mantido oestatuto heterossexual da relao. A questo da diferena de sexo, necessriapara a criao de filhos, est solucionada, como confirmam seus novos docu-mentos, constando no registro nome e sexo corrigidos. Como explicar, ento, areserva contra essa parentalidade?

    Com as travestis o problema outro. Se os homossexuais ameaam aordem pelo comportamento, desejando e fazendo sexo com pessoas do mes-mo sexo, as travestis ameaam corporalmente, pois o prprio corpo que sub-verte a norma. Metade homem, metade mulher, a indefinio, a concomitncia,a ambigidade corporal relacionada diferena sexual o que torna impensvela possibilidade parental.

    Todas essas situaes levantam questes para a antropologia, psicanlisee direito, como assinalado no presente trabalho. O grande desafio que se colo-

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    Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, p. 123-147, jul./dez. 2006

    Parentalidades impensveis

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    Recebido em 20/07/2006Aprovado em 07/08/2006