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ponto final SEXTA 30 DE JUNHO, 2018 Parágrafo Yu Hua em entrevista: “A China da Revolução Cultural e a que vem a seguir são como dois mundos completamente diferentes.” pag 4 - 6

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ponto final • SEXTA 30 DE JUNHO, 2018

Parágrafo

Yu Hua em entrevista:

“A China da

Revolução Cultural

e a que vem a

seguir são como

dois mundos

completamente

diferentes.”

pag 4 - 6

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suplemento literário • SEXTA 30 DE JUNHO, 2018

ADMINISTRADOR /DIRECTOR: Ricardo Pinto EDITORA: Sara Figueiredo Costa COLABORADORES: Elisa Gao, Cassie Cao, Guilherme Cabrini Gonçalves, Hélder Beja, Yao FengILUSTRAÇÃO: Rui Rasquinho, C_L_A DESIGN /PAGINAÇÃO: Catarina Lopes Alves

Propriedade, administração e distribuição: Praia Grande Edições, Lda Impressão: Tipografia Welfare Ltd.• O Parágrafo é um suplemento do jornal Ponto Final e não pode ser vendido separadamente.0 Rua de Camilo Pessanha No. 21, R/C, Macau % [email protected] ! 2833 9566 / 28338583 < 2833 9563

B R E V E S E D I T O R I A L

Quando Yu Hua chegou à livraria Ferín, em Lisboa, já poucas cadeiras vazias se viam na assistência. Era uma tarde de Junho, um dia

depois do aniversário da repressão dos protestos na Praça de Tiananmen, e o autor de China em Dez Palavras, recentemente publicado pela Relógio d’Água, preparava-se para falar sobre mudança, memória e escrita na China contemporânea. Com tradução simultânea de Tiago Nabais – essencial para a pequena parte da assistência que não falava nem percebia mandarim, composta sobretudo por estudantes chineses em Portugal –, o autor contou várias histórias da sua infância, vivida durante a Revolução Cultural, e de um presente em que a China parece mudar muito a cada dia. Entre passado e progresso, a memória surge como reduto imprescindível, algo que é preciso não perder nesta velocidade a que o país parece ter-se entregue. E sobre a memória e a ameaça do esquecimento, em resposta a uma pergunta da assistência, Yu Hua partilhou um episódio que viveu em Frankfurt, na Feira do Livro, no ano em que a China foi país convidado e onde uma exposição documentava os grandes feitos chineses das últimas décadas: «Olhei para as imagens e não havia referências à Revolução Cultural, ao Grande Salto em Frente, a Tiananmen... Achei estranho, porque alguns dos ‘grandes feitos’ do governo não estavam ali representados. Não acho que o povo tente esquecer o passado, acho que é o governo que o tenta esconder. Só que a história não é algo que se possa encobrir, mas antes algo que acaba sempre por regressar.» Nos seus livros, Yu Hua procura não esquecer o passado, do mesmo modo que procura questionar o presente, entendê-lo, revelar-lhe os pequenos absurdos de cada dia enquanto espelha nas histórias passadas na China um pouco do que é o mundo. Nesta edição, dedicamos-lhe três páginas, dando a um dos mais importantes escritores chineses contemporâneos espaço para falar sobre a sua já longa obra. Às vezes, é preferível falar das coisas com tempo e sem cortes, para melhor lhes apreciar os contornos.

S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

Portugal na Feira do Livro de Guadalajara Entre 24 de Novembro e 2 de Dezembro, a literatura em língua portuguesa vai estar em destaque na Feira do Livro de Guadalajara, no México, onde Portugal é o país convidado. Entre os mais de 40 escritores presentes estarão António Lobo Antunes, Mia Couto, Hélia Correia, Germano Almeida, Dulce Maria Cardoso, José Luís Peixoto, Lídia Jorge, Gonçalo M. Tavares e Afonso Cruz. Entre as muitas actividades programadas, no Pavilhão de Portugal vão ser apresentados o Plano Nacional de Leitura, por Teresa Calçada, o Programa de Apoio à Tradução, Ilustração e Edição de obras de autores portugueses e africanos de língua portuguesa.

Prémio de ensaio para Helder Macedo

O romancista e ensaísta Helder Macedo venceu, por unanimidade, o Grande Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores com a obra Camões e Outros Contemporâneos. O júri, constituído por Artur Anselmo, Clara Rocha e Isabel Cristina Rodrigues, justificou assim a escolha da obra vencedora: «Este livro impõe-se pela mestria da sua linguagem, precisa, arguta e inventiva, muito fértil como chão de verdadeira tarefa que é a do ensaísmo literário – pensar a literatura dentro da própria literatura».

Fausto em versão digitalDepois da edição em livro publicada recentemente pela Tinta da China, o Fausto, de Fernando Pessoa, ganha agora versão digital num site que permite aceder a todos os fragmentos desta obra dramatúrgica, bem como a reproduções dos manuscritos originais, notas explicativas, bibliografia relacionada e vários métodos de pesquisa. O trabalho de organização e edição deste site foi feito pelo Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por uma equipa dirigida por Jerónimo Pizarro e Carlos Pittella (a mesma equipa que trabalhou na recente edição do livro em papel) e composta por Filipa de Freitas, Patricio Ferrari, Nicolás Barbosa e José Camões. A edição digital de Fausto está disponível em www.faustodigital.com.

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E S C R I T A N A B R I S A

O senhor presidente está a chegar. Não é a chegada de qualquer fulano, por

isso há alguns uniformes a manter a ordem da multidão e um cão a farejar

pela localidade, para ver se está escondido algum potencial explosivo. Mas

não é nada exagerado. O senhor presidente chegou, mas não está “blindado” por

uniformes que apenas deixam o povo avistar o seu líder à distância, por fora da linha

de alerta, tal como se ele fosse um animal muito precioso. Qualquer pessoa pode

aproximar-se dele para o saudar e ele, sempre sorridente, também cumprimenta

as pessoas, apertando a mão ou dando beijinhos. E aceita todos os convites para

tirar uma fotografia com ele. Imagine, ser presidente também requer a boa saúde

para assumir este trabalho físico, para além de ter a sabedoria de tratar os assuntos

de Estado. No entanto, como representante máximo do Estado e do povo, ele

não deve representá-los apenas em cerimónias de festividades, manchetes da

imprensa, banquetes no palácio, mas sim no meio do povo, a fim de conhecer-lhe as

necessidades, os desejos, as preocupações ou os problemas. Afinal, quem é o povo?

O José que vende o frango assado na feira, a Maria que trabalha treze horas como

empregada de mesa no restaurante, o Joaquim que toma o cuidado da sua vinha ao

sol...até que o senhor presidente, Marcelo, também é um elemento do povo, a servir

o povo.

T E X T O Y A O F E N G

Servir o povo

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A China de Yu Hua: Dois países no tempo de uma vidaEscritor maior

da imensa

constelação literária

chinesa, Yu Hua

esteve em Lisboa

para apresentar

China em Dez

Palavras,

o único dos seus

livros que a censura

não permitiu que se

publicasse na China

continental, e falou

ao Parágrafo sobre

o seu trabalho.

Nascido em Hangzhou, em 1960, Yu Hua começou a publicar contos em diversas revistas literárias chinesas a partir

de 1983. Antes disso, foi dentista por decisão alheia – o Estado destinou-o a essa profissão, por haver falta de dentistas, sem grandes preocupações com formação adequada – e trabalhou num Centro Cultural. Os primeiros contos publicados colocaram-no entre as jovens promessas literárias da sua geração e o percurso de Yu Hua foi avançando, seguindo-se novelas e romances, para além de vários textos de não-ficção.

Um dos escritores chineses com maior reconhecimento internacional, Yu Hua tem vários romances publicados, em chinês e em muitas outras línguas, mas apenas Crónica de um Vendedor de Sangue está traduzido em Portugal (numa edição da Relógio d’Água, com tradução de Tiago Nabais). A mesma editora publicou recentemente China em Dez Palavras, conjunto de dez textos não ficcionais onde o autor cruza as suas memórias pessoais com a história recente da China. Acompanhando o lançamento deste livro, o autor esteve em Lisboa para uma sessão de autógrafos na Feira do Livro e duas sessões públicas, uma na Livraria Ferín, outra na Faculdade de Letras. Foi aí que o entrevistámos, com a colaboração

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inestimável do seu tradutor, Tiago Nabais, que permitiu uma conversa fluida entre o português e o mandarim sobre a obra de Yu Hua, o seu processo de escrita e a experiência de crescer na China da Revolução Cultural e viver, agora, num país – o mesmo, mas outro – que cresce e se modifica a um ritmo absolutamente vertiginoso.

Na sessão de ontem, na Livraria Ferín, falou sobre a memória como algo que nem sempre é muito fiável e disse que China em Dez Palavras, apesar de ser um livro de não-ficção, tem algumas coisas ficcionadas pela sua própria memória, algo que talvez aconteça em toda a não-ficção. E o contrário? Ou seja, quanto há de não-ficção nos seus romances?

Em muitas obras de ficção há muitas coisas que não são ficção. Em Crónica de um Vendedor de Sangue há alguns exemplos, como a última frase do livro, «Xu Sanguan respondeu; “É como se costuma dizer – os pêlos públicos nascem depois das sobrancelhas, mas depois ficam muito mais compridos”.» Essa foi uma frase que eu ouvi quando era pequeno, numa casa de banho pública da aldeia, onde estavam dois homens a conversar. O que um dos homens queria dizer era em relação a outra pessoa, ele estava numa posição social inferior, mas acabou por ultrapassá-la, e usou esta imagem para descrever a ideia. Muitas vezes apanho estas frases na vida real e guardo-as para usar nos livros. Esta frase particular, ouvi-a muitos anos de começar a escrever o livro, mas assim que comecei a escrevê-lo pensei que tinha de arranjar forma de a usar no livro. Antes de Crónica de um Vendedor de Sangue, já tinha escrito vários contos curtos, novelas e alguns romances, mas nunca encontrei um sítio adequado para usá-la, porque me parecia tão forte que tinha de estar no início ou no fim de um livro, onde tem mais significado. E nessa situação, em que o Xu Sanguan já tinha vendido sangue, o chefe Li já se tinha reformado, havia o novo chefe, parecia-me um bom momento para usar, finalmente, a frase.

As primeiras coisas que publica são de ficção e só mais tarde chega à não-ficção e ao ensaio. Como é que define o registo, decidindo se um determinado tema será desenvolvido num texto ficcional ou num ensaio?

Quando comecei a escrever, a partir de 1982, 1983, usei sempre o registo ficcional. Na verdade, nessa altura escrevi algumas crónicas sobre os anos de infância e adolescência, mas foram poucas e muito curtas. Mais tarde, quando escrevi o Irmãos, decidi arranjar uma forma de juntar as duas

Chinas, as duas eras diferentes da China que vivi, porque a China da Revolução Cultural e a que vem a seguir são como dois mundos completamente diferentes. A Revolução Cultural é um pouco como a Idade Média na Europa, ao passo que hoje, na China, pelo menos relativamente ao estilo de vida, já não há uma diferença tão grande em relação à Europa e ao Ocidente. Para um europeu, seria preciso viver quatro séculos para ter uma experiência deste género, mas para um chinês bastaram quarenta anos para passar de um mundo para outro, dois mundos completamente diferentes. No entanto, depois de escrever o Irmãos, achei que não chegava, o formato de ficção não chegava para contar tudo e pareceu-me necessário usar um registo de não-ficção. Foi assim que comecei o China em Dez Palavras. A não-ficção permite-me abordar a realidade de uma forma muito mais directa. Posso simultaneamente contar histórias e dizer directamente aquilo que penso sobre um determinado assunto. Na ficção, claro, temos de respeitar os personagens e tem de ser através das histórias que lhes acontecem que podemos dizer estas coisas, o que impede que expressemos tão directamente o nosso ponto de vista. Mais tarde, depois deste livro, recebi convites de jornais estrangeiros, em França e nos Estados Unidos da América, para escrever crónicas e aí expressava directamente o meu ponto de vista sobre aspectos da realidade chinesa. Mas depois disto tudo, acho que já chega de não-ficção. Apetece-me muito voltar ao campo da ficção, agora.

Várias personagens dos seus romances são confrontadas com situações de extremo desamparo, emocional e material, muitas vezes em simultâneo. É o que acontece com Xu Sanguan, de Crónica de um Vendedor de Sangue, mas também com Song Gang e, de certo modo, com o Careca Li, de Irmãos, ou com Fugui, de Viver. Esse é um tema que lhe é caro, do ponto de vista da criação literária?

Sim, e há duas razões para isso. Uma tem que ver com a minha experiência de crescimento. Até eu ser adulto, a China era um país extremamente pobre e assisti a muitas histórias dramáticas de pobreza ao longo desse tempo, o que me influenciou muito para escrever com personagens colocados nesse tipo de situações. Por outro lado, interessa-me muito escrever sobre personagens que se deparam com dificuldades muito grandes e sobre o modo como lidam com elas. Também escrevi no Irmãos uma situação oposta, com o Careca Li, que enriquece, mas queria explorar a situação inversa, igualmente. Isso é uma

P O R S A R A F I G U E I R E D O C O S T A ( C O M T R A D U Ç Ã O S I M U L T Â N E A D E T I A G O N A B A I S )

excepção, porque de facto interessam-me mais as personagens que enfrentam dificuldades muito grandes, e não apenas materiais, porque a minha experiência de escrita diz-me que isso tem muito mais força.

Independentemente do contexto histórico, as relações familiares são sempre um gatilho inesgotável para uma narrativa. O que têm as famílias – na China ou em qualquer outro lugar – que atrai tanto os escritores e a literatura?

A família, para toda a gente, acaba por ser o nosso mundo, a nossa unidade mais próxima na vida. E é simultaneamente o mundo que nos é mais íntimo. Hoje à tarde [na sessão que Yu Hua protagonizou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa], vou falar sobre dois temas e um deles é precisamente a relação entre a família e o indivíduo. Nos meus livros, a família transmite muito a minha perspectiva sobre a família na China, o seu peso. A família é muito importante num sistema feudal e a China tem uma história de três mil anos praticamente sempre dominada por um tipo de poder feudal, por isso na nossa cultura tradicional há muito a ideia de que o indivíduo não tem voz própria, só no interior da sua família é que tem esse poder de expressão. Podemos dizer que a China é uma estrutura de famílias, muito mais do que de indivíduos, são as famílias que se ligam entre si, não os indivíduos. A unidade base social não é o indivíduo, que não existe fora da família, e isso faz com que eu escreva muito dentro do âmbito familiar. Vou contar uma história: há vinte e tal anos, o Viver e o Crónica de um Vendedor de Sangue já estavam traduzidos para inglês, mas ainda não tínhamos encontrado uma editora nos Estados Unidos. Todos os editores com quem falámos recusaram o livro, sem grande justificação, mas houve um responsável por uma editora que me escreveu uma carta. E fez-me uma pergunta estranha: porque é que as personagens destas duas histórias estão muito mais preocupadas em assumir as responsabilidades familiares do que as responsabilidades sociais? Na esperança de que ele percebesse o meu ponto de vista e quisesse publicar o livro, respondi-lhe, noutra carta, que o problema não era exactamente assim, não eram eles que não queriam assumir as suas responsabilidades sociais, era a própria sociedade que não admitia que eles assumissem qualquer responsabilidade fora da família. De qualquer modo, não me ligou muito e nem assim o convenci a publicar...

Mas isso alterou-se mais tarde.Sim, esta situação manteve-se até 2002,

quando o escritor Ha Jin, nessa altura muito popular nos Estados Unidos, recomendou o meu trabalho ao seu editor, que queria conhecer outros escritores chineses para publicar. Nessa altura, o editor leu os dois livros em inglês e gostou bastante, até porque, como editor de alguns livros de Ha Jin, já tinha algum conhecimento sobre a China. Mesmo assim, tinha algum medo de editar os livros, por não saber como promover um escritor chinês que ninguém conhecia nos Estados Unidos. Acabou por telefonar ao Ha Jin para saber a minha idade e ele disse-lhe que eu tinha 40 anos. Então, o editor decidiu avançar, porque como eu era novo, haveria de escrever mais livros e teriam tempo de me promover de modo a que tivesse algum sucesso, mesmo que estes primeiros não funcionassem. E assim saiu o Viver e, dois meses depois, o Crónica de Um Vendedor de Sangue, que venderam ambos muito acima das expectativas do editor. Este ano já saiu o oitavo livro nos Estados Unidos da América.

Há mudanças muito notórias no seu modo de escrever entre os contos que publica na década de 80, onde o experimentalismo é um dos traços fundamentais, e os primeiros romances, com enredos mais complexos. Como se dá essa mudança?

Este é o caminho comum que os escritores chineses da minha geração percorreram. Depois da Revolução Cultural, no início do período de reformas, o lugar por excelência para publicar eram as revistas literárias, que explodiram em número, e aí tínhamos de escrever histórias curtas. Na altura, o principal objectido de um escritor que estava a afirmar-se era publicar um conto numa dessas revistas, era mais importante do que publicar um romance em livro. Toda a gente começou pelos contos e, mais tarde, experimentou outras coisas. Depois dos contos, comecei a experimentar a novela, entre os trinta mil e os noventa mil caracteres. A mudança no estilo da minha escrita tem duas razões, uma tem que ver com a própria dimensão dos textos, claro, e outra com o método de escrita, que se alterou um pouco. A partir do momento em que temos a ideia de um conto na cabeça, nuns dias, numa semana, escrevemos do princípio ao fim, é algo que conseguimos manter na cabeça enquanto uma unidade. Um romance é completamente diferente, podemos precisar de um ano ou dois para completá-lo. Ora, ao longo de um período de tempo tão extenso, acontecem coisas na nossa vida, coisas que se vão alterando, por isso não conseguimos manter aquela unidade narrativa na nossa cabeça sem a

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alterar, é muito mais complexo. O destino dos personagens muda, também, ao longo desse tempo. No fundo, escrever contos é algo que podemos programar e fazer num determinado tempo do calendário, mas escrever romances é como a vida, não sabemos muito bem que rumo vai tomar, onde vamos parar. Foi por isso que o estilo da minha escrita mudou nessa fase em que comecei a escrever romances.

A Revolução Cultural surge como contexto em muitas das suas narrativas. Isso deve-se mais a uma espécie de dever de memória ou ao impacto que esse período teve na sua biografia e na construção da sua identidade?

A Revolução Cultural teve um impacto enorme em mim, porque o crescimento é a fase mais importante da nossa vida, aquela que mais define como vamos ser em adultos, que imagem vamos ter do mundo. Depois de sermos adultos, esta imagem pode ter algumas alterações, mas na base, vai manter-se. Eu cresci durante a Revolução Cultural e esse período está na base da minha imagem do mundo. Por outro lado, sempre tive uma grande vontade de escrever histórias passadas nesta fase da história da China, porque acho que os jovens não devem deixar de saber como é que nós vivemos, as experiências pelas quais passámos. Por isso, sim, são as duas razões em simultâneo.

Escrever sobre a Revolução Cultural parece já não ser tão problemático em termos de censura, mas o que acontece quando se escreve sobre o presente como fez, por exemplo, em Sétimo Dia, onde a corrupção e uma série de problemas sociais estão tão presentes?

Quando escrevi o Sétimo Dia não pensei nessas coisas, para não ser influenciado na escrita, mas quando escrevi China em Dez Palavras... assim que escrevi o primeiro capítulo, “Povo”, soube imediatamente

que o livro não iria ser publicado na China continental, porque abordei o tema de Tiananmen, e por isso tive muita vontade de o acabar rapidamente, já conformado com a ideia de que não o veria publicado. Em compensação, sabia que iria ser publicado em Taiwan, por exemplo. Ainda assim, tenho esperança de ainda o ver publicado na China durante a minha vida. De qualquer modo, quando escrevo não me preocupo muito em saber onde está essa linha de fronteira sobre o que pode ou não ser abordado e se o livro vai ser publicado ou não, porque isso influenciaria a minha escrita.

Ontem, na Livraria Ferín, disse que os governantes não costumam ler muito e por isso não tem problemas com a censura. Já foi incomodado por outro livro, para além de China em Dez Palavras?

Nunca. Na China, publicam-se anualmente cerca de trezentos mil títulos e claro que os funcionários, os quadros, não têm tempo para ler isso tudo...

Apesar da carga dramática, há humor na sua literatura – por vezes, até humor negro e algum sarcasmo – e há muitos episódios em que o absurdo parece dominar o quotidiano. Essa ideia de absurdo é um reflexo da sociedade chinesa contemporânea ou é, na verdade, um reflexo do mundo?

Acho que na China, como em qualquer parte do mundo, podemos deparar-nos com situações absurdas. Na China, nos últimos anos, surgiram muitas histórias completamente absurdas que são verídicas. Por exemplo, durante a Revolução Cultural havia retratos de Mao Zedong em toda a parte e eu achava isso mais ou menos natural, mas parecia-me muito estranho que houvesse retratos desses por cima dos urinóis, por exemplo. Recordando isso hoje, era uma situação completamente absurda, estar a usar um urinol e a olhar para o rosto de Mao, mas na altura ninguém

o achava. Nas últimas décadas, histórias como essa, ou tão absurdas como essa, vão acontecendo umas atrás das outras, por isso o absurdo é ao mesmo tempo uma técnica de escrita e a realidade que muitas vezes nos rodeia na China.

Há uma ideia de universalidade nos seus livros, mas parece haver igualmente um propósito de reflectir sobre o país em que nasceu, cresceu e vive, independentemente de escolher contextos do passado ou actuais. Esse é um objectivo seu, enquanto escritor?

Apesar de escrever sobre contextos particulares, claro que quero que as minhas histórias tenham um sentido universal. E percebi, com o tempo, que esta estratégia funciona, porque não são apenas os leitores chineses que compreendem e se revêem nos meus livros. Ao contrário, tentar escrever sobre o universal costuma resultar mal...

Nos seus romances, acedemos à dimensão psicológica dos personagens através das suas atitudes, pensamentos, emoções e não tanto através de descrições. Este modo de escrever, que privilegia a imersão no universo psicológico dos personagens em vez da sua descrição detalhada é intencional?

É intencional, sim, e resulta de uma evolução. Desde que comecei a escrever, fui-me sempre deparando com novas dificuldades, novos problemas, e uma das grandes dificuldades era a descrição do estado emocional dos personagens. Quando as pessoas estão calmas e tranquilas, é mais fácil, mas descrever pessoas calmas e tranquilas não tem grande interesse... é muito mais significativo falar sobre pessoas que estão em situações de abalo psicológico, e isso é mais difícil. Quando li os livros de [William] Faulkner, percebi que podia haver uma maneira interessante de descrever o estado

psicológico dos personagens, porque quando há um momento de perturbação, Faulkner não descreve o que se passa, mas antes refere as acções, os gestos dos personagens. Isto foi um momento fundamental no meu processo enquanto escritor e depois disso senti-me com muito mais capacidade para escrever. Antes de ler Faulkner, não tinha essa capacidade.

Em China em Dez Palavras há um capítulo dedicado a Lu Xun. De que modo a leitura da obra desse autor, que foi fazendo de modos muito diferentes à medida que cresceu, como conta nesse livro, influenciou a sua escrita?

Não sei se teve uma influência muito grande na minha escrita, porque quando redescobri Lu Xun já tinha escrito Viver e Crónica de um Vendedor de Sangue. Apesar de não ter influenciado directamente a minha escrita, o que senti nessa redescoberta foi que tinha encontrado uma espécie de companheiro, parecia que de um modo de certa forma espiritual ele me acompanhava e isso fez-me sentir mais corajoso, porque é preciso coragem para escrever. Quando falo de coragem na escrita, não tem apenas que ver com a coragem para lidar com as consequências daquilo que escrevemos. Há outro lado, porque quando escrevemos deparamo-nos muitas vezes com problemas e a questão é saber se vamos contorná-los ou encará-los de frente. A escrita de Lu Xun dá-me força para encarar esses problemas. Podemos dizer que é isso, uma influência mais espiritual do que prática.

Está a escrever algo que vá ser publicado brevemente?

Sim, tenho três romances por terminar, que deixei para trás por razões diferentes, e quero agora terminá-los, um a um, no futuro próximo. São três romances que estão numa espécie de coma e precisam de ser reanimados muito brevemente.

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alcance dos olhos; contornava o céu ruço como cavalo lusitano através do vidro fosco das janelas. Tão grandes como portas, armadas em metal e grade, sentavam-se em molduras humildes do outro lado do corredor. Longe de ser uma estada agradável, mas aquela era uma ala de segurança mínima, onde pequenos prazeres deslizavam através do controle desinteressado dos guardas. A comida não era das piores, e o tempo no pátio possuía um limite aceitável. Mas a comida não veio quando o sol tocou o ponto mais alto da sua trajetória, nem quando desceu pelo horizonte e tingiu o céu de laranja.

A sirene ainda insistia e ocupava os pensamentos de Gregório quase que por completo; não porque era barulhenta, já que soava distante e débil, numa das muralhas mais distantes que vigiavam a única estrada em quilômetros; mas porque era o único som que cruzara seu caminho até o momento. Não haviam passos, vozes, motores, as celas vizinhas eram igualmente tumulares. Gregório achava que as paredes que o cercava haviam o instruído devidamente, mas estava errado. Seu sangue corria inconfortável, seus calcanhares lambiscavam o chão nervosos.

Deitou-se no chão, procurando uma posição que lhe desse firmeza suficiente para explorar o buraco, torcendo para que nenhum guarda resolvesse aparecer no corredor nesse exato momento. Suor caiu pelo vazio quando olhou para dentro da escuridão, e por apenas um momento ele temeu cair ali dentro. Esticou seu braço, apoiando na outra borda do buraco com a mão livre, enquanto empurrava seu corpo com os pés posicionados numa das paredes. Nada. Não alcançou o fundo nem as laterais, sua mão balançava livre pelo espaço frio e lasso.

Todo novo esforço que empregava na exploração o levava mais longe, mas os limites daquele buraco se mantinham fora de seu alcance. Não havia nada de concreto

Gregório acordou num salto, assustado e confuso, como vinhaacontecendo de forma mais e mais frequente.

Espasmo hípnico, ele lembrou; era onome que se dava a essa sensação de cair durante o sono. A explicação que ouviuna enfermaria fez parecer que era algo corriqueiro, parte das suas viagens de aviãoconstantes entre São Paulo e Macau. Um dos sintomas mais fáceis de lidar comcerteza, mas sua constância excessiva e incomum começava a lhe causarproblemas. Seus olhos ainda inchados treinavam nos detalhes do acabamentosobre o teto quando se deu conta da sirene distante. Subia até um agudo cortante,mantinha-se lá no alto por alguns segundos, depois descia lentamente a um tommédio, apenas para inevitavelmente repetir o ciclo. Sinal de problemas de novo, elepensou.

Tardou a perceber a ausência de seu companheiro de cela. Cama desarrumada e desalinhada, roupa de cama jogada ao chão; Magro se levantou com pressa, ele presumiu. Catou o diário que repousava contra uma das paredes, aberto em páginas em branco, depois recolheu os lápis num gesto único. Aquele era um sujeito encrenqueiro, mas não era possível que a sirene se relacionasse de alguma forma com sua ausência, ele era esperto demais para se colocar numa situação ruim lá dentro, afinal estávamos longe de casa; não seria pego pela segunda vez. Apenas coincidência, Gregório se convenceu. Poucos meses o separavam do mundo exterior, então deu de ombros e sentou-se numa das extremidades da cama, dedos espalhados sobre os joelhos, esperando o inevitável guarda que cruzaria seu caminho a qualquer momento.

Mas o tempo correu, e nenhum guarda veio. A ânsia por um cigarro venceu a posição cansativa, então Gregório correu pelo chão com as pontas dos dedos, rastreando o maço improvisado embaixo da cama, olhos ainda preocupados com o corredor do lado de fora. Bateu o pequeno embrulho no lugar

Culpado

R U I R A S Q U I N H O

C O N T O

G U I L H E R M E C A B R I N I G O N Ç A L V E S

I L U S T R A Ç Ã O

que se colocasse em seu caminho, apenas o vazio. Acendeu seu isqueiro num instante, imaginando que se arrependeria em breve, manteve o botão frouxo atado com um pedaço de fita adesiva que removeu de um dos lápis espalhados a sua volta, e o jogou no buraco. A pequena fonte de luz desbravou valente a escuridão, descendo até se resumir lentamente, numa pequena estrela distante a desaparecer silenciosa e insignificante. Nada aconteceu, nenhum tipo de reação, apenas ar frio e silêncio. A noite surgia lá fora enquanto Gregório estimava a profundidade, observando a escuridão embaixo de sua cela. Era como deitar sobre o gramado e estudar as constelações, mas onde qualquer descuido pudesse arremessa-lo numa queda eterna por aquele abismo estranho. Suas parassonias esdrúxulas não eram nada perto daquilo.

Sussurrou com o rosto colado na parede que o separava da cela vizinha nervosamente, depois surrou-a sem cerrar os punhos, produzindo um som abafado que correu sutilmente pelo concreto. Era com esses murros que se comunicavam durante a noite ou na presença de guardas, não que precisassem esconder muita coisa, mas se aprende rápido a cultivar uma presença discreta e solúvel naquelas condições. Ninguém se comunicou de volta. Sabiam o que estava acontecendo e não queriam se envolver, um comportamento justificável na opinião de Gregório; ele achou que faria o mesmo se a sua saída houvesse qualquer tipo de risco. Ou então não estavam mais presentes, os guardas levaram-nos, o que significa que voltariam para apanhar Gregório a qualquer momento. Talvez uma terceira perspectiva fosse possível, mas não a conhecia. Talvez apenas o ignoravam por ignorar. De qualquer forma, seus vizinhos não eram dos piores.

de sempre; próximo da cabeceira, ao pé esquerdo, no alcance das mãos durante as noites mais difíceis. Mas como era de se esperar, ansiedade se acompanha sempre de

imprudência, e então o maço de cigarros saltou habilmente por entre seus dedos, tocou o chão uma única vez e rastejou até os lençóis largados diante da cama vizinha, espalhando seu conteúdo pelo caminho e revelando um segredo que havia se mascarado bem ali, diante de seus olhos, o tempo todo.

Embaixo do lençol, escondido pela camada mais fina do tecido surrado, um buraco escuro se abria no chão. Nem grande nem pequeno, pouco mais largo do que os ombros de um homem comum, que num instante devorou o lençol e tudo o mais que lhe foi trazido pelo movimento. Gregório deixou escapar uma risada nervosa, tentando se manter positivo; túneis de fuga são sempre descobertos, e quando são, quem paga por eles é quem fica para trás. Então ele voltou a sua posição inicial, e esperou.

Gregório ainda se lembrava do sol da tarde atravessando as cortinas do hotel, dos raios dourados que alcançaram em formas geométricas a cama fresca. Lembrava do rosto do outro lado do espelho, da pele macia e úmida que abraçava as pontas dos seus dedos, das gotas atraídas para as concavidades que o peso do toque criava. Lembrava também do abajur frágil que fatalmente triunfava na tardinha. Não lembrava dos seus velhos trajes, mas estava certo de que não era recíproco. Claro que lhe faltavam as rodas de conversas e risadas altas nas calçadas, a avenida movimentada e distraída, as vitrines com suas luminárias atenciosas, as portas de estoque, os cigarros no escuro, a fiação descontrolada, os vultos apressados. Havia pouca precisão no seu juízo do passado porém; como era de se esperar, pois foi assim que o levaram, e ele nunca mais foi o mesmo.

Dentro daquelas celas, o sol estava ao > > >

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suplemento literário • SEXTA 30 DE JUNHO, 2018

que ainda não haviam sido quebrados pelo sistema. Gregório não sabia muito sobre eles, seus nomes o escapavam, inevitavelmente. Apenas não se interessava, era o que ele dizia a si mesmo, um sentimento compartilhado pelos outros veteranos. Não haviam sido quebrados pelo sistema, mas seriam.

Ei! ─ ele tentou gritar na direção do corredor, impaciente, mas sua voz falhou, como se relutasse a fazer o papel de prisioneiro louco, afinal, foi sua boa conduta que o pôs na segurança mínima. ─ Ei! ─ chamou numa segunda tentativa. Dessa vez sua voz ecoou potente, depois devolveu ao palco a sirene que continuava sua rotina. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito; contou três dezenas, evitando criar qualquer tipo de ruído, caçando uma resposta naquele mar de silêncio ensurdecedor. Tentou o mesmo diante das grades da cela, agarrando suas barras de forma vigorosa com ambas as mãos. A porta balançou e se moveu quando soltou seu terceiro grito, estalando destrancada sem qualquer tipo de cerimônia.

Que loucura ─ ele disse em voz alta, numa resposta involuntária de seu corpo, que havia lembrado de usar sua voz depois de um dia inteiro calado. ─ Ei! ─ chamou pela quarta vez, contou até trinta, e mais uma vez não obteve resposta. Estupidez ou não, Gregório sabia que precisava encontrar alguém; era importante explicar a situação para uma autoridade competente, qualquer que fosse, antes que se tornasse vítima de um contexto desastroso. Não fazia parte de seus planos ter o peito aberto pela escopeta de algum guarda surpreso, mas não lhe restavam muitas alternativas. Encarou a abertura no

chão enquanto determinava seu próximo movimento, buscando se convencer de que existia mais perigo no interior da cela do que do lado de fora. Catou um daqueles cigarros deixados no chão pelo maço perdido e levou-o até a boca, mesmo sem isqueiro; abriu a cela, pousou as mãos sobre a cabeça e se colocou no meio do corredor.

Barras negras flanqueavam toda uma parede até alcançar a porta aberta no final do corredor, saída do calabouço. Diante de uma das janelas, próximo o suficiente do vidro opaco, percebeu ver alguma coisa no pátio; mas aquelas não eram silhuetas humanas, apenas utensílios e ferramentas da manutenção, ou talvez da jardinagem, que sempre passavam por ali. Gregório seguiu vagarosamente, passos cautelosos que criavam o acompanhamento para sua respiração pausada. Enquanto prosseguia pelo seu caminho, olhando para o pequeno ambiente interno atrás das jaulas enferrujadas, notou algo que havia escapado de seu jugo durante o curto tempo que esteve ali fora; não era algo que se escondia embaixo de lençóis ou atrás de vidros ou paredes, mas na inatenção de Gregório. Todas as celas achavam-se vazias sim, mas inesperadamente, assim como na sua própria cela, buracos decoravam o chão. Próximos das camas em alguns casos, próximos das grades em outros; um para Lidérc, um para Geovane, dois para os Villard.

A sirene soluçou, insistiu, mas finalmente se entregou. No silêncio absoluto Gregório avançou pelos corredores, banhavam-se em luz artificial quando sua presença era inevitável; dava pra sentir a eletricidade tocando chaves e interruptores que

estalavam antes a preencher os ambientes moribundos.

A noite soprava violenta do lado de fora, entrando aos poucos por frestas e fendas, inundando todo o espaço enquanto buscava por Gregório, finalmente o alcançando. Ali permaneceu, pressionando delicadamente contra seu rosto, querendo empurrá-lo de volta para seu cativeiro. Não havia ninguém na cozinha, não havia ninguém na administração; nem no canil, apenas as feras de sempre, eternamente cabisbaixas. A recepção também se encontrava vazia, e apesar dos telefones funcionarem, não obteve sucesso com nenhum dos seus contatos.

Foi na capela, onde funcionários de todo tipo se reuniam antes dos dias mais difíceis, que encontrou mais buracos. Não um ou dois, mas algumas dezenas. Alguns se ligaram por vicinalidade e tornaram-se crateras vastas, outros preferiram se manter insociáveis, bocas escancaradas pelos cantos escuros, outros ainda engoliram todo tipo de mobiliário, engasgando-se com bancos e outros objetos atravessados em suas gargantas.

Numa questão de minutos, Gregório abandonou a prisão. Algo inesperadamente momentâneo, como uma jogada de sorte completamente inesperada ou um acidente inevitavelmente trágico; atravessou as poucas salas e pátios que o separavam do mundo real. Do asfalto em diante não existiu hesitação, desbravou valente a escuridão, descendo até se resumir lentamente, numa pequena estrela distante a desaparecer silenciosa e insignificante.

Macau o recebia pela segunda vez.

> > >

Na primeira cela vivia Nyomás Lidérc, um húngaro que dormia pouco e comia menos ainda; falava muito sobre sua terra, olhava para o passado irritado, furioso com os antigos rivais de sua pátria, que um dia dizimaram milhares de seus compatriotas em guerras terríveis que hoje pareciam pequenas e distantes. O que sobrava de si era relegado às suas paixões. Nunca falou de seu crime, mas havia um olhar diferente, que ele às vezes carregava depois dos dias mais cansativos, quando éramos levados para trabalhar nas velhas rodovias, parecendo que pesava como uma culpa severa.

Depois vinha Geovane, um rapaz gordo que insistia em sua inocência diante de qualquer um. Trabalhava no almoxarifado na maior parte do tempo, o chamavam de bixa ou coisa pior e diziam que ele fazia sexo com um dos guardas, mas apesar dos palpites, ninguém conseguiu descobrir quem era. Na última cela, ao lado da porta escancarada no fim do corredor, ficavam os irmãos Villard. Foram reunidos recentemente quando transferidos para a segurança mínima, mas causaram problemas pouco tempo depois e estavam prestes a serem separados outra vez. Mataram seus pais, mas nunca ficou claro o motivo; a história sempre mudava, de vingança contra abuso sexual e violência a ganância pela herança que supostamente tinham direito. Haviam também celas que permaneciam vazias a maior parte do tempo, às vezes algum novato aparecia, vindo de qualquer lugar distante, esperando por transferência; outras vezes vinham em grupo, jovens barulhentos em sua maioria,

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當代視野Contemporary visions

# edição de Maio /Junho

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ponto final • SEXTA 30 DE JUNHO, 2018

M O N T R A D E L I V R O S

Lillian Li

Number One Chinese RestaurantHenry Holt and Co

Um restaurante chinês perto de Washington é o cenário do romance de estreia de Lillian Li, autora sino-americana que coloca em cena, na sua prosa, os conflitos familiares, as aspirações e a turbulenta relação com o passado de um conjunto de personagens divididas entre a a China e os Estados Unidos da América.

VVAA

Da Miséria no Meio Estudantil Antígona

Nos cinquenta anos do Maio de 68, a Antígona recupera um dos mais célebres textos situacionistas, a par de A Sociedade do Espectáculo, de Guy Debord, e de Arte de Viver para a Geração Nova, de Raoul Vaneigem.

Cristina Almeida Ribeiro, Miguel Filipe Mochila e Ângela Fernandes

As Pequenas HistóriasCavalo de Ferro

Uma viagem pela literatura de língua espanhola, percorrendo a obra de autores como Miguel de Unamuno, Ruben Darío, Horacio Quiroga ou José Donoso, com histórias breves e muitas vezes menos conhecidas.

Rodrigo Guedes de CarvalhoJogos de RaivaDom Quixote

O novo romance de Rodrigo Guedes de Carvalho tem as redes sociais e o desenvolvimento tecnológico acelerado como pano de fundo para uma reflexão sobre a sociedade actual, a comunicação e a ilusão da partilha universal.

Primeiro de seis volumes que voltarão a colocar a obra de Maria Judite de Carvalho disponível nas livrarias, contribuindo para a elementar justiça de não deixar cair no esquecimento uma das mais importantes ficcionistas do século XX português.

Maria Judite de Carvalho

Obras Completas, Vol.1Minotauro

O Censor IluminadoTinta da China

Através dos relatórios da Real Mesa Censória , fundada no século XVIII pelo Marquês de Pombal, e dos textos que lhes deram origem, o historiador Rui Tavares descobre as ideias e os percursos dos homens a quem cabia censurar tudo o que fosse impresso.

Noemi Vola

Fim? Isto não acaba assimPlaneta Tangerina

Vencedor de 2.ª edição do Prémio SERPA/ Planeta Tangerina, este álbum cruza texto e imagem em torno da ideia dos finais, felizes ou infelizes, e do que podemos fazer para os conduzirmos numa determinada direcção.

Viet Thanh Nguyen

RefugiadosElsinore

Volume que reúne contos escritos pelo autor vietnamita ao longo de vinte anos, onde as histórias de gente que abandonou a sua casa e tentou encontrar um novo futuro noutro lugar são o tema comum.

Su Tong

Petulia’s Rouge TinPenguin

Originalmente publicado em 1991, o romance de Su Tong edita-se agora em inglês na colecção Penguin Special. Ambientado nos anos que se seguem à instauração da República Popular da China, conta a história duas amigas que reorganizam a sua vida depois do encerramento do bordel onde trabalhavam e acompanha as mudanças sociais e culturais que o país começou a atravessar a partir desse momento.

Fernando RelvasO Espião AcácioTurbina/ Mundo Fantasma

Nome maior da banda desenhada portuguesa, Fernando Relvas criou algumas personagens tão carismáticas que o seu nome acabou por sobrepor-se ao do seu criador. É o caso do Espião Acácio, cujas aventuras se publicam agora na íntegra.

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suplemento literário • SEXTA 30 DE JUNHO, 2018

Navegar é preciso

www.rum.pt/shows/samba-de-guerrilha

Nascido no Rio de Janeiro, em 1988,

Luca Argel escolheu o Porto para

viver há seis anos, quando decidiu

estudar Literatura Contemporânea

na Faculdade de Letras. Aí fez o seu

mestrado, dedicando-se à poesia

contemporânea portuguesa e brasileira,

sem deixar de alimentar o percurso

musical que já trazia do Brasil, com

concertos, performances e composições

a partilharem a bagagem com alguns

livros de poesia, entre eles Esqueci de

Fixar o Grafite e Uma Pequena Festa

Por Uma Eternidade. Chegado em 2012,

criou a banda Samba Sem Fronteiras,

com a qual tem percorrido muitos

quilómetros de terras portuguesas,

e quatro anos mais tarde gravou o

primeiro disco em nome próprio, Tipos

Que Tendem Para o Silêncio. Com o

disco Bandeira, editado no ano passado,

circulou por várias salas de espectáculos,

mostrando um conjunto de canções que

devem tanto ao samba como à poesia

contemporânea, os dois vectores que

sustentam um percurso onde a vontade

de experimentar e arriscar se sobrepõe

ao sossego de que poderia usufruir um

músico com voz límpida e violão seguro.

Cruzando música, poesia e activismo,

iniciou em Portugal uma série de

apresentações públicas intituladas

Samba de Guerrilha, onde partilha

histórias pouco conhecidas do samba,

destacando a importância das culturas

indígena e negra e cantando algumas

canções que vai seleccionando entre o

vasto repertório disponível. Samba de

Guerrilha é agora, também, um podcast,

emitido pela Rádio Universitária do

Minho e disponível em qualquer

computador do mundo. Na sua

apresentação no site da RUM, ficamos

a conhecer o projecto: «Cria de terreiros

clandestinos, esquinas suspeitas e

botequins mal afamados, o samba

emergiu da boêmia devassa ao status

de símbolo oficial da cultura mestiça

do Brasil. Seu percurso compreende

perseguições, injustiças, glórias e

contradições que até hoje servem de

combustível para a sua sofisticada

poesia. O Samba de Guerrilha irá passear

por esta história, ouvindo cantar seus

personagens aventureiros e tambores

encantados.»

M O N T R A D E L I V R O S

Num trabalho pictórico com a habitual marca de excelência, Roberto Innocenti conta a história do navio Clementine e dos cinquenta anos que passou a atravessar os mares, entre guerras e alguma paz, entre a calmaria e a tempestade.

Roberto Innocenti

ClementineKalandraka

Felipe Franco Munhoz

IdentidadesEditora Nós

Explorando diferentes transformações físicas e emocionais dos personagens – e diferentes formas da linguagem –, este livro é como um Fausto do século XXI, só que este Fausto é uma mulher, em São Paulo, à procura de um Mefistófeles que realize seu desejo de mudar de sexo.

VVAA

Como Desenhar o Corpo Humano Companhia das Letras

Antologia de autores que, ao longo de vinte e um anos, foram sendo seleccionados pelo prémio Jovens Criadores, confirmando-se vários deles como promessas cumpridas na cena literária portuguesa contemporânea.

Vasco Pulido Valente

O Fundo da GavetaDom Quixote

Da contra-revolução às Guerras Liberais, a monarquia constitucional portuguesa é o tema do mais recente livro de Vasco Pulido Valente, uma descrição do Portugal oitocentista e uma reflexão sobre a sua herança no presente.

Arthur Rimbaud

Obra CompletaRelógio d’Água

Com tradução de João Moita e Miguel Serras Pereira, publica-se pela primeira vez a obra completa de Arthur Rimbaud em português, num volume que inclui a poesia, mas igualmente uma novela, cartas e outros textos.

VVAA

Contos Tradicionais PortuguesesGuerra & Paz

Quinze contos maravilhosos, nove contos sentimentais, dez contos jocosos, outros dez religiosos e onze contos de animais, eis a lista que integra esta antologia de contos tradicionais portugueses.

Ana Deus e Luca Argel

Ruído Vário – Canções com PessoaBoca

Depois do concerto que juntou os dois músicos, a Boca publica agora o songbook que inclui as quinze canções, quase todas escritas a partir de poemas de Fernando Pessoa, bem como o disco que permite escutá-las.