pascÁsia coelho manuscritos afrodescendentes autógrafos
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PASCÁSIA COELHO Manuscritos Afrodescendentes AutógrafosTRANSCRIPT
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MANUSCRITOS AFRODESCENDENTES AUTGRAFOS
DA CHAPADA DIAMANTINA
Elias de Souza Santos (UNEB)
[email protected] Pascsia Coelho da Costa Reis (UFBA/UNEB)
RESUMO
Este trabalho tem como finalidade apresentar prticas de escrita de mulheres ne-
gras, descendentes de homens escravizados no final do sculo XIX na regio de Sea-bra na Chapada Diamantina. Trata-se de documentos autgrafos de duas irms: Enervina Almeida e Senhorinha Rocha, cujos pais eram escravos libertos que vieram
das Minas Gerais para trabalhar nas minas de diamante da Chapada Diamantina.
Pretende-se ainda refazer os possveis caminhos pelos quais essas mulheres foram
inseridas numa cultura letrada, restrita a poucos e, em sua grande maioria, homens.
Neste sentido, destaca-se a atuao da igreja, enquanto instituio, como responsvel
por disponibilizar para essas mulheres afrodescendentes possibilidades de acesso
escrita material.
Palavras-chave: Manuscrito. Afrodescendente. Autgrafo. Critica textual. Ecdtica.
1. Consideraes iniciais
No que diz respeito poca da escravido, no h uma conformi-
dade entre diversos autores acerca da amplitude da escolaridade do ne-
gro. So varias as informaes que compreendem a excluso dos escra-
vos da escola, muitos achados so documentos que reforavam essa proi-
bio, conforme Romo e Carvalho (2003).
Partiremos dessa afirmao e tentaremos contar uma histria so-
bre a educao de escravos no Brasil na perspectiva de entendermos
como mulheres afrodescendentes no final do sculo XIX aprenderam a
ler e escrever.
As duas irms nasceram na comunidade de Prata no Municpio de
Seabra, na Chapada Diamantina, situada a 600 km de Salvador. Conside-
rada o corao da Bahia, ela centro financeiro e geogrfico da Chapada
Diamantina e situa-se a 30 km do Parque Nacional da Chapada. Enervina
Almeida e Senhorinha Rocha, segundo relatos familiares colhidos entre
membros da 2 a 4 gerao, mudaram-se de Prata juntamente com seus
filhos para Campos de so Joo, municpio de Palmeiras tambm cidade
da Chapada Diamantina para praticarem agricultura de subsistncia.
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Aps se fixarem nesse espao, casam suas filhas, e se mudam para Len-
is.
Enervina e Senhorinha, filhas de pais religiosos mantm sua reli-
gio como doutrina para o salvamento eterno, escrevendo de prprio
punho as oraes realizadas na instituio religiosa que frequentavam.
Muito bem guardadas, essas oraes hoje se fazem presentes na quarta
gerao da famlia, como herana espiritual.
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Trabalha-se aqui com a hiptese de essas oraes serem de autoria
dessas duas mulheres, Enervina e Senhorinha, descendentes de escravos
do sculo XIX.
Escravos libertos, os pais de Enervina e Senhorinha, vieram de
Minas Gerais para trabalhar nas minas de diamantes da Chapada Dia-
mantina. Seus pais saibam ler e escrever para darem conta da demanda
de pedras preciosas que eram vendidas e da diviso dos lucros que lhes
cabiam, bem como para se comunicarem com seus filhos que exerciam
outras funes nas lavouras de caf e arroz da Chapada Diamantina, um
exemplo uma carta escrita por Francisca Venncia de Souza, filha de
Senhorinha Rocha, para sua me.
A questo aqui posta, segundo as informaes colhidas com suas
filhas e seus netos de que Enervina e Senhorinha no aprenderam a ler
e escrever com seus pais, pois estes moravam em cidades distantes e no
tinham contato dirio. Isso nos levanta questionamentos sobre como
essas mulheres aprenderam a ler e a escrever.
2. Memrias
As oraes escritas por essas duas mulheres afrodescendentes que
se apresentam neste trabalho so a grande pista para tentar descobrir
como se deu o processo de letramento das autoras e de escrita dos docu-
mentos aqui em estudo.
Tnia Lobo e Klebson Oliveira em frica Vista (2009, p. 16)
nos dizem que para a reconstruo do caminho percorrido por escravos para se alfabetizarem, tem que ser levada em considerao a sua relao
com as famlias dos senhores. Tarefa difcil encontrar hoje documen-tos que comprovem este processo linear de estreitamentos das relaes
que os escravos tinham com a leitura e a escrita a no ser os escravos
domsticos que demonstravam ou ocupavam espaos de trabalho dentro
dos casares familiares senhoris.
Essa proposio nos leva, em primeira instncia, de volta aos rela-
tos familiares de como os pais das mulheres aqui apresentadas, como as
responsveis pelo pequeno conjunto de oraes, aprenderam a ler e es-
crever. Seus pais eram escravos libertos que prestavam servios remune-
rados para seus senhores nas lavras de diamante na Chapada Diamantina.
Eles j saram de Minas Gerais sabendo ler e escrever, aprenderam com
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seus senhores para a prestao de contas das pedras que eram retiradas e
repassadas para seus patres.
Essas duas mulheres que nos deixaram um pequeno legado de
manuscritos autgrafos em que este trabalho se sustenta, Enervina Al-
meida e Senhorinha Rocha nos fazem pensar que naturalmente existem
fortes indcios para buscarmos nesses textos e nos testemunhos orais
passados de gerao para gerao um consenso de como essas mulheres
negras adquiriram uma cultura escrita em uma poca em que escravos
libertos e afrodescendentes no podiam frequentar instituies formais de
ensino, que tambm excluam at mesmo brancos deste processo. Ktia
Mattoso (2001, p. 113), em suas palavras nos diz:
A educao escolar do escravo totalmente proibida no Brasil e os pr-prios forros no tm o direito de frequentar aulas. Esta proibio ser mantida
durante toda a poca da escravido, mesmo durante a segunda metade do s-
culo XIX, em plena desagregao do sistema servil. Senhores e curas que re-solvem ensinar a leitura e a escrita a escravos agridem as regras estabelecidas
e so poucos. Eis porque o escravo brasileiro desconhecido, sem arquivos
escritos.
Segundo seus netos, Enervina Almeida e Senhorinha Rocha
aprenderam a ler e escrever em uma instituio religiosa chamada Igreja
de Santa Marta, Santa de quem elas eram devotas. Situada em Wagner
cidade da Chapada Diamantina. Essa instituio muito auxiliou na for-
mao dessas mulheres proporcionando-lhes cursos de corte costura,
produo de linhas e bordados, dando a essas mulheres possibilidades de
se profissionalizarem e garantir o sustento familiar enquanto seus espo-
sos trabalhavam nas lavras de diamante, passando meses longe de casa.
A igreja, enquanto instituio oferecia a Enervina e Senhorinha o
acesso escrita num momento em que o ensino para mulheres ainda no
era institucionalizado nos pequenos municpios, realidade esta que ad-
vm desde o perodo colonial, nos menciona Klebson (2009).
A partir de influncias das confrarias e irmandades, as instituies
religiosas juntamente aos seus trabalhos de acolhimento arrecadavam
alimentos, roupas e davam assistncia a negros e escravos libertos. Essa
afirmao nos leva a fortes indcios de que esses trabalhos se espalharam
para as pequenas regies, chegando at essas mulheres do final do sculo
XIX, uma vez que faziam parte das realizaes da igreja sendo inseridas
nesse processo de alfabetizao, bem como de profissionalizao para a
realizao de outras tarefas que a prpria igreja agenciava, nos confirma
Pinto (1987):
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Em grande medida, o ensino para as populaes negras agenciadas pela igreja implicava em educao para o trabalho, pois esta instruo profissiona-
lizante, de acordo com as ideias da poca, tiraria o negro do estado atrasado
em que se encontrava na sociedade.
Em conformidade com as palavras de Pinto e segundo memrias
familiares das mulheres presentes aqui neste estudo, Senhorinha e Ener-
vina foram profissionalizadas, aprendendo a arte do bordado e da costura,
chegando a exportar seus trabalhos para Braslia e juntamente com estes,
a prestao de contas era enviada a fim de possibilitar a contabilidade
financeira, sendo Enervina e Senhorinha as prprias administradoras de
seu caixa financeiro.
A arte advinda desse profissionalismo foi passada de mes para fi-
lhas e veio garantindo uma fonte de renda permanente para o sustento da
famlia, contribuindo tambm para o incentivo da alfabetizao das gera-
es futuras.
A partir dessas memrias, podemos com certeza ou hipotetica-
mente responder questo central deste trabalho. Dona Enervina Almei-
da e Senhorinha Rocha aprenderam a ler e escrever nos espaos religio-
sos que davam assistncia aos desvalidos na perspectiva de garantir-lhes
espaos de lazer, cultura e escrita, tirando-as da ignorncia imposta pelas
restries sociais.
Aprenderam a ler e escrever para darem conta da demanda de en-
comendas solicitadas por diversos estados que compravam seus produtos
pessoalmente confeccionados.
O pequeno acervo de oraes que se faz presente na quarta gera-
o dessa famlia, deixado como herana espiritual, representa um con-
junto de 6 oraes que, muito provavelmente, talvez, certamente datam
do final do sculo XIX. Oraes escritas por mulheres descendentes de
escravos libertos profissionais em minerao que vieram das Minas Ge-
rais para as minas de diamante e fazendas de caf da Chapada Diamanti-
na. Este pequeno acervo precioso revela indcios na direo de uma con-
tribuio, para o conhecimento da variante americana do portugus, alm
de serem fontes materiais preciosas para descobertas lingusticas e cultu-
rais da Chapada Diamantina, pois as praticas de escrita de um povo ou de
uma comunidade manifestam a sua identidade, revelando aspectos de
uma rica diversidade cultural ainda pouco conhecida e desconhecida.
Esse pequeno e rico acervo oracional foi passado de gerao a ge-
rao, entre os membros da famlia at chegar, como uma herana, s
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mos de Elias de Souza Santos que o recebeu de sua av, Judite Venn-
cia dos Santos, que, por sua vez, o recebeu de sua me, Senhorinha Ro-
cha, e da irm de sua me, Enervina Almeida.
3. Consideraes finais
Dois objetivos foram propostos neste trabalho, apresentar as prti-
cas de escrita de mulheres negras, descendentes de homens escravizados
no final do sculo XIX e os possveis caminhos pelos quais essas mulhe-
res foram inseridas numa cultura letrada, sendo estes reforados pelos
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manuscritos autgrafos e as memrias familiares passadas de gerao a
gerao.
Em relao ao contexto de letramento, a igreja destacou-se, en-
quanto instituio que ofereceu a essas mulheres negras possibilidades de
acesso escrita. Essa pesquisa refora a ideia de que manuscritos aut-
grafos apresentam-se como importantes instrumentos para a compreen-
so do portugus brasileiro, descobertas lingusticas, culturais e histri-
cas.
Certamente Senhorinha Rocha e Enervina Almeida no foram s
nicas mulheres negras, filhas de escravos, a se apropriarem dos prazeres
da leitura e da escrita na regio da Chapada Diamantina nos fins do scu-
lo XIX.
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