paulo arantes - entrevista a sinal de menos

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[-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n°11, vol. 2, 2015 9 PAULO ARANTES Entrevista realizada por Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho em fevereiro de 2015, especial para Sinal de Menos. No seu livro O novo tempo do mundo, você nomeia as manifestações de junho de 2013 de “ruptura” e diz que “o país não voltará mais a ser o mesmo”. A mudança parece que está na ordem do dia desde então e se tornou uma palavra-chave. Nas eleições, os candidatos de oposição diziam representar a “voz das ruas” e a presidenta reeleita se apresentava como a garantia de continuidade das mudanças. Mais de um ano depois, experimentamos alguma mudança? Não sei se é mudança, mas de lá para cá por onde tenho andado nestes últimos tempos, não se fala de outra coisa: a verdadeira “aparição”, pois se trata mesmo de uma assombração, de uma nova direita, ou ressurreição repaginada da antiga. Seja como for, quem sabe uma paradoxal direitização da direita. Noves fora a polícia, apanhamos nas ruas de Junho como há nunca não se via e ainda não conseguimos identificar o agressor. Falar em fascismo pode até tranquilizar, na medida em que pensamos saber algo a respeito. Mas são tantas as ressalvas históricas que acabamos na mesma. Tampouco ajuda muito o aplicativo “neoconservador”, salvo para efeito de comparação seguido de contraste com os neocons norteamericanos. Mas eles são mainstream, e estamos procurando equivalentes nativos do Tea Party e seus homólogos europeus. O fato é que fomos apanhados de surpresa. Doze anos entorpecidos pela presumida pacificação lulista embotou nossa percepção de qualquer nota dissonante, sem falar que a essa direitização da direita correspondeu, na direção contrária, porém há muito mais tempo, uma acentuada desradicalização da esquerda. É tão flagrante essa assimetria entre uma

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Paulo Arantes. Entrevista a "Sinal de Menos", no. 11.2 (2015).

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    PAULO ARANTES

    Entrevista realizada por Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho

    em fevereiro de 2015, especial para Sinal de Menos.

    No seu livro O novo tempo do mundo, voc nomeia as manifestaes de

    junho de 2013 de ruptura e diz que o pas no voltar mais a ser o

    mesmo. A mudana parece que est na ordem do dia desde ento e se

    tornou uma palavra-chave. Nas eleies, os candidatos de oposio diziam

    representar a voz das ruas e a presidenta reeleita se apresentava como a

    garantia de continuidade das mudanas. Mais de um ano depois,

    experimentamos alguma mudana?

    No sei se mudana, mas de l para c por onde tenho andado nestes ltimos

    tempos, no se fala de outra coisa: a verdadeira apario, pois se trata mesmo de uma

    assombrao, de uma nova direita, ou ressurreio repaginada da antiga. Seja como for,

    quem sabe uma paradoxal direitizao da direita. Noves fora a polcia, apanhamos nas

    ruas de Junho como h nunca no se via e ainda no conseguimos identificar o agressor.

    Falar em fascismo pode at tranquilizar, na medida em que pensamos saber algo a

    respeito. Mas so tantas as ressalvas histricas que acabamos na mesma. Tampouco

    ajuda muito o aplicativo neoconservador, salvo para efeito de comparao seguido de

    contraste com os neocons norteamericanos. Mas eles so mainstream, e estamos

    procurando equivalentes nativos do Tea Party e seus homlogos europeus. O fato que

    fomos apanhados de surpresa. Doze anos entorpecidos pela presumida pacificao

    lulista embotou nossa percepo de qualquer nota dissonante, sem falar que a essa

    direitizao da direita correspondeu, na direo contrria, porm h muito mais tempo,

    uma acentuada desradicalizao da esquerda. to flagrante essa assimetria entre uma

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    direita que hoje arreganha os dentes e uma esquerda legalista, que s mesmo o teatro de

    sombras de uma campanha eleitoral para sugerir a existncia de uma polarizao

    poltica de verdade. O lulismo sabidamente fruto de um pacto conservador: resgatar

    em suaves prestaes uma dvida social que sempre pesou na conscincia das elites

    porm sem nus para o capital. Com a agravante de que a famigerada incluso pelo

    consumo, ao consagrar o ideal de uma relao estritamente aquisitiva com os bens e

    servios pblicos, tornou-se de fato o principal combustvel de uma nova direita

    popular, dividida entre a demanda self defeating da Lei e Ordem, de preferncia sob as

    asas de uma aliana entre o Esprito Santo e a Bancada da Bala, e o reconhecimento

    sincero, traduzido em votos, de que numa sociedade do desprezo, finalmente algum

    olhou por ns, e um dos nossos, alm do mais, reavivando a memria, mas apenas a

    memria, da Era Vargas. Nestas condies, obviamente a despolitizao sobe aos cus,

    emendando na massa amorfa dos coxinhas, pasto preferencial dos incitamentos de

    passagem ao ato que circulam pelas redes sociais. Pois dessa multiforme e policlassista

    continuidade conservadora de fundo brotou a ferocidade de agora, enfim livres para

    odiar e espancar. Se no h nem em sonho subverso vista, por que tamanha onda

    reativa? Passamos a respirar uma atmosfera txica de Restaurao sem que nenhuma

    Revoluo tenha destrudo o Antigo Regime.

    J que mencionamos, a ttulo de miragem, a sequncia histrica Antigo Regime,

    Revoluo e Restaurao, reconsideremos o termo de comparao francs. H mais de

    trinta anos as periferias francesas se insurgem, e partem para cima de uma polcia cuja

    norma o desrespeito e a humilhao como instituio, o esculacho em bom

    portugus. A resposta o fogo, o quebra-quebra e o saque. Jamais lhe ocorreria o

    disparate poltico de uma tomada do poder, como se dizia no tempo em que o

    capitalismo era um regime de organizao e explorao em massa da fora de trabalho.

    Mesmo a extrema-esquerda radical fala cada vez menos em revoluo e cada vez mais

    em uma insurreio a caminho. Na opinio desconsolada de um Pierre Rosanvallon,

    proliferam os movimentos negativos caractersticos de uma sociedade em estado de

    secesso, dos quebradores de vitrines aos agricultores que no querem pagar impostos,

    passando pelos inimigos do casamento para todos. O que se v na Frana de Eu Sou

    Charlie um pas em ordem unida caando jihadistas. Mas quando estufam o peito num

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    mesmo grito, d medo. Essas temporadas de caa mtua destinam-se menos a prevenir

    uma convulso sediciosa imaginaria do que manter sob controle uma sociedade que

    arrisca implodir conforme se multiplicam toda sorte de separatismos sociais. A extrema

    direita limita-se a exprimi-los com a mesma violncia que os produziu. Alm do mais,

    desde que ultrapassou a barra dos 20%, ela est mais interessada em ganhar

    respeitabilidade e entrar pelo voto nas coalizes do poder, que de resto faz tempo j

    governam camuflando o ncleo duro da sua pauta assimilada da ultra-direita, que ao

    fim e ao cabo est marcando o compasso de toda esta contradana securitria. Como

    ficamos? Acho que na mesma. A menos que adotemos a viso nostlgica e edificante do

    mesmo Rosanvallon: com a contrao do mundo do trabalho, os vnculos anteriores de

    solidariedade de classe se dissolveram, arrastando consigo o conjunto da sociedade que,

    pulverizada e pressionada pela nova desgraa econmica, passa a atirar para todos os

    lados. Numa palavra, a solidariedade social recua. Nada mais francs do que essa

    lembrana da inveno centenria do Social, mais exatamente a lenta montagem do

    Estado Social destinado a acomodar patrimnio e trabalho de modo a garantir proteo

    e direito para os destitudos de propriedade, lembrana da inveno sociolgica

    concomitante da Solidariedade maneira de Durkheim, mas sobretudo lembrana de

    que ao longo do sculo XIX o pas esteve mais de uma vez beira da guerra civil.

    Tornou-se assim lugar comum da sociologia francesa declarar que o refluxo dessa mtica

    solidariedade social provocou um deslocamento da dimenso material do conflito social,

    que deixou de ser meramente distributivo para se tornar cultural, mas um cultural na

    base do choque e violncia. Sobre o cenrio de fundo consensual acerca da inexorvel

    disciplina do mercado. Mas como penso no ser o caso de adotar esta narrativa,

    continuamos na mesma quanto ao fantasma da polarizao brasileira por iniciativa de

    uma direita que inegavelmente saiu na frente. Mesmo assim temos novidades no

    captulo. Penso na contribuio de Pablo Ortellado, para quem no conhece,

    autonomista de origem e muito ativo nas ruas de Junho, contribuio que j comentei

    numa entrevista Caros Amigos.

    Pois vamos l. Voltemos ao original americano da concluso francesa de h

    pouco. Agora o paradigma da luta outro, ele antes de tudo cultural: justamente as

    guerras culturais travadas nos Estados Unidos a partir dos anos 1980 e nas quais

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    Pablo identifica uma possvel chave de interpretao da atual onda de ultra-direita no

    Brasil. A seu ver a nova polarizao no deve ser posta sem mais na conta de Junho, ela

    vinha de antes, as ruas e as redes apenas escancararam e intensificaram o choque entre

    duas vises antagnicas que no se reduzem mais velha oposio entre socialistas e

    liberais, entre justia social e livre empresa, mas antes a subordinam a um novo discurso

    de cunho moral. Novamente, nessa mudana de paradigma na retrica do conflito

    social, a iniciativa coube direita, cujo senso histrico da injustia necessria foi aos

    poucos transformando-se numa viso moral do mundo punitiva, disciplinadora,

    excessiva, intrinsecamente desproporcional, na sua reao ao que considera erro ou

    desvio a ser sancionado sem d nem piedade. No direi que no, pelo contrrio, o

    capitalismo hoje, como mostrou Wacquant, uma onda punitiva s, comeando pela

    intensificao do trabalho dessocializado at o encarceramento em massa das categorias

    sociais recalcitrantes. Em suma, uma dessolidarizao social em regra. Na Frana, como

    vimos, uma reviravolta cuja onda de choque mel na sopa do ressentimento social no

    qual a extrema-direita foi a primeira a investir. No Brasil tambm tem sido um choque,

    sobretudo nos meios progressistas cuja m-conscincia tambm de fundo moral,

    sempre em dvida com as vtimas dos estragos perpetrados por seus ancestrais. No sei

    se acompanho Pablo em sua concluso, que no entanto compreendo em sua procura de

    um contraveneno altura do novo jogo retrico da ultra-direita, um contra-discurso de

    ordem moral porm centrado nos valores opostos da empatia e da solidariedade (como

    era de se prever). A nossa moral e a deles de novo? Igualmente incomensurveis como

    nos tempos de Trotski, s que agora a chave outra, a dos direitos humanos. Uma

    exortao envenenada todavia, desde o bero alis, como mostrou Helena Singer,

    lembrando que a juridificao da utopia iluminista dos direitos humanos deu-se

    sobretudo pelo cdigo penal. Sei muito bem que Pablo, veterano dos movimentos anti-

    globalizao, no tem parte com a esquerda punitiva e legalista, cuja espinha eleitoral

    nem por isso a direita de todos os tons est menos empenhada em quebrar, mas sei no

    entanto que essa mesmo a nica agenda que prospera, desde que as grandes

    expectativas do horizonte moderno saram de cena, o ltimo front, presentista por

    excelncia, fazer a disputa do sentido moral da vida poltica e social imaginando que a

    gramtica da solidariedade, a rigor confinada poltica da reduo de danos, tambm

    inspire uma reorganizao do campo econmico. Alis, pensando bem, nfase moral a

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    menos, no foi muito diferente a redefinio do conflito social pela esquerda dos tempos

    da Transio, Constituinte e corpo a corpo com o demnio de direita da hora, o

    Neoliberalismo e seus derivados. Mesmo jogo retrico, disputa semntica, como se dizia

    nos anos 90, s que com os polos da iniciativa invertidos: a esquerda, que descobrira a

    Democracia Participativa e reinventara a Sociedade Civil, obviamente ativa e

    participativa, sara na frente e precisou enfrentar no seu prprio campo a confluncia

    perversa do ativismo empresarial que despertara de seu sono dogmtico dos tempos da

    rigidez fordista e falava a mesma lngua dos movimentos sociais atravessados no

    caminho do terceiro setor. Com o enrijecimento do discurso movimentista, a direita

    endureceu e retomou a iniciativa do jogo, deixando a esquerda correr atrs precisando

    tambm subordinar seu velho discurso a um novo, que agora sabemos s poder ser de

    ordem moral, sem o que a ultra-direita passar por cima. Isso significa no ter mais a

    histria a nosso favor. Esse o campo minado depois de Junho.

    Uma das articulaes que voc faz no livro entre um novo tempo de

    expectativas decrescentes e a ideia de uma era de emergncia. Por

    outro lado, nos discursos oficiais das organizaes internacionais e da

    grande mdia sobre as economias emergentes vemos um otimismo em

    torno da reduo da pobreza, ampliao do consumo etc. H uma

    contradio a ou a expanso da periferia capitalista tem prazo limitado?

    Sei que estou pagando um preo pelo duplo sentido da palavra emergncia.

    Tanto situao crtica requerendo resoluo em regime de urgncia, quanto uma

    segunda acepo positivadora, geralmente associada ideia de ascenso social, quer em

    sua verso meritocrtica ou, mais duvidosa, sugerindo algum tipo de arrivismo, que por

    sua vez pode ser enobrecido maneira dos personagens napolenicos de Balzac, ou

    escarnecido como simples novorriquismo. Foi este ltimo perfil que colou no Brasil,

    difundido pela ostentao dos emergentes da Barra nos primeiros anos da Era FHC,

    depois estendido, com segundas intenes, falsa classe mdia lulista, gerada pelo

    modelo dos trs Cs, Commodities, Crdito e Consumo. At que uma nova trade, o

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    Governo de Washington, as Agncias de Rating e a Mdia Anglo-Americana de Negcios,

    elevaram o Brasil condio de economia emergente. A consagrao veio em 2009

    com a capa da Economist, com o Cristo Redentor decolando, depois de ter obtido o grau

    mtico de investimento. Para ser exato, a promoo oficial teria ocorrido muito antes,

    em fins de 2002, quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush

    (conforme enunciado no subt tulo do livro de Matias Spektor), recebendo em troca das

    garantias oferecidas o ttulo oficial de potencia emergente. Com mais de meio sculo

    de espera, a profecia do Manifesto Anticomunista de Walter Rostow se cumpria,

    finalmente o Brazil takes off segundo anunciava a mencionada reportagem de capa da

    Economist. No estou sugerindo que esse upgrading seja imaginrio, embora atenda a

    uma aspirao enraizada nas profundezas da selvagem inconstncia da alma nacional,

    nem mesmo fruto do marketing geoeconmico, os investidores alis dispensam o

    artifcio. H evidentemente lastro material para a internacionalizao das empresas

    brasileiras e do Estado Logstico, como j se disse, que as monitora, e tudo mais que da

    se segue em termos de reposicionamento internacional. Dentro da ordem, mas global

    player. A ironia de tudo isso que a suposta decolagem do Brasil, o take off preconizado

    no incio dos anos 60 por Rostow nos termos das teorias funcionalistas da

    modernizao, devidamente rebatidas ento pelas teorias crticas do

    subdesenvolvimento como uma condio histrico-estrutural e no resduo tradicional

    de uma etapa a ser vencida por atualizaes setorizadas, teria ocorrido algumas dcadas

    depois, primeiro, depois do assim chamado colapso de sua modernizao perifrica sei

    que o conceito de modernizao bem outro mas no posso discuti-lo aqui; segundo,

    depois do ajuste estrutural dos anos 90 que alavancou a dita internacionalizao,

    iniciada de resto pela Ditadura mas s depois que o Golpe de 64 extirpou de vez

    qualquer alternativa histrica de acumulao que no fosse a da nova dependncia,

    associada como se dizia na esquerda de ento, conformada, dita esquerda, com os fatos

    da vida. Depois foi a apoteose mental que se viu, ainda mais retumbante nos crculos

    progressistas de esquerda, dentro e fora do governo. Compreende-se, quatro vitrias

    presidenciais consecutivas devem ter confirmado e reforado sua velha, e hoje exclusiva

    da esquerda, f no capitalismo, cujas contradies ainda fazem avanar a humanidade,

    como a China e a ascenso do resto estariam demonstrando. Quanto direita, faz tempo

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    que no acredita mais sequer na legitimidade da sua prpria dominao, desconectou-se

    de vez.

    Mas voltemos ao disparate totalmente contraintuitivo do enunciado mais geral

    do meu argumento: como diagnosticar uma poca de expectativas decrescentes num

    momento em que o centro dinmico da acumulao est se deslocando para o mbito

    das economias emergentes, alm do mais numa hora em que a hecatombe de 2008

    parecia reforar ainda mais a tese euforizante do descolamento dos pases emergentes

    em relao desacelerao dos centrais? Pior ainda, tamanho disparate filosfico acerca

    do tempo do mundo na hora histrica em que o futuro finalmente chegou para a

    periferia. E no um futuro qualquer, mas aquele mesmo entrevisto pelos clssicos da

    nossa tradio crtica, a construo nacional interrompida no s fora retomada mas

    estaria em vias de se completar. No vou arrematar o disparate com o seu inverso,

    dizendo que no, embora sempre se possa observar que se o futuro chegou, tambm

    deveria ter chegado ao fim a chantagem neodesenvolvimentista com todos os seus

    corolrios de segurana interna e assemelhados. Meu juzo no em absoluto sobre a

    conjuntura macroeconmica ascendente dos late comers, por isso tampouco teria

    qualquer cabimento aludir, com sinal trocado, aos ltimos quatro anos de quase

    estagnao, ou ainda s armadilhas da famigerada doena holandesa, ou a da renda

    mdia, em que emergentes costumam atolar, etc. H uns quinze anos atrs alis at

    andei arriscando alguns palpites acerca da tese ento em voga em alguns crculos

    acadmicos europeus e americanos a respeito de uma presumida brazilianizao do

    mundo, eufemismo pitoresco para a sensao de que os pases centrais estavam se

    periferizando, mas na acepo antiga e negativa da expresso, conforme avanava o

    desmanche da sociedade salarial metropolitana, ou nos termos da resposta anterior,

    recuava a solidariedade social enquanto a sociedade se polarizava e despacific ava, e o

    pensamento social, por sua vez, se concentrava no estudo do novo mal absoluto, a

    violncia urbana. Pensando bem, o futuro chegou mesmo para todo mundo e, se assim

    , deu-se uma verdadeira ruptura na relao progressista da poltica com o tempo.

    Esse o ncleo do meu argumento. No fundo uma tentativa de verso materialista da

    atual acelerao presentista da mquina capitalista do mundo: como quem no sobe

    cai, est todo mundo correndo embora no tenha mais para onde correr, por isso a

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    unidade da medida temporal s pode ser a urgncia. Regime no qual parece viver uma

    bomba relgio chamada China, cujo tic-tac pode ser ouvido em Chai-na (Otlia Arantes),

    um livro sobre a mquina chinesa de crescimento urbano, descrita como uma esteira

    mecnica cuja acelerao alucinante parece consumir energias futuras esvaindo-se num

    aqui e agora sem fim. Sem falar claro na outra unidade, o valor, que no consegue

    medir grande coisa, mas tampouco vou dissertar sobre a tese da desproporcionalidade

    entre riqueza socialmente produzida e sua medida mesquinha e miservel pelo

    tempo de trabalho etc. Por certo um enorme etcetera, de uma frao do qual tentei me

    ocupar. Meu juzo poltico, e certamente no pode deixar de levar em conta os efeitos

    sociais do realinhamento geoeconmico provocado pelo consenso das commodities,

    sendo o principal deles a recomposio do mercado interno pelo consumo de massa.

    Nada a ver com poltica institucional ou coisa que o valha. Muito menos poltica de

    poder, mesmo nas suas variantes progressistas, desnecessrio lembrar. Mas com a

    poltica enquanto dimenso fundamental de encaminhamento das expectativas

    humanas, como a definiu Greg Grandin estudando o Terror Branco na Amrica Central

    dos anos 80, cujo propsito era justamente o de extirpar pelo horror qualquer arremedo

    de sonho incongruente com a mais dura e crua realidade. A luta poltica tal como a

    conhecemos tem a idade do capitalismo histrico enquanto sistema produtor de

    sociedades orientadas compulsivamente para o futuro, no entanto reconduzido no

    menos coercitivamente ao presente como o limite que se almejava ultrapassar. Sem esse

    impulso que tambm podemos chamar de emancipao, a poltica mera gesto de

    recursos de poder, administrao tcnica do presente. Acontece que o presente de agora

    no qualquer, um presente no qual o futuro j chegou, e que tende por um lado a se

    perenizar como conjuntura sem fim, mas por outro, a se tornar cada vez mais

    politicamente explosivo, tal a sobrecarga de expectativas que vo se acumulando sobre

    ele em regime de urgncia. Da a importncia estratgica do sonho, que o lulismo no

    por acaso se esmerou em colonizar, privatizar e confinar no devaneio aquisitivo, ao

    contrrio do varguismo, que canalizou o sonho dos sem propriedade para o

    assalariamento com carteira assinada. Para se reinventar, e reinventar como

    antipoltica, numa era em que no se espera mais nada salvo o pior, a esquerda precisa

    saber reinterpretar os sonhos com que poderia estar sonhando o povo pobre trabalhador

    brasileiro. Um bom comeo seria imaginar por onde andam os sonhos diurnos que

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    permitem escapar da infelicidade coletiva da massa urbana comprimida no transporte

    dirio de mo nica, ida e volta, trabalho precrio, moradia pior. Refletindo sobre os

    nibus queimados nas Jornadas de Junho, o socilogo e estudioso da construo da

    sociedade brasileira do trabalho, Adalberto Cardoso, certamente andou pensando no

    assunto. No limite, saber a quantas anda, a esta altura de nossa emergncia,

    combinada com horizontes de espera cada vez mais rebaixados, as metamorfoses da

    utopia brasileira por excelncia, a do trabalho, a um tempo despertada e falsificada

    como fonte de legitimao da desigualdade durante a Era Vargas. Mais prximo do

    estado de emergncia contemporneo em que passamos a viver no faz uma gerao, ou

    melhor no nervo mesmo da questo, encontra-se o argumento desenvolvido por

    Jonathan Crary sobre os fins do sono no turbo-capitalismo de agora. Girando num

    ritmo 24/7, seu objetivo estratgico a criao do soldado sem sono, por sua vez

    precursor do trabalhador sem sono e do consumidor idem. Estes dois ltimos sem

    dvida h muito tempo produzidos e sobretudo conduzidos no inferno urbano das

    megacidades brasileiras. Sua equao no poderia ser mais direta: verossmil supor

    que a imaginao de um mundo sem capitalismo principie como um sonho noturno na

    medida mesma em que a inrcia restauradora do sono um entrave a toda a letalidade

    da acumulao, pois at prova em contrrio nenhum valor ainda pode ser extrado do

    sono.

    Tudo isso dito, ainda no respondi por extenso a pergunta pelo prazo de

    validade da expanso da periferia dita emergente. So modernizaes ps-colapso que

    ofuscam at mesmo espritos crticos como Raul Zibechi, que ainda em maro de 2012

    considerava o Brasil um dos poucos pases no mundo que estava escapando de sua

    condio perifrica, dispondo inclusive da vontade poltica para tanto, sobretudo desde

    que tal entelquia encarnou em um lder carismtico, no descartando por certo, era s

    o que faltava, a percepo mais provvel de que tal upgrading se d s custas dos

    setores populares, seus e dos vizinhos. No ar, o voto piedoso inspirado por Giovanni

    Arrighi, primeiro que a ascenso pacfica da China abrir espao para os demais pases

    emergirem num concerto poltico menos polarizado pelas hierarquias centro-periferia;

    segundo, que essa redistribuio do poder global acarrete o fim do capitalismo tal como

    historicamente o conhecemos. Livros recentes, cuja sequncia pitoresca de ttulos

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    homlogos alguma coisa anuncia, como Ecuador made in China e Brasil made in

    China, no s desarrumam esse quadro sob medida para os novos progressismos do

    sculo XXI latino-americano e sua decantada terceira transio hegemnica, como

    lanam nova luz, sobretudo o segundo deles, sobre toda a reconfigurao do capitalismo

    contemporneo, inclusive espacial, quando o mundo passa literalmente a ser fabricado

    na China, alm de sugado pela proliferao das megacidades asiticas. A constatao

    que se impe que o metabolismo do planeta made in China revirou pelo avesso a

    antiga era espacial dos tempos da Guerra Fria, em que os campos opostos simplesmente

    se justapunham e repeliam como comportamentos estanques de segurana mutuamente

    assegurada pelo terror nuclear. Hoje, com o Brasil dentro da China e a China dentro do

    Brasil, para retomar a argumentao do livro mencionado, tudo sugere que ingressamos

    num novo capitalismo de fronteira, com tudo o que isto indica de redefinio e controle

    dos territrios, governo das populaes demarcadas segundo critrios estratgicos de

    projeo de poder, e consequente descarte dos retardatrios. Todavia, pensando bem,

    acho que a dvida legtima sobre essas decolagens emergentes ainda so tributrias de

    um tempo do mundo em que o mito da convergncia entre centro e periferia, no um

    mito qualquer mas inerente geocultura mesma de legitimao do capitalismo

    histrico, ainda por assim dizer funcionava, tanto assim que tambm funcionava a

    ansiedade quanto ao seu desfecho catastrfico. Um exemplo dessa imag inao

    retrospectiva. A certa altura do livro Chai-na ao qual aludi, um economista chins

    baseado nos Estados Unidos, no MIT para ser exato, se pergunta, diante da grande

    eloquncia do skyline de Xangai, o que h de errado com esse modelo de crescimento,

    para responder imaginando historiadores do futuro contemplando aquelas imagens de

    arranha-cus brotando dos antigos arrozais de Pudong como outros tantos sinais de

    alarme que ningum quis ver, e arrematando sua profecia por uma analogia singular:

    nada mais parecido com o consenso de Xangai que comandava a China de Yang Zemin

    do que o desenvolvimentismo na Amrica Latina dos anos 1970 a comear pelo

    gigantismo dos seus anis burocrticos de negcios.

    Na Amrica do Sul, a ltima dcada foi caracterizada por uma srie de

    vitrias eleitorais da esquerda, um ciclo que parece continuar com as

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    recentes reeleies ou vitria de candidatos governistas. Em nosso cho,

    muitos intelectuais que apoiam o governo apostaram numa guinada

    esquerda depois da vitria eleitoral, mas as primeiras mudanas no

    governo no parecem indicar isso.Voc enxerga a possibilidade dessa

    consolidao institucional das esquerdas latino-americana se tornar uma

    era de transformaes ou elas foram capturadas pelo establishment?

    Vamos ficar pelo Brasil. No deixa de ter sua graa pensar na hiptese de uma

    captura da esquerda de governo por um establishment empenhadssimo neste exato

    momento em aplicar-lhe um solene pontap de despedida sem ao menos uma carta de

    agradecimento pelos servios prestados. Ao que parece, rua mesmo, alis em mais de

    um sentido. O bom senso recomendaria prolongar a agonia pelo regime de austeridade

    at seu desfecho natural em 2018. Mas no, tudo indica que esto preferindo a morte

    matada mesmo, claro que pelas vias legais, impedimento ou renncia. Vai ver que esto

    acreditando mesmo que o ajuste funcionar a favor de um novo miniciclo de

    prosperidade e consumo que um lder carismtico saber traduzir numa quinta vitria

    eleitoral consecutiva. E assim sendo, esto apertando todos os parafusos, deixando a

    lgica da polarizao assimtrica escalar. forte a impresso de delrio nestes clculos.

    Que somado flagrante catatonia do governo, reforam a sensao de que esto todos

    juntos caprichando no disparador que faltava para fazer desabar de vez a tempestade

    social e ambiental perfeita que est se armando sobre as grandes regies metropolitanas

    do pas. Sem descartar a hiptese de que talvez seja esse o propsito, tal estado de

    desconexo em que se encontram todos os atores concernidos por um processo em

    que os desastres dirios se sucedem. Se a catstrofe o modelo, na boa formulao de

    Andr Villar,1 no h motivo para muita surpresa. Mas a esta altura, em que a mquina

    eleitoral petista apenas venceu para ser melhor destroada, em caso de sobrevida ser

    apenas isso, sobrevida, a dvida era de transformaes ou captura, com a ressalva de

    que neste caso estaramos na fase da soltura, assume uma feio puramente 1Andr Villar Gomez e Marcos Barreira. A catstrofe como modelo: agronegcio, crise ambiental e

    movimentos sociais durante o decnio 2003-2013, Sinal de Menos n 11, vol. 1, 2015, p. 74-112.

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    retrospectiva acerca do que poderia ter sido mas no foi. Durante estes ltimos anos de

    governo lulopetista um dos exerccios prediletos da esquerda clssica tem sido a anlise

    igualmente clssica da variao dos membros titulares e suplentes do bloco de poder de

    sempre, formado na ltima conjuntura (mdia? longa?) pela burguesia interna,

    repartida entre seus diversos setores, e o dito campo popular e suas camadas dirigentes.

    A vantagem desse jogo de Lego que ele pode prosseguir indefinidamente, pois as

    classes e as fraes de classe sempre estaro a, bem como as cadeias produtivas de onde

    o valor extrado e posteriormente disputado, como nos bons velhos tempos.

    Defenestrados hoje, de volta na prxima temporada, uma eterna questo de correlao

    de foras. E claro que a conjuntura global e regional, que at anteontem jogava ao nosso

    favor. O resto esquerdismo, ou coisa pior. Como ficamos, tentaes de ironia fcil

    parte? H hipteses poderosas sobre a mesa. Todas elas a serem examinadas pelo

    retrovisor. Posso apenas evoc-las. A primeira e mais inovadora foi apresentada por

    Chico de Oliveira, mal iniciada a Era Lula, como se h de recordar, a tese do

    Ornitorrinco, emblema do monstrengo social em que o pas estava se transformando

    desde que fora atropelado pelo salto descomunal das foras produtivas impulsionadas

    por uma Terceira Revoluo Industrial, e Militar, seria til acrescentar de sada. Depois

    de um atraso de cem anos para emparelharmos com a Segunda, para falarmos ainda

    no antigo dialeto da ansiedade desenvolvimentista pelo catching up, nos vamos

    empurrados de volta para o fim da fila. E depois do choque, o tiro de misericrdia, a

    onda subsequente de privatizaes e desmontes variados. A ironia do diagnstico residia

    num desencontro histrico: a vitria eleitoral do Partido dos Trabalhadores se dera

    justamente no mbito de uma sociedade precisamente derrotada, com extrao

    selvagem de mais-valia no seio de uma classe trabalhadora que encolhia e se

    dessocializava. Se verdade, como sugeriam h algum tempo atrs Leda Paulani e

    Christy Patto, que o sentido da industrializao da periferia brasileira, como outrora o

    sentido da colonizao segundo Caio Prado, cuja matriz se completara com a Ditadura,

    era a conformao de uma economia industrial moderna suficientemente slida para

    funcionar enfim como plataforma de valorizao financeira de alcance global, no

    restaria a um projeto alternativo de poder, como o dos trabalhadores organizados em

    partido, outra opo que no encarasse a dominncia financeira no regime de

    acumulao em vigor no mundo ps-fordista. Na opinio no seu tempo hertica de

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    Chico de Oliveira, nascera uma nova classe de poder, justaposta aos intelectuais-

    banqueiros tucanos, os gestores sindicais dos fundos de penso das grandes estatais,

    canal privilegiado de acesso aos fundos pblicos. Tudo isso sabido e relembro apenas

    para destacar que desde a primeira hora nossa cabea mais lcida naquele momento

    descartava as trivialidades acerca de cooptao ou mesmo traio de classe. Da a

    continuidade com o ciclo anterior, do qual nada foi revertido. Nem seria preciso. Contra

    o senso comum compartilhado por direita e esquerda acerca das privatizaes na Era

    FHC, Sergio Lazzarini revelou um outro panorama: daquelas famigeradas privatizaes

    surgiu aos poucos um capitalismo diferente, um capitalismo de laos e conexes

    relevantes muito semelhante ao crony capitalism asitico, do qual emergiu reforado

    um ator privilegiado, o Estado, e sua volta, os no menos onipresentes fundos de

    penso. O mais bizarro nisso tudo que a viso estratgica a respeito dessas redes e seus

    conectores remonta em larga medida a sindicalistas escolados no manejo dos regimes de

    previdncia complementar. Radicalizando a tese, um estudo recente de Maurlio

    Botelho sugere que a nomenklatura lulista acredita seriamente no controle operrio dos

    meios de produo, s que dessa vez, ao contrrio do capitalismo de caserna e seu

    imaginrio estatista fossilizado, atravs do controle acionrio, como se o suporte

    material exato do tal projeto democrtico popular s pudesse estar ancorado num real

    poder operrio-financeiro. Como qualquer governo hoje, um governo de esquerda antes

    de tudo, pois se trata de fundos de penso de trabalhadores afinal, s pode ser um

    governo do mercado financeiro, ainda mais no caso brasileiro, em que a acumulao

    financeira se d prioritariamente na esfera estatal, com lembrava Chico desde o incio.

    Por essa materializao da mais antiga assombrao da direita brasileira, a de uma

    Repblica Sindical, suplantada apenas pelo pavor de uma revolta haitiana dos escravos,

    ningum esperava. Na sequncia, Joo Bernardo falar em Capitalismo Sindical, em

    cujo mbito uma classe trabalhadora precarizada mas nem por isso menos

    intensamente explorada, confrontaria um polo dominante dual, a burguesia proprietria

    e os seus gestores populares. J no plano propriamente surreal das construes

    ideolgicas, essas grandes manobras de conquista do poder foram representadas como

    um projeto de capitalismo popular de mercados domesticados e moralizados por esses

    novos agentes empreendedores infiltrados pela porta dos Fundos. Assim como o

    petismo reinventou no Brasil o governo do social, o sindicalismo financeiro teria sido

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    desenhado justamente para fechar a equao, no a de um poder qualquer mas a de um

    poder projetado a princpio, ainda que no formulado nesses termos, como uma original

    reproduo de uma sociedade cuja modernizao abortara. Deu-se ento o inusitado,

    uma recada desenvolvimentista extempornea, justamente sobre essa plataforma

    financeira-extrativista reforada pelo metabolismo chins do mundo, a casa de

    mquinas do nosso diferente capitalismo de laos, que ao ganhar escala com sua nova

    constelao de transnacionais provocou uma reviravolta verdadeiramente histrica, a

    meu ver uma retomada pela esquerda, e s por ela, pois se trata de uma abominao

    para os herdeiros de uma direita secularmente desfibrada pela falta de vontade de poder

    (no estou exagerando nada, s ler os textos de nossos formuladores geopolticos), do

    velho desejo mtico de um pas potncia regional que remonta ao impulso original de

    duas ditaduras (1937 e 1964), cujo rejuvenescimento se deveria a uma espcie de

    abertura da elite de poder, basicamente forjada naquelas duas ocasies de exceo

    antiga, para o sangue novo do poder gestionrio de uma classe social que Getlio Vargas

    por assim dizer legalizara para melhor desbancar seus concorrentes socialistas. A Era

    Lula a certido de renascena desse projeto de poder nacional. Aparentemente

    fantasmagrico ( o que pensa a direita clssica ao ruminar seu horror atvico a esse

    bloco ressuscitado), pois se isso tudo for verossmil estamos simplesmente anunciando

    que o Ornitorrinco de 15 anos atrs nada mais do que uma sorte de capitalismo de

    Estado reinventado. E que se configurou porque havia uma vaga que lhe fora reservada

    na atual fratura do mundo, atravessado de ponta a ponta pelo confronto entre vrias

    formas nacionais de capitalismo de Estado e outras tantas de capitalismos corporativos

    igualmente sustentados por seus respectivos Estados Logsticos, como j se disse. No

    mais a Guerra Fria pois o capitalismo est por toda parte, mas funciona como se

    houvesse no horizonte algo como a barreira intransponvel, salvo hecatombe, de uma

    destruio econmica mtua assegurada, basta imaginar o abrao de afogados entre

    Estados Unidos e China se estritamente beligerantes. Trata-se de uma guerra em que

    todos so parceiros. Penso que por esse ngulo a atual campanha de defenestrao e

    destruio do petismo adquire nova luz. Possivelmente uma luz que mais ofusca do que

    esclarece, e a recomeamos o realejo dos projetos em disputa (argh!) com peas

    simetricamente distribudas nas duas metades de um tabuleiro cuja natureza igual para

    todos posta de lado por todos como um reles pano de fundo, no caso a corrida entre

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    todos os capitalismos para saber quem chegar primeiro ao fim do jogo, o planeta ou a

    espcie. Um sintoma alarmante dessa Segunda Guerra Fria, por enquanto mero

    decalque das guerras culturais em curso desde o seu epicentro americano, mas tambm

    vice-versa, tais guerras culturais entre esquerda e direita, entre progressistas e

    conservadores etc., nas quais evidncias e fatos no importam mais (na constatao

    desalentada de um Paul Krugman), apenas o cdigo que coloca tudo e qualquer coisa

    na sua caixa de ferramentas blicas (se voc Tea Party ou assemelhado nativo,

    mudana climtica uma conspirao de vermelhos contra o American Way of Life, e se

    voc vermelho do Sul Global, idem ibidem, o aquecimento global uma conspirao

    imperialista contra a decolagem dos emergentes), replicam ponto por ponto a fratura

    entre modelos de capitalismo em concorrncia pela extrao de valor at da abolio

    do sono, pois um dos sintomas mais eloquentes dessa guerra do sculo XXI, repito,

    so os alinhamentos automticos qualquer que seja a ficha a cair. Um exemplo recm

    sado do forno: sua vitria ainda no completara uma semana e o novo Ministro das

    Relaes Exteriores do Syriza j tomava posio a favor da federalizao da Ucrnia, por

    mera coincidncia a mesma posio de Putin. Tampouco seus dirigentes escondiam sua

    admirao pela sada dita ps-neoliberal aberta pelos pases progressistas da Amrica

    Latina e ao declararem que as propores dramticas do desastre grego denunciam a

    persistncia de uma verdadeira crise humanitria no pas, acrescentam que a

    inspirao das polticas emergenciais pertinentes viro, em boa lgica, das polticas

    sociais adotadas naquele continente, incluindo por certo os regimes CCTs

    (Transferncias Monetrias Condicionadas, na sigla em ingls), alis desenhadas nos

    escritrios do Banco Mundial nos idos de 1990 para remediar os estragos do ajuste

    estrutural. Difcil saber at onde iro as simetrias com a antiga Guerra Fria de verdade,

    lembrando por exemplo que a Revoluo dos Cravos foi barrada pela OTAN, dinheiro

    alemo interposto. Mas o Syriza ganhou justamente por manter os ps no cho, e no

    entanto o realinhamento foi instantneo, restando ver qual recurso natural far da

    Grcia uma economia emergente, para no falar na vontadezinha de potncia. Estou

    divagando, mas a este ponto chegamos.

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    Como entender nessa histria recente brasileira os governos do PT (Lula e

    Dilma), onde a ampliao de direitos em determinados setores e as

    polticas afirmativas convivem com os centros de controle high-techs e o

    exrcito intervindo em comunidades do Rio de Janeiro?

    Se por ampliao de direitos a pergunta se refere ao universo de protees

    sociais asseguradas no s pela letra mas tambm pelo esprito mesmo da Constituio

    de 1988 e neles reconhece a inspirao originria dos programas sociais que ao longo

    dos anos Lula se distinguiram como best practices e assim foram exportados mundo

    afora ento um princpio de resposta pode ser encontrado nas consideraes de uma

    estudiosa como Snia Fleury acerca da inquietante transmutao regressiva do social.

    Sim aquele mesmo social substantivado que foi literalmente inventado pelos

    movimentos nos tempos indecisos da Transio, pois aquele social concebido em termos

    de direitos universais de cidadania, como se comeou a falar na poca, foi aos poucos

    se metamorfoseando numa outra substncia demandando gesto empresarial e, cada

    vez mais, tambm militarizada. Ainda no sabemos se o ovo da serpente estava l, em

    todo caso uma involuo, cuja curva descendente vai do social-direito ao social-

    segurana passando no meio do caminho pelo social-combate--pobreza. A eventual

    ampliao de direitos, para manter a frase que talvez corresponda a outra coisa, tornou-

    se basicamente uma questo de segurana, como o Desenvolvimento durante a

    Ditadura. A comparao no me parece arbitrria, sobretudo se pensarmos em nossa

    recada desenvolvimentista, justamente contempornea da reformulao do social que

    est nos ocupando. O mais interessante no roteiro de Snia Fleury, que passo agora a

    comentar ainda mais livremente, que esta progresso do Welfare ao Warfare, e no

    simples degenerescncia, se d por uma dinmica interna, embora se apresente, para

    variar, como dois projetos em disputa pela ressignificao do social, culminando com a

    vitria das polticas focalizadas sobre as universalistas. No preciso remontar at a

    reviravolta no modo de produo capitalista que provocou a crise fiscal do Estado,

    presso social irresistvel que por sua vez levou prevalncia da repescagem seletiva dos

    mais vulnerveis, cuja destituio fora dramaticamente agravada pelas polticas de

    ajuste s novas condies expropriadoras inerentes ao regime de acumulao

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    financeirizada, seja dito para simplificar, pois estamos falando tambm de finanas

    previdencirias.

    Resta ento compreender a gnese da abordagem armada na gesto desse novo

    social nascido na fronteira entre Welfare e Warfare. Acho at que seria o caso de

    inverter o ngulo de ataque e perguntar se na origem esse novo social focalizado no

    seria ele mesmo uma figura recortada por uma outra racionalidade a caminho.

    Racionalidade de gesto na qual o militar e o empresarial seriam indiscernveis. Mas

    voltemos ao roteiro de Snia Fleury, que principia pela formao de uma

    institucionalidade oculta um hbrido de duas portas operando nas brechas da lei, de

    sorte que interesses mercantis passaram a circular no interior de sistemas pblicos

    universais desenhados originalmente pelo princpio da desmercantilizao da proteo

    social. Seu ponto a compreenso do momento de inflexo em que o esprito do social

    nascido nos anos 1980 vai se tornando letra constitucional morta medida que

    presumida proviso pblica universal de servios bsicos como educao, sade,

    transporte, moradia, saneamento etc., funes clssicas de legitimao dinamizadora da

    acumulao, e vice-versa, exercidas pelo Estado, traduzida ento na linguagem dos

    direitos coletivos, sobrepe-se uma outra definio destas mesmas prestaes

    legitimadoras, porm reapresentadas na forma de um combate protetor, em nome da

    racionalizao otimizadora dos regimes de alocao, sugerindo um claro endurecimento

    do brao social do Estado. Foi assim que, em meio ao nevoeiro de uma querela

    ideolgica sobre direitos coletivos e responsabilidades individuais, um novo Welfare

    destinado ao alvio da pobreza acabou se impondo como gesto das necessidades de

    populaes em situaes de risco, e gesto mediante um dispositivo de governo das

    condutas no qual se reflete de corpo inteiro essa mutao na concepo do social, os

    mecanismos de transferncias condicionados de renda mnima, os mundialmente

    celebrados programas CCTs, j mencionados. Saltam aos olhos as afinidades entre esse

    regime de condies impositivas de acesso a prestaes monetrias, um inequvoco

    mecanismo behaviorista de reforos e sanes destinado a moldar comportamentos

    econmicos responsveis, com ramificaes por todos os mbitos sociais, da moradia

    sexualidade, e o regime de macro-condicionalidades ao qual foram submetidas as

    economias traumatizadas pelo choque da dvida e da hiperinflao no momento de seu

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    resgate pelos carteis de investidores e seus agentes disciplinadores multilaterais. Com

    perdo da repetio, volto ao meu exemplo de h pouco. A atual crise falimentar dos

    Estados endividados da periferia europeia mediterrnea, agravada pelo remdio arrasa-

    quarteiro da austeridade e seu conhecido cortejo de maldades, dos cortes

    previdencirios s privatizaes selvagens, um claro remake do clssico tratamento

    infligido s populaes latino-americanas vinte anos atrs, por isso tanto mais

    espantoso, volto a insistir, que tenha partido da esquerda radical vitoriosa agora na

    Grcia e no da Troika, a lembrana da mesma sada de emergncia adotada p or aqui, e

    vendida com sucesso por seus principais beneficirios polticos, justamente os

    programas focalizados nas vtimas mais clamorosas do ajuste, e se for mesmo como

    manda o figurino, podemos imaginar o grotesco das condicionalidades exigidas

    daquelas populaes relapsas endividadas por viverem acima de sua real linha de

    pobreza! A moralizao inerente ao processo no seu conjunto, sanciona-se a

    imprevidncia com a austeridade e condiciona-se o alvio da pena aquisio das

    habilidades necessrias ao retorno ao jogo econmico, indiscutivelmente responsvel

    este ltimo. Se isto de fato ocorrer e o crculo do Bolsa Famlia Grega realmente se

    fechar, e alm do mais pelas mos do Syriza, no resta mesmo dvida de que o mundo

    est mesmo se brasilianizando, ou o Sul, se tornando cada vez mais global, sendo neste

    caso especfico demonstrado pelo fato, como sugeriu Lena Lavinas, de que o paradigma

    do Welfare do sculo XXI mesmo o da pobreza focalizada, comprando-se as demais

    provises no mercado. Nesse paradigma de governo da insegurana social exprime-se

    uma viso moral do mundo em que o social substantivado de ontem ressurge como um

    processo normalizador, e como se trata de desentortar comportamentos desviantes e

    recalcitrantes, o esforo exigido o de um combate sem trguas. O social tornou-se de

    fato uma guerra de todos os dias em defesa da sociedade, mas de uma sociedade vista

    agora como um sistema de riscos difusos e ameaas cujos focos precisam ser anulados

    preventivamente.

    Aqui o ponto cego de toda a reviravolta que converteu o social em cabea

    de ponte de uma guerra maior. Os alvos variam conforme a temporada: drogas,

    criminalidade, HIV, pobreza, misria extrema, terrorismo, e o que mais vier pela frente,

    at a emisso de gases de efeito estufa, no caso de declarao de um estado de urgncia

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    planetrio por algum poder soberano ainda no identificado mas que na hora final dar

    o ar de sua graa. Caso esse ponto cego seja identificado, volto a lembrar que muito

    provavelmente nele encontraremos a confluncia de duas racionalidades de novo tipo,

    uma militar e outra gerencial-empresarial, e que o ndice mais eloquente dessa

    conjuno na origem das polticas sociais focalizadas em sua apenas aparentemente

    aberrante convivncia de parede meia com a gesto armada destas mesmas polticas de

    promoo social, social work with guns, como se referem certos estudiosos nova

    abordagem americana da contrainsurgncia, como dizem por l, vem a ser, tal sinal de

    nascena, nada mais nada menos do que o foco nas tcnicas de targeting, expresso

    hoje de tal modo inflacionada que nos fez perder de vista sua etimologia peculiar,

    perdida ao que parece nalgum escaninho da histria das armas e da guerra. Consta que

    antes de se tornar um verbo, como na fase final em torno da qual estamos girando,

    targeting Welfare spending, target referia-se ao nome comum para um escudo de

    pequeno porte, geralmente manejado por arqueiros, e de carter portanto defensivo

    visando antes proteger do que atacar, como hoje as polticas sociais focalizadas, com o

    perdo do curto-circuito brutal, nem por isso menos elucidativo, s que agora se protege

    visando um alvo. Novamente um curto-circuito retrospectivamente bem lastreado, pois

    tambm consta que a dita proteo oferecida pelo artefato foi se transmudando at se

    cristalizar numa acepo ofensiva como uma atividade visando atingir, ou tomar e

    apoderar-se, um alvo relativamente distante. Nesta direo, algum observou, fechando

    o argumento, que o simples ato de mirar, o nosso targeting em questo, j em si

    mesmo um ato de violncia, ainda que nenhum tiro venha a ser disparado em

    consequncia. Pblico-alvo ento mera consequncia, por sua vez letal, no sendo

    todavia espantoso que por contaminao at os movimentos sociais tenham adotado o

    jargo. Bem como polticas sociais focalizadas no fundo so protees ameaadoras, ao

    passo que ameaas de proteo conferem ao poder de polcia o engajamento

    enobrecedor de um trabalho social. Terminou-se punindo os pobres, para retomar a

    frase de Wacquant acerca da virada punitiva do capitalismo americano recentrado pela

    dessocializao do trabalho, porque no processo daquela reviravolta foram os primeiros

    visados, e como quem se encontra na linha de tiro, na ala da mira. Maximizar um

    programa de assistncia social encorajando os pobres mediante incentivos

    monetrios, positivos ou negativos (como no caso do imposto de renda negativo de

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    Milton Friedman), ou ento desencorajando a acomodao com restries, burocracia

    humilhante e condies de acesso proibitivas, tudo isso passou a entrar no pacote da

    focalizao, originariamente americano. Encarceramento massivo, chacinas, ocupao

    militar de territrio, tambm conhecida como pacificao, so outros tantos

    componentes desse dispositivo maior de governo que so as polticas de targeting, que

    podem igualmente apresentar uma face benigna de reduo de danos, no obstante a

    espada de Dmocles punitiva sobre a cabea do pblico-alvo da vez.

    Iramos longe se redescobrssemos novas tcnicas de targeting, alternadamente

    teraputicas e letais, na formao dos vrios cadastros nacionais em que atualmente se

    reparte e reunifica os cidados brasileiros de segunda classe. claro que no

    conseguiria completar agora o argumento se, partindo da outra ponta, fosse

    identificando a generalizao das operaes de targeting conforme avanava a

    mencionada Revoluo nos Assuntos Militares, que tornou tecnicamente possvel incluir

    a guerra num continuum de intervenes destinadas a corrigir disfunes na ordem

    mundial sem precisar arriscar mais explodir o planeta para alter-la, poltica de alvos

    seletivos que culminou nas kill lists operadas pelos Drones. Poderamos, voltando a

    pgina, retomar a convivncia disso tudo com as polticas pblicas de ao afirmativa,

    mas a poderia parecer humor de cadafalso. Fico devendo igualmente a outra perna do

    argumento, lembrar que a contaminao da gesto empresarial, que por sua vez

    contagiou no menos fatalmente os movimentos sociais, pela nova redefinio militar

    da realidade, no uma via de mo nica, que a Revoluo nos assuntos militares no se

    resumiu exclusivamente reviravolta high tech que se sabe, nem a processos tpicos de

    desmonte dos grandes corpos armados tratados como plantas fordistas obsoletas, a

    comear pelo recrutamento da fora de trabalho e sua banalizao tecnolgica em

    guerras ditas ps-heroicas, embora exponencialmente brutalizadas no terreno,

    conforme se acentuava o carter policial das operaes militares de interveno, etc.

    Mas um enorme etcetera. Resta o efeito dissonante, sobretudo no ncleo orgnico do

    sistema, de sociedades ps-militares (at mesmo a ideia de servio militar

    desapareceu) em que crescente a militarizao da vida urbana, bem como foras

    armadas cada vez mais policializadas e polcias progressivamente planejadas e atuando

    manu militari. Na periferia emergente no menor a dissonncia, sua percepo

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    valendo inclusive como indcio seguro de divisor de guas, por exemplo, no caso

    brasileiro, demarcando as origens do Brasil Contemporneo, um territrio a ser

    explorado com categorias novas, em ruptura com o progressismo congnito que nos

    definira desde sempre como uma comunidade de expectativas imaginadas, a ltima

    delas alis a da ampliao de direitos que comparece pontualmente na pergunta que

    ainda estou tentando responder. que por mais devastadoramente sanguinria que

    tenha sido, explicitando a associao violenta entre Desenvolvimento e Estado de

    Segurana Nacional, e por mais que aparelhasse militarmente as empresas estatais que

    foi multiplicando, a Ditadura jamais poderia ter se encaminhado para uma gesto

    armada da vida social. Quando muito poderamos observar, a ttulo de homenagem por

    assim dizer, que a atual viso teraputica da polcia como operao pacificadora seria

    uma espcie de obra pstuma sua. Na verdade ela uma continuao do vis punitivo

    assumido pelo Discurso dos Direitos Humanos em sua fase ps-utpica de rotinizao

    como poltica pblica, justamente implementada por um poder de Estado que se

    distingue pela violao sistemtica de tais direitos. No diria que isto j outra

    conversa, pois se fosse um pouco mais esmiuada nos devolveria, por exemplo na figura

    do Humanismo Militar, na expresso consagrada por Chomsky ao comentar a guerra de

    interveno humanitria do Kosovo em 1999, ao subtexto da pergunta, um deles pelo

    menos: desde 1988 vivemos oficialmente num Estado Democrtico de Direito, baseado

    e legitimado pelo consenso dos Direitos Humanos, no h desatinado que discorde e se

    coloque margem, e no entanto, em nome da observncia e proteo desses mesmos

    direitos assistimos a uma escalada punitiva jamais vista, ou melhor, no custa repetir,

    cada vez mais visvel porm naturalizada, e demandada, na generalizada gesto

    coercitiva da vida social.

    Disse que essa viso consensual, entre outras coisas, por ter engolido a

    esquerda histrica, cuja memria registra a tal ampliao de direitos, e a ser assim,

    devemos constatar que uma esquerda que no soube se reinventar numa idade em que

    as grades esperas ficaram para trs, quer dizer uma esquerda sem futuro, mas na antiga

    acepo do termo, s poderia mesmo se tornar ela prpria punitiva, alm de enjaulada

    pelo ordenamento jurdico. Da a sada de emergncia pelo targeting, que muitos

    tericos no hesitariam em incluir entre os conceitos chave de um diagnstico de poca

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    que considera a sociedade contempornea de risco um sistema organizado no s para

    responsabilizar mas para agravar a sobrecarga das responsabilizaes, cada vez menos a

    sociedade, cada vez mais, at o limite da autodestruio, o indivduo. Como vimos, o

    princpio mesmo da dessolidarizao social na qual a ultra-direita nada de braadas,

    afinal s caem abaixo da linha de pobreza indivduos que tomaram as decises erradas.

    So eles ento os clientes-alvo na mira dos programas de transferncias condicionadas.

    Acabamos de sugerir como a tecnologia da focalizao, ao sublimar um

    inequvoco mecanismo distribuidor de prmios e castigos, alimenta uma sorte de limbo

    coercitivo onde Welfare e Warfare terminam se encontrando. Que a direita tenha

    celebrado sua prpria inveno, ainda que o sucesso do teste tenha ocorrido no

    laboratrio latino-americano, a evidncia mesmo, afinal firmou-se a tendncia a

    concentrar o gasto social nas transferncias monetrias, de resto modestas na

    porcentagem do produto, em detrimento da oferta de bens pblicos desmercantilizados,

    mas no deixa de ser um sinal dos tempos o fato esse sim espantoso de que a esquerda

    que os opera com reconhecida proficincia tenha saudado tal sada de emergncia como

    uma conquista social, sinal de que o horizonte encolheu a zero mesmo. Mas sobretudo

    indicativo de que vistas as coisas pelo ngulo oposto, pelo prisma do alvo em pessoa,

    apanhado pela rede de um cadastro, o panorama se presta a uma outra celebrao desse

    mesmo social no qual Snia Fleury reconheceu to somente uma nefasta transmutao

    regressiva das expectativas que madrugaram no incio dos anos 1980. que a inveno

    brasileira do social para remendar os impasses do inorgnico parece no ter lim ites.

    De sorte que um fim de linha bem administrado pode muito bem servir de plataforma

    de lanamento de um novo paradigma substitutivo da sociedade salarial que no

    aconteceu. Visto como uma poltica de urgncia moral (Nancy Fraser), o Bolsa

    Famlia, na voz de seus beneficirios condicionais, pde ento ser redescrito como uma

    abordagem de reconhecimento, porm sem luta obviamente, como mitigao do

    sofrimento social etc. Na outra ponta do targeting, a mesma viso moral s que com o

    sinal invertido, superlativamente positivador, encarado pelos gestores de toda operao

    como o limiar de uma indita cidadania moral. Nenhuma alma naturalmente crist dir

    que no. Muito menos um ativista, no caso um trabalhador social impregnado pela

    cultura teraputica da reduo de danos, cuja cristalizao uma das marcas inaugurais

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    do novo tempo presentista do mundo de que estamos falando desde o incio. A prpria

    compreenso dos Direitos Humanos como a ltima utopia (Samuel Mohyn), de resto

    desfeita pelo esgotamento de sua energia fundadora, j um marcador preciso dessa

    diviso histrica de guas. Exigir da gesto focalizada do povo pobre a liberao do

    acesso a uma porta de sada uma expectativa de outros tempos, de sociedades que o

    capitalismo de antes do colapso de sua fome canina por trabalho vivo orientara para o

    futuro. A dvida social herdada, que sempre pesou na conscincia progressista nacional,

    passou a ser filtrada por um outro cdigo, presentista volto a repisar, o mesmo que

    presidiu a rotao da agenda de esquerda em busca de justia social para um passado de

    graves violaes, anulando juridicamente o tempo histrico na figura do crime

    imprescritvel. H uma equivalncia de poca entre os parmetros da Justia de

    Transio e os Programas Sociais por CCTs, ambos so dispositivos regidos por uma

    anloga tecnologia de targeting, ambos envolvem traumatismos histricos recolhidos

    pela lgica individualizadora da responsabilizao. E da reparao. Este o ponto de

    virada. O Repare Bem (ttulo de filme de Maria de Medeiros sobre a vida, paixo e morte

    de Eduardo Leite, o Bacuri) vale tanto para os supliciados, mortos e desaparecidos da

    ditadura (ou do Terceiro Reich) quanto para os humilhados, ofendidos e esbulhados da

    histria social brasileira (ou os massacrados da Conquista e da Colonizao), e para

    todos vale o mesmo princpio do tempo poltico zerado pela indenizao em dinheiro.

    Isso mesmo, o Bolsa Famlia e assemelhados no Welfare do sculo XXI integram sim a

    grande galxia presentista das polticas de reparao. Por isso a presena do dinheiro

    no trivial nessa gramtica moral do reconhecimento. Acrescentar que funcional,

    vistas as coisas do ngulo do regime de acumulao sob dominncia financeira, por

    certo necessrio, mas no o suficiente para apreender em toda sua surpreendente e nova

    singularidade a poca em que a ruptura da anterior nos precipitou, a ratoeira do

    contemporneo. Entre as novidades de poca, o fato de que todo esse bizarro Sistema da

    Dvida se apresenta invariavelmente na forma tribunal. Que cedo ou tarde acabar

    transmitindo o vrus punitivo. Da tambm o efeito paradoxal das polticas de reparao

    focalizadas. A expresso odiosa Bolsa Ditadura tem a mesma raiz txica da sanha

    conservadora, todas as classes sociais confundidas, do mpeto assassino com que se

    costuma atacar os incorrigveis e irrecuperveis alvos justamente daquelas polticas.

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    Um contra-ataque penal, pois no se consegue imaginar outra sada da dita ratoeira

    seno as emergenciais, porm j cronificadas. Seria portanto um enorme cqd.

    Em alguns debates voc aponta o Estado do Bem-estar Social do ps-

    guerra como o resultado de uma correlao de foras construda entre

    esquerda e direita no caso da Europa, principalmente como o resultado

    da resistncia contra o fascismo. Contudo, muitos autores partem da

    crtica da economia poltica para argumentar que esses direitos fazem

    parte da necessidade estrutural capitalista de expandir o mercado e

    abarcar quase todos os domnios sociais com a forma mercadoria.

    possvel mediar essa explicao estrutural com a conjuntura poltica?

    Est claro que no desconheo e muito menos desconsidero as anlises originais

    do James OConnor e Claus Offe, para ficar nos mais conhecidos, acerca das funes

    bsicas do Estado Capitalista. Acumulao e legitimao, segundo OConnor. Uma

    estratgia geral envolvendo ordens, proibies e incentivos destinados a criar e

    assegurar as condies para que todos os sujeitos jurdicos sejam includos nas relaes

    de troca de equivalentes de modo a evitar a descaracterizao como mercadoria de todas

    as unidades de valor engajadas no processo, segundo Offe. E como poderia? Alm de

    representar um auge na crtica da economia poltica do Estado, so por assim dizer do

    meu tempo. Ambos foram publicados e lidos no Brasil na virada dos anos 1970 para os

    1980, justamente num momento em que o fim da miragem do fordismo perifrico nos

    precipitava igualmente num cipoal inextricvel de demandas particularistas, como

    OConnor descrevia a Crise Fiscal do Estado, americano no caso. O prprio Offe andou

    por aqui em 1982. Alguma pesquisa e um certo esforo de memria poderiam rastrear

    muita coisa para a recapitulao de agora, pois afinal faz tempo que a mgica da

    legitimao pela acumulao se desfez, se que algum ainda se lembra, socialmente

    falando, daquelas trs dcadas do ps-guerra em que a estratgia estatal de fazer

    funcionar o processo de acumulao era ao mesmo tempo resolver a questo social, no

    bom resumo de Javier Blank, num artigo recente. Hoje, o Welfare do sculo XXI bem

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    outro, em que termos, acabamos de evocar. Pois naquele momento de crise funcional do

    Estado Keynesiano de Bem-Estar no ncleo orgnico do sistema, e de colapso da

    modernizao perifrica, era tal a confiana por estas paragens naquela dialt ica da

    crise estrutural do Estado Capitalista, muito enfatizada, por exemplo, nos esquemas de

    Offe, segundo os quais a cada tentativa de reincorporao de unidades de valor ao

    ncleo produtivo e apaziguador do sistema, concebido para isso mesmo, tornar o

    assalariamento aceitvel e desejvel, multiplicavam-se as esferas de bens pblicos que

    escapavam incorporao aos circuitos da troca mercantil, que ocorreu a mais de uma

    cabea pensante da esquerda mais avanada da hora estarmos na antessala do

    socialismo... Com os fundos pblicos ao alcance da mo popular que ajudara a

    Ditadura a passar desta para melhor. Como ainda valia a pena sonhar com a hiptese do

    anti-valor, segundo Chico de Oliveira, no s parecia plausvel como se apostava, na

    contramo da tese da funcionalidade de um jogo de soma positiva, cada classe

    assumindo o papel da outra classe, como se dizia na lngua do consenso keynesiano, no

    antagonismo entre bem-estar e capitalismo, enfim na contradio por certo disfuncional

    de um sistema econmico que utiliza fora de trabalho como se ela fosse uma

    mercadoria (parece Polanyi mas Claus Offe) necessitar como estrutura de apoio um

    conjunto de instituies no-mercantilizadas. Ainda Claus Offe, envenenando o jogo do

    contente Welfare State Keynesiano, mas j estava declarada a sua falncia. Na hora H,

    em que a esquerda planejava dar o pulo do gato... faltou dinheiro, secou a fonte do

    financiamento. Nesse momento principiou nosso imbrglio particular em torno do que

    se pode chamar de demanda de Estado, que alis no Brasil tem uma genealogia singular,

    no custa observar, pois se trata paradoxalmente de um Estado congenitamente

    exterminador de sua populao desclassificada, at que Getlio inverteu a percepo,

    mas s a percepo. Quer dizer, esquerda principiou nossa regresso. Naquela imagem

    da disfuncionalidade funcional do Estado de Bem-Estar restou apenas isso, a imagem

    congelada de um fim em si mesmo, noves fora suas circunstancias europeias de

    nascimento, por exemplo, de que logo falaremos, na frmula precisa de Marildo

    Menegat, a iluso da revoluo sem que esta tenha ocorrido. Isto na Europa,

    imaginemos por aqui. A esquerda que se reinventara depois da Ditadura, criando por

    assim dizer do nada o social, passou a considerar o Estado ora como uma agncia

    processadora de polticas pblicas de acordo com o jogo polirquico de presses e

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    contrapresses, ora como o locus em que demandas de classe disputam sua direo

    neste ou naquele sentido, conforme a famigerada correlao de foras, ora mais

    burgus, ora mais popular, uma espcie de joo-bobo em suma. Nem trao na memria

    poltica daquela encruzilhada pelo menos terica da dcada de 1980. Como restou

    suspensa no ar a imagem redentora do Estado Social produtor por gerao espontnea

    de bens pblicos, sempre que se quer desancar ou celebrar o que restou da dita

    esquerda, costuma-se denegri-la ou enaltec-la identificando-a social-democracia

    europeia, qual se costuma atribuir o parto do Estado Social que ascendeu aos cus

    durante os 30 gloriosos. nesse momento que nos debates, para melhor destacar a

    originalidade nativa do lulopetismo, costumo contrapor a tal fantasia o traumatismo

    europeu do referido parto, um complexo de revolues, guerra e fascismo burgus, se

    que se pode falar assim. O prprio Claus Offe, quando se refere s origens ideolgicas

    muito heterogneas do Welfare State que comeou a se consolidar no imediato ps-

    guerra no d maiores precises nem refere a circunstncia maior, o trauma da guerra

    contra o fascismo. Para incio de conversa, lugar comum na historiografia europeia e

    americana do norte constatar que a expanso dos direitos dos cidados perante o Estado

    se deve fora propulsora das guerras da nao. Nem sombra disso na periferia latino-

    americana: na observao de Charles Tilly, por exemplo, que atribuiu como se sabe a

    formao dos Estados europeus operao conjunta de dois macrofatores autnomos,

    coero e capital, os latinoamericanos sofreram os horrores da represso do Estado a

    bem dizer porque foram poupados dos horrores da guerra internacional de grande

    escala. Nada mais clssico, digamos assim, do que a penso do veterano de guerra. Para

    resumir um pouco a minha pera, revistas as coisas com mais de meio sculo de

    distncia, relembro de passagem um artigo dos anos 1980 do mesmo Charles Tilly sobre

    a prtica da guerra e a criao do Estado como Crime Organizado, enfim um problema

    de compra e venda de proteo em que Estados e criminosos organizados extraem um

    excedente do prprio excedente, e como hoje em dia est cada vez mais complicado

    distinguir entre guerreiros, bandidos e governantes, e no apenas no Rio de Janeiro. A

    comear pelo Estado Islmico, amostras contemporneas que no faltam.

    Mas voltemos a meu ponto de partida europeu, francs no caso, afinal eles

    inventaram o social em meados do sculo XIX. Acossados pelos traumas sucessivos de

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    1848 e da Comuna de Paris, saram procura de um dispositivo capaz de proteger o

    trabalho contra as investidas do patrimnio, at ento o nico a propiciar segurana

    (Donzelot). Dito isso, meu juzo vinculando a inegvel funcionalidade do Estado Social

    reconstrudo na sada da guerra ameaa antissistmica de uma reviravolta

    revolucionria na esteira da vitria da aliana antifascista em 1945, precisa

    evidentemente ser calibrado. E no limite, revisto luz do novo entrelaamento entre

    Welfare e Warfare inaugurado justamente naquela conjuntura nova que se abria, a da

    Guerra Fria que arrematava a Guerra de Trinta Anos iniciada entre 1914 e 1917 como

    uma guerra civil europeia (Isaac Deutcher, Arno Mayer, etc.), como de uma vez por

    todas deixara claro o laboratrio da Guerra Civil Espanhola, includo no experimento o

    terror exercido pelo poder contrainsurgente sovitico-stalinista. Pois ento. A

    experincia paradoxal de fundo naquele curto intervalo, espcie de terra de ningum

    histrica entre dois fronts era novamente a de um outro ciclo de Great Expectations

    impulsionadas pelo choque de uma catstrofe social jamais vista. Esse o terreno em que

    prosperou a ltima miragem progressista da era histrica que comearia a se encerrar

    nos anos 1970 com a desativao do mecanismo miraculoso de retroalimentao das

    funes bsicas de acumulao e legitimao exercida pelo Estado capitalista, como

    Javier Blank condensa o argumento de James OConnor. No mago de tudo aquilo

    todavia, a percepo da funo utpica da Resistncia, a dimenso prefiguradora

    extrada de sua experincia dos extremos sob a Ocupao. Para se ter uma ideia dessa

    dimenso de utopia vivida como antecipao, posso apenas remeter ao paradoxo do

    enunciado de Sartre na Repblica do Silncio, nunca fomos to livres como durante a

    Ocupao, ou as no menos famosas anotaes de Ren Char sobre aqueles anos

    essenciais em que o colapso da Frana permitira desenterrar o tesouro perdido das

    revolues, na frase do comentrio bem conhecido de Hannah Arendt que eu

    obviamente no vou dissecar. Para os movimentos de Resistncia estava fora de

    cogitao voltar ao estado de coisas anterior a uma guerra que precisamente nada mais

    era do que a fuga para frente catastrfica destinada a perpetuar o dito estado de coisas.

    A Revoluo esteve no ar na forma daquela oportunidade antifascista. Como sabemos

    desmanchou-se nesse mesmo ar em pouco tempo, houve at guerra civil (na Grcia, por

    exemplo), mas a Revoluo no veio. Seu modelo eram os Comits Populares da

    Resistncia, na opinio de um historiador (Geoff Eley), formas moleculares de um

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    caminho imaginado imagem e semelhana dos conselhos de trabalhadores que se

    espalharam pela Europa entre 1917 e 1921, novas formas de participao popular

    equivalentes atividade da resistncia, reconstruir a sociedade nos moldes igualitrios

    da emergncia de guerra no seu final etc. Ocorre que ao terminar a guerra a Europa j

    estava sob uma nova Ocupao, desta vez pelas foras militares aliadas. Uma

    insurreio da militncia armada dos partigiani italianos, por exemplo, seria fatalmente

    dizimada, e certamente com aquiescimento sovitico. A rigor, ao sopro utpico do

    primeiro tempo da Libertao respondeu uma nova Restaurao. Nova porque o grande

    estouro da Libertao a fizera engolir o sucedneo de uma Revoluo que no houve,

    justamente o Estado Social. Da a sua funcionalidade de mo-dupla. Assim, j durante a

    guerra, a cada derrota eleitoral dos conservadores, Churchill anunciava que um

    verdadeiro Welfare State estaria a caminho coroando o esforo de guerra da nao com

    proteo e segurana do bero ao tmulo. Na Frana, o Governo Provisrio criou em

    1945 a Seguridade Social tal como constava no programa do Conselho Nacional da

    Resistncia. Combinaram-se assim uma irresistvel (ou melhor, resistvel afinal) presso

    popular vinda de todas as mobilizaes de energia social para guerra e as grandes

    manobras do alto comando do poder capitalista vitorioso numa resultante bifronte, um

    sistema de segurana social cuja gesto confiscada pelas novas burocracias

    racionalizadas durante a guerra anunciava que estvamos ingressando numa nova era

    sim, uma era de populaes administradas, alis totalmente, se fato que Guerra

    Total estava dando sequncia uma Paz Total, como Paul Virilio preferia chamar a

    Guerra Fria. Cujo documento de fundao seria o Relatrio Beveridge de 1942, nada

    mais nada menos do que um programa de Seguro Social desenhado pelos Servios

    Aliados, em vista da vida saudvel do cidado a ser aliviado do fardo maior das

    necessidades elementares. Neste sentido, no se poderia documentar com mais

    propriedade a ideia, primeira vista incongruente, de que desde o seu nascedouro um

    sistema de garantias e provises sociais na verdade era um plano de guerra, mais

    exatamente, concebido para se ganhar uma guerra, e continuar vencendo a seguinte.

    Como Marcuse far a prova ao descrever nos idos de 1960 a racionalidade tecnolgica

    da dominao nas sociedades industriais avanadas, como se dizia ento, analisando

    justamente a pioneira confluncia americana de Welfare e Warfare, a saber, que a vida

    totalmente mobilizada por um estado permanente de prontido militar cataclsmica ao

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    mesmo tempo uma vida totalmente mobilizada pela produo propriamente dita e seu

    aparato latu senso de prosperidade e bem estar. Com isso descobria de quebra a

    anomalia que o materialismo histrico no previra: uma simbiose tal entre foras

    produtivas e relaes sociais de produo que o desenvolvimento proverbial e

    exponencial, das primeiras, ao invs de revelar o fundamento opressivo das segundas,

    torna-se fonte perene de legitimao do sistema. Para o Marcuse materialista era essa a

    mais espantosa novidade histrica, uma sociedade unidimensional, sem oposio

    interna e por isso mesmo em movimento perptuo ao redor de um mesmo centro imvel

    impulsionado pela combinao produtivista de bem estar e guerra. Dez anos antes,

    equao de James OConnor entre acumulao e legitimao Marcuse acrescentava um

    termo mdio, na verdade sua condio de possibilidade, como gostam de dizer os

    filsofos, o sistema das armas, mais exatamente o sistema das armas nucleares, s que

    desta vez nada menos do que a banalizao de uma ameaa catastrfica como rubrica

    oramentria. O olho para enormidades deste tipo o que talvez singularize a percepo

    de Marcuse, no fundo de acordo, presumo pois nada mais sei a respeito, com o

    diagnstico de OConnor acerca da dinmica paralela de Previdncia Social e Complexo

    Industrial-Militar. A meu ver um argumento decisivo para que passemos a considerar o

    sistema de vasos comunicantes entre as formas da guerra e as sucessivas

    reconfiguraes do Estado Social. Conforme os tempos de reforo mtuo entre

    acumulao e legitimao foram ficando para traz, e com ele o dispositivo de gesto

    social em vigor durante a paz total da Guerra Fria, tornou-se cada vez mais ntida uma

    das evidncias do nosso tempo, o continuum de segurana ligando, entre tantos outros

    pontos de vulnerabilidade a securitizar, conforme o jargo, as novas formas

    predominantes das guerras de interveno nas bordas do mundo e o Welfare focalizado

    cuja estratgia blica de targeting ressaltamos l atrs.

    Voc reconheceu a inspirao no livro de Christopher Lasch, A Cultura do

    Narcisismo, que fala da Vida Americana numa Era de Esperanas em

    Declnio. Em um trecho do livro, Lasch aponta que uma das

    caractersticas de uma era em que a poltica se tornou espetculo a a

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    arte do controle de crises. A irrupo de crises que no so meros

    recursos de propaganda poltica se tornou funcional ao controle social?

    Para ser sincero, nunca tinha visto o argumento de Christopher Lasch sobre a

    cultura no narcisismo por esse ngulo da poltica como espetculo, mais exatamente e

    por extenso, como a arte de criar nos espectadores do dito espetculo uma crnica

    sensao de crise, percepo que por sua vez justificaria no s a expanso do poder

    executivo (estamos falando basicamente dos Estados Unidos, onde tal poder elstico

    no limite dos plenos poderes, como exigido pelos pais fundadores imagem e

    semelhana das regalias de Napoleo Bonaparte depois do Dezoito Brumrio) e dos

    segredos que o cercam, como os revelados por Daniel Ellsberg (alis citado por Lasch

    duas pginas depois de sua definio da poltica como arte do controle de crises), o

    analista da CIA que em 1971 vazara para a imprensa os papeis do Pentgono

    documentando o envolvimento norte-americano na Indochina de 1945 a 1968, um

    rosrio das mais tenebrosas covert operations como hoje fcil imaginar. Para ser

    ainda mais sincero, vejo marcas de leitura no meu exemplar brasileiro de 1983 (o

    original de 1979), e no entanto no me lembrava de mais nada, at que a pergunta de

    agora me obrigou a ir atrs. Logo darei minhas impresses pstumas. Antes preciso

    esclarecer que minha inspirao, embora decisiva pela frmula a meu ver mais do que

    exata como diagnstico de poca, precisamente uma era de expectativas [Expectations]

    diminudas, restringiu-se a uma interpretao muito livre deste subttulo do primeiro

    livro e outras tantas variaes em torno do tema da vida cotidiana como um exerccio de

    sobrevivncia, desde que as pessoas, vivendo um dia de cada vez, passaram a preparar-

    se para o pior, uma vida, psquica em primeiro lugar mas no s, em situao de stio, a

    mentalidade sitiada que o livro subsequente ir explorar e reconhecer de passagem sua

    contaminao tambm pelos movimentos de oposio na poca, como os pacifistas e

    preservacionistas (como eram chamados os ambientalistas), cujo inegvel

    sobrevivencialismo rimava, em seu ncleo igualmente defensivo, com as estratgias de

    segurana nacional concebidas para sobreviver a uma guerra nuclear. Essa a passagem

    inaugural acerca da Emergncia como poca histrica que me interessava comear a

    identificar. Com uma diferena, fcil de destacar uma vez relido o material pioneiro de

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    Lasch trinta anos depois, se estou no rumo certo. que todo aquele conjunto de

    sintomas eram encarados como uma patologia regressiva atribuda a um surpreendente

    enfraquecimento do sentido do tempo histrico e correspondente falta de confiana no

    futuro, juzo que na dcada seguinte se tornaria uma espcie de marca registrada da

    esquerda cultural anglo-americana toda vez que se manifestava lamentando uma poca

    que tinha esquecido como pensar historicamente, para denunciar uma perda, uma

    atrofia, uma extino enfim do senso da histria, para cuja temporalidade deveramos

    desesperadamente despertar uma outra vez. No direi que no, at porque foi

    exatamente isso que ocorreu, mais um fim ou mutao que seja, esgotou-se a

    temporalizao da histria (Koseleck), tal como a conhecamos, aquela distncia at

    ento impensvel que se abriu entre a experincia passada e filtrada e um mundo por vir

    num horizonte de possibilidades de ultrapassagem, ou, justamente, retrocesso brbaro.

    Simplesmente e com H maisculo, a histria deixou de ser a evidncia inapelvel que foi

    durante dois sculos, um longo (1779-1914), outro curto (1914-1989). No, no

    Fukuyama no. Outrora o espantalho favorito do senso comum progressista, que

    deveria ter percebido (mas como?) que aquela viso nada ingnua do fim da histria, a

    rigor era o primeiro captulo de um novo Discurso da Guerra. Do qual no vou tentar

    agora claro expor e periodizar sua economia poltica, que espero ter deixado mais do

    que subentendida nas respostas anteriores. A expectativa zerada outra coisa, ou

    melhor, outro tempo, cuja unidade de medida a urgncia, e o centro de gravidade, um

    presente expandido para frente e para trs sob o signo da proliferao de estados de

    emergncia cuja ndole securitria ou libertria no est decidida de antemo. Lasch

    mapeou a primeira cristalizao dessa sensibilidade teraputica. Seu desenho no

    entanto tinha como bastidor o sentimento de que a resposta poltica desejvel em algum

    momento deveria reatar com a ebulio dos anos de resistncia Guerra do Vietn, por

    exemplo, cujo radicalismo todavia ele mesmo no deixava de desancar como teatro de

    rua. Depois veio o sobrevivencialismo para todos, esquerda e direita. Hoje h uma nova

    epidemia sobrevivencialista nos Estados Unidos, com nichos de mercado prprios,

    idelogos militarizados, ncleos organizados e armados, inimigos recrutados na

    imprevidncia geral, alm dos suspeitos de sempre; nova disseminao que est

    assumindo propores de movimento social, todos os seus ativistas empenhados na

    preparao da travessia de uma Longa Emergncia, como se l no ttulo de um livro de

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    recomendaes a respeito do colapso vindouro. Esse o leite derramado pelo qual no

    adianta mais nada chorar, o leite de um tempo em que a luta de classes parecia civilizar

    o capital. A poltica agora a da ambulncia, da reduo de danos, se benevolente, do

    mal menor, se gesto dura do efeito colateral (alis, no discurso social da esquerda

    brasileira, o termo colateral acabou substantivado, por exemplo, quando se diz que a

    poltica social um colateral garantido pelo Estado, um anglicismo talvez), seu

    paradigma s pode ser a medicina de urgncia, que o digam os ativistas pioneiros dos

    Mdicos Sem Fronteiras. A objeo progressista de que a dramatizao da conjuntura

    mera gesticulao compensatria da perspectiva transformadora rifada, simplesmente

    arromba a porta aberta da evidncia maior do nosso tempo, a saber, que a

    decomposio da sociedade capitalista a rigor no anuncia mais nada, quer dizer, mais

    nada daquelas velhas coisas boas de sempre. J o novo ruim do qual preciso partir s

    pode ser algum anlogo da expectativa mxima de outrora rebatida sobre o presente.

    Em resumo, o diagnstico de Lasch segundo o qual passamos a viver numa era de

    expectativas diminudas, que tambm presumo certeiro em todos os seus

    desdobramentos vindouros, no exprime todavia, como ele mesmo d a entender, uma

    perspectiva reversvel e por isso mesmo no se trata de um equvoco poltico ou

    ideolgico, um caso solucionvel de falsa conscincia ou erro filosfico etc. Noutras

    palavras, Lasch anunciava um novo tempo de olhos voltados para o a nterior, que

    tampouco pareceu compreender em sua dimenso proftica. Pensando bem, chegou

    bem perto de decifrar a charada. Sua pgina de abertura reveladora, uma intuio

    luminosa que infelizmente no desenvolve. A ideia, que foi buscar num livro do crt ico

    literrio Frank Kermode, segundo a qual, com algum exagero, e outras liberdades de

    minha parte, no mago modernista da Arte Moderna, se que se pode falar assim,

    reside uma sorte de sexto sentido congnito para o fim, um certo senso apocalptico

    para a queda, ou a anteviso da runa, como na iluminao baudelairiana da Paris

    novinha em folha de Haussmann precocemente entrevista na forma de escombros

    anunciados, sendo que tais vises profticas da desgraa no decorriam somente das

    premonies prprias das vanguardas ditas histricas acerca do horror que se

    avizinhava na forma de uma guerra mundial, como no caso do Expressionismo, mas se

    alastravam igualmente at os espritos mais pacatos e conformistas, como na dvida de

    um T.S.Eliot acerca do fim do mundo, se com um estrondo ou um soluo. Pois bem,

  • [-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n11, vol. 2, 2015

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    Christopher Lasch remontou at aquele auge de projees estticas do fim,

    caractersticas da sensibilidade modernista, na exata medida alis em que toda criao

    artstica, segundo Valry, a criao de uma espera, um momento superlativo de

    expectativas em torno de um desenlace conclusivo, para melhor descobr i-lo atuante na

    imaginao popular desse tempo limiar que estamos procurando identificar e que ele,

    Lasch, foi um dos primeiros a discernir como um rebaixamento paradoxal de horizonte,

    ao notar que no repertrio pop composto de memrias industrializadas ou no do

    Holocausto, ameaa de aniquilamento nuclear, esgotamento de recursos naturais,

    predies de desastre ecolgico, aquelas profecias estticas encontraram enfim um

    lastro de confirmao social inusitada. Do mesmo modo, vinte anos depois, a primeira

    providncia de Mike Davis diante do entulho ainda fumegante do 11 de Setembro, foi

    escavar menos no lixo dos bvios filmes-catstrofe hollywoodianos, a memria

    sismogrfica da arte moderna at se deparar com a incrvel recorrncia de imagens

    exprimindo o pesadelo ou sonho com o skyline de Manhattan em chamas, para no falar

    claro na Elegia do nosso Drummond. Aqui por certo h coisa a explorar, mas no

    quero abusar, salvo resumir tudo relembrando pela ensima vez a observao de

    Benjamin acerca da natureza por assim dizer agnica do tempo moderno, um tempo de

    espera por excelncia, de sorte que jamais houve uma poca que ao se sentir moderna

    no se acreditasse por isso mesmo diante de um abismo iminente, acrescentando, como

    se h de recordar, a passagem famosa e se refere a Paris, capital do sculo XIX, que a

    conscincia desesperada (sic) de estar no meio de uma crise algo crnico na

    humanidade. Iluso retrospectiva de quem escrevia no corao do desespero europeu

    dos anos 1930? Seja como for, ser preciso periodizar e datar, agora que, feitas todas as

    ressalvas precedentes, estamos nos aproximando do miolo da pergunta acerca da

    funcionalidade das crises como paradigma do governo que as controla como quem

    comanda um espetculo, que se convencionou quela altura chamar ainda de poltica.

    A data como sempre decisiva porque a dvida a respeito de uma incomum

    porm crnica sensao de crise enquanto cifra da dominao exercida atravs do

    espetculo ( Debord sim, mencionado de passagem pgina antes) gira em torno de uma

    noo, Crise, ela mesma indissocivel da ideia correlata, e igualmente envolvendo um

    coeficiente temporal de realizao, de Expectativa, sobre a qual nosso autor de

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    referncia no momento est justamente demonstrando que ela vem se esvaziando at o

    seu grau zero. Noutras palavras, agora nossas, o que ainda de substantivo quer dizer