paulo arantes - entrevista a sinal de menos
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Paulo Arantes. Entrevista a "Sinal de Menos", no. 11.2 (2015).TRANSCRIPT
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PAULO ARANTES
Entrevista realizada por Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho
em fevereiro de 2015, especial para Sinal de Menos.
No seu livro O novo tempo do mundo, voc nomeia as manifestaes de
junho de 2013 de ruptura e diz que o pas no voltar mais a ser o
mesmo. A mudana parece que est na ordem do dia desde ento e se
tornou uma palavra-chave. Nas eleies, os candidatos de oposio diziam
representar a voz das ruas e a presidenta reeleita se apresentava como a
garantia de continuidade das mudanas. Mais de um ano depois,
experimentamos alguma mudana?
No sei se mudana, mas de l para c por onde tenho andado nestes ltimos
tempos, no se fala de outra coisa: a verdadeira apario, pois se trata mesmo de uma
assombrao, de uma nova direita, ou ressurreio repaginada da antiga. Seja como for,
quem sabe uma paradoxal direitizao da direita. Noves fora a polcia, apanhamos nas
ruas de Junho como h nunca no se via e ainda no conseguimos identificar o agressor.
Falar em fascismo pode at tranquilizar, na medida em que pensamos saber algo a
respeito. Mas so tantas as ressalvas histricas que acabamos na mesma. Tampouco
ajuda muito o aplicativo neoconservador, salvo para efeito de comparao seguido de
contraste com os neocons norteamericanos. Mas eles so mainstream, e estamos
procurando equivalentes nativos do Tea Party e seus homlogos europeus. O fato que
fomos apanhados de surpresa. Doze anos entorpecidos pela presumida pacificao
lulista embotou nossa percepo de qualquer nota dissonante, sem falar que a essa
direitizao da direita correspondeu, na direo contrria, porm h muito mais tempo,
uma acentuada desradicalizao da esquerda. to flagrante essa assimetria entre uma
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direita que hoje arreganha os dentes e uma esquerda legalista, que s mesmo o teatro de
sombras de uma campanha eleitoral para sugerir a existncia de uma polarizao
poltica de verdade. O lulismo sabidamente fruto de um pacto conservador: resgatar
em suaves prestaes uma dvida social que sempre pesou na conscincia das elites
porm sem nus para o capital. Com a agravante de que a famigerada incluso pelo
consumo, ao consagrar o ideal de uma relao estritamente aquisitiva com os bens e
servios pblicos, tornou-se de fato o principal combustvel de uma nova direita
popular, dividida entre a demanda self defeating da Lei e Ordem, de preferncia sob as
asas de uma aliana entre o Esprito Santo e a Bancada da Bala, e o reconhecimento
sincero, traduzido em votos, de que numa sociedade do desprezo, finalmente algum
olhou por ns, e um dos nossos, alm do mais, reavivando a memria, mas apenas a
memria, da Era Vargas. Nestas condies, obviamente a despolitizao sobe aos cus,
emendando na massa amorfa dos coxinhas, pasto preferencial dos incitamentos de
passagem ao ato que circulam pelas redes sociais. Pois dessa multiforme e policlassista
continuidade conservadora de fundo brotou a ferocidade de agora, enfim livres para
odiar e espancar. Se no h nem em sonho subverso vista, por que tamanha onda
reativa? Passamos a respirar uma atmosfera txica de Restaurao sem que nenhuma
Revoluo tenha destrudo o Antigo Regime.
J que mencionamos, a ttulo de miragem, a sequncia histrica Antigo Regime,
Revoluo e Restaurao, reconsideremos o termo de comparao francs. H mais de
trinta anos as periferias francesas se insurgem, e partem para cima de uma polcia cuja
norma o desrespeito e a humilhao como instituio, o esculacho em bom
portugus. A resposta o fogo, o quebra-quebra e o saque. Jamais lhe ocorreria o
disparate poltico de uma tomada do poder, como se dizia no tempo em que o
capitalismo era um regime de organizao e explorao em massa da fora de trabalho.
Mesmo a extrema-esquerda radical fala cada vez menos em revoluo e cada vez mais
em uma insurreio a caminho. Na opinio desconsolada de um Pierre Rosanvallon,
proliferam os movimentos negativos caractersticos de uma sociedade em estado de
secesso, dos quebradores de vitrines aos agricultores que no querem pagar impostos,
passando pelos inimigos do casamento para todos. O que se v na Frana de Eu Sou
Charlie um pas em ordem unida caando jihadistas. Mas quando estufam o peito num
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mesmo grito, d medo. Essas temporadas de caa mtua destinam-se menos a prevenir
uma convulso sediciosa imaginaria do que manter sob controle uma sociedade que
arrisca implodir conforme se multiplicam toda sorte de separatismos sociais. A extrema
direita limita-se a exprimi-los com a mesma violncia que os produziu. Alm do mais,
desde que ultrapassou a barra dos 20%, ela est mais interessada em ganhar
respeitabilidade e entrar pelo voto nas coalizes do poder, que de resto faz tempo j
governam camuflando o ncleo duro da sua pauta assimilada da ultra-direita, que ao
fim e ao cabo est marcando o compasso de toda esta contradana securitria. Como
ficamos? Acho que na mesma. A menos que adotemos a viso nostlgica e edificante do
mesmo Rosanvallon: com a contrao do mundo do trabalho, os vnculos anteriores de
solidariedade de classe se dissolveram, arrastando consigo o conjunto da sociedade que,
pulverizada e pressionada pela nova desgraa econmica, passa a atirar para todos os
lados. Numa palavra, a solidariedade social recua. Nada mais francs do que essa
lembrana da inveno centenria do Social, mais exatamente a lenta montagem do
Estado Social destinado a acomodar patrimnio e trabalho de modo a garantir proteo
e direito para os destitudos de propriedade, lembrana da inveno sociolgica
concomitante da Solidariedade maneira de Durkheim, mas sobretudo lembrana de
que ao longo do sculo XIX o pas esteve mais de uma vez beira da guerra civil.
Tornou-se assim lugar comum da sociologia francesa declarar que o refluxo dessa mtica
solidariedade social provocou um deslocamento da dimenso material do conflito social,
que deixou de ser meramente distributivo para se tornar cultural, mas um cultural na
base do choque e violncia. Sobre o cenrio de fundo consensual acerca da inexorvel
disciplina do mercado. Mas como penso no ser o caso de adotar esta narrativa,
continuamos na mesma quanto ao fantasma da polarizao brasileira por iniciativa de
uma direita que inegavelmente saiu na frente. Mesmo assim temos novidades no
captulo. Penso na contribuio de Pablo Ortellado, para quem no conhece,
autonomista de origem e muito ativo nas ruas de Junho, contribuio que j comentei
numa entrevista Caros Amigos.
Pois vamos l. Voltemos ao original americano da concluso francesa de h
pouco. Agora o paradigma da luta outro, ele antes de tudo cultural: justamente as
guerras culturais travadas nos Estados Unidos a partir dos anos 1980 e nas quais
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Pablo identifica uma possvel chave de interpretao da atual onda de ultra-direita no
Brasil. A seu ver a nova polarizao no deve ser posta sem mais na conta de Junho, ela
vinha de antes, as ruas e as redes apenas escancararam e intensificaram o choque entre
duas vises antagnicas que no se reduzem mais velha oposio entre socialistas e
liberais, entre justia social e livre empresa, mas antes a subordinam a um novo discurso
de cunho moral. Novamente, nessa mudana de paradigma na retrica do conflito
social, a iniciativa coube direita, cujo senso histrico da injustia necessria foi aos
poucos transformando-se numa viso moral do mundo punitiva, disciplinadora,
excessiva, intrinsecamente desproporcional, na sua reao ao que considera erro ou
desvio a ser sancionado sem d nem piedade. No direi que no, pelo contrrio, o
capitalismo hoje, como mostrou Wacquant, uma onda punitiva s, comeando pela
intensificao do trabalho dessocializado at o encarceramento em massa das categorias
sociais recalcitrantes. Em suma, uma dessolidarizao social em regra. Na Frana, como
vimos, uma reviravolta cuja onda de choque mel na sopa do ressentimento social no
qual a extrema-direita foi a primeira a investir. No Brasil tambm tem sido um choque,
sobretudo nos meios progressistas cuja m-conscincia tambm de fundo moral,
sempre em dvida com as vtimas dos estragos perpetrados por seus ancestrais. No sei
se acompanho Pablo em sua concluso, que no entanto compreendo em sua procura de
um contraveneno altura do novo jogo retrico da ultra-direita, um contra-discurso de
ordem moral porm centrado nos valores opostos da empatia e da solidariedade (como
era de se prever). A nossa moral e a deles de novo? Igualmente incomensurveis como
nos tempos de Trotski, s que agora a chave outra, a dos direitos humanos. Uma
exortao envenenada todavia, desde o bero alis, como mostrou Helena Singer,
lembrando que a juridificao da utopia iluminista dos direitos humanos deu-se
sobretudo pelo cdigo penal. Sei muito bem que Pablo, veterano dos movimentos anti-
globalizao, no tem parte com a esquerda punitiva e legalista, cuja espinha eleitoral
nem por isso a direita de todos os tons est menos empenhada em quebrar, mas sei no
entanto que essa mesmo a nica agenda que prospera, desde que as grandes
expectativas do horizonte moderno saram de cena, o ltimo front, presentista por
excelncia, fazer a disputa do sentido moral da vida poltica e social imaginando que a
gramtica da solidariedade, a rigor confinada poltica da reduo de danos, tambm
inspire uma reorganizao do campo econmico. Alis, pensando bem, nfase moral a
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menos, no foi muito diferente a redefinio do conflito social pela esquerda dos tempos
da Transio, Constituinte e corpo a corpo com o demnio de direita da hora, o
Neoliberalismo e seus derivados. Mesmo jogo retrico, disputa semntica, como se dizia
nos anos 90, s que com os polos da iniciativa invertidos: a esquerda, que descobrira a
Democracia Participativa e reinventara a Sociedade Civil, obviamente ativa e
participativa, sara na frente e precisou enfrentar no seu prprio campo a confluncia
perversa do ativismo empresarial que despertara de seu sono dogmtico dos tempos da
rigidez fordista e falava a mesma lngua dos movimentos sociais atravessados no
caminho do terceiro setor. Com o enrijecimento do discurso movimentista, a direita
endureceu e retomou a iniciativa do jogo, deixando a esquerda correr atrs precisando
tambm subordinar seu velho discurso a um novo, que agora sabemos s poder ser de
ordem moral, sem o que a ultra-direita passar por cima. Isso significa no ter mais a
histria a nosso favor. Esse o campo minado depois de Junho.
Uma das articulaes que voc faz no livro entre um novo tempo de
expectativas decrescentes e a ideia de uma era de emergncia. Por
outro lado, nos discursos oficiais das organizaes internacionais e da
grande mdia sobre as economias emergentes vemos um otimismo em
torno da reduo da pobreza, ampliao do consumo etc. H uma
contradio a ou a expanso da periferia capitalista tem prazo limitado?
Sei que estou pagando um preo pelo duplo sentido da palavra emergncia.
Tanto situao crtica requerendo resoluo em regime de urgncia, quanto uma
segunda acepo positivadora, geralmente associada ideia de ascenso social, quer em
sua verso meritocrtica ou, mais duvidosa, sugerindo algum tipo de arrivismo, que por
sua vez pode ser enobrecido maneira dos personagens napolenicos de Balzac, ou
escarnecido como simples novorriquismo. Foi este ltimo perfil que colou no Brasil,
difundido pela ostentao dos emergentes da Barra nos primeiros anos da Era FHC,
depois estendido, com segundas intenes, falsa classe mdia lulista, gerada pelo
modelo dos trs Cs, Commodities, Crdito e Consumo. At que uma nova trade, o
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Governo de Washington, as Agncias de Rating e a Mdia Anglo-Americana de Negcios,
elevaram o Brasil condio de economia emergente. A consagrao veio em 2009
com a capa da Economist, com o Cristo Redentor decolando, depois de ter obtido o grau
mtico de investimento. Para ser exato, a promoo oficial teria ocorrido muito antes,
em fins de 2002, quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush
(conforme enunciado no subt tulo do livro de Matias Spektor), recebendo em troca das
garantias oferecidas o ttulo oficial de potencia emergente. Com mais de meio sculo
de espera, a profecia do Manifesto Anticomunista de Walter Rostow se cumpria,
finalmente o Brazil takes off segundo anunciava a mencionada reportagem de capa da
Economist. No estou sugerindo que esse upgrading seja imaginrio, embora atenda a
uma aspirao enraizada nas profundezas da selvagem inconstncia da alma nacional,
nem mesmo fruto do marketing geoeconmico, os investidores alis dispensam o
artifcio. H evidentemente lastro material para a internacionalizao das empresas
brasileiras e do Estado Logstico, como j se disse, que as monitora, e tudo mais que da
se segue em termos de reposicionamento internacional. Dentro da ordem, mas global
player. A ironia de tudo isso que a suposta decolagem do Brasil, o take off preconizado
no incio dos anos 60 por Rostow nos termos das teorias funcionalistas da
modernizao, devidamente rebatidas ento pelas teorias crticas do
subdesenvolvimento como uma condio histrico-estrutural e no resduo tradicional
de uma etapa a ser vencida por atualizaes setorizadas, teria ocorrido algumas dcadas
depois, primeiro, depois do assim chamado colapso de sua modernizao perifrica sei
que o conceito de modernizao bem outro mas no posso discuti-lo aqui; segundo,
depois do ajuste estrutural dos anos 90 que alavancou a dita internacionalizao,
iniciada de resto pela Ditadura mas s depois que o Golpe de 64 extirpou de vez
qualquer alternativa histrica de acumulao que no fosse a da nova dependncia,
associada como se dizia na esquerda de ento, conformada, dita esquerda, com os fatos
da vida. Depois foi a apoteose mental que se viu, ainda mais retumbante nos crculos
progressistas de esquerda, dentro e fora do governo. Compreende-se, quatro vitrias
presidenciais consecutivas devem ter confirmado e reforado sua velha, e hoje exclusiva
da esquerda, f no capitalismo, cujas contradies ainda fazem avanar a humanidade,
como a China e a ascenso do resto estariam demonstrando. Quanto direita, faz tempo
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que no acredita mais sequer na legitimidade da sua prpria dominao, desconectou-se
de vez.
Mas voltemos ao disparate totalmente contraintuitivo do enunciado mais geral
do meu argumento: como diagnosticar uma poca de expectativas decrescentes num
momento em que o centro dinmico da acumulao est se deslocando para o mbito
das economias emergentes, alm do mais numa hora em que a hecatombe de 2008
parecia reforar ainda mais a tese euforizante do descolamento dos pases emergentes
em relao desacelerao dos centrais? Pior ainda, tamanho disparate filosfico acerca
do tempo do mundo na hora histrica em que o futuro finalmente chegou para a
periferia. E no um futuro qualquer, mas aquele mesmo entrevisto pelos clssicos da
nossa tradio crtica, a construo nacional interrompida no s fora retomada mas
estaria em vias de se completar. No vou arrematar o disparate com o seu inverso,
dizendo que no, embora sempre se possa observar que se o futuro chegou, tambm
deveria ter chegado ao fim a chantagem neodesenvolvimentista com todos os seus
corolrios de segurana interna e assemelhados. Meu juzo no em absoluto sobre a
conjuntura macroeconmica ascendente dos late comers, por isso tampouco teria
qualquer cabimento aludir, com sinal trocado, aos ltimos quatro anos de quase
estagnao, ou ainda s armadilhas da famigerada doena holandesa, ou a da renda
mdia, em que emergentes costumam atolar, etc. H uns quinze anos atrs alis at
andei arriscando alguns palpites acerca da tese ento em voga em alguns crculos
acadmicos europeus e americanos a respeito de uma presumida brazilianizao do
mundo, eufemismo pitoresco para a sensao de que os pases centrais estavam se
periferizando, mas na acepo antiga e negativa da expresso, conforme avanava o
desmanche da sociedade salarial metropolitana, ou nos termos da resposta anterior,
recuava a solidariedade social enquanto a sociedade se polarizava e despacific ava, e o
pensamento social, por sua vez, se concentrava no estudo do novo mal absoluto, a
violncia urbana. Pensando bem, o futuro chegou mesmo para todo mundo e, se assim
, deu-se uma verdadeira ruptura na relao progressista da poltica com o tempo.
Esse o ncleo do meu argumento. No fundo uma tentativa de verso materialista da
atual acelerao presentista da mquina capitalista do mundo: como quem no sobe
cai, est todo mundo correndo embora no tenha mais para onde correr, por isso a
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unidade da medida temporal s pode ser a urgncia. Regime no qual parece viver uma
bomba relgio chamada China, cujo tic-tac pode ser ouvido em Chai-na (Otlia Arantes),
um livro sobre a mquina chinesa de crescimento urbano, descrita como uma esteira
mecnica cuja acelerao alucinante parece consumir energias futuras esvaindo-se num
aqui e agora sem fim. Sem falar claro na outra unidade, o valor, que no consegue
medir grande coisa, mas tampouco vou dissertar sobre a tese da desproporcionalidade
entre riqueza socialmente produzida e sua medida mesquinha e miservel pelo
tempo de trabalho etc. Por certo um enorme etcetera, de uma frao do qual tentei me
ocupar. Meu juzo poltico, e certamente no pode deixar de levar em conta os efeitos
sociais do realinhamento geoeconmico provocado pelo consenso das commodities,
sendo o principal deles a recomposio do mercado interno pelo consumo de massa.
Nada a ver com poltica institucional ou coisa que o valha. Muito menos poltica de
poder, mesmo nas suas variantes progressistas, desnecessrio lembrar. Mas com a
poltica enquanto dimenso fundamental de encaminhamento das expectativas
humanas, como a definiu Greg Grandin estudando o Terror Branco na Amrica Central
dos anos 80, cujo propsito era justamente o de extirpar pelo horror qualquer arremedo
de sonho incongruente com a mais dura e crua realidade. A luta poltica tal como a
conhecemos tem a idade do capitalismo histrico enquanto sistema produtor de
sociedades orientadas compulsivamente para o futuro, no entanto reconduzido no
menos coercitivamente ao presente como o limite que se almejava ultrapassar. Sem esse
impulso que tambm podemos chamar de emancipao, a poltica mera gesto de
recursos de poder, administrao tcnica do presente. Acontece que o presente de agora
no qualquer, um presente no qual o futuro j chegou, e que tende por um lado a se
perenizar como conjuntura sem fim, mas por outro, a se tornar cada vez mais
politicamente explosivo, tal a sobrecarga de expectativas que vo se acumulando sobre
ele em regime de urgncia. Da a importncia estratgica do sonho, que o lulismo no
por acaso se esmerou em colonizar, privatizar e confinar no devaneio aquisitivo, ao
contrrio do varguismo, que canalizou o sonho dos sem propriedade para o
assalariamento com carteira assinada. Para se reinventar, e reinventar como
antipoltica, numa era em que no se espera mais nada salvo o pior, a esquerda precisa
saber reinterpretar os sonhos com que poderia estar sonhando o povo pobre trabalhador
brasileiro. Um bom comeo seria imaginar por onde andam os sonhos diurnos que
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permitem escapar da infelicidade coletiva da massa urbana comprimida no transporte
dirio de mo nica, ida e volta, trabalho precrio, moradia pior. Refletindo sobre os
nibus queimados nas Jornadas de Junho, o socilogo e estudioso da construo da
sociedade brasileira do trabalho, Adalberto Cardoso, certamente andou pensando no
assunto. No limite, saber a quantas anda, a esta altura de nossa emergncia,
combinada com horizontes de espera cada vez mais rebaixados, as metamorfoses da
utopia brasileira por excelncia, a do trabalho, a um tempo despertada e falsificada
como fonte de legitimao da desigualdade durante a Era Vargas. Mais prximo do
estado de emergncia contemporneo em que passamos a viver no faz uma gerao, ou
melhor no nervo mesmo da questo, encontra-se o argumento desenvolvido por
Jonathan Crary sobre os fins do sono no turbo-capitalismo de agora. Girando num
ritmo 24/7, seu objetivo estratgico a criao do soldado sem sono, por sua vez
precursor do trabalhador sem sono e do consumidor idem. Estes dois ltimos sem
dvida h muito tempo produzidos e sobretudo conduzidos no inferno urbano das
megacidades brasileiras. Sua equao no poderia ser mais direta: verossmil supor
que a imaginao de um mundo sem capitalismo principie como um sonho noturno na
medida mesma em que a inrcia restauradora do sono um entrave a toda a letalidade
da acumulao, pois at prova em contrrio nenhum valor ainda pode ser extrado do
sono.
Tudo isso dito, ainda no respondi por extenso a pergunta pelo prazo de
validade da expanso da periferia dita emergente. So modernizaes ps-colapso que
ofuscam at mesmo espritos crticos como Raul Zibechi, que ainda em maro de 2012
considerava o Brasil um dos poucos pases no mundo que estava escapando de sua
condio perifrica, dispondo inclusive da vontade poltica para tanto, sobretudo desde
que tal entelquia encarnou em um lder carismtico, no descartando por certo, era s
o que faltava, a percepo mais provvel de que tal upgrading se d s custas dos
setores populares, seus e dos vizinhos. No ar, o voto piedoso inspirado por Giovanni
Arrighi, primeiro que a ascenso pacfica da China abrir espao para os demais pases
emergirem num concerto poltico menos polarizado pelas hierarquias centro-periferia;
segundo, que essa redistribuio do poder global acarrete o fim do capitalismo tal como
historicamente o conhecemos. Livros recentes, cuja sequncia pitoresca de ttulos
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homlogos alguma coisa anuncia, como Ecuador made in China e Brasil made in
China, no s desarrumam esse quadro sob medida para os novos progressismos do
sculo XXI latino-americano e sua decantada terceira transio hegemnica, como
lanam nova luz, sobretudo o segundo deles, sobre toda a reconfigurao do capitalismo
contemporneo, inclusive espacial, quando o mundo passa literalmente a ser fabricado
na China, alm de sugado pela proliferao das megacidades asiticas. A constatao
que se impe que o metabolismo do planeta made in China revirou pelo avesso a
antiga era espacial dos tempos da Guerra Fria, em que os campos opostos simplesmente
se justapunham e repeliam como comportamentos estanques de segurana mutuamente
assegurada pelo terror nuclear. Hoje, com o Brasil dentro da China e a China dentro do
Brasil, para retomar a argumentao do livro mencionado, tudo sugere que ingressamos
num novo capitalismo de fronteira, com tudo o que isto indica de redefinio e controle
dos territrios, governo das populaes demarcadas segundo critrios estratgicos de
projeo de poder, e consequente descarte dos retardatrios. Todavia, pensando bem,
acho que a dvida legtima sobre essas decolagens emergentes ainda so tributrias de
um tempo do mundo em que o mito da convergncia entre centro e periferia, no um
mito qualquer mas inerente geocultura mesma de legitimao do capitalismo
histrico, ainda por assim dizer funcionava, tanto assim que tambm funcionava a
ansiedade quanto ao seu desfecho catastrfico. Um exemplo dessa imag inao
retrospectiva. A certa altura do livro Chai-na ao qual aludi, um economista chins
baseado nos Estados Unidos, no MIT para ser exato, se pergunta, diante da grande
eloquncia do skyline de Xangai, o que h de errado com esse modelo de crescimento,
para responder imaginando historiadores do futuro contemplando aquelas imagens de
arranha-cus brotando dos antigos arrozais de Pudong como outros tantos sinais de
alarme que ningum quis ver, e arrematando sua profecia por uma analogia singular:
nada mais parecido com o consenso de Xangai que comandava a China de Yang Zemin
do que o desenvolvimentismo na Amrica Latina dos anos 1970 a comear pelo
gigantismo dos seus anis burocrticos de negcios.
Na Amrica do Sul, a ltima dcada foi caracterizada por uma srie de
vitrias eleitorais da esquerda, um ciclo que parece continuar com as
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recentes reeleies ou vitria de candidatos governistas. Em nosso cho,
muitos intelectuais que apoiam o governo apostaram numa guinada
esquerda depois da vitria eleitoral, mas as primeiras mudanas no
governo no parecem indicar isso.Voc enxerga a possibilidade dessa
consolidao institucional das esquerdas latino-americana se tornar uma
era de transformaes ou elas foram capturadas pelo establishment?
Vamos ficar pelo Brasil. No deixa de ter sua graa pensar na hiptese de uma
captura da esquerda de governo por um establishment empenhadssimo neste exato
momento em aplicar-lhe um solene pontap de despedida sem ao menos uma carta de
agradecimento pelos servios prestados. Ao que parece, rua mesmo, alis em mais de
um sentido. O bom senso recomendaria prolongar a agonia pelo regime de austeridade
at seu desfecho natural em 2018. Mas no, tudo indica que esto preferindo a morte
matada mesmo, claro que pelas vias legais, impedimento ou renncia. Vai ver que esto
acreditando mesmo que o ajuste funcionar a favor de um novo miniciclo de
prosperidade e consumo que um lder carismtico saber traduzir numa quinta vitria
eleitoral consecutiva. E assim sendo, esto apertando todos os parafusos, deixando a
lgica da polarizao assimtrica escalar. forte a impresso de delrio nestes clculos.
Que somado flagrante catatonia do governo, reforam a sensao de que esto todos
juntos caprichando no disparador que faltava para fazer desabar de vez a tempestade
social e ambiental perfeita que est se armando sobre as grandes regies metropolitanas
do pas. Sem descartar a hiptese de que talvez seja esse o propsito, tal estado de
desconexo em que se encontram todos os atores concernidos por um processo em
que os desastres dirios se sucedem. Se a catstrofe o modelo, na boa formulao de
Andr Villar,1 no h motivo para muita surpresa. Mas a esta altura, em que a mquina
eleitoral petista apenas venceu para ser melhor destroada, em caso de sobrevida ser
apenas isso, sobrevida, a dvida era de transformaes ou captura, com a ressalva de
que neste caso estaramos na fase da soltura, assume uma feio puramente 1Andr Villar Gomez e Marcos Barreira. A catstrofe como modelo: agronegcio, crise ambiental e
movimentos sociais durante o decnio 2003-2013, Sinal de Menos n 11, vol. 1, 2015, p. 74-112.
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retrospectiva acerca do que poderia ter sido mas no foi. Durante estes ltimos anos de
governo lulopetista um dos exerccios prediletos da esquerda clssica tem sido a anlise
igualmente clssica da variao dos membros titulares e suplentes do bloco de poder de
sempre, formado na ltima conjuntura (mdia? longa?) pela burguesia interna,
repartida entre seus diversos setores, e o dito campo popular e suas camadas dirigentes.
A vantagem desse jogo de Lego que ele pode prosseguir indefinidamente, pois as
classes e as fraes de classe sempre estaro a, bem como as cadeias produtivas de onde
o valor extrado e posteriormente disputado, como nos bons velhos tempos.
Defenestrados hoje, de volta na prxima temporada, uma eterna questo de correlao
de foras. E claro que a conjuntura global e regional, que at anteontem jogava ao nosso
favor. O resto esquerdismo, ou coisa pior. Como ficamos, tentaes de ironia fcil
parte? H hipteses poderosas sobre a mesa. Todas elas a serem examinadas pelo
retrovisor. Posso apenas evoc-las. A primeira e mais inovadora foi apresentada por
Chico de Oliveira, mal iniciada a Era Lula, como se h de recordar, a tese do
Ornitorrinco, emblema do monstrengo social em que o pas estava se transformando
desde que fora atropelado pelo salto descomunal das foras produtivas impulsionadas
por uma Terceira Revoluo Industrial, e Militar, seria til acrescentar de sada. Depois
de um atraso de cem anos para emparelharmos com a Segunda, para falarmos ainda
no antigo dialeto da ansiedade desenvolvimentista pelo catching up, nos vamos
empurrados de volta para o fim da fila. E depois do choque, o tiro de misericrdia, a
onda subsequente de privatizaes e desmontes variados. A ironia do diagnstico residia
num desencontro histrico: a vitria eleitoral do Partido dos Trabalhadores se dera
justamente no mbito de uma sociedade precisamente derrotada, com extrao
selvagem de mais-valia no seio de uma classe trabalhadora que encolhia e se
dessocializava. Se verdade, como sugeriam h algum tempo atrs Leda Paulani e
Christy Patto, que o sentido da industrializao da periferia brasileira, como outrora o
sentido da colonizao segundo Caio Prado, cuja matriz se completara com a Ditadura,
era a conformao de uma economia industrial moderna suficientemente slida para
funcionar enfim como plataforma de valorizao financeira de alcance global, no
restaria a um projeto alternativo de poder, como o dos trabalhadores organizados em
partido, outra opo que no encarasse a dominncia financeira no regime de
acumulao em vigor no mundo ps-fordista. Na opinio no seu tempo hertica de
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Chico de Oliveira, nascera uma nova classe de poder, justaposta aos intelectuais-
banqueiros tucanos, os gestores sindicais dos fundos de penso das grandes estatais,
canal privilegiado de acesso aos fundos pblicos. Tudo isso sabido e relembro apenas
para destacar que desde a primeira hora nossa cabea mais lcida naquele momento
descartava as trivialidades acerca de cooptao ou mesmo traio de classe. Da a
continuidade com o ciclo anterior, do qual nada foi revertido. Nem seria preciso. Contra
o senso comum compartilhado por direita e esquerda acerca das privatizaes na Era
FHC, Sergio Lazzarini revelou um outro panorama: daquelas famigeradas privatizaes
surgiu aos poucos um capitalismo diferente, um capitalismo de laos e conexes
relevantes muito semelhante ao crony capitalism asitico, do qual emergiu reforado
um ator privilegiado, o Estado, e sua volta, os no menos onipresentes fundos de
penso. O mais bizarro nisso tudo que a viso estratgica a respeito dessas redes e seus
conectores remonta em larga medida a sindicalistas escolados no manejo dos regimes de
previdncia complementar. Radicalizando a tese, um estudo recente de Maurlio
Botelho sugere que a nomenklatura lulista acredita seriamente no controle operrio dos
meios de produo, s que dessa vez, ao contrrio do capitalismo de caserna e seu
imaginrio estatista fossilizado, atravs do controle acionrio, como se o suporte
material exato do tal projeto democrtico popular s pudesse estar ancorado num real
poder operrio-financeiro. Como qualquer governo hoje, um governo de esquerda antes
de tudo, pois se trata de fundos de penso de trabalhadores afinal, s pode ser um
governo do mercado financeiro, ainda mais no caso brasileiro, em que a acumulao
financeira se d prioritariamente na esfera estatal, com lembrava Chico desde o incio.
Por essa materializao da mais antiga assombrao da direita brasileira, a de uma
Repblica Sindical, suplantada apenas pelo pavor de uma revolta haitiana dos escravos,
ningum esperava. Na sequncia, Joo Bernardo falar em Capitalismo Sindical, em
cujo mbito uma classe trabalhadora precarizada mas nem por isso menos
intensamente explorada, confrontaria um polo dominante dual, a burguesia proprietria
e os seus gestores populares. J no plano propriamente surreal das construes
ideolgicas, essas grandes manobras de conquista do poder foram representadas como
um projeto de capitalismo popular de mercados domesticados e moralizados por esses
novos agentes empreendedores infiltrados pela porta dos Fundos. Assim como o
petismo reinventou no Brasil o governo do social, o sindicalismo financeiro teria sido
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desenhado justamente para fechar a equao, no a de um poder qualquer mas a de um
poder projetado a princpio, ainda que no formulado nesses termos, como uma original
reproduo de uma sociedade cuja modernizao abortara. Deu-se ento o inusitado,
uma recada desenvolvimentista extempornea, justamente sobre essa plataforma
financeira-extrativista reforada pelo metabolismo chins do mundo, a casa de
mquinas do nosso diferente capitalismo de laos, que ao ganhar escala com sua nova
constelao de transnacionais provocou uma reviravolta verdadeiramente histrica, a
meu ver uma retomada pela esquerda, e s por ela, pois se trata de uma abominao
para os herdeiros de uma direita secularmente desfibrada pela falta de vontade de poder
(no estou exagerando nada, s ler os textos de nossos formuladores geopolticos), do
velho desejo mtico de um pas potncia regional que remonta ao impulso original de
duas ditaduras (1937 e 1964), cujo rejuvenescimento se deveria a uma espcie de
abertura da elite de poder, basicamente forjada naquelas duas ocasies de exceo
antiga, para o sangue novo do poder gestionrio de uma classe social que Getlio Vargas
por assim dizer legalizara para melhor desbancar seus concorrentes socialistas. A Era
Lula a certido de renascena desse projeto de poder nacional. Aparentemente
fantasmagrico ( o que pensa a direita clssica ao ruminar seu horror atvico a esse
bloco ressuscitado), pois se isso tudo for verossmil estamos simplesmente anunciando
que o Ornitorrinco de 15 anos atrs nada mais do que uma sorte de capitalismo de
Estado reinventado. E que se configurou porque havia uma vaga que lhe fora reservada
na atual fratura do mundo, atravessado de ponta a ponta pelo confronto entre vrias
formas nacionais de capitalismo de Estado e outras tantas de capitalismos corporativos
igualmente sustentados por seus respectivos Estados Logsticos, como j se disse. No
mais a Guerra Fria pois o capitalismo est por toda parte, mas funciona como se
houvesse no horizonte algo como a barreira intransponvel, salvo hecatombe, de uma
destruio econmica mtua assegurada, basta imaginar o abrao de afogados entre
Estados Unidos e China se estritamente beligerantes. Trata-se de uma guerra em que
todos so parceiros. Penso que por esse ngulo a atual campanha de defenestrao e
destruio do petismo adquire nova luz. Possivelmente uma luz que mais ofusca do que
esclarece, e a recomeamos o realejo dos projetos em disputa (argh!) com peas
simetricamente distribudas nas duas metades de um tabuleiro cuja natureza igual para
todos posta de lado por todos como um reles pano de fundo, no caso a corrida entre
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todos os capitalismos para saber quem chegar primeiro ao fim do jogo, o planeta ou a
espcie. Um sintoma alarmante dessa Segunda Guerra Fria, por enquanto mero
decalque das guerras culturais em curso desde o seu epicentro americano, mas tambm
vice-versa, tais guerras culturais entre esquerda e direita, entre progressistas e
conservadores etc., nas quais evidncias e fatos no importam mais (na constatao
desalentada de um Paul Krugman), apenas o cdigo que coloca tudo e qualquer coisa
na sua caixa de ferramentas blicas (se voc Tea Party ou assemelhado nativo,
mudana climtica uma conspirao de vermelhos contra o American Way of Life, e se
voc vermelho do Sul Global, idem ibidem, o aquecimento global uma conspirao
imperialista contra a decolagem dos emergentes), replicam ponto por ponto a fratura
entre modelos de capitalismo em concorrncia pela extrao de valor at da abolio
do sono, pois um dos sintomas mais eloquentes dessa guerra do sculo XXI, repito,
so os alinhamentos automticos qualquer que seja a ficha a cair. Um exemplo recm
sado do forno: sua vitria ainda no completara uma semana e o novo Ministro das
Relaes Exteriores do Syriza j tomava posio a favor da federalizao da Ucrnia, por
mera coincidncia a mesma posio de Putin. Tampouco seus dirigentes escondiam sua
admirao pela sada dita ps-neoliberal aberta pelos pases progressistas da Amrica
Latina e ao declararem que as propores dramticas do desastre grego denunciam a
persistncia de uma verdadeira crise humanitria no pas, acrescentam que a
inspirao das polticas emergenciais pertinentes viro, em boa lgica, das polticas
sociais adotadas naquele continente, incluindo por certo os regimes CCTs
(Transferncias Monetrias Condicionadas, na sigla em ingls), alis desenhadas nos
escritrios do Banco Mundial nos idos de 1990 para remediar os estragos do ajuste
estrutural. Difcil saber at onde iro as simetrias com a antiga Guerra Fria de verdade,
lembrando por exemplo que a Revoluo dos Cravos foi barrada pela OTAN, dinheiro
alemo interposto. Mas o Syriza ganhou justamente por manter os ps no cho, e no
entanto o realinhamento foi instantneo, restando ver qual recurso natural far da
Grcia uma economia emergente, para no falar na vontadezinha de potncia. Estou
divagando, mas a este ponto chegamos.
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Como entender nessa histria recente brasileira os governos do PT (Lula e
Dilma), onde a ampliao de direitos em determinados setores e as
polticas afirmativas convivem com os centros de controle high-techs e o
exrcito intervindo em comunidades do Rio de Janeiro?
Se por ampliao de direitos a pergunta se refere ao universo de protees
sociais asseguradas no s pela letra mas tambm pelo esprito mesmo da Constituio
de 1988 e neles reconhece a inspirao originria dos programas sociais que ao longo
dos anos Lula se distinguiram como best practices e assim foram exportados mundo
afora ento um princpio de resposta pode ser encontrado nas consideraes de uma
estudiosa como Snia Fleury acerca da inquietante transmutao regressiva do social.
Sim aquele mesmo social substantivado que foi literalmente inventado pelos
movimentos nos tempos indecisos da Transio, pois aquele social concebido em termos
de direitos universais de cidadania, como se comeou a falar na poca, foi aos poucos
se metamorfoseando numa outra substncia demandando gesto empresarial e, cada
vez mais, tambm militarizada. Ainda no sabemos se o ovo da serpente estava l, em
todo caso uma involuo, cuja curva descendente vai do social-direito ao social-
segurana passando no meio do caminho pelo social-combate--pobreza. A eventual
ampliao de direitos, para manter a frase que talvez corresponda a outra coisa, tornou-
se basicamente uma questo de segurana, como o Desenvolvimento durante a
Ditadura. A comparao no me parece arbitrria, sobretudo se pensarmos em nossa
recada desenvolvimentista, justamente contempornea da reformulao do social que
est nos ocupando. O mais interessante no roteiro de Snia Fleury, que passo agora a
comentar ainda mais livremente, que esta progresso do Welfare ao Warfare, e no
simples degenerescncia, se d por uma dinmica interna, embora se apresente, para
variar, como dois projetos em disputa pela ressignificao do social, culminando com a
vitria das polticas focalizadas sobre as universalistas. No preciso remontar at a
reviravolta no modo de produo capitalista que provocou a crise fiscal do Estado,
presso social irresistvel que por sua vez levou prevalncia da repescagem seletiva dos
mais vulnerveis, cuja destituio fora dramaticamente agravada pelas polticas de
ajuste s novas condies expropriadoras inerentes ao regime de acumulao
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financeirizada, seja dito para simplificar, pois estamos falando tambm de finanas
previdencirias.
Resta ento compreender a gnese da abordagem armada na gesto desse novo
social nascido na fronteira entre Welfare e Warfare. Acho at que seria o caso de
inverter o ngulo de ataque e perguntar se na origem esse novo social focalizado no
seria ele mesmo uma figura recortada por uma outra racionalidade a caminho.
Racionalidade de gesto na qual o militar e o empresarial seriam indiscernveis. Mas
voltemos ao roteiro de Snia Fleury, que principia pela formao de uma
institucionalidade oculta um hbrido de duas portas operando nas brechas da lei, de
sorte que interesses mercantis passaram a circular no interior de sistemas pblicos
universais desenhados originalmente pelo princpio da desmercantilizao da proteo
social. Seu ponto a compreenso do momento de inflexo em que o esprito do social
nascido nos anos 1980 vai se tornando letra constitucional morta medida que
presumida proviso pblica universal de servios bsicos como educao, sade,
transporte, moradia, saneamento etc., funes clssicas de legitimao dinamizadora da
acumulao, e vice-versa, exercidas pelo Estado, traduzida ento na linguagem dos
direitos coletivos, sobrepe-se uma outra definio destas mesmas prestaes
legitimadoras, porm reapresentadas na forma de um combate protetor, em nome da
racionalizao otimizadora dos regimes de alocao, sugerindo um claro endurecimento
do brao social do Estado. Foi assim que, em meio ao nevoeiro de uma querela
ideolgica sobre direitos coletivos e responsabilidades individuais, um novo Welfare
destinado ao alvio da pobreza acabou se impondo como gesto das necessidades de
populaes em situaes de risco, e gesto mediante um dispositivo de governo das
condutas no qual se reflete de corpo inteiro essa mutao na concepo do social, os
mecanismos de transferncias condicionados de renda mnima, os mundialmente
celebrados programas CCTs, j mencionados. Saltam aos olhos as afinidades entre esse
regime de condies impositivas de acesso a prestaes monetrias, um inequvoco
mecanismo behaviorista de reforos e sanes destinado a moldar comportamentos
econmicos responsveis, com ramificaes por todos os mbitos sociais, da moradia
sexualidade, e o regime de macro-condicionalidades ao qual foram submetidas as
economias traumatizadas pelo choque da dvida e da hiperinflao no momento de seu
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resgate pelos carteis de investidores e seus agentes disciplinadores multilaterais. Com
perdo da repetio, volto ao meu exemplo de h pouco. A atual crise falimentar dos
Estados endividados da periferia europeia mediterrnea, agravada pelo remdio arrasa-
quarteiro da austeridade e seu conhecido cortejo de maldades, dos cortes
previdencirios s privatizaes selvagens, um claro remake do clssico tratamento
infligido s populaes latino-americanas vinte anos atrs, por isso tanto mais
espantoso, volto a insistir, que tenha partido da esquerda radical vitoriosa agora na
Grcia e no da Troika, a lembrana da mesma sada de emergncia adotada p or aqui, e
vendida com sucesso por seus principais beneficirios polticos, justamente os
programas focalizados nas vtimas mais clamorosas do ajuste, e se for mesmo como
manda o figurino, podemos imaginar o grotesco das condicionalidades exigidas
daquelas populaes relapsas endividadas por viverem acima de sua real linha de
pobreza! A moralizao inerente ao processo no seu conjunto, sanciona-se a
imprevidncia com a austeridade e condiciona-se o alvio da pena aquisio das
habilidades necessrias ao retorno ao jogo econmico, indiscutivelmente responsvel
este ltimo. Se isto de fato ocorrer e o crculo do Bolsa Famlia Grega realmente se
fechar, e alm do mais pelas mos do Syriza, no resta mesmo dvida de que o mundo
est mesmo se brasilianizando, ou o Sul, se tornando cada vez mais global, sendo neste
caso especfico demonstrado pelo fato, como sugeriu Lena Lavinas, de que o paradigma
do Welfare do sculo XXI mesmo o da pobreza focalizada, comprando-se as demais
provises no mercado. Nesse paradigma de governo da insegurana social exprime-se
uma viso moral do mundo em que o social substantivado de ontem ressurge como um
processo normalizador, e como se trata de desentortar comportamentos desviantes e
recalcitrantes, o esforo exigido o de um combate sem trguas. O social tornou-se de
fato uma guerra de todos os dias em defesa da sociedade, mas de uma sociedade vista
agora como um sistema de riscos difusos e ameaas cujos focos precisam ser anulados
preventivamente.
Aqui o ponto cego de toda a reviravolta que converteu o social em cabea
de ponte de uma guerra maior. Os alvos variam conforme a temporada: drogas,
criminalidade, HIV, pobreza, misria extrema, terrorismo, e o que mais vier pela frente,
at a emisso de gases de efeito estufa, no caso de declarao de um estado de urgncia
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planetrio por algum poder soberano ainda no identificado mas que na hora final dar
o ar de sua graa. Caso esse ponto cego seja identificado, volto a lembrar que muito
provavelmente nele encontraremos a confluncia de duas racionalidades de novo tipo,
uma militar e outra gerencial-empresarial, e que o ndice mais eloquente dessa
conjuno na origem das polticas sociais focalizadas em sua apenas aparentemente
aberrante convivncia de parede meia com a gesto armada destas mesmas polticas de
promoo social, social work with guns, como se referem certos estudiosos nova
abordagem americana da contrainsurgncia, como dizem por l, vem a ser, tal sinal de
nascena, nada mais nada menos do que o foco nas tcnicas de targeting, expresso
hoje de tal modo inflacionada que nos fez perder de vista sua etimologia peculiar,
perdida ao que parece nalgum escaninho da histria das armas e da guerra. Consta que
antes de se tornar um verbo, como na fase final em torno da qual estamos girando,
targeting Welfare spending, target referia-se ao nome comum para um escudo de
pequeno porte, geralmente manejado por arqueiros, e de carter portanto defensivo
visando antes proteger do que atacar, como hoje as polticas sociais focalizadas, com o
perdo do curto-circuito brutal, nem por isso menos elucidativo, s que agora se protege
visando um alvo. Novamente um curto-circuito retrospectivamente bem lastreado, pois
tambm consta que a dita proteo oferecida pelo artefato foi se transmudando at se
cristalizar numa acepo ofensiva como uma atividade visando atingir, ou tomar e
apoderar-se, um alvo relativamente distante. Nesta direo, algum observou, fechando
o argumento, que o simples ato de mirar, o nosso targeting em questo, j em si
mesmo um ato de violncia, ainda que nenhum tiro venha a ser disparado em
consequncia. Pblico-alvo ento mera consequncia, por sua vez letal, no sendo
todavia espantoso que por contaminao at os movimentos sociais tenham adotado o
jargo. Bem como polticas sociais focalizadas no fundo so protees ameaadoras, ao
passo que ameaas de proteo conferem ao poder de polcia o engajamento
enobrecedor de um trabalho social. Terminou-se punindo os pobres, para retomar a
frase de Wacquant acerca da virada punitiva do capitalismo americano recentrado pela
dessocializao do trabalho, porque no processo daquela reviravolta foram os primeiros
visados, e como quem se encontra na linha de tiro, na ala da mira. Maximizar um
programa de assistncia social encorajando os pobres mediante incentivos
monetrios, positivos ou negativos (como no caso do imposto de renda negativo de
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Milton Friedman), ou ento desencorajando a acomodao com restries, burocracia
humilhante e condies de acesso proibitivas, tudo isso passou a entrar no pacote da
focalizao, originariamente americano. Encarceramento massivo, chacinas, ocupao
militar de territrio, tambm conhecida como pacificao, so outros tantos
componentes desse dispositivo maior de governo que so as polticas de targeting, que
podem igualmente apresentar uma face benigna de reduo de danos, no obstante a
espada de Dmocles punitiva sobre a cabea do pblico-alvo da vez.
Iramos longe se redescobrssemos novas tcnicas de targeting, alternadamente
teraputicas e letais, na formao dos vrios cadastros nacionais em que atualmente se
reparte e reunifica os cidados brasileiros de segunda classe. claro que no
conseguiria completar agora o argumento se, partindo da outra ponta, fosse
identificando a generalizao das operaes de targeting conforme avanava a
mencionada Revoluo nos Assuntos Militares, que tornou tecnicamente possvel incluir
a guerra num continuum de intervenes destinadas a corrigir disfunes na ordem
mundial sem precisar arriscar mais explodir o planeta para alter-la, poltica de alvos
seletivos que culminou nas kill lists operadas pelos Drones. Poderamos, voltando a
pgina, retomar a convivncia disso tudo com as polticas pblicas de ao afirmativa,
mas a poderia parecer humor de cadafalso. Fico devendo igualmente a outra perna do
argumento, lembrar que a contaminao da gesto empresarial, que por sua vez
contagiou no menos fatalmente os movimentos sociais, pela nova redefinio militar
da realidade, no uma via de mo nica, que a Revoluo nos assuntos militares no se
resumiu exclusivamente reviravolta high tech que se sabe, nem a processos tpicos de
desmonte dos grandes corpos armados tratados como plantas fordistas obsoletas, a
comear pelo recrutamento da fora de trabalho e sua banalizao tecnolgica em
guerras ditas ps-heroicas, embora exponencialmente brutalizadas no terreno,
conforme se acentuava o carter policial das operaes militares de interveno, etc.
Mas um enorme etcetera. Resta o efeito dissonante, sobretudo no ncleo orgnico do
sistema, de sociedades ps-militares (at mesmo a ideia de servio militar
desapareceu) em que crescente a militarizao da vida urbana, bem como foras
armadas cada vez mais policializadas e polcias progressivamente planejadas e atuando
manu militari. Na periferia emergente no menor a dissonncia, sua percepo
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valendo inclusive como indcio seguro de divisor de guas, por exemplo, no caso
brasileiro, demarcando as origens do Brasil Contemporneo, um territrio a ser
explorado com categorias novas, em ruptura com o progressismo congnito que nos
definira desde sempre como uma comunidade de expectativas imaginadas, a ltima
delas alis a da ampliao de direitos que comparece pontualmente na pergunta que
ainda estou tentando responder. que por mais devastadoramente sanguinria que
tenha sido, explicitando a associao violenta entre Desenvolvimento e Estado de
Segurana Nacional, e por mais que aparelhasse militarmente as empresas estatais que
foi multiplicando, a Ditadura jamais poderia ter se encaminhado para uma gesto
armada da vida social. Quando muito poderamos observar, a ttulo de homenagem por
assim dizer, que a atual viso teraputica da polcia como operao pacificadora seria
uma espcie de obra pstuma sua. Na verdade ela uma continuao do vis punitivo
assumido pelo Discurso dos Direitos Humanos em sua fase ps-utpica de rotinizao
como poltica pblica, justamente implementada por um poder de Estado que se
distingue pela violao sistemtica de tais direitos. No diria que isto j outra
conversa, pois se fosse um pouco mais esmiuada nos devolveria, por exemplo na figura
do Humanismo Militar, na expresso consagrada por Chomsky ao comentar a guerra de
interveno humanitria do Kosovo em 1999, ao subtexto da pergunta, um deles pelo
menos: desde 1988 vivemos oficialmente num Estado Democrtico de Direito, baseado
e legitimado pelo consenso dos Direitos Humanos, no h desatinado que discorde e se
coloque margem, e no entanto, em nome da observncia e proteo desses mesmos
direitos assistimos a uma escalada punitiva jamais vista, ou melhor, no custa repetir,
cada vez mais visvel porm naturalizada, e demandada, na generalizada gesto
coercitiva da vida social.
Disse que essa viso consensual, entre outras coisas, por ter engolido a
esquerda histrica, cuja memria registra a tal ampliao de direitos, e a ser assim,
devemos constatar que uma esquerda que no soube se reinventar numa idade em que
as grades esperas ficaram para trs, quer dizer uma esquerda sem futuro, mas na antiga
acepo do termo, s poderia mesmo se tornar ela prpria punitiva, alm de enjaulada
pelo ordenamento jurdico. Da a sada de emergncia pelo targeting, que muitos
tericos no hesitariam em incluir entre os conceitos chave de um diagnstico de poca
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que considera a sociedade contempornea de risco um sistema organizado no s para
responsabilizar mas para agravar a sobrecarga das responsabilizaes, cada vez menos a
sociedade, cada vez mais, at o limite da autodestruio, o indivduo. Como vimos, o
princpio mesmo da dessolidarizao social na qual a ultra-direita nada de braadas,
afinal s caem abaixo da linha de pobreza indivduos que tomaram as decises erradas.
So eles ento os clientes-alvo na mira dos programas de transferncias condicionadas.
Acabamos de sugerir como a tecnologia da focalizao, ao sublimar um
inequvoco mecanismo distribuidor de prmios e castigos, alimenta uma sorte de limbo
coercitivo onde Welfare e Warfare terminam se encontrando. Que a direita tenha
celebrado sua prpria inveno, ainda que o sucesso do teste tenha ocorrido no
laboratrio latino-americano, a evidncia mesmo, afinal firmou-se a tendncia a
concentrar o gasto social nas transferncias monetrias, de resto modestas na
porcentagem do produto, em detrimento da oferta de bens pblicos desmercantilizados,
mas no deixa de ser um sinal dos tempos o fato esse sim espantoso de que a esquerda
que os opera com reconhecida proficincia tenha saudado tal sada de emergncia como
uma conquista social, sinal de que o horizonte encolheu a zero mesmo. Mas sobretudo
indicativo de que vistas as coisas pelo ngulo oposto, pelo prisma do alvo em pessoa,
apanhado pela rede de um cadastro, o panorama se presta a uma outra celebrao desse
mesmo social no qual Snia Fleury reconheceu to somente uma nefasta transmutao
regressiva das expectativas que madrugaram no incio dos anos 1980. que a inveno
brasileira do social para remendar os impasses do inorgnico parece no ter lim ites.
De sorte que um fim de linha bem administrado pode muito bem servir de plataforma
de lanamento de um novo paradigma substitutivo da sociedade salarial que no
aconteceu. Visto como uma poltica de urgncia moral (Nancy Fraser), o Bolsa
Famlia, na voz de seus beneficirios condicionais, pde ento ser redescrito como uma
abordagem de reconhecimento, porm sem luta obviamente, como mitigao do
sofrimento social etc. Na outra ponta do targeting, a mesma viso moral s que com o
sinal invertido, superlativamente positivador, encarado pelos gestores de toda operao
como o limiar de uma indita cidadania moral. Nenhuma alma naturalmente crist dir
que no. Muito menos um ativista, no caso um trabalhador social impregnado pela
cultura teraputica da reduo de danos, cuja cristalizao uma das marcas inaugurais
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do novo tempo presentista do mundo de que estamos falando desde o incio. A prpria
compreenso dos Direitos Humanos como a ltima utopia (Samuel Mohyn), de resto
desfeita pelo esgotamento de sua energia fundadora, j um marcador preciso dessa
diviso histrica de guas. Exigir da gesto focalizada do povo pobre a liberao do
acesso a uma porta de sada uma expectativa de outros tempos, de sociedades que o
capitalismo de antes do colapso de sua fome canina por trabalho vivo orientara para o
futuro. A dvida social herdada, que sempre pesou na conscincia progressista nacional,
passou a ser filtrada por um outro cdigo, presentista volto a repisar, o mesmo que
presidiu a rotao da agenda de esquerda em busca de justia social para um passado de
graves violaes, anulando juridicamente o tempo histrico na figura do crime
imprescritvel. H uma equivalncia de poca entre os parmetros da Justia de
Transio e os Programas Sociais por CCTs, ambos so dispositivos regidos por uma
anloga tecnologia de targeting, ambos envolvem traumatismos histricos recolhidos
pela lgica individualizadora da responsabilizao. E da reparao. Este o ponto de
virada. O Repare Bem (ttulo de filme de Maria de Medeiros sobre a vida, paixo e morte
de Eduardo Leite, o Bacuri) vale tanto para os supliciados, mortos e desaparecidos da
ditadura (ou do Terceiro Reich) quanto para os humilhados, ofendidos e esbulhados da
histria social brasileira (ou os massacrados da Conquista e da Colonizao), e para
todos vale o mesmo princpio do tempo poltico zerado pela indenizao em dinheiro.
Isso mesmo, o Bolsa Famlia e assemelhados no Welfare do sculo XXI integram sim a
grande galxia presentista das polticas de reparao. Por isso a presena do dinheiro
no trivial nessa gramtica moral do reconhecimento. Acrescentar que funcional,
vistas as coisas do ngulo do regime de acumulao sob dominncia financeira, por
certo necessrio, mas no o suficiente para apreender em toda sua surpreendente e nova
singularidade a poca em que a ruptura da anterior nos precipitou, a ratoeira do
contemporneo. Entre as novidades de poca, o fato de que todo esse bizarro Sistema da
Dvida se apresenta invariavelmente na forma tribunal. Que cedo ou tarde acabar
transmitindo o vrus punitivo. Da tambm o efeito paradoxal das polticas de reparao
focalizadas. A expresso odiosa Bolsa Ditadura tem a mesma raiz txica da sanha
conservadora, todas as classes sociais confundidas, do mpeto assassino com que se
costuma atacar os incorrigveis e irrecuperveis alvos justamente daquelas polticas.
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Um contra-ataque penal, pois no se consegue imaginar outra sada da dita ratoeira
seno as emergenciais, porm j cronificadas. Seria portanto um enorme cqd.
Em alguns debates voc aponta o Estado do Bem-estar Social do ps-
guerra como o resultado de uma correlao de foras construda entre
esquerda e direita no caso da Europa, principalmente como o resultado
da resistncia contra o fascismo. Contudo, muitos autores partem da
crtica da economia poltica para argumentar que esses direitos fazem
parte da necessidade estrutural capitalista de expandir o mercado e
abarcar quase todos os domnios sociais com a forma mercadoria.
possvel mediar essa explicao estrutural com a conjuntura poltica?
Est claro que no desconheo e muito menos desconsidero as anlises originais
do James OConnor e Claus Offe, para ficar nos mais conhecidos, acerca das funes
bsicas do Estado Capitalista. Acumulao e legitimao, segundo OConnor. Uma
estratgia geral envolvendo ordens, proibies e incentivos destinados a criar e
assegurar as condies para que todos os sujeitos jurdicos sejam includos nas relaes
de troca de equivalentes de modo a evitar a descaracterizao como mercadoria de todas
as unidades de valor engajadas no processo, segundo Offe. E como poderia? Alm de
representar um auge na crtica da economia poltica do Estado, so por assim dizer do
meu tempo. Ambos foram publicados e lidos no Brasil na virada dos anos 1970 para os
1980, justamente num momento em que o fim da miragem do fordismo perifrico nos
precipitava igualmente num cipoal inextricvel de demandas particularistas, como
OConnor descrevia a Crise Fiscal do Estado, americano no caso. O prprio Offe andou
por aqui em 1982. Alguma pesquisa e um certo esforo de memria poderiam rastrear
muita coisa para a recapitulao de agora, pois afinal faz tempo que a mgica da
legitimao pela acumulao se desfez, se que algum ainda se lembra, socialmente
falando, daquelas trs dcadas do ps-guerra em que a estratgia estatal de fazer
funcionar o processo de acumulao era ao mesmo tempo resolver a questo social, no
bom resumo de Javier Blank, num artigo recente. Hoje, o Welfare do sculo XXI bem
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outro, em que termos, acabamos de evocar. Pois naquele momento de crise funcional do
Estado Keynesiano de Bem-Estar no ncleo orgnico do sistema, e de colapso da
modernizao perifrica, era tal a confiana por estas paragens naquela dialt ica da
crise estrutural do Estado Capitalista, muito enfatizada, por exemplo, nos esquemas de
Offe, segundo os quais a cada tentativa de reincorporao de unidades de valor ao
ncleo produtivo e apaziguador do sistema, concebido para isso mesmo, tornar o
assalariamento aceitvel e desejvel, multiplicavam-se as esferas de bens pblicos que
escapavam incorporao aos circuitos da troca mercantil, que ocorreu a mais de uma
cabea pensante da esquerda mais avanada da hora estarmos na antessala do
socialismo... Com os fundos pblicos ao alcance da mo popular que ajudara a
Ditadura a passar desta para melhor. Como ainda valia a pena sonhar com a hiptese do
anti-valor, segundo Chico de Oliveira, no s parecia plausvel como se apostava, na
contramo da tese da funcionalidade de um jogo de soma positiva, cada classe
assumindo o papel da outra classe, como se dizia na lngua do consenso keynesiano, no
antagonismo entre bem-estar e capitalismo, enfim na contradio por certo disfuncional
de um sistema econmico que utiliza fora de trabalho como se ela fosse uma
mercadoria (parece Polanyi mas Claus Offe) necessitar como estrutura de apoio um
conjunto de instituies no-mercantilizadas. Ainda Claus Offe, envenenando o jogo do
contente Welfare State Keynesiano, mas j estava declarada a sua falncia. Na hora H,
em que a esquerda planejava dar o pulo do gato... faltou dinheiro, secou a fonte do
financiamento. Nesse momento principiou nosso imbrglio particular em torno do que
se pode chamar de demanda de Estado, que alis no Brasil tem uma genealogia singular,
no custa observar, pois se trata paradoxalmente de um Estado congenitamente
exterminador de sua populao desclassificada, at que Getlio inverteu a percepo,
mas s a percepo. Quer dizer, esquerda principiou nossa regresso. Naquela imagem
da disfuncionalidade funcional do Estado de Bem-Estar restou apenas isso, a imagem
congelada de um fim em si mesmo, noves fora suas circunstancias europeias de
nascimento, por exemplo, de que logo falaremos, na frmula precisa de Marildo
Menegat, a iluso da revoluo sem que esta tenha ocorrido. Isto na Europa,
imaginemos por aqui. A esquerda que se reinventara depois da Ditadura, criando por
assim dizer do nada o social, passou a considerar o Estado ora como uma agncia
processadora de polticas pblicas de acordo com o jogo polirquico de presses e
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contrapresses, ora como o locus em que demandas de classe disputam sua direo
neste ou naquele sentido, conforme a famigerada correlao de foras, ora mais
burgus, ora mais popular, uma espcie de joo-bobo em suma. Nem trao na memria
poltica daquela encruzilhada pelo menos terica da dcada de 1980. Como restou
suspensa no ar a imagem redentora do Estado Social produtor por gerao espontnea
de bens pblicos, sempre que se quer desancar ou celebrar o que restou da dita
esquerda, costuma-se denegri-la ou enaltec-la identificando-a social-democracia
europeia, qual se costuma atribuir o parto do Estado Social que ascendeu aos cus
durante os 30 gloriosos. nesse momento que nos debates, para melhor destacar a
originalidade nativa do lulopetismo, costumo contrapor a tal fantasia o traumatismo
europeu do referido parto, um complexo de revolues, guerra e fascismo burgus, se
que se pode falar assim. O prprio Claus Offe, quando se refere s origens ideolgicas
muito heterogneas do Welfare State que comeou a se consolidar no imediato ps-
guerra no d maiores precises nem refere a circunstncia maior, o trauma da guerra
contra o fascismo. Para incio de conversa, lugar comum na historiografia europeia e
americana do norte constatar que a expanso dos direitos dos cidados perante o Estado
se deve fora propulsora das guerras da nao. Nem sombra disso na periferia latino-
americana: na observao de Charles Tilly, por exemplo, que atribuiu como se sabe a
formao dos Estados europeus operao conjunta de dois macrofatores autnomos,
coero e capital, os latinoamericanos sofreram os horrores da represso do Estado a
bem dizer porque foram poupados dos horrores da guerra internacional de grande
escala. Nada mais clssico, digamos assim, do que a penso do veterano de guerra. Para
resumir um pouco a minha pera, revistas as coisas com mais de meio sculo de
distncia, relembro de passagem um artigo dos anos 1980 do mesmo Charles Tilly sobre
a prtica da guerra e a criao do Estado como Crime Organizado, enfim um problema
de compra e venda de proteo em que Estados e criminosos organizados extraem um
excedente do prprio excedente, e como hoje em dia est cada vez mais complicado
distinguir entre guerreiros, bandidos e governantes, e no apenas no Rio de Janeiro. A
comear pelo Estado Islmico, amostras contemporneas que no faltam.
Mas voltemos a meu ponto de partida europeu, francs no caso, afinal eles
inventaram o social em meados do sculo XIX. Acossados pelos traumas sucessivos de
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1848 e da Comuna de Paris, saram procura de um dispositivo capaz de proteger o
trabalho contra as investidas do patrimnio, at ento o nico a propiciar segurana
(Donzelot). Dito isso, meu juzo vinculando a inegvel funcionalidade do Estado Social
reconstrudo na sada da guerra ameaa antissistmica de uma reviravolta
revolucionria na esteira da vitria da aliana antifascista em 1945, precisa
evidentemente ser calibrado. E no limite, revisto luz do novo entrelaamento entre
Welfare e Warfare inaugurado justamente naquela conjuntura nova que se abria, a da
Guerra Fria que arrematava a Guerra de Trinta Anos iniciada entre 1914 e 1917 como
uma guerra civil europeia (Isaac Deutcher, Arno Mayer, etc.), como de uma vez por
todas deixara claro o laboratrio da Guerra Civil Espanhola, includo no experimento o
terror exercido pelo poder contrainsurgente sovitico-stalinista. Pois ento. A
experincia paradoxal de fundo naquele curto intervalo, espcie de terra de ningum
histrica entre dois fronts era novamente a de um outro ciclo de Great Expectations
impulsionadas pelo choque de uma catstrofe social jamais vista. Esse o terreno em que
prosperou a ltima miragem progressista da era histrica que comearia a se encerrar
nos anos 1970 com a desativao do mecanismo miraculoso de retroalimentao das
funes bsicas de acumulao e legitimao exercida pelo Estado capitalista, como
Javier Blank condensa o argumento de James OConnor. No mago de tudo aquilo
todavia, a percepo da funo utpica da Resistncia, a dimenso prefiguradora
extrada de sua experincia dos extremos sob a Ocupao. Para se ter uma ideia dessa
dimenso de utopia vivida como antecipao, posso apenas remeter ao paradoxo do
enunciado de Sartre na Repblica do Silncio, nunca fomos to livres como durante a
Ocupao, ou as no menos famosas anotaes de Ren Char sobre aqueles anos
essenciais em que o colapso da Frana permitira desenterrar o tesouro perdido das
revolues, na frase do comentrio bem conhecido de Hannah Arendt que eu
obviamente no vou dissecar. Para os movimentos de Resistncia estava fora de
cogitao voltar ao estado de coisas anterior a uma guerra que precisamente nada mais
era do que a fuga para frente catastrfica destinada a perpetuar o dito estado de coisas.
A Revoluo esteve no ar na forma daquela oportunidade antifascista. Como sabemos
desmanchou-se nesse mesmo ar em pouco tempo, houve at guerra civil (na Grcia, por
exemplo), mas a Revoluo no veio. Seu modelo eram os Comits Populares da
Resistncia, na opinio de um historiador (Geoff Eley), formas moleculares de um
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caminho imaginado imagem e semelhana dos conselhos de trabalhadores que se
espalharam pela Europa entre 1917 e 1921, novas formas de participao popular
equivalentes atividade da resistncia, reconstruir a sociedade nos moldes igualitrios
da emergncia de guerra no seu final etc. Ocorre que ao terminar a guerra a Europa j
estava sob uma nova Ocupao, desta vez pelas foras militares aliadas. Uma
insurreio da militncia armada dos partigiani italianos, por exemplo, seria fatalmente
dizimada, e certamente com aquiescimento sovitico. A rigor, ao sopro utpico do
primeiro tempo da Libertao respondeu uma nova Restaurao. Nova porque o grande
estouro da Libertao a fizera engolir o sucedneo de uma Revoluo que no houve,
justamente o Estado Social. Da a sua funcionalidade de mo-dupla. Assim, j durante a
guerra, a cada derrota eleitoral dos conservadores, Churchill anunciava que um
verdadeiro Welfare State estaria a caminho coroando o esforo de guerra da nao com
proteo e segurana do bero ao tmulo. Na Frana, o Governo Provisrio criou em
1945 a Seguridade Social tal como constava no programa do Conselho Nacional da
Resistncia. Combinaram-se assim uma irresistvel (ou melhor, resistvel afinal) presso
popular vinda de todas as mobilizaes de energia social para guerra e as grandes
manobras do alto comando do poder capitalista vitorioso numa resultante bifronte, um
sistema de segurana social cuja gesto confiscada pelas novas burocracias
racionalizadas durante a guerra anunciava que estvamos ingressando numa nova era
sim, uma era de populaes administradas, alis totalmente, se fato que Guerra
Total estava dando sequncia uma Paz Total, como Paul Virilio preferia chamar a
Guerra Fria. Cujo documento de fundao seria o Relatrio Beveridge de 1942, nada
mais nada menos do que um programa de Seguro Social desenhado pelos Servios
Aliados, em vista da vida saudvel do cidado a ser aliviado do fardo maior das
necessidades elementares. Neste sentido, no se poderia documentar com mais
propriedade a ideia, primeira vista incongruente, de que desde o seu nascedouro um
sistema de garantias e provises sociais na verdade era um plano de guerra, mais
exatamente, concebido para se ganhar uma guerra, e continuar vencendo a seguinte.
Como Marcuse far a prova ao descrever nos idos de 1960 a racionalidade tecnolgica
da dominao nas sociedades industriais avanadas, como se dizia ento, analisando
justamente a pioneira confluncia americana de Welfare e Warfare, a saber, que a vida
totalmente mobilizada por um estado permanente de prontido militar cataclsmica ao
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mesmo tempo uma vida totalmente mobilizada pela produo propriamente dita e seu
aparato latu senso de prosperidade e bem estar. Com isso descobria de quebra a
anomalia que o materialismo histrico no previra: uma simbiose tal entre foras
produtivas e relaes sociais de produo que o desenvolvimento proverbial e
exponencial, das primeiras, ao invs de revelar o fundamento opressivo das segundas,
torna-se fonte perene de legitimao do sistema. Para o Marcuse materialista era essa a
mais espantosa novidade histrica, uma sociedade unidimensional, sem oposio
interna e por isso mesmo em movimento perptuo ao redor de um mesmo centro imvel
impulsionado pela combinao produtivista de bem estar e guerra. Dez anos antes,
equao de James OConnor entre acumulao e legitimao Marcuse acrescentava um
termo mdio, na verdade sua condio de possibilidade, como gostam de dizer os
filsofos, o sistema das armas, mais exatamente o sistema das armas nucleares, s que
desta vez nada menos do que a banalizao de uma ameaa catastrfica como rubrica
oramentria. O olho para enormidades deste tipo o que talvez singularize a percepo
de Marcuse, no fundo de acordo, presumo pois nada mais sei a respeito, com o
diagnstico de OConnor acerca da dinmica paralela de Previdncia Social e Complexo
Industrial-Militar. A meu ver um argumento decisivo para que passemos a considerar o
sistema de vasos comunicantes entre as formas da guerra e as sucessivas
reconfiguraes do Estado Social. Conforme os tempos de reforo mtuo entre
acumulao e legitimao foram ficando para traz, e com ele o dispositivo de gesto
social em vigor durante a paz total da Guerra Fria, tornou-se cada vez mais ntida uma
das evidncias do nosso tempo, o continuum de segurana ligando, entre tantos outros
pontos de vulnerabilidade a securitizar, conforme o jargo, as novas formas
predominantes das guerras de interveno nas bordas do mundo e o Welfare focalizado
cuja estratgia blica de targeting ressaltamos l atrs.
Voc reconheceu a inspirao no livro de Christopher Lasch, A Cultura do
Narcisismo, que fala da Vida Americana numa Era de Esperanas em
Declnio. Em um trecho do livro, Lasch aponta que uma das
caractersticas de uma era em que a poltica se tornou espetculo a a
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arte do controle de crises. A irrupo de crises que no so meros
recursos de propaganda poltica se tornou funcional ao controle social?
Para ser sincero, nunca tinha visto o argumento de Christopher Lasch sobre a
cultura no narcisismo por esse ngulo da poltica como espetculo, mais exatamente e
por extenso, como a arte de criar nos espectadores do dito espetculo uma crnica
sensao de crise, percepo que por sua vez justificaria no s a expanso do poder
executivo (estamos falando basicamente dos Estados Unidos, onde tal poder elstico
no limite dos plenos poderes, como exigido pelos pais fundadores imagem e
semelhana das regalias de Napoleo Bonaparte depois do Dezoito Brumrio) e dos
segredos que o cercam, como os revelados por Daniel Ellsberg (alis citado por Lasch
duas pginas depois de sua definio da poltica como arte do controle de crises), o
analista da CIA que em 1971 vazara para a imprensa os papeis do Pentgono
documentando o envolvimento norte-americano na Indochina de 1945 a 1968, um
rosrio das mais tenebrosas covert operations como hoje fcil imaginar. Para ser
ainda mais sincero, vejo marcas de leitura no meu exemplar brasileiro de 1983 (o
original de 1979), e no entanto no me lembrava de mais nada, at que a pergunta de
agora me obrigou a ir atrs. Logo darei minhas impresses pstumas. Antes preciso
esclarecer que minha inspirao, embora decisiva pela frmula a meu ver mais do que
exata como diagnstico de poca, precisamente uma era de expectativas [Expectations]
diminudas, restringiu-se a uma interpretao muito livre deste subttulo do primeiro
livro e outras tantas variaes em torno do tema da vida cotidiana como um exerccio de
sobrevivncia, desde que as pessoas, vivendo um dia de cada vez, passaram a preparar-
se para o pior, uma vida, psquica em primeiro lugar mas no s, em situao de stio, a
mentalidade sitiada que o livro subsequente ir explorar e reconhecer de passagem sua
contaminao tambm pelos movimentos de oposio na poca, como os pacifistas e
preservacionistas (como eram chamados os ambientalistas), cujo inegvel
sobrevivencialismo rimava, em seu ncleo igualmente defensivo, com as estratgias de
segurana nacional concebidas para sobreviver a uma guerra nuclear. Essa a passagem
inaugural acerca da Emergncia como poca histrica que me interessava comear a
identificar. Com uma diferena, fcil de destacar uma vez relido o material pioneiro de
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Lasch trinta anos depois, se estou no rumo certo. que todo aquele conjunto de
sintomas eram encarados como uma patologia regressiva atribuda a um surpreendente
enfraquecimento do sentido do tempo histrico e correspondente falta de confiana no
futuro, juzo que na dcada seguinte se tornaria uma espcie de marca registrada da
esquerda cultural anglo-americana toda vez que se manifestava lamentando uma poca
que tinha esquecido como pensar historicamente, para denunciar uma perda, uma
atrofia, uma extino enfim do senso da histria, para cuja temporalidade deveramos
desesperadamente despertar uma outra vez. No direi que no, at porque foi
exatamente isso que ocorreu, mais um fim ou mutao que seja, esgotou-se a
temporalizao da histria (Koseleck), tal como a conhecamos, aquela distncia at
ento impensvel que se abriu entre a experincia passada e filtrada e um mundo por vir
num horizonte de possibilidades de ultrapassagem, ou, justamente, retrocesso brbaro.
Simplesmente e com H maisculo, a histria deixou de ser a evidncia inapelvel que foi
durante dois sculos, um longo (1779-1914), outro curto (1914-1989). No, no
Fukuyama no. Outrora o espantalho favorito do senso comum progressista, que
deveria ter percebido (mas como?) que aquela viso nada ingnua do fim da histria, a
rigor era o primeiro captulo de um novo Discurso da Guerra. Do qual no vou tentar
agora claro expor e periodizar sua economia poltica, que espero ter deixado mais do
que subentendida nas respostas anteriores. A expectativa zerada outra coisa, ou
melhor, outro tempo, cuja unidade de medida a urgncia, e o centro de gravidade, um
presente expandido para frente e para trs sob o signo da proliferao de estados de
emergncia cuja ndole securitria ou libertria no est decidida de antemo. Lasch
mapeou a primeira cristalizao dessa sensibilidade teraputica. Seu desenho no
entanto tinha como bastidor o sentimento de que a resposta poltica desejvel em algum
momento deveria reatar com a ebulio dos anos de resistncia Guerra do Vietn, por
exemplo, cujo radicalismo todavia ele mesmo no deixava de desancar como teatro de
rua. Depois veio o sobrevivencialismo para todos, esquerda e direita. Hoje h uma nova
epidemia sobrevivencialista nos Estados Unidos, com nichos de mercado prprios,
idelogos militarizados, ncleos organizados e armados, inimigos recrutados na
imprevidncia geral, alm dos suspeitos de sempre; nova disseminao que est
assumindo propores de movimento social, todos os seus ativistas empenhados na
preparao da travessia de uma Longa Emergncia, como se l no ttulo de um livro de
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recomendaes a respeito do colapso vindouro. Esse o leite derramado pelo qual no
adianta mais nada chorar, o leite de um tempo em que a luta de classes parecia civilizar
o capital. A poltica agora a da ambulncia, da reduo de danos, se benevolente, do
mal menor, se gesto dura do efeito colateral (alis, no discurso social da esquerda
brasileira, o termo colateral acabou substantivado, por exemplo, quando se diz que a
poltica social um colateral garantido pelo Estado, um anglicismo talvez), seu
paradigma s pode ser a medicina de urgncia, que o digam os ativistas pioneiros dos
Mdicos Sem Fronteiras. A objeo progressista de que a dramatizao da conjuntura
mera gesticulao compensatria da perspectiva transformadora rifada, simplesmente
arromba a porta aberta da evidncia maior do nosso tempo, a saber, que a
decomposio da sociedade capitalista a rigor no anuncia mais nada, quer dizer, mais
nada daquelas velhas coisas boas de sempre. J o novo ruim do qual preciso partir s
pode ser algum anlogo da expectativa mxima de outrora rebatida sobre o presente.
Em resumo, o diagnstico de Lasch segundo o qual passamos a viver numa era de
expectativas diminudas, que tambm presumo certeiro em todos os seus
desdobramentos vindouros, no exprime todavia, como ele mesmo d a entender, uma
perspectiva reversvel e por isso mesmo no se trata de um equvoco poltico ou
ideolgico, um caso solucionvel de falsa conscincia ou erro filosfico etc. Noutras
palavras, Lasch anunciava um novo tempo de olhos voltados para o a nterior, que
tampouco pareceu compreender em sua dimenso proftica. Pensando bem, chegou
bem perto de decifrar a charada. Sua pgina de abertura reveladora, uma intuio
luminosa que infelizmente no desenvolve. A ideia, que foi buscar num livro do crt ico
literrio Frank Kermode, segundo a qual, com algum exagero, e outras liberdades de
minha parte, no mago modernista da Arte Moderna, se que se pode falar assim,
reside uma sorte de sexto sentido congnito para o fim, um certo senso apocalptico
para a queda, ou a anteviso da runa, como na iluminao baudelairiana da Paris
novinha em folha de Haussmann precocemente entrevista na forma de escombros
anunciados, sendo que tais vises profticas da desgraa no decorriam somente das
premonies prprias das vanguardas ditas histricas acerca do horror que se
avizinhava na forma de uma guerra mundial, como no caso do Expressionismo, mas se
alastravam igualmente at os espritos mais pacatos e conformistas, como na dvida de
um T.S.Eliot acerca do fim do mundo, se com um estrondo ou um soluo. Pois bem,
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Christopher Lasch remontou at aquele auge de projees estticas do fim,
caractersticas da sensibilidade modernista, na exata medida alis em que toda criao
artstica, segundo Valry, a criao de uma espera, um momento superlativo de
expectativas em torno de um desenlace conclusivo, para melhor descobr i-lo atuante na
imaginao popular desse tempo limiar que estamos procurando identificar e que ele,
Lasch, foi um dos primeiros a discernir como um rebaixamento paradoxal de horizonte,
ao notar que no repertrio pop composto de memrias industrializadas ou no do
Holocausto, ameaa de aniquilamento nuclear, esgotamento de recursos naturais,
predies de desastre ecolgico, aquelas profecias estticas encontraram enfim um
lastro de confirmao social inusitada. Do mesmo modo, vinte anos depois, a primeira
providncia de Mike Davis diante do entulho ainda fumegante do 11 de Setembro, foi
escavar menos no lixo dos bvios filmes-catstrofe hollywoodianos, a memria
sismogrfica da arte moderna at se deparar com a incrvel recorrncia de imagens
exprimindo o pesadelo ou sonho com o skyline de Manhattan em chamas, para no falar
claro na Elegia do nosso Drummond. Aqui por certo h coisa a explorar, mas no
quero abusar, salvo resumir tudo relembrando pela ensima vez a observao de
Benjamin acerca da natureza por assim dizer agnica do tempo moderno, um tempo de
espera por excelncia, de sorte que jamais houve uma poca que ao se sentir moderna
no se acreditasse por isso mesmo diante de um abismo iminente, acrescentando, como
se h de recordar, a passagem famosa e se refere a Paris, capital do sculo XIX, que a
conscincia desesperada (sic) de estar no meio de uma crise algo crnico na
humanidade. Iluso retrospectiva de quem escrevia no corao do desespero europeu
dos anos 1930? Seja como for, ser preciso periodizar e datar, agora que, feitas todas as
ressalvas precedentes, estamos nos aproximando do miolo da pergunta acerca da
funcionalidade das crises como paradigma do governo que as controla como quem
comanda um espetculo, que se convencionou quela altura chamar ainda de poltica.
A data como sempre decisiva porque a dvida a respeito de uma incomum
porm crnica sensao de crise enquanto cifra da dominao exercida atravs do
espetculo ( Debord sim, mencionado de passagem pgina antes) gira em torno de uma
noo, Crise, ela mesma indissocivel da ideia correlata, e igualmente envolvendo um
coeficiente temporal de realizao, de Expectativa, sobre a qual nosso autor de
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referncia no momento est justamente demonstrando que ela vem se esvaziando at o
seu grau zero. Noutras palavras, agora nossas, o que ainda de substantivo quer dizer