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PauloCoelhoGuerreiro da Luz

Volume 1

2008

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Paulo Coelho’s website address iswww.paulocoelho.com

Paulo Coelho’s blog address iswww.paulocoelhoblog.com

Copyright © Paulo Coelho 2005

The right of Paulo Coelho to be identified as the moral rights author of this work has been asserted by him in accordance with the Copyright Amendment (Moral Rights) Act 2000 (Cth).

ISBN

Published by Lulu

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No Caminho de Kumano

Desci do trem numa tarde de fevereiro de 2001, e encontrei Katsura, uma japonesa de 29 anos.

- Seja bem-vindo ao caminho de Kumano.

Olhei para o lado de fora da estação, para o sol poente que batia diretamente no meu rosto. O que era o caminho de Kumano? Durante a via-gem, tinha procurado saber como é que aquele lugar remoto estava incluído no programa de mi-nha visita oficial, organizada pela Japan Founda-tion. A intérprete me disse que uma amiga minha, a poeta Madoka Mayuzumi, fizera questão que eu visitasse o lugar, mesmo que tivesse apenas cinco dias, e precisasse viajar de carro a maior parte do tempo. Madoka tinha feito a pé o Caminho de

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Santiago em 1999, e achava que esta era a manei-ra de agradecer-me.

Ainda no trem, minha interprete comen-tou: “o pessoal em Kumano é muito estranho”. Perguntei o que queria dizer com isso, e ela limi-tou sua resposta a uma palavra. “Religiosidade.” De minha parte, resolvi não insistir: muitas vezes conseguimos estragar uma boa peregrinação por-que lemos todos os folhetos, os livros, as indica-ções na Internet, os comentários de amigos, e já chegamos no lugar sabendo tudo que precisamos conhecer, sem deixar espaço para o mais impor-tante da viagem - o inesperado.

- Vamos até a pedra - disse Katsura.

Caminhamos alguns metros até um peque-no obelisco, com inscrições em duas faces, encra-vadas no meio de uma esquina - e disputando o espaço com pedestres, uma loja de conveniências, carros, e motocicletas que passavam. A partir dali,

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o caminho de Kumano se dividia em dois.

- Se você seguir para a esquerda, irá fazer a peregrinação pelo caminho que o imperador usa-va antigamente. Se seguir pela direita, fará o ca-minho das pessoas comuns comentou Katsura.

- Talvez o caminho do imperador seja mais bonito, mas com certeza o caminho das pessoas comuns e mais animado.

Ela pareceu ficar contente com a resposta. Entramos no carro, nos dirigimos para as mon-tanhas cobertas de névoa. Enquanto conduzia, Katsura explicava um pouco sobre o lugar: Ku-mano é uma espécie de península cheia de colinas, florestas e vales, onde várias religiões conviviam pacificamente. As predominantes eram o budis-mo e o xintoísmo (religião nacional do Japão, anterior à influência de Buda, e que consiste na adoração das forças da natureza), mas ali podia ser encontrado todo tipo de fé e de manifestação

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espiritual.

- Quantos quilômetros de peregrinação? - eu quis saber.

Ela pareceu não entender. Pedi que a inter-prete traduzisse em japonês, mas mesmo assim Katsura parecia perplexa com a minha pergunta.

- Depende de onde você saiu - disse final-mente.

- Claro. Mas no caso do Caminho de San-tiago, por exemplo, se você sair de Navarra são aproximadamente 700 kms. E aqui?

- Aqui, as peregrinações começam quando você deixa a sua casa, e terminam quando você volta para ela. Neste caso, como você mora no Brasil, deve saber a distância. Eu não sabia, mas a resposta fazia sentido. A peregrinação é uma etapa de uma viagem; lem-

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brei-me que depois de percorrer o caminho de Santiago, na Espanha, só fui realmente entender o que me acontecera quando passei quatro meses em Madrid, antes de voltar para casa.

- A gente vê as coisas, e não compreende de imediato - continuou Katsura. - É preciso dei-xar em casa o homem que você está acostumado a ser; ele fica lá, e apenas a parte boa continua a ser alimentada pela energia da Deusa, que é mãe generosa. A parte que lhe prejudica termina mor-rendo por falta de alimento, já que o demônio está muito ocupado com outras pessoas, e não tem tempo de ficar cuidando de alguém cuja alma não está ali.

Subimos por quase duas horas um pequeno caminho sinuoso na montanha, até que a furgo-neta parou numa espécie de albergue. Antes que eu entrasse, Katsura comentou: - Aqui vive uma mulher que não sabemos quantos anos tem, por isso a chamamos de De-

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mônio Feminino. Vou descer até a aldeia próxi-ma para chamar um lenhador que irá lhe explicar como deve ser feito o caminho.

A noite já tinha começado a descer, Katsu-ra desapareceu na bruma, e eu fiquei ali, esperan-do que o Demônio Feminino abrisse a porta.

O lenhador e o demônio

Num albergue perdido na montanha, a se-nhora que chamam de Demônio Feminino, ves-tida com um quimono negro, veio me receber. Tirei os sapatos, entrei no quarto tradicional ja-ponês, e descobri que jamais conseguiria dormir com o frio que fazia. Solicitei à interprete que pedisse um aquecedor; a velha japonesa, com um olhar de desdém, disse que eu precisava me acos-tumar com Shugêndo.

- Shugêndo?

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Mas a mulher já havia desaparecido, dan-do instruções para que fossemos jantar logo. Em menos de cinco minutos estávamos sentados em torno de uma espécie de fogueira cavada no chão, com um caldeirão pendendo do teto, e peixes em espetos colocados ao redor. Logo depois chegou Katsura, minha guia, e o lenhador.

- Ele sabe tudo sobre o caminho - disse Katsura. - Pergunte o que quiser.

- Antes de falar, vamos beber - disse o le-nhador. - o sakê em quantidade certa (uma es-pécie de vinho japonês, feito de arroz) afasta os maus espíritos.

- Afasta os maus espíritos?

- A bebida fermentada está viva, vai da ju-ventude à velhice. Quando chega à maturidade, é capaz de destruir o Espírito da Inibição, o Espí-rito da Falta de Relações Humanas, o Espírito do

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Medo, o Espírito da Ansiedade. Porém, se bebida além da conta, ela se rebela e traz o Espírito da Derrota e da Agressão. Tudo é uma questão de saber o ponto que não se deve ultrapassar.

Bebemos sakê, e comemos os peixes que assavam em volta do fogo. A dona da pousada juntou-se a nós. Perguntei porque a chamavam de Demônio Feminino.

- Porque ninguém sabe onde nasci, de onde venho, qual a minha idade. Decidi ser uma mulher sem história, já que meu passado só me trouxe dor; duas bombas atômicas explodindo em meu país, o fim dos valores morais e espiri-tuais, o sofrimento com as pessoas desapareci-das. Um belo dia, resolvi começar uma nova vida; existem certas tragédias que não entenderemos nunca. Então deixei tudo para trás, e vim parar nesta montanha. Ajudo os peregrinos, cuido do albergue, vivo cada dia como se fosse o último. E me divirto ao conhecer todos os dias pessoas

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diferentes. Sempre conheço pessoas estranhas - como você, por exemplo. Nunca tinha visto um brasileiro em minha vida. Também nunca tinha visto um negro até 1985.

Bebemos mais sakê, o Espírito da Falta de Relações Humanas parecia ter sido afastado. Fa-lei muito do Brasil, e comecei a me sentir estra-nhamente em casa.

- Por que as pessoas vinham até Kumano? - perguntei ao lenhador.

- Para pedir algo, pagar uma promessa, ou querer mudar sua vida. Os budistas percorriam os 99 lugares sagrados que estão espalhados por aqui, e os xintoístas visitavam os três templos da Mãe Terra.No caminho encontravam outras pes-soas, dividiam problemas e alegrias, rezavam jun-tos, e terminavam por entender que não estavam sozinhos no mundo. E praticavam shugêndo

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Lembrei-me do que o Demônio Feminino me dissera, e pedi que me explicasse o que era aquilo.

- Difícil explicar. Mas digamos que é uma relação total com a natureza: de amor e de dor.

- Dor?

- Para dominar a alma, você tem que apren-der também a dominar o corpo. E para dominar o corpo, você não pode ter medo da dor.

Ele contou-me que, de vem em quando, ia com um amigo para um dos precipícios próxi-mos, atava uma corda na cintura, e ficava pendu-rado no espaço vazio. O amigo balançava a corda até que ele se chocasse várias vezes com a rocha; quando sentia que estava a ponto de desmaiar, fazia um sinal e era de novo içado.

- O homem tem que conhecer a natureza

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em todos os seus aspectos - disse o lenhador. - Sua generosidade e sua inclemência; só desta ma-neira era é capaz de nos ensinar o que sabe, e não apenas o que queremos aprender.

Sentado em volta daquela fogueira, num albergue perdido no meio do Japão, o sakê afas-tando as distâncias, o Demônio Feminino rindo para (ou de) mim, eu entendi a verdade das pa-lavras do lenhador: era preciso aprender o que necessitava, e não apenas o que queria. Naquele momento, decidi que iria achar uma maneira de praticar Shugêndo no caminho de Kumano.

Encostado na árvore

- Já ouviu falar em shugêndo? Disseram-me que é uma relação de amor e dor com a na-tureza - comento com o biólogo que Katsura me apresentou, e que agora caminha comigo pelas montanhas.

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- Shugêndo significa: “o caminho da arte de acumulação de experiência” - responde ele, mos-trando que seu interesse vai além da variedade dos insetos da região - Disciplinar seu corpo para aceitar tudo que a natureza tem para oferecer; assim você também educa sua alma para o que Deus nos oferece. Olhe a sua volta: a natureza é mulher, e como toda mulher, nos ensina de uma maneira diferente. Encoste sua coluna vertebral na árvore.

Ele me aponta um cedro de mais de dois mil anos, com uma grossa corda estendida a sua volta. Na religião local, tudo que está circundado por uma corda é uma manifestação especial da Deusa da Criação, e considerado um lugar sagra-do.

- Tudo que é vivo contem energia, e esta energia se comunica entre si. Se você mantém sua coluna encostada no tronco, o espírito que habita a árvore irá conversar com o seu espíri-

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to, e tranqüilizá-lo de qualquer aflição. Claro que, como biólogo, devo dizer que a emanação de ca-lor, etc... mas sei que também existe verdade na explicação mágica dos meus antepassados.

Eu estou de olhos fechados, e procuro ima-ginar a seiva da árvore subindo das raízes até as folhas, e ao fazer este movimento, provocando uma onda de energia que afeta tudo ao redor.

Ouço a voz do biólogo me contando que, no ano 1185, dois samurais lutavam ferozmente pelo poder no Japão. O governador de Kumano não sabia quem iria vencer, certo que a natureza sempre tem a resposta, colocou sete galos ves-tidos de vermelho para lutar contra outros sete vestidos de branco. Ganharam os de branco, o governador apoiou um dos guerreiros, e fez a aposta certa: em pouco tempo, aquele samurai dominava o país. - Agora me diga: você prefere acreditar que o apoio do governador que decidiu a luta, ou os

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galos, representando a natureza, deram o sinal di-vino sobre quem terminaria conquistando o po-der?

- Eu acredito em sinais - respondo, saindo mentalmente do meu confortável estado vegetal, e abrindo os olhos.

- As viagens sagradas a Kumano começa-ram muito antes da introdução do budismo no Japão; até hoje existem por aqui homens e mu-lheres que passam, de geração em geração, a idéia de que um “casamento” com tudo que está a sua volta deve ser feito como um verdadeiro matri-mônio: com entrega, alegrias, sofrimentos, mas sempre juntos. Utilizavam o Shugêndo para per-mitir esta entrega total, sem medo.

- Você pode me ensinar um exercício de Shugêndo? O único que sei é amarrar-se numa corda e atirar-se contra as rochas de um despe-nhadeiro; francamente, não tenho coragem para

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isso.

- Por que você quer aprender?

- Porque sempre considerei que o caminho espiritual não envolve necessariamente o sacri-fício e a dor. Mas, como disse alguém que en-contrei nesta viagem, é preciso aprender o que se precisa, não o que se quer.

- Cada um faz o exercício que a Terra pedir; conheço um homem que subiu e desceu mil ve-zes, durante mil dias, uma montanha perto daqui. Se a Deusa quiser que você pratique Shugêndo, ela lhe dirá como fazer.

Ele tinha razão. No dia seguinte, isso acon-teceu.

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O limite da dor

Estamos no alto de uma montanha, ao lado de uma coluna de pedra com algumas inscrições. Lá de cima, posso divisar um templo no meio da floresta.

- Esse é um dos três santuários que o pere-grino precisa visitar, e quando chega aqui, sente uma imensa alegria ao saber que já está perto de um deles - diz Katsura. - Segundo a tradição, ne-nhuma mulher podia passar deste ponto, se esti-vesse em seu período menstrual. Certa vez, uma poetisa veio até aqui, viu o templo, mas por cau-sa da menstruação, não podia seguir. Entendeu que não teria forças para esperar quatro dias sem comer, e resolveu voltar sem atingir seu objeti-vo. Escreveu uma poesia agradecendo os dias de caminhada, preparou-se para a volta na manhã seguinte, e deitou-se para dormir.

“A Deusa então apareceu nos seus sonhos.

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Disse que podia seguir adiante, porque seus ver-sos eram lindos; como você vê, até os deuses mu-dam de opinião por causa de belas palavras. A coluna de pedra tem sua poesia escrita.”

Katsura e eu começamos a caminhar os cinco quilômetros que nos separam do templo. De repente me vêm à memória as palavras do biólogo que conhecera: “ se a Deusa quiser que você pratique Shugêndo- o caminho da arte da acumulação de experiência - ela lhe mostrará o que fazer.”

- Vou tirar os sapatos - digo para Katsura.

O chão é pedregoso, o frio é cortante, mas Shugêndo é a comunhão com a natureza em to-dos os seus aspectos, inclusive o da dor física. Katsura também tira os sapatos; começamos a andar.

Logo no primeiro passo, uma pedra pon-

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tiaguda entra no meu pé, e sinto que cortou fun-do. Reprimo o grito, e continuo. Dez minutos depois estou andando na metade da velocidade do começo, o pé ferido dói cada vez mais, e eu penso por um momento que ainda tenho muito que viajar, posso ter uma infecção, meus editores me esperam em Tokyo, há entrevistas e encon-tros marcados. Mas a dor logo afasta estes pen-samentos, decido dar mais um passo, outro mais, e seguir adiante até onde for possível. Penso nos muitos peregrinos que passaram por ali pratican-do Shugêndo, sem comer por muitas semanas, sem dormir por muitos dias. Mas a dor não me deixa ter pensamentos profanos ou nobres - é apenas dor, que ocupa todo o espaço, me assus-ta, me obriga a pensar que tenho um limite e não vou conseguir.

Mesmo assim, posso dar mais um passo, e mais outro. A dor agora parece invadir a alma, e me enfraquece espiritualmente, porque não sou capaz de fazer o que muita gente fez antes de

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mim. É um sofrimento físico e espiritual ao mes-mo tempo, não parece um casamento com a Mãe Terra, mas uma punição. Estou desorientado, não troco uma palavra sequer com Katsura, tudo que existe no meu universo é a dor de pisar nas pedras pequenas e cortantes que marcam a trilha por entre as árvores.

Então acontece uma coisa muito estranha: o sofrimento é tão grande que, num mecanismo de defesa, eu pareço flutuar acima de mim mes-mo, e ignorar o que estou sentindo. No limite da dor está uma porta para um nível diferente de consciência, e já não há espaço para mais nada, apenas para a natureza e eu.

Agora já não sinto mais a dor, estou em um estado letárgico, os pés continuam a seguir o caminho automaticamente, e eu entendo que o limite da dor não é o meu limite; posso ir além. Penso em todos que sofrem sem pedir, e me sin-to ridículo em estar me flagelando desta manei-

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ra, mas aprendi a viver assim - experimentando a grande maioria das coisas que estão diante de mim.

Quando finalmente paramos, tomo cora-gem de olhar para os meus pés e ver as feridas abertas. A dor, que estava escondida, volta de novo com força; acho que a viagem acabou ali, não poderei mais andar por muitos dias. Qual a minha surpresa ao descobrir, no dia seguinte, que tudo está cicatrizado; a Mãe Terra sabe como cui-dar dos seus filhos.

E as cicatrizes vão mais além do corpo físi-co; muitas feridas que estavam abertas na minha alma foram expulsas pela dor que senti, enquan-to andava pela estrada de Kumano em direção a um templo que não me recordo o nome. Existem certos sofrimentos que só conseguem ser esque-cidos quando podemos flutuar acima de nossas dores.

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O monge e a mensagem

Estamos no local privado de um templo budista. Escutamos o monge cantar, rezar em voz alta, tocar um instrumento de percussão. Lembro-me das outras vezes que pratiquei Shu-gêndo durante estes dias: andar sem agasalho numa temperatura abaixo de zero, ficar acordado durante uma noite inteira, manter a testa encos-tada na casca áspera de uma árvore até que a dor se deixasse anestesiar por si mesma.

Durante toda a viagem, as pessoas diziam que o monge que tenho à minha frente recitan-do as preces é o maior especialista de Shugêndo da região. Procuro me concentrar, mas aguardo ansioso o final da cerimônia. Dali saímos para outro edifício, de onde posso ver uma gigantesca cachoeira descendo montanha abaixo - 134 me-tros de altura, a maior do Japão.

Para minha surpresa (e de todos que estão

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comigo), o monge traz três livros que escrevi, e pede que os autografe. Eu aproveito para pedir autorização para gravar nossa conversa. O mon-ge, que não para de sorrir, diz que sim.

- Foi a dificuldade do caminho de Kumano que criou o Shugêndo?

- Foi a necessidade de entender a nature-za que obrigou o homem a dominar a dor e ir além dos seus limites. Há 1.300 anos, um mon-ge que tinha dificuldade de se concentrar, desco-briu que o cansaço e superação dos obstáculos físicos podiam ajudá-lo na meditação. O monge ficou fazendo este caminho até morrer; subindo e descendo montanhas, ficando sem agasalho na neve, entrando todos os dias numa cachoeira gelada para meditar. Como se transformou num ser iluminado, as pessoas resolveram seguir o seu exemplo.

- O Shugêndo é uma prática budista?

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- Não. É uma série de exercícios de resis-tência física, que ajudam a alma a caminhar junto com o corpo.

- Se pudesse resumir numa frase o que sig-nifica o Shugêndo e o caminho de Kumano, qual seria esta frase?

- Quem faz exercício físico, ganha experi-ência espiritual, se tiver sua mente fixa em Deus enquanto está exigindo o máximo de seu corpo.

- Até que ponto a dor física é importante?

- Ela tem um limite. Passando o limite da dor, o espírito se fortalece. Os desejos da vida cotidiana perdem o sentido, e o homem se puri-fica. O sofrimento vem do desejo, e não da dor.

O monge sorri, pergunta se quero ver a cascata de perto - e com isso entendo que nossa conversa está terminada. Antes de sair, ele se vira

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para mim:

- Não esqueça: procure ganhar todas as suas batalhas, inclusive àquelas que você trava com você mesmo. Não tenha medo de cicatrizes. Não tenha medo de vencer.

No dia seguinte, quando estou prestes a em-barcar, Katsura - a jovem de 29 anos que esteve pre-sente desde o primeiro dia em Kumano - aparece no aeroporto e me entrega um pequeno manuscrito em japonês, com alguns dados históricos sobre Ku-mano. Eu abaixo a cabeça e peço que me abençoe. Ela não hesita um segundo sequer: diz algumas pa-lavras em japonês, e quando levanto os olhos, vejo em seu rosto o sorriso de uma jovem que escolheu ser guia de um caminho que ninguém conhece, que aprendeu a dominar uma dor que nem todos vão sentir, que entende que o caminho é feito quando se anda, e não quando se pensa sobre ele.

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As qualidades

Um guerreiro da luz tem as qualidades de uma rocha.

Quando está em terreno plano - tudo a sua volta encontrou a harmonia - ele se mantém es-tável. As pessoas podem construir suas casas em cima do que foi criado por ele, porque a tempes-tade não será destruidora.

Quando, porém, o colocam em terreno in-clinado - e as coisas a sua volta não demonstram qualquer respeito ou equilíbrio por seu trabalho- ele revela sua força, rolando em direção ao inimi-

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go que ameaça a paz . Nestes momentos, o guer-reiro é devastador, e ninguém consegue dete-lo.

Um guerreiro da luz pensa na guerra e na paz ao mesmo tempo, e sabe agir de acordo com as circunstâncias

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Pagando três vezes pelamesma coisa

Conta uma lenda da região do Punjab, que um ladrão entrou numa fazenda e roubou duzen-tas cebolas. Antes de conseguir fugir, foi preso pelo dono do lugar, que o levou diante do juiz.

O magistrado pronunciou a sentença: pagar dez moedas de ouro. Mas o homem alegou que era uma multa muito alta, e o juiz, então, resolveu oferecer-lhe mais duas alternativas; receber vinte chibatadas, ou comer as duzentas cebolas.

O ladrão resolveu comer as duzentas ce-bolas. Quando chegou na vigésima-quinta, seus olhos estavam inchados de tanto chorar, e o estô-mago queimava como o fogo do inferno. Como

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ainda faltavam 175, e viu que não aguentaria o castigo, e pediu para receber as vinte chibatadas.

O juiz concordou. Quando o chicote ba-teu em suas costas pela décima vez, ele implo-rou para que parassem de castiga-lo, porque não suportava a dor. O pedido foi obedecido, mas o ladrão teve que pagar as dez moedas de ouro.

- Se você aceitasse a multa, teria evitado comer as cebolas, e não sofreria com o chicote - disse o juiz. - Mas preferiu o caminho mais difícil, sem entender que, quando se faz algo errado, é melhor pagar logo e esquecer o assunto.

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Nasrudin e o ovo

Certa manhã, Nasrudin - o grande místico sufi que sempre fingia ser louco - colocou um ovo embrulhado em um lenço, foi para o meio da praça de sua cidade, e chamou aqueles que es-tavam ali.

- Hoje teremos um importante concurso! - disse - Quem descobrir o que está embrulhado neste lenço, eu dou de presente o ovo que está dentro!

As pessoas se olharam, intrigadas, e res-ponderam:

- Como podemos saber? Ninguém aqui é capaz de fazer adivinhações!Nasrudin insistiu:

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- O que está neste lenço tem um centro que é amarelo como uma gema, cercado de um líqui-do da cor da clara, que por sua vez está contido dentro de uma casca que quebra facilmente. É um símbolo de fertilidade, e nos lembra dos pás-saros que voam para seus ninhos. Então, quem pode me dizer o que está escondido?

Todos os habitantes pensavam que Nasru-din tinha em suas mãos um ovo, mas a resposta era tão óbvia, que ninguém resolveu passar ver-gonha diante dos outros.E se não fosse um ovo, mas algo muito impor-tante, produto da fértil imaginação mística dos sufis? Um centro amarelo podia significar algo do sol, o líquido ao redor talvez fosse um pre-parado alquímico. Não, aquele louco estava que-rendo fazer alguém de ridículo.

Nasrudin perguntou mais duas vezes, e ninguém se arriscou a dizer algo impróprio.Então ele abriu o lenço e mostrou a todos o

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ovo.

- Todos vocês sabiam a resposta - afirmou. - E ninguém ousou traduzi-la em palavras.

«É assim a vida daqueles que não tem cora-gem de arriscar: as soluções nos são dadas gene-rosamente por Deus, mas estas pessoas sempre procuram explicações mais complicadas, e termi-nam não fazendo nada.»

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O mundo segundo os feiticeiros mexicanos

A grande maioria das tradições espirituais existentes nas Américas antes da chegada de Co-lombo, tem conseguido - milagre dos milagres! - preservar suas raízes. Ou seja, foram mais fortes que as civilizações que estavam aqui, e logo su-cumbiram aos conquistadores. Dentre elas, o xa-manismo mexicano, ainda praticado por muitas tribos locais, é uma das mais estudadas; diversos antropólogos fizeram sérios estudos sobre a ma-neira como os feiticeiros entendiam a presença de Deus e a busca espiritual. A seguir, alguns dos aspectos desta compreensão do universo, retira-dos de diversas fontes:

1] A ausência da história pessoal: para que

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os ritos mágicos consigam passar de geração em geração, o feiticeiro (ou xamã) deve esquecer tudo aquilo que aprendeu antes de iniciar-se na magia. Segundo a tradição, um homem ou mulher que está preso ao seu passado, termina deixando go-vernar-se pela maneira de pensar de seus pais, ou a sociedade em que vive. Por isso, todo iniciado escolhe um novo nome, e procura livrar-se de lembranças, boas ou más.

2] O processo de esquecimento: para po-der abandonar a história que viveu, o feiticeiro passa meses seguidos recordando, nos menores detalhes, cada um dos eventos de sua vida. Al-gumas tradições pedem que ele fique horas a fio contando em voz alta, para um copo cheio de água, tudo que aconteceu em cada encontro com cada pessoa; assim, a experiência sai da memória e vai para a água - que em seguida é atirada em um rio. Desta maneira, a cabeça fica “vazia”, e pode começar a ser preenchia com novas coisas.

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3] O silêncio interior: uma vez livre de seus pensamentos antigos, o feiticeiro concentra-se no silêncio interior, e espera que os espíritos comecem a contar a verdadeira história do Uni-verso. Este silêncio, junto com a ausência de lem-branças passadas, dá ao feiticeiro a sensação de liberdade total para entender um novo mundo.

4] A teia: quando começa a entender seu novo universo, ele entra numa espécie de transe, e “vê” que tudo a nossa volta é uma gigantesca teia de filamentos luminosos, totalmente ligados - ou seja, tudo é uma coisa só, e parte da mesma energia. Às vezes, estes filamentos luminosos se condensam sob a forma de ovo, e isso significa que ali está a alma de um ser humano (Carlos Castaneda explica bem esta visão em seu livro “Uma estranha realidade”).

5] O encontro com o poder: olhando o seu próprio “ovo de luz”, o feiticeiro nota um ponto, que deve se encaixar com os filamentos

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luminosos capazes de conduzir a energia do po-der. Esta energia, embora possa ser usada pelo feiticeiro, não pode ser manipulada - ele tem que saber conduzi-la suavemente para o seu aprendi-zado. Aproximar-se deste ponto de encaixe é o trabalho mais difícil da iniciação, e exige silencio, meditação, e perseverança.

6] A energia negativa: algumas destes fios de luz conduzem fluidos destruidores, emitidos por outros feiticeiros - que não buscam o conhe-cimento, mas o controle da alma dos outros.

7] o “acomodador”: existe sempre um evento em nossas vidas que é responsável pelo fato de termos parado de progredir. Um trauma, uma derrota especialmente amarga, uma desi-lusão amorosa, termina fazendo com que nos acovardemos, e não sigamos adiante. O xamã, no processo de esquecimento de sua história pes-soal, precisa primeiro livrar-se deste “ponto aco-modador”.

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Para os feiticeiros mexicanos (e, curiosa-mente, também para algumas correntes budistas) a morte entra pela região próxima ao umbigo. Neste momento, o “ovo de luz” se desfaz, e os filamentos que estavam ali concentrados se mis-turam com a energia do universo, até se reagru-parem de novo sob uma forma diferente.

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Aprendendo a escolher

Santo Antão vivia no deserto, quando se aproximou um jovem:

- Padre, vendi tudo que tinha e dei aos po-bres. Guardei apenas ums poucas coisas para me ajudar a sobreviver aqui. Gostaria que me ensi-nasse o caminho da salvação.Santo Antão pediu que o rapaz vendesse as pou-cas coisas que havia guardado, e - com o dinheiro - comprasse carne na cidade. Na volta, devia tra-zer a carne amarrada em seu corpo.

O rapaz obedeceu. Ao voltar, foi atacado por cachorros e falcões, que queriam um pedaço da carne.

- Eis-me de volta - disse o rapaz, mostran-

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do o corpo arranhado, mordido, e as roupas em frangalhos. Por que me mandou fazer isso.

- Para mostrar que o que trouxe do seu pas-sado, não serve no seu presente. Quando tiver que escolher um novo caminho, não traga expe-riências velhas. Aqueles que dão um passo novo, mas querem manter um pouco da antiga vida, terminam dilacerados pelas próprias lembranças.

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Mudando a atitude

Um abade do mosteiro de Sceta foi procu-rado por um jovem que queria seguir o caminho espiritual.

- Pelo período de um ano, pague uma moe-da quem lhe agredir - disse o abade.Durante doze meses, o rapaz pagava uma moeda sempre que era agredido.No final do ano, voltou ao abade, para saber o próximo passo.

- Vá até a cidade comprar comida para mim.Assim que o rapaz saiu, o abade disfarçou-se de mendigo e - tomando um atalho que conhecia - foi até a porta da cidade. Quando o rapaz se aproximou, começou a insulta-lo.

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- Que bom! - comentou o rapaz com o fal-so mendigo. - Durante um ano inteiro tive que pagar a todos que me agrediam, e agora posso ser agredido de graça, sem gastar nada!

Ouvindo isto, o abade retirou seu disfarce.

- Quem é capaz de não se importar com que os outros dizem, é um homem que está no caminho da sabedoria. Você já não leva os insul-tos a sério, e portanto está pronto para o próximo passo.

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Não importa fingir-se de tolo

O mullah Nasrudin (personagem central de quase todas as histórias da tradição sufi) já se havia transformado numa espécie de atração da feira principal da cidade. Quando se dirigia até ali para pedir esmolas, as pessoas costumavam lhe mostrar uma moeda grande, e uma pequena: Nasrudin sempre escolhia a pequena.

Um senhor generoso, cansado de ver as pessoas rirem de Nasrudin, explicou-lhe:

“Sempre que lhe oferecerem duas moedas, escolha a maior. Assim terá mais dinheiro, e não será considerado idiota pelos outros.”

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“O senhor deve ter razão”, respondeu Nasrudin. “Mas se eu sempre escolher a moeda maior, as pessoas vão deixar de me oferecer din-heiro, para provar que sou mais idiota que elas. E, desta maneira, não poderei mais ganhar meu sustento. Não há nada de errado em se passar por tolo, se na verdade o que você está fazendo é inteligente”.

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Somostodos responsáveis

A comitiva passou pela rua; soldados for-temente armados levavam um condenado para a forca.

«Este homem não prestava», comentou um discípulo com Nasrudin. «Uma vez dei-lhe uma moeda de prata para ajudá-lo a levantar-se de novo na vida, e ele não fez nada de importante.»

«Talvez ele não preste, mas pode estar ago-ra caminhando para forca por sua causa», contes-tou o mestre. «É possível que tenha utilizado a esmola para comprar um punhal, que terminou usando no crime cometido; então, suas mãos também estão ensangüentadas - porque, ao invés

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de ajudá-lo com amor e carinho, preferiu dar-lhe uma esmola e livrar-se de sua obrigação».

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Cada coisa em seu lugar

A festa reuniu todos os discípulos de Nasrudin. Comeram e beberam por muitas ho-ras, e conversaram sobre a origem das estrelas. Quando já era quase madrugada, todos se prepa-raram para voltar as suas casas.

Restava um belo prato de doces sobre a mesa: Nasrudin obrigou os seus discípulos a come-lo.

Um deles, porém, se recusou.

«O mestre está nos testando» disse. «Quer ver se conseguimos controlar nossos desejos».

«Você esta enganado», respondeu Nasru-din. «A melhor maneira de dominar um desejo, é

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vê-lo satisfeito. Prefiro que vocês fiquem com o doce no estômago - que é seu verdadeiro lugar - do que no pensamento, que deve ser usado para coisas mais nobres.»

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O passageiro eo definitivo

Todos os caminhos do mundo levam ao co-ração do guerreiro; ele mergulha sem hesitar no rio de paixões que sempre corre por sua vida.

O guerreiro sabe que é livre para escolher o que desejar; suas decisoes são tomadas com co-ragem, desprendimento, e - as vezes - com uma certa dose de loucura.

Aceita suas paixões, e as desfruta intensa-mente. Sabe que não é preciso renunciar ao entu-siasmo das conquistas; elas fazem parte da vida, e alegra a todos que delas participam.

Mas jamais perde de vista as coisas dura-

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douras, e os laços criados com solidez através do tempo.

Um guerreiro sabe distinguir o que é passa-geiro, e o que é definitivo.

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Um tipo de estratégia

Comenta um sábio chinês sobre as estraté-gias do guerreiro da luz:

«Faça seu inimigo acreditar que não conse-guirá grandes recompensas se decidir ataca-lo; desta maneira, voce diminuirá seu entusiasmo».

« Não tenha vergonha de retirar-se provi-soriamente do combate, se perceber que o inimi-go está mais forte; o importante não é a batalha isolada, mas o final da guerra».

« Se voce estiver bastante forte, tampouco tenha vergonha de fingir-se de fraco; isto faz seu inimigo perder a prudência, e atacar antes da hora.»

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«Numa guerra, a capacidade de surpreen-der o adversário é a chave da vitória».

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Quando arriscar

Um guerreiro da luz, antes de entrar num combate importante, pergunta a si mesmo: «até que ponto desenvolvi minha habili-dade?»

Ele sabe que as batalhas que travou no passado sempre terminaram por ensinar alguma coisa. Entretanto, muitos destes ensinamentos fi-zeram o guerreiro sofrer além do necessário. Em mais de uma vez, ele perdeu seu tempo, lutando por uma mentira.

Mas os vitoriosos não repetem o mesmo erro.

Um guerreiro não pode recusar a luta; mas sabe também que não deve arriscar sentimentos

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importantes, em troca de recompensas que não estão a altura do seu amor.

Por isso o guerreiro só arrisca seu coração por algo que vale a pena.

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Pertencendo ao mundo

Os guerreiros da luz mantém o brilho nos olhos.

Estão no mundo, fazem parte da vida de outras pessoas, e começaram sua jornada sem al-forge e sem sandálias. Muitas vezes são covardes. Nem sempre agem certo.

Os guerreiros da luz sofrem por coisas inú-teis, tem atitudes mesquinhas, e as vezes se jul-gam incapazes de crescer. Frequente-mente acre-ditam-se indignos de qualquer benção ou mila-gre.

Os guerreiros da luz nem sempre tem cer-teza do que estão fazendo aqui. Muitas vezes pas-sam noites em claro, achando que suas vidas não

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tem sentido.

Por isso são guerreiros da luz. Porque er-ram. Porque se perguntam. Porque procuram uma razão - e com certeza vão encontra-la.

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O melhor e o pior

Diz um poeta: “o guerreiro da luz escolhe seus inimigos.”

O guerreiro sabe do que é capaz. Não pre-cisa sair pelo mundo contando suas qualidades e virtudes. Entretanto - como no velho Oeste - a todo momento aparece alguém querendo provar que é melhor que ele.

O guerreiro sabe que não existe “melhor” ou “pior”: cada um tem os dons necessários para o seu caminho individual.

Mas certas pessoas insistem. Provocam, ofendem, fazem de tudo para irrita-lo. Neste momento, o coração do guerreiro diz: “não aceite as ofensas, elas não vão aumentar

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a sua habilidade. Voce vai se cansar a toa”.

Um guerreiro da luz não perde seu tempo escutando provocações; ele tem um destino a ser cumprido.

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Usandoa própria loucura

Um guerreiro da luz estuda com muito cui-dado a posição que pretende conquistar.

Por mais difícil que seja o seu objetivo, sempre existe uma maneira de superar os obstá-culos. Ele verifica os caminhos alternativos, afia sua espada, e procura encher seu coração da per-severança necessária para enfrentar o desafio.

Mas, a medida que avança, o guerreiro se dá conta que existem dificuldades com as quais não contava.

Se ficar esperando o momento ideal, nunca sairá do lugar; vê que será preciso um pouco de

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loucura para dar um próximo passo.

O guerreiro usa um pouco de loucura. Por-que - na guerra e no amor - não é possível prever tudo.

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Seguindo adiante

O guerreiro da luz nem sempre tem fé. Há momentos em que não crê em aboslutamente nada.

E pergunta ao seu coração: «Será que vale a pena tanto esforço?»

Mas o coração continua calado. E o guer-reiro tem que decidir por si mesmo.

Então ele procura um exemplo. E lembra-se que Jesus passou por algo semelhante - para poder viver a condição humana em toda a sua plenitude.

«Afasta de mim este cálice», disse Jesus. Também ele perdeu o ânimo e a coragem, mas

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não parou.

O guerreiro da luz continua sem fé.

Mas segue adiante assim mesmo, e a fé ter-mina voltando.

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Isaac morre

Certo rabino era adorado por sua comuni-dade; todos ficavam encantados com o que di-zia.

Menos Isaac, que não perdia uma chance de contradizer as interpretaçoes do rabino, apon-tar falhas em seus ensinamentos. Os outros fica-vam revoltados com Isaac, mas não podiam fazer nada.

Um dia, Isaac morreu. Durante o enterro, a comunidade notou que o rabino estava profun-damente triste.

- Por que tanta tristeza? - comentou al-guém. - Ele vivia colocando defeito em tudo que o senhor dizia!

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- Não lamento por meu amigo que hoje esta’ no céu - respondeu o rabino. - Lamento por mim mesmo. Enquanto todos me reverenciavam, ele me desafiava, e eu era obrigado a melhorar. Agora que ele se foi, tenho medo de parar de crescer.

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Perdoandono mesmo espírito

O rabi Nahum de Chernobyl vivia sendo ofendido por um comerciante. Um dia, os negó-cios deste último começaram a andar muito mal.

«Deve ser o rabino, que está pedindo vin-gança a Deus», pensou. E foi pedir desculpas a Nahum.

- Eu o perdôo com o mesmo espírito que voce me pede perdão - respondeu o rabino.

Mas as perdas do homem cresceram cada vez mais, ate’ que ele ficou reduzido a miséria. Os discípulos de Nahum, horrorizados, foram per-guntar o que tinha acontecido.

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- Eu o perdoei, mas ele continuou me odiando no fundo de seu coração - disse o ra-bino.

- Então, seu ódio contaminou tudo que fa-zia, e a punição de Deus tornou-se ainda mais severa.

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De árvores e cidades

No deserto de Mojave, é freqüente encon-tramos as famosas cidades-fantasmas: construídas perto de minas de ouro; eram abandonadas quan-do todo o produto da terra tinha sido extraído. Haviam cumprindo seu papel, e não tinha mais sentido continuar sendo habitadas.

Quando passeamos por uma floresta, tam-bém vemos árvores que - uma vez cumprido seu papel, terminaram caindo. Mas, diferente das cidades-fantasmas, o que aconteceu? Abriram espaço para que a luz penetrasse, fertilizaram o solo, e tem seus troncos cobertos de vegetação nova.

As nossa velhice vai depender da maneira que vivemos. Podemos terminar como uma ci-

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dade - fantasma. Ou então como uma generosa árvore, que continua a ser importante, mesmo depois de caída por terra.

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O sentido da verdade

Em nome da verdade, a raça humana come-teu seus piores crimes. Homens e mulheres fo-ram queimados. A cultura de civilizações inteiras foi destruída. Os que procuravam um caminho diferente eram marginalizados.

Um deles, em nome da «verdade», termi-nou crucificado. Mas - antes de morrer - deixou a grande definição da Verdade.

Não é o que nos dá certezas.

Não é o que nos dá profundidade.

Não é o que nos faz melhor que os outros.

Não é o que nos mantém na prisão dos

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preconceitos.

A verdade é o que nos dá a liberdade. «Co-nhecereis a Verdade, e a verdade vos libertará», disse Jesus.

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Sobre o ritmo eo Caminho

- Faltou algo em sua palestra sobre o Ca-minho de Santiago - me diz uma peregrina, assim que saímos da Casa de Galicia, em Madrid, onde minutos antes eu acabara de dar uma conferên-cia.

Deve ter faltado muita coisa, pois minha in-tenção ali era de apenas compartilhar um pouco minha experiência. Mesmo assim, convido-a para tomar um café, curioso em saber o que ela consi-dera como uma omissão importante.

E Begoña - este é seu nome - me diz:

- Tenho notado que a maioria dos peregri-

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nos, seja no Caminho de Santiago, seja nos ca-minhos da vida, sempre procura seguir o ritmo dos outros.

“No início de minha peregrinação, procu-rava ir junto com meu grupo. Me cansava, exigia de meu corpo mais do que podia dar, vivia tensa, e terminei tendo problemas nos tendões do pé esquerdo. Impossibilitada de andar por dois dias, entendi que só conseguiria chegar a Santiago se obedecesse meu ritmo pessoal.

“Demorei mais que os outros, tive que andar sozinha por muitos trechos ~ mas foi só porque respeitei meu próprio ritmo que consegui completar o caminho. Desde então aplico isso a tudo que preciso fazer na vida: respeito o meu tempo”.

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Tudo vira pó

As festas de Valência, na Espanha, têm um curioso ritual, cuja origem está na antiga comuni-dade dos carpinteiros.

Durante o ano inteiro, artesãos e artistas constróem esculturas gigantescas em madeira. Na semana de festa, levam estas esculturas para o centro da praça principal. As pessoas passam, comentam, se deslumbram e se comovem diante de tanta criatividade. Então, no dia de São José, todas estas obras de arte - exceto uma - são quei-madas numa gigantesca fogueira, diante de mil-hares de curiosos.

- Por que tanto trabalho a toa? - perguntou uma inglesa ao meu lado, enquanto as imensas labaredas subiam aos céus.

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- Você também vai acabar um dia - respon-deu uma espanhola. - Já imaginou se, neste mo-mento, algum anjo perguntasse a Deus: «porque tanto trabalho a toa?»

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Pedindo esmolas

Faz parte do treinamento dos monges zen-budistas uma prática conhecida como takuhatsu - a peregrinação para mendigar. Além de ajudar os mosteiros que vivem de doações e forçar o discípulo a ser humilde, esta prática tem ainda um outro sentido: purificar a cidade onde mora.

Isto porque - segundo a filosofia Zen - o doador, o pedinte, e a própria esmola fazem par-te de uma importante cadeia de equilíbrio.

Aquele que pede, assim o faz porque está precisando; mas aquele que dá, age desta maneira porque também está precisando.

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A esmola serve como a ligação entre duas necessidades, e o ambiente da cidade melhora, já que todos puderam realizar ações que precisavam ter acontecido.

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Agindo no impulso

O padre Zeca, da Igreja da Ressureição em Copacabana, conta que estava num ônibus, e de repente escutou uma voz dizendo que ele devia levantar-se e pregar a palavra de Cristo ali mes-mo.

Zeca começou a conversar com a voz: «vão me achar ridículo, isto não é lugar para sermão», disse. Mas algo dentro dele insistia era preciso falar. «Sou tímido, por favor não me peça isto», implorou.

O impulso interior persistia.

Então ele lembrou-se de sua promessa - abandonar-se a todos os designos de Cristo. Le-vantou - morrendo de vergonha - e começou a

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falar do Evangelho. Todos escutaram em silên-cio. Ele olhava cada passageiro, e eram raros os que desviavam os olhos. Disse tudo que sentia, terminou seu sermão, e sentou-se de novo.

Até hoje não sabe que tarefa cumpriu na-quele momento. Mas tem absoluta certeza de que cumpriu uma tarefa.

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Preciso viverminhas graças

Preciso viver todas as graças que Deus me deu hoje. A graça não pode ser economizada. Não existe um banco onde depositamos as gra-ças recebidas, para utilizá-las de acordo com nos-sa vontade. Se eu não usufruir destas bênçãos, vou perde-las irremediavelmente.

Deus sabe que somos artistas da vida. Um dia nos dá formão para esculturas, outro dia pin-céis e tela, outro dia nos dá uma pena para escre-ver. Mas jamais conseguiremos usar formão em telas, ou penas em esculturas. A cada dia, o seu milagre. Preciso aceitar as bençãos de hoje, para criar o que tenho; se fizer isso com desapego e sem culpa, amanhã receberei mais.

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São Francisco,Estados Unidos

Caminho por um parque com meu editor americano, John Loudon, e sua mulher, Sharon. Podemos ver a cidade de São Francisco ao longe, iluminada pelo sol poente. Sharon escreveu um livro sobre um mosteiro beneditino, e conta que as orações da tarde, chamadas “vésperas”, são cantos de esperança pela certeza de que a noite passará.

- As vésperas nos indicam a necessidade que temos de nos aproximar do outro, quando a noite chega - diz ela. - Mas nossa sociedade es-queceu a importância desta aproximação, e finge prezar muito a capacidade que cada um tem de lidar com as próprias dificuldades. Não rezamos

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mais juntos; escondemos nossa solidão como se fosse vergonhoso admiti-la.

Sharon faz uma pausa, e conclui:

- Já fui assim. Até que um dia perdi o medo de depender do próximo, porque descobri que ele também estava precisando de mim.

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Limoges, França

Um aprendiz de ocultismo que conheço, na esperança de impressionar bem o seu mestre, leu alguns manuais de magia e resolveu comprar os materiais indicados nos textos.

Com muita dificuldade, conseguiu determi-nado tipo de incenso, alguns talismãs, uma estru-tura de madeira com caracteres sagrados escritos numa ordem determinada. Vendo isto, o mestre comentou:

- Você acredita que, enrolando fios de com-putador no pescoço, conseguirá ter a sabedoria da máquina? Acredita que, ao comprar chapéus e roupas sofisticadas, vai adquirir também o bom-gosto e a sofisticação de quem as criou? Aprenda a usar os objetos como aliados, não como guias.

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Kawaguchiko, Japão

Conheci a pintora Miie Tamaki durante um seminário sobre Energia Feminina. Perguntei qual a sua religião.

- Não tenho mais religião - ela respondeu.

Notando, a minha surpresa, explicou:

- Foi educada para ser budista. Os monges me ensinaram que o caminho espiritual é uma constante renúncia: temos que superar nossa in-veja, nosso ódio, nossas angústias de fé, nossos desejos.

“Consegui me livrar de tudo isto, até que um dia meu coração ficou vazio: os pecados ti-nham ido embora, e minha natureza humana

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também.

“No início fiquei contente, mas percebi que já não compartilhava das alegrias e paixões das pessoas à minha volta. Foi então que larguei a religião: hoje tenho meus conflitos, meus mo-mentos de raiva e de desespero, mas sei que estou de novo perto dos homens - e conseqüentemen-te perto de Deus”.

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Lourdes, França

Quando eu me encontrava fazendo o cami-nho de Roma, um dos quatro caminhos sagrados de minha tradição mágica, me dei conta - depois de quase vinte dias praticamente sozinho - que estava muito pior do que quando havia come-çado. Com a solidão, comecei a ter sentimentos mesquinhos, amargos, ignóbeis.

Procurei a guia do caminho, e comentei o fato. Disse que, ao iniciar aquela peregrinação, achei que ia me aproximar de Deus: entretanto, depois de três semanas, estava me sentindo mui-to pior.

- Você está melhor, não se preocupe - disse ela. - Na verdade, quando acendemos a luz inte-rior, a primeira coisa que vemos são as teias de

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aranha e a poeira, nossos pontos fracos. Já esta-vam ali, só que você não estava vendo nada, por-que estava escuro. Agora ficou mais fácil limpar sua alma.

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O cavalo perdido

Há muitos anos, numa pobre aldeia chine-sa, vivia um lavrador com seu filho. Seu único bem material, além da terra e da pequena casa de palha, era um cavalo que havia sido herdado de seu pai.

Um belo dia, o cavalo fugiu, deixando o homem sem o animal para lavrar a terra. Seus vizinhos - que o respeitavam muito por sua honestidade e diligência - vieram até sua casa para dizer o quanto lamentavam o ocorrido. Ele agradeceu a visita, mas perguntou:

- Como voces podem saber que o que ocor-reu foi uma desgraça na minha vida?

Alguém comentou baixinho com um ami-

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go: “ele não quer aceitar a realidade, deixemos que pense o que quiser, desde que não se entris-teça com o ocorrido”.

E os vizinhos foram embora, fingindo concordar com o que haviam escutado.

Uma semana depois, o cavalo retornou ao estábulo, mas não vinha sózinho; trazia uma bela égua como companhia. Ao saber disso, os habi-tantes da aldeia - alvoroçados, porque só agora entendiam a resposta que o homem lhes havia dado - retornaram à casa do lavrador, para cum-primenta-lo pela sua sorte.

- Você antes tinha apenas um cavalo, e ago-ra possui dois. Parabéns! - disseram.

- Muito obrigado pela visita e pela solida-riedade de voces - respondeu o lavrador. - Mas como voces podem saber que o que ocorreu é uma bençao na minha vida?

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Desconcertados, e achando que o homem estava ficando louco, o vizinhos foram embora, comentando no caminho “será que este homem não entende que Deus lhe enviou um presente?”

Passado um mes, o filho do lavrador resol-veu domesticar a égua. Mas o animal saltou de maneira inesperada, e o rapaz caiu de mau jeito - quebrando uma perna.

Os vizinhos retornaram à casa do lavrador - levando presentes para o moço ferido. O prefei-to da aldeia, solenemente, apresentou as condo-lências ao pai, dizendo que todos estavam muito tristes com o que tinha acontecido.

O homem agradeceu a visita e o carinho de todos. Mas perguntou:

- Como voces podem saber se o que ocor-reu foi uma desgraça na minha vida?

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Esta frase deixou a todos estupefatos, pois ninguem pode ter a menor dúvida que um aci-dente com um filho é uma verdadeira tragédia. Ao sairem da casa do lavrador, diziam uns aos outros: “o homem enlouqueceu mesmo; seu único filho pode ficar coxo para sempre, e ele ainda tem dúvidas se o que ocorreu é uma des-graça”.

Alguns meses transcorreram, e o Japão de-clarou guerra contra a China. Os emissários do imperador percorreram todo o país, em busca de jovens saudáveis para serem enviados à frente de batalha. Ao chegarem na aldeia, recrutaram to-dos os rapazes, exceto o filho do lavrador, que estava com uma perna quebrada.

Nenhum dos rapazes retornou vivo. O filho se recuperou, os dois animais deram crias que foram vendidas e rederam um bom dinheiro. O lavrador passou a visitar seus vizinhos para consola-los e ajuda-los - já que tinham se mos-

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trado solidários com ele em todos os momentos. Sempre que algum deles se queixava, o lavrador dizia: “como sabe se isso é uma desgraça?” Se alguém se alegrava muito, ele perguntava: “Como sabe se isso é uma benção?” E os homens daque-la aldeia entenderam que, além das aparências, a vida tem outros significados.

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As duas tábuas

Um guerreiro da luz divide seu mundo com as pessoas que ama. Procura anima-las a fazer o que gostariam, mas não tem coragem.

Nestes momentos, o adversário aparece com duas tábuas na mão.

Numa das tábuas está escrito: «Pense mais em voce. Conserve as bençãos para si mesmo, ou vai terminar perdendo tudo».

Na outra tábua, lê: « quem é voce para aju-dar os outros? Será que não consegue ver os pró-prios defeitos?»

Um guerreiro sabe que tem defeitos. Mas sabe também que não pode crescer sózinho, e

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distanciar-se de seus companheiros.

Então, ele atira as duas tábuas no chão, mesmo achando que elas contém um fundo de verdade. Elas se transformam em pó, e o guer-reiro continua ajudando a quem está perto.

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Sobre o caminho

O sábio Lao Tzu comenta a jornada do guerreiro da luz:

«O Caminho inclui o respeito por tudo que é pequeno e sutil. Conheça sempre o momento de tomar as atitudes necessárias.

«Mesmo que já tenha atirado diversas ve-zes com o arco, continue prestando atenção na maneira como coloca a flecha, e como estende o fio.

«Quando o iniciante está consciente de suas necessidades, termina sendo mais inteligente que o sábio distraído.

«Acumular amor significa sorte, acumular

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ódio significa calamidade. Quem não reconhece a porta dos problemas, termina deixando-a aber-ta, e as tragédias surgem.»

«O combate nada tem a ver com a briga.»

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A verdadeira tensão

«Quando tenho o arco esticado», diz Her-rigel ao seu mestre zen , «chega um momento em que, se não disparo imediatamente, sinto que vou perder o folego».

«Enquanto voce tentar provocar o momen-to de disparar a flecha, não irá aprender a arte dos arqueiros», diz o mestre. « A mão que estica o arco deve abrir-se como a mão de um menino. O que as vezes atrapalha a precisão do tiro, é a vontade demasiado ativa do arqueiro».

Um guerreiro da luz as vezes pensa: «aqui-lo que eu não fizer, não será feito.»

Não é bem assim: ele deve agir, mas deve

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também deixar que o Universo atue em seu de-vido momento.

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Mantendoa concentração

Para o guerreiro da luz, não existe nada abstrato. Tudo é concreto, e tudo lhe diz respeito. Ele não está sentado no conforto de sua tenda, observando o que acontece no mundo. O guer-reiro da luz aceita cada desafio como uma opor-tunidade que tem para trans-formar a si mesmo.

Alguns de seus companheiros passam a vida criticando a falta de escolha, ou comentando as decisões alheias. O guerreiro, porém, transfor-ma seu pensamento em ação.

Algumas vezes ele erra o objetivo, e paga - sem reclamar - o preço de seu erro. Outras vezes desvia-se do caminho, e perde muito tempo vol-

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tando ao destino original.

Mas um guerreiro não se distrai.

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Da caridade ameaçada

Há algum tempo, minha mulher ajudou um turista suíço em Ipanema, que se dizia vítima de pivetes. Num sotaque carregado, falando péssi-mo português, afirmou estar sem passaporte, di-nheiro, lugar para dormir.

Minha mulher pagou-lhe um almoço, deu-lhe a quantia necessária para que pudesse pas-sar uma noite no hotel enquanto contatava sua embaixada, e foi embora. Dias depois, um jornal carioca noticiava que o tal «turista suíço» era na verdade mais um criativo malandro, fingindo um sotaque inexistente, abusando da boa-fé de pes-soas que amam o Rio, e desejam desfazer a ima-gem negativa - justa ou injusta - que tornou-se o nosso cartão postal.

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Ao ler a notícia, minha mulher fez apenas um comentário: «não é isso que irá me impedir de ajudar ninguém.»

Seu comentário me fez lembrar a histó-ria do sábio que, certa tarde, chegou à cidade de Akbar. As pessoas não deram muita importância a sua presença, e seus ensinamentos não conse-guiram interessar a população. Depois de algum tempo, ele tornou-se motivo de riso e ironia dos habitantes da cidade.

Um dia, enquanto passeava pela rua prin-cipal de Akbar, um grupo de homens e mulhe-res começou a insultá-lo. Ao invés de fingir que ignorava o que acontecia, o sábio foi ate eles, e abençoou-os.

Um dos homens comentou:

- Será que, além de tudo, estamos diante de um homem surdo? Gritamos coisas horríveis, e o

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senhor nos responde com belas palavras!

- Cada um de nós só pode oferecer o que tem - foi a resposta do sábio.

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Como a trilha foi aberta

Na edição n. 106 do Jornalinho, (Portugal), encontro uma história que muito nos ensina a respeito daquilo que escolhemos sem pensar:

Um dia, um bezerro precisou atravessar uma floresta virgem para voltar a seu pasto. Sen-do animal irracional, abriu uma trilha tortuosa, cheia de curvas, subindo e descendo colinas.

No dia seguinte, um cão que passava por ali, usou essa mesma trilha para atravessar a flo-resta.Depois foi a vez de um carneiro, líder de um rebanho, que vendo o espaço já aberto, fez seus companheiros seguirem por ali.

Mais tarde, os homens começaram a usar esse caminho: entravam e saíam, viravam à di-

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reita, à esquerda, abaixavam-se, desviavam-se de obstáculos, reclamando e praguejando - com toda razão. Mas não faziam nada para criar uma nova alternativa.

Depois de tanto uso, a trilha acabou viran-do uma estradinha onde os pobres animais se cansavam sob cargas pesadas, sendo obrigados a percorrer em três horas uma distância que po-deria ser vencida em trinta minutos, caso não se-guissem o caminho aberto por um bezerro.

Muitos anos se passaram e a estradinha tor-nou-se a rua principal de um vilarejo, e posterior-mente a avenida principal de uma cidade. Todos reclamavam do trânsito, porque o trajeto era o pior possível.

Enquanto isso, a velha e sábia floresta ria, ao ver que os homens têm a tendência de seguir como cegos o caminho que já está aberto, sem nunca se perguntarem se aquela é a melhor escolha.

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O Tibet e a reencarnação

Ao ser perguntado pelo jornalista Mick Brown se era a reencarnação dos Dalai Lamas anteriores, o atual Dalai Lama respondeu:

- É um tema muito complicado. Algumas pessoas se reencarnam, outras são apenas sím-bolos do ser que desencarnou. Através das mi-nhas vidas anteriores eu penso que sempre tive um laço forte com o meu povo, e todo o meu trabalho espiritual se manifesta naquilo que eu posso fazer para trazer de novo a liberdade ao meu país.

Ou seja: O Dalai Lama não respondeu nem “sim” nem “não”. Entretanto, de acordo com os ensinamentos do budismo tibetano, a nossa cons-ciência sutil - que existe em todos os seres huma-

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nos, mas normalmente está sempre adormecida - permanece depois da morte. Nesta consciência sutil foram arquivadas todas as ações, gestos, e intenções da vida que acaba de terminar; tudo isso, depois de permanecer algum tempo no es-paço vazio, termina por encontrar de novo sua forma física em um novo corpo.

O povo tibetano procura arquivar nesta consciência sutil (uma variação daquilo que co-nhecemos como alma) uma série de comporta-mentos que ajudarão na próxima vida. Quanto mais vezes repetir a tarefa, mais forte será a mar-ca deixada - desta maneira, os rituais religiosos são quase diários.

Mick Brown diz que nossa cultura não acei-ta a idéia de que uma consciência sutil possa per-manecer desmaterializada para logo em seguida manifestar-se de novo. Entretanto, Peter Kedge acredita que os talentos naturais que vemos em certas crianças - como o dom da música, ou da

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matemática - são resultados de uma consciência que já viveu antes, e agora manifesta-se de novo.

No Tibet, não apenas esta consciência é propositadamente desenvolvida, mas também, quando um mestre morre, procura deixar pistas para que seu próximo corpo seja logo reconheci-do.

Um dos casos atuais mais conhecidos é o do menino espanhol Osel, hoje com 11 anos de idade e vivendo no norte da Índia. Em 1935 nas-ceu o Lama Yeshe, que passou sua vida estudan-do o misticismo tibetano, foi exilado durante a invasão chinesa, e terminou seus dias na Califor-nia. No dia de sua morte, chamou seu discípulo favorito e disse que desta vez iria reencarna-se no Ocidente. Passaram-se alguns anos, e o discípu-lo sonhou com Yeshe, pedindo que agora fosse procurá-lo.

Assim foi: visitando os diversos monasté-

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rios fundados pelo seu mestre, terminou na cida-de de Bubion, no sul da Espanha, onde encontrou um menino que tinha nascido no dia exato do seu sonho. Mostrou ao garoto uma série de sinos e colares de contas; o menino, então com 2 anos, selecionou exatamente os que tinham pertencido ao Lama Yeshe - sendo proclamado como sua reencarnação, e levado para um mosteiro para ser educado segundo os ritos tibetanos.

O antecessor do atual Dalai Lama indicou onde deveria renascer. Três ou quatro anos após sua morte, monges foram até uma aldeia na parte leste do Tibet, e encontraram uma criança que correspondia à descrição. Esta criança - O atual Dalai Lama - foi levada até o palácio de Potala, em Lhasa. Assim que chegou, começou a cami-nhar pelo palácio com bastante naturalidade, e em dado momento viu uma caixa.

- Meus dentes estão ali - disse.

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Na verdade, a caixa continha a dentadura postiça do seu predecessor.

A vaga resposta dada pelo Dalai Lama ao jornalista Mick Brown tem sua razão: todos os grandes mestres tibetanos sempre deixam mar-cas semelhantes ao exemplo acima, mas é impos-sível verificá-las ou autenticá-las fora do contexto cultural. Isso resultou numa série de falsos mes-tres pipocando em diferentes pontos do planeta, garantindo que pertenciam a uma linhagem de verdadeiros sábios, mas cujo único propósito era reunir um grupo de discípulos que pudessem co-laborar financeiramente para o seu bem-estar.

O irmão do Dalai Lama, Tenzin Choegyal, comenta:

“Como tibetano, eu acredito na reencarna-ção do homem. Mas o Ocidente parece apenas se preocupar com o exotismo de nossos costumes - como os oráculos, os rituais e a cerimônias. Nada

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disso tem importância: o ideal máximo, o milagre do Budismo, é permitir que qualquer ser humano com o coração vazio, possa transformar-se numa pessoa repleta de amor e compaixão.”

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Contossobre reis e sábios

O reino deste mundo

Um velho ermitão foi certa vez convidado para ir até a corte do rei mais poderoso daquela época.

- Eu invejo um homem santo, que se con-tenta com tão pouco - comentou o soberano.

- Eu invejo Vossa Majestade, que se con-tenta com menos que eu - respondeu o ermitão.

- Como você me diz isto, se todo este país me pertence? - disse o rei, ofendido.

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- Justamente por isso. Eu tenho a música das esferas celestes, tenho os rios e as montanhas do mundo inteiro, tenho a lua e o sol, porque tenho Deus na minha alma. Vossa Majestade, po-rém, tem apenas este reino.

Os ossos do ancestral

Havia um rei de Espanha que se orgulhava muito de seus ancestrais, e que era conhecido por sua crueldade com os mais fracos.

Certa vez, caminhava com sua comitiva por um campo de Aragón, onde - anos antes - havia perdido seu pai em uma batalha, quando encon-trou um homem santo remexendo uma enorme pilha de ossos.

- O que você está fazendo aí? - perguntou o rei.

- Honrada seja Vossa Majestade - disse o

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homem santo. - Quando soube que o rei de Es-panha vinha por aqui, resolvi recolher os ossos de vosso falecido pai para entregar-vos. Entretanto, por mais que procure, não consigo achá-los: eles são iguais aos ossos dos camponeses, dos pobres, dos mendigos e dos escravos.

Chame outro tipo de médico

Um poderoso monarca chamou um santo padre - que todos diziam ter poderes curativos - para ajudá-lo com as dores na coluna.

- Deus nos ajudará - disse o homem santo. - Mas antes vamos entender a razão destas dores. Sugiro que Sua Majestade se confesse agora, pois a confissão faz o homem enfrentar seus proble-mas, e o liberta de muitas culpas.

Aborrecido por ter que pensar em tantos problemas, o rei disse:

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- Não quero falar destes assuntos; preciso de alguém que cure sem fazer perguntas.

O sacerdote saiu e voltou meia-hora depois com outro homem.

- Eu acredito que a palavra pode aliviar a dor, e me ajudar a descobrir o caminho certo para a cura - disse. - Entretanto, o senhor não de-seja conversar, e não posso ajudá-lo. Mas eis aqui quem o senhor precisa: meu amigo é veterinário, e não costuma falar com seus pacientes.

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A importância do gato na meditação

Tendo recentemente escrito um livro sobre a loucura, vi-me obrigado a perguntar o quan-to das coisas que fazemos nos foi imposta por necessidade, ou por absurdo. Por que usamos gravata? Por que o relógio gira no “sentido horá-rio”? Se vivemos num sistema decimal, porque o dia tem 24 horas de 60 minutos cada?

O fato é que, muitas da regras que obede-cemos hoje em dia não tem nenhum fundamen-to. Mesmo assim, se desejemos agir diferente, so-mos considerados “loucos” ou “imaturos”.

Enquanto isso, a sociedade vai criando al-guns sistemas que, no decorrer do tempo, perdem

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a razão de ser, mas continuam impondo suas re-gras. Uma interessante história japonesa ilustra o que quero dizer:

Um grande mestre zen budista, responsa-vel pelo mosteiro de Mayu Kagi, tinha um gato, que era sua verdadeira paixão na vida. Assim, , durante as aulas de meditação, mantinha o gato ao seu lado - para desfrutar o mais possível de sua companhia.

Certa manhã, o mestre - que já estava bas-tante velho - apareceu morto. O discípulo mais graduado ocupou seu lugar.

- O que vamos fazer com o gato? - pergun-taram os outros monges.

Numa homenagem à lembrança de seu an-tigo instrutor, o novo mestre decidiu permitir que o gato continuasse freqüentando as aulas de zen-budismo.

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Alguns discípulos de mosteiros vizinhos, que viajavam muito pela região, descobriram que, num dos mais afamados templos do local, um gato participava das meditações. A história começou a correr.

Muitos anos se passaram. O gato morreu, mas os alunos do mosteiro estavam tão acostu-mados com a sua presença, que arranjaram outro gato. Enquanto isso, os outros templos começa-ram a introduzir gatos em suas meditações: acre-ditavam que o gato era o verdadeiro responsável pela fama e a qualidade do ensino de Mayu Kagi, e esqueciam-se que o antigo mestre era um exce-lente instrutor

Uma geração se passou, e começaram a surgir tratados técnicos sobre a importância do gato na meditação zen. Um professor universitá-rio desenvolveu uma tese - aceita pela comunida-de acadêmica - que o felino tinha capacidade de aumentar a concentração humana, e eliminar as

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energias negativas.

E assim, durante um século, o gato foi con-siderado como parte essencial no estudo do zen-budismo naquela região.

Até que apareceu um mestre que tinha aler-gia a pelos de animais domésticos, e resolveu tirar o gato de suas práticas diárias com os alunos.

Houve uma grande reação negativa - mas o mestre insistiu. Como era um excelente instrutor, os alunos continuavam com o mesmo rendimen-to escolar, apesar da ausencia do gato.

Pouco a pouco, os mosteiros - sempre em busca de idéias novas, e já cansados de ter que alimentar tantos gatos - foram eliminando os animais das aulas. Em vinte anos, começaram a surgir novas teses revolucionárias - com titulos convincentes como “A importancia da meditação sem o gato”, ou “Equilibrando o universo zen

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apenas pelo poder da mente, sem a ajuda de ani-mais”.

Mais um século se passou, e o gato saiu por completo do ritual de meditação zen naquela re-gião. Mas foram precisos duzentos anos para que tudo voltasse ao normal - já que ninguém se per-guntou, durante todo este tempo, por que o gato estava ali.

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Eu queriaencontrar Deus

O homem chegou exausto no mosteiro:

- Venho procurando Deus há muito tempo - disse. - Talvez o senhor me ensine a maneira correta de encontrá-lo.

- Entre e veja nosso convento - disse o pa-dre, pegando- o pelas mãos e levando-o até a ca-pela. - Aqui estão as mais belas obras de arte do século XVI, que retratam a vida do Senhor, e a Sua glória junto aos homens.

O homem aguardou, enquanto o padre ex-plicava cada uma das belas pinturas e esculturas que adornavam a capela. No final, repetiu a per-

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gunta:

- Muito bonito tudo o que vi. Mas eu gosta-ria de aprender a maneira mais correta de encon-trar Deus.

- Deus! - respondeu o padre. - Você disse muito bem: Deus!

E levou o homem até o refeitório, onde es-tava sendo preparado o jantar dos monges.

- Olhe a sua volta: daqui a pouco será ser-vido o jantar, e você está convidado para comer conosco. Poderá ouvir a leitura das Escrituras, enquanto sacia sua fome.

- Não tenho fome, e já li todas as escrituras - insistiu o homem. - Quero aprender. Vim até aqui para encontrar Deus.

O padre de novo pegou o estranho pelas

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mãos, e começaram a caminhar pelo claustro, que circundava um belo jardim.

- Peço aos meus monges para manterem a grama sempre cortada, e que tirem as folhas secas da água da fonte que você vê ali no meio. Penso que este é o mosteiro mais limpo de toda a região.

O estranho caminhou um pouco com o pa-dre, depois pediu licença, dizendo que precisava ir embora.

- Você não vai ficar para jantar? perguntou o padre.

Enquanto montava no seu cavalo, o estra-nho comentou:

- Parabéns por sua bela igreja, pelo refeitó-rio acolhedor, pelo pátio impecavelmente limpo. Entretanto, eu viajei muitas léguas apenas para

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aprender a encontrar Deus, e não para deslum-brar-me com eficiência, conforto, e disciplina.

Um trovão caiu do céu, o cavalo relinchou forte, e a terra foi sacudida. De repente, o es-tranho tirou seu disfarce, e padre viu que estava diante de Jesus.

- Deus está onde O deixam entrar - disse Jesus. - Mas vocês fecharam a porta deste mos-teiro para ele, usando regras, orgulho, riqueza, ostentação. Da próxima vez que um estranho se aproximar pedindo para encontrar Deus, não mostre o que vocês conseguiram em nome Dele: escute a pergunta, e tente responde-la com amor, caridade, e simplicidade.

Dizendo isso, desapareceu.

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O vaso com rachaduras

Conta a lenda indiana que um homem transportava água todos os dias para a sua aldeia, usando dois grandes vasos que prendia nas ex-tremidades de um pedaço de madeira, e colocava atravessado nas costas.

Um dos vasos era mais velho que o outro, e tinha pequenas rachaduras; cada vez que o ho-mem percorria o caminho até sua casa, metade da água se perdia.

Durante dois anos o homem fez o mesmo percurso. O vaso mais jovem estava sempre mui-to orgulhoso de seu desempenho, e tinha certeza que estava à altura da missão para o qual tinha sido criado, enquanto o outro vaso morria de vergonha por cumprir apenas a metade de sua

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tarefa, mesmo sabendo que aquelas rachaduras eram fruto de muito tempo de trabalho.

Estava tão envergonhado que um dia, en-quanto o homem se preparava para pegar água no poço, decidiu conversar com ele:

- Quero pedir desculpas, já que devido ao meu tempo de uso, você só consegue entregar metade da minha carga, e saciar a metade da sede que espera em sua casa.

O homem sorriu, e lhe disse:

- Quanto voltarmos, por favor, olhe cuida-dosamente o caminho.

Assim foi feito. E o vaso notou que, do seu lado, cresciam muitas flores e plantas.

- Vê como a natureza é mais bela do seu lado? - comentou o homem. - Sempre soube que

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você tinha rachaduras, e resolvi aproveitar-me deste fato. Semeei hortaliças, flores e legumes, e você as tem regado sempre. Já recolhi muitas rosas para decorar minha casa, alimentei meus filhos com alface, couve e cebolas. Se você não fosse como é, com poderia ter feito isso.

“Todos nós, em algum momento, enve-lhecemos e passamos a ter outras qualidades. É sempre possível aproveitar cada uma destas novas qualidades para obter um bom resultado.”

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