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Os padrões de relações entre Estado e movimentos sociais e a produção de políticas
públicas no Brasil
Carlos Vasconcelos Rocha
Atualmente o debate sobre a democracia pode ser classificado através da disjuntiva entre
sociedade civil e desenho institucional. O sucesso dos espaços democráticos dependeria,
para a primeira perspectiva, das características da sociedade civil; já para a perspectiva
institucionalista, o desenho e as características das instituições explicariam os resultados
do processo de democratização. A questão de fundo, que demarca a polêmica, é se as
características da sociedade civil explicam o desenho das instituições políticas ou, antes,
se o caráter das instituições – com a manutenção de regras e procedimentos específicos
ao longo do tempo – potencializam os movimentos da sociedade civil.
Numa certa perspectiva, a chave do sucesso das ações públicas seria uma sociedade civil
com alto grau de “capital social”, permeada por uma “cultura cívica” expressa em
capacidade de ações reivindicativas. Na outra perspectiva, concebe-se o Estado como
organizador das relações num determinado território, sendo que a chave do sucesso de
ações eficientes seria a autonomia de uma burocracia pública coesa, coerente,
disciplinada, tecnicamente preparada e com esprit de corp.
Conectando tal disjuntiva - sociedade civil e instituições - com as perspectivas de análise
desenvolvidas no campo das ciências sociais, podem-se demarcar dois olhares que
definem subáreas de pesquisa estanques, com teorias e autores próprios: uma que
privilegia analiticamente o Estado e outra que foca os movimentos sociais.
Com o avanço das pesquisas em cada uma dessas áreas, no entanto, essas ênfases polares
vão se arrefecendo e cada qual passa a considerar o potencial analítico do objeto da
vertente oposta. Assim, paulatinamente os estudiosos das instituições estatais vão
reconhecendo a relevância dos requisitos sociais para a produção de políticas públicas e
os estudiosos dos movimentos sociais os requisitos institucionais para o sucesso das
demandas sociais.
Na verdade, as análises se movimentam para um espaço de interseção entre o Estado e a
sociedade civil, sem, contudo, perderem sua ênfase inicial: os institucionalistas veem o
Estado a partir de suas conexões com a sociedade civil; e os analistas da sociedade civil
incorporam o Estado para um melhor entendimento de seu objeto principal, no caso os
movimentos sociais.
Notavelmente, em uma época em que tanto se fala de interdisciplinaridade e
transdisciplinaridade, nota-se a falta de diálogo entre essas duas vertentes analíticas, que
integram um mesmo campo de conhecimento e versam sobre um mesmo objeto.1
Este trabalho resulta, em certa medida, da constatação, por parte de quem sempre atuou
na subárea da ciência política das políticas públicas, dessa falta de diálogo. Não se
pretende aqui oferecer um estudo rigoroso, mas, de forma preliminar, compartilhar
algumas noções mais ou menos intuitivas sobre o tema, como forma de suscitar a
discussão.
O trabalho parte de uma noção comum, constituída paulatinamente por ambas as
vertentes, de que Estado e sociedade civil são dimensões que devem ser consideradas
simultaneamente no esforço de análise. Constata-se que as experiências de sucesso de
movimentos sociais ocorrem quando os mesmos superam o seu caráter meramente
reivindicativo, passando a ocupar, com alguns de seus membros, lugares estratégicos no
aparato de Estado e, a partir daí, passam a participar do processo decisório das políticas
públicas. E, ao mesmo tempo, constata-se que a capacidade de ação eficiente do Estado
depende do suporte que encontra na sociedade civil.
Em sua primeira parte, o trabalho busca expor esse processo que faz confluir as análises
dos movimentos sociais e as análises institucionalistas. Posteriormente, são abordados
dois casos que demonstram a conexão entre Estado e sociedade civil na produção de
políticas públicas: a atuação do movimento sanitarista na política de saúde,
especificamente na constituição dos Consórcios Intermunicipais de Saúde - CIS no
estado do Paraná; e o papel do movimento pela gestão participativa na educação pública
do estado de Minas Gerais. Em ambos os casos, movimentos sociais vigorosos,
inicialmente meramente reivindicativos, passaram a atuar em cargos governamentais
com alguns de seus membros, ganhando assim condições de concretizar os seus
objetivos, ao atuar diretamente no processo de decision-making.
1 De forma pouco rigorosa, foi comparada a bibliografia, utilizada por cada uma das vertentes, citada neste trabalho, e constatado que cada qual trabalha com seus autores específicos desconhecendo, salvo raríssimas exceções, os autores principais da outra vertente. Foram encontradas três referências de uma autora e uma de um autor mais expressivos do neoinstitucionalismo, respectivamente, Theda Skocpol e Peter Evans, nos trabalhos de viés sóciocêntrico, e ainda assim de forma meramente indicativa. Nos trabalhos da perspectiva neoinstitucional não foi encontrada qualquer referência a autores sociocêntricos. O único autor que tem utilização em ambas as vertentes é Charles Tilly.
Tais políticas foram desenvolvidas no contexto da democratização política no Brasil.
Um dos aspectos desse processo de democratização foi justamente a busca de conectar
instituições estatais com grupos da sociedade civil, através de esquemas formais ou
informais dos mais variados.
Especificamente, o trabalho objetiva discutir a literatura sobre as relações
Estado/sociedade, enfatizando os seguintes aspectos: a atuação dos movimentos sociais e
das instituições estatais e suas relações. Para tal, foram consultados documentos,
resenhada ampla bibliografia e entrevistados personagens centrais do processo.
A CONFLUÊNCIA DE DUAS PERSPECTIVAS ANALÍTICAS
Como se disse, a discussão sobre a democracia organiza duas vertentes analíticas que
focam duas esferas explicativas diferenciadas: a sociedade civil e o Estado.
Conformando subcampos de pesquisas distintos, cada qual foi desenvolvendo suas
pesquisas nos seus respectivos grupos de especialistas, onde o debate fica circunscrito.
Nesse sentido, de forma independente, ambas as vertentes foram matizando sua ênfase
inicial para incorporar em seu horizonte explicativo o objeto da vertente oposta: os
autores da sociedade civil passaram a considerar a relevância explicativa do Estado e os
autores institucionalistas começaram a considerar em suas análises os processos da
sociedade civil. Dessa forma, ambas as vertentes migraram para um mesmo espaço
analítico sem, contudo, estabelecerem um campo de pesquisa comum. A seguir será feita
uma descrição resumida desse processo focando cada uma das vertentes.
Das instituições à sociedade civil
Até meados dos anos de 1980, como referência para a análise de políticas públicas, havia
uma preponderância de perspectivas analíticas focadas em teorias sociocêntricas como o
pluralismo, o elitismo e o marxismo (Marques, 1997). A partir de então, houve uma
chamada “guinada para o Estado”, com a migração das análises para as instituições.
Marca dessa mudança foi o lançamento do livro de Evans, P.; Rueschemeyer, D. e
Skocpol, T. (1985), com o sugestivo título, “Bringing the State Back In”, que lançou as
bases do movimento neoinstitucionalista. Essa perspectiva passou, a partir daí, a
dominar as pesquisas na área.
Essa referência analítica, sem pretender definir uma teoria geral sobre o Estado (como os
estrutural-funcionalistas ou neomarxistas pretenderam), buscou fornecer instrumentos
para estudos empíricos, enfatizando a importância das instituições para o entendimento
dos processos sociais, vistas não como rebatimento de outras esferas ou fenômenos, mas
tomadas como centro das análises.
Pode-se dizer que o neoinstitucionalismo conforma dois momentos com princípios
relativamente diferentes: o neoinstitucionalismo state-centered e o polity-centered. A
passagem de um para outro evidencia justamente um processo de relativização das
instituições estatais como variável explicativa, na medida da consideração por processos
localizados na sociedade civil.
No neoinstitucionalismo state-centered, os grupos de funcionários estatais que tomam
decisões sobre políticas públicas de longo prazo são estabelecidos como variável
analítica, em distinção aos atores e grupos de interesses da sociedade civil. Esses
funcionários agiriam não apenas pela força e coerção, legitimamente constitutiva do
Estado, mas principalmente pela proposição de uma “visão” dos problemas de uma
sociedade. O Estado, nessa perspectiva, não se submete aos interesses localizados na
sociedade, como pressuposição dos marxistas e pluralistas. As ações do Estado podem
ser parciais, fragmentadas, irracionais e desarticuladas, mas, de qualquer forma, são
autoproduzidas e visam controlar a sociedade. Assim o Estado é visto como autônomo
em relação à sociedade civil, e a variável independente na análise é a lógica de ação das
burocracias públicas, sejam elas indicadas ou eleitas. A burocracia busca interesses
próprios, consolidados em condições históricas particulares, descolada dos interesses
presentes na sociedade; sua ação não depende de fatores exógenos, pois são as
características das instituições estatais que afetam as suas orientações. Em relação aos
interesses sociais, as instituições é que explicam a capacidade e a organização política
dos grupos da sociedade civil.
Com o desenvolvimento das pesquisas e o acúmulo de evidências, começou a consolidar
um consenso de que essa postura estritamente focada no Estado não dava conta da
realidade. Assim, no sentido de sanar essa insuficiência, houve uma evolução para o
neoinstitucionalismo polity-centered, representando uma ampliação do escopo de análise
para além da estrutura estatal. Outras variáveis analíticas passaram, assim, a ser
consideradas: burocracias eleitas e indicadas; caráter e natureza do conjunto das
estruturas políticas (estatais e partidárias); forma pela qual as estruturas condicionam as
identidades, objetivos e capacidades dos grupos sociais envolvidos na formulação de
políticas; e as formas de organização de interesses da sociedade civil, suas estratégias e
objetivos (Skocpol, 1995). Dessa forma, os analistas dessa vertente passaram, portanto, a
considerar não mais o Estado strictu sensu, mas o “imbricamento” (embeddedness) entre
Estado e sociedade.
São diversos os autores que moveram suas análises para esse foco na conexão entre
Estado e sociedade. Um exemplo “fraco”, já que o faz de forma pouco explícita, é Fox
(1996), que adepto das explicações focadas no Estado, acaba por estabelecer uma
relação entre o caráter das instituições e dos dirigentes políticos e a participação social.
Para ele a participação da sociedade civil se viabiliza quando as instituições públicas são
dirigidas por grupos reformistas favoráveis à intervenção política construtiva do Estado,
comprometidos com a história de luta dos atores sociais e, ao mesmo tempo, capazes de
propor soluções pragmáticas aos problemas existentes. Para tal, essas lideranças políticas
deveriam combinar um passado utópico com a experiência de derrotas. Derrotas estas
fundamentais para emprestar-lhes certo pragmatismo. O fator essencial para a
generalização de experiências de sucesso na mobilização do capital social seria,
portanto, a presença de elites governamentais reformistas, comprometidas com a
valorização de experiências de democracia participativa. Como se pode notar, pelo
exposto, há uma forte relação entre as características requeridas para as elites políticas e
a trajetória de atores vinculados à esquerda do espectro político que, em grande medida,
são forjadas nos movimentos sociais.
Um exemplo “forte”, por ser explicitamente elaborado, é o de Peter Evans (1993), autor
destacado do neoinstitucionalismo, desde o primeiro momento, que evolui de uma
ênfase no Estado para uma análise em conexão com a sociedade civil.
Evans inicia sua análise relativizando a noção do neoinstitucionalismo state-centered de
que a capacidade de ação estatal é proporcional ao grau de autonomia do Estado em
relação aos interesses societais. Ao contrário, Evans propõe, por um lado, que a
autonomia implicaria pouca efetividade das ações estatais; e, por outro lado, que a
exposição excessiva instituições estatais aos interesses da sociedade civil implicaria a
vulnerabilidade do Estado em relação aos interesses sociais organizados. Necessária,
portanto, seria a combinação contraditória do Estado com a sociedade civil. Visando
operacionalizar essa noção o autor propõe o conceito de “autonomia inserida”
(embedded autonomy), significando que as estruturas e estratégias do Estado exigem
suportes sociais complementares.
Em sua elaboração, tanto a eficiência da ação estatal como da sociedade civil dependem
da forma como Estado e sociedade se conectam. O autor afirma que em sociedades cujas
instituições públicas se caracterizam pelo autoritarismo, coerção e clientelismo, a
mobilização da sociedade civil se tornaria difícil e as experiências bem sucedidas não se
generalizariam. Dessa forma, o Estado tem um papel ativo de mobilização social e de
incentivador de redes cívicas, acabando por determinar o sucesso das iniciativas de
participação social.
Buscando sustentar sua tese, Evans desenvolve uma análise da produção de políticas
desenvolvimentistas em cinco países, com resultados variáveis, conforme as
características dos Estados e das suas conexões com a sociedade: o Zaire, com um
Estado predador, servindo interesses de elites, e com resultados negativos; o Japão,
Taiwan e a Coréia do Sul, exemplos de “autonomia inserida” e desenvolvimentistas de
sucesso; o Brasil e a Índia, combinando características dos dois primeiros, com sucessos
pontuais.
Ao abordar esses casos, o autor busca demonstrar que a chave do sucesso das políticas
desenvolvimentistas está num Estado muito mais “inserido” na sociedade do que
insulado. Por um lado, refutando as posições que veem o Estado como problema -
difundidas por neo-utilitaristas e, por motivos diferentes, compartilhadas por alguns
autores dos movimentos sociais -, demonstra que o mesmo necessita de coerência
corporativa, com recrutamento meritocrático e carreiras organizadas da sua burocracia,
para produzir políticas públicas eficientes. Alerta que o Estado predatório e patrimonial,
onde a classe política visa extrair renda em seu favor, convertendo a sociedade em sua
presa (cujo exemplo é o Zaire), é fruto da falta e não da presença de uma burocracia de
fato. Sustenta que as redes burocráticas ampliam a coerência das ações estatais. A
autonomia do Estado desenvolvimentista de sucesso (casos do Japão, Coréia e Taiwan) é
diferente da dominação do Estado predatório.
Nesses casos de sucesso há uma sinergia entre Estado e sociedade civil. Há uma situação
de “autonomia inserida”, que apresenta uma combinação aparentemente contraditória
entre isolamento e inserção, expressando uma característica historicamente constituída,
determinada pela relação entre o aparelho do Estado com a estrutura social. Isso implica
“um conjunto de laços sociais que amarra o Estado à sociedade e fornece canais
institucionalizados para a contínua negociação e renegociação de metas e políticas. [...]
um projeto partilhado por um aparelho burocrático altamente desenvolvido e um
conjunto relativamente organizado de atores privados que podia fornecer informações
úteis e implementação descentralizada” (1993, p. 117).
Assim o autor demonstra que a capacidade estatal de produzir políticas efetivas exige
uma combinação de coerência interna e conexão externa. Aos governos não basta
mobilizar as capacidades organizacionais do Estado, mas requer também a interação
com setores da sociedade civil.
Pode-se concluir, com os exemplos apresentados acima, que a passagem do
neoinstitucionalismo state-centered para o polity-centered é um reconhecimento de que
interpretar as instituições estatais como separadas dos interesses da sociedade civil
implica a perda de uma variável analítica importante.
Da sociedade civil ao Estado
Outra perspectiva analítica que se desenvolveu com bastante força, especialmente no
caso brasileiro, foi a dos autores cujo objeto de interesse é a sociedade civil e, dentre
eles, os interessados nos movimentos sociais.
Nessa perspectiva, as características da sociedade civil são decisivas para o
estabelecimento da democracia e das ações estatais. A democracia pressuporia a
existência de uma correlata cultura democrática. Nesse sentido, “para que o modelo
democrático do Estado participativo se desenvolva [...] é preciso mais que as instituições
formais da democracia [...] requer também uma cultura congruente com ela” (Almond e
Verba, 1965, p. 3). No caso, o foco analítico é direcionado para as características da
sociedade e a pesquisa em cultura política visa delinear empiricamente a emergência e a
transformação gradual de padrões agregados de orientações “culturais” duradouras
(valores, crenças, atitudes e assim por diante) e dos efeitos desses padrões na
estabilidade e efetividade dos sistemas democráticos.
Em uma das vertentes da análise culturalista, a questão da participação democrática é
analisada pela ótica da sociedade civil com ênfase no conceito de capital social.
Coleman (1988), um dos precursores dessa abordagem, afirma que a otimização do
capital físico-econômico e humano é maior quando as relações de confiança e
reciprocidade aumentam na comunidade. Nessa linha, Putnam (1996), em trabalho sobre
a Itália, onde trata dos requisitos para uma eficiente ação estatal, propõe uma
interpretação dos fundamentos do “bom governo” que se tornou referência no debate.
Para ele, em todas as sociedades o dilema da ação coletiva obsta as tentativas de
cooperação para benefícios mútuos. A cooperação voluntária dependeria do capital
social, que diz respeito “a características da organização social, como confiança, normas
e sistemas que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações
coordenadas” (p. 177). Putnam fundamenta seus argumentos na seguinte afirmação de
Coleman: “como outras formas de capital, o capital social é produtivo, possibilitando
certos objetivos que seriam inalcançáveis se ele não existisse...” (apud Putnam, 1996, p.
177). Mais que isso, afirma que o capital social instaura um círculo virtuoso que
“redunda em equilíbrios sociais com elevados níveis de cooperação, confiança,
reciprocidade, civismo e bem-estar coletivo” (p. 186).
Esta perspectiva culturalista reverbera no trabalho de diversos autores com ênfases
diferentes. Vertente importante é a que aborda os movimentos socais. Conforme define
Gohn, movimentos sociais envolvem “ações sociais coletivas de caráter sociopolítico e
cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas
demandas. Na ação concreta, essas formas adotam diferentes estratégias que variam da
simples denúncia, passando pela pressão direta (mobilizações, marchas, concentrações,
passeatas, distúrbios à ordem constituída, atos de desobediência civil, negociações etc.)
até as pressões indiretas.” (Gohn, 2011, p. 335).
O contexto do desenvolvimento dessa perspectiva analítica, no Brasil, foi o processo de
luta pela democracia, que disseminou novos atores sociais no cenário político,
portadores de reivindicações em torno da democracia política e social. A ênfase inicial
era que “quase todas as abordagens dos movimentos sociais” eram consideradas “como
sendo inerentemente distintas do Estado” (Abers e Von Bülow, 2011, p. 63).
Vários autores expressam desconfiança em considerar as instituições estatais pela
percepção do perigo de cooptação dos movimentos sociais pelo Estado. Para Abers e
Von Bülow, na literatura sobre movimentos sociais, ora o Estado não é relevante, ora é
visto como um inimigo (p. 54).
No entanto, focando inicialmente nos processos desenvolvidos na sociedade civil, esses
autores passaram progressivamente a se interessar pelo polo estatal, visando ampliar a
compreensão das dinâmicas participativas e das condições de concretização das
demandas dos setores da sociedade civil.
Nesse sentido, Goldstone (2003), por exemplo, chama a atenção para a pouca atenção
dada à interação entre os movimentos sociais e o Estado. Constata que os movimentos
sociais eram vistos em contraposição à política institucionalizada e desafiados a
influenciá-la. Os movimentos sociais seriam necessariamente extrainstitucionais.
Quando atores dos movimentos sociais ganham acesso à política institucionalizada, o
preço pago seria a perda da capacidade de protesto:
“In the other words, protest is for outsiders and opponents of the system; normal
citizens seeking policy changes or social reforms should stick to supporting political
parties and candidates and should use the legal system, petitions, and lobbying to
pursue their goals” (2003, p. 2).
No esforço de ultrapassar essa visão excludente, o livro organizado pelo autor reúne um
conjunto de trabalhos que buscam justamente demonstrar que “social movements
constitute an essential elements of normal politics in modern societes, and that there is
only a fuzzy and permeable boundary between institutionalized and noninstitutionalized
politics” (p. 2). O autor ressalta a relevância de se entender a política institucionalizada
para se entender os movimentos sociais como, inversamente, considerar os movimentos
socais para a compreensão da política formal. Na verdade, segundo ele, “state
institutions and parties are interpenetrated by social movements, in response to
movements, or in close association with movements” (p. 2).
Lavalle (2011 e 2014) também reconhece, em seus trabalhos, a falta de diálogo entre as
duas vertentes analíticas. Afirma que “a literatura de sociedade civil, movimentos sociais
e participação tendeu a cultivar linguagem própria [...] sem travar interlocução com a
literatura de políticas públicas, ou do poder executivo, respectivamente, que acumularam
conhecimento sistemático durante décadas.” (2014, p. 14).
Para Abers e Von Bülow (2011) a análise não deve excluir “atores que estão
posicionados dentro da esfera estatal” (p. 54), reconhecendo especialmente que ativistas
atuam dentro do Estado (p. 55) e que as análises não buscam compreender como o fazem
(p. 63). Pois, muitas vezes, “buscam alcançar seus objetivos trabalhando a partir de
dentro do aparato estatal” (p. 78). Nesse sentido, para Silva e Oliveira (2011), os
movimentos sociais podem potencializar o seu poder ao estabelecer relações com as
instituições estatais.
Finalmente, em resumo de trabalho a ser apresentado no 40º Encontro Anual da Anpocs,
Carlos, Dowbor e Albuquerque (2016), enfatizam a necessidade de diálogo entre a
abordagem dos movimentos sociais com as instituições estatais, trazendo para a análise
o trabalho de T. Skocpol, uma das principais autoras neoinstitucionalista. Os autores
justificam as “vantagens analíticas para investigar os efeitos institucionais da ação
coletiva no contexto de interações com o Estado, na medida em que pressupõe a
externalidade da relação sociedade civil/Estado e parte do reconhecimento da
constituição mútua entre os atores societários e os institucionais”. Argumentam que a
avaliação da efetividade dos movimentos sociais na produção de políticas públicas não
se restringe à dimensão dos movimentos sociais, mas deve considerar sua combinação
causal com outros dois elementos, a dimensão do Estado e a da política pública”.2
Enfim, a consciência da necessidade de expansão do foco analítico, desenvolvida pelos
autores dos movimentos sociais, surge, em certo aspecto, pela própria evolução da
percepção dos espaços e formas de atuação dos atores da sociedade civil. Há um
repertório variado de estratégias que os movimentos sociais mobilizam: protestos e ação
direta; participação institucionalizada em canais de diálogo como arenas participativa3;
“política de proximidade”, através de contatos pessoais entre atores da sociedade civil e
do Estado; e ocupação de cargos na burocracia 4 (ABERS, R.; SERAFIM, L.;
TATAGIBA, L., 2014, p. 332)
UMA TENTATIVA DE COMPATIBILIZAR AS DUAS ABORDAGENS
Como apresentado, a confluência de ambas as perspectivas, inicialmente polares, em
direção a um ponto de conexão entre Estado e sociedade civil é uma característica dos
autores de ambas as vertentes. Tomando as perspectivas que enfatizam as características
da sociedade civil e aquelas que centram atenção nas instituições, poderíamos demarcar
como ponto de partida – considerando a contribuição dos diversos autores considerados
aqui – a seguinte proposição: há razão na crítica de que minimizar o papel de qualquer
uma das vertentes implica em desconsiderar uma dimensão relevante para o tratamento
das questões. Assim, as duas dimensões deveriam ser vistas como partes de um todo e,
nesse sentido, o esforço analítico deveria atentar para as características e processos que
se desenvolvem nas conexões entre as esferas da sociedade civil e das instituições.
No entanto operacionalizar tal proposta não se mostra trivial. A confluência das
dimensões da sociedade civil e do Estado se desenvolve sem que os autores se livrem de
sua ênfase inicial: os neoinstitucionalistas consideram a sociedade civil sob a perspectiva
2 Como enfatizado na nota anterior, essa menção de autores de uma vertente a autores da outra é rara: a quase totalidade da bibliografia utilizada nos trabalhos considerados pelo autor neste paper não replicam esse exemplo. 3 Essa modalidade tem uma grande difusão no caso brasileiro. Ver, por exemplo, Pires (2014a e 2014b). 4 Grifo nosso, pois é uma modalidade de especial interesse para os casos abordados neste trabalho.
do Estado os autores dos movimentos sociais consideram o Estado sob sua própria
perspectiva.5
Um complicador contido aí é a complexidade de se delimitar as fronteiras dos
movimentos sociais e do Estado, já que há certa indistinção entre atores que atuam de
ambos os lados. Confrontados com esse problema, autores tendem a manter a ênfase no
objeto original, mesmo reconhecendo a relevância em ultrapassá-lo. Abers, Sefarim e
Tatagiba, por exemplo, argumentam que “talvez devêssemos aceitar esses vínculos e
práticas [com as instituições estatais] como parte de um movimento social” (2014, p.
77).
Tal solução é, no entanto, complexa, pois os atores que atuam dentro do Estado são
investidos de uma legitimidade de controle privilegiado do processo de policy-making, o
que significa um diferencial não negligenciável.6 Como argumenta Almeida (2014),
sociedade civil e instituições estatais se encontram em patamares diversos, pois “as
instituições estatais têm capacidades únicas para coordenar, regular e administrar um
contexto de larga escala [...]. Sua legitimidade deriva do consentimento dos indivíduos,
o qual determina a capacidade de tomar decisões vinculantes que implicam a obediência
dos cidadãos.” (p. 190)
Como os argumentos desenvolvidos anteriormente mostram, os atores dos movimentos
sociais, visando à concretização de suas concepções no processo de decisão, ocupam
espaços no Estado, e se qualificam como partícipes do processo de decision-making. Da
parte do Estado é relevante, especialmente para os governos, articularem suportes na
sociedade civil para a produção de políticas públicas, na medida da possibilidade da
adequação dos interesses e visões de cada uma das partes. É a partir desse “jogo” que a
confluência entre sociedade civil e Estado vai se conformando, somando esforços e
produzindo tensões. O ponto que agrava a indistinção é que comumente os atores
relevantes estão ao mesmo tempo atuando em ambas as esferas. É a persistência do que
poderíamos chamar de “atores anfíbios”: aqueles que ocupam o aparato do Estado e ao
mesmo tempo são ativistas sociais. Sendo assim, qual seria o critério para classificar um
ator como sendo do movimento social ou do Estado? O fato é que a distinção entre
5 É interessante que isso fica evidenciado se tomamos os títulos dos trabalhos desses autores, que a despeito de analisar a conexão Estado/sociedade ainda enfatizam sua perspectiva inicial. Como exemplo, que é representativo, ver Evans (1993) e Abers e Von Bülow (2011). 6 As autoras propõem a abordagem de redes como solução para a questão.
Estado e sociedade só pode funcionar, nesses casos, como um artifício metodológico,
pois, na realidade, a distinção entre eles é turva e indefinida.
Visando processar esse problema, propomos uma abordagem focada em atores que
podem atuar indistintamente na sociedade civil ou nas instituições estatais buscando
quebrar, dessa maneira, uma perspectiva que secciona ambas as dimensões.
Os estudos de caso abordados neste trabalho enfatizam a relevância desse tipo de ator.
Revelam um processo de aprendizado na produção de políticas públicas, que envolveram
políticos, burocracias e setores da sociedade civil, com movimentos de profissionais das
áreas da saúde e educação. Atuando dentro de contextos específicos, ao longo do tempo,
os atores envolvidos teceram relações horizontais, conectando movimentos sociais e
Estado. Em grau relevante, desenvolveram uma teia de relacionamentos, muitas vezes
informais, que vitalizaram a ação pública que almejavam.
Assim alguns personagens especiais foram fundamentais na difusão dos esquemas de
cooperação. Técnicos com profunda dedicação às causas da saúde e educação, com
capacidade de articulação política, atuaram como autoridades públicas e lideranças de
movimentos sociais, e, mesmo com tensões, possibilitaram a cooperação para a
produção das políticas públicas (Laczynski e Teixeira, 2012; Rocha e Faria, 2004). Tais
personagens podem ser classificados como policy entrepreneurs ou empreendedores de
políticas. Segundo Mintrom,
Os policy entrepreneurs podem ter um papel fundamental na identificação de problemas
relacionados com as políticas públicas, de modo que tanto atraem a atenção
dos decision makers como indicam respostas apropriadas às políticas. Os policy
entrepreneurs devem desenvolver estratégias para apresentar suas ideias para os
outros. É por isso que eles gastam tanto tempo intercomunicando-se ‘dentro’ e ‘em
torno’ do governo. Assim fazendo, eles captam a ‘visão de mundo’ de vários membros
da policy-making community e tecem contatos que os ajudam a afirmar a sua
credibilidade. Fazer esses contatos permite que possam determinar quais argumentos
irão persuadir os outros para que apoiem suas ideias7. (1997, p. 739 – grifo meu)
7 Traduzido do original: “Policy entrepreneurs can play a key role in identifying policy problems in ways that both attract the attention of decision makers and indicate appropriate policy responses […] policy entrepreneurs must develop strategies for presenting their ideas to others. This is why policy entrepreneurs spend large amounts of time networking in and around government […]. In so doing, they learn the ‘world views’ of various members of the policy-making community and make contacts that can help build their credibility. Making these contacts allows policy entrepreneurs to determine what arguments will persuade others to support their policy ideas.”
Esses policy entrepreneurs surgem no contexto de movimentos coletivos mais amplos,
com os objetivos de defesa de causas diversas como, nos casos aqui abordados, a saúde e
a educação públicas. Além de direcionar demandas ao Estado, através de um leque de
estratégias de pressão, buscam, também, desenvolver sua atuação nos partidos políticos
– quase sempre de esquerda – e ocupar cargos governamentais. Como formuladores de
ideias sobre a reformulação dos sistemas de saúde e de educação, atuam também em
universidades, desenvolvendo pesquisas e formando profissionais. Considerando os
casos aqui abordados, são vários exemplos da atuação desses personagens, como será
apontado à frente.
AS RELAÇÕES ENTRE ESTADO E SOCIEDADE NA PRODUÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS: ABORDANDO DOIS CASOS
É sabido que qualquer processo de reforma de instituições envolve um
reequacionamento de dada estrutura de poder. A própria existência de instituições
implica a distribuição desigual dos recursos de poder, o que habilita certos indivíduos ou
grupos a delimitar o espaço de ação de outros. Pode-se dizer que a luta política, nessa
perspectiva, visa manter ou modificar os arranjos institucionais que satisfaçam os
objetivos de poder dos diversos atores políticos (Levi, 1991, p. 79). Sendo assim, sob
certo aspecto, o processo de reforma de instituições públicas, seus sucessos e insucessos,
deve-se ao resultado dos conflitos entre atores que buscam maximizar suas posições em
relação aos recursos de poder que a manutenção ou modificação de certa forma de
estruturar as instituições estatais oferece. Dessa maneira, o entendimento desses
processos de reforma passa pelas características que estruturam o jogo político no Brasil.
Os casos aqui tratados expressam a capacidade dos grupos da sociedade civil em
penetrar as instituições estatais, participando do processo de decision-making e, por
outro lado, a busca do Estado em encontrar suporte em interesses da sociedade civil para
sustentar suas ações.
Dois casos serão tratados: a constituição da cooperação intermunicipal para a produção
de políticas de saúde, no Paraná; e a reforma do sistema público de educação
fundamental, visando a sua gestão participativa, em Minas Gerais.
O caso da constituição dos Consórcios Intermunicipais de Saúde do estado do
Paraná8
A democratização brasileira foi caracterizada pela descentralização político-
administrativa em diversas áreas de políticas públicas. No caso da saúde, a
descentralização implicou principalmente um processo de municipalização. Com a
Constituição Federal de 1988, momento de consolidação do processo de democratização
política no Brasil, foi adotado um Sistema Único de Saúde (SUS), fundado nos
princípios da universalidade, equidade, integralidade, com gestão descentralizada e
participativa.
Coerente com o princípio da descentralização federativa – tomado como meio de
democratização e de eficiência na gestão pública –, o primeiro decênio da implantação
do SUS priorizou a municipalização da saúde. Instaurou-se, assim, um processo de
intensa transferência de competências e recursos, antes concentrados no governo central,
em direção aos municípios, através de instrumentos normativos como as Normas
Operacionais Básicas (NOB) e as Normas Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS),
utilizados pelo Ministério da Saúde para estruturar o setor. Sendo assim, os municípios
passaram a assumir progressivamente a gestão dos serviços de saúde em seus territórios.
Na medida em que a descentralização ia se consolidando, essa ênfase no papel dos
municípios começou, no entanto, a demonstrar problemas. Primeiramente, a
heterogeneidade de capacidades financeiras e administrativas dos municípios para
assumirem a gestão da saúde acabou conflitando com um dos princípios do SUS: a
equidade na oferta dos serviços. Além disso, instaurou-se uma tensão entre a lógica da
descentralização e os requisitos técnicos do sistema de saúde. Essa tensão se deve ao
fato de que a descentralização responde ao objetivo político de afirmação da autonomia
dos estados e municípios, ao mesmo tempo em que a lógica da política de saúde
demanda um funcionamento coordenado de relações intergovernamentais visando
cumprir os objetivos sistêmicos de universalidade, equidade e integralidade.
A fragmentação territorial resultante da afirmação das prerrogativas políticas dos
municípios como gestores da saúde, acabou, portanto, contraditando os princípios do
SUS, por demandar outro tipo de organização territorial. Um aspecto dessa inadequação,
por exemplo, revela-se no fato de que, no sistema único e universal de saúde do Brasil,
8 Este tópico é baseado em pesquisa financiada pelo CNPQ, cujo um dos resultados pode ser encontrado em Rocha e Castro (2016).
as fronteiras político-geográficas não delimitam o fluxo de pacientes, já que cobrem todo
o território e toda a população, ao passo que a oferta dos serviços é fragmentada pelas
unidades político-administrativas.
Nesse sentido, foi ficando cada vez mais clara a necessidade da configuração de arranjos
cooperativos visando remapear o federalismo tripartido brasileiro na área das políticas
de saúde. Prover os serviços para a população requer um planejamento que considere
uma escala adequada de oferta dos serviços. Isso demanda uma territorialidade que pode
abranger vários municípios, mais de um estado, ou mesmo partes de municípios. Daí a
necessidade de acordos políticos para a institucionalização de formas de cooperação
horizontal e vertical entre os entes federados.
Como forma de buscar essa cooperação, foram ensaiadas diversas tentativas de
regionalização, no entanto malogradas. Um efetivo processo de regionalização só vai
surgir em meados dos anos de 1990, com a difusão dos Consórcios Intermunicipais de
Saúde (CIS),
Um Consórcio Intermunicipal de Saúde (CIS) é a união ou associação de dois ou mais
municípios visando à resolução de problemas e à busca de objetivos comuns no setor,
mediante a utilização conjunta dos recursos humanos e materiais disponíveis (Brasil,
1997, p. 10).
A difusão dos CIS teve início, como se disse, em meados dos anos de 1990 em alguns
estados brasileiros. Esse processo se deu de forma heterogênea, pois dependeu, em
grande medida, das características políticas específicas dos estados, variável explicativa
relevante para a difusão da cooperação, como será tratado a seguir. Dois dos casos de
maior sucesso foram dos estados de Minas Gerais e do Paraná, este último objeto de
exame neste trabalho.9
No Paraná, a partir do início de 1990, foram constituídos progressivamente 26 CIS, com
as primeiras experiências se desenvolvendo nos municípios pequenos do norte e
nordeste, com estruturas administrativas precárias, e, posteriormente, se difundindo para
a quase totalidade do estado. Hoje, dos 399 municípios, 390 integram pelo menos um
CIS. Ou seja, 97,5% dos municípios paranaenses estão consorciados, com uma média de
16 por consórcio, sendo que o menor tem três e o maior tem 30 municípios.
9 Em 1999, por exemplo, Minas Gerais é o estado com maior porcentagem de municípios consorciados na área da saúde, 92,4% do total, sendo seguido pelo Paraná, com 77,6%. O Brasil apresentava 31,5% dos seus municípios consorciados (Cruz, 2001, p. 74). Para o caso de Minas Gerais, ver Rocha e Faria (2004) e Diniz Filho (2006).
Diversos são os fatores que, conjugados, explicam a articulação dos esquemas de
cooperação intermunicipal na área da saúde. De um lado, os mecanismos indutores da
cooperação vão paulatinamente se fortalecendo, tanto por parte do governo central como
dos estados, fruto do aprendizado acumulado por esses entes e do convencimento da sua
necessidade. Por outro lado, do ponto de vista dos municípios, num contexto de crise
econômica e restrições fiscais, nos anos de 1980 e 1990, a incapacidade de fornecer
respostas individuais às pressões do eleitorado por acesso aos serviços de saúde induziu
à consciência de que diversos problemas de gestão só poderiam ser equacionados de
forma cooperativa. Além do reconhecimento dessa incapacidade, nesse momento um
requisito político para a cooperação estava dado: a ênfase na “distribuição de poder”,
que diz respeito à busca de afirmação da autonomia dos municípios como forma de
superar a centralização federativa do regime autoritário, encontrava-se relativamente
resolvida. Com suas garantias de autonomia satisfatoriamente consolidadas, já que
arrefecidos os conflitos em torno da “distribuição” do poder federativo - questão
prioritária ao longo da democratização -, os municípios podiam concentrar-se nos
requisitos técnicos necessários para a produção de políticas públicas de maior qualidade.
A lógica aí envolvida é expressa por Scharpf, quando este diz que “eficiência e
flexibilidade são subordinadas às garantias procedurais de acomodação política” (apud
Pierson, 1995, p. 459) 10 . As políticas que visam garantir dois objetivos, metas
substantivas e proteção de posições institucionais, tendem a ser menos efetivas do que as
que visam apenas ao primeiro objetivo.
Como uma faceta dos motivos acima, a constituição dos Consórcios Intermunicipais de
Saúde - CIS, no Paraná, resultou de um processo de aprendizado envolvendo políticos,
técnicos e setores da sociedade civil, como prefeitos, secretários municipais e estaduais
de saúde, técnicos da Secretaria Estadual de Saúde (SESA) e dos municípios,
movimentos de profissionais da área da saúde e partidos políticos. Enfim atores da
sociedade civil e das burocracias públicas, que em sua atuação atravessaram as fronteiras
do Estado com a sociedade. Agindo dentro de contextos específicos, ao longo do tempo,
os atores envolvidos teceram relações horizontais, conectando municípios, e verticais,
articulando os mesmos com o âmbito estadual. Em grau relevante, desenvolveram uma
teia de relacionamentos, muitas vezes informais, que vitalizaram a dimensão formal dos
10 Traduzido do original: “efficiency and flexibility are subordinated to political accommodation and procedural guarantees”.
CIS. Além das regras pactuadas que orientam a cooperação, desenvolveram uma
confiança, principalmente entre as burocracias municipais e estadual, exercitada no trato
frequente das questões relativas à gestão da saúde, o que remete ao importante aspecto
da construção de capital social, que diz respeito “a características da organização social,
como confiança, normas e sistemas que contribuam para aumentar a eficiência da
sociedade, facilitando as ações coordenadas” (Putnam, 1996, p. 177).
Especificamente, alguns personagens especiais foram fundamentais na difusão dos
esquemas de cooperação. Numa mistura de técnicos da área da saúde com ativistas
sociais, com profunda dedicação à causa pública e com capacidade de articulação
política, esses atores mediaram as relações entre autoridades municipais de partidos
variados, buscando convencê-las da relevância da cooperação para a produção das
políticas públicas (Laczynski e Teixeira, 2012; Rocha e Faria, 2004). No limite, faziam
política através de um discurso técnico, difundindo ideias elaboradas coletivamente em
diversos âmbitos, tanto do Estado como da sociedade civil, cristalizadas principalmente
nas Conferências Nacionais de Saúde. Portanto, eram portadores de concepções sobre
como estruturar as políticas de saúde e trabalhavam para concretizá-las.
Esses policy entrepreneurs surgem no contexto de um movimento coletivo mais amplo,
de âmbito nacional, que foi o movimento dos sanitaristas. O Movimento Sanitário, que
surgiu no Brasil nos anos de 1970, era composto especialmente por profissionais da
saúde, com o objetivo de defender a saúde pública como direito universal e baseada nos
princípios de integralidade, equidade e descentralização. Além de constituir um
movimento social com a característica clássica de direcionar demandas ao Estado,
através de um leque de estratégias de pressão, os sanitaristas buscaram também
desenvolver sua atuação nos partidos políticos – quase sempre de esquerda – e ocupar
cargos governamentais.11 Como formuladores de ideias sobre a reformulação do sistema
de saúde brasileiro, atuaram também em universidades, desenvolvendo pesquisas e
formando profissionais. 12 Considerando o caso do Paraná, são vários exemplos da
atuação desses personagens, como será apontado à frente.
11 Há um importante movimento, o Movimento Popular de Saúde (MOPS), que compartilhou os mesmos objetivos dos sanitaristas mas se recusou a trabalhar dentro do Estado. Seu objetivo foi criar um poder alternativo ao Estado capitalista no âmbito da sociedade civil. Ver Doimo e Rodrigues (2003). 12 Uma evidência da relevância do movimento sanitário na organização dos municípios foi o seu protagonismo na criação do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), em 1988, principal espaço de mobilização dos gestores municipais da saúde (Dowbor, 2014, p. 110). Aliás, evidência da relevância do caso do Paraná, é que de lá surge a proposta de criação do CONASEMS, a partir da experiência da Associação de Secretários Municipais de Saúde do Paraná, criada no início dos anos de 1980.
No plano estadual, a partir de 1983, os governos consecutivos do PMDB (José Richa,
Álvaro Dias e Roberto Requião), partido que abrigava um amplo contingente de
sanitaristas nos seus quadros, passaram a recrutar equipes técnicas multiprofissionais
para a SESA, que foram distribuídas pelo território do Paraná. Esses técnicos cumpriram
um papel fundamental no enfrentamento da situação de carência de estrutura de oferta de
serviços de saúde, especialmente por parte dos municípios menores. Seja pela formação
anterior, no âmbito das universidades ou dos movimentos sociais, seja pelo esforço do
próprio poder público em qualificar seus funcionários, esses profissionais difundiam as
ideias forjadas pelo movimento sanitário.
Por exemplo, os técnicos que entravam para a SESA tinham que fazer um curso
intensivo de três meses, de 40 horas semanais, em centros cuja orientação se baseava nos
princípios do pensamento sanitarista. Essas pessoas estavam, em grande parte, alocadas
nas Regionais de Saúde (RS) da SESA 13 , quando se desenvolve o processo de
implementação do SUS. Criou-se, assim, uma massa crítica de técnicos, distribuídos por
todo o território do estado, que utilizavam as RS como suporte para suas ações,
conectando o governo estadual com conjuntos de municípios, que compartilhavam das
mesmas ideias, e que no futuro teriam um papel crucial na criação dos CIS.
No plano dos municípios esse processo teve também os seus desdobramentos. Devido à
precariedade técnica de grande parte das administrações municipais, no sentido de
cumprir a sua recente prerrogativa de gerir os serviços de saúde, vários prefeitos
passaram a recrutar esses atores para cargos de direção na área da saúde (Dowbor,
2014). Assim, técnicos dedicados à causa da saúde pública, com alta capacidade de
articulação política, passaram a ocupar espaços na burocracia e em cargos de direção nos
governos municipais. Levaram, portanto, para os espaços de tomada de decisões suas
convicções sobre a política de saúde e, especificamente, sobre a relevância da
cooperação intermunicipal para estruturar essa política setorial (Laczynski e Teixeira,
2012; Rocha e Faria, 2004). Nesse caso, privilegiavam a atuação nas Associações de
Municípios (AMs)14, visando convencer os prefeitos a estenderem a cooperação para a
área da saúde.
13 As Regionais de Saúde (RS) foram fixadas pela SESA, que definiu recortes territoriais agregando grupos de municípios, em espaços geográficos contínuos, com base em uma série de informações técnicas, visando induzir o mapeamento de regiões de saúde, como referência territorial para a organização das ações de saúde no estado. 14 As AMs, criadas a partir do início da década de 1960 em diversos estados brasileiros, visam à promoção do desenvolvimento regional, através do planejamento e da cooperação intermunicipal.
Portanto, o processo de criação dos CIS envolveu a ação dos atores em duas dimensões:
no âmbito dos municípios – especialmente dos menores - e no do estado, através do seu
papel indutivo.
Direta ou indiretamente os policy entrepreneurs são forjados no movimento sanitarista,
constituído na sociedade civil com o objetivo de articular demandas ao Estado. No
entanto, o impacto das suas ações se potencializa quando passam a compor a burocracia
estatal ou assumir posições de mando nos governos.
Na verdade, há um interesse recíproco nessa articulação Estado e sociedade. Os
movimentos sociais veem como uma estratégia eficiente para alcançar seus objetivos a
atuação dentro do aparato estatal. Por sua vez, a necessidade dos governos estaduais e
municipais de estruturarem a área da saúde através do recrutamento de técnicos
preparados coloca em relevo os participantes do movimento sanitário, que forneciam
especialistas com uma concepção elaborada sobre um modelo de organização do setor.15
O caso da reforma da educação pública de Minas Gerais: implementação da gestão
participativa16
O tema da reforma de sistemas educacionais esteve presente na agenda de diversos
países a partir do início dos anos de 1980. Na América Latina, por exemplo, foram
introduzidas importantes mudanças nesses sistemas em pelo menos vinte países. No
Brasil não foi diferente. Diversas políticas de reforma dos sistemas públicos de educação
foram propostas e dentre elas várias foram implementadas. Sendo uma federação
tripartida, a estruturação da educação pública brasileira opera, especialmente no nível
fundamental, através de redes estaduais e municipais de ensino. Dada esta fragmentação
da estrutura de oferta, as experiências de redefinição do sistema público de educação
foram diversificadas segundo as diferentes condições políticas, financeiras e
administrativas de cada governo subnacional (Almeida, 1995).
A concepção geral que orientou a discussão das reformas, no caso brasileiro, foi
descentralizar o sistema, seja no sentido da sua municipalização seja repassando a
responsabilidade da gestão das escolas para os professores, funcionários, pais e alunos,
através da articulação de espaços de participação e representação. Esse movimento
15 Deve-se notar que a distinção entre atores da sociedade civil e do estado é complexa pois, em alguns casos, é impossível de ser feita: são “atores anfíbios” já que participam de ambas as esferas. 16 Este tópico faz parte de uma pesquisa cujo resultado parcial foi publicado em Rocha (2006).
surgiu, no contexto do processo da democratização política, como contraponto à gestão
burocratizada e centralizada dos sistemas públicos de educação do regime autoritário.
Foram vários os atores envolvidos nesse processo como também foram variadas as suas
motivações. Para os setores que faziam oposição ao regime militar, institucionalizar a
participação popular na gestão pública implicaria a adequação democrática entre as
demandas da sociedade e as políticas públicas. Além disso, a participação, imaginavam,
seria pedagógica no sentido de educar para a cidadania. Com a reforma, buscavam
também um efeito prático: enfraquecer o controle das instituições estatais pelos grupos
no poder, restringindo-lhes o monopólio das decisões e potencializando, em
contrapartida, o poder dos movimentos sociais de direcionar as políticas públicas.
Porém, por outro lado, setores que se beneficiavam com a forma como o sistema
educacional estava estruturado, baseado em relações clientelistas, buscavam preservar
seus interesses reagindo às propostas de mudanças. O embate dos interesses em torno
das reformas instaurou uma arena de disputa sobre a tomada de decisão concernente à
definição do desenho das instituições públicas de ensino. Com conteúdos e objetivos
diferentes, uma variada gama de atores passou a privilegiar a temática da gestão
participativa das escolas como parâmetro para a reforma das instituições públicas de
ensino, por um lado, enquanto outros atores buscaram neutralizar as ações reformistas
visando garantir interesses cristalizados no formato centralizado do sistema educacional.
A política brasileira, ao longo de sua história, é caracterizada, em parte, pela
permanência de relações clientelistas, que estão sempre se reproduzindo segundo novas
formas. Pode-se dizer que o acesso à capacidade de manipulação de recursos públicos é
aspecto importante na definição das estruturas de poder no Brasil. Pelo menos desde a
República Velha, o jogo político dá-se, em boa medida, em torno da disputa de posições
no interior do Estado, visando garantir a possibilidade de controlar e manipular os seus
recursos, com o objetivo de garantir apoios e votos. Nesse sentido, as disputas sobre o
desenho adequado das instituições públicas envolvem estratégias distintas, relacionadas
com o controle dos recursos de poder estatais, tanto para facilitar sua utilização política
como para neutralizar esse mesmo uso por parte de adversários.
O caso aqui abordado, sobre o processo de reforma do sistema público de educação do
estado de Minas Gerais, é dos mais relevantes no Brasil e na América Latina (Grindle,
2004). O objetivo das mudanças foi dar autonomia de funcionamento às escolas, através
da criação de espaços para a sua gestão participativa, visando impedir a
instrumentalização da gestão da educação para fins político-partidários. Isso implicava o
efeito politicamente problemático de subtrair a capacidade de utilização pelos
governantes dos recursos de poder que a administração das instituições da educação
fornecia. Não surpreenderam, portanto, as resistências que surgiram contra a reforma por
parte de grupos com acesso privilegiado aos recursos de poder fornecidos pelas
instituições públicas de educação.
A formulação e a implementação dessa reforma envolveu partidos políticos,
parlamentares e lideranças do Legislativo, burocratas de diversos níveis, governantes e
seus auxiliares mais próximos, instituições internacionais e seus consultores, sindicato
dos trabalhadores do ensino, associação de diretores escolares, associações de pais e
alunos e outros setores da sociedade civil, que agiram no sentido de afirmar seus valores
e realizar seus interesses. O processo em torno da reforma desenrolou-se por cerca de
dez anos, envolvendo três governos estaduais, durante os quais os atores entraram em
conflito e/ou estabeleceram consensos, redundando em movimentos de avanços e recuos
no sentido da sua completa implementação. Para nossos fins, será abordado o primeiro
momento, onde setores progressistas conseguem avançar a implementação de quase
todos os pontos de sua agenda reformista.17
O caso mostra que a mudança institucional foi resultado de uma multiplicidade de
fatores. Foi resultado não da vontade de um ator específico, mas da convergência da
atuação de diversos grupos que por razões diferentes sustentam as ações reformistas,
confrontando as práticas clientelistas e patrimonialistas que até então contaminavam as
instituições de ensino. A capacidade de pressão dos diversos grupos de interesse
envolvidos na reforma educacional foi um fator explicativo relevante, mas apenas
quando relacionada com o contexto institucional que conformou as disputas.
Especificamente, a capacidade de atores que atuaram tanto nos movimentos sociais
como na burocracia setorial da educação, portando ideias claras sobre os fundamentos da
reforma mostrou-se também fator fundamental para o reequacionamento das instituições
da educação pública, objetivo tanto dos movimentos reformistas da sociedade civil como
parte da burocracia pública. Na verdade atores que são indistintos, muitas vezes, em
termos de sua esfera de ação. Nesse contexto, os chamados policy entrepreneurs foram
personagens fundamentais na reforma institucional efetivada.
17 O único ponto relevante que só foi adotado no início dos anos de 1990 foi a eleição direta de diretores. Ver Rocha (2006).
Em Minas Gerais, a ênfase da reforma do sistema público de educação foi conceder
autonomia administrativa, financeira e pedagógica para as escolas, possibilitando sua
gestão através da participação dos seus professores e funcionários, pais e alunos. Tais
objetivos, como vimos, se chocavam com interesses clientelistas, na medida em que a
educação aparece, historicamente, entre as políticas utilizadas para fins eleitorais. A
interferência político-eleitoral e partidária no setor transformava questões
administrativas, como contratação de professores, pedidos de licença, aposentadoria,
remoção, pedidos de transferência, aplicação de punições, requisição de professores para
cargos administrativos, dentre outras, em atribuição da administração central, que
decidia segundo a rede de influências políticas que cercava cada caso específico.
A etapa inicial do processo de reforma cobriu o período de 1983 a 1987, durante o
mandato de Tancredo Neves18, o primeiro governador de oposição eleito pelo voto direto
da população depois de quase duas décadas em que os governadores eram indicados de
forma indireta. Em agosto de 1984, o governador desincompatibilizou-se do cargo para
disputar a presidência da República, assumindo o seu vice, Hélio Garcia, que manteve a
mesma equipe de governo, incluindo a direção da Secretaria de Estado da Educação
(SEE). Esse período se caracterizou pela implementação das primeiras medidas de
reforma que estavam nas agendas tanto do governo estadual quanto dos movimentos
sociais, desde o final dos anos de 1970.
A década de 1980 iniciou-se com movimentos sociais bastante ativos e aglutinados em
torno dos partidos de oposição, cujo objetivo principal era alcançar a democratização
política e derrotar o regime militar. Nesse processo de organização de amplos setores da
sociedade civil, os professores estaduais tinham posição de destaque, mobilizando-se de
forma intensa, tanto por questões salariais como por reformas democratizantes do
sistema educacional. Seu padrão de organização rompia, em finais dos anos de 1970,
com o sindicalismo atrelado ao poder vigente. O movimento sindical passava a
funcionar com autonomia em relação ao Estado e deflagrou greves mesmo contra a
legislação em vigor, que limitava o direito de representação e reivindicação dos
funcionários públicos. Ao lado da Associação dos Professores Públicos de Minas Gerais
(APPMG), entidade que representava até então a categoria, buscando não confrontar os
18 Tancredo Neves era então um político de grande experiência e de projeção nacional. Havia sido, por exemplo, ministro de Getulio Vargas e primeiro-ministro na curta fase parlamentarista do Brasil. Apesar de seu estilo conciliador, com trânsito em setores que iam da direita à esquerda do espectro político, colocou-se na oposição ao regime militar durante toda a sua vigência.
interesses governamentais, surge a União dos Trabalhadores de Ensino (UTE).
Caracterizada pelo chamado “novo sindicalismo”, a UTE, que representava não só os
professores, mas o conjunto dos trabalhadores do ensino, como supervisores
pedagógicos, orientadores educacionais e administradores escolares, passou, a partir daí,
a liderar o movimento dos trabalhadores do setor 19 . As lideranças dessa entidade
militavam, em sua grande maioria, em partidos de esquerda, principalmente no PT, o
que levou, inevitavelmente, a certa “contaminação” da condução dessas entidades pela
lógica eleitoral20.
A categoria dos professores estaduais demonstrou grande poder de mobilização, que se
refletiu na realização de inúmeras greves, no período que vai do final dos anos de 1970
ao início dos anos de 1990, mobilizando um imenso número de pessoas e com um
enorme poder de desgaste sobre os governos, pela repercussão negativa que as escolas
paradas causavam em amplos setores da opinião pública.
Os trabalhadores do ensino público e diversos outros atores, ligados a partidos e
movimentos sociais, que atuavam no setor reivindicavam mudanças na gestão da
educação, até então marcada pela centralização das decisões e pela utilização clientelista
dos recursos do setor. Propunham a gestão participativa das escolas, além de melhores
condições salariais e de trabalho. Especificamente demandavam o recrutamento de
professores por concurso público, a constituição de Colegiados como espaços de decisão
com participação de professores, funcionários, pais e alunos, e eleições diretas para
diretores escolares.
Quando um partido de oposição ao regime militar assumiu o governo estadual em 1983,
as ideias de descentralização e participação passaram a orientar a ação governamental,
especificamente nas áreas sociais. O governador Tancredo Neves entregou a direção da
SEE para a ala esquerda do PMDB, que buscou reorientar a política educacional do
19 Com o dispositivo da Constituição de 1988 que permite a sindicalização dos funcionários públicos, a UTE transformou-se em sindicato e passou a denominar-se Sindicato da União dos Trabalhadores do Ensino - SindUTE. Por questão de exposição, é utilizado, ao longo do texto, a sigla UTE. No caso, no entanto, a definição de sindicato é restritiva, já que a agenda da UTE envolvia a defesa de um modelo de educação e não apenas questões corporativas. 20 Vários parlamentares do PT de Minas Gerais sairam do movimento dos trabalhadores do ensino. O primeiro deputado federal do partido, Luiz Soares Dulci, eleito em 1982, foi o líder da greve dos professores de 1979 e um dos fundadores da União dos Trabalhadores do Ensino - UTE. Posteriormente, tornou-se uma importante figura na direção do PT e secretário geral da presidência da República no governo Lula. Outro deputado federal do partido, saído do movimento, foi Paulo Delgado, que foi eleito em 1986, 1990, 1994, 1998 e 2002. Sairam ainda do movimento a deputada estadual Maria José Haueisen, eleita em 1986, 1990, 1994, 1998 e 2002, os deputados estaduais Antônio Carlos Pereira e Antônio Fuzatto, eleitos em 1990, Gilmar Machado, em 1990, 1994 e 1998, e vereadores eleitos em diversos municípios, como Fernando Cabral e Rogério Corrêa, em Belo Horizonte. Em 2002, Gilmar Machado foi eleito deputado federal e Rogério Corrêa deputado estadual.
estado. No entanto, a equipe montada na SEE era heterogênea, contemplando também
setores conservadores do partido. Isso implicou a existência de resistências, dentro da
própria SEE, ao projeto de reforma proposto pela sua direção. Visando contornar tais
resistências, a direção da SEE buscou se apoiar na burocracia de carreira da instituição
afinada com suas propostas, a quem reservou parte dos cargos de direção. Mais que isso,
buscou formar “quadros” na burocracia da SEE para sustentar o projeto de
descentralização do setor. Tais funcionários, a partir daí, foram coadjuvantes da direção
da SEE na formulação e implementação das reformas.
Esse grupo que passou a dirigir a SEE era composto por pessoas que vinham
participando das discussões sobre a reforma da educação que se deram no contexto do
movimento pela democratização política brasileira, e que envolvia universidades,
partidos políticos de esquerda e setores da sociedade civil. Especialmente, envolveu
policy entrepreneurs que atuavam tanto nos movimentos sociais como em cargos nas
instituições estatais. As concepções desenvolvidas aí tinham forte influência de autores
marxistas, especialmente do teórico italiano Antonio Gramsci. O discurso oficial
passava, assim, a apresentar forte ênfase no aspecto político, ressaltando a participação
da população nas decisões públicas, inclusive nas escolas, como meio de formação do
cidadão para a democracia e para a promoção das classes desfavorecidas, ao contrário do
discurso proferido até então que se caracterizava por argumentos que buscavam
despolitizar a discussão sobre a administração da educação pública.
Evidência da nova filosofia de trabalho foi a realização, de agosto a outubro de 1983, do
I Congresso Mineiro de Educação, como forma de pensar a educação junto com setores
da sociedade civil. Para efetuar um amplo diagnóstico da situação da educação e sugerir
soluções, foram mobilizados pela direção da SEE, em todo o estado de Minas, todos os
setores da sociedade com interesse no tema. Profissionais do ensino, especialistas,
alunos e pais, sindicatos, universidades, prefeituras e representantes de diversos setores
sociais, coordenados pela SEE, discutiram os problemas da educação e forneceram uma
lista de 42 propostas para sua resolução. Dentre elas havia sugestões para a implantação
de Colegiados como forma de viabilizar a administração participativa das escolas e para
a adoção de concurso público como critério para recrutamento de professores. Foi
proposta também “a eleição do Diretor por voto direto da comunidade escolar” (Minas
Gerais, 1983, p. 13).
O governo adotou, em parte, as propostas resultantes desse espaço de participação que
foi o I Congresso Mineiro de Educação. Os Colegiados foram implantados na grande
maioria das escolas do estado através do Programa de Renovação da Prática Educativa,
subproduto do Plano Mineiro de Educação 1984/1987. Acabaram por se constituir, junto
com as Comissões Municipais de Educação, na principal estratégia da SEE para a
implementação da administração participativa nas escolas. O Colegiado é um conselho
capaz de decidir sobre as prioridades e metas educacionais a serem desenvolvidas pela
unidade escolar, como, por exemplo, conteúdo do ensino, calendário escolar, espaço
físico necessário, suporte material e outros itens. Ele é composto de professores,
funcionários, pais e alunos maiores de 16 anos. Já as Comissões Municipais de
Educação são integradas pelos diversos segmentos sociais do município e visam
“possibilitar a integração dos vários interesses dos cidadãos e definir as prioridades
educacionais desde a necessidade de novas escolas até aquelas relativas a tipos e formas
de treinamento de professores, de assistência aos educandos, de articulação entre o poder
municipal e estadual, no que diz respeito à educação” (Rodrigues, 1984, pp. 13-14).
Deve-se constatar que medidas efetivas de reforma do sistema estadual de ensino só
foram tomadas a partir da posse de um governador de oposição ao regime militar, em
1983, eleito pelo voto popular, apesar de a pressão social nesse sentido estar sendo
exercida, de forma significativa, desde o governo anterior, no final da década de 1970.
Com a posse de Tancredo Neves, a SEE ficou sob o controle de um grupo de pessoas
oriundo da ala progressista do PMDB e altamente identificado com a política de
descentralização, em grande parte com origem nos movimentos sociais que atuavam pela
educação pública. O grupo dirigente da SEE encontrou uma sociedade civil mobilizada
em apoio à reforma e com ela trabalhou. Encontrou, no entanto, uma classe política que
majoritariamente obtinha dividendos eleitorais do desenho centralizado do sistema
educacional, com interesse especial na indicação dos diretores de escolas. Nesse
contexto, o governador buscou conciliar segmentos diversos do espectro político: ao
mesmo tempo que entregou a direção da SEE a setores progressistas, ele não abriu mão
do apoio de políticos mais conservadores.
No mesmo tempo que acenou com mudanças, atendendo ao anseio de parte expressiva
do eleitorado e à pressão do movimento social, preservou um aspecto crítico para os
interesses político-eleitorais de políticos clientelistas: a indicação por critérios políticos
dos diretores escolares. Com um governo composto por forças heterogêneas, o
governador foi tomando decisões conforme as pressões, buscando sempre preservar um
equilíbrio entre as partes, suficiente para sustentar suas pretensões. A ação do grupo
dirigente da SEE passou a depender de sua “inserção” nos movimentos sociais. A
disputa se deslocou, em certa medida, para dentro do Estado. Mas os grupos reformistas
alocados na SEE necessitaram da capacidade de mobilização de seus aliados da
sociedade civil para o embate intraburocrático.
Foram medidas adotadas foram, assim, parciais: implementou-se a administração
colegiada nas escolas, modificou-se relativamente o critério de recrutamento dos
professores, mas não se adotaram as eleições diretas para diretores escolares.
A postura dúbia do governo ficou clara no caso das eleições de diretores. O governo, por
um lado, acatou o “veto” de sua base no Legislativo contra as eleições. Porém, com
incentivo da direção da SEE para que professores, funcionários e pais de alunos de
escolas realizassem eleições informais onde havia maior capacidade de mobilização,
para depois pressionar o deputado com direito de indicar o diretor a assumir o nome
escolhido pela comunidade. Dessa forma, em diversas escolas os parlamentares
acabavam tendo de indicar o nome consagrado nas eleições informais, evidenciando a
eficácia da estratégia conjunta de setores dirigentes da SEE com a comunidade escolar.
Não há dados quantitativos sobre o resultado dessa estratégia, mas depoimentos de
atores envolvidos indicam que sua incidência foi considerável.
Neste período, portanto, o embate dos atores e interesses resultou em uma reforma
incompleta. O núcleo central do governo agiu no sentido de contemporizar os interesses
em jogo: tomou decisões reformistas, contemplando as posições da direção da SEE, dos
trabalhadores do ensino e de setores da sociedade civil, mas garantiu formalmente a
continuidade da indicação dos diretores por critérios político-eleitorais, resguardando os
interesses clientelistas dos políticos governistas. A direção da SEE, comprometida com
as mudanças e com clara ideia dos seus objetivos, se viu limitada pela posição dúbia do
governador. Sua estratégia foi implementar as ações viáveis, sustentando-se no poder de
mobilização dos movimentos sociais, com os quais tinha ligação, e na alocação de
funcionários comprometidos com as reformas em cargos estratégicos. A UTE, por sua
vez, tinha propostas de reformulação do sistema público de ensino e grande poder de
mobilização e apelo junto à opinião pública, mas não tinha acesso ao centro decisório,
logrando, portanto, o atendimento apenas parcial de suas reivindicações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São várias as formas de qualificar os processos de produção de políticas públicas
expostos aqui: segundo uma ênfase no estado ou na sociedade civil. A estratégia estatal,
por exemplo, retrata o que Evans (1993) designa de “autonomia inserida”, onde há uma
conexão entre ação da burocracia pública com grupos da sociedade civil, visando
potencializar a capacidade estatal de produzir suas políticas públicas: no caso
governadores e prefeitos visando estruturar a política de saúde no Paraná e autoridades
da Secretaria de Educação de Minas Gerais reformando as instituições educacionais. Da
outra perspectiva, Abers e Von Bülow (2011) entendem que os ativistas atuam visando “
alcançar seus objetivos trabalhando a partir de dentro do aparato estatal” (p. 78).
Ativistas do movimento sanitarista penetraram instituições estaduais e municipais
visando concretizar seus objetivos participando da gestão pública. Da mesma forma,
ativistas pela reforma da educação ocuparam cargos diretivos no Estado. Em ambos os
casos essa atuação dentro do Estado foi fundamental para alcançar seus objetivos. No
caso da educação, houve uma sinergia entre reformistas de dentro do governo com
aqueles atuando na sociedade civil. São duas perspectivas analíticas que buscam explicar
a mesma questão. Na dimensão teórica, o desafio seria que ambos se agregassem em um
mesmo “paradigma”.
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