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Fernand Braudel – A dinâmica do capitalismo2

FERNAND BRAUDEL

A DINÂMICA DOCAPITALISMO

Rocco1987

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Fernand Braudel – A dinâmica do capitalismo3

Título original:LA DYNAMIQUE DU CAPITALISME© Les Éditions Arthaud, Paris, 1985

Todos os direitos reservadosDireitos para a língua portuguesa reservados, com exclusividade para o Brasil, à

EDITORA ROCCO LTDA.Rua Visconde de Pirajá, 414 – Gr. 1405 CEP 22410 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: 287-

1493Printed in Brasil/Impresso no Brasil

CapaANA MARIA DUARTE

RevisãoARGEMIRO DE FIGUEIREDOOSCAR GUILHERME LOPESHENRIQUE TARNAPOLSKY

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.Braudel, Fernand

A dinâmica do capitalismo / Fernand Braudel; tradução Álvaro Cabral.– Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

Tradução de: La dynamique du capitalisme.1. Capitalismo. I. Título.B834d86-1303 CDD – 330.122 CDU – 330.342.14

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Fernand Braudel – A dinâmica do capitalismo4

ESTE pequeno volume reproduz o texto de três conferências queproferi na Universidade de Johns Hopkins nos Estados unidos, em1977. O texto foi traduzido para o inglês sob o título Afterthoughtson Material Civilizations and Capitalism, depois em italiano: LaDinamica Del Capitalismo. A presente edição não introduznenhuma correção no texto inicial que, cumpre advertir o leitor, éanterior à publicação do livro Civilisation matérielle, Économie etCapitalisme, em 1979, pela editora Armand Colin. Estando essaobra então quase inteiramente redigida, foi-me solicitado que aapresentasse em suas três grandes linhas.

F.B.

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Fernand Braudel – A dinâmica do capitalismo5

SUMÁRIO

CAPÍTULO IRepensando a vida material e a vida econômica

CAPÍTULO IIOs jogos da troca

CAPÍTULO IIIO tempo do mundo

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Fernand Braudel – A dinâmica do capitalismo6

CAPÍTULO I

REPENSANDO A VIDA MATERIAL E AVIDA ECONÔMICA

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Fernand Braudel – A dinâmica do capitalismo7

COMECEI pensando em Civilisation matérielle, Économie etCapitalisme, essa extensa e ambiciosa obra, já lá vão muitos anos,em 1950. O tema me fora então proposto ou, melhor dizendo,amistosamente imposto por Lucien Febvre, que acabava deorganizar e fazer o lançamento de uma coleção de história geral,“Destins du Monde”, a mesma cuja difícil continuação me coubeassumir após o falecimento de seu diretor, em 1956. Quanto a ele,Lucien Febvre propunha-se escrever Pensées et croyancesd’Occidente, du XVe au XVIIIe siècle [Pensamentos e crenças doOcidente, dos séculos XV a XVIII], um livro que deveriaacompanhar e completar o meu, mas que, lamentavelmente, nuncachegou a ser publicado. A minha obra viu-se privada de uma vezpara sempre desse acompanhamento.

Entretanto, mesmo limitado em geral ao domínio da economia,não deixou esse livro de me criar muitos problemas, em virtude damassa enorme de documentos a absorver, das controvérsias que seutema suscita – é evidente que a economia, em si, é coisa que nãoexiste –, em decorrência, enfim, das intermináveis dificuldades queprovoca uma historiografia em constante evolução, porquantoincorpora obrigatoriamente, ainda que de um modo bastante lento,de bom ou de mau grado, as outras ciências do homem. Essahistoriografia em constante gestação, jamais a mesma de um anopara outro, só conseguimos acompanhá-la correndo e deixando delado os nossos trabalhos habituais, adaptando-nos o melhor quepodemos às exigências e solicitações, nunca as mesmas. Quanto amim, tenho um prazer imenso em escutar esse canto das sereias. Eos anos passam. Invade-nos então o desespero de chegar ao porto.Terei consagrado 25 anos à história do Mediterrâneo e quase 20 àCivilização material. É muito, sem dúvida, é demais.

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I A chamada história econômica, cuja construção se encontraainda e tão-somente em curso, esbarra em certos preconceitos: não éa história nobre. A história nobre é o navio que Lucien Febvreconstruía: não Jakob Fugger mas Lutero, mas Rabelais. Nobre ounão nobre, ou menos nobre que uma outra, a história econômica nempor isso deixa de apresentar todos os problemas inerentes à nossaprofissão: ela é a história inteira dos homens, considerada de umcerto ponto de vista. É, simultaneamente, a história daqueles que seconsidera como os grandes atores, um Jacques Coeur, um John Law;a história dos grandes acontecimentos, a história da conjuntura e dascrises e, enfim, a história maciça e estrutural que evolui lentamenteao longo dos tempos. E aí está realmente a nossa dificuldade porque,tratando-se de quatro séculos e do mundo como um todo, de quemodo organizar tal soma de fatos e explicações? Tinha que seescolher. Por minha parte, escolhi os equilíbrios e desequilíbriosprofundos a longo prazo. O que me parece primordial na economiapré-industrial, com efeito, é a coexistência das rigidezes, inércias eponderosidades de uma economia ainda elementar, com osmovimentos limitados e minoritários mas vivos, mas possantes, deum crescimento moderno. De um lado, os camponeses em suasaldeias que vivem de um modo quase autônomo, quase emautarquia; do outro, uma economia de mercado e um capitalismo emexpansão, que se dilatam imperceptivelmente, se forjam pouco apouco, já prefiguram o próprio mundo em que vivemos. Portanto,dois universos, pelo menos, dois gêneros de vida estranhos um aooutro e cujas massas respectivas se explicam, entretanto, uma pelaoutra.

Quis começar pelas inércias, à primeira vista uma históriaobscura, fora da consciência clara dos homens, nesse jogo muitomais agidos do que agentes. É o que procura explicar da melhormaneira possível o primeiro volume da minha obra, que tinhapensado em intitular, em 1967, na sua primeira edição, Le Possibleet l’Impossible: Les hommes face à leur vie quotidienne, e mudei

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em seguida para Les Structures du quotidien. Mas pouco importa otítulo! O objetivo da investigação é tão claro quanto possível, aindaque essa busca se revele aleatória, repleta de lacunas, de eventuaisarmadilhas e desprezos. Com efeito, todas as palavras postas emdestaque – inconsciente, cotidianidade, estruturas, profundidade –são por si. mesmas obscuras. E não se pode tratar, na ocorrência, doinconsciente da psicanálise, se bem que este se encontre igualmenteem causa, se bem que haja a descobrir, talvez, um inconscientecoletivo cuja realidade atormentou Karl Gustav Jung tãoprofundamente. Mas é raro que esse grande assunto seja abordado anão ser por seus três lados menores. Aguarda ainda o seuhistoriador.

Por minha parte, fiquei nos critérios concretos. Parti docotidiano, daquilo que, na vida, se encarrega de nós sem que osaibamos sequer: o hábito – melhor, a rotina – mil gestos queflorescem, se concluem por si mesmos e em face dos quais ninguémtem que tomar uma decisão, que se passam, na verdade, fora denossa plena consciência. Creio que a humanidade está pela metadeenterrada no cotidiano. Inumeráveis gestos herdados, acumulados aesmo, repetidos infinitamente até chegarem a nós, ajudam-nos aviver, aprisionam-nos, decidem por nós ao longo da existência. Sãoincitações, pulsões, modelos, modos ou obrigações de agir que, porvezes, e mais freqüentemente do que se supõe, remontam ao maisremoto fundo dos tempos. Muito antigo e sempre vivo, um passadomultissecular desemboca no tempo presente como o Amazonasprojeta no Atlântico a massa enorme de suas águas agitadas.

Foi tudo isso que tentei captar sob o nome cômodo – masinexato, como todas as palavras de significação excessivamenteampla – de vida material. Bem entendido, trata-se de uma parteapenas da vida ativa dos homens, tão profundamente inventoresquanto rotineiros. Mas, no início, repito, não me preocupei emdefinir com precisão os limites ou a natureza dessa vida maissuportada do que ativamente conduzida. Quis ver e fazer ver essa

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massa geralmente mal apercebida de história mediocremente vivida,e nela mergulhar, familiarizar-me com ela.

Depois, somente depois, chegaria o momento de sair dela. Aimpressão profunda, imediata, após essa pesca submarina, e de queestamos em águas muito antigas, no meio de uma história que, dealgum modo, não teria idade, que reencontraríamos, em suma, doisou três séculos ou dez séculos mais cedo e que, por vezes, nummomento, nos e dado enxergar ainda hoje com os nossos própriosolhos. Essa vida material, tal como a compreendo, e o que ahumanidade, no transcurso de sua história anterior, incorporouprofundamente à sua própria vida, como nas próprias entranhas doshomens, para quem tais experiências ou intoxicações de outrora seconverteram em necessidades do cotidiano, em banalidades. Eninguém as observa com atenção.

II

Tal e o fio condutor do meu primeiro livro; seu objetivo: umaexploração. Seus capítulos apresentam-se por si mesmos, nada maisdo que enunciando seus títulos, como a enumeração de forçasobscuras que trabalham e impulsionam para diante o conjunto davida material e, para além ou para cima, a história inteira dahumanidade.

Primeiro capítulo: “O Número de Homens”. É a potênciabiológica por excelência que impele o homem, como todos os seresvivos, a reproduzir-se; o “tropismo da primavera”, dizia GeorgesLefebvre. Mas existem outros tropismos, outros determinismos. Essamatéria humana em perpétuo movimento comanda, sem que osindivíduos tomem consciência disso, uma boa parte dos destinos deconjuntos de seres vivos. Alternadamente, estes, em tais ou taiscondições gerais, ou são numerosos demais ou não suficientementenumerosos, o jogo demográfico tende para o equilíbrio, mas este

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raras vezes se atinge. A partir de 1450, na Europa, o número depessoas cresce com rapidez; e porque se faz necessário compensar,porque e então possível compensar, as enormes perdas sofridas noséculo precedente, na esteira da Peste Negra. Houve recuperação atéao refluxo seguinte. Sucessivos fluxos e refluxos, como queesperados de antemão aos olhos dos historiadores, desenham,revelam regras tendenciais, regras de longa duração que continuarãoválidas até ao século XVIII. Somente no século XVIII ocorrerá aexplosão das fronteiras do impossível, superação de um teto atéentão intransponível. Desde então, o número de seres humanosnunca mais parou de aumentar, não voltou a haver suspensões nemreversões do movimento. Poderá surgir amanhã tal reversão?

Em todo o caso, até ao século XVIII, o sistema vivo estáfechado num círculo quase intangível. Mal a circunferência eatingida, quase imediatamente ocorre uma retração, um recuo. Nãofaltam os modos e as ocasiões para restabelecer o equilíbrio:penúrias, escassez, fome, duras condições da vida de todos os dias,guerras, enfim – e sobretudo – o longo cortejo das doenças. Hoje,elas ainda atuam; ontem, eram os flagelos do apocalipse: a peste, emepidemias regulares que só deixarão a Europa no século XVIII; otifo que, com o inverno, bloqueará Napoleão e seu exército nocoração da Rússia; a tifóide e a varíola, que são endêmicas; atuberculose, presente desde cedo nos campos e que, no século XIX,submerge as cidades e converte-se no mal romântico por excelência;enfim, as doenças venéreas, a sífilis que renasce ou, melhor dizendo,explode por combinação de espécies microbianas, após a descobertada América. As deficiências da higiene, a má qualidade da águapotável, fazem o resto.

Como o homem, após seu frágil nascimento, escaparia a todasessas agressões? A mortalidade infantil e enorme, como em certospaíses subdesenvolvidos de hoje, ou de ontem; o estado sanitáriogeral, precário. Possuímos centenas de relatos de autópsias desde oséculo XVI. São alucinantes. A descrição das deformações, das

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deteriorações dos corpos e da pele, a população anormal de parasitasalojados nos pulmões e nas vísceras, deixariam estupefato ummédico de hoje. Portanto, até tempos recentes, uma realidadebiológica malsã domina implacavelmente a história dos homens.Tem que se pensar nisso quando se pergunta: Quantos são eles? Deque sofrem? Poderão conjurar seus males?

Outras questões apresentadas nos capítulos seguintes: O quecomem? O que bebem? Como se vestem? Como se alojam?Perguntas incongruentes, que exigem quase uma viagem dedescoberta, porque, como sabem, o homem não come nem bebe noslivros de história tradicional. Foi bem dito, há muito, muito tempo:Der Mensch ist was er isst [O homem é o que come], mas talvezseja, sobretudo, pelo prazer do jogo de palavras que a língua alemãpermite. Entretanto, não creio que se deva relegar para o anedótico osurgimento de tantos produtos alimentares, desde o açúcar, o café eo chá até ao álcool. Eles são, de fato, a cada vez, intermináveis,importantes fluxos de história. E não se poderia exagerar, em todo ocaso, a importância dos cereais, plantas dominantes da alimentaçãoantiga. O trigo, o arroz, o milho, são o resultado de escolhasmilenares e de inúmeras experiências sucessivas, as quais, peloefeito de “derivas” multisseculares (segundo a palavra de PierreGourou, o maior dos geógrafos franceses), tornaram-se escolhas dacivilização. O trigo, que devora a terra, que exige que esta repouseregularmente, implica, permite a criação de gado: poderíamosimaginar a história da Europa sem os seus animais domésticos, suascharruas, suas parelhas de cavalos ou de bois, suas carroças? O arroznasceu de uma espécie de jardinagem, de uma cultura intensa emque o homem não deixa lugar aos animais. O milho e certamente amais cômoda e a mais fácil de obter das refeições cotidianas: eleregula o tempo de ócio, daí as corvéias camponesas e os enormesmonumentos ameríndios. Uma força de trabalho desempregada foiconfiscada pela sociedade. E poderíamos discutir também sobre asrações e as calorias que elas representam, sobre as insuficiências e as

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mudanças de dieta através dos tempos. Eis alguns temas tãoapaixonantes, não e verdade, quanto o destino do império de CarlosV ou os esplendores fugazes e discutíveis do que se chama ahegemonia francesa na época de Luís XIV. E, sem dúvida, temasrepletos de conseqüências: a história dos antigos intoxicantes, oálcool, o fumo, a maneira fulgurante como o fumo, em particular,conquistou o mundo, deu-lhe uma volta completa, não será umaadvertência para as ainda mais perigosas drogas de hoje?

Constatações análogas impõem-se a respeito das técnicas.História maravilhosa, na verdade, que acompanha de perto otrabalho dos homens e seus progressos muito lentos na luta cotidianacontra o meio exterior e contra eles próprios. Tudo e técnica desdesempre, o esforço violento, mas também o esforço paciente emonótono dos homens, modelando uma pedra, um pedaço demadeira ou de ferro, para fazer disso uma ferramenta ou uma arma.Não e essa uma atividade rente ao chão, conservadora por essência,de transformação lenta, e que a ciência (que e a sua superestruturatardia) recobre devagar, quando a recobre? As grandesconcentrações econômicas pedem as concentrações de meiostécnicos e o desenvolvimento da tecnologia: assim ocorreu com oArsenal de Veneza no século XV, com a Holanda no século XVII,com a Inglaterra no século XVIII. E de todas as vezes a ciência, pormais balbuciante que fosse, estará presente ao encontro. Aí éconduzida à força.

Desde sempre, todas as técnicas, todos os elementos daciência, se permutam, viajam através do mundo, há uma difusãoincessante. Mas o que se difunde mal são as associações, osagrupamentos de técnicas: o leme de cadaste, o casco construído emchapas parcialmente sobrepostas, mais a artilharia a bordo dosnavios, mais a navegação de alto-mar – do mesmo modo ocapitalismo, soma de artifícios, de hábitos, de performances. Forama navegação de alto-mar e o capitalismo que criaram a supremacia

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Fernand Braudel – A dinâmica do capitalismo14

da Europa, pelo simples fato de que não se difundiram por massasinteiras?

Mas, perguntareis, por que os seus dois últimos capítulos sãodedicados à moeda e às cidades? Quis livrar desses temas o volumeseguinte, e verdade. Mas essa razão, evidentemente, não e por si sósuficiente. A verdade e que as moedas e as cidades mergulham, aomesmo tempo, no cotidiano imemorável e na modernidade maisrecente. A moeda e uma invenção muito velha, se entendo pormoeda todo o meio que acelera a troca. E sem troca não hásociedade. Quanto às cidades, elas existem desde a pré-história. Sãoas estruturas multisseculares da vida mais comum. Mas são tambémos multiplicadores, capazes de se adaptar à mudança, de a ajudarpoderosamente. Poder-se-ia dizer que as cidades e a moedafabricaram a modernidade; mas também, segundo a regra dereciprocidade cara a Georges Gurvitch, que à modernidade, a massaem movimento da vida dos homens, impeliu para diante a expansãoda moeda, construiu a tirania crescente das cidades. Cidades emoedas são, ao mesmo tempo, motores e indicadores; elas provocame assinalam a mudança. São também a conseqüência desta.

III

Deve-se dizer que não é fácil definir os limites do imenso reinodo habitual, do rotineiro, “esse grande ausente da história”. Narealidade, o habitual invade o conjunto da vida dos homens, difunde-se nela como a sombra da tarde enche uma paisagem. Mas essasombra, essa falta de memória e de lucidez, admitemsimultaneamente zonas menos iluminadas e zonas mais claras doque outras. Entre sombra e luz, entre rotina e decisão consciente,seria importante marcar o limite. Uma vez reconhecido, elepermitiria distinguir o que está à direita e o que está à esquerda doobservador ou, melhor, acima e abaixo dele.

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Imaginemos, portanto, a enorme e múltipla extensão querepresentam, para uma dada região, todos os mercados elementaresque ela possui, ou seja, uma nu vem de pontos, para débitosfreqüentemente medíocres. Por essas múltiplas bocas principia o quechamamos a economia de troca, situada entre a produção, enormedomínio, e o consumo, um domínio igualmente enorme. Nos séculosdo Ancien Régime, entre 1400 e 1800, ainda se trata de umaeconomia de troca muito imperfeita. Sem dúvida, por suas origens,perde-se na noite dos tempos mas não chega a unir toda a produçãoa todo o consumo, perdendo-se uma enorme parte da produção noautoconsumo, da família ou da aldeia, pelo que não entra no circuitodo mercado.

Devidamente considerada essa imperfeição, subsiste o fato deque a economia de mercado está em progresso, de que ligasuficientemente burgos e cidades para já começar a organizar aprodução, a orientar e a controlar o consumo. Serão precisosséculos, sem dúvida, mas entre esses dois universos – a produçãoonde tudo nasce, o consumo onde tudo se destrói – a economia demercado e a ligação, o motor, a zona estreita mas viva donde jorramas incitações, as forças vivas, as novidades, as iniciativas, asmúltiplas tomadas de consciência, os crescimentos e mesmo oprogresso. Gosto, sem dele compartilhar inteiramente, docomentário de Carl Brinkman, para quem a história econômica seresume à história da economia de mercado, seguida desde suasorigens até o seu fim eventual.

Por isso observei longamente, descrevi e fiz renascer osmercados elementares ao meu alcance. Eles marcam uma fronteira,um limite inferior da economia. Tudo o que ficar fora do mercado sótem um valor de uso, tudo o que transpuser a porta estreita eingressar no mercado adquire um valor de troca. Segundo seencontra de um lado ou do outro do mercado elementar, o indivíduo,o “agente”, está ou não incluído na troca, no que chamei a vidaeconômica, para opô-la à vida material; e também para distingui-lo

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– mas essa discussão ficará para mais tarde – do capitalismo. Oartesão itinerante, que vai de burgo em burgo oferecer seusmodestos serviços de reempalhador de cadeiras ou de limpa-chaminés, embora um consumidor medíocre, pertence, no entanto,ao mundo do mercado; deve pedir-lhe o seu alimento cotidiano. Seele conservou os vínculos com a sua terra natal e no momento dacolheita ou da vindima retorna à sua aldeia, volta a ser um camponêse transpõe a fronteira do mercado, mas no sentido inverso. Ocamponês que comercializa ele próprio, regularmente, uma parte dasua colheita e compra ferramentas, vestuário, já faz parte domercado. Aquele que só vai ao burgo para vender algumasmercadorias miúdas, ovos, uma galinha, a fim de obter algumasmoedas necessárias ao pagamento de seus impostos ou à compra deuma relha de charrua, esse toca somente a fronteira do mercado.Permanece na enorme massa do autoconsumo. O camelô que vendenas ruas e o mascate que percorre o interior oferecendo mercadoriasem pequenas quantidades, estão do lado da vida de trocas, do ladodo cálculo, do deve e haver, por modestas que sejam suas trocas eseus cálculos. Quanto ao lojista, ele e, francamente, um agente daeconomia de mercado. Ou vende o que fabrica e, nesse caso, é umartesão-lojista; ou vende o que outros produziram e está, porconseguinte, no estágio dos mercadores ou comerciantes. A loja,sempre aberta, tem a vantagem de oferecer uma troca contínua,enquanto que o mercado instala-se uma ou duas vezes por semana.Ainda mais, a loja e a permuta adequada de crédito, pois o lojistarecebe sua mercadoria a crédito e vende-a a crédito. Neste ponto,estende-se através da troca toda uma seqüência de dívidas e decréditos.

Acima dos mercados e dos agentes elementares da troca, asfeiras e as Bolsas (estas abertas todos os dias, aquelas funcionandoem datas fixas, durante alguns dias, e voltando aos mesmos lugares aintervalos mais ou menos longos) desempenham um papel superior.Mesmo que as feiras estejam abertas, como e geralmente o caso, aos

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pequenos vendedores e aos comerciantes medíocres, elas são, talcomo as Bolsas, dominadas pelos grandes comerciantes atacadistas,aqueles a que em breve se passará a chamar os negociantes e quenão se ocupam do comércio de varejo.

Nos primeiros capítulos do volume II da minha obra, intituladoLes Jeux de l’échange [Os jogos da Troca], descrevi longamenteesses diversos elementos da economia de mercado, tentando ver ascoisas de tão perto quanto possível. Talvez me tenha entregue umpouco ao prazer dessa observação e o leitor achará, sem dúvida, quefui um tanto prolixo. Mas não e bom que a história seja, em primeirolugar, uma descrição, simples observação, classificação semdemasiadas idéias previas? Ver, fazer ver, e a metade de nossatarefa. Ver, se possível, com os nossos próprios olhos. Porquantoposso assegurar-lhes que nada e mais fácil na Europa, não digo nosEstados Unidos, do que ver ainda o que pode ser um mercado na ruade uma cidade, ou uma loja de antanho, ou um mascate pronto arelatar-nos suas viagens, ou uma feira, ou uma Bolsa. Vá o leitor aoBrasil e percorra o interior da Bahia, ou à Cabília, ou à ÁfricaNegra, e reencontrará feiras e mercados arcaicos vivendo ainda sobos seus olhos. E depois, se nos dispusermos a lê-los, existemmilhares de documentos para nos falar das trocas de ontem, arquivosde cidades, registros de notários, documentos de polícia e tantosrelatos de viajantes, para não falar dos pintores.

Vejamos o exemplo de Veneza. Passeando pela cidade tãomilagrosamente intata, depois de ter perambulado por arquivos emuseus, pode-se quase recons tituir espetáculos de ontem. EmVeneza, nada de feiras, ou não mais feiras de mercadorias: a Sensa,feira da Ascensão, é uma festa, com barracas de comerciantes napraça de São Marcos, mascarados, música e o espetáculo ritual dosesponsais do doge com o mar, na altura de San Nicolo. Algunsmercados funcionam em redor da praça de São Marcos, emparticular os mercados de pedras preciosas e de peles não menospreciosas. Mas, ontem como hoje, o grande espetáculo mercantil e o

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da praça de Rialto, frente à ponte e ao Fondaco dei Tedeschi, hoje ocorreio central de Veneza, Em 1530, o Aretino, que tinha sua casasobre o Grande Canal, divertia-se olhando os barcos carregados defrutas, de montanhas de melões, vindos das ilhas da laguna até esse“ventre” de Veneza, pois a praça dupla de Rialto – Rialto Nuovo eRialto Vecchio – e o “ventre” e o centro ativo de todas as trocas, detodos os negócios, pequenos e grandes. A dois passos das bancasruidosas da dupla praça, eis os grandes negociantes da cidade, emsua Loggia, construída em 1455, poderíamos dizer, em sua Bolsa,discutindo todas as manhãs, discretamente, seus negócios, segurosmarítimos, fretes, comprando, vendendo, assinando contratos entreeles ou com mercadores estrangeiros. A dois passos, em suasapertadas lojas, os banchieri estão a postos para fechar de imediatoessas transações mediante saques ou transferências de conta a conta.Também nas proximidades, onde ainda hoje se encontram, aHerberia, o mercado das verduras e legumes, a Pescheria, a lota oumercado do peixe e, um pouco mais longe, na antiga Ca Quarini, asBeccherie, os açougues, na vizinhança da igreja do padroeiro dosaçougueiros, San Matteo, a qual somente veio a ser destruída noséculo XIX.

Estaríamos um pouco mais desambientados na algazarra daBolsa de Amsterdam, digamos, no século XVII, mas um corretor dehoje, que se divertiria imenso lendo o surpreendente livro de José dela Vega, Confusión de confusiones (1688), reconhecer-se-ia semdificuldade, imagino, no jogo já complicado e sofisticado das açõesque se vendem e revendem sem as possuir, segundo osprocedimentos muito modernos das vendas à vista e a prazo. Umaviagem a Londres, visitando os célebres cafés da Change Alley,revelaria as mesmas artimanhas e as mesmas acrobacias.

Mas, detenhamo-nos nessas enumerações. Simplificando,distinguimos dois registros da economia de mercado: um registroinferior, os mercados, as lojas, os camelôs; um registro superior, asfeiras e as Bolsas. Primeira pergunta: Em que e que esses

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instrumentos da troca podem ajudar-nos a explicar, de um modogeral, as vicissitudes da economia européia de Ancien Régime, entreos séculos XV e XVIII? Segunda pergunta: Em que, por semelhançaou por contraste, podem eles elucidar, para nós, os mecanismos daeconomia não-européia, da qual apenas se começa a conheceralguma coisa? São estas as duas questões a que desejaríamosresponder, na conclusão da presente conferência.

IV

Em primeiro lugar, a evolução do Ocidente no transcursodesses quatro séculos: do XV ao XVIII.

O século XV, sobretudo depois de 1450, assiste a umaretomada geral da economia, em benefício das cidades, as quais,favorecidas pela elevação dos preços “industriais”, ao mesmo tempoque os preços agrícolas estagnam ou declinam, progridem maisdepressa que o interior. Nenhum erro possível: nesse momento, opapel propulsor é o das lojas de artesãos ou, melhor ainda, dosmercados urbanos. São esses mercados que ditam a lei. A retomadaé assim marcada no nível mínimo da vida econômica.

No século seguinte, quando a máquina recuperada se complicaem virtude da própria velocidade readquirida (o século XIII e oséculo XIV, antes da Peste Negra, tinham sido épocas de francaaceleração) e em decorrência da ampliação da economia atlântica, omovimento motor situa-se à altura das feiras internacionais: feiras deAntuérpia, de Berg-op-Zoom, de Frankfurt, de Medina del Campo,de Lyon, por um instante o centro do Ocidente, ainda mais,subseqüentes, as chamadas feiras de “Besançon”, de extremasofisticação, reduzidas aos tráficos do dinheiro e do crédito, einstrumento, durante pelo menos uma quarentena de anos, de 1579 a1621, da dominação dos genoveses, senhores incontestáveis dosmovimentos monetários internacionais. Raymond de Roover, pouco

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propenso, dada a sua prudência inata, às generalizações, não hesitouem caracterizar o século XVI como o apogeu das enormes feiras. Odesenvolvimento pujante desse século tão ativo seria, em últimaanálise, a exuberância de um último patamar, de uma superestruturae, ao mesmo tempo, a proliferação dessa superestrutura, que einchada agora pelas chegadas de metais preciosos das Américas e,mais ainda, por um sistema de trocas que faz circular rapidamenteuma massa de papel e de crédito. Essa frágil obra-prima dosbanqueiros genoveses desmoronará na década de 1620, por milrazões ao mesmo tempo.

A vida ativa do século XVII, emancipada dos sortilégios doMediterrâneo, desenvolve-se através do vasto campo do oceanoAtlântico. Descreveu-se freqüentemente esse século como umaépoca de recuo ou de estagnação econômica. Há que atenuar, semdúvida, esse quadro. Pois se o impulso do século XVI foi certamentecortado, na Itália e em outros centros, a ascensão fantástica deAmsterdam não ocorre, porém, sob o signo do marasmo econômico.Em todo o caso, sobre esse ponto, os historiadores estão todos deacordo: a atividade que persiste apóia-se num retorno decisivo àmercadoria, a uma troca de base, em suma, tudo em benefício daHolanda, de suas frotas, da Bolsa de Amsterdam. Ao mesmo tempo,a feira cede o lugar às Bolsas, às praças de comércio, que estão paraa feira como o mercado urbano para a loja comum, ou seja, um fluxocontínuo substitui os encontros intermitentes. Eis uma históriaclássica, por demais conhecida. Mas a Bolsa não e a única em causa.Os esplendores de Amsterdam ameaçam esconder de nós êxitosmais ordinários. De fato, o século XVII e também o doflorescimento maciço das lojas, um outro triunfo da continuidade.Elas multiplicam-se por toda a Europa, onde criam redes compactasde redistribuição. É Lope de Vega (1607) quem diz a respeito deMadri do Século de Ouro que todo se ha vuelto tiendas [tudo setransformou em lojas].

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No século XVIII, século de aceleração econômica geral, todosos instrumentos da troca estão logicamente em serviço: as Bolsasampliam suas atividades, Londres imita e tenta suplantarAmsterdam, que tende agora a especializar-se como a grande praçados empréstimos internacionais, enquanto que Genebra e Gênovaparticipam nesses jogos perigosos, Paris anima-se e começa a afinarpelo diapasão geral, o dinheiro e o crédito correm assim cada vezmais livremente de um lugar para outro. Nesse ambiente, e naturalque as feiras saiam perdendo: feitas para ativar as transaçõestradicionais pela outorga de vantagens fiscais, entre outras, elasperdem sua razão de ser em período de trocas e de crédito fáceis.Entretanto, se elas começam declinando onde a vida se precipita,mantêm-se e prosperam onde perduram ainda economiastradicionais. Enumerar as feiras ativas do século XVIII significatambém assinalar as regiões marginais da economia européia: naFrança, a zona das feiras de Beaucaire; na Itália, a região dos Alpes(Bolzano) ou o sul. Mais ainda os Bálcãs, a Polônia, a Rússia e, paraoeste, além-Atlântico, o Novo Mundo.

Seria inútil acrescentar que, nesse período de elevado índice deconsumo e de troca, os mercados urbanos elementares e as lojasestão mais animados do que nunca. Estas não chegam então àsaldeias? Os próprios mascates decuplicam suas atividades.Desenvolve-se, enfim, o que a historiografia inglesa chama o privatemarket, por oposição ao public market, este vigiado pelasautoridades urbanas carrancudas, aquele fora desses controles. Talprivate market que, muito antes do século XVIII, começouorganizando em toda a Inglaterra as compras diretas, freqüentementeantecipadas, aos produtores, a compra aos camponeses, fora domercado, da lã, do trigo, dos panos, etc., significou oestabelecimento, contra a regulamentação tradicional do mercado,de cadeias comerciais autônomas, bastante extensas, livres em seusmovimentos e que, aliás, se aproveitam sem escrúpulos dessa

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liberdade. Impuseram-se por sua eficácia, favorecendo os volumososabastecimentos necessários ao exército ou às grandes capitais. O“ventre” de Londres, o “ventre” de Paris foram, em suma,revolucionários. O século XVIII, em poucas palavras, terádesenvolvido tudo na Europa, inclusive o “contramercado”.

Tudo isso é verdade da Europa. Até agora só falamos dela.Não que queiramos reduzir tudo à sua vida particular mediante umavisão eurocentrista demasiado cômoda. Mas, simplesmente, porqueo ofício de historiador desenvolveu-se na Europa e foi ao própriopassado deles que os historiadores se ligaram. Há alguns decênios,entretanto, produziu-se uma inversão; as fontes documentais, naÍndia, no Japão, na Turquia, são sistematicamente exploradas ecomeçamos a conhecer a história desses países não apenas pelosrelatos de viajantes ou pelos livros dos historiadores europeus. Jáconhecemos o bastante sobre esses países para nos fazermos estapergunta: Se os mecanismos da troca que acabamos de descrever sópara a Europa existem fora da Europa – e existem na China, naÍndia, através do Islã, no Japão – poderemos utilizá-los para umensaio de analise comparada? O objetivo seria, se possível, situar anão-Europa, em geral, em relação à própria Europa, ver se ocrescente abismo que vai cavar-se entre elas já era visível antes daRevolução Industrial, antecipando-se em relação ao resto do mundo.

Primeira constatação: por toda a parte os mercados estãoinstalados, mesmo em sociedades apenas esboçadas, na ÁfricaNegra e nas civilizações ameríndias. A fortiori, nas sociedades muitodensas, evoluídas, que estão literalmente crivadas de mercadoselementares. Um pequeno esforço, esses mercados estão diante dosnossos olhos, ainda vivos ou fáceis de reconstituir. Nos paísesislâmicos, as cidades despojaram virtualmente as aldeias de seusmercados. Tal como na Europa, aquelas absorveram-nos. Osmaiores desses mercados exibem-se junto às portas monumentaisdas cidades, em espaços que não são, em suma, nem campo nemcidade, onde o citadino de um lado, o campesino do outro,

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encontram-se em terreno neutro. Na própria cidade, em ruas e praçasestreitas, os mercados de bairro logram introduzir-se: o cliente aíencontra o pão fresco do dia, algumas mercadorias e, contrariamenteao uso comum da Europa, muitos pratos cozinhados: espetinhos decarne, cabeças de carneiro assadas, coscorões, doces. Os grandescentros comerciais, simultaneamente mercados, concentrações delojas e galerias à européia, são os fondouks, os bazars, como oBesestan de Istambul.

Na Índia, notamos uma particularidade: não há unia aldeia quenão possua o seu mercado, em razão da necessidade de transformaraí, pela intervenção do mercador baniano, as taxas entregues emnatura pela comunidade aldeã, em taxas em dinheiro, seja para oGrãoMogol, seja para os senhores de seu séquito. Deve-se ver nessanebulosa de mercados aldeões uma imperfeição, na Índia, dapenhora urbana? Ou, pelo contrário, imaginar que os mercadoresbanianos praticam uma espécie de private market, apossando-se daprodução na fonte, na própria aldeia?

A organização mais surpreendente, no estágio dos mercadoselementares, é certamente a da China, a tal ponto que o seu casodepende de uma geografia exata, quase matemática. Vejamos, atitulo de exemplo, um burgo ou uma cidade pequena. Marque-se umponto numa folha em branco. Em redor desse ponto dispõem-se deseis a dez aldeias, a uma distância tal que o camponês possa, duranteo dia, ir ao burgo e regressar. Esse conjunto geométrico – um pontono centro e dez pontos em torno dele – e o que chamaríamos umcantão, a zona de irradiação de um mercado de burgo. Praticamente,esse mercado divide-se segundo as ruas e as praças do burgo,agrega-se às lojas dos revendedores, dos usurários, dos escrivãespúblicos, dos mercadores de gêneros alimentícios, das casas de chá ede saque. W. Skinner tem razão, e nesse espaço cantonal que se situaa matriz da China camponesa, não na aldeia. O leitor aceitarátambém sem dificuldade que os burgos gravitam, por sua vez, emtorno de uma cidade que eles envolvem a uma distância conveniente

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e reabastecem, e pela qual estão vinculados aos tráficos longínquos eàs mercadorias que não são produzidas localmente. Que o todo sejaum sistema, e o que diz claramente o fato de que o calendário dosmercados dos diversos burgos e da cidade são fixados de modo anão se sobreporem. De um mercado ao outro, de um burgo ao outro,circulam sem parar mascates e artesãos, porque, na China, a loja doartesão e ambulante e é no mercado que se lhe alugam seus serviços,se bem que o ferreiro ou o barbeiro se deslocarão, para executar seutrabalho, ao domicílio do freguês. Em suma, a massa chinesa éatravessada, animada por cadeias de mercados regulares,mutuamente ligados e todos rigorosamente fiscalizados.

As lojas, os camelôs, os mascates, são igualmente muitonumerosos, pode-se dizer que pululam; mas as feiras e as Bolsas,mecanismos superiores, estão ausentes. Existem algumas feiras, sim,mas todas elas marginais, nas fronteiras da Mongólia ou em Cantão,para as mercadorias estrangeiras, também uma forma de vigiá-las.

Então, das duas uma: ou o governo e hostil a essas formassuperiores de troca, ou então a circulação capilar dos mercadoselementares bastava à economia chinesa: as artérias e as veias nãolhe seriam necessárias. Por uma ou outra dessas razões, ou pelasduas ao mesmo tempo, a troca na China e aparada, nivelada, everemos numa outra conferência que isso teve sua grandeimportância para o não-desenvolvimento do capitalismo chinês.

Os estágios superiores da troca são melhor desenhados noJapão, onde as redes de grandes comerciantes estão perfeitamenteorganizadas. Melhor desenhadas também na Insulíndia, velhaencruzilhada mercantil, que tem suas feiras regulares, suas Bolsas,se assim entendermos, tal como na Europa dos séculos XV-XVI eaté mais tarde, as reuniões cotidianas dos grandes comerciantesatacadistas de uma dada praça. Assim, em Bantam, na ilha de Java,por largo tempo a cidade mais ativa da ilha, mesmo após a fundaçãode Batavia em 1619, os negociantes reúnem-se todos os dias numadas praças da cidade, à hora em que o mercado aí termina.

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A Índia é, por excelência, o país das feiras, vastas reuniõessimultaneamente mercantis e religiosas, porquanto se celebram amaioria das vezes nos lugares de peregrinação. Toda a península eagitada por essas reuniões gigantescas. Admiramos sua onipresençae sua importância; não eram, entretanto, o sinal de uma economiatradicional, de uma certa maneira voltada para o passado? Emcontrapartida, no mundo islâmico, embora as feiras tenham existido,não eram tão numerosas nem tão vastas quanto as da Índia.Exceções como as feiras de Meca apenas confirmam a regra. Comefeito, as cidades muçulmanas, superdesenvolvidas esuperdinâmicas, possuíam os mecanismos e os instrumentos dosestágios superiores da troca. Ordens de pagamento e promissóriascirculavam tão correntemente quanto na Índia e emparelhavam coma utilização direta do dinheiro vivo. Toda uma rede de crédito ligavaas cidades muçulmanas ao Extremo Oriente. Um viajante inglês, deregresso das Índias, em 1759, e prestes a passar de Basra paraConstantinopla, não querendo deixar seu dinheiro em depósito naEast India Company, em Surat, entregou 2.000 piastras em espécie aum banqueiro de Basra que lhe deu uma carta redigida em “línguafranca” e endereçada a um banqueiro de Alepo. Devia ter,teoricamente, retirado um lucro na transação mas não ganhou tantoquanto esperava. Não se pode ganhar sempre.

Em resumo, se a comparamos com as economias do resto domundo, a economia européia parece ter ficado devendo seudesenvolvimento mais célebre à superioridade de seus instrumentose de suas instituições: as Bolsas e as diversas formas de crédito.Mas, sem uma única exceção, todos os mecanismos e artifícios datroca se reencontram fora da Europa, desenvolvidos e utilizados emgraus diversos, e pode-se aí discernir uma hierarquia: no estágioquase superior, o Japão; talvez a Insulíndia e o Islã; certamente aÍndia, com sua rede de crédito desenvolvida pelos mercadoresbanianos, sua prática de empréstimo de dinheiro às iniciativasarriscadas, seus seguros marítimos; no estágio inferior, habituada a

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viver voltada para si mesma, a China; e, finalmente, logo abaixodela, milhares de economias ainda primitivas.

O fato de estabelecer uma classificação entre as economias domundo não e isento de significado. Conservarei em mente essahierarquia no capítulo seguinte, quando tentarei avaliar as posiçõesocupadas pela economia de mercado e o capitalismo. Com efeito,essa ordenação vertical permitirá que a análise renda seus frutos.Acima da massa imensa da vida material de todos os dias, aeconomia de mercado estendeu suas malhas e manteve em vida suasdiversas redes. E foi, habitualmente, acima da economia de mercadopropriamente dita que o capitalismo prosperou. Poderia dizer-se quea economia do mundo inteiro e visível num verdadeiro mapa emrelevo.

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CAPÍTULO II

OS JOGOS DA TROCA

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NA minha conferência precedente, apontei o lugarcaracterístico, dos séculos XV a XVIII, de um enorme setor deautoconsumo que, no essencial, permanece inteiramente estranho àeconomia de troca. A Europa, mesmo a mais desenvolvida, estásalpicada, até o século XVIII e mesmo depois, de zonas queparticipam pouco na vida geral e, em seu isolamento, obstinam-seem levar sua própria existência, quase inteiramente fechada sobre simesma.

Gostaria de abordar agora o que depende propriamente datroca e que designaremos, ao mesmo tempo, como a economia demercado e como o capitalismo. Essa dupla denominação indica queentendemos distinguir um do outro esses dois setores que, a nossosolhos, não se confundem. Repetimos, entretanto, que esses doisgrupos de atividade – economia de mercado e capitalismo – são, atéo século XVIII, minoritários, que a massa das ações dos homenspermanece contida, absorvida no imenso domínio da vida material.Se a economia de mercado e em extensão, se ia cobre vastíssimassuperfícies e conhece êxitos espetaculares, falta-lhe ainda, combastante freqüência, espessura. Quanto às realidades do AncienRégime, que designo, com ou sem razão, por capitalismo, elasdecorrem de um estágio brilhante, sofisticado, mas estreito, que nãoengloba o conjunto da vida econômica nem cria, a exceçãoconfirmando a regra, o “modo de produção” que lhe seria próprio etenderia por si mesmo a generalizar-se. Seria mesmo necessário queesse capitalismo qualificado comumente de mercantilcompreendesse e manipulasse em seu conjunto a economia demercado, se bem que esta seja a sua indispensável condição prévia.E, no entanto, o papel nacional, internacional, mundial, docapitalismo, já é evidente.

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I

A economia de mercado, de que já falei no primeiro capítulo,apresenta-se-nos sem ambigüidade excessiva. Os historiadoresconcederam-lhe, na verdade, um lugar primacial. Todos aprivilegiam. Em comparação, a produção e o consumo sãocontinentes ainda mais explorados por uma pesquisa quantitativaque apenas se encontra em seus primórdios. Não se compreende esseuniverso com facilidade. A economia de mercado, pelo contrário,não se cansa de fazer falar dela. Enche páginas e páginas dedocumentos de arquivos – arquivos urbanos, arquivos privados defamílias de comerciantes, documentos de justiça e de polícia,deliberações das câmaras de comércio, registros de notários, etc.Assim, como não a localizar com exatidão e não se interessar porela? De fato, ela ocupa continuamente a cena.

É evidente que o perigo consiste em só ver a ela, em descrevê-la com um luxo de detalhes que sugere uma presença dominante,insistente, quando não passa de um fragmento num vasto conjunto,pela sua própria natureza que a reduz ao papel de ligação entre aprodução e o consumo, e pelo fato de que, antes do século XIX, erauma simples camada mais ou menos espessa e resistente, por vezesmuito delgada, entre o oceano da vida cotidiana que a inclui e osprocessos do capitalismo que, uma vez em cada duas, a manobramde cima.

Poucos historiadores possuem o sentimento claro dessalimitação que, restringindo-a, define a economia de mercado eassinala o seu verdadeiro papel. Witold Kula pertence ao númerodaqueles que não se deixam impor demais pelo movimento dospreços do mercado, seus altos e baixos, suas crises, suas correlaçõeslongínquas e suas tendências para o uníssono – ou seja, tudo o quetorna palpável o aumento regular do volume das trocas. Para usaruma de suas imagens, e importante olhar sempre para o fundo do

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poço, até a massa profunda da água, da vida material que os preçosdo mercado tocam mas não penetram e nem sempre agitam. Toda ahistória econômica que não seja de duplo registro – a saber, a saídado poço e o poço em profundidade – corre também o risco de serterrivelmente incompleta.

Posto isto, fica evidente que entre os séculos XV e XVIII nãoparou de se ampliar a zona dessa vida rápida que e a economia demercado. O sinal que o anuncia e o prova e, através do espaço, avariação em cadeia dos preços dos mercados. Esses preçosmovimentam-se no mundo inteiro, na Europa segundo inúmerasobservações, no Japão e na China, na Índia e através dos paísesislâmicos (como no_ império turco), na América, onde os metaispreciosos desempenham um papel precoce – isto e, na NovaEspanha, no Brasil, no Peru. E, bem ou mal, todos esses preços secorrespondem, seguem-se com desajustes mais ou menosacentuados, defasagens quase insensíveis através da Europa inteira,onde as economias se engatam umas nas outras, mas que, emcontrapartida, retardariam de uma vintena de anos, pelo menos, emrelação à Europa, o avanço da Índia do final do século XVI ecomeço do XVII.

Em suma, bem ou mal, uma certa economia liga entre si osdiferentes mercados do mundo, uma economia que não só traz emsua esteira algumas mercadorias excepcionais, mas também osmetais preciosos, viajantes privilegiados que já dão a volta aomundo. Os dobrões espanhóis, cunhados com o metal branco daAmérica, atravessam o Mediterrâneo, atravessam o império turco e aPérsia, atingem a Índia e a China. A partir de 1572, via Manila, ometal branco americano atravessa também o Pacífico e, em fim deviagem, chega uma vez mais à China, agora por essa nova rota.

Essas ligações, essas cadeias, esses tráfegos, esses transportesessenciais, como não atrairiam os olhares dos historiadores? Essesespetáculos os fascinam, tal como fascinaram os contemporâneos.Mesmo os primeiros economistas, que estudam eles, de fato, se não

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a oferta e demanda no mercado? O que e a política econômica dascidades sobranceiras senão a vigilância de seus mercados, de seuabastecimento, de seus preços? É o Príncipe, a partir do momentoem que uma política econômica se desenha em seus atos, não é apropósito do mercado nacional, da bandeira nacional que cumpredefender, da indústria nacional ligada ao mercado interno e aomercado externo, que importa adotar uma política de promoção? Énessa zona estreita e sensível do mercado que se torna possível elógico agir. Ela repercute as medidas tomadas, como a prática omostra todos os dias. De modo que se acabou por crer, com razão ousem ela, que as trocas têm, em si mesmas, um papel decisivo,equilibrador, que elas igualam pela concorrência osdesnivelamentos, ajustam a oferta e a demanda, que o mercado é umdeus escondido e benevolente, “a mão ínvisível” de Adam Smith, omercado auto-regulador do século XIX, a pedra angular daeconomia, se nos ativermos ao laissez faire, laissez passer. Há umaparte de verdade, uma parte de má fé, mas também de ilusão. Pode-se esquecer quantas vezes o mercado foi manipulado ou falseado, opreço arbitrariamente fixado pelos monopólios de fato ou de direito?E sobretudo, admitindo as virtudes concorrenciais do mercado (“oprimeiro computador posto ao serviço dos homens”), importaassinalar, pelo menos, que o – mercado, entre produção e consumo,e apenas uma ligação imperfeita, que mais não seja na medida emque ela continua sendo parcial. Sublinhemos esta última palavra:parcial. De fato, creio nas virtudes e na importância de umaeconomia de mercado, mas não acredito em seu reinado exclusivo.Isso não impede que, até uma época relativamente próxima de nós,os economistas só raciocinassem a partir de seus esquemas e de suaslições. Para Turgot, a circulação e realmente o conjunto da vidaeconômica. Do mesmo modo, David Ricardo, muito mais tarde, sóenxerga o rio estreito mas vivo da economia de mercado. E se,depois de mais de 50 anos, os economistas, instruídos pelaexperiência, já não defendem mais as virtudes automáticas do laissez

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faire, o mito ainda não se apagou na opinião pública e nasdiscussões políticas de hoje.

II

Finalmente, se lancei a palavra capitalismo no debate, apropósito de uma época onde ainda não se lhe conhecia o direito decidade, foi sobretudo porque tive necessidade de uma outra palavraque não economia de mercado para designar atividades que sãocomprovadamente diferentes. A minha intenção não era, por certo;introduzir o lobo no redil. Eu sabia bem – tanto os historiadores ia orepetiram e com conhecimento de causa – que essa palavra decombate é ambígua, terrivelmente carregada de atualidade e,virtualmente, de anacronismo. Se, contra toda a prudência, lhe abri aporta foi por múltiplas razões.

Em primeiro lugar, entre os séculos XV e XVIII, certosprocessos reclamam uma designação especial. Quando observadosde perto, seria quase absurdo incluí-los e dispô-los, sem mais nemmenos, na economia ordinária de mercado. A palavra que entãoacode mais espontaneamente ao espírito e bem capitalismo.Irritados, expulsamo-la pela porta e ela volta em seguida a entrarpela janela. Pois não lhe encontramos um substituto adequado e issoe sintomático. Como diz um economista norte-americano, a melhorrazão para nos servirmos da palavra capitalismo, por maisdesacreditada que esteja, e que, no fim de contas, não se encontrououtra para substituí-Ia. Sem dúvida, ela tem o inconveniente dearrastar a reboque inúmeras querelas e discussões. Mas essasquerelas, as boas, as menos boas e as ociosas, e na verdadeimpossível evitá-las, agir e discutir como se elas não existissem.Inconveniente ainda pior, a palavra está repleta de sentidos que lhesão dados pela vida de hoje.

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Pois capitalismo, em seu uso mais amplo, data do começo doséculo XX. Vejo-o no lançamento verdadeiro, com um pouco dearbitrário, em 1902, do muito conhecido livro de Werner Sombart,Der moderne Kapitalismus. Esta palavra, praticamente, seráignorada por Marx. Eis-nos, portanto, e diretamente, ameaçados dopior dos pecados, o do anacronismo. Nada de capitalismo antes daRevolução Industrial, gritava um dia um historiador ainda jovem: “Ocapital, sim; o capitalismo, não!”

Entretanto, jamais existe entre passado, mesmo passadolongínquo, e tempo presente uma ruptura total, uma descontinuidadeabsoluta ou, se preferirem, uma não-contaminação. As experiênciasdo passado não cessam de prolongar-se na vida presente, de afecundar. Além disso, muitos historiadores, e não dos de menorgabarito, apercebem-se hoje de que a Revolução Industrial seanuncia muito tempo antes do século XVIII. Talvez a melhor razãopara nos persuadirmos disso seja o espetáculo de certos paísessubdesenvolvidos de hoje que tentam e, com o modelo de sucesso,por assim dizer, diante dos olhos, fracassam em sua RevoluçãoIndustrial. Em suma, essa dialética sem fim, repetidamente posta emcausa – passado, presente; presente, passado – ameaça ser, muitosimplesmente, o âmago e a razão de ser da própria história.

III

Só se disciplinará, só se definirá a palavra capitalismo, paracoloca-Ia a serviço exclusivo da explicação histórica, se aenquadrarmos seriamente entre as duas palavras que a subentendeme lhe conferem seu sentido: capital e capitalista. O capital, realidadetangível, massa de meios facilmente identificáveis,permanentemente em ação; o capitalista, o homem que preside ouprocura presidir à inserção do capital no processo incessante deprodução a que todas as sociedades estão condenadas; o capitalismo

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e, grosso modo (mas só grosso modo), a forma como se conduz,para fins usualmente pouco altruístas, esse jogo constante deinserção.

A palavra-chave é o capital. Este, nos estudos dos economistas,assumiu o sentido apoiado de bem de capital; não designa somenteas acumulações de dinheiro, mas os resultados utilizáveis eutilizados de todo o trabalho anteriormente realizado: uma casa e umcapital; o trigo enceleirado e um capital; um navio, uma estrada, sãocapitais. Mas um bem de capital só merece tal nome se participar noprocesso renovado da produção: o dinheiro -de um tesouro sememprego não é um capital, do mesmo modo que não é uma florestainexplorada, etc. Dito isto, haverá uma única sociedade, até ondechega o nosso conhecimento, que não tenha acumulado, que nãoacumule bens de capital, que não os utilize. regularmente para o seutrabalho e que, pelo trabalho, não os reconstitua e não os façafrutificar? A mais modesta aldeia do Ocidente, no século XV, temseus caminhos, seus campos limpos de pedras, suas terras cultivadas,suas florestas organizadas, suas sebes vivas, seus pomares, suasrodas de moinho, suas reservas de grãos ... Cálculos feitos peloseconomistas antigos dão, entre o produto bruto de um ano detrabalho e a massa dos bens de capital (aquilo a que chamamos opatrimônio), uma relação de 1 para 3 ou 4, a mesma, em suma, queKeynes aceitava para a economia das sociedades atuais. Cadasociedade teria assim, atrás dela, o equivalente de três ou quatroanos de trabalho acumulado, posto em reserva, de que ela se serviriapara levar a bom termo a sua produção, sendo o patrimônio, alémdisso, usado só parcialmente para esse fim, nunca os 100%, como eóbvio.

Mas deixemos esses problemas. O leitor conhece-os tão bemquanto eu. De fato, sou-lhe devedor de uma única explicação: comoe que posso validamente distinguir o capitalismo da economia demercado? E reciprocamente?

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Bem entendido, o leitor não está esperando, de minha parte,uma distinção peremptória do gênero: a água de um lado, o azeitepor cima dela. A realidade econômica nunca se apóia em corpossimples. Mas aceitará sem muita dificuldade que possam existir,pelo menos, duas formas da chamada economia de mercado (A, B),discerníveis com um pouco de atenção, que mais não seja pelasrelações humanas, econômicas e sociais que elas instauram.

Na primeira categoria (A), colocarei de bom grado as trocascotidianas do mercado, os tráficos locais ou a pouca distância:assim, o trigo, a madeira que e encaminhada para a cidade próxima;e mesmo os comércios de maior raio de ação, quando são regulares,previsíveis, rotineiros, abertos tanto aos pequenos quanto aosgrandes comerciantes; assim, o encaminhamento dos cereais doBáltico, a partir de Dantzig, até Amsterdam, no século XVII; assim,do sul para o norte da Europa, o comércio do azeite ou do vinho –penso naquelas caravanas de carroças alemãs que iam buscar, todosos anos, o vinho branco da Ístria.

Dessas trocas sem surpresas, “transparentes”, das quais cadaum conhece de antemão os limites e as particularidades e cujoslucros, sempre medidos, e sempre possível avaliar, o mercado de umburgo oferece-se como um bom exemplo. Reúne, sobretudo,produtores – camponeses, camponesas, artesãos – e clientes, uns dopróprio burgo, os outros das aldeias vizinhas. No máximo, haveráuma vez por outra dois ou três comerciantes, isto é, entre o cliente eo produtor o terceiro homem: o intermediário. E esse comerciantepode, ocasionalmente, perturbar o mercado, dominá-lo, influir sobreos preços por manobras de estocagem; mesmo um pequenorevendedor pode, contra os regulamentos, antecipar-se aoscamponeses na entrada de um burgo, comprar a preços maisreduzidos as mercadorias deles e em seguida oferece-Ias ele próprioaos compradores: essa é uma fraude elementar, presente na periferiade todos os burgos e mais ainda de todas as cidades, capaz, quandose amplia em grandes proporções, de fazer subir os preços. Assim,

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mesmo no burgo ideal que imaginamos, com seu comércioregulamentado, leal, transparente “olho no olho, mão na mão”, comodizem os alemães – a troca segundo a categoria B, a dosintermediários e “atravessadores”, fugindo à transparência e aocontrole, não está totalmente ausente. Do mesmo modo, o comércioregular que anima os grandes comboios de trigo do Báltico e umcomércio transparente: as curvas de preço na partida, em Dantzig, ena chegada, em Amsterdam, são sincrônicas, e a margem de lucro e,ao mesmo tempo, segura e moderada. Mas basta que a fome grasseno Mediterrâneo, como ocorreu em 1590, por exemplo, e veremoscomerciantes internacionais, representando grandes clientes,desviarem de sua rota habitual navios inteiros cuja carga,transportada para Livorno ou Gênova, terá triplicado ouquadruplicado de preço. Também nesse caso a economia A podeceder o passo à economia B.

Desde que se suba na hierarquia das trocas, e o segundo tipo deeconomia que predomina e desenha sob os nossos olhos uma “esferade circulação” evidentemente diferente. Os historiadores inglesesassinalaram, a partir do século XV, a importância crescente, ao ladodo mercado público tradicional – o public market – do que elesbatizaram de private market, o mercado privado; eu direi de bomgrado, para acentuar a diferença, o contramercado. Com efeito, nãobusca ele desembaraçar-se das regras do mercado tradicional,freqüentemente paralisador em excesso? Mercadores itinerantes,marchantes, agentes de grandes atacadistas, contatam os produtoresem suas casas. Ao camponês eles compram diretamente a lã, ocânhamo, os animais em pé, os couros, a cevada ou o trigo, as avesdomésticas, etc. Ou compram-lhes até esses produtosantecipadamente, a lã antes da tosquia dos carneiros, o trigo quandoainda está verde. Um simples bilhete assinado na estalagem daaldeia ou na própria fazenda sela o contrato. Em seguida, elesencaminham suas compras, por carroças, animais de carga oubarcaças, para as grandes cidades ou os portos exportadores. Tais

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exemplos são encontrados no mundo inteiro, em torno de Paris tantoquanto de Londres, em Segóvia para as lãs, em Nápoles para o trigo,na Puglia para o azeite, na Insulíndia para a pimenta... Quando elepróprio não se entrega à exploração agrícola, o mercador itinerantemarca seus encontros na periferia do mercado, à margem da praçaonde ele se desenrola, ou então, com maior freqüência, instala suabase numa estalagem: as estalagens são as mudas para as carruagensem trânsito, as oficinas do transporte. Que esse tipo de trocasubstitui as condições normais do mercado coletivo por transaçõesindividuais cujos termos variam arbitrariamente segundo a situaçãorespectiva dos interessados e comprovado sem ambigüidade naInglaterra pelos numerosos processos que a interpretação dospequenos bilhetes assinados pelos vendedores engendrou. É evidenteque se trata de trocas desiguais em que a concorrência – lei essencialda chamada economia de mercado – dificilmente tem lugar e onde ocomerciante dispõe de duas vantagens: ele rompeu as relaçõesdiretas entre o produtor e aquele a quem a mercadoria se destinafinalmente (só ele conhece as condições do mercado nas duas pontasda cadeia e, portanto, a margem de lucro que obterá), e dispõe dedinheiro para compras à vista, o que constitui seu principalargumento. Assim, as extensas cadeias mercantis estendem-se entrea produção e o consumo e foi certamente a sua eficácia que asimpôs, em especial para o abastecimento das grandes cidades, e oque incitou as autoridades a fecharem os olhos ou, pelo menos, arelaxar o controle.

Ora, quanto mais essas cadeias se alongam, mais escapam àsregras e aos controles habituais, mais o processo capitalista emergeclaramente. Emerge de maneira fulgurante no comércio a distância,o Fernhandel, no qual os historiadores alemães não são os únicos aver o superlativo da vida de troca. O Fernhandel e, por excelência,um domínio de livre manobra, opera a distâncias que o colocam aoabrigo das fiscalizações ordinárias ou lhe permitem contorna-Ias;atuará, conforme o caso, desde a costa de Coromandel ou do golfo

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de Bengala até Amsterdam, de Amsterdam a um determinadoarmazém de revenda na Pérsia, ou na China, ou no Japão. Nessavasta zona operacional, existe a possibilidade de escolher, e eleescolhe o que maximiza seus lucros: o comércio das Antilhas estádando apenas lucros modestos? Não importa, no mesmo instante ocomércio na Índia ou na China está garantindo lucros dobrados.Basta trocar o fuzil de ombro.

Desses grandes lucros derivam as consideráveis acumulaçõesde capitais, tanto mais que o comércio a distância se reparte apenasentre poucas mãos. Não entra nele quem quer. O comércio local,pelo contrário, dispersa-se numa multidão de partes interessadas. Porexemplo, no século XVI, o comércio interno de Portugal, visto emsua massa e em todo o seu valor monetário estimado, e de longesuperior ao comércio da pimenta, das especiarias e das drogas. Masesse comércio interno está freqüentemente sob o signo da trocadireta, do valor de uso. O comércio das especiarias está na linha daeconomia monetária. E só os grandes comerciantes o praticam econcentram em suas mãos lucros anormais. As mesmasconsiderações são válidas para a Inglaterra no tempo de Defoe.

Não é por acaso que, em todos os países do mundo, um grupode grandes negociantes se destaca nitidamente da massa doscomerciantes, e que esse grupo e, por uma parte, muito reduzido e,por outra, está sempre ligado – entre outras atividades – ao comércioa distância. O fenômeno e visível na Alemanha a partir do séculoXIV, em Paris desde o século XIII, nas cidades da Itália desde oséculo XII e talvez mais cedo. O tayir, no Islã, mesmo antes doaparecimento dos primeiros negociantes ocidentais, ia era umimportador-exportador que, de sua casa (o comércio já tinha umamatriz fixa) dirigia agentes e comissionários. Ele nada tem emcomum com o hawanti, o pequeno comerciante com sua loja nosoukh [mercado]. Na Índia, em Agra, ainda uma grande cidade, porvolta de 1640, um viajante descreve o que se designa pelo nome desogador, “aquele a quem chamaríamos na Espanha um mercader,

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mas alguns ornam-se com o nome especial de katari, o titulo maiseminente entre aqueles que professam, nesses países; a artemercantil e que significa mercador riquíssimo e de grande crédito”.No Ocidente, o vocabulário assinala diferenças análogas. Onegociante o katari francês; a palavra aparece no século XVII. NaItália, a distância e enorme entre o mercante a taglio [comercianteretalhista] e o negoziante; o mesmo ocorre na Inglaterra entre otradesman e o merchant que, nos portos ingleses, ocupa-sesobretudo da exportação e do comércio a distância; na Alemanha,entre os Krämer, por uma parte, e o Kaufmann ou o Kaufherr, poroutra.

Será necessário dizer que esses capitalistas, tanto no Islãquanto na cristandade, são os amigos do príncipe, aliados ouexploradores do Estado? Muito cedo, desde sempre, elesultrapassam os limites “nacionais”, entendem-se com oscomerciantes de praças estrangeiras. Têm mil formas de trapacear nojogo a favor deles, pela manipulação do crédito, pelo jogo frutuosodas boas contra as más moedas, indo as boas moedas de ouro e pratapara as grandes transações, para o Capital, as más, de cobre, para ospequenos salários e os pagamentos cotidianos, portanto, para oTrabalho. Têm a superioridade da informação, da inteligência, dacultura. E apossam-se, à sua volta, de tudo o que e bom de possuir –a terra, os imóveis, as rendas... Quem duvidaria de que eles dispõemdos monopólios ou, simplesmente, têm o poderio necessário para,nove vezes em dez, apagar a concorrência? Escrevendo a um de seuscomparsas em Bordéus, um negociante holandês recomendava-lheque mantivesse seus projetos em segredo; caso contrário,acrescentava ele, “aconteceria com esse negócio o mesmo que comtantos outros em que, quando há concorrência, deixa de haver águapara beber!” Enfim, e pela massa de seus capitais que os capitalistasestão em condições de preservar seus privilégios e de se reservar osgrandes negócios internacionais da época. Por uma parte, porquenessa época os transportes muito lentos do grande comércio impõem

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longos prazos para o giro de capitais: há que esperar meses, quandonão, anos, para que as somas investidas retornem, aumentadas doslucros. Por outra parte, porque, de um modo geral, o grandecomerciante não utiliza somente seus próprios capitais: ele recorreao crédito, ao dinheiro de outros. Enfim, esses capitais deslocam-se.A partir do final do século XIV, os arquivos de Francesco di MarcoDatini, comerciante de Prato, perto de Florença, assinalam-nos ovaivém de letras de câmbio entre as cidades da Itália e os pontosquentes do capitalismo europeu: Barcelona, Montpellier, Avignon,Paris, Londres, Bruges... Mas esses eram jogos tão estranhos parao comum dos mortais quanto o são hoje as deliberações ultra-secretas da Banque des Règlements Internationaux, em Basiléia.

Assim, o mundo da mercadoria ou da troca encontra-seestritamente hierarquizado, desde os ofícios mais humildes –lixeiros, estivadores, camelôs, carroceiros, marinheiros – até aoscaixeiros, lojistas, corretores de denominações diversas, prestamistase, no topo, os negociantes. A coisa à primeira vista surpreendente eque a especialização, a divisão do trabalho, que não faz senãoacentuar-se rapidamente à medida do progresso da economia demercado, afeta toda essa sociedade mercantil, exceto em seu topo,ocupado pelos negociantes-capitalistas. Assim, o processo defragmentação das funções, essa modernização, manifestou-seprimeiro somente na base: os ofícios, os lojistas, até mesmo osmascates, especializam-se. O mesmo não ocorre no alto da pirâmide,visto que, até o século XIX, o negociante de altos vôos jamais selimitou, por assim dizer, a uma única atividade: e negociante, semdúvida, mas nunca num único ramo, e também e, segundo asocasiões, armador, segurador, prestamista, financista, banqueiro ouaté empresário industrial ou agrícola. Em Barcelona, no séculoXVIII, o varejista, o botiguer, e sempre especializado: vende outecidos, ou mantéis, ou especiarias... Se enriquece suficientementepara tornar-se, um dia, um negociante, passa logo da especialização

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à não-especialização. Doravante, todo bom negócio ao seu alcanceserá de sua competência, qualquer que seja o ramo.

Essa anomalia foi freqüentemente assinalada, mas a explicaçãocomum não nos pode satisfazer muito: o negociante, dizem-nos,divide suas atividades entre diversos setores a fim de limitar seusriscos: perderá na cochonilha-do-carmim, ganhará nas especiarias;perderá numa transação mercantil mas ganhará jogando com oscâmbios ou emprestando dinheiro a um camponês para garantir-seuma renda... Em suma, seguiria o conselho do provérbio querecomenda “não colocar todos os ovos no mesmo cesto”.

De fato, eu penso:– que o comerciante não se especializa porque nenhum ramo

ao seu alcance e suficientemente nutrido para absorver toda suaatividade. Acredita-se com freqüência que o capitalismo de antanhoera modesto por falta de capitais, que tinha primeiro de acumular pormuito tempo, para só depois deslanchar. Entretanto, ascorrespondências de comerciantes ou as atas de câmaras decomércio mostram amiúde que havia capitais buscando inutilmenteonde investir-se. O capitalista será então tentado pela aquisição deterras, valor refúgio, valor social, mas também, por vezes, de terrasexploraveis de maneira moderna e fonte de receitas substanciais,como na Inglaterra, na Venécia e em outras regiões européias. Ouentão se deixará tentar pelas especulações imobiliárias urbanas. Ouainda por incursões, prudentes mas repetidas, no domínio daindústria, bem como pelas especulações mineiras (séculos XV-XVI).Mas e significativo que, salvo exceção, ele não se interesse pelosistema de produção e se contente, pelo sistema de trabalhodomiciliar, de putting out, em controlar a produção artesanal a fimde melhor se assegurar da sua comercialização. Em face do artesão edo sistema de putting out, as manufaturas só representarão, até oséculo XIX, uma parcela muito pequena da produção;

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– que se o grande comerciante muda com tanta freqüência deatividade e porque o grande lucro muda incessantemente de setor. Ocapitalismo é, por essência, conjetural. Ainda hoje uma de suasgrandes forças e a sua facilidade de adaptação e de reconversão;

– que uma única especialização teve, por vezes, tendência amanifestar-se na vida mercantil: o comércio do dinheiro. Mas o seuêxito nunca foi de longa duração, como se o edifício econômico nãopudesse alimentar suficientemente esse ponto alto da economia. Abanca florentina, um instante fulgurante, soçobra com os Bardi e osPeruzzi no século XIV; depois com os Medici, no século XV. Apartir de 1579, as feiras genovesas de Piacenza convertem-se nacâmara de compensação, o clearing, de quase todos os pagamentoseuropeus, mas a extraordinária aventura dos banqueiros genovesesdurará menos de meio século, até 1621. No século XVII,Amsterdam dominará brilhantemente, por sua vez, os circuitos docrédito europeu e a experiência se saldará, também desta vez, porum fracasso no século seguinte. Só no século XIX, depois de 1830-1860, o capitalismo financeiro verá seus esforços coroados de êxito,quando a banca se apossará de tudo, da indústria e depois damercadoria, e a economia em geral terá adquirido suficiente vigorpara sustentar definitivamente essa construção.

Resumindo: dois tipos de troca; um terra-a-terra, competitivo,pois que transparente; o outro superior, sofisticado, dominante. Nãosão os mesmos mecanismos nem os mesmos agentes que regemesses dois tipos de atividade, e não e no primeiro mas no segundoque se situa a esfera do capitalismo. Não nego que pudesse existir,ardiloso e cruel, um capitalismo aldeão de tamancos; Lênin, peloque me disse o Professor Daline, de Moscou, sustentava, inclusive,que num país socialista, uma vez concedida a liberdade a ummercado de aldeia, seria possível reconstituir a árvore inteira docapitalismo. Tampouco nego que existisse um microcapitalismo doslojistas; Gerschenkron pensa que o verdadeiro capitalismo saiu daí.A relação de forças, na base do capitalismo, pode esboçar-se e ser

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reencontrada em todas as etapas da vida social. Mas, enfim, e notopo da socíedade que o primeiro capitalismo se desenvolve, afirmaa sua força e se revela a nossos olhos. E é à altura dos Bardi, dosJacques Coeur, dos Jakob Fugger, dos John Law ou dos Necker quese deve ir procurá-lo, que se tem uma chance de descobri-lo.

Se, de ordinário, não se distingue capitalismo e economia demercado, e porque um e outra progrediram na mesma cadência, daIdade Média aos nossos dias, e por que se apresentoufreqüentemente o capitalismo como o motor ou o apogeu doprogresso econômico. Na realidade, tudo e transportado nas costasenormes da vida material: ela incha, tudo avança rapidamente;apropria economia de mercado incha às suas custas num abrir efechar de olhos, amplia suas ligações. Ora, dessa extensão, dessaampliação, o capitalismo e sempre o beneficiário. Não creio queJosef Schumpeter tenha razão em fazer do empresário o deus exmachina. Acredito obstinadamente que e o movimento de conjunto ofator determinante e que todo o capitalismo e comensurável, emprimeiro lugar, com as economias que lhe são subjacentes.

IV

Privilégio da minoria, o capitalismo é impensável sem acumplicidade ativa da sociedade. É forçosamente uma realidade daordem social, até mesmo uma realidade da ordem política; umarealidade da civilização. Pois e necessário que, de uma certamaneira, a sociedade inteira aceite mais ou menos conscientementeos valores daquele. Mas nem sempre e esse o caso.

Toda a sociedade densa se decompõe em vários “conjuntos”: oeconômico, o político, o cultural, o social hierárquico. O econômicosó se compreenderá em ligação com os outros “conjuntos”,dispersando-se neles mas abrindo também suas portas para osvizinhos. Há ação e interação. Essa forma particular e parcial do

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econômico que e o capitalismo só se explicará plenamente à luzdessas vizinhanças e dessas intrusões; aí acabará por assumir o seuverdadeiro rosto.

Assim, o Estado moderno, que não fez o capitalismo mas oherdou, ora o favorece, ora o desfavorece; ora o deixa estender-se,ora lhe quebra as molas. O capitalismo só triunfa quando seidentifica com o Estado, quando ele e o Estado. Em sua primeiragrande fase, nas cidades-Estados da Itália, em Veneza, em Gênova,em Florença, e a elite do dinheiro quem detém o poder. Na Holanda,no século XVII, a aristocracia dos Regentes governa no interesse einclusive de acordo com as diretrizes traçadas pelos homens denegócios, negociantes e administradores de fundos. Na Inglaterra, arevolução de 1688 marca analogamente um advento dos negócios àholandesa. A França está atrasada em mais de um século: e com arevolução de julho de 1830 que a.burguesia comercial se instala,enfim, confortavelmente no governo.

Assim, o Estado e favorável ou hostil ao mundo do dinheirosegundo o seu próprio equilíbrio e a sua própria força de resistência.O mesmo pode ser dito no tocante à cultura e à religião. Emprincípio, a religião, força tradicional, diz não às novidades domercado, do dinheiro, da especulação, da usura. Mas háacomodações com a Igreja. Esta não deixa de dizer não mas acabapor dizer sim às exigências imperiosas do século. Em poucaspalavras, ela aceita um aggiornamento, ter-se-ia dito ontem ummodernismo. Augustin Renaudet recorda que Santo Tomás deAquino (1225-1274) tinha formulado o primeiro modernismo fadadoa ter êxito. Mas se a religião e, portanto, a cultura, eliminou bastantecedo seus obstáculos, ela manteve, porém, uma forte oposição deprincipio, em especial no que se refere ao empréstimo a juros,condenado como usura. Pôde-se mesmo sustentar, um poucoapressadamente, e verdade, que esses escrúpulos só foram suscitadospela Reforma e que está aí a razão profunda da ascensão capitalistados países do Norte da Europa. Para Max Weber, o capitalismo, no

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sentido moderno da palavra, teria sido nem mais nem menos umacriação do protestantismo ou, melhor, do puritanismo.

Todos os historiadores se opõem a essa tese sutil, embora nãoconsigam desembaraçar-se dela de uma vez por todas; ela não cessade ressurgir diante dos olhos deles. E, no entanto, e uma tesemanifestamente falsa. Os países do Norte nada mais fizeram do quetomar o lugar ocupado por muito tempo e brilhantemente, antesdeles, pelos velhos centros capitalistas do Mediterrâneo. Os nórdicosnada inventaram, nem na técnica, nem na condução dos negócios.Amsterdam copiou Veneza, tal como Londres copiará Amsterdam,tal como Nova Iorque copiará Londres. O que está em jogo, de cadavez, e o deslocamento do centro de gravidade da economia mundialpor razões econômicas, e que não envolvem a natureza própria ousecreta do capitalismo. Esse deslizamento definitivo, no final doséculo XVI, do Mediterrâneo para os mares do Norte, e o triunfo deum país novo sobre um velho país. E é também uma vasta mudançade escala. A favor da nova supremacia do Atlântico, há umaampliação da economia em geral, das trocas, das reservasmonetárias e, uma vez mais, é o progresso vivo da economia demercado que, fiel ao rendez-vous de Amsterdam, carregará em suascostas as construções ampliadas do capitalismo. Finalmente, o errode Max Weber parece-me derivar essencialmente, no começo, deuma exageração do papel do capitalismo como promotor do mundomoderno.

Mas o problema essencial não está aí. O verdadeiro destino docapitalismo jogou-se, com efeito, em face das hierarquias sociais.

Toda a sociedade evoluída admite várias hierarquias, digamos,várias escadas que permitem abandonar o andar térreo onde vegeta amassa popular de base – o Grundvolk de Werner Sombart:hierarquia religiosa, hierarquia política, hierarquia militar, diversashierarquias do dinheiro. De uma para a outra, segundo os séculos esegundo os lugares, existem oposições, ou compromissos, oualianças; por vezes, até há confusão. No seculo XIII, em Roma, a

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hierarquia política e a hierarquia religiosa confundem-se, mas, emtorno da cidade, a terra e os rebanhos criam uma classe de grandessenhores perigosos, enquanto que os banqueiros da Cúria –instalados em Siena – já estão em franca ascensão. Em Florença, nofinal do século XIV, a antiga nobreza feudal e a nova grandeburguesia mercantil são apenas uma classe, formando a elite dodinheiro que também se apossa, logicamente, do poder político. Emoutros contextos sociais, pelo contrário, uma hierarquia política podeesmagar as outras: é o caso da China dos Ming e dos manchus. Étambém o caso, mas de um modo menos nítido e contínuo, daFrança monárquica do Ancien Régime, a qual só concede por largotempo aos comerciantes, ainda que ricos, um papel sem prestígio, eempurra para a primeira linha a hierarquia decisiva da nobreza. NaFrança de Luís XIII, o caminho do poderio consiste em aproximar-se do rei e da corte. O primeiro passo da verdadeira carreira deRichelieu, titular do bispado miserável de Luçon, foi tornar-se oesmoler da rainha-mãe, Maria de Medici, o que o fez assim chegar àcorte e introduzir-se no estreito círculo dos governantes.

Quantas as sociedades, tantos os caminhos para a ambição dosindivíduos. Tantos os tipos de êxitos. No Ocidente, embora nãosejam raros os êxitos de indivíduos isolados, a história repete semfim a mesma lição, a saber, que o sucesso individual deve quasesempre inscrever-se no ativo de famílias vigilantes, atentas,empenhadas em aumentar pouco a pouco sua fortuna e sua.influência. A ambição delas não exclui a paciência, manifesta-se alongo prazo. Deve-se, então, cantar as glórias e os méritos das“longas” famílias, das linhagens? É colocar em destaque, para oOcidente, o que chamamos, a traços largos, usando um termo que seimpôs tardiamente, a história da burguesia, portadora do processocapitalista, criadora ou utilizadora da hierarquia sólida que será aespinha dorsal do capitalismo. Este, com efeito, para estabelecer suafortuna e seu poderio, apóia-se sucessiva ou simultaneamente sobreo comércio, sobre a usura, sobre o comércio a distância, sobre o

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“ofício” administrativo e sobre a terra, valor seguro e que alémdisso, e mais do que se pensa, confere um evidente prestígio em faceda própria sociedade. Se estivermos atentos a essas longas cadeiasfamiliares, à lenta acumulação de patrimônios e honrarias, apassagem do regime feudal ao regime capitalista, na Europa, torna-se quase compreensível. O regime feudal é, em benefício de famíliassenhoriais, uma forma duradoura de partilha da riqueza fundiária,essa riqueza de base – ou seja, uma ordem estável em sua textura. A“burguesia”, ao longo dos séculos, terá parasitado essa classeprivilegiada, vivendo perto dela, contra ela, tirando proveito de seuserros, de seu luxo, de sua ociosidade, de sua imprevidência, para seapoderar de seus bens – com freqüência, graças à usura –,introduzir-se finalmente em suas fileiras e, depois, aí se perder. Masoutros burgueses estão a postos para reencetar o assalto, pararecomeçar a mesma luta. Em suma, parasitismo de longa duração: aburguesia não acaba de destruir a classe dominante para alimentar-sedela. Mas sua escalada foi lenta, paciente, a ambição projetada semfim nos filhos e netos. E assim sucessivamente.

Uma sociedade desse tipo, derivando de uma sociedade feudal,ela própria ainda meio feudal, e uma sociedade onde a propriedade,os privilégios sociais estão relativamente protegidos, onde asfamílias podem desfrutar deles numa relativa tranqüilidade, sendo apropriedade, por assim dizer, sacrossanta, onde cada um permaneceem seu lugar. Ora, são imprescindíveis essas águas calmas ourelativamente calmas para que a acumulação se faça, para quecresçam e se mantenham as linhagens, para que, com a ajuda daeconomia monetária, o capitalismo finalmente surja. Na ocorrência,ele destruiu certos baluartes da alta sociedade, mas para reconstruiroutros em seu proveito, tão sólidos e tão duradouros.

Essas longas gestações de fortunas familiares, culminando umbelo dia em êxitos espetaculares, nos são a tal ponto familiares, nopassado ou no tempo presente, que fica difícil nos darmos conta deque se trata, de fato, de uma característica essencial das sociedades

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do Ocidente. Na verdade, só nos apercebemos dela quando nosexpatriamos, olhando o espetáculo diferente que oferecem associedades fora da Europa. Nessas sociedades, aquilo a quechamamos, ou podemos chamar, o capitalismo defronta-se, emgeral, com obstáculos sociais pouco fáceis ou impossíveis detranspor. São esses obstáculos que nos colocam, por contraste, nocaminho de uma explicação geral.

Deixaremos de lado a sociedade japonesa, onde o processo é,de um modo geral, o mesmo que na Europa: uma sociedade feudal aíse deteriora lentamente, uma sociedade capitalista acaba pordesprender-se dela; o Japão é o país onde as dinastias mercantistiveram a mais longa duração: algumas, nascidas no século XVII,ainda hoje prosperam. Mas as sociedades ocidental e japonesa são osúnicos exemplos que a história comparada pôde reter de sociedadesque passaram quase por si mesmas da ordem feudal à ordemmonetária. Em outras sociedades, as posições respectivas do Estado,do privilégio da posição hierárquica e do privilégio do dinheiro sãomuito diferentes, e é dessas diferenças que procuraremos extrair umensinamento.

Vejamos a China e o Islã. Na China, as estatísticas imperfeitasque se nos oferecem deixam a impressão de que a mobilidade socialna vertical e aí maior do que na Europa. Não que o número deprivilegiados aí seja relativamente maior, mas a sociedade chinesa emuito menos estável. A porta aberta, a hierarquia aberta, e a dosconcursos dos mandarins. Embora esses concursos não sejamsempre realizados num contexto de honestidade absoluta, eles são,em princípio, acessíveis a todos os meios sociais, infinitamente maisacessíveis, em todo o caso, do que as grandes universidades doOcidente no século XIX. Os exames que abrem o acesso às altasfunções do mandarinato são, de fato, redistribuições das cartas dojogo social, um constante New Deal. Mas aqueles que assim chegamao topo sempre aí estão a título precário, a título vitalício, se sequiser. E as fortunas que os mandarins, amealham, com freqüência,

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no exercício de suas funções, pouco servem para fundar o que sechamaria, na Europa, uma grande família. Aliás, as famíliasexcessivamente ricas e poderosas são, por princípio, suspeitas aosolhos do Estado, que é de direito o único possuidor de terras, o únicohabilitado a criar impostos sobre os camponeses, e que fiscaliza deperto as empresas mineiras, industriais ou mercantis. O Estadochinês, apesar das cumplicidades locais de mercadores e demandarins corruptos, foi permanentemente hostil ao florescimentode um capitalismo que, toda vez que cresce ao sabor dascircunstâncias, e, em última instância, devolvido à ordem por umEstado de certo modo totalitário (estando a palavra despida de seuatual sentido pejorativo). Só existe verdadeiro capitalismo chinêsfora da China – na Insulíndia, por exemplo, onde o mercador chinêsage e reina com toda a liberdade.

Nos vastos países do Islã, sobretudo antes do século XVIII, aposse da terra é provisória pois que ela, também aí, pertence dedireito ao príncipe. Os historia dores diriam, na linguagem daEuropa do Ancien Régime, que existem benefícios (isto e, bensatribuídos a título vitalício), não os feudos familiares. Por outraspalavras, os senhorios, quer dizer, as terras, as aldeias, as rendasfundiárias, são distribuídos pelo Estado, como já o fazia outrora oEstado carolíngio, e ficam disponíveis de novo toda vez que morre obeneficiário. Para o príncipe, essa e uma forma de pagar e deassegurar-se dos serviços dos soldados e dos cavaleiros. Morre osenhor, o seu senhorio e todos os seus bens revertem ao sultão, emIstambul, ou ao Grão-Mongol, em Delhi. Digamos que esses grandespríncipes, enquanto dura a autoridade deles, podem mudar desociedade dominante, de classe elitista, como quem muda de camisa,e eles não se privam de fazê-lo. Portanto, a cúpula da sociedaderenova-se com muita freqüência, as famílias não têm qualquerpossibilidade de aí se incrustarem. Um estudo recente sobre o Cairono século XVIII assinalamos que os grandes mercadores nãologravam manter-se no lugar além de uma única geração. A

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sociedade política devorava-os. Se, na Índia, a vida mercantil e maissólida, e porque se desenvolve fora da sociedade instável da cúpula,no âmbito protetor das castas de mercadores e banqueiros.

Dito isto, o leitor verá melhor a tese que sustento, bastantesimples, verossímil: existem condições sociais para o surto e o êxitodo capitalismo. Este exige uma certa tranqüilidade da ordem social,assim como uma certa neutralidade, ou fraqueza, ou complacência,por parte do Estado. E, no próprio Ocidente, existem graus para essacomplacência: e por razões predominantemente sociais e incrustadasem seu passado que a França foi sempre um país menos favorável aocapitalismo do que, digamos, a Inglaterra.

Creio que este ponto de vista não suscita objeções sérias. Emcontrapartida, um novo problema se apresenta. O capitalismo temnecessidade de uma hierarquia. Mas o que e uma hierarquia em si,aos olhos de um historiador que vê desfilar diante dele centenas ecentenas de sociedades que têm todas suas hierarquias? Queresultam todas, na cúpula, em um punhado de privilegiados e deresponsáveis. Verdade de ontem, na Veneza do século XIII, naEuropa do Ancien Régime, na França de Thiers ou na de 1936, ondeos slogans populares denunciavam o poder das “duzentas famílias”.Mas também no Japão, na China, na Turquia, na Índia. É verdadeainda hoje: mesmo nos Estados Unidos, o capitalismo não inventa ashierarquias, utiliza-as, do mesmo modo que não inventou o mercadoou o consumo. Ele é, na longa perspectiva da história, o visitante danoite. Chega quando tudo já está em seus devidos lugares. Por outraspalavras, o problema em si da hierarquia supera-o, transcende-o,comanda-o de antemão. E as sociedades não-capitalistas nãosuprimiram, ai de nós!, as hierarquias.

Tudo isso abre a porta para longas discussões que tentei, semconcluir, apresentar no meu livro. Pois e certamente o problema-chave, o problema dos problemas. Deve-se quebrar a hierarquia, adependência de um homem em face de outro homem? Sim, disseJean-Paul Sartre em 1968. Mas será verdadeiramente possível?

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CAPÍTULO III

O TEMPO DO MUNDO

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NOS meus dois capítulos precedentes, as peças do quebra-cabeça foram apresentadas ou isoladamente ou reagrupadas numaordem arbitrária pelas necessidades da explicação. Trata-se agora dereconstruir o quebra-cabeça. É esse o objetivo do terceiro e últimovolume do meu livro: Le Temps du monde. O título sugere, por sisó, a minha ambição: vincular o capitalismo, sua evolução e seusmeios, a uma história geral do mundo.

Uma história, quer dizer, uma sucessão cronológica de formas,de experiências. O conjunto do mundo, isto é, entre os séculos XV eXVIII, essa unidade que se desenha e faz sentir progressivamente oseu peso sobre a vida inteira dos homens, sobre todas as sociedades,economias e civilizações do mundo. Ora, esse mundo afirma-se sobo signo da desigualdade. A imagem atual – países prósperos, de umlado, países subdesenvolvidos, do outro – já e verdadeira, mutatismutandis, entre os séculos XV e XVIII. É claro, de Jacques Coeur aJean Bodin, Adam Smith e Keynes, os países prósperos e os paísespobres não permaneceram imutavelmente os mesmos; a roda girou.Mas, em sua lei, o mundo praticamente não mudou: continua, noplano estrutural, repartido entre privilegiados e não-privilegiados.Existe uma espécie de sociedade mundial, tão hierarquizada quantouma sociedade ordinária e que é como a sua imagem ampliada masreconhecível. Microcosmo e macrocosmo têm, em última análise, amesma textura. Por quê? É o que tentarei dizer mas não estou certode o conseguir. O historiador vê mais comodamente os “como” doque os “porquê”, e melhor as conseqüências do que as origens dosgrandes problemas. Razão de sobra, bem entendido, para que eleainda mais se apaixone pela descoberta dessas origens que, tãoregularmente, lhe escapam e o desafiam.

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I

Uma vez mais, há interesse em fixar o vocabulário. Comefeito, necessitaremos utilizar duas expressões: economia mundial eeconomia-mundo, a segunda mais importante ainda do que aprimeira. Por economia mundial entende-se a economia do mundoconsiderada em seu todo, o “mercado. de todo o universo”, como jádizia Sismondi. Por economia-mundo, palavra que forjei a partir dovocábulo alemão Weltwirtschaft, entendo a economia de somenteuma porção do nosso planeta, na medida em que essa porção formaum todo econômico. Escrevi, já faz tempo, que o Mediterrâneo doséculo XVI era, por si só, uma Weltwirtschaft, umaeconomiamundo; podendo igualmente chamar-se-lhe, em alemão,ein Welt für sich, um mundo em si mesmo.

Uma economia-mundo pode-se definir como uma tríplicerealidade:

– Ela ocupa um espaço geográfico dado; portanto, tem limitesque a explicam e que variam, embora com uma certa lentidão.Ocorrem mesmo, forçosamente, de tempos em tempos, mas a longosintervalos, rupturas. Assim foi após as Grandes Descobertas do finaldo século XV. Assim foi em 1689, quando a Rússia, pela mão dePedro o Grande, abriu-se para a economia européia. Imaginamoshoje uma franca, total e definitiva abertura das economias da Chinae da URSS: haveria então uma ruptura dos limites do espaçoocidental, como o que atualmente existe.

– Uma economia-mundo aceita sempre um pólo, um centro,representado por uma cidade dominante, outrora uma cidade-Estado,hoje uma capital, entenda-se, uma capital econômica (nos EstadosUnidos, Nova Iorque, não Washington). Aliás, podem existir,inclusive de modo prolongado, dois centros simultâneos numamesma economia-mundo: Roma e Alexandria ao tempo de Augusto,Antônio e Cleópatra; Veneza e Gênova ao tempo da guerra de

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Chioggia (1378-1381); Londres e Amsterdam no século XVIII,antes da eliminação definitiva da Holanda. Pois um desses doiscentros acaba sempre por ser eliminado. Em 1929; o centro domundo, com um pouco de hesitação, passou assim, semambigüidade, de Londres para Nova Iorque.

– Toda a economia-mundo se reparte em zonas sucessivas. Onúcleo e a região que se estende em torno do centro: as ProvínciasUnidas (mas não todas as Províncias Unidas) quando Amsterdamdomina o mundo no século XVII; a Inglaterra (mas não toda aInglaterra) quando Londres, a partir da década de 1780, suplantadefinitivamente Amsterdam. Depois vêm as zonas intermediárias,em torno desse núcleo central. Finalmente, muito amplas, asmargens que, na divisão de trabalho que caracteriza a economia-mundo, são mais subordinadas e dependentes do que participantes.Nessas zonas periféricas, a vida dos homens evoca freqüentemente o

Purgatório, ou mesmo o Inferno. E a razão suficiente disso é,realmente, a sua situação geográfica.

Estas observações muito rápidas, exigiriam, evidentemente,comentários e justificações. O leitor os encontrará no terceirovolume do meu livro, mas poderá for mar uma noção exata daquestão no livro The Modern World-System, de ImmanuelWallerstein, publicado em 1974 nos Estados Unidos e traduzido naFrança com o título de Le Systeme du monde du XVe siècle à nosjours (ed. Flammarion). Pouco importa que eu não esteja sempre deacordo com o autor sobre tal ou tal ponto, até mesmo sobre uma ouduas linhas gerais. Os nossos pontos de vista, quanto ao essencial,são idênticos, ainda que, para Immanuel Wallerstein, não haja outraeconomia-mundo além da da Europa, fundada a partir do séculoXVI somente, enquanto que para mim, muito antes de ter sidoconhecido pelo homem da Europa na sua totalidade, desde a IdadeMédia e mesmo desde a Antigüidade, o mundo ia estava dividido emzonas econômicas mais ou menos centralizadas, mais ou menoscoerentes, ou seja, em várias economias-mundos que coexistem.

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Essas economias coexistentes que só têm entre elas trocasextremamente limitadas situam-se no espaço povoado do planeta ;deuma parte `e de outra em regiões limítrofes bastante vastas que ocomércio, em geral, tem poucas vantagens em atravessar, salvo rarasexceções. Até Pedro o Grande, a Rússia e, em si, uma dessaseconomias-mundos, vivendo essencialmente de si mesma e para simesma. O imenso império turco, até ao fim do século XVIII, etambém uma dessas economias-mundos. Em contrapartida, oimpério de Carlos V ou de Filipe II, apesar de sua imensidade, não oé; desde o seu início, está incluído na vasta malha da economiaantiga e vivaz constituída a partir da Europa. Pois desde antes de1492, antes da viagem de Cristóvão Colombo, a Europa,_ mais oMediterrâneo, com suas antenas voltadas na direção do ExtremoOriente, é também uma economia-mundo, centrada então nas glóriasde Veneza. Ela se ampliará com as Grandes Descobertas, anexará oAtlântico, suas ilhas e suas margens, depois o interior, lento emconquistar, do continente americano; multiplicará também seus laçoscom as economias-mundos, ainda autônomas, que constituem entãoa Índia, a Insulíndia e a China. Ao mesmo tempo, na própria Europa,seu centro de gravidade deslocar-se-á do sul para o norte, paraAntuérpia e depois Amsterdam, e não, sublinhe-se, para os centrosdo império hispânico ou português, Sevilha ou Lisboa.

Assim e possível colocar, no mapa e na história do mundo, umdecalque transparente onde, para cada época dada, um traço a lápisdelimita grosso modo as várias economias-mundos. Como essaseconomias mudam lentamente, temos todo o tempo necessário paraestuda-Ias, vê-Ias viver e avaliar-lhes o peso. Lentas em deformar-se, elas assinalam uma história profunda do mundo. Essa históriaprofunda somente a citaremos, porquanto o nosso problema consisteunicamente em mostrar de que modo as sucessivas economias-mundos, construídas na Europa a partir da expansão européia,explicam ou não os jogos do capitalismo e sua própria expansão.Não hesitaríamos em dizer desde ia que essas economias-mundos

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típicas foram as matrizes do capitalismo europeu e, depois, mundial.É, em todo o caso, a explicação para a qual pretendo encaminhar-me, com bastante prudência e também de um modo bastante lento.

II

Uma história profunda. Não a descobrimos, apenas a trazemospara a luz do dia. Lucien Febvre disse: “Nós lhe conferimosdignidade.” E já é muito. O leitor se persuadirá se insistosucessivamente nas mudanças de centro, as descentragens daseconomias-mundos, depois sobre a divisão de toda a economia-mundo em zonas concêntricas.

Toda a vez que ocorre uma descentragem, opera-se umarecentragem, como se uma economia-mundo não pudesse viver semum centro de gravidade, sem um pólo. Mas essas descentragens erecentragens são raras, o que as reveste ainda de mais importância.No caso da Europa e das zonas que ela anexa, operou-se umacentragem na década de 1380, em benefício de Veneza. Por volta de1500, houve um salto brusco e gigantesco de Veneza paraAntuérpia, depois, em 1550-1560, um retorno ao Mediterrâneo, masdesta vez em favor de Gênova; enfim, por volta de 1590-1610, umatransferência para Amsterdam, onde o centro econômico da zonaeuropéia se estabilizará por quase dois séculos. Entre 1790 e 1815deslocar-se-á para Londres. Em 1929, atravessa o Atlântico e situa-se em Nova Iorque.

No relógio do mundo europeu, a hora fatídica terá assim soadocinco vezes e, de cada vez, esses deslocamentos realizaram-se notranscorrer de lutas, de choques, de fortes crises econômicas. Deordinário, é mesmo o mau tempo econômico que acaba por abater ocentro antigo, já ameaçado, e confirma o surgimento do novo. Tudoisso, evidentemente, sem regularidade matemática: uma criseinsistente é uma provação que os fortes superam e vencem, os fracos

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lhe sucumbem. Portanto, o centro não racha a cada golpe. Pelocontrário, as crises do século XVII resultaram, na maioria dos casos,em benefício de Amsterdam. Vivemos hoje, há alguns anos, umacrise mundial que se anuncia forte e duradoura. Se Nova Iorquesucumbir à provação – no que realmente não creio – o mundo deveencontrar ou inventar um novo centro; se os Estados Unidosresistem, como tudo nos deixa prever, poderão sair mais fortes daexperiência, pois que as outras economias correm o risco de sofrermuito mais do que os Estados Unidos em decorrência da conjunturahostil que atravessamos.

Em todo o caso, centragem, descentragem, recentragem,parecem usualmente ligadas a crises prolongadas da economia geral.Portanto, é através dessas crises que se deve, sem dúvida, abordar odifícil estudo desses mecanismos de conjunto por meio dos quais ahistória geral se reconstitui. Um exemplo, observado de perto, nosdispensará de um comentário excessivamente longo. Emconseqüência de transformações, de acidentes políticos, em virtude,até, da não-consolidação do centro do mundo em Antuérpia, oMediterrâneo inteiro desforrou-se durante a segunda metade doséculo XVI. O metal branco que, chegando em grandes quantidadesdas minas da América, passava até então, por prioridade da Espanhana Flandres, pelo Atlântico, tomou, a partir de 1568, o caminho domar interior e Gênova converteu-se no seu centro redistribuidor. OMediterrâneo conheceu então uma espécie de Renascençaeconômica, desde o estreito de Gibraltar até aos mares do Levante.Mas esse “século dos genoveses”, como se chamou a esse período,durou pouco. A situação deteriora-se e as feiras genovesas dePiacenza, que tinham sido, durante quase meio século, o grandecentro de clearing dos negócios europeus, perdem seu importantepapel ainda antes de 1621. O Mediterrâneo volta a ser, como erabastante lógico após

as Grandes Descobertas, um espaço secundário, o quecontinuará sendo por largo tempo.

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Essa decadência do Mediterrâneo, um século após CristóvãoColombo, portanto, ao termo de um longo e espantoso período deapogeu, e um dos problemas cruciais por mim levantados no grossovolume que publiquei, há muito tempo, sobre o espaçomediterrâneo. Que data atribuir a esse refluxo? 1610, 1620, 1650?Sobretudo, que processo apontar como responsável? Esta últimapergunta, a mais importante, foi resolvida de modo brilhante e, emminha opinião, exato, num artigo de Richard T. Rapp (The Journalof Economic History, 1975). Direi de bom grado que e um dos maisbelos artigos que me foi dado ler desde longa data. O que nos eprovado e que o mundo mediterrâneo, a partir da década de 1570, foiacossado, flagelado, sacudido e pilhado pelos navios e osmercadores nórdicos, e que estes não construíram sua primeirafortuna graças à Companhia das Índias e às aventuras nos sete maresdo mundo. Eles lançaram-se sobre as riquezas armazenadas ao longodo Mediterrâneo e apoderaram-se delas por todos os meios, osmelhores e os piores. Inundaram o Mediterrâneo de produtosbaratos, quase sempre de péssima qualidade, mas imitandodeliberadamente os excelentes têxteis do sul, ornando-os até com osmundialmente famosos selos venezianos a fim de venderem suasfancarias sob essa etiqueta nos mercados habituais de Veneza. Deuma assentada, a indústria mediterrânea perdia, ao mesmo tempo,sua clientela e sua reputação. Imagine-se o que aconteceria se,durante 20, 30 ou 40 anos, países novos tivessem a possibilidade dese impor nos mercados externos ou mesmo internos dos EstadosUnidos, vendendo-lhes seus produtos com a etiqueta: Made in USA.

Em resumo, o triunfo dos nórdicos não teria resultado de umamelhor concepção dos negócios nem dó jogo natural daconcorrência industrial (embora tivessem sido certamentefavorecidos pelo pagamento de salários inferiores), nem ao fato deterem adotado a Reforma., A política deles consistiu simplesmenteem conquistar o lugar dos antigos ganhadores,, sendo a violência umdos recursos usados. Será necessária dizer que essa regra persiste? A

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partilha violenta do mundo, quando da I Guerra Mundial,denunciada por Lênin, e menos nova do que se acreditava. E não éainda uma realidade do mundo atual? Aqueles que estão no centro,ou perto do centro, têm todos os direitos sobre os outros.

E isso acarreta a segunda questão anunciada: a divisão de todaa economia-mundo em zonas concêntricas, cada vez menosfavorecidas à medida que se distanciam de seu pólo triunfante.

O esplendor, a riqueza, a alegria de viver, reúnem-se no centroda economia-mundo, em seu núcleo. É aí que o sol da história fazbrilhar as cores mais vivas, e aí que se manifestam os preços altos,os salários altos, os bancos, as mercadorias “reais”, as indústriaslucrativas, as agriculturas capitalistas; e aí que se situam o ponto departida e o ponto de chegada dos extensos tráficos, o afluxo dosmetais preciosos, das moedas fortes, dos títulos de crédito. Todauma modernidade econômica em avanço aí se aloja: o viajanteassinala-o quando vê Veneza no século XV, ou Amsterdam noséculo XVII, ou Londres no século XVIII, ou Nova Iorque hoje. Astécnicas de ponta também aí estão, habitualmente, e a ciênciafundamental acompanha-as, está com elas. As “liberdades” aí sealojam, não sendo inteiramente mitos nem inteiramente realidades.Pense-se no que se chamou a liberdade da vida em Veneza, ou as,liberdades na Holanda, ou as liberdades na Inglaterra!

Esse nível da existência baixa de um tom quando se atinge ospaíses intermediários, esses vizinhos, esses concorrentes, essesêmulos do centro. Aí, poucos camponeses livres, poucos homenslivres, trocas imperfeitas, organizações bancárias e financeirasincompletas, mantidas freqüentemente do exterior, indústriasrelativamente tradicionais. Por muito bela que a França pareça serno século XVIII, o seu nível de vida não se compara com o daInglaterra. John Bull, “superalimentado”, comedor de carne, calça

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sapatos; e o francês Jacques Bonhomme, franzino, comedor de pão,macilento, envelhecido prematuramente, calça tamancos.

Mas como se está longe da França quando se aborda as regiõesmarginais! Por volta de 1650, para usar um ponto de referência, ocentro do mundo e a minúscula Holanda ou, melhor, Amsterdam. Aszonas intermediárias, as zonas segundas, são o resto da Europamuito ativa, ou seja, os países do Báltico, do mar do Norte, aInglaterra, a Alemanha do Reno e do Elba, a França, Portugal,Espanha, a Itália ao norte de Roma. E as regiões marginais são, aonorte, a Escócia, a Irlanda, a Escandinávia, toda a Europa a leste deuma linha Hamburgo-Veneza, a Itália ao sul de Roma (Nápoles, aSicília); enfim, além-Atlântico, a América europeizada, margem porexcelência. Se excetuarmos o Canadá e as colônias inglesas daAmérica em seus começos, o Novo Mundo está por inteiro sob osigno da escravatura. Do mesmo modo, a margem da Europacentral, até à Polônia e além, e a zona da segunda servidão, ou seja,de uma servidão que, depois de ter quase desaparecido como tal noOcidente, aí foi restabelecida no século XVI.

Em resumo, a economia-mundo européia, em 1650, e ajustaposição, a coexistência de sociedades que vão desde asociedade já capitalista, a holandesa, até às sociedades servis eescravistas, no fundo da escala. Essa simultaneidade, essesincronismo., fixam todos os problemas ao mesmo tempo. De fato, ocapitalismo vive dessa sobreposição regular: as zonas externasalimentam as zonas medianas e, sobretudo, as centrais. E o que é ocentro senão a ponta dominante, a superestrutura capitalista doconjunto da construção? Como há reciprocidade das perspectivas,se o centro depende dos abastecimentos provenientes da periferia,esta depende, por sua vez, das necessidades do centro que lhe ditasua lei. No fim de contas, foi a Europa Ocidental quem transferiu ecomo que reinventou a escravatura à moda antiga no âmbito doNovo Mundo e, pelas exigências de sua economia, “induziu” asegunda servidão na Europa do leste. Daí o peso da afirmação de

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Immanuel Wallerstein: o capitalismo é uma criação da desigualdadedo mundo; para desenvolver-se, necessita das conivências daeconomia internacional. É filho da organização autoritária de umespaço evidentemente desmedido. Não teria progredido de um modotão pujante num espaço econômico limitado. Talvez não tivesseprogredido nada sem o recurso ao trabalho servil de outrem.

Essa tese é uma explicação diferente do habitual modelosucessivo: escravatura, servidão, capitalismo. Postula umasimultaneidade, um sincronismo singular demais para não ser degrande alcance. Mas não explica-tudo, não pode explicar tudo. Quemais não seja, sobre um ponto que creio essencial para as origens docapitalismo moderno, quer dizer, o que se passa além das fronteirasda economia-mundo européia.

Com efeito, até ao final do século XVIII e ao aparecimento deuma verdadeira economia mundial, a Ásia conheceu, por seu lado,economias-mundos solidamente organizadas e exploradas: penso naChina, no Japão, no bloco Índia-Insulíndia, no Islã. É de boa regraafirmar, e é exato, aliás, que se afirme, que as relações entre essaseconomias e as da Europa são superficiais, que envolvem apenasalgumas mercadorias de luxo – pimentas, especiarias e seda, emparticular – trocadas contra espécies monetárias, e que o todo poucoconta em face das massas econômicas em presença. Sem dúvida,mas essas trocas restritas e soit-disant superficiais são aquelas quese reserva, de cada lado, o grande capital, e. isso tampouco é, nãopode ser, um acaso. Chego mesmo a pensar que toda a economia-mundo se manipula freqüentemente desde fora. A grande história daEuropa o diz com insistência e ninguém pensa que ela esteja erradaem colocar em destaque a chegada de Vasco da Gama a Calicut, em1498, a escala do holandês Cornelius Houtman em Bantam, a grandecidade de Java, em 1595, a vitória de Robert Clive em Plassey, em1757, que entrega Bengala à Inglaterra. O destino tem botas de seteléguas. Atinge muito longe.

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III

Já falei de uma sucessão de economias-mundos na Europa, apropósito dos centros que as criaram e animaram, uma após outra.Assinale-se que, até por volta de 1750, esses centros dominadoresforam sempre cidades, ou cidades-Estados. Porquanto se pode muitobem dizer que Amsterdam, que domina o mundo. da economia aindaem meados do século XVIII, foi a última das cidades-Estados, daspólis da história. Por trás dela, as Províncias Unidas exercem apenasuma sombra de governo. Amsterdam reina sozinha,, farol luminosoque se vê do mundo inteiro, desde o mar das Antilhas até às costasdo Japão. Pelo contrário, em meados do Século das Luzes começauma era diferente. Londres, a nova soberana, não é uma cidade-Estado, é a capital das ilhas britânicas que lhe fornecem a forçairresistível de um mercado nacional.

Portanto, duas fases: as criações e dominações urbanas; ascriações e dominações “nacionais”. Tudo isso a ser visto muitorapidamente, não só porque o leitor está ao corrente desses fatosconhecidos, não só porque já falei deles, mas também porque, ameus olhos, somente importa o conjunto desses fatos conhecidos,pois e a respeito desse conjunto que o problema do capitalismo sepõe e se esclarece de maneira bastante nova.

A Europa terá, sucessivamente, até 1750, gravitado em tornode cidades essenciais, transformadas por seu próprio papel emmonstros sagrados: Veneza, Antuérpia, Gênova, Amsterdam.Entretanto, nenhuma cidade dessa ordem domina ainda a vidaeconômica no século XIII. Não que a Europa não seja já umaeconomia-mundo estruturada, organizada. O Mediterrâneo,conquistado por um tempo pelo Islã, foi reaberto ao cristão e ocomércio do Levante oferece ao Ocidente essa antena longínqua eprestigiosa sem a qual não existe, sem dúvida, economia-mundodigna desse nome. Duas regiões-pilotos se individualizaram

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nitidamente: a Itália ao sul, os Países Baixos ao norte. E o centro degravidade do conjunto estabilizou-se entre essas duas zonas, a meiocaminho, nas feiras de Champagne e de Brie, essas feiras que sãocidades artificiais adicionadas a uma quase grande cidade – Troyes –e a três cidades secundárias: Provins, Bar-sur-Aube e Lagny.

Seria um exagero dizer que esse centro de gravidade situa-seno vazio, tanto mais que não se encontra muito distante de Paris,então uma grande praça comercial no pleno fulgor da monarquia deSão Luís e do excepcional brilhantismo de sua Universidade.Giuseppe Toffanin, historiador do Humanismo, não se enganou emseu livro, com um título característico: Il Secolo senza Roma,entenda-se o século XIII, durante o qual Roma perdeu, em benefíciode Paris, seu reinado cultural. Mas e perfeitamente óbvio que obrilho de Paris, nesse tempo, tem algo a ver com as feiras ruidosas eativas de Champagne, lugar quase contínuo de encontrosinternacionais. Os panos e têxteis do norte, dos Países Baixos latosensu – vasta nebulosa de oficinas familiares que trabalham a lã, ocânhamo, o linho, desde as margens do Marne até ao Zuyderzee –são trocados pela pimenta, as especiarias e o dinheiro dosmercadores e prestamistas italianos. Essas trocas restritas deprodutos de luxo são suficientes, entretanto, para pôr em marcha umenorme aparelho, de comércio, de indústrias, de transportes e decrédito, e a fazer dessas feiras o centro econômico da Europa daépoca.

O declínio das feiras de Champagne é marcado, com o fim doséculo XIII, por razões diversas: a realização de uma ligaçãomarítima direta entre o Mediterrâneo e Bruges desde 1297 – o marleva a melhor sobre a terra; a valorização da via norte-sul dascidades alemãs, pelo Símplon e o Saint-Gothard; a industrialização,enfim, das cidades italianas: elas não se contentavam mais em tingiros panos crus do Norte, doravante fabricamnos e a Arte della lanaganha impulso em Florença. Mas, sobretudo, a grave criseeconômica que não tarda em acompanhar a tragédia da Peste Negra,

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no século XIV, vai desempenhar seu papel habitual: a Itália, aparceira mais poderosa das trocas de Champagne, sairá triunfante daprovação. Ela tornou-se, ou voltou a ser, o centro indiscutível davida européia. Vai encarregar-se de todas as trocas entre Norte e Sule, além disso, as mercadorias que lhe chegam do Extremo Orientepelo golfo Pérsico, o mar Vermelho e as caravanas do Levante,abrem-lhe a priori todos os mercados da Europa.

Na verdade, o primado italiano se dividirá por muito tempoentre quatro cidades poderosas: Veneza, Milão, Florença e Gênova.Somente após a derrota de Gênova, em 1381, e que começa o longoreinado, nem sempre tranqüilo, de Veneza. Durará, entretanto, maisde um século, por todo o tempo em que Veneza dominar as praçasdo Levante, e atuará como redistribuidora principal, para a Europainteira que a visita pressurosa, dos produtos mais procurados quechegavam do Extremo Oriente. No século XVI, Antuérpia suplanta acidade de São Marcos: é que ela tornou-se o entreposto da pimentaque Portugal importa em grandes quantidades via Atlântico e, porconseguinte, o porto do Escalda, onde os portugueses estabeleceramsua feitoria na Flandres, converteu-se num enorme centro,dominando o tráfego do Atlântico e da Europa do norte.Subseqüentemente, diversas razões políticas, cuja explicação seriademasiado longa e que estão ligadas à guerra dos espanhóis nosPaíses Baixos, darão o posto dominante a Gênova. A fortuna dacidade de São Jorge não se baseia, quanto a ela, no comércio doLevante mas no do Novo Mundo, no comércio de Sevilha e noscaudais de prata provenientes das minas americanas, de que ela setornou o redistribuidor europeu. Enfim, Amsterdam põe todos deacordo: sua longa preponderância – mais de século e meio –exercida desde o Báltico ao Levante e às Molucas, dependeessencialmente de seu incontestado controle das mercadorias doNorte, por um lado, e, por outro, das “especiarias finas”, canela,cravo, etc., de que os holandeses encamparam rapidamente todas as

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fontes de suprimento no Extremo Oriente. Esse quase-monopóliopermitiu a Amsterdam jogar um pouco por toda a parte a seu modo.

Mas deixemos essas cidades-impérios para chegar rapidamenteao grande problema dos mercados nacionais e das economiasnacionais.

Uma economia nacional e um espaço político transformadopelo Estado; em virtude das necessidades e inovações da vidamaterial, num espaço econômico coerente, unificado, cujasatividades podem encaminhar-se em conjunto numa mesma direção.Somente a Inglaterra terá realizado precocemente essa façanha. Aseu respeito, fala-se de revoluções: agrícola, política, financeira,industrial. Cumpre acrescentar a essa lista, dando-lhe o nome que sequeira, a revolução que criou o seu mercado nacional. Otto Hintze,criticando Sombart, foi um dos primeiros a sublinhar a importânciadessa transformação, a qual decorre da abundância relativa, numterritório bastante exíguo, dos meios de transporte, somando-se acabotagem marítima à rede compacta de rios e canais e àsnumerosas viaturas e animais de carga. Por intermédio de Londres,as províncias inglesas trocam seus produtos e os exportam, tantomais que o espaço inglês foi desde cedo liberado de suas alfândegase seus pedágios internos. Finalmente, a Inglaterra realizou sua uniãocom a Escócia em 1707, com a Irlanda em 1801.

A façanha, pensará o leitor, já tinha sido realizada pelasProvíncias Unidas, mas seu território era minúsculo, incapaz até dealimentar sua população. Esse mercado interno não entra noscálculos dos capitalistas holandeses, inteiramente voltados para omercado externo. Quanto à França, defrontou-se com obstáculosdemais: seu atraso econômico, sua imensidade relativa, sua rendapro capite demasiado frágil, suas ligações internas difíceis e, paraterminar, uma centragem imperfeita. Portanto, um país

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excessivamente vasto em relação aos transportes da época,excessivamente diverso e desorganizado. Edward Fox, num livroque causou grande alarido, não teve dificuldade em mostrar quehavia, pelo menos, duas Franças, uma marítima, viva, flexível,sacudida pelo impulso econômico do século XVIII, mas que estápouco vinculada ao hinterland, todas as suas atenções voltadas parao mundo exterior, e a outra continental, presa à terra, conservadora,habituada aos estreitos horizontes locais, inconsciente das vantagenseconômicas de um capitalismo internacional. E foi esta segundaFrança que teve regularmente em suas mãos o poder econômico.Tanto mais que o centro governamental do país, Paris, no interiorrural, nem mesmo e a capital econômica da França; esse papel foidesempenhado por muito tempo por Lyon, desde o estabelecimentode suas feiras em 1461. Esboçou-se no final do século XVI ummovimento a favor de Paris, mas não teve seguimento. Só depois de1709 e da “bancarrota” de Samuel Bernard e que Paris se torna ocentro econômico do mercado francês e que este, após areorganização da Bolsa de Paris, em 1724, começa a desempenhar oseu papel. Mas e tarde, e o motor,,embora ganhe embalo na época deLuís XVI, não chega a animar, a subjugar a totalidade do espaçofrancês.

A Inglaterra teve um destino diverso e muito mais simples. Sóhavia um centro, Londres, centro econômico e político desde oséculo XV e que, formando-se rapidamente, modela ao mesmotempo o mercado inglês de acordo com as suas conveniências, ouseja, as conveniências dos grandes comerciantes locais.

Por outra parte, a sua insularidade ajudou a Inglaterra aseparar-se de outrem, a desprender-se da ingerência do capitalismoestrangeiro. Assim aconteceu em face de Antuérpia, graças aThomas Gresham, em 1558, com a criação da Stock Exchange[Bolsa de Valores]. Assim aconteceu com a Liga Hanseática,quando do encerramento do Stalhof, em 1597, e da revogação dosprivilégios de seus antigos hóspedes. Assim aconteceu em face de

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Amsterdam, desde o primeiro Navigation Act de 1651. Nessa época,Amsterdam domina-o essencial do comércio europeu. Mas aInglaterra dispunha contra ela de um meio de pressão: os veleirosholandeses têm, com efeito, a necessidade constante, dado o regimede ventos dominantes, de fazer escala nos portos ingleses. É o queexplica, sem dúvida, que a Holanda tenha aceitado da Inglaterramedidas protecionistas que não aceitou de mais ninguém. Em todo ocaso, a Inglaterra soube proteger o seu mercado nacional e a suaindústria nascente melhor do que qualquer outro pais da Europa. Avitória inglesa sobre a França, lenta em afirmar-se, precoce emdetonar. (em minha opinião, desde o tratado de Utrecht, em 1713),atinge o seu– auge em 1786 (o tratado de Eden) e torna-se triunfalem 1815 (vitória de Waterloo).

Com o advento de Londres, foi virada uma página da históriaeconômica da Europa e do mundo, pois o estabelecimento dapreponderância econômica da Ingla terra, preponderância que seestende também à liderança política, marca o fim de uma eramultissecular, a das economias de conduta urbana e não menos a daseconomias-mundos que, apesar do impulso e das cobiças da Europa,teriam sido incapazes de englobar o resto do universo. O que aInglaterra logrou às custas de Amsterdam não foi somente orecomeço das antigas proezas mas a sua superação.

Essa conquista do universo foi difícil, cortada de incidentes ede dramas, mas a preponderância inglesa manteve-se, superou osobstáculos. Pela primeira vez, a economia mundial européia,abalando as outras, vai pretender dominar a economia mundial eidentificar-se com ela através de um universo onde todo e qualquerobstáculo se apagará diante do inglês, ele primeiro, mas tambémdiante do europeu. Isso até 1914. André Siegfried, que, nascido em1875, tinha 25 anos no inicio do nosso século, recordava comdelicia, muito mais tarde, num mundo eriçado de fronteiras, quetinha feito então a volta ao mundo portando como único documento

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de identidade ... o seu cartão de visita! Milagre da pax britannica, daqual, evidentemente, um certo numero de homens pagava o preço...

IV

A Revolução Industrial inglesa, de que nos falta falar, foi, paraa preponderância da ilha, um banho de rejuvenescimento, um novoconvênio com a potência. Mas não se assustem: não vou lançar-meirrefletidamente nesse enorme problema de história que, na verdade,chega até nós, assedia-nos. A indústria está sempre à nossa volta,sempre revolucionária e ameaçadora. Tranqüilizem-se: pretendoapenas expor os primórdios desse enorme movimento e cuidareibem de não me lançar nas brilhantes controvérsias em quemergulham os historiadores anglo-saxônicos, eles, em primeirolugar, e os outros. Aliás, o meu problema e restrito: quero assinalarem que medida a industrialização inglesa se harmoniza com osesquemas e modelos que desenhei e em que medida ela se integra àhistória geral do capitalismo, já tão rico em golpes teatrais.

Precisemos que a palavra revolução e aqui, como sempre,empregada numa acepção contrária. Uma revolução, segundo aetimologia, e o movimento de uma roda, de um astro que gira, ummovimento rápido: desde o instante em que começa, sabe-se queestá fadado a terminar bastante depressa. Ora, a RevoluçãoIndustrial foi, por excelência, um movimento lento e, em seuscomeços, pouco discernível. O próprio Adam Smith viveu no meiodos primeiros sinais dessa Revolução sem se aperceber disso.

Que a Revolução tenha sido muito lenta, portanto, difícil,complexa, não o explica o tempo presente? Sob os nossos olhos,uma parte do Terceiro Mundo industrializa-se, mas com umadificuldade inaudita, com inúmeros fracassos e uma morosidade queparece a priori anormal. Uma vez, e o setor agrícola que nãoacompanhou a modernização; ou há escassez de mão-de-obra

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qualificada; ou a demanda do mercado interno revelou-seinsuficiente; outra vez, os capitalistas locais preferiram aosinvestimentos no país colocar o dinheiro no exterior, em negóciosmais seguros e mais lucrativos; ou o Estado revelou ser esbanjadorou prevaricador; ou a técnica importada e inadaptada, ou custa muitocaro e pesa sobre o preço de custo; ou as importações necessáriasnão são compensadas pelas exportações: o mercado internacional,por este ou aquele motivo, revelou-se hostil, e sua hostilidade teve aúltima palavra.. Ora, todas essas transformações produzem-sequando a Revolução ia não tem que ser inventada, quando osmodelos estão à disposição de todo o mundo. Portanto, a priori, tudodeveria ser fácil. E nada funciona facilmente.

De fato, a situação de todos esses países não lembra muitomais o que se passou antes da experiência inglesa, ou seja, ofracasso de tantas revoluções antigas, virtualmente possíveis noplano técnico? O Egito ptolemaico conhecia a força do vapor deágua mas só servia como divertimento. O mundo romano dispunha -de um vasto acervo técnico e tecnológico que, por mais de uma vez,terá atravessado, sem que o notassem, os séculos da alta IdadeMédia, para reviver nos séculos XII e XIII. Nesses séculos derenascença, a Europa aumenta de um modo fantástico suas fontes deenergia, multiplicando os moinhos de água, que Roma tinhaconhecido, e os moinhos de vento: é já uma revolução industrial.Parece que a China descobriu no século XIV a fundição a coque,mas essa revolução virtual não teve continuidade alguma. No séculoXVI, todo um sistema de elevação, bombeamento e esgotamento deágua é instalado nas minas profundas, mas essas primeiras fábricasmodernas, usinas avant la lettre, depois de terem seduzido o capital,serão rapidamente vítimas das leis dos rendimentos decrescentes. Noséculo XVII, o uso do carvão mineral ampliou-se na Inglaterra, eJohn U. Nef teve razão em falar, a esse respeito, de uma primeirarevolução inglesa, mas uma revolução incapaz de se propagar e deacarretar grandes transformações. Quanto à França, os sinais de um

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progresso industrial são nítidos no século XVIII, as invençõestécnicas sucedem-se e a ciência fundamental e, pelo menos, tãobrilhante quanto além-Mancha. Mas, enfim, é na Inglaterra que sãodados os passos decisivos. Aí tudo se processou como quenaturalmente e é esse o problema apaixonante que apresenta aprimeira Revolução Industrial do mundo, a maior cesura da históriamoderna. Mas por quê a Inglaterra?

Os historiadores ingleses estudaram tanto esses problemas queo historiador estrangeiro perde-se facilmente no meio decontrovérsias que ele compreende, uma de cada vez, mas cuja somaem nada simplifica a explicação. A única coisa segura é que asexplicações fáceis e tradicionais foram descartadas. A tendência é,cada vez mais, para considerar a Revolução Industrial como umfenômeno de conjunto, e um fenômeno lento que implica, porconseguinte, origens longínquas e profundas.

Se nos reportarmos aos crescimentos difíceis e caóticos de quefalei há um instante, nas zonas mal desenvolvidas do mundo de hoje,não e surpreendente que o boom da revolução pela máquina inglesa,da primeira produção em massa, tenha podido desenvolver-se nofinal do século XVIII e prosseguido durante o século XIX como umfantástico crescimento nacional, sem que em nenhuma parte o motorenguice, sem que em nenhuma parte se produzam estrangulamentos?Os campos ingleses esvaziaram-se de homens, sem que deixassemde manter sua capacidade de produção; os novos industriaisencontraram a mão-de-obra, qualificada e não-qualificada, de quenecessitavam; o mercado interno continuou se desenvolvendo,apesar da alta dos preços; a técnica acompanhou, propondoregularmente seus serviços sempre que se fazia necessário; osmercados externos abriram-se em cadeia, um após outro. E mesmoos lucros decrescentes, a queda muito forte, por exemplo, dos lucrosda indústria do algodão depois do primeiro boom, não provocaramuma crise: os enormes capitais acumulados foram transferidos paraoutro lugar e as estradas de ferro sucederam ao algodão.

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Em suma, todos os setores da economia inglesa responderamàs exigências dessa investida vigorosa da produção, sem bloqueios,sem avarias. Logo, não é toda a economia nacional que deve serresponsabilizada? Aliás, na Inglaterra, a revolução do algodão surgiuda vida comum. Na maioria dos casos, as descobertas são feitas porartesãos. Os industriais são, com freqüência, de origem humilde. Oscapitais investidos, fáceis de obter através de empréstimos, foram noinício de escasso volume. Não foi a riqueza adquirida, não foiLondres e seu capitalismo mercantil e financeiro, quem provocou aespantosa mutação. Londres só obterá o controle da indústria depoisda década de 1830. Assim se vê admiravelmente, e com base numvasto exemplo, que é a força, a vida da economia de mercado emesmo da economia de base, da pequena indústria inovadora e, nãomenos, do funcionamento global da produção e das trocas, que têm aresponsabilidade pelo desenvolvimento do que em breve seráchamado de capitalismo industrial. Este só pôde crescer, adquirirforma e força, na medida do avanço da economia subjacente.

Entretanto, a Revolução Industrial inglesa certamente não teriasido o que foi sem as circunstâncias que fizeram então da Inglaterra,praticamente, a senhora in contestada do mundo. A RevoluçãoFrancesa e as guerras napoleônicas, como se sabe, para issocontribuíram largamente. E se o boom do algodão se consolidou deforma duradoura foi porque o motor se viu incessantementerealimentado pela abertura de novos mercados: a Américaportuguesa, a América espanhola, o império turco, as Índias... Omundo foi o cúmplice eficaz, sem querer, da Revolução Inglesa.

De modo que a discussão tão acerba entre os que somenteaceitam uma explicação interna do capitalismo e da RevoluçãoIndustrial por uma transformação das estruturas sócio-econômicas, eaqueles que só querem ver uma explicação externa (na verdade, aexploração imperialista do mundo), essa discussão parece-me semobjetivo. Não explora o mundo quem quer. É necessária umapotência prévia lentamente amadurecida. Mas é certo que essa

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potência, se se forma mediante um trabalho lento sobre si mesma,reforça-se péla exploração de outros e, no decorrer desse duploprocesso, a distância que a separa deles aumenta. As duasexplicações (interna e externa) estão, pois, inextricavelmentemisturadas.

Eis-me chegado ao momento de concluir. Não estou certo deque tenha convencido o leitor. Mas duvido ainda mais de queconsiga convence-lo agora, confiando lhe, para terminar as minhasexplicações, o que penso do mundo e do capitalismo hodiernos, àluz do mundo e do capitalismo de ontem, tal como os vejo e comotentei descreve-los. Mas não e mister que a explicação histórica váaté ao tempo presente? Que ela se justifique por esse encontro?

Sem dúvida, o capitalismo de hoje mudou de tamanho e deproporções, de um modo fantástico. Adequou-se às mudanças debase e dos meios, estes fantasticamente ampliados também. Mas,mutatis mutandis, duvido de que a natureza do capitalismo tenhamudado radicalmente.

Três provas vêm em meu apoio:– O capitalismo permanece fundamentado numa exploração

dos recursos e das possibilidades internacionais, por outras palavras,existe em dimensões mundiais ou, pelo menos, tende para o mundointeiro. Sua grande tarefa atual: reconstituir esse universalismo.

– Apóia-se sempre, obstinadamente, em monopólios de direitoou de fato, apesar das violências desencadeadas a esse respeitocontra ele, A organização, como se diz hoje, continua a fazerfuncionar o mercado. Mas e errôneo considerar que seja esse umfato verdadeiramente novo.

– Mais ainda: apesar do que habitualmente se diz, ocapitalismo não abrange toda a economia, toda a sociedade quetrabalha; jamais encerra uma e outra num sistema, o dele, e que seria

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perfeito: a tripartição de que falei antes – vida material, economia demercado, economia capitalista (esta com enormes adjunções) –conserva um surpreendente valor atual de discriminação e deexplicação. Para nos convencermos disso basta conhecer por dentroalgumas atividades presentes, características, situadas nessesdiferentes patamares. No andar térreo, mesmo na Europa, ondeexiste ainda tanto autoconsumo, serviços que a contabilidadenacional não integra, tantas barracas e pequenas lojas artesanais. Nopatamar médio, seja exemplo um confeccionador de vestuário: eleestá submetido, em sua produção e no escoamento de sua produção,à estrita e mesmo feroz lei da concorrência; um momento dedesatenção ou de fraqueza de sua parte, e é a débâcle. Mas eupoderia citar, no último andar, entre outras, duas enormes firmas queconheço, supostamente concorrentes – e as únicas concorrentes nomercado europeu, uma francesa, a outra alemã. Ora, é-lhesperfeitamente indiferente que as encomendas sejam confiadas a umaou a outra, porquanto há uma fusão de seus interesses, seja qual for avia adotada para esse efeito.

Confirmo-me assim na minha opinião, à qual aderi pessoal elentamente, a saber: o capitalismo deriva, por excelência, dasatividades econômicas desenvolvidas na cúpula ou que tendem paraa cúpula. Por conseguinte, esse, capitalismo de alto vôo flutua sobrea dupla espessura subjacente da vida material e da economiacoerente do mercado, representa a zona de alto lucro. Fiz assim deleum superlativo. O leitor poderá criticar-me por isso, mas não sou oúnico dessa opinião. Em seu opúsculo de 1917, O Imperialismo,estágio supremo do capitalismo, Lênin afirma por duas vezes: “Ocapitalismo é a produção mercantil em seu mais alto grau dedesenvolvimento; dezenas de milhares de grandes empresas sãotudo, dezenas de milhões de pequenas empresas nada são.” Mas essaverdade evidente de 1917 é uma verdade velha, muito velha.

O defeito dos estudos de jornalistas, economistas, sociólogos, ecom freqüência o de não levarem em conta as dimensões e as

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perspectivas históricas. Muitos historiadores não fazem, aliás, amesma coisa, como se o período que eles estudam existisse em si,fosse um começo e um fim? Lenin, que é um espírito perspicaz,assim escreve no mesmo opúsculo de 1917: “O que caracterizava oantigo capitalismo, onde reinava a livre concorrência, era aexportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo atual,onde reinam os monopólios, e a exportação de capitais.” Estasafirmações são mais do que discutíveis: o capitalismo sempre foimonopolista, e mercadorias e capitais nunca deixaram de viajarsimultaneamente, tendo os capitais e o crédito sido sempre o meiomais seguro de alcançar e forçar um mercado exterior. Muito antesdo século XX, a exportação de capitais foi uma realidade cotidiana,para Florença desde o século XIII, para Augsburgo, Antuérpia eGenova no século XVI. No século XVIII, os capitais correm aEuropa e o mundo. Todos os meios, procedimentos e estratagemasdo dinheiro não nasceram em 1900 ou em 1914, precisaria dizê-lo?O capitalismo conhece-os todos e, ontem como hoje, a suacaracterística e a sua força são de poder passar de um estratagemapara outro, de uma forma de ação para outra, de mudar dez vezessuas baterias segundo as circunstâncias da conjuntura e, assimfazendo, permanecer bastante fiel, bastante semelhante a si mesmo.

O que lamento, por minha parte, Pão como historiador, mascomo homem do meu tempo, é que, tanto no mundo capitalistaquanto no mundo socialista, seja recusada uma distinção entrecapitalismo e economia de mercado. Àqueles que, no Ocidente,atacam os malefícios do capitalismo, os homens políticos e oseconomistas respondem ser esse um mal menor, o avesso obrigatórioda livre empresa e da economia de mercado. Não creio nisso.Àqueles que, segundo um movimento sensível até na URSS, seinquietam com a falta de agilidade da economia socialista egostariam de lhe propiciar mais “espontaneidade” (eu traduziria:“mais liberdade”), a resposta e ser esse um mal menor, o avessoobrigatório da destruição do flagelo capitalista. Tampouco creio

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nisso. Mas a sociedade que, para mim, seria ideal, e possível? Emtodo o caso, não penso que ela tenha muitos partidários através domundo!

É com esta afirmação geral que poria fim, de bom grado, àsminhas explicações, se não tivesse uma última confidência dehistoriador a fazer.

A história está sempre recomeçando, está sempre se fazendo ese superando. Seu destino e o mesmo de todas as ciências dohomem. Não acredito, pois, que os livros de história que escrevemossejam válidos por decênios e decênios. Não existe um livro escritode uma vez por todas, e todos nós o sabemos.

A minha interpretação do capitalismo e da economia baseia-senuma vasta e assídua freqüentação de arquivos e em numerosasleituras mas, em última instância, em números não suficientementenumerosos, não suficientemente ligados uns aos outros – mais noqualitativo do que no quantitativo. As monografias que dão curvasde produção, taxas de lucro, taxas de poupança, que apresentambalanços sérios de empresas, que mais não sejam uma estimativaaproximada da usura do capital fixo, são raríssimas. Procurei emvão, junto de colegas e amigos, informações mais precisas nessesdiversos domínios. Mas com magros resultados.

Ora, e nessa direção, em meu entender, que pode existir umasaída para fora das explicações em que me encerrei, à falta demelhor. Dividir para melhor compreender, dividir entre três planosou três etapas, é mutilar, forçar a realidade econômica e social bemmais complexa. Na verdade, e o conjunto que cumpre apreenderpara, ao mesmo tempo, entender as razões da mudança das taxas decrescimento que ocorreu simultaneamente com o maquinismo. Umahistória totalizante, globalizante, seria possível se, no domínio daeconomia do passado, lográssemos incorporar os métodos modernosde uma certa contabilidade nacional, de uma certa macroeconomia.Acompanhar o movimento da renda nacional, da renda nacional pro

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capite, reconsiderar uma obra pioneira de história, a de RenêBaehrel sobre a Provença dos séculos XVII e XVIII, tentarestabelecer correlações entre “orçamento e renda nacional”, tentarmedir o intervalo, diferente segundo as épocas, entre produto bruto eproduto líquido, segundo os conselhos de Simon Kuznets, cujashipóteses a esse respeito me parecem capitais para umacompreensão do crescimento moderno – tais são as tarefas que euproporia de bom grado a jovens historiadores. Nos meus livros, abride tempos em tempos uma janela sobre essas paisagens que só sevislumbram imprecisamente, mas uma janela não pode sersuficiente. Seria indispensável uma investigação, se não coletiva,pelo menos coordenada.

O que não quer dizer, bem entendido, que essa história deamanhã venha a ser a história econômica ne varietur. Acontabilidade econômica, tanto quanto possível, é um estudo dofluxo, das variações da renda nacional, não a medida da massa dospatrimônios, das fortunas nacionais. Ora, essa massa, tambémacessível, deve ser estudada. Haverá sempre, para os historiadores epara todas as outras ciências do homem, e para todas as ciênciasobjetivas, uma América a descobrir.

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