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Melhor do que estas peças, todas elas igualmente excelsas na capacidade dramatúr- gica, na caracterização e no interesse superior, pouco tem o teatro, antigo ou moderno, para nos oferecer. James Joyce, 1900 E subitamente veio a hora em que a majestade de Ibsen se dignou olhar para mim pela primeira vez. Um novo poeta, de quem nos aproximaremos por muitas vias, agora que já conheço uma delas. Rainer Maria Rilke, 1906 O que Ibsen nos dá é mais do que nós próprios, somos nós próprios nas nossas pró- prias situações. As coisas que acontecem às suas personagens no palco são coisas que nos acontecem a nós. Uma consequência disto é serem as peças de teatro de Ibsen muito mais importantes do que as de Shakespeare. Outra consequência é serem ao mesmo tempo capazes de nos magoar cruelmente e de nos encher com o entusiasmo da esperança de escaparmos às tiranias dos ideais […] Bernard Shaw Ibsen teve que criar, para as suas peças, um contexto de significado ideológico (uma mitologia efectiva), e teve que engendrar os símbolos e as convenções teatrais que usa- ria para transmitir a sua mensagem a um público corrompido pelas virtudes fáceis do palco realista. Estava na posição do escritor que inventa uma nova linguagem e tem que a ensinar aos seus leitores. George Steiner, 1961 A crítica ou a representação que converta Ibsen num reformador social ou num mora- lista destrói o seu conseguimento estético, e ameaça o lugar autêntico que ele ocupa no cânone dramático ocidental, logo a seguir a Shakespeare e, talvez, a Molière. Harold Bloom, 1994 1

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O terceiro volume de Peças escolhidas de Henrik Ibsen inclui: « Um inimigo do povo», «Espectros», «Casa de bonecas» e «Os pilares da sociedade»

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Melhor do que estas peças, todas elas igualmente excelsas na capacidade dramatúr-gica, na caracterização e no interesse superior, pouco tem o teatro, antigo ou moderno,para nos oferecer.

James Joyce, 1900

E subitamente veio a hora em que a majestade de Ibsen se dignou olhar para mimpela primeira vez. Um novo poeta, de quem nos aproximaremos por muitas vias,agora que já conheço uma delas.

Rainer Maria Rilke, 1906

O que Ibsen nos dá é mais do que nós próprios, somos nós próprios nas nossas pró-prias situações. As coisas que acontecem às suas personagens no palco são coisas quenos acontecem a nós. Uma consequência disto é serem as peças de teatro de Ibsenmuito mais importantes do que as de Shakespeare. Outra consequência é serem aomesmo tempo capazes de nos magoar cruelmente e de nos encher com o entusiasmoda esperança de escaparmos às tiranias dos ideais […]

Bernard Shaw

Ibsen teve que criar, para as suas peças, um contexto de significado ideológico (umamitologia efectiva), e teve que engendrar os símbolos e as convenções teatrais que usa-ria para transmitir a sua mensagem a um público corrompido pelas virtudes fáceis dopalco realista. Estava na posição do escritor que inventa uma nova linguagem e temque a ensinar aos seus leitores.

George Steiner, 1961

A crítica ou a representação que converta Ibsen num reformador social ou num mora-lista destrói o seu conseguimento estético, e ameaça o lugar autêntico que ele ocupano cânone dramático ocidental, logo a seguir a Shakespeare e, talvez, a Molière.

Harold Bloom, 1994

1

Henrik Ibsen. © Norsk Folkemuseum.

PEÇAS ESCOLHIDAS

Traduções: copyright © dos tradutores e Edições Cotovia Lda., Lisboa 2008Apêndice: copyright © de Jorge Silva Melo e Edições Cotovia Lda., Lisboa 2008

Fotografias: copyright © fotos da capa e interior: Norsk FolkemuseumTodos os direitos reservados

ISBN 978-972-795-265-6

As traduções inclusas neste volume contaram com o apoio financeiro deNORLA.

Este volume obteve ainda o apoio do Comité Ibsen da Noruega.

Henrik Ibsen

Peças escolhidasvolume 3

Cotovia

Índice

UM INIMIGO DO POVO p. 11

ESPECTROS 129

CASA DE BONECAS 213

OS PILARES DA SOCIEDADE 305

APÊNDICE

Representações 423por Jorge Silva Melo

Esta publicação de 12 peças de Henrik Ibsen, em 3 volumes, inicia-se com as peçasda maturidade, seguindo uma ordem cronológica regressiva.

NOTA DO EDITOR: Francis Henrik Aubert e Karl Erik Schollhammer, responsáveispor duas das traduções que integram este volume e falantes da língua portuguesatal como se usa no Brasil, colaboraram na adaptação das suas próprias traduçõesao português de Portugal, feita por Fernanda Mira Barros.

OS TRADUTORES:Francis Henrik Aubert nasceu em 1947, em Santos, Brasil. Licenciado em Letrase História pela Universidade de Oslo, Noruega, em 1968. Doutor em Linguísticapela Universidade de São Paulo, em 1975. Professor Titular de Estudos Traduto-lógicos da Universidade de São Paulo desde 1994.

Susana Janic, nasceu em 1953 no Porto. De ascendência materna francesa, termi-nou em 1975 o curso de Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Univer-sidade de Lisboa. Mudou-se para a Dinamarca em 1977 onde viveu até finais de2000, ano em que regressa a Portugal. Trabalha como tradutora freelancer donorueguês, do dinamarquês, do francês e do inglês.

Karl Erik Schollhammer nasceu na Dinamarca e vive no Rio de Janeiro (Brasil)desde 1989. Professor associado no departamento de Humanidades da PUC-Rio,onde lecciona Estudos Comparatistas, Teoria Literária e Literatura Brasileira, éautor de diversos ensaios e tradutor de autores escandinavos como Peter Hoeg,Lars Nooren e Henrik Ibsen. É ainda responsável por diversas iniciativas no Bra-sil em redor do cinema escandinavo.

Pedro Fernandes nasceu no Porto, onde frequentou o curso de Filosofia na Facul-dade de Letras, e vive na Noruega desde 1981. Traduziu, entre outros autores, JonFosse, Jesper Halle e Niels Fredrik Dahl.

OS COLABORADORES:Jorge Silva Melo nasceu em Lisboa. Estudou na London Film School. Crítico decinema e teatro, encenador e actor, fundador do Teatro da Cornucópia (1973-79),estagiário na Schaubühne (com Peter Stein) e no Piccolo Teatro / Scala de Milão(com Giorgio Strehler), argumentista, professor, tradutor, ensaísta, autor de váriostextos teatrais e realizador de cinema, dirige, desde 1996, a companhia teatralArtistas Unidos.

Um Inimigo do PovoPeça em 5 actos

(1882)

Tradução de Francis Henrik Aubert

A partir da edição: IBSEN, H. Nutidsdramaer 1877-99. Oslo: Gyldendal.1962. 13.ª edição.

PERSONAGENS

Dr. Tomas Stockmann, médico da estância balnear · Sra. Stockmann, suaesposa · Petra, filha do casal, professora · Eilif, filho do casal, 13 anos deidade · Morten, filho do casal, 10 anos de idade · Peter Stockmann, irmãomais velho do médico, intendente da cidade, presidente do conselho deadministração da estância balnear, etc. · Morten Kiil, mestre tanoeiro, paide criação da Sra. Stockmann · Havstad, editor-chefe do jornal “O Men-sageiro do Povo” · Billing, colaborador do jornal · Horster, capitão delongo curso · Aslaksen, tipógrafoParticipantes numa reunião dos cidadãos, homens de todas as classes,algumas mulheres e um grupo de miúdos em idade escolar

A acção desenrola-se em uma cidade do litoral da Noruega meridional.

Esta peça foi publicada, em Copenhaga, em Novembro de 1882, e foirepresentada pela primeira vez em Janeiro de 1883 no teatro de Cristiâ-nia.

PRIMEIRO ACTO

Anoitecer na sala de estar do médico, mobilada de formamodesta mas elegante. Na parede lateral, à direita, há duasportas, das quais a mais distante leva até ao hall e a mais pró-xima ao gabinete de trabalho do médico. Na parede oposta,bem diante da porta que dá para o hall, uma porta conduz àparte íntima da residência. No meio da mesma parede, umalareira revestida de azulejos e, mais à frente, um sofá com umespelho por cima, e diante do sofá uma mesa oval coberta porum tapete. Na mesa há um candeeiro aceso. Nos fundos vê--se uma porta aberta que dá para a sala-de-jantar. Mesa de jantar posta, com um candeeiro aceso.Billing está sentado à mesa de jantar com um guardanapodebaixo do queixo. A Sra. Stockmann está de pé junto àmesa e oferece-lhe uma travessa com uma peça grande decarne assada. Os demais lugares ao redor da mesa estãovazios, a toalha de mesa está em desordem, como após a con-clusão de uma refeição.

SRA. STOCKMANN: Pois é, Sr. Billing, se o Sr. chega com umahora de atraso, há-de contentar-se com comida fria.

BILLING (comendo): Pois está uma delícia... excelente!SRA. STOCKMANN: Sabe o quanto o Stockmann insiste em ter

horários fixos para as refeições...BILLING: Isso não me incomoda nada. Acho até que a comida

tem um sabor melhor quando posso ficar à mesa a comersozinho, sem ser incomodado.

SRA. STOCKMANN: Muito bem, então, se aprecia assim... (Prestaatenção a um ruído vindo do hall.) Pelos vistos, aí vem oHovstad também.

BILLING: Pode bem ser.

Entra o Intendente Stockmann, de sobretudo, quépi e ben-gala.

O INTENDENTE: Com sua amável licença, minha cunhada,muito boa noite.

SRA. STOCKMANN (entrando na sala de estar): Ora, ora, boanoite. É o Sr.? Quanta gentileza vir fazer-nos uma visita.

O INTENDENTE: Estava de passagem e então... (Lançando umolhar na direcção da sala-de-jantar.) Ah, mas vocês estãocom visitas, quer-me parecer.

SRA. STOCKMANN (algo constrangida): Não, de todo. É meracoincidência. (Rapidamente:) Não quer entrar e comeralguma coisa?

O INTENDENTE: Eu! Não, muito obrigado. Deus me livre!Comida quente de noite! Pesa-me muito na digestão.

SRA. STOCKMANN: Ora, uma vez só não lhe há-de fazer mal...O INTENDENTE: Não, não, Deus lhe pague. Eu fico com o meu

chá e o meu pão com manteiga. Acaba por ser mais sau-dável, e um pouco menos dispendioso também.

SRA. STOCKMANN (sorrindo): Não se ponha agora a achar que oTomas e eu somos uns perdulários.

O INTENDENTE: Você não, minha cara cunhada. Longe de mimtal pensamento. (Aponta para o gabinete de trabalho domédico.) Ele por acaso não está em casa?

SRA. STOCKMANN: Não, foi dar um passeio a seguir à refeição...ele e os rapazes.

O INTENDENTE: E isso será saudável? (Ouve.) Lá vem ele, pelosvistos.

SRA. STOCKMANN: Não, não deve ser ele. (Batem à porta.) Se fazfavor!

14 Um Inimigo do Povo

O editor Hovstad entra pelo hall.

SRA. STOCKMANN: Ah, é o Sr. Hovstad?HOVSTAD: Sim, queira desculpar-me, mas fiquei retido lá na

gráfica. Boa noite, Sr. Intendente!O INTENDENTE (cumprimenta, algo reticente): Sr. editor. O

Sr. certamente vem em trabalho?HOVSTAD: Em parte, sim. Um artigo para publicar no jornal.O INTENDENTE: Imagino que sim. Pelo que se ouve dizer, o meu

irmão é um colaborador muito assíduo d’ “O Mensageirodo Povo”.

HOVSTAD: Sim, ele digna-se escrever n’ “O Mensageiro”quando tem uma ou outra verdade a dizer sobre algumacoisa.

SRA. STOCKMANN (dirigindo-se a Hovstad): Mas o Sr. não que-rerá...? (Aponta para a sala-de-jantar.)

O INTENDENTE: Por quem sois. Não o culpo de escrever para otipo de leitor que lhe será mais receptivo. De resto, pes-soalmente eu não tenho a menor motivação pessoal parame indispor com o seu jornal, Sr. Hovstad.

HOVSTAD: Pois, é o que me parece também.O INTENDENTE: De um modo geral, esta nossa cidade está

tomada por um belo espírito conciliador — um espírito decidadania. E isso vem, sem dúvida, do facto de termos umgrande projecto comum que nos congrega… um projectoque é de igual interesse para todos os concidadãos cons-cientes...

HOVSTAD: A estância balnear, claro.O INTENDENTE: Exactamente. Temos o nosso novo, belo e

grande edifício da estância balnear. Não se esqueça do quelhe digo, Sr. Horvstad: a estância balnear será o primeirodos sustentáculos da nossa cidade. Isso é indiscutível.

SRA. STOCKMANN: O Tomas também é dessa opinião.O INTENDENTE: Que grande progresso esta terra conheceu nes-

tes dois últimos anos! As pessoas têm dinheiro; há vida e

15Primeiro acto

há movimento. Os edifícios e os terrenos aumentam devalor a cada dia.

HOVSTAD: E o desemprego praticamente acabou.O INTENDENTE: Isso também. Para as famílias de posses, houve

uma grande redução nos impostos que vão para a assis-tência aos pobres, e essa redução será ainda maior se esteano tivermos um excelente Verão, com grande afluxo deforasteiros… um bom número de doentes que possamespalhar a fama da nossa estância balnear.

HOVSTAD: E, pelo que se diz, há realmente perspectivas nessesentido.

O INTENDENTE: Tudo parece muito promissor. Todos os diasnos fazem consultas sobre possibilidades de alojamento ecoisas assim.

HOVSTAD: Pois então o artigo do Dr. vem muito a calhar.O INTENDENTE: Então ele tem estado a escrever outra vez um

artigo?HOVSTAD: Este é um que ele escreveu no Inverno passado.

Uma recomendação da nossa estância balnear, salientandoas boas condições sanitárias que aqui há. Mas naquelaaltura, entendi não publicar o artigo.

O INTENDENTE: Aha! Havia um problema ou outro com oartigo, foi isso?

HOVSTAD: Não, não foi isso. Achei foi que seria melhor espe-rar até agora, com a Primavera já em andamento. Porqueé agora que as pessoas começam a planear as viagens esti-vais...

O INTENDENTE: Bem pensado. Muito bem pensado, Sr. Hovs-tad.

SRA. STOCKMANN: Pois é, o Tomas é realmente incansável nadedicação à estância balnear.

O INTENDENTE: Bem, ao fim e ao cabo, ele é funcionário daestância balnear.

HOVSTAD: Sim, e, ao fim e ao cabo, foi ele que deu início atudo.

16 Um Inimigo do Povo

O INTENDENTE: Foi ele? Realmente! De facto, uma vez poroutra ouço dizer que há quem seja dessa opinião; masdevo admitir que eu considerava que eu próprio tambémtinha uma participação, ainda que modesta, nesteempreendimento.

SRA. STOCKMANN: Sim, é o que o Tomas está sempre a dizer.HOVSTAD: Sim, e quem há-de negar uma coisa dessas, Sr. Inten-

dente? Foi o Sr. quem pôs a ideia em andamento e a feztornar-se realidade; disso sabemos todos. Eu só quis lem-brar que a ideia foi inicialmente concebida pelo Dr..

O INTENDENTE: Com efeito, de ideias a vida do meu irmão estácheia — infelizmente. Mas quando se trata de pôr qual-quer coisa em prática, é necessário outro tipo de pessoa,Sr. Hovstad. E imaginei que ao menos nesta casa...

SRA. STOCKMANN: Mas, meu querido cunhado...HOVSTAD: Mas como pode o Sr. Intendente pensar...SRA. STOCKMANN: Entre lá, Sr. Hovstad, e coma alguma coisa

enquanto o meu marido não chega; ele não tarda.HOVSTAD: Obrigado. Só um bocadinho, talvez. (Entra na sala-

-de-jantar.)O INTENDENTE (em voz baixa): Esta gente que descende direc-

tamente de camponeses é estranha; não conseguem aban-donar a grosseria.

SRA. STOCKMANN: Mas porque há-de deixar que isso o preo-cupe? Você e o Tomas não podem repartir a honra comodois irmãos?

O INTENDENTE: Certamente; mas parece que nem todos se con-tentam com uma divisão.

SRA. STOCKMANN: Ora, que disparate!? Você e o Tomas dão-semaravilhosamente bem. (À escuta:) Creio que agora é elea chegar. (Vai até à porta da entrada e abre-a.)

DR. STOCKMANN (rindo e fazendo alarde do lado de fora): Olha,Katrine, aqui tens mais um convidado. Não é óptimo? Porfavor, capitão Horster, pendure o sobretudo aí no cabide.Ah, pois é, você não usa sobretudo? Vê tu bem, Katrine,

17Primeiro acto

tive de o arrastar do meio da rua até aqui; ele não queriavir.

O capitão Horster entra e cumprimenta a senhora da casa.

DR. STOCKMANN (ainda à porta): Entrem lá, rapazes, entrem lá.Agora já estão todos esfaimados novamente! Venha cá,capitão Horster; agora vai aqui provar um belo assado…(Conduz Horster para dentro da sala-de-jantar. Eilif e Mor-ten também entram.)

SRA. STOCKMANN: Mas, Tomas, querido, não vês quem...?DR. STOCKMANN (volta-se à porta): Ah! És tu, Peter! (Adianta-

-se e estende-lhe a mão.) Que alegria!O INTENDENTE: Infelizmente, vou ter de sair não tarda nada.DR. STOCKMANN: Que disparate; já, já o grogue vem para a

mesa. Não te esqueceste do grogue, pois não, Katrine?SRA. STOCKMANN: Bem se vê que não, a água já está a ferver e

tudo. (Entra na sala-de-jantar.)O INTENDENTE: E com grogue, ainda por cima!DR. STOCKMANN: Pois então acomoda-te, meu caro, passemos

uns momentos agradáveis.O INTENDENTE: Obrigado, mas eu nunca participo em celebra-

ções regadas a grogue.DR. STOCKMANN: Mas não se trata de uma celebração.O INTENDENTE: Bom, quer-me parecer, porém... (Volta o olhar

para a sala-de-jantar). É espantoso como eles conseguemcomer tanta comida.

DR. STOCKMANN (esfregando as mãos): Pois então, não é umabênção ver a juventude a comer? Sempre de bom apetite,como deve ser! Precisam é de alimento! Energia! São elesque vão fuçar na matéria do futuro e fazer germinar assementes novas, Peter.

O INTENDENTE: Posso ousar perguntar o que vem a ser esse“fuçar” de que falas?

18 Um Inimigo do Povo

DR. STOCKMANN: Isso terás de perguntar aos jovens quando...quando chegar a hora. Nós, como é evidente, não ovemos. Naturalmente. Afinal, dois velhos próceres comotu e eu...

O INTENDENTE: Lá está, lá está. Outro termo bastante pecu-liar...

DR. STOCKMANN: Não me leves demasiado a sério, Peter. Por-que eu estou tão profundamente alegre e satisfeito... Sinto--me indescritivelmente feliz no meio de toda esta vida quegermina, que brota. Que tempo maravilhoso, este em quevivemos! É como se todo um mundo novo se estivesse aformar à nossa volta.

O INTENDENTE: Acreditas mesmo nisso?DR. STOCKMANN: Sim. Percebo que não te seja possível ver isso

tão nitidamente quanto eu. Afinal, tu tens vivido no meiodisto toda a tua vida, o que faz com que essa impressãofique mais apagada. Mas eu, que tive que permanecernaquele fim do mundo lá no Norte durante tantos anos,sem quase nunca ver uma pessoa diferente, que tivesseuma palavra de bonança para me dizer... para mim, isto écomo se eu me tivesse mudado para uma agitada metró-pole...

O INTENDENTE: Hmm. Uma metrópole...DR. STOCKMANN: Sim, sim, bem sei que as condições aqui são

modestas, em comparação com tantos outros lugares. Masaqui há vida... uma promessa, uma miríade de coisas pelasquais trabalhar e lutar; e é isso o que importa. (Chama:)Katrine, o carteiro já passou hoje?

SRA. STOCKMANN (falando da sala-de-jantar): Não, aqui não pas-sou ninguém.

DR. STOCKMANN: E os bons vencimentos, então, Peter! É algoque se aprende a apreciar quando já vivemos, como nós,de magras rações...

O INTENDENTE: Por amor de Deus.

19Primeiro acto

DR. STOCKMANN: Ah, sim, podes imaginar que vivíamos umavida apertada lá em cima, sim, muitas vezes. E agora,poder viver como um aristocrata! Hoje, por exemplo, tive-mos carne assada para o jantar; e voltámos a ter carneassada para a ceia. Não queres uma fatia? Ou, ao menos,deixa-me mostrar-te o assado? Vem cá, pois...

O INTENDENTE: Não, não, de forma alguma.DR. STOCKMANN: Ora, vem cá, pelo menos. Olha, temos até

uma toalha de mesa!O INTENDENTE: Sim, já percebi.DR. STOCKMANN: E também conseguimos comprar um quebra-

-luz. Vês? Vem tudo das economias da Katrine. E torna asala tão aconchegante, não achas? Põe-te aqui, nesta posi-ção; não, não, assim não. Isso! Estás a ver, ali onde a luzcai, de forma concentrada... Cria um ambiente de elegân-cia, não achas?

O INTENDENTE: Bem, quando nos podemos permitir luxos des-tes...

DR. STOCKMANN: Ah, sim, agora posso permitir-me. A Katrinediz que agora ganho quase tanto quanto gastamos.

O INTENDENTE: Quase!DR. STOCKMANN: Mas um cientista há-de poder viver com uma

certa distinção. Tenho a certeza de que um governador deprovíncia gasta muito mais por ano do que eu.

O INTENDENTE: Mas é de esperar. Afinal, um governador, umaautoridade...

DR. STOCKMANN: Então, um simples comerciante! Esse tam-bém gasta muitas vezes...

O INTENDENTE: Pois, faz parte da sua condição.DR. STOCKMANN: De resto, eu, de facto, não gasto nada à toa,

Peter. Mas considero que não me devo negar a alegria dever gente em minha casa. Eu preciso disso, entendes? Eu,que fiquei tanto tempo longe de tudo e de todos... paramim é uma necessidade vital estar na companhia de pes-soas jovens, activas, alegres, de mente aberta, movidas pela

20 Um Inimigo do Povo

vontade de fazer coisas... e é isso o que são todas as pes-soas que estão ali dentro a jantar com tanto apetite. Gos-taria que conhecesses melhor o Hovstad...

O INTENDENTE: Sim, o Hovstad, é verdade, ele contou-me quepretende publicar mais um artigo teu.

DR. STOCKMANN: Um artigo meu?O INTENDENTE: Sim, sobre a estância balnear. Um artigo que

escreveste no Inverno passado.DR. STOCKMANN: Ah! Sim, esse! Mas não quero que seja publi-

cado tão imediatamente.O INTENDENTE: Porque não? Mas não é justamente este o

momento apropriado?DR. STOCKMANN: Sim, é possível que tenhas razão; em condi-

ções normais... (Caminha de um lado para o outro.)O INTENDENTE (observando o irmão): E o que haveria de anor-

mal nas condições actuais?DR. STOCKMANN (parando): Bem, Peter, isso eu não te posso

contar ainda; pelo menos, não esta noite. Pode havermuita coisa anormal nas condições... ou talvez não hajacoisa nenhuma. Pode ser apenas uma impressão minha.

O INTENDENTE: Devo confessar que isto me está a parecermuito misterioso. Passa-se alguma coisa? Alguma coisa deque eu não possa saber? Quero crer que eu, na qualidadede Presidente do conselho da estância balnear....

DR. STOCKMANN: E eu quero crer que... ora, ora, não vamosagora atirar-nos ao pescoço um do outro, Peter.

O INTENDENTE: Deus me livre! Não tenho por hábito atirar-meao pescoço de quem quer que seja, como tu dizes. Mastenho que insistir, com toda a veemência, que todas asprovidências devem ser tomadas de forma comercial-mente correcta e por intermédio das autoridades legal-mente constituídas. Não posso permitir que se aja por ata-lhos e desvios.

DR. STOCKMANN: E por acaso eu sou alguém que se valha deatalhos e desvios?!

21Primeiro acto

O INTENDENTE: Pelo menos, tens uma tendência permanentepara seguires pelos teus próprios caminhos. E, numasociedade bem organizada, isso é inadmissível. Cabe aoindivíduo submeter-se ao todo ou, melhor dizendo, sub-meter-se às autoridades que têm por missão assegurar obem comum.

DR. STOCKMANN: Pode muito bem ser. Mas em que é que issome concerne?

O INTENDENTE: Pois é justamente isso, meu caro Tomas, que tupareces não querer aprender. Mas, atenção! Vais acabarpor pagar por isso, mais cedo ou mais tarde. Agora o avisoestá dado. Adeus.

DR. STOCKMANN: Mas estarás doido varrido? Estás redonda-mente enganado...

O INTENDENTE: Não costumo enganar-me. De todo o modo,devo ir... (Cumprimenta na direcção da sala-de-jantar.)Adeusinho, cunhada. Meus senhores, até breve. (Retira--se.)

SRA. STOCKMANN (entra na sala-de-estar): Ele foi-se embora?DR. STOCKMANN: Foi, e profundamente irritado.SRA. STOCKMANN: Mas, meu querido Tomas, o que foi que lhe

fizeste desta vez?DR. STOCKMANN: Não lhe fiz coisa nenhuma. Afinal, ele não

pode exigir que eu lhe preste contas antes da hora.SRA. STOCKMANN: E que contas são essas a prestar?DR. STOCKMANN: Hum... Deixa estar, Katrine. Que coisa estra-

nha, a ausência do carteiro.

Hovstad, Bolling e Horster levantam-se da mesa de jantar eentram na sala-de-estar. Eilif e Morten vêm logo atrás.

BILLING (espreguiçando-se): Ah, uma refeição destas e, porDeus, uma pessoa sente-se um homem novo!

HOVSTAD: O Intendente estava um bocadinho azedo hoje.

22 Um Inimigo do Povo

DR. STOCKMANN: É por conta do estômago. Ele sofre de mádigestão.

HOVSTAD: Somos nós, principalmente, os d’ “O Mensageiro”,que ele não consegue digerir.

SRA. STOCKMANN: Achei que o Sr. lidou relativamente bem comele.

HOVSTAD: Ah, sim. Mas não é mais do que um cessar-fogo. BILLING: É isso! Essa expressão resume tudo.DR. STOCKMANN: É preciso lembrarmo-nos de que o Peter é

um solteirão, coitado. Não tem um lar onde se aconche-gar; apenas negócios e mais negócios. E com todo aquelechá aguado que ele ingere…! Bem, vamos levar as cadei-ras para junto da mesa, rapazes! Katrine, o grogue nãovem?

SRA. STOCKMANN (que vai na direcção da sala-de-jantar): Já estoua trazer.

DR. STOCKMANN: Acomode-se aqui no sofá comigo, capitãoHorster. Uma visita tão rara... por favor, sentem-se efiquem à vontade, meus amigos.

Os cavalheiros sentam-se ao redor da mesa. A Sra. Stock-mann entra trazendo um tabuleiro com o aquecedor, as gar-rafas, os cálices e demais apetrechos.

SRA. STOCKMANN: Pronto. Aqui está o arak. Este aqui é o rum.E eis o conhaque. Agora, cada um que se sirva comoqueira.

DR. STOCKMANN (pega num cálice): É o que vamos fazer.(Enquanto mistura o grogue:) E agora os charutos. Eilif, tusabes onde está a caixa. E tu, Morten, vai buscar o meucachimbo. (Os rapazes entram na divisão ao lado.) Estoudesconfiado de que o Eilif me fuma um charuto uma vezpor outra; mas finjo não perceber. (Chama:) E o meu cor-tador, Morten! Katrine, por favor, diz-lhe onde guardei ocortador! Ora, aqui está! (Os rapazes trazem-lhe o corta-

23Primeiro acto

dor.) Muito bem, meus amigos. Eu fico pelo meucachimbo, sabem. Com este já eu fiz muitas caminhadascom mau tempo lá na Noruega Setentrional. (Batem oscálices.) Saúde! Ah, é muito melhor estar sentado aqui,tranquilo e abrigado.

SRA. STOCKMANN (sentada, tricotando): O Sr. retorna em breveao mar, capitão Horster?

CAPITÃO HORSTER: Devo zarpar na próxima semana.SRA. STOCKMANN: E vai até à América?CAPITÃO HORSTER: É essa a intenção, é.BILLING: Mas então não poderá participar nas eleições para o

novo Intendente.CAPITÃO HORSTER: Vai haver novas eleições?BILLING: Não sabia?CAPITÃO HORSTER: Não. Não me meto nessas coisas.BILLING: Mas o Sr. preocupa-se com as questões públicas, ou

não?CAPITÃO HORSTER: Não, não entendo nada disso.BILLING: Ainda assim, é preciso votar, ao menos.CAPITÃO HORSTER: Mesmo aqueles que não entendem nada do

que se trata?BILLING: Não entendem? O que quer dizer com isso? A socie-

dade é como um navio; todos devem segurar o leme.CAPITÃO HORSTER: É possível que isso funcione bem em terra

firme. A bordo, o resultado não seria bom.HOVSTAD: É estranho como tantos marítimos se importam tão

pouco com as questões do país.BILLING: Muito estranho.DR. STOCKMANN: Os marítimos são como as aves migratórias:

sentem-se em casa tanto no Norte quanto no Sul. Por issomesmo, nós, os outros, temos de ser mais activos, Sr.Hovstad. Vai sair alguma coisa relevante para o interessegeral n’ “O Mensageiro” amanhã?

HOVSTAD: Sobre as questões aqui da cidade, não. Mas depoisde amanhã penso publicar o seu artigo...

24 Um Inimigo do Povo

DR. STOCKMANN: Ah, pois, meu Deus! O meu artigo! Não,ouça, é melhor esperar.

HOVSTAD: Acha? Pois tínhamos justamente um bom espaçodisponível e parece-me que este é o melhor momento...

DR. STOCKMANN: Sim, sim, pode muito bem ser que você tenharazão; mas terá de esperar, mesmo assim. Depois podereiexplicar...

Petra, de chapéu e sobretudo e com vários cadernos sob obraço, entra vinda do hall.

PETRA: Boa noite.DR. STOCKMANN: Boa noite, Petra. Já chegaste, minha filha?

Cumprimentos mútuos. Petra tira o chapéu e o sobretudo ecoloca-os, com os cadernos, sobre uma cadeira junto à porta.

PETRA: Com que então, aqui sentados e acomodados enquantoeu andei por fora a mourejar.

DR. STOCKMANN: Então acomoda-te também.BILLING: Quer que lhe prepare um cálice?PETRA (aproxima-se da mesa): Obrigada, prefiro ser eu mesma

a prepará-lo. O Sr. fá-lo sempre muito forte. Ah, é ver-dade, pai, tenho uma carta para ti. (Vai até à cadeira ondeestá a roupa.)

DR. STOCKMANN: Uma carta! De quem?PETRA (procura no bolso do sobretudo): Recebi-a do carteiro

quando eu ia mesmo a sair de casa...DR. STOCKMANN (levanta-se e vai até ela): E só ma trazes agora!PETRA: Eu realmente não tinha tempo para voltar a subir.

Pronto, aqui está.DR. STOCKMANN (agarrando a carta): Deixa-me ver. Deixa-me

ver, filha. (Observa o carimbo.) Exactamente!SRA. STOCKMANN: Era dessa que estavas à espera, Tomas?

25Primeiro acto

DR. STOCKMANN: Sim, esta mesmo. Depressa, tenho de ir já ládentro... Onde é que está uma vela, Katrine? Voltaram anão pôr um candeeiro no meu gabinete?

SRA. STOCKMANN: Ora essa, o candeeiro está lá, e aceso, na tuaescrivaninha.

DR. STOCKMANN: Óptimo! Óptimo! Com licença, é só por uminstante... (Entra na divisão à direita.)

PETRA: O que será, mãe?SRA. STOCKMANN: Não sei. Estes últimos dias o teu pai tem

estado a todo instante a perguntar pelo carteiro. BILLING: É capaz de ser de um paciente de fora da cidade.PETRA: Coitado do pai! Está a trabalhar mais do que deve. (Pre-

para o seu cálice.) Ah, isto vai ser bom!HOVSTAD: A menina esteve a leccionar no curso nocturno hoje

também?PETRA (tomando um pequeno trago do cálice): Duas horas.BILLING: E de manhã, quatro horas no Liceu...PETRA (senta-se junto à mesa): Cinco horas.SRA. STOCKMANN: E para esta noite, pelo que estou a ver, tem

redacções para corrigir.PETRA: Uma pilha, sim. CAPITÃO HORSTER: Parece-me, então, que a menina também

tem mais do que o suficiente para fazer.PETRA: Sim. Mas isso é bom. Fica-se tão deliciosamente can-

sado depois.BILLING: Gosta mesmo disso?PETRA: Gosto, porque depois dorme-se bem.MORTEN: Tu deves ser uma grande pecadora, Petra.PETRA: Pecadora? Eu?MORTEN: Sim, por trabalhares tanto. O Sr. Rørlund diz que o

trabalho é o castigo que nos foi imposto pelos nossospecados.

EILIF (fazendo pouco caso): Ora, que burrice acreditar numacoisa dessas.

SRA. STOCKMANN: Então, então, Eilif! Isso não se diz.

26 Um Inimigo do Povo

BILLING (a rir): Mas está correcto!HOVSTAD: E tu não queres trabalhar assim tanto, Morten?MORTEN: Pois claro que não.HOVSTAD: Queres ser o quê na vida?MORTEN: Gostava de ser viquingue. EILIF: Mas isso quer dizer que terias de ser pagão.MORTEN: Não faz mal, seria pagão. BILLING: Pois eu apoio-te, Morten! É exactamente isso o que

eu digo. SRA. STOCKMANN (fazendo sinais): Não, certamente que não o

diz, Sr. Billing. BILLING: Pois juro, por Deus! Eu sou um pagão, e orgulho-me

disso. E veja bem, não tarda seremos todos pagãos!MORTEN: E, aí, vamos poder fazer tudo o que queremos?BILLING: Bem, repara, Morten…SRA. STOCKMANN: Agora vão lá para dentro, meninos. Têm que

estudar para amanhã.EILIF: Eu poderia ficar mais um instantinho…SRA. STOCKMANN: Não podes, não. Vão já, os dois.

Os rapazes dão as boas noites e entram na divisão àesquerda.

HOVSTAD: A Sra. realmente acha que pode fazer mal aos rapa-zes ouvir este tipo de conversa?

SRA. STOCKMANN: Não sei se faz mal ou se não faz mal. Mas nãoaprecio.

PETRA: Sabes, mãe, acho que estás enganada.SRA. STOCKMANN: Pode muito bem ser. Mas não aprecio. Não

aqui, dentro da minha casa.PETRA: Há tantas inverdades, tanto em casa como na escola.

Em casa, silencia-se. Na escola, temos de mentir às crian-ças.

HOVSTAD: Tem de mentir?

27Primeiro acto

PETRA: Claro, pois então! Há muitas coisas que temos de lhesensinar e em que nós mesmas não acreditamos.

BILLING: Pois, com certeza que sim.PETRA: Tivesse eu recursos e criaria a minha própria escola, e

aí tudo seria diferente!BILLING: Ora, recursos…HOVSTAD: Pois, se pensa nisso a sério, menina Petra, tenho

todo o prazer em providenciar um local. O meu pai, queDeus o tenha, deixou-me uma casa muito grande, que estáquase vazia. Há uma sala-de-jantar imensa no rés-do--chão…

PETRA (rindo): Sim, sim, muito obrigada. Mas não vai aconte-cer.

HOVSTAD: Pois eu estou convencido de que a menina Petra aca-bará por entrar para o jornalismo. A propósito, já tevetempo de dar uma olhadela naquele conto inglês que nosprometeu traduzir?

PETRA: Ainda não. Mas o Sr. tê-lo-á no prazo.

O DR. Stockmann entra, vindo do seu gabinete, com a cartaaberta na mão.

DR. STOCKMANN (acenando com a carta): Pois podem crer quetemos novidades aqui na cidade!

BILLING: Novidades?SRA. STOCKMANN: Que tipo de novidades?DR. STOCKMANN: Uma grande descoberta, Katrine!HOVSTAD: A sério?SRA. STOCKMANN: Uma descoberta tua?DR. STOCKMANN: Sim, exactamente, minha. (Anda de um lado

para o outro.) Que eles venham agora, como de costume,dizer que são invencionices de um doido! Eles quetenham cuidado! (Com uma gargalhada:) Eles que tenhammas é cuidado, é o que eu digo!

PETRA: Mas, pai, diz lá do que se trata.

28 Um Inimigo do Povo

DR. STOCKMANN: Sim, sim, dêem-me só um tempinho e já fica-rão a saber de tudo. E pensar que o Peter estava aquiainda há pouco! Por aqui se vê como nós, os seres huma-nos, andamos de um lado para o outro a fazer juízos devalor como toupeiras cegas…

HOVSTAD: O que quer dizer, Dr.?DR. STOCKMANN (pára junto à mesa): Pois não é da opinião

geral que a nossa cidade é um local saudável?HOVSTAD: Sim, claro, é mais que evidente.DR. STOCKMANN: Um local extraordinariamente saudável, de

facto… um local que merece as recomendações mais ele-vadas, tanto para os doentes como para os de boa saúde...

SRA. STOCKMANN: Sim, Tomas, querido, mas…DR. STOCKMANN: E assim a temos nós temos recomendado e

louvado. Eu mesmo escrevi inúmeras vezes n’ “O Mensa-geiro” e em folhetos…

HOVSTAD: Sim, sim… e então?DR. STOCKMANN: Esta estância balnear… a nossa estância bal-

near, a que se tem chamado a aorta da cidade, o centronevrálgico da cidade… e sabe se lá que mais…

BILLING: “O coração pulsante da cidade” foi como eu a deno-minei numa ocasião festiva …

DR. STOCKMANN: Ah, pois, isso também. E por ventura vocêssabem o que é na verdade essa grande, esplêndida e tãoelogiada estância balnear, que custou tanto dinheiro…sabem o que é?

HOVSTAD: Não… o que é?SRA. STOCKMANN: Diz lá, o quê?DR. STOCKMANN: A nossa estância balnear inteirinha é um foco

de pestilência. PETRA: A estância balnear, pai!SRA. STOCKMANN (ao mesmo tempo): A nossa estância!HOVSTAD (igualmente): Mas, Dr..…BILLING: Inacreditável!

29Primeiro acto

DR. STOCKMANN: A estância balnear inteira é um sepulcrotóxico, é o que vos digo. Um verdadeiro atentado à saúde!Todas as imundícies lá do Vale de Møll, todos aquelesdetritos pestilentos que vêm lá de cima contaminam aágua na tubagem que vai até ao reservatório; e essa mal-dita porcaria envenenada vai também até à praia…

HOVSTAD: Até às instalações dos banhos de mar?DR. STOCKMANN: Exactamente.HOVSTAD: E como tem tanta certeza de tudo isto, Dr.?DR. STOCKMANN: Fiz investigações da forma mais conscienci-

osa possível. Ah, há já muito tempo que ando com umadesconfiança a este respeito. No ano passado ocorreramalguns casos inabituais de doença entre os utentes daestância… tanto febre tifóide como complicações gástri-cas.

SRA. STOCKMANN: É verdade.DR. STOCKMANN: Na altura, acreditámos que os visitantes

tinham trazido as doenças de fora com eles. Mas desdeentão… neste último Inverno… comecei a reflectirmelhor. E fui analisar a água com os melhores meios dis-poníveis.

SRA. STOCKMANN: Então é com isso que tens andado tão ocu-pado!

DR. STOCKMANN: Sim, podes bem dizer que estive ocupado,Katrine. Mas aqui, é claro, faltavam-me as ferramentascientíficas básicas. Por isso, enviei amostras de água docee da água do mar para a Universidade para fazerem umaanálise química precisa.

HOVSTAD: E os resultados acabam de chegar?DR. STOCKMANN (mostra a carta): Aqui estão! Está comprovada

a existência de substâncias orgânicas em decomposição naágua… bactérias aos montes! Claramente danosas para asaúde estas águas, seja para uso interno ou externo.

SRA. STOCKMANN: Que bênção, teres descoberto isso a tempo!DR. STOCKMANN: Bem o podes dizer.

30 Um Inimigo do Povo

HOVSTAD: E o que pretende fazer agora, Dr.?DR. STOCKMANN: Evidentemente, corrigir a situação.HOVSTAD: E é possível?DR. STOCKMANN: Tem de ser possível. Caso contrário, a estân-

cia balnear será completamente inútil… perdida. Mas nãoé caso disso. Sei muito bem o que deve ser feito.

SRA. STOCKMANN: Mas, querido Tomas, porque mantivestetudo isto em segredo?

DR. STOCKMANN: E achas que eu deveria ter saído por aí a falara torto e a direito disto, sem ter a mais absoluta certeza?Não, não, tão doido assim eu não sou.

PETRA: Mas a nós, aos de casa…DR. STOCKMANN: Nem a viv’alma! Mas amanhã já podes ir a

correr ter com o “Texugo”…SRA. STOCKMANN: Tomas!DR. STOCKMANN: Está bem, está bem, com o teu avô. Agora,

sim, ele vai ter com o que se espantar! Ele sempre achouque eu tinha um parafuso a menos. Como tantos outrostambém acham, pelo que sei. Mas agora é que esses bonscidadãos vão ver… agora vão ver! (Anda de um lado paraoutro, esfregando as mãos.) Vai ser um tumulto nestacidade, Katrine! Nem se imagina. Toda a canalização daságuas terá de ser refeita.

HOVSTAD (levanta-se): Toda a canalização?DR. STOCKMANN: Sim, é lógico. O ponto de colecta está numa

posição muito baixa. Terá de ser deslocado para um pontomais elevado.

PETRA: Então tinhas mesmo razão.DR. STOCKMANN: Sim, lembras-te bem disso, não é, Petra?

Manifestei-me contra o projecto quando começaram aconstrução. Mas, na época, ninguém me quis dar ouvidos.Pois agora terão o troco… sim, porque naturalmente pre-parei um relatório para a administração da estância bal-near; está pronto há uma semana; eu só estava à espera dachegada disto aqui (mostra a carta). Mas agora o relatório

31Primeiro acto

tem de ser despachado de imediato. (Retorna ao seu gabi-nete e volta com um maço de papéis.) Vejam! Quatro folhasbem cheias de letra miudinha! E vou juntar a carta. Umjornal, Katrine, dá-me uma coisa qualquer para fazer oembrulho. Óptimo. Assim. Entrega à… à… que diabo é onome da rapariga? Entrega à criada, pronto. Diz-lhe queleve o pacote ao Intendente, imediatamente.

A Sra. Stockmann sai com o pacote pela sala-de-jantar.

PETRA: Que achas, pai, que o tio Peter vai dizer?DR. STOCKMANN: E o que pode ele dizer? Deve ficar feliz, acho

eu, pelo facto de uma verdade tão importante vir à luz dodia.

HOVSTAD: Permite-me que eu faça uma pequena nota sobre asua descoberta n’ “O Mensageiro”?

DR. STOCKMANN: Sim. Ficaria muito grato.HOVSTAD: É desejável que o público tome conhecimento o

quanto antes.DR. STOCKMANN: Sem dúvida.SRA. STOCKMANN (retorna): Ela acaba de sair com o pacote.BILLING: Macacos me mordam se o Sr. não se vai tornar na

principal figura desta cidade, Dr.!DR. STOCKMANN (visivelmente satisfeito, anda de um lado para

outro): Ora, ora. No fundo, não fiz mais do que a minhaobrigação. Tive sorte, apenas, contudo…

BILLING: Hovstad, não acha que a cidade devia fazer umamanifestação de apoio ao Dr. Stockmann?

HOVSTAD: Eu, pelo menos, apoio. BILLING: Vou falar com o Aslaksen acerca disso. DR. STOCKMANN: Não, não, meus amigos, deixemos essas

palhaçadas de lado. Não quero saber de comemorações.E se a administração da estância balnear quiser conceder--me um aumento de salário, não aceitarei. Katrine, digo-tedesde já que não aceitarei.

32 Um Inimigo do Povo

SRA. STOCKMANN: E fazes muito bem, Tomas.PETRA (ergue o cálice): Saúde, pai!HOVSTAD e BILLING: À sua saúde, Dr.! Saúde!CAPITÃO HORSTER (brindando com o médico): Que tudo isto só

lhe traga alegrias.DR. STOCKMANN: Obrigado, meus amigos! Estou tão feliz … é

uma bênção saber que se é merecedor da nossa cidadenatal e dos nossos concidadãos. Viva, Katrine!

Ele segura-a pelo pescoço com as duas mãos e rodopia comela. A Sra. Stockmann grita e opõe-se. Risos, salva de pal-mas e vivas ao médico. Os rapazes enfiam o rosto no vão daporta entreaberta.

33Primeiro acto2