pedagogia histórico-crítica-livro digitalizado dermeval saviani

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19/9/2014 www.visionvox.com.br/biblioteca/p/Pedagogia-Histórico-Crítica---Dermeval-Saviani.txt http://www.visionvox.com.br/biblioteca/p/Pedagogia-Hist%C3%B3rico-Cr%C3%ADtica---Dermeval-Saviani.txt 1/50 Pedagogia Histórico-Crítica Primeiras aproximações Dermeval Saviani 3ª edição, Cortez, 1992 APRESENTAÇÃO As reflexões contidas neste livro procuram aproximar o leitor do significado daquela concepção educacional que desde 1984 venho denominando de pedagogia histórico-crítica. A Introdução esclarece sobre o sentido de conjunto que articula os diferentes textos que compõem a obra, tomando com referência a questão do saber objetivo, sem dúvida um elemento central na pedagogia histórico-crítica. "Sobre a natureza e especificidade da educação" decorreu de comunicação apresentada no Seminário organizado pelo INEP e realizado em Brasília (DF) em 1984. Ao texto da comunicação se incorporou, já na origem, a palestra proferida em da (PE) em 1983, cujo texto foi denominado "o papel da escola básica no processo de democratização da sociedade brasileira. "Competência política e compromisso técnico" resultou minha intervenção na polêmica suscitada pelo livro de Guiomar Namo de Mello, Magistério de 1° grau: da competência técnica ao compromisso político e objetivada na crítica de Paolo Nosella publicada no artigo "Compromisso político como horizonte da competência técnica". Embora datado de 1983, esse texto mantém-se atual sendo oportuno, ainda, para recolocar novo patamar a questão da unidade das forças progressistas no campo educacional. "A pedagogia histórico-crítica no quadro das tendências Críticas da educação brasileira" resultou de exposição feita no Seminário organizado pela ANDE e realizado em Niterói (RJ) 1985. Situa o contexto imediato do surgimento e desenvolvimento dessa corrente pedagógica no Brasil em confronto com outras tendências e esclarece as principais objeções que lhe foram formuladas. 9 "A pedagogia histórico-crítica e a educação escolar" decorreu de conferência proferida no Seminário sobre a formação em 1988. Recoloca a pedagogia histórico-crítica no quadro mais geral da História da Educação Brasileira e discute suas relações com a realidade escolar atual. Por último julgou-se oportuno acrescentar, à guisa de apêndice, o prefácio à 20á edição de Escola e Democracia. Com efeito, esse prefácio esclarece algumas questões suscitadas por aquele livro que são pertinentes para a compreensão da pedagogia histórico-crítica às quais a maioria dos leitores de Escola e Democracia acabariam não tendo acesso, uma vez que fazem uso das edições anteriores à vigésima que, obviamente, não continham ainda esses esclarecimentos. Finalmente, cabe registrar que este livro constitui uma primeira aproximação ao significado da pedagogia histórico-crítica. Isto porque está em curso o processo de elaboração dessa corrente pedagógica através da contribuição de diferentes estudiosos. De minha parte venho me dedicando a uma pesquisa de longo alcance que se desenvolve com ritmo variável e sem prazo para sua conclusão, através da qual pretende-se rastrear o percurso da educação desde suas origens remotas tendo como guia o conceito de "modo de produção". Trata-se de explicitar como as mudanças das formas de produção da existência humana foram gerando historicamente novas formas de educação as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produção correspondente. É um estudo que não se move sob o acicate das urgências imediatas de conjuntura mas que se propõe a captar o movimento orgânico definidor do processo histórico; é, como diria Gramsci, uma tarefa "für ewig", isto é, de caráter duradouro e que justifica toda uma vida. Pretende-se, assim, revelar as bases sobre as quais se assenta a pedagogia histórico-crítica de modo a viabilizar a configuração consistente do sistema educacional em seu conjunto sob o ponto de vista dessa concepção educacional. Enquanto prossegue o trabalho de elaboração acima referido, espera-se que este livro possibilite aos educadores o acesso, ainda que na forma de uma primeira

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O livro Pedagogia Histórico crítica, digitalizado e disponibilizado na internet, é uma atitude de democratização ao acesso do conhecimento teórico crítico da Educação brasileira. Esse livro é um clássico da Pedagogia para a formação de educadores de todo o Brasil. Já na 3ª edição em 1992, faz parte do acervo de obras críticas produzidas na década de 1980 e até hoje necessária ao pensamento crítico educacional brasileiro.

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Pedagogia Histórico-CríticaPrimeiras aproximações

Dermeval Saviani3ª edição, Cortez, 1992

APRESENTAÇÃOAs reflexões contidas neste livro procuram aproximar o leitor do significadodaquela concepção educacional que desde 1984 venho denominando depedagogia histórico-crítica.A Introdução esclarece sobre o sentido de conjunto que articula os diferentestextos que compõem a obra, tomando com referência a questão do saberobjetivo, sem dúvida um elemento central na pedagogia histórico-crítica."Sobre a natureza e especificidade da educação" decorreu de comunicaçãoapresentada no Seminário organizado pelo INEP e realizado em Brasília (DF)em 1984. Ao texto da comunicação se incorporou, já na origem, a palestraproferida em da (PE) em 1983, cujo texto foi denominado "o papel da escolabásica no processo de democratização da sociedade brasileira."Competência política e compromisso técnico" resultou minha intervenção napolêmica suscitada pelo livro de Guiomar Namo de Mello, Magistério de 1°grau: da competência técnica ao compromisso político e objetivada na crítica dePaolo Nosella publicada no artigo "Compromisso político como horizonte dacompetência técnica". Embora datado de 1983, esse texto mantém-se atualsendo oportuno, ainda, para recolocar novo patamar a questão da unidade dasforças progressistas no campo educacional."A pedagogia histórico-crítica no quadro das tendências Críticas da educaçãobrasileira" resultou de exposição feita no Seminário organizado pela ANDE erealizado em Niterói (RJ) 1985. Situa o contexto imediato do surgimento edesenvolvimento dessa corrente pedagógica no Brasil em confronto com outrastendências e esclarece as principais objeções que lhe foram formuladas.9

"A pedagogia histórico-crítica e a educação escolar" decorreu de conferênciaproferida no Seminário sobre a formação em 1988. Recoloca a pedagogiahistórico-crítica no quadro mais geral da História da Educação Brasileira ediscute suas relações com a realidade escolar atual.Por último julgou-se oportuno acrescentar, à guisa de apêndice, o prefácio à 20áedição de Escola e Democracia. Com efeito, esse prefácio esclarece algumasquestões suscitadas por aquele livro que são pertinentes para a compreensão dapedagogia histórico-crítica às quais a maioria dos leitores de Escola eDemocracia acabariam não tendo acesso, uma vez que fazem uso das ediçõesanteriores à vigésima que, obviamente, não continham ainda essesesclarecimentos.Finalmente, cabe registrar que este livro constitui uma primeira aproximação aosignificado da pedagogia histórico-crítica. Isto porque está em curso o processode elaboração dessa corrente pedagógica através da contribuição de diferentesestudiosos. De minha parte venho me dedicando a uma pesquisa de longoalcance que se desenvolve com ritmo variável e sem prazo para sua conclusão,através da qual pretende-se rastrear o percurso da educação desde suas origensremotas tendo como guia o conceito de "modo de produção". Trata-se deexplicitar como as mudanças das formas de produção da existência humanaforam gerando historicamente novas formas de educação as quais, por sua vez,exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produçãocorrespondente. É um estudo que não se move sob o acicate das urgênciasimediatas de conjuntura mas que se propõe a captar o movimento orgânicodefinidor do processo histórico; é, como diria Gramsci, uma tarefa "für ewig",isto é, de caráter duradouro e que justifica toda uma vida. Pretende-se, assim,revelar as bases sobre as quais se assenta a pedagogia histórico-crítica de modoa viabilizar a configuração consistente do sistema educacional em seu conjuntosob o ponto de vista dessa concepção educacional.Enquanto prossegue o trabalho de elaboração acima referido, espera-se que estelivro possibilite aos educadores o acesso, ainda que na forma de uma primeira

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aproximação, ao significado dessa importante corrente pedagógica.10

Considerando-se, por outro lado, como se esclareceu na introdução, que estelivro dá continuidade a Escola e Democracia espera-se, também, que osprofessores que vêm utilizando largamente essa obra nas disciplinas queministram, encontrem neste livro uma fonte adicional que permita a eles e aseus alunos compreender o lugar e o alcance da pedagogia histórico crítica, devez que é essa a concepção que subsiste como pano de fundo do próprio livroEscola e Democracia.Campinas, 20 de janeiro de 1991Dermeval Saviani11

INTRODUÇÃO: ESCOLA E SABER OBJETIVO NA PERSPECTIVAHISTÓRICO-CRÍTICAOs estudos que compõem este livro giram em torno da pedagogia histórico-crítica. Nesse sentido, dão continuidade e llmentam as análises apresentadas nolivro Escola e Democracia. Em verdade, Escola e Democracia pode serconsiderado como uma introdução preliminar à pedagogia historico-crítica.Com efeito, o primeiro capítulo, "as teorias da educação e o problema damarginalidade", apresenta uma síntese das teorias da educação abrangendo asteorias não-crítigogia tradicional, pedagogia nova e pedagogia tecnias teoriascrítico-reprodutivistas (teoria da escola enviolência simbólica, teoria da escolaenquanto aparelho de Estado e teoria da escola dualista). Tais teorias tidas ajuízo de valor colocando-se a exigência de sua com o que já se prenuncía, noítem "para uma teoria da educação", a pedagogia hístóríco-crítica.O segundo capítulo "Escola e Democracia I - A teoria da curvatura da vara" temum caráter preparatório para a pedagogia histórico-crítíca. Como registrei noprefácio à 20ª edição, trata-se de uma abordagem centrada mais no aspectopolêmico do que no aspecto gnosiológico. Não se trata de uma exposição iva esistemática, mas da indicação de caminhos para a do existente e para adescoberta da verdade histórica". Empreende-se aí uma apreciação radical dapedagogia liberal burguesa sendo "a denúncia da Escola Nova apenas uma esiavisando a demarcar mais precisamente o âmbito da pela burguesa de inspiraçãoliberal e o âmbito da pedagogia Ita de inspiração marxista" (Saviani, 1988, p. 9).Vê-se, que, embora não se faça ainda a exposição da pedagogia Do-cr(tica, é elaque comanda a análise. Com efeito, a perspectiva historicizadora aí adotadaconstitui uma exigência metodológica inerente à concepção hìstórico-crítica.13

Por sua vez, o terceiro capítulo de "Escola e Democracia" denominado "Escolae Democracia II - Para além da teoria da curvatura da vara" pode já serconsiderado como um esboço de formulação da pedagogia histórico-crítica. Emcontraponto com as pedagogias tradicional e nova expõem-se agora os pres-supostos filosóficos, a proposta pedagógico-metodológica e o significadopolítico da pedagogia histórico-crítica.Finalmente, o quarto capítulo, "Onze teses sobre educação e política" procuracaracterizar, no confronto com a prática política, a especificidade da práticaeducativa. Afirmei, então, que "o problema de se determinar a especificidade daeducação coincide com o problema do desvendamento da natureza própria dofenômeno educativo" (Saviani, 1988, p. 92).Ora, o presente livro começa por tratar exatamente do tema relativo à natureza eespecificidade da educação. Dá, pois, continuidade à reflexão com a qual seconclui "Escola e Democracia". Determina-se a natureza da educação no âmbitoda categoria "trabalho não-material". Para melhor compreensão desse conceitorecomenda-se a leitura do texto "Trabalhadores em educação e crise nauniversidade" publicado no livro "Ensino público e algumas falas sobreuniversidade" (Saviani, 1984, pp. 75-86), onde se esclarece a distinção entretrabalho produtivo e improdutivo bem como entre produção material e não-material, distinguindo-se na produção não-material duas modalidades: aquelaem que o produto se separa do produtor e aquela em que o produto não se

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separa do ato de produção; e é nesta segunda modalidade que se localiza aeducação. Toda a reflexão se desenvolve na perspectiva histórico-crítica como oatesta a seguinte afirmação: "a natureza humana não é dada ao homem mas épor ele produzida sobre a base da natureza biofísica. Conseqüentemente, otrabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cadaindivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamentepelo conjunto dos homens".Já nesse texto avulta como central a questão do saber. Com efeito, nãoestaremos, por certo, forçando a análise se afirmarmos que a produção não-material coincide com a produção do saber. De fato, a produção não-material,isto é, a produção espiritual, não é outra coisa senão a forma através da quais ohomem apreende o mundo expressando a visão daí decorrente14

de distintas maneiras. Eis porque se pode falar de diferentes tipos de saber oude conhecimento tais como: conhecimento sensível, intuitivo, afetivo,conhecimento intelectual, lógico, racional, conhecimento artístico, estético,conhecimento axiológico, conhecimento religioso e, mesmo, conhecimentoprático e conhecimento teórico. Do ponto de vista da educação esses diferentestipos de saber não interessam em si mesmos; eles interessam, sim, mas enquantoelementos que os indivíduos humana necessitam assimilar para que se tornemhumanos . Isto porque o homem não se faz homem naturalmente; ele não nascesabendo ser homem, vale dizer, ele não nasce sabendo sentir, pensar, avaliar;agir. Para saber pensar e sentir; querer, agir ou avaliar é preciso aprender, o queim educativo. Assim, o saber que diretamente interessa à educação é aquele queemerge como resultado do processo de aprendizagem, como resultado dotrabalho educativo.Entretanto, para chegar a esse resultado a educação tem que que tomar comoreferência, como matéria-prima de , o saber objetivo produzido historicamente. O fenômeno acima apontado manifesta-se desde a origem pelodesenvolvimento de processos educativos inicialmente coincidentes com opróprio ato de viver os quais foram diferenciando progressivamente até atingirum caráter o cuja forma mais conspícua se revela no surda escola. Esta apareceinicialmente como manifesundária e derivada dos processos educativos maisgerais vai se transformando lentamente ao longo da História até erigir-se naforma principal e dominante de educação. Esta passagem da escola à formadominante de educação coincide com a etapa histórica em que as relaçõessociais passaram a prevalecer sobre as naturais estabelecendo-se o primado domundo da cultura (o mundo produzido pelo homem) sobre o mundo danatureza. Em conseqüência, o saber metódico, sistemático, científico, elaboradopassa a predominar sobre o saber espontâneo, "natural", assistemático,resultando daí que a especificidade da educação passa a ser determinada pelaforma escolar. A etapa histórica em referência - que ainda não se esgotoucorresponde ao surgimento e desenvolvimento da sociedade capitalista cujascontradições vão colocando de forma cada vez mais intensa a necessidade desua superação. Eis porque no texto15

"sobre a natureza e especificidade da educação" considerou-se legítimo tomar-se a educação escolar como exemplar.A questão do saber objetivo recebe uma determinação mais precisa no textoseguinte motivado pela polêmica em que se contrapôs a competência técnica aocompromisso político. O ponto de vista histórico-crítico permitiu aí desmontar oraciocínio positivista afastando a armadilha em que freqüentemente caem ospróprios críticos do positivismo ao deixarem intacta a premissa maior quevincula a objetividade à neutralidade. Tal desmontagem tornou possível negar aneutralidade e, ao mesmo tempo, afirmar a objetividade. A neutralidade éimpossível porque não existe conhecimento desinteressado. Não obstante todoconhecimento ser interessado, a objetividade é possível porque não é todointeresse que impede o conhecimento objetivo. Há interesses que não só nãoimpedem como exigem a objetividade. Mas como diferenciá-los'? Tal tarefaresulta impossível de ser realizada no plano abstrato, isto é, no terrenopuramente lógico. Para se saber quais são os interesses que impedem e quais

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aqueles que exigem a objetividade não há outra maneira senão abordar oproblema em termos históricos. Só no terreno da História, isto é, no âmbito dodesenvolvimento de situações concretas, essa questão pode ser dirimida. E éisso que a conclusão do texto "competência política e compromisso técnico"procurou evidenciar exemplificando com o desenvolvimento da sociedadeburguesa.Este livro se completa com dois textos referidos diretamente à pedagogiahistórico-crítica. Ambos se complementam à medida que situam essa correntepedagógica no contexto brasileiro em confronto com as demais tendênciasesclarecendo as principais objeções a ela formuladas e explicitando a suarelação com a educação escolar. Em ambos esses textos também o problema dosaber ocupa lugar proeminente. Com efeito, em "a pedagogia histórico-críticano quadro das tendências críticas da educação brasileira" observa-se que todasas objeções examinadas na forma de dicotomias estão referidas ao problema dosaber. E em "a pedagogia histórico-crítica e a educação escolar" reitera-se que"o saber é o objeto específico do trabalho escolar".Em suma, é possível afirmar que a tarefa a que se propõe a pedagogia histórico-crítica em relação à educação escolar implica:16

a)Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saberobjetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua produçãoe compreendendo as suas principais manifestações bem como as tendênciasatuais de transformação;b) Conversão do saber objetivo em saber escolar de modo a torná-lo assimilávelpelos alunos no espaço e tempo escolares;c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas assimilemo saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produçãobem como as tendências de sua transformação.17

SOBRE A NATUREZAE ESPECIFICIDADE DA EDUCAÇÃO*Sabe-se que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos. Assimsendo, a compreensão da natureza da educação compreensão da naturezahumana. Ora, o que diferencia os homens dos demais fenômenos, o que odiferencia dos seres vivos, o que o diferencia dos outros animais'? A resposta aessas questões também já é conhecida. Com efeito,sabe-se, diferentemente dosoutros animais, que se adaptam natural tendo a sua existência garantidanaturalmente, o homem necessita produzir continuamente sua própriaexistência. Para tanto, em lugar de se adaptar à natureza, ele adaptar a naturezaa si, isto é, transformá-la. E isto é feito pelo trabalho. Portanto, o que diferenciao homem dos outros animais é o trabalho. E o trabalho se instaura a partir domomento em que seu agente antecipa mentalmente a finalidadeConseqüentemente, o trabalho não é qualquer tipo de atividade, mas uma açãoadequada a finalidades. E, pois, uma ação intencional.Para sobreviver o homem necessita extrair da natureza, intencionalmente, osmeios de sua subsistência. Ao fazer isso ele inicia o processo de transformaçãoda natureza, criando um mundo humano (o mundo da cultura).Dizer, pois, que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos significaafirmar que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência do e para o processo detrabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho.

Comunicação apresentada na Mesa-Redonda sobre a "Natureza e Especificidadeda Educação", realizada pelo INEP, em Brasília, no dia 5 de 1984. Publicadoanteriormente no Em Aberto, INEP, n-° 22,1984.19

Assim, o processo de produção da existência humana implica, primeiramente, agarantia da sua subsistência material com a conseqüente produção, em escalascada vez mais amplas e complexas, de bens materiais; tal processo nós podemostraduzir na rubrica "trabalho não-material ". Entretanto, para produzirmaterialmente, o homem necessita antecipar em idéias os objetivos da ação, oque significa que ele representa mentalmente os objetivos reais. Essa

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representação inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo real(ciência), de valorização (ética) e de simbolização (arte). Tais aspectos, namedida em que são objetos de preocupação explícita e direta, abrem a pers-pectiva de uma outra categoria de produção que pode ser traduzida pela rubrica"trabalho não-materíal". Trata-se aqui da produção de idéias, conceitos, valores,símbolos, hábitos, atitudes, habilidades. Numa palavra, trata-se da produção dosaber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, oconjunto da produção humana. Obviamente, a educação se situa nessa categoriado trabalho não-materíal. Importa. porém, distinguir, na produção não-material,duas modalidades. A primeira refere-se àquelas atividades em que o produto sesepara do produtor como no caso dos livros e objetos artísticos. Há, pois, nessecaso, um intervalo entre a produção e o consumo, possibilitado pela autonomiaentre o produto e o ato de produção. A segunda diz respeito às atividades emque o produto não se separa do ato de produção. Nesse caso, não ocorre ointervalo antes observado; o ato de produção e o ato de consumo se imbricam. Énessa segunda modalidade do trabalho não-material que se situa a educação.Podemos, pois, afirmar que a natureza da educação se esclarece a partir daí.Exemplificando: se a educação não se reduz ao ensino, é certo, entretanto, queensino é educação e, como tal, participa da natureza própria do fenômenoeducativo. Assim, a atividade de ensino, a aula, por exemplo, é alguma coisaque supõe, ao mesmo tempo, a presença do professor e a presença do aluno. Ouseja, o ato de dar aula é inseparável da produção desse ato e de seu consumo. Aaula é, pois, produzida e consumida ao mesmo tempo (produzida pelo professore consumida pelos alunos).Compreendida a natureza da educação nós podemos avançar em direção àcompreensão de sua especificidade. Com efeito, se a educação, pertencendo aoâmbito do trabalho não-material,20

tem a ver com idéias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, taiselementos, entretanto, não lhe interessam em si mesmos, como algo exterior aohomem.Nessa forma, isto é, considerados em si mesmos, como algo exterior ao homem,esses elementos constituem o objeto de preocupação das chamadas ciênciashumanas, ou seja, daquilo que Dilthey denomina de "ciências do espírito" poroposição “ciências da natureza”. Diferentemente, do ponto de vista da educaçãoou seja, da perspectiva da pedagogia entendida como ciência da educação, esseselementos interessam enquanto é necessário que os homens os assimilem, tendoem vista a constituição de algo como uma segunda natureza. Portanto; o que nãoé garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos homens; eaí se incluem os próprios homens. Podemos, dizer que a natureza humana não édada ao homem, mas é produzida sobre a base da natureza bio-física. Conte, otrabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cadaindivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamentepelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de umlado, à dos elementos culturais que precisam ser assimila pelos indivíduos daespécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado econcomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esseobjetivo.Quanto ao primeiro aspecto (a identificação dos elementos culturais queprecisam ser assimilados), trata-se de distinguir entre o essencial e o acidental, oprincipal e o secundário, o fundamental e o acessório. Aqui me parece degrande importância, em pedagogia, a noção de "clássico". O "clássico" não seconfunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, aomoderno e muito menos ao atual. O clássico é aquilo que se firmou comofundamental, como essencial. Pode, pois, se constituir num critério útil para aseleção dos conteúdos do trabalho pedagógico.Quanto ao segundo aspecto (a descoberta das formas de desenvolvimento dotrabalho pedagógico), trata-se da organização dos meios (conteúdos, espaço,tempo e procedimentos) através dos quais, progressivamente, cada indivíduosingular realize, na forma de segunda natureza, a humanidade historicamente.21

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Considerando, como já foi dito, que se a educação não reduz ao ensino este,sendo um aspecto da educação, participa da natureza própria do fenômenoeducativo, creio ser possível ilustrar as considerações gerais acima apresentadascom o caso da educação escolar. Este exemplo me parece legitimo porqueprópria institucionalização do pedagógico através da escola um indício daespecificidade da educação, uma vez que, se educação não fosse dotada deidentidade própria seria impossível a sua institucionalização. Nesse sentido, aescola configura se numa situação privilegiada, a partir da qual podemosdetectar a dimensão pedagógica que subsiste no interior da prática social global.Peço, pois, licença para reapresentar aqui as considerações que fiz em Olinda,por ocasião do III Encontro Nacional do Programa Alfa (ENPA). Ali, ao tratardo papel da escola básica, parti do seguinte: a escola é uma instituição cujopapel consiste na socialização do saber sistematizado.Vejam bem: eu disse saber sistematizado; não se trata pois, de qualquer tipo desaber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elaborado e não aoconhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado; àcultura erudita e não à cultura popular.Em suma, a escola tem a ver com o problema da ciência. Com efeito, ciência éexatamente o saber metódico, sistematizado. A esse respeito é ilustrativo omodo como os gregos consideravam essa questão. Em grego, temos trêspalavras referidas ao fenômeno do conhecimento: doxa (&ya), sofìa (&ocpí)a eepisteme (érrQTli,). Doxa significa opinião, isto é, o sabe próprio do sensocomum, o conhecimento espontâneo ligado diretamente à experiência cotidiana,um claro-escuro, misto de verdade e de erro. Sofia é a sabedoria fundada numalonga experiência de vida. É nesse sentido que se diz que os velhos são sábios eque os jovens devem ouvir seus conselhos. Finalmente episteme significaciência, isto é, o conhecimento metódico sistematizado. Conseqüentemente, sedo ponto de vista da sofia um velho é sempre mais sábio do que um jovem, doponto de vista da episteme um jovem pode ser mais sábio do que um velho.22

Ora, a opinião, o conhecimento que produz palpites não justifica a existência daescola. Do mesmo modo, a sabedoria na experiência de vida dispensa e atémesmo desdenha a experiência escolar, o que, inclusive, chegou a se cristalizarpopulares como: "mais vale a prática do que a gramática e “as criançasaprendem apesar da escola". E a exigência de apropriação do conhecimentosistematizado por parte das novas gerações que torna necessária a existência daescola.A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos quepossibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência ), bem como o próprio acessoaos rudimentos desse saber. As atividades da escola básica devem se organizar apartir dessa questão. Se chamarmos isso de currículo, poderemos então afirmarque é a partir do saber sistematizado que se estrutura o currículo da escolaelementar. Ora, o saber sistematizado, a cultura erudita, é uma cultura letrada.Daí que a primeira exigência para o acesso a esse tipo de saber é aprender a lere escrever. Além disso, é preciso também aprender a linguagem dos números, alinguagem da natureza e a linguagem da sociedade. Está aí o conteúdofundamental da escola elementar: ler, escrever, contar, os rudimentos dasciências naturais e das ciências sociais e geografia humanas).A essa altura vocês podem estar afirmando: mas isso é o óbvio. Exatamente, é oóbvio. E como é freqüente acontecer com tudo o que é óbvio, ele acaba sendoesquecido ou ocultando, na sua aparente simplicidade, problemas que escapamà nossas atenção. E esse esquecimento, essa ocultação, acabam por neutralizaros efeitos da escola no processo de democratização. Vejamos o problema já apartir da própria noção de currículo. De uns tempos para cá se disseminou aidéia de que currículo é o conjunto das atividades desenvolvidas pela escola.Portanto, currículo se diferencia de programa ou de elenco de disciplinas;segundo essa acepção, currículo é tudo o que a escola faz; assim, não fariasentido falar em atividades extracurriculares. Recentemente, fui levado acorrigir essa definição acrescentando-lhe o adjetivo "nucleares". Com essaretificação a definição, provisoriamente, passaria a ser a seguinte: currículo é oconjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela escola. E por que isto?Porque, se tudo o que acontece na escola é currículo, se apaga a diferença entrecurricular e extracurricular

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então tudo acaba adquirindo o mesmo peso; e abre caminho para toda sorte detergiversações, inversões e fusões que terminam por descaracterizar o trabalhoescolar. Com isso, facilmente, o secundário pode tomar o lugar daquilo que éprincipal, deslocando-se, em conseqüência, para o âmbito do acessório aquelasatividades que constituem a razão de ser da escola. Não é demais lembrar queesse fenômeno pode se facilmente observado no dia-a-dia das escolas. Douapenas um exemplo: o ano letivo começa na segunda quinzena de fevereiro e jáem março temos a semana da revolução; em seguida, a semana santa depois, asemana das mães, as festas juninas, a semana do soldado, semana do folclore,semana da pátria, jogos da primavera, semana da criança, semana do índio,semana da asa etc., e nesse momento já estamos em novembro. O ano letivo seencerra e estamos diante da seguinte constatação: fez-se de tudo na escola;encontrou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas muito poucotempo foi destinado ao processo de transmissão-assimilação de conhecimentossistematizados. Isto quer dizer que se perdeu de vista a atividade nuclear daescola, isto é, a transmissão dos instrumentos de acesso ao saber elaborado.É preciso, pois, ficar claro que as atividades distintivas das semanas, acimaenumeradas, são secundárias e não essenciais à escola. Enquanto tais, sãoextracurriculares e só têm sentido na medida em que possam enriquecer asatividades curriculares, isto é, aquelas próprias da escola, não devendo emhipótese alguma prejudicá-las ou substituí-las. Das considerações feitas, resultaimportante manter a diferenciação entre atividades curriculares eextracurriculares, já que esta é uma maneira não perdermos de vista a distinçãoentre o que é principal eo que é secundário.Essa questão tem desdobramentos ainda de outras ordens. Assim, por exemplo,em nome desse conceito ampliado de currículo a escola se tornou um mercadode trabalho disputadíssimo pelos mais diferentes tipos de profissionais(nutricionistas, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, artistas, assistentessociais etc.) e uma nova inversão se opera. De agência destinada a atender ointeresse da população em ter acesso ao saber sistematizado, a escola se tornauma agência a serviço de interesses corporativistas24

clientelistas. E se neutraliza, mais uma vez, agora por um outro caminho, o seupapel no processo de democratização.A esta altura é necessário comentar ainda uma possível objeção: até que pontoessa concepção que estou expondo não configura uma proposta pedagógicatradicional? Quer-se com isso voltar à velha escola já tão exaustivamentecriticada? E onde fica a criatividade, a iniciativa dos alunos, o ensino ativo? Talobjeção é inevitável àqueles educadores que foram de algum modoinfluenciados pelo movimento da Escola Nova. E nós sabemos que talmovimento, a nível de ideário, teve grande penetração em nosso país.Para encaminhar a resposta à objeção acima formulada, parece-me útil recordaraqui uma passagem de Gramsci, escrita época em que no Brasil se lançava oManifesto dos Pioneiros da Educação Nova ( 1932). Escreveu ele: "Deve-seentre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma método Dalton. Todaescola unitária é escola ativa, se bem que seja necessário limitar as ideologiaslibertárias neste campo(..). Ainda se está na fase romântica da escola ativa, namentos da luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilataram morbidamentepor causa do contraste e da polêmica: é necessário entrar na fase `clássica',racional, encontrando nos fins a fonte natural para elaborar os métodos e asformas” (Gramsci, A. Os intelectuais e a organização da cultura, p.124)As vezes me dá a impressão de que, passados mais de anos, continuamos aindana fase romântica. Não ênfase clássica. E o que é fase clássica? É a fase em quema depuração, superando-se os elementos próprios da conjuntura polêmica erecuperando-se aquilo que tem caráter ; e, isto é, que resistiu aos embates dotempo. Clássico, em verdade, é o que resistiu ao tempo. É nesse sentido que sefala na cultura greco-romana como sendo clássica, que Descartes é um clássicoda filososofia, Dostoievski é um clássico da literatura universal, Machado deAssis um clássico da literatura brasileira etc.Ora, Clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado. Este

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é o fim a atingir. É aí que cabe encontrar a fonte natural para elaborar osmétodos e as formas de organização do conjunto das atividades da escola, isto é,do currículo.25

E aqui nós podemos recuperar o conceito abrangente de currículo (organizaçãodo conjunto das atividades nucleares distribuídas no espaço e tempo escolares).Um currículo é, pois, uma escola funcionando, quer dizer, uma escoladesempenhando a função que lhe é própria.Vê-se, assim, que para existir a escola não basta a existência do sabersistematizado. É necessário viabilizar as condições de sua transmissão eassimilação. Isso implica dosá-lo e seqüencíá-lo de modo que a criança passegradativamente do seu não-domínio ao seu domínio. Ora, o saber dosado eseqüenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no espaço escolar, aolongo de um tempo determinado, é o que nós convencionamos chamar de "saberescolar".Tendo claro que é o fim a atingir que determina os métodos e processos deensino-aprendizagem, compreende-se o equívoco da Escola Nova em relação aoproblema da atividade e da criatividade. Com efeito, a crítica ao ensinotradicional era justa, na medida em que esse ensino perdeu de vista os fins, tor-nando mecânicos e vazios de sentido os conteúdos que transmitia. A partir daí, aEscola Nova tendeu a considerar toda transmissão de conteúdo como mecânicae todo mecanismo como anticriativo, assim como todo automatismo comonegação da liberdade.Entretanto, é preciso entender que o automatismo é condição da liberdade e quenão é possível ser criativo sem dominar determinados mecanismos. Isto ocorrecom o aprendizado nos mais diferentes níveis e com o exercício de atividadestambém as mais diferentes. Assim, por exemplo, para se aprender a dirigirautomóvel é preciso repetir constantemente os mesmos atos até se familiarizarcom eles. Depois já não será necessária a repetição constante. De quando emquando, praticam-se esses atos com desenvoltura, com facilidade. Entretanto, noprocesso de aprendizagem, tais atos, aparentemente simples, exigiram razoávelconcentração e esforço até que fossem fixados e passassem a ser exercidos, porassim dizer, automaticamente. Por exemplo, para se mudar a marcha com ocarro em movimento é necessário acionar a alavanca com a mão direita sem sedescuidar do volante, que será controlado com a mão esquerda, ao mesmotempo que se pressiona a embreagem com o pé esquerdo e, concomitantemente,se retira o pé direito do acelerador.26

A concentração da atenção exigida para realizar a sincronia desses movimentosabsorve todas as energias. Por isso o aprendiz não é livre ao dirigir. No limite,eu diria mesmo que ele é escravo dos atos que tem que praticar. Ele não osdomina, mas, ao contrário, é dominado por eles. A liberdade só será atingidaquando atos forem dominados. E isto ocorre no momento em que osmecanismos forem fixados. Portanto, por paradoxal que pareça, exatamentequando se atinge o nível em que os atos são praticados automaticamente que seganha condições de se exercer, m liberdade, a atividade que compreende osreferidos atos. cão, a atenção se liberta, não sendo mais necessário tematizar oato. Nesse momento é possível não apenas dirigir livremente, mas também sercriativo no exercício dessa atividade. E se chega a esse ponto quando o processode aprendizagem, enquanto tal, se completou. Por isso, é possível afirmar que oaprendiz, no exercício daquela atividade que é o objeto de aprendizagem, nuncaé livre. Quando ele for capaz de exercê-la livremente, nesse exato momento eledeixou de ser aprendiz. As considerações supra podem ser aplicadas em outrosdomínios, por exemplo, aprender a tocar um instrumento musical etc.Ora, esse fenômeno está presente também no processo de ,aprendizagem atravésdo qual se dá a assimilação do saber sistematizado, como o ilustra, de modoeloqüente, o exemplo da alfabetização. Também aqui é necessário dominar osmecanismospróprios da linguagem escrita Também aqui é preciso fixar certos automatismo,incorporá-los, isto é, torná-los parte de nosso corpo, de nosso organismo,integrá-los em nosso próprio ser. Dominadas as formas básicas, a leitura e aescrita podem fluir com segurança e desenvoltura Na medida em que vai se

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libertando dos aspectos mecânicos, o alfabetizando pode, progressivamente, irconcentrando cada vez mais sua atenção no , conteúdo, isto é, no significadodaquilo que é lido ou escrito. nota-se que libertar-se, aqui, não tem o sentido delivrar-se, quer dizer, abandonar, deixar de lado os ditos aspectos mecanismos. Alibertação só se dá porque tais aspectos foram apropriados, dominados einternalizados, passando, em conseqüência, a operar no interior de nossa própriaestrutura orgânica. Poderse-ia dizer que o que ocorre, nesse caso, é umasuperação no sentido dialético da palavra. Os aspectos mecânicos foram ne-gados por incorporação e não por exclusão. Foram superados 27

porque negados enquanto elementos externos e afirmados como elementosinternos.O processo acima descrito indica que só se aprende, de fato, quando se adquireum habitus, isto é, uma disposição permanente, ou, dito de outra forma, quando0 objeto de aprendizagem se converte numa espécie de segunda natureza. E issoexige tempo e esforços por vezes ingentes. A expressão "segunda natureza" meparece sugestiva justamente porque nós, que sabemos ler e escrever, tendemos aconsiderar esses atos como naturais. Nós os praticamos com tamanhanaturalidade que sequer conseguimos nos imaginar desprovidos dessascaracterísticas. Temos mesmo dificuldade em nos recordar do período em queéramos analfabetos. As coisas se passam como se tratasse de uma habilidadenatural e espontânea. E no entanto trata-se de uma habilidade adquirida e, frise-se, não de modo espontâneo. A essa habilidade só se pode chegar por umprocesso deliberado e sistemático. Por ai se pode perceber porque o melhorescritor não será, apenas por este fato, o melhor alfabetizador. Um grandeescritor atingiu tal domínio da língua que terá dificuldade em compreender ospercalços de um alfabetizando diante de obstáculos que, para ele, inexistem ou,quando muito, não passam de brincadeira de criança Para que ele se convertanum bom alfabetizador será necessário aliar, ao domínio da língua, o domíniodo processo pedagógico indispensável para se passar da condição de analfabetoà condição de alfabetizado. Com efeito, sendo um processo deliberado e sis-temático, ele deverá ser organizado. O currículo deverá traduzir essaorganização dispondo o tempo, os agentes e os instrumentos necessários paraque os esforços do alfabetizador sejam coroados de êxito.Adquirir um habitus significa criar uma situação irreversível. Para isso, porém,é preciso insistência e persistência; faz-se mister repetir muitas vezesdeterminados atos até que eles se fixem. Não é, pois, por acaso que a duração daescola primária é fixada em todos os países com pelo menos quatro anos. Issoindica que esse tempo é o mínimo indispensável. Pode-se chegar a conseguirdecifrar a escrita, e reconhecer os códigos em um ano, assim como comalgumas lições práticas será possível dirigir um automóvel. Mas do mesmomodo que a interrupção, o abandono do volante antes que se; complete a28

aprendizagem determinará uma reversão, também isso ocorre com oaprendizado da leitura. Inversamente, completado o processo de, adquirindo ohabitus, atingida a segunda natureza, a interrupção da atividade, ainda que porlongo tempo, não acarreta a reversão são. Consequentemente, se é possívelsupor, na escola básica que a identificação e reconhecimento dos mecanismoselementares possa se dar no primeiro ano, a Fixação desses mecanismos supõea continuidade que se estende por pelo menos mais três anos. É importanteassinalar que essa continuidade se dará através do conjunto do currículo daescola elementar. A criança passará a estudar Ciências Naturais, História,Geografia, Aritmética através da linguagem escrita, isto é, lendo e escrevendode modo sistemático. Dá-se, assim, o seu ingresso no universo letrado. Emsuma, pela mediação da escola, dá-se a passagem de saber espontâneo ao sabersistematizado, da cultura popular e da cultura erudita. Cumpre assinalar,também aqui, trata de um movimento dialético, isto é, a ação escolar permiteque se acrescente novas determinações que enriquecem as anteriores e estas,portanto, de forma alguma são excluídas. Assim, o acesso à cultura eruditapossibilita a apropriação , de novas formas através das quais se pode expressaros conteúdos do saber popular. Cabe, pois, não perder de caráter derivado da

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cultura erudita por referência à cultura popular, cuja primazia não é destronada.Sendo uma determinação, que se acrescenta, a restrição do acesso à culturaerudita conferirá, àqueles que dela se apropriam, uma situação de privilégio,uma vez que o aspecto popular não lhes é estranho recíproca, porém, não éverdadeira: os membros da população marginalizados da cultura letradatenderão a encará-la como uma potência estranha que os desarma e domina. quefoi dito acima a respeito da escola, em que sobressai o aspecto relativo aoconhecimento elaborado (ciência), parece-me ser válido também para outrasmodalidades de prática pedagógica, voltadas principalmente para outrosaspectos, como o desenvolvimento da valorização e simbolizarão. Emconclusão: a compreensão da natureza da educação, enquanto um trabalho não-material cujo produto não se separa do ato de produção nos permite situar aespecificidade da educação como referida aos conhecimentos, idéias, conceitos,valores, hábitos, símbolos sob o aspecto de elementos necessários29

à formação da humanidade em cada indivíduo singular, na forma de umasegunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente, através derelações pedagógicas historicamente determinadas que se travam entre oshomens.A partir daí se abre também a perspectiva da especificidade dos estudospedagógicos (ciência da educação) que, diferentemente das ciências da natureza(preocupadas com a identificaçã0 dos fenômenos naturais) e das ciênciashumanas (preocupadas com a identificação dos fenômenos culturais), preocupa-se Com a identit7cação dos elementos naturais e culturais necessários àconstituição da humanidade em cada ser humano e à descoberta das formasadequadas ao atendimento desse objetivo.30

COMPE'TÊNCIA POLÍ'TICA E COMPROMISSO TÉCNICO(o pomo da discórdia e o fruto proibido)*O artigo de Paolo Nosella, "O compromisso político como horizonte dacompetência técnica", Educação Sociedade, 14, começa por registrar "algumasperplexidade" suscitadasleitura do livro de Guiomar Namo de Mello, Magistério de Grau: dacompetência técnica ao compromisso politico.De minha parte, confesso que também venho sendo tomado por algumaperplexidade em face da polêmica que o referido livro vem causando e, emespecial, dada uma certa direçãotomada pela polêmica. Em razão disso, já há algum tempo vinha `sentindodesejo de interferir nesse debate.A publicação do artigo do Paolo ofereceu a mim o feliz ensejo para memanifestar. Feliz porque ambos, Guiomar e paolo integram a mesma turma deDoutorado em Educação da UC-SP e ambos tiveram suas teses por mimorientadas. Cada trabalho era impiedosamente discutido no grupo e desseprocesso fez parte a tese da Guiomar que deu origem ao livro em pau. Ainda,por uma coincidência, ambos, Paolo e Guiomar, defederam suas teses nomesmo dia 26-06-81.Se trago a público essas informações é porque me parece ~e elas podem ajudara desfazer uma imagem equivocada que, ~r vezes, os artigos polêmicosprovocam nos leitores: a idéia que o autor da crítica desautoriza o autorcriticado, colocarem campo oposto e se define como seu adversário renitente.Vejo, com satisfação que, com essa iniciativa o Paolo prosegue e mantém, agoraatravés de um órgão de opinião pública no campo educacional, o mesmoespírito dos debates quePublicado anteriormente na Revista Educação & Sociedade, Cortez/CEDES, n°-15, 1983.31

travávamos no interior do grupo. Aliás, tal iniciativa já havia sido tomada antes,através desse mesmo veículo de comunicação, por Carlos Roberto Jamil Cury eLuiz Antônio Cunha que também integram aquela primeira turma de doutorado.'Ao interferir no debate, faço-o, pois, dentro do mesmo espírito que, por sinal,

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continua alimentando a elaboração das teses em desenvolvimento no interior doPrograma de Doutorado referido. Assim como, no grupo, eu tomava posição, -desenvolvia também minhas criticas e concordava ou discordava dasmanifestações dos colegas, - é nessa mesma linha que apresento os comentáriosa seguir.Após ler o artigo do Paolo a primeira pergunta que lhe fiz foi: qual foi o móveldo texto? Esclareceu-me ele que o redigira para um debate que se travava emSão Carlos com a presença da Guiomar (embora, por impedimento de viagem opróprio Paolo acabou por não poder participar do debate). Essa informação meparece importante pois, ao situar a gênese do texto, ajuda a compreender maisadequadamente o seu tom polêmico e deliberadamente provocativo.No presente artigo pretendo confrontar ambas as perspectivas (da Guiomar e doPaolo) tentando verificar o grau de divergência ou convergência existente entreelas. Para tanto, penso que o melhor método é o compreensivo isto é, procurareime situar no interior de cada proposta de modo a captar simpaticamente o seuconteúdo. O esquema do texto será, pois, o seguinte:Na primeira parte me empenharei em evidenciar a lógica interna ao pensamentode Guiomar com o que espero afastar as críticas um tanto apressadas que se lhetêm sido endereçadas.Na segunda parte trabalharei, com o mesmo espírito, sobre o texto do Paolo.Aqui não se trata de afastar eventuais críticas apressadas uma vez que, dada asua publicação ainda muito recente, não houve sequer tempo para que surgissempossíveis manifestações críticas de qualquer natureza. Não há, pois, críticas1. Ver C.R.J.Cury, "A propósito de Educação e Desenvolvimento social noBrasil", Educação & Sociedade Cortez/CEDES, nº 9, bem como a resposta deL.A.Cunha, "Sobre Educação e Desenvolvimento Social no Brasil: Crítica eAutocrítica", Educação & Sociedade, nº 10.32

apressadas a serem afastadas. Trata-se isto sim de se evitar o risco de efetuaruma critica apressada. Daí o cuidado que terei em captar, com o máximo deisenção, o conteúdo veinculado pelo artigo.Finalmente, na terceira parte espero dar uma contribuição no sentido de fazeravançar o debate extrapolando ambas as abordagens, ultrapassando polarizaçõese apontando em direção de uma síntese superadora.

I - QUEM TEM MEDO DA COMPETÊNCIA TÉCNICA?Antes de entrar no mérito do livro Magistério de 1° Grau: da competênciatécnica ao compromisso político(2), creio ser de interesse situar, para osleitores, o conteúdo global da obra em questão. Isto, além de facilitar oacompanhamento de meu raciocínio àqueles leitores que porventura não tenhamtido acesso ao livro de Guiomar, me parece necessário também porque tenhonotado que vários dos críticos que têm engrossado a polêmica em torno desseverdadeiro pomo da discórdia, sequer se deram ao trabalho de ler o referidolivro.l. A árvore do pomo da discórdiaO livro está estruturado em seis capítulos. O primeiro "a teoria revisitada", é omais extenso (ocupa pouco mais de um terço do total) e também o maisimportante. Nele a autora sistematiza a perspectiva teórica que orientou otrabalho. Seu titulo é sugestivo, pois pretende indicar o caráter que assumiu noconjunto da pesquisa. Com efeito, tal capitulo surge como a expressãoelaborada daquilo que servira como pano de fundo, ou melhor, como as lentesque permitiram a ela ver o que aparece Escrito nos Capítulos III, I V e V. Essescapítulos foram redigidos anteriormente, a partir dos instrumentos teóricos cujaexplicitação é feita no Capítulo I. É como se, após ver determinado2. Guiomar Namo de Mello. Magistério de 1° Grau: da competência técnica aocompromisso político. São Paulo, Cortez, 1988.33

do objeto com o auxilio de determinadas lentes, a autora tenha tomado essasmesmas lentes e se debruçado sobre elas para desvendar a sua constituição eexplicitar porque elas tornaram possível que fosse visto aquilo que se viu. Daí, otítulo do capítulo: "teoria revisitada". E uma retomada, a nível de uma síntesearticulada, da teoria.

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Para explicitar a teoria, Guiomar parte do caráter mediador da escola no seio dasociedade. Procede, então, a uma critica da teoria da reprodução na versãorepresentada pela teoria do sistema de ensino enquanto violência simbólica deBourdieu-Passeron visando limpar o caminho para expor sua visão ,de escola, visão essa centrada na categoria de mediação. Através de tal percursofórmula suas principais hipótese bem como sua tese central, esclarecendo arelação recíproca entre esse arsenal conceptual e seu objeto de estudo: asrepresentações do professor de primeiro grau a respeito de sua prática docente.Voltarei a este capítulo para evidenciar o conteúdo principal do trabalho. Porora quero apenas situar o leitor no conjunto da obra.No Capítulo II "a teoria em atos", expõe-se o delineamento da pesquisa. Aídescreve-se o processo de observação e de construção de instrumentos,explicitando os procedimentos que indicam os atos nos quais a teoria original seexpressa.O Capitulo III, "mulher e profissional em estratégia de ascensão", discute osdados a respeito da situação sócio-econômica do professor. O título sugereaquilo que acredito ser o ponto fundamental desse capitulo. Isto porque é fatosobejamente conhecido a questão da perda salarial dos professores nos últimosanos. Daí, falar-se na "proletarização da carreira docente". Os dados dapesquisa, porém, revelaram uma outra face: por referência às suas origens(profissão e escolaridade dos pais) o magistério ainda se revela um mecanismode ascensão social.O Capitulo IV se ocupa das representações dos professores relativamente aosucesso e fracasso dos alunos no processo de ensino-aprendizagem. Por issorecebeu o seguinte titulo, como os demais, bastante sugestivo: "onde a vítima setransforma em réu, ainda que muito amada".No Capítulo V, "muito amor, muita doação e pouco salário", descreve-se asrepresentações dos professores sobre suas34

condições de trabalho, sobre os motivos da escolha da profissão e sobre asreivindicações e formas de organização.Finalmente, o Capítulo VI é cautelosamente denominado "do senso comum àvontade política, uma das sínteses possíveis", consciente que está a autora dosvários desdobramentos que sua pesquisa pode ensejar. O conteúdo do capituloretoma, de uma outra maneira, a tese central do livro, sugerindo que a passagemdo senso comum à vontade política se dá pela mediação da competência técnicaDado que a polêmica tem girado em torno da expressão "competência técnica",seja isoladamente, seja na sua relação com o compromisso político, é por esseverdadeiro "pomo da discórdia" - que convém começar.2. O pomo da discórdiaIniciemos, pois, explicitando o significado que tem para Guiomar a competênciatécnica, buscando desatar de vez esse verdadeiro nó górdio..Indo direto ao ponto. Na página 16 a autora afirma:"Por competência profissional estou entendendo várias características que éimportante indicar. Em primeiro lugar, o domínio adequado de saber escolar aser transmitido, juntamente com a habilidade de organizar e transmitir esse sa-ber de modo a garantir que ele seja efetivamente apropriado pelo aluno. Emsegundo lugar, uma visão relativamente integrada e articulada dos aspectosrelevantes mais imediatos de sua própria política ou seja um entendimento dasmúltiplas relações entre os vários aspectos da escola, desde a organização dosmétodos de aula passando por critérios de matricula e agrupamentos de classe,até o currículo e os métodos de ensino. Em terceiro lugar, uma compreensão dasrelações entre o preparo técnico que recebeu, a organização da escola e osresultados de sua ação. Em quarto lugar, uma compreensão mais ampla dasrelações entre a escola e a sociedade que passaria necessariamente pela questãode suas condições de trabalho e remuneração. ' (p. 43)Isto que aí foi denominado de competência profissional recebe ao longo dotrabalho a denominação de competência técnica. Logo abaixo, na mesmapágina, isso fica bastante evidente:35

"Se é que estou captando corretamente o movimento existente nisso tudo, o que

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vislumbro é a possibilidade de esgotar a ação docente naquilo que ela pode terde eficiência técnica..” (P· 43)Citei propositadamente essa passagem porque ela oferece munição bem a gostodos franco-atiradores da polêmica fácil. Pois não é que aparece ai aquelaexpressão ("eficiência técnica"), marca registrada da pedagogia tecnicista,bombardeada pelos críticos (inclusive por mim) das mais diferentes formas?Seria Guiomar uma nova representante da pedagogia tecnicista?A indicação do sentido de "competência profissional" acima transcrito nãoparece dar guarida a essa interpretação, uma vez que aquela conceituarão colocaexigências que vão até a "compreensão mais ampla das relações entre a escola ea sociedade", ultrapassando, portanto, claramente os limites da pedagogiatecnicista. Mas isso não configuraria apenas um intento de vestir o tecnicismocom uma nova roupagem? Não estaria emergindo a partir daí uma espécie de"neo-tecniçismo"? A autora, porém, é explícita na recusa do tecnicismo. Noparágrafo que precede a conceituação citada, após se referir às dificuldades doprofessor em manejar adequadamente os recursos técnicos na sua práticapedagógica, afirma: "Isso me remete para a questão da sua competênciaprofissional numa perspectiva não meramente tecnicista". E, algumas linhasacima, havia ela registrado: "Isso entretanto subentende o manejo competente,teórico e prático desses princípios e de todo o conhecimento organizado sobre aescola". E se alguma dúvida ainda pudesse persistir, esta passagem me pareceliquidá-la de vez:"Uma analise realista da condição de muitos desses professores eliminariaqualquer suspeita de que a importância da competência técnica seria apenastecnicismo. Há alguns que dominam mal os próprios conteúdos que deveriamtransmitir, que desconhecem princípios elementares do manejo de classes dealfabetização e que, muitas vezes, sequer possuem domínio satisfatório daprópria lingua materna" (p. 55).Vê-se, pois, que para Guiomar "competência técnica" tem um sentidoclaramente não tecnicista já que não diz respeito ao domínio de certas regrasexternas simplificadas e aplicáveis36

mecanicamente a tarefas fragmentadas e rotineiras. Ao contrário, compreende odomínio teórico e prático dos princípios e conhecimentos que regem ainstituição escolar. Referi-me à instituição escolar, pois se trata de umadelimitação importante. Em todo o trabalho Guiomar jamais pretendeultrapassar os limites da educação escolar. Sua tese relativa à competência téc-nica e seu significado político não pretende, pois, ter validade para a educaçãoem geral.3. A outra face do pomo da discórdiaFalei acima no significado político da competência técnica. Entramos aqui nooutro aspecto que tem alimentado as polêmicas em curso: a interpretação quetende a contrapor de modo excludente competência técnica e compromissopolítico ou, senão tanto, pelo menos a subordinar o compromisso políti0o àcompetência técnica. Nessa direção ganha corpo a leitura segundo a qualGuiomar estaria realizando a tese da neutralidade da técnica, esvaziando-a deseu sentido político. Vejamos o que pensa a autora a respeito.Ao comentar a intervenção de Marx na AIT que poderia suscitar umainterpretação tendente a subtrair da escola a dimensão política, Guiomar afirmataxativamente:"Tudo isso, longe de retirar o caráter político da escola, ao contrário o afirma erepõe na perspectiva de um momento histórico determinado.' (p. 33)Uma leitura atenta do Capitulo I permitirá verificar que, segundo Guiomar, aescola está impregnada de ponta a ponta pelo aspecto político. Ela se configuracomo um dos espaços em que os interesses contraditórios próprios da sociedadecapitalista entram em "disputa pela apropriação do conhecimento". Mas suaacuidade de análise a leva mais além, a ver o sentido político da escola mesmoali onde ele aparentemente não existiria, onde ele está oculto sob a aparência doestritamente técnico:Supor todavia que esses interesses, que são políticos. se manifestem de formaexplicita, como se lá fossem políticos para os própria interessados, é exigir queo ser e o aparecer37

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da escola estejam em perfeita coerência entre si. A reivindicação dos dominadosnão se manifesta organizada e explicitamente enquanto tal. Há que lê-la narebeldia, na passividade na agressividade e na apatia das crianças pobres, quedesafiam a proposta curricular e programática da escola básica. Há que lê-lasobretudo nos índices de fracasso escolar.Por outro lado, os interesses do capital não aparecerão nunca como interesses eintenções subjetivamente explicitados do capitalista, da classe dominante ou deseus supostos sequazes: os diretores, os professores, os especialistas. Aocontrário é no seu aparecer escritamente técnico que tais interessesdesempenharão sua finalidade realmente política. É na função objetivamentepolítica de excluir as crianças pobres da escola que as limitações técnicas docurrículo inadequado, dos programas mal dosados e seqüenciados, dasexigências arbitrárias de avaliação, do despreparo do professor, precisam sercaptadas, se quisermos ver a escola brasileira hoje tal qual é, e tal qual pareceser. E é nessa contradição entre seu ser e seu aparecer que havemos de captartambém o movimento do seu vir a ser, pois essa é a sua crise atual." (p. 48.Grifos nossos)É justamente porque a competência técnica é política que se produziu aincompetência técnica dos professores impedindo-os de transmitir o saberescolar às camadas dominadas quando estas, reivindicando o acesso a esse saberpor percebe-lo, ainda que de modo difuso e contraditório, como algo útil à"superação de suas dificuldades objetivas de vida" (p. 48) forçam e conseguem,embora parcialmente e de modo precário, ingressar nas escolas.Esse ponto foi percebido muito bem por Cury e registrado no Prefácio do livro: "Por essa oposição o professor foi sendo paulatinamente esvaziado dos seusinstrumentos de trabalho: do conteúdo(saber) e, depois, do método (saber fazer), restando-lhe I agora, quando muito,uma técnica sem competência" (p. 2)Vale registrar, então, que a perspectiva de Guiomar coincide com a de PaoloNosella quando este afirma:"Acreditamos firmemente que as faces `boazinha e perversa do professor, nãoexistem por acaso e nem foram geradas por uma estratosférica alma natural doprofessorado,38

mas representam o fruto e a reação do mesmo professorado a certa metodologiaeducacional ou seja, a certa prática escolar que, ao legitimar a divisão entredirigentes e dirigidos ensina aos primeiros ora a ter pena e ora a condenar os se-gundos." (Nosella, 1983, p. 96)Não se trata, pois, de deslocar a responsabilidade pelo fracasso escolar queatinge as crianças das camadas trabalhadas aos professores, escamoteando ofato de que eles também ~o vítimas de uma situação social injusta e opressora.Isto não pode, porém, impedir-nos de constatar que sua condição de vítimas seexpressa também, embora não somente, pela produção ; sua incompetênciaprofissional. Em verdade, não procedendo assim incorreríamos em incoerência.Com efeito, ao criticarmos política educacional vigente pelas distorçõesdecorrentes de w atrelamento aos interesses dominantes, não será possível ;fixarde reconhecer seus efeitos sobre a formação (deforação) dos professores.A tarefa de reverter esse estado de coisas é, como bem frisou o Paolo, umaquestão política que implica a organização coletiva dos professores. Parece-meque nisto ambos estão plenanente de acordo. Guiomar apenas insiste (esta é suatese) que reversão desse estado de coisas passa também (e não apenas) ;pelaconquista de competência por parte dos professores. A passagem um tanto longaque cito a seguir me parece suficientemente esclarecedora aos leitores:"A grande questão que se coloca do ponto de vista da classe dominante é entãocomo organizar e transmitir o conhecimento aos dominados da maneira maisinofensiva que for possível. Conseqüentemente, uma questão equivalente secoloca do ponto de vista do dominado: como reapropriar-se do conhecimento damaneira mais eficiente que for possível? Ainda que esse ponto de vista não seexplicite, ele pode ser lido, desde que exista vontade política para fazer essaleitura. Basta constatar o sacrifício de cada familia individual para colocar emanter seus filhos na escola, e a prática de organização coletiva para conseguir

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escola.Se assumimos esse ponto de vista recoloca-se o problema do saber fazercompetente, como aquele que permitiria realizar, da maneira mais satisfatória,esta escola brasileira hoje, não num sentido tecnicista ingênuo, mas num sentidopolítico.A competência que privilegio neste trabalho portanto inclui o saber técnico,começa muito aquém deste e o ultrapassa.39

Mas não o exclui isso é importante; ao contrário, subentende-o como mediadorde sua própria superação, Considerando esses professores desta escola, começano domínio dos próprios conteúdos que tradicionalmente constituem ocurrículo, ou seja, numa reapropriação satisfatoria do saber escolar. fatória dosaber escolar. Inclui o domínio de técnicas e m~. todos de ensino que permitama transformação desse saber passa pela aquisição de uma visão mais integradada própria prática e uma reapropriação dos processos do trabalho do, docente(método, planejamento, avaliação). E projeta-se que a partir dessa base, numavisão mais critica desse ensino dessa escola e de seu conte5do, a qual não sedissocia de u0 questionamento de suas condições de trabalho e remuneração.ração, e de uma prática coletiva de organização e reivindicação." (p. 55-6)Em seguida ela acrescenta, expressando toda a vontade política que é uma dasmarcas distintivas de sua personalidade."Se essa competência não existe será preciso criá-la Partindo, das condiçõesexistentes, será preciso discernir onde e como atuar junto ao professor, a fim deprepará-lo para realizar bem esta escola existente." (p. 56)Parece-me, pois, que fundamentalmente não existe oposição entre Guiomar eseus críticos. Existe, sim, uma diferente Com efeito, o horizonte político deGuiomar, seu compromisso político é o mesmo do Paolo e tantos outros entre osquais me incluo. A diferença consiste em que, com os olhos fixos no horizonte,Guiomar está empenhada na caminhada para torna-lo menos distante. Estápreocupada em encontrar as formas traduzir praticamente a opção política quetem em comum com seus críticos. Está, como ela gosta de dizer, preocupada ~mtravessia: como atravessar o fosso que se interpõe entre as condições atuais e onosso projeto de sociedade? Mas nela essa preocupação não se detém numplano genérico, abstrato. E quer realizar concretamente esta caminhada. Volta-se e~ tão para a questão escolar e se posiciona: a escola tem uma contribuiçãoespecifica a dar nessa travessia (confira p. 13 e 14).13 e 14). seu problema é:como pode a escola dar essa contribuição, como pode ela cumprir a funçãopolítica que lhe é própria (na perspectiva dos interesses das camadastrabalhadoras?).Para encaminhar uma possível solução a esse problema Guiomar ousouenunciar uma tese segundo a qual a função40

política da educação escolar se cumpre pela mediação da compêtencia técnica.Esta tese central de seu trabalho é formulada diferentes maneiras ao longo dolivro. Assim, ao concluir o n em que expõe sua visão de escola centrada nacategoria de mediação, ela afirma:"Essa contradição manifesta-se inteiramente à escola e cria o espaço legítimo noqual se torna possível cobrar do proclamado sua realização efetiva. Essacobrança, e esta constitui uma das passagens críticas do raciocino que preside apresente exposição, não se explica apenas na reivindicação política, mas naexigência da competência técnica da escola para realizar bem aquilo a que sepropõe: ensinar a todos os que a ela têm acesso e estender-se aos até agoraexcluídos. A competência técnica, o saber fazer bem, é a passagem, a mediaçãopela qual se realiza um dos sentidos políticos em si da educação escolar comela, a competência e com ele, o sentido político em si que pretende trabalhar nainterpretação dos dados empíricos a cerca das representações dos professores,tomando-os como uma das condições escolares." (p. 34)É, porém, após explicitar sua perspectiva teórica que ela enuncia de modoexplícito sua tese:"o sentido político da prática docente, que eu valorizo, se realiza pela mediação

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da competência técnica e constitui condição necessária, embora não suficiente,para realização desse momento sentido político da prática docente para o pro-fessor." (P. 44)Ai estão indicadas a importância e necessidade da competência técnica e, aomesmo tempo, a sua insuficiência.Vê-se, pois, que não cabe falar ai numa subordinação do compromisso político àcompetência técnica e nem mesmo de a precedência desta em relação àquele.Para entender todo o sentido da tese é fundamental levar em conta a discussãoque a precede sobre o conceito de mediação. A competência técnica é mediação,isto quer dizer que ela está entre, no meio, no interior compromisso político. Elaé mediação, ou seja, é também somente) por seu intermédio, que se realiza ocompromisso político. Ela é, pois, instrumento, isto quer dizer que ela não sejustifica por si mesma mas tem o seu sentido, a sua razão de ser compromissopolítico. Portanto, ela não explica o compromisso41

político mas se explica por ele, embora seja uma das formas por meio das quais(sempre o conceito de mediação) se explicita, se realiza o compromisso político.Em suma, a competência técnica é um momento do compromisso político (sob acondição de se entender a palavra momento como uma categoria dialética).4. As duas faces do pomo da discórdia: Como se relacionam?E chegamos, assim, a um outro ponto que tem sido alvo de objeções: por que,então, o subtitulo do livro (da competência técnica ao compromisso político)?Ainda aqui é necessário manter presente o conteúdo da categoria de mediação.Disse acima que a competência técnica é uma das (não a única) formas atravésdas quais se realiza o compromisso político. Isto significa que ela permite (entreoutras condições) efetuar a passagem entre o horizonte político (o compromissopolítico pensado como uma possibilidade delineada no horizonte) e ocompromisso político assumido na nossa prática profissional cotidiana. Acompetência técnica é, pois, necessária, embora não suficiente para efetivar naprática o compromisso político assumido teoricamente. Com efeito, como dizVázquez,"a teoria em si (...) não transforma o mundo. Pode contribuir para a suatransformação, mas para isso tem que sair de si mesma, e, em primeiro lugar,tem que ser assimilada pelos que vão ocasionar com seus atos reais e efetivos taltransformação. Entre a teoria e a atividade pratica transformadora se insere umtrabalho de educação das consciências, de organização dos meios materiais eplanos concretos de ação; tudo isso como passagem indispensável para de-senvolver ações reais, efetivas. Nesse sentido, uma teoria é prática na medidaem que materializa, através de uma série de mediações, o que antes só existiaidealmente, como conhecimento da realidade, ou antecipação ideal de sua trans-formação." ( Vázquez, p. 206-7. Grifos nossos)Conseqüentemente, é também pela mediação da competência técnica que sechega ao compromisso político efetivo,42

concreto, prático, real Na verdade, se a técnica, em termos simples, significa amaneira considerada correta de se executar uma tarefa, a competência técnicasignifica o conhecimento, o domínio das formas adequadas de agir; é, pois, osaber-fazer. Nesse sentido, ao nos defrontarmos com as camadas trabalhadorasnas escolas não parece razoável supor que seria possível assumirmos ocompromisso político que temos para com elas 1em sermos competentes nanossa prática educativa. com compromisso político assumido apenas a nível dodiscurso pode dispensar a competência técnica. Se trata, porém, de assumi-loda prática, então não é possível prescindir dela. Sua ausência não apenasneutraliza o compromisso político mas o converte no seu contrário, já que dessaforma estaremos caindo na armadilha da estratégia acionada pela classedominante que, quando não consegue resistir às pressões das camadas popularespelo acesso à escola, ao mesmo tempo que admite tal acesso esvazia seuconteúdo, sonegando os conhecimentos também (embora o somente) pelamediação da incompetência dos professores.Um último ponto que me parece importante é que Guiomar trabalha com adistinção, que tem passado desapercebida a seus críticos, entre sentido político

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em si e sentido político para si (para ele, o professor, ou para mim que analiso aprática do professor). A prática educativa do professor tem um sentido políticoem si que é também um sentido para mim que o capto quando analiso essaprática. Não o é, porém, necessariamente, no sentido político para ele, isto é,independentemente dele saber ou não, de coincidir ou não com o significado,ainda que político, que está na sua cabeça, a prática educativa do professor temobjetivamente um sentido político que pode ser desvelado quando se analisaessa prática como um momento de uma totalidade concreta.Nesse sentido (e apenas nesse sentido) ou seja, quando referida à consciênciareal de professores determinados numa sociedade e numa escola tambémdeterminadas (e não à sua consciência possível) é que se pode falar que acompetência técnica precede o compromisso político. Este ponto é explicitadoteoricamente no Capítulo I e retomado no Capítulo VI, destaà luz da análise empírica das representações dos professores exposta nosCapítulos III, IV e V.43

5. Do pomo da discórdia rumo à concórdiaRetomando o enunciado da tese ("o sentido político prática docente se realizapela mediação da competência técnica e constitui condição necessária, emboranão suficiente, para plena realização desse mesmo sentido político da práticadocente para o professor") não me parece possível, ainda que se descorde de seuconteúdo, deixar de reconhecer que se trata uma formulação de clarezameridiana. Por que, então, o Paolo considerou uma "tese bastante confusa",citando em segui a página 146: "vejo na capacitação profissional o ponto critícapartir do qual imprimir um caráter político à prática docente para esseprofessor"?Para captar o sentido do enunciado transcrito por Paolo parece-me necessáriorecolocá-lo em seu contexto.Após a análise das representações dos professores, ao redigir o Capítulo VI,Guiomar tinha diante de si a situação concreta dos docentes de primeiro grau sedebatendo com o problema do fracasso escolar das crianças pobres e tentandoencontrar alternativas para evitar esse fracasso. É aí, então, que bom sensoaponta para a exigência do saber fazer entender como o"domínio do conteúdo do saber e dos métodos adequados para transmitir esseconteúdo do saber escolar a crianças que não apresentam as precondiçõesidealmente estabelecidas para sua aprendizagem." (p. 145)Mas ao adquirir competência o professor ganha também condições ,de perceber,dentro da escola, os obstáculos que se opõem à sua atuação competente. É assimque "a competência técnica inicia o processo de sua transformação em vontadepolítica" (p. 145). Por esse caminho o professor vai desenvolvendo suaconsciência real em direção à consciência possível e ganha condição, de passardo sentido político em si para o sentido político para si de sua ação pedagógica:"A vontade política permite que aquele sentido político da prática docente seexplicar, cite ao professor e passe a ser, para ele também, uma forma de agirpoliticamente" pg. 145). E Guiomar prossegue, apoiada em Gramsci:44

"Foi por esse caminho que consegui ler um tipo de movimento possível naprática docente, cuja direção vai do especialista ao dirigente passando datécnica-trabalho à técnica-ciência e 'd concepção humanista histórica, sem aqual se permanece especialista e não se chega a dirigente (especialista maispolítico)." (p. 145)Entretanto, trata-se ai de um limite de consciência possível, algo que se delineiano horizonte. Por isso salienta ela a seguir que o movimento acima descrito nãoconfigura "algo instalado ou mesmo em processo adiantado de realização" 145).Daí concluir ela que para estes professores nesta escola e existente, dentre asdiferentes alternativas possíveis, aquela : ela acredita ser a melhor, dada a sua"exeqüibilidade no espaço político hoje existente na sociedade brasileira (p.146) é a diminuição do fracasso escolar e da exclusão, por meio de estrategiastécnicas adequadas para garantir o acesso ao maior numero possível de criançasnesta escola, e sua permanência nele pelo maior tempo possível" (p. 146). Esta ésua hipótese; s do que isso, é sua aposta.

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Agora, reconstituído o quadro em que se insere o enunciado citado por Paolo, épossível recuperá-lo no interior do urso em que foi produzido:caso essa hipótese se sustentasse, e creio que se sustentaria pois é tambémminha aposta, vejo na capacitação profissional o ponto critico a partir do qualimprimir um caráter político à prática docente para esse professor. Porque o sa-ber-fazer constitui uma das necessidades imediatas para sua imagem deprofissional, para uma percepção mais critica e menos assistencialista do valorde seu trabalho" (p. 146).Vê-se, pois, que aquilo que parecia uma tese confusa resulta nada mais que umatentativa de ler a realidade da prática docente e indicar uma forma de traduzir,nessa mesma prática, tido político da educação escolar.Para Guiomar, a indicação supra, além de ser apenas uma muitas alternativaspossíveis, cautelosamente sequer ela :e que se trata de uma certeza. Por issoprefere a palavra a. E assim termina o seu livro:45

"Uma aposta é mais que uma hipótese e muito menos que uma certeza. Gostodo termo porque expressa com exatidão o momento de minha subjetividade noprocesso de conhecimento da prática docente e justifica que este capítulo nãoseja a síntese mas na das muitas sínteses possíveis. Como toda aposta envolveriscos, sou levada a indagar se a solidão do trabalho teórico não me fez, comoao poeta, ver com clareza coisas que não são verdadeiras. Creio entretanto queessa é mais uma incerteza a assumir e incorporar, porque não vejo como daruma resposta satisfatória a tal indagação, no âmbito do próprio trabalho teórico"(p. 146-7).Esta conclusão está em perfeita consonância com a Tese II de Marx sobreFeuerbach: "A questão de saber se ao pensamento humano se pode atribuir umaverdade objetiva não é uma questão teórica, mas uma questão prática. É naprática que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade, o poder, aprecisão do seu pensamento. A controvérsia sobre a realidade ou não realidadedo pensamento, isolado da prática, é uma questão puramente escolástica" (grifosna fonte).E é na prática que Guiomar está tentando responder àquela indagação. Nãotemos dúvida de que esta problemática está na raiz da difícil decisão que tomouao aceitar assumir a Secretaria da Educação do Município de São Paulo. Teráela êxito`? Ganhará a aposta`? Não sabemos. Mas que, ao demonstrar tal graude coerência entre seu discurso e sua prática, ela estará avançando na resposta àindagação formulada, disto não temos dúvida.6. Quem tem medo da competência técnica?Após os comentários acima apresentados, ocorre-me perguntar: quem tem medoda competência técnica?À luz da análise feita parece óbvio que as camadas trabalhadoras não têmqualquer motivo para temer a competência técnica. Ao contrário, é a classedominante que tem razões para temê-la, tanto assim que, no empenho empreservar seus interesses, acabou por provocar a produção da incompetência adespeito das proclamações em contrário.Também não temerão a competência técnica os intelectuais verdadeiramenteempenhados em assumir, de fato, um46

compromisso político articulado com os interesses das camadas trabalhadoras.Temem a competência técnica aqueles que, embora procurem assumir esse tipode compromisso político, se encontram ainda sob a influência dominante dasteorias educacionais que convencionei chamar de "crítico-reprodutivistas".Saviani, 1983)Tais teorias, captando de modo mecânico e unidirecional determinação dasociedade sobre a educação acabam por dissolver a especificidade da educaçãoe, por insuficiência dialética, eliminam as contradições do interior da escolareduzindo-a a n espaço onde os interesses dominantes se impõem de forma, porassim dizer, absoluta. Por isso a competência técnica no interior das escolas éinterpretada como estando sempre a serviço dos interesses dominantes.Devo ressaltar, para evitar interpretações equivocadas, já que este meu textoteve como pretexto a publicação do artigo do Paolo, que, conforme entendi, o

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Paolo não teme a competência técnica. O que ele teme é a velha competênciatécnica, aquela articulação com os interesses da burguesia. E ele aspira por nanova competência técnica que seja produto das lutas do "coletivo dosprofessores, politicamente organizados" e articulados com os interesses dostrabalhadores.Nesse sentido considero que o artigo do Paolo complementa e, sob algunsaspectos, talvez mesmo possa retificar o texto da Guiomar ao forçá-lo aexplicitar certos pontos que tão presentes mas que não mereceram grandedestaque em vista mesmo dos interlocutores principais do texto. Porque nãoignora que a tese de Guiomar tinha como interlocutores diretos os educadoresprogressistas, identificados com posições que poderíamos classificar "deesquerda". Nesse contexto, o sentido compromisso político, sua vinculação comos interesses dominados era dado como entendido e não problemático. A estãoque se punha era: como realizar esse compromisso político? Como fazê-loprogredir? Como torná-lo atuante na prática docente? É nesse sentido queemergiu como tema principal a estão da competência técnica Isto não eliminaaquilo que quer o Paolo, isto é, a necessidade de "uma crítica mais profundacontra certa competência pedagógica, socializando mais a crítica e a denúnciacontra concepções anacrônicas e elitistas da tecnologia educacional dominante".47

Na linha das considerações acima indicadas cabe observar que o Paolo deixaentrever um certo temor de que posições como a da Guiomar venham a reforçaro tecnicismo pedagógico, dando um novo alento aos adeptos dessa posição quevinham perdendo espaço em função das críticas cada vez mais cerradas que lheseram endereçadas. Algumas pessoas chegaram mesmo a comentar que, de suaparte, entendiam as posições de Guiomar. Assustavam-se, porém, com o fato deque os tradicionalistas, conservadores e reacionários faziam uma leitura do livroque recuperava o seu conteúdo em benefício de suas posições políticas nocampo educacional.A esse respeito penso que é esse tipo de leitura que deve ser criticado,combatido, denunciado. Com efeito, assim como não se pode culpar Marx pelarecuperação burguesa que Croce fez das categorias teóricas por eledesenvolvidas mas cabe, isto sim, combater Croce como o fez Gramsci, assimtambém me parece que não se trata de culpar a Guiomar e desmerecer o seutrabalho em função dessas leituras "recuperadoras".II - QUEM TEM MEDO DO COMPROMISSO POLÍTICO?Esforcei-me, na primeira parte deste artigo, em me situar no interior do discursoexpresso no livro de Guiomar Namo de Mello, procurando captar, a partir dedentro, sua perspectiva, seus argumentos, suas posições.Cumpre, agora, tentar captar a perspectiva do Paolo de modo a ganharmoscondições de confrontar as duas perspectivas com conhecimento de causa,tentando desvendar, objetivamente, suas discrepâncias e eventuaiscoincidências.Proponho-me, pois, nesta parte, a realizar sobre o artigo "O compromissopolítico como horizonte da competência técnica' o mesmo movimento realizadona primeira parte sobre o livro Magistério de I-° grau: da competência técnicaao compromisso político. Procurarei adentrar-me ao texto, buscando captar dointerior de seu discurso, a perspectiva que o enforma E, como anteriormente,aqui também creio que, nesse processo de imersão, o método mais adequado éassumir uma atitude de simpatia, permitindo que o texto diga tudo o que quisdizer; isto48

implica evitar provisoriamente que minhas próprias posições, minhasdiscordâncias, minhas ressalvas forcem o autor a dizer aquilo que ele nãopretendeu dizer.Como na primeira parte, aqui também utilizarei subtítulos alegóricos. Areferência, lá, ao "pomo da discórdia" era diretamente compreensível pelosleitores. Aqui utilizarei a metáfora do “fruto proibido”. E1a me parece rica desimbologia, pois, além de apontar para a perspectiva de instauração de uma or-dem que é proibida nas atuais circunstâncias, implicando, portanto, nadesobediência, na quebra da ordem vigente, sugere, ainda, a imagem da "árvoreda ciência do bem e do mal" significando com isso a perda da inocência, odesvendamento dos segredos (leis) 9ue atuam na sociedade.

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Aqui, também, começarei por apresentar sinteticamente o conteúdo global doartigo. Em seguida serão feitos os destaques de maneira homóloga aoprocedimento adotado na primeira parte.1. A árvore do fruto proibidoO artigo começa por registrar uma perplexidade que se expressa no temor deque a tese de Guiomar signifique um retorno a "um novo e disfarçadotecnicismo pedagógico". Tal temor se mantém embora se reconheça na referidatese: "claras afirmações a respeito da necessidade de ainda se criticar e de-nunciar a prática escolar" existente. Isto em razão da insuficiente historicizaçãodos conceitos trabalhados na tese.Para superar a limitação acima apontada Paolo advoga então, a necessidade dehistoricizar e referir os conceitos ao embate entre as classes sociais. Estahistoricização implica referir a competência às diferentes concepções de cultura.Fundamentalmente, trata-se de distinguir entre a "cultura enciclopédico-burguesa" e a "cultura histórico-proletária". Cada uma tem sua própria idéia decompetência.Do ponto de vista histórico as duas culturas referidas se relacionamdialeticamente, constituindo-se a segunda num momento superior queincorpora, de um novo ponto de vista, as conquistas das culturas passadas. Daí,o conceito de ortodoxia que implica o reconhecimento de que a filosofia dapráxis é auto-suficiente.49

Em síntese, o autor se posiciona resolutamente pela subordinação dacompetência técnica ao compromisso político definido a partir de um horizontepolítico que implica o rompimento com a velha competência técnica gestada noseio de um compromisso político reacionário ou conservador e a gestão de umanova competência técnica comprometida politicamente com as forçasemergentes constituídas pelas massas trabalhadoras.Como realizar isto? O caminho preconizado estabelece prioridade para areflexão crítica e análise polêmica A partir daí, e só daí, será possível definir osnovos processos técnicos que pressupõem uma explícita e coletiva novapreocupação histórica. Assim, a competência técnica fica subordinada e aserviço do "novo objetivo social que a classe trabalhadora explicitou e definiupara si' (P. Nosella, "O compromisso político como horizonte da competênciatécnica", Educação & Sociedade, n°- 14). A partir das premissas antes estabelecidas, Paolo sugere uma novainterpretação da "incompetência pedagógica”; esta pode ser:a) expressão coletiva de resistência;b) manifestação de esgotamento da força hegemônica da classe dominante;c) resultado de um processo de repressão e esvaziamento cultural.Sugere, também, uma nova interpretação do sentido de bom senso dosprofessores. Este não significaria apenas a percepção de que a aprendizagem doaluno é importante. Implicaria:a) descaso e cepticismo do professorado em relação às i proclamações doEstado e de sua equipe de técnicas;b) descaso para com a tecnologia educacional e as metodologias impostas.E uma nova interpretação da capacitação dos professores que passa a serentendida como um saber-fazer que concretiza determinada linha política.Portanto, ela não determina o compromisso político mas é por ele determinadaE ainda, uma nova interpretação da "visão assistencialista do professor". Estanão é resultado da incompetência, mas a "alma ideológica" da tecnologiaeducacional "competente" inculcada nos professores por "competentes"profissionais.50

E, também, uma nova interpretação da impotência dos professores. Estatambém não decorre da incompetência, mas constitui "um derradeiro gesto deresistência" à "competência" instituída como legitimadora do descalabroeducacionalE, por fim, sugere uma nova interpretação da "vontade que o professormanifesta em querer fazer algo na escola". (Nosella, 1983). Esta vontade,enquanto bom senso enucleado no senso comum dos professores, não poderiaser iluminada pelo apelo à competência técnica o que foi sempre o "refrão dosdiscursos governistas". (p. 97). Trata-se, antes. de uma vontade política que

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implicaria, de um lado, o aprofundamento e socialização da crítica àcompetência pedagógica decorrente de concepções anacrônicas e elitistas e, deoutro, a tentativa de elaborar, no interior da organização político-coletiva dosprofessores, novas técnicas e metodologias de ensino.E o artigo se encerra com um elogio à competência dos professores brasileirosque sempre foram capazes de criar formas eficientes de educar seus alunos nascondições as mais adversas, mas que foram reprimidos sistematicamente. Porsobre as"ruínas de excelentes tecnologias educacionais forem oferecidas alternativastécnicas outras que de competente nada possuíam a não ser a capacidade demistificar, pulverizar, iludir e desanimar sob a aparência de processos técnicoseficientes para o ensino-aprendizagem". (p. 9~Porque sabem muito bem disso tudo é que os educadores brasileiras conferem aprimazia ao compromisso político sem o que jamais terão as condiçõesobjetivas para atingirem a nova competência exigida pela concepção histórico-proletária de cultura.2. O fruto proibidoVê-se, a partir do resumo apresentado no item anterior, que pata Paolo Nosellao compromisso político é o "ponto crítico do processo educativo". O educadorque queira se colocar na perspectiva da "emergente classe trabalhadora" deve,pois, romper com a velha concepção de cultura (a enciclopédico-burguesa).51

Isto implica desobedecer, quebrar as regras estabelecidas ousar comer do frutoda "árvore da ciência do bem e do mal" negando, assim, a inocência paradisíacaque reina na escola capitalista.Utilizo essa simbologia porque ela me parece rica na medida em que permiteentender o processo de desvelamento das leis que regem a sociedade capitalistaNessa tarefa o educador não necessita começar do zero. Do seio da velha culturaemergiu a "visão cultural socialista" que, "embora dominada, é historicamentesuperior à burguesa e incorpora, de um novo ponto de vista, as conquistas dasculturas passadas". (P. 93). E a expressão elaborada dessa nova cultura é a"filosofia da práxis". Esta é a ciência que desvenda os segredos da dominaçãoburguesa.Já que esse ponto de vista é radicalmente novo, isto é, se constitui com uma"raiz substantivamente diferente" é apenas colocando-se nessa perspectiva queserá possível imprimir uma' direção genuinamente nova para a práticaeducativa. Colocar-se nessa perspectiva significa assumir um "novoengajamento político" o qual constitui condição para se compreender que:"a Filosofia da práxis se basta a si mesma por possuir todas as categoriasessenciais pare uma nova concepção de mundo capaz de compreender eassimilar, de um novo ponto de vista original e superior, a história passada", (p.93)Para traduzir essa perspectiva que estabelece o primado do compromissopolítico, Paolo se utiliza da imagem do horizonte:"A imagem mais adequada que nos ocorre, para expressar esses conceitos, éainda a imagem do horizonte que transcende e ao mesmo tempo consubstanciade significação todo passo específico do caminhante. O horizonte po1ítico é asíntese precária de toda pesquisa; precede e acompanha toda práxis cientifica,qualificando-a politicamente. Se o horizonte político de per si só não é ainda acapacidade de se caminhar, é, no entanto, a orientação concreta que informatoda técnica e toda instrumentação educativa." (p. 93-4)52

3. A outra face do fruto proibidoA afirmação supra, centrada na imagem do horizonte, já nos adverte de que ocompromisso político, se detém a primaria, se é o ponto de partida e o ponto dechegada, a marca distintiva, a orientação concreta que informa todo o processo,não o esgota, porém. Ele "não é ainda a capacidade de se caminhar".Portanto, se Paolo subordina resolutamente a competência técnica aocompromisso político, nem por isso ele deixa de reconhecer a importância enecessidade da competência técnica. É necessário "substituir o velho arsenal decompetências técnicas" por "um novo conjunto de técnicas". (P. 93)Para se chegar si, porém, é necessário um longo e paciente trabalho. Se a leiturados dois últimos parágrafos do artigo do Paolo pode conduzir à interpretação de

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que o novo compromisso político já é uma conquista dos professores, cabeadvertir, contudo, que tal interpretação não corresponde ao espirito do conjuntodo texto. Paolo revela plena consciência de que o compromisso político é umhorizonte (Goldmann diria que é a "consciência possível") que está ainda longede ser plenamente atingido. Por isso insiste ele na necessidade de não sedescuidar de, continuamente, aprofundar e ampliar a reflexão crítica pois:"um trabalho crítico e maciçamente polêmico contra a prática pedagógica queestá aí, nem sequer começou de forma org~i7ada, molecular e profunda entrenós '. (p. 94)Podemos, pois, concluir que as referencias dos dois últimos parágrafos nãotraduzem, propriamente, uma con9~ta assegurada mas se referem, antes, ao bomsenso dos professores. Ta1 bom senso necessita ser trabalhado e elevado aonível de uma concepção elaborada, orgânica e coerente que, tornando-sehegemônica, se revele capaz de articular o coletivo dos professores.Trata-se de uma tarefa árdua, difícil:"o trabalha de reflexão crítica e de análise polêmica é um processo longo edeve-se desconfiar da pressa em superá-lo. Muitas manifestações de 'saturação'de Crítica e de polêmica, escondem um perigoso ativismo quando não umarejeição da emergência de novas hegemonias". (p. 94)53

A competência emerge, assim, como a outra face do compromisso político que éduramente conquistada pelo próprio aprofundamento e radicalização domomento político:..novas competências técnicas não surgirão espontaneamente, pois são fruto delongo trabalho. Passa-se pela crítica cerrada às tecnologias historicamentegeradas na esfera dos interesses das atuais classes dominantes e a incorporaçãode elementos valiosas da cultura passada se dará de forma original e dentro doespírito divergente e oposto'. (P~ 94)Além do mais, Paolo também descarta a tendência, por vezes freqüente, de seconcentrar o compromisso político na tarefa crítico-polêmica; por issoacrescenta:"finalmente, estas novas competências técnicas deverão ser submetidas à provada prática pois terão algum valor na medida em que alcançarem o objetivopretendido que é o de realizar o encontro das massas trabalhadoras deste paisconsigo mesmas ao reconhecerem seus direitos, seus deveres, sua história, seufuturo". (p. 94)Continuando na linha da simbologia que venho utilizando, vale dizer que, se ofruto proibido é atraente, prová-lo implica condenar-se a "ganhar o pão com osuor de seu rosto', isto é, trabalho muito Trabalho. E sob o reino do deus Capitalisto significa enfrentar toda sorte de pressões e dificuldades, inclusive arepressão. E uma vez que se trata de uma ruptura radical que necessita seaprofundar cada vez mais, já não é permitido sonhar com o paraíso perdido.4. As duas faces do fruto proibido: como se relacionam?Se o compromisso político não exclui a competência técnica cabe verificarcomo se articulam, no texto de Paolo, esses dois aspectos.Paolo é enfático em afirmar a primazia do compromisso político ao qualsubordina, de modo insistente, a competência técnica. E isto é compreensíveldada a motivação polêmica de seu texto inspirado, que foi, no temor de que aênfase na54

importância da competência técnica pudesse "representar, na prática, uma voltaa um novo e disfarçado tecnicismo pedagógico". E como esse temor foisuscitado pela leitura do livro de Guiomar, entende-se que, ao ver realçada noreferido livro a competência técnica, tenha sido ele levado a pôr o acento nocompromisso político.Deve-se, porém, notar que, ao abrir seu artigo, ao mesmo tempo em que registrasuas perplexidades, Paolo afirma também que tais perplexidades "poderiamencontrar resposta quando se aprofundasse o próprio conceito de competênciae/ou incompetência técnica e sua relação com o horizonte político".Portanto, desde aí já está posto o problema da relação entre ambos os aspectos.A insistência no primado do aspecto político é sintetizada nesta frase: "Acompetência técnica, repetimos, não é jamais um momento prévio para o

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engajamento político, ela já é um determinado engajamento político' .Vê-se pois, que a competência não é entendida como um momento prévio aoengajamento político mas como um momento no interior do própriocompromisso político. O que caracteriza o momento da competência técnica?Como ela se define no interior do compromisso político? Qual seu papel?Evidentemente essas questões não são objeto de discussão explícita nos limitesdo artigo. Interessa-nos, porém, captar o espírito, a direção na qual Paolo situatais questões. Parece que, para ele, o horizonte político determina a qualidade, osinal (positivo ou negativo), o sentido e o conteúdo da competência técnica"Se o horizonte político de per si s6 não é ainda a capacidade de se caminhar é,no entretanto, a orientação concreta que informa toda técnica e todainstrumentação educativa". (p. 94)Entretanto como já sugere a frase acima citada ("o horizonte de per si só não éainda a capacidade de se caminhar"), é pela competência técnica que ocompromisso político se realiza. Com efeito trata-se de se chegar a um conjuntode técnicas ou a uma metodologia "que possa atuar e concretizar um novocompromisso político". (p. 93. Grifo nosso). Continuando na55

mesma linha de acentuar o compromisso político não se perde de vista, contudo,a exigência de sua concretização."Esse saber-fazer não pode ser um momento que precede o horizonte político,pelo contrário, ele é já uma concretização de uma determinada linha po1ítica.Todo saber-fazer contém certa visão de mundo e é um ato político no qual seconcretizam certas intenções saiais gerais". (P. 96)Ora, dizer que o saber-fazer é concretização de uma linha política e que é nosaber-fazer que se concretizam certas intenções sociais gerais, não significaadmitir que é pela competência técnica que se realiza o compromisso político?Insinua-se, pois, também no texto do Paolo aquilo que estava explícito no livrode Guiomar: o conceito de mediação.5. Fruto proibido e pomo da discórdia: convergênciaDo que foi dito acima poderíamos admitir que, em última instância, aperspectiva do Paolo converge com a de Guiomar já que também ele, nofundamental, aceitaria a tese segundo a qual a função política da educação(escolar) se cumpre também, embora não somente, pela mediação dacompetência técnica Com efeito se esta é concretização do compromissopolítico, se é pelo saber-fazer que as intenções sociais gerais se materializam ese é pela metodologia que atua o compromisso político, então, o carátermediador da competência técnica no interior do projeto político se expressa aíde modo claro.Tudo o que o Paolo fez ao longo de todo o seu artigo foi insistir no fato de que acompetência técnica não pode ser considerada "em si". Ela é sempre referida adeterminada perspectiva política devendo ser aferida a partir daí e não ocontrário. Daí considerar ele equivoca a bipolaridade entre competência eincompetência:"Ideologicamente a bipolaridade entre competência e incompetência técnicasmascare uma segunda mais radical bipolaridade, isto é, entre o conceito decompetência pana a cultura dominante e o de competência para as classes emer-gentes. A primeira bipolaridade deixa entender que a competência técnica é umacategoria em si, universal, acima dos56

interesses de classe, quando, pelo contrário, sabe-se que competência e/ouincompetência são qualificações atribuídas no interior de uma visão de culturahistoricamente determinada, pois existe o competente e o incompetente parauma certa concepção de cultura, como existe o competente e o incompetentepara uma nova concepção de cultura". (P. 91)Conseqüentemente, o ato educativo carrega sempre consigo determinadoconteúdo político sendo, a própria distinção entre os aspectos técnico e político,uma abstração:"Jamais lembraremos bastante o fato de que, se os elementos técnico-edncativos, em si, podem ser considerados outros, de fato esta verdade nãopassa de uma abstração, já que os elementos técnicos existem sempre numdeterminado processo histórico e ninguém se iluda de poder assimilar esseselementos "em si", sem concretamente assimilar também a direção histórica que

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os produziu '. (P. 94)Ora, o conceito de mediação indica, justamente, o caráter instrumental daeducação e, por conseqüência, afirmar que a educação é mediação significaadmitir que o que se passa em seu interior não se explica por si mesmo masganha este ou aquele sentido, produz este ou aquele efeito social dependendodas forças sociais que nela atuam e com as quais ela se vincula.Há, pois, aí convergência com a afirmação de Guiomar segundo a qual a práticado professor tem sempre um sentido político em si, independentemente de queesse sentido exista para o professor, isto é, independentemente de que se tenhaou não consciência do significado político da ação educativa.Aparentemente, pois, haveria apenas uma diferença ligada ao constante uso quePaolo faz do adjetivo "novo". Ele sempre faz questão de distinguir entre o velhocompromisso político e o novo; entre a velha competência técnica e a nova.Como, porém, à luz da análise que procurei fazer na primeira parte deste artigoresulta difícil identificar a posição de Guiomar com os interesses políticosdominantes alinhando-a, em conseqüência, no rol dos defensores da velhacompetência, a conclusão geral parece apontar na direção de uma convergênciabásica nas posições de ambos.57

6. Quem tem medo do compromisso político?À luz das considerações feitas não parece difícil concluir que, na verdade,temem o compromisso político aqueles mesmos que temem a competênciatécnica. Isto porque, aquilo que efetivamente teme a classe dominante é aconcretização do compromisso político transformador. O discurso da transfor-mação não só não é temido como tende a ser apropriado peta classe dominante.Ali3s, nós sabemos que ela própria procura tomar a iniciativa de formulação deum discurso transformador como mecanismo de manutenção/recomposição dehegemonia. Eis porque, se o discurso relativo a um compromisso políticotransformador pode ser tolerado, as tentativas de concretizar tal compromissosão combatidas das mais diferentes formas sem excluir a repressão violentaquando os demais recursos não se revelarem eficazes.Vê-se, pois, que assim como a defesa da competência técnica pode serapropriada pelos conservadores e reacionários, a defesa do compromissopolítico também pode ser apropriada pelos que buscam esvaziar a educaçãoescolar de sua contribuição especificamente Pedagógica para a transformaçãosocial, com o que se acaba por anular a direção transformadora de seucompromisso político.Cabe, pois, denunciar uma e outra apropriação e não identificar linearmente acompetência técnica com a conservação e o compromisso político com oesvaziamento da escola. Assim como a posição da Guiomar - conforme afirmeino final da primeira parte - não pode ser identificada com a perspectivaconservadora de defesa da velha competência, assim também a posição doPaolo - espero ter deixado isto claro ao longo desta segunda parte - n~ pode seridentificada com uma perspectiva de esvaziamento da especificidade daeducação escolar.Aliás, a este respeito, cabe frisar que na polêmica em curso tem estado sempreiminente o risco de uma polarização enviesada que contrapõe, de um lado, acompetência técnica e, de outro, o compromisso político. Ora, não se fazpolítica sem competência e não existe técnica sem compromisso; além disso, apolítica é também uma questão técnica e o compromisso sem competência édescompromisso. Tentei quebrar a referida polarização já desde o título desteartigo. A denominação58

“competência política e compromisso técnico" teve a intenção manifesta deromper a vinculação entre técnica e competência de um lado, e política ecompromisso, de outro.Se, em última instância, a perspectiva do Paolo converge com a de Guiomar, sea conclusão geral a que chegamos aponta na direção de uma concordânciabásica nas posições de ambos, cabe perguntar então: que sentido tem essedebate?Obviamente, a conclusão supra me parece válida exatamente nos termos em quefoi expressa, isto é, como conclusão geral e em última instância. Isto porque, daforma simplificada como foi apresentada, ela corre o risco de resultar genérica,

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não contribuindo para fazer avançar a discussão.Com efeito, até aí simplesmente se reafirmou e se colocou no devido lugar,afastando críticas apressadas e interpretações equivocadas, aquilo que suponhoser de conhecimento geral; ou seja: tanto o Paolo como a Guiomar buscam,como educadores, assumir um compromisso político identificado com osinteresses das camadas trabalhadoras. Como, no entanto, concebem essecompromisso? De que forma pretendem realizá-lo? Como interpretam o papelda escola no interior desse compromisso?Tentarei, à guisa de conclusão, encaminhar essas questões visando contribuirpara fazer avançar o debate. Para isso será necessário extrapolar os textos emreferência.ConclusãoIII - PARA ALÉM DO POMO DA DISCÓRDIA E DO FRUTO PROIBIDOPela leitura que fiz, entendo que na raiz da divergência estão dois conceitos-chaves não suficientemente explicitados mas que funcionam como supostos queorientam tanto as próprias análises e posições como a crítica a outras análises eposições. Esses conceitos são, para Guiomar, "saber escolar" e para Nosella,"concepção histórico-proletária de cultura".Assim como Guiomar dá por entendido o saber escolar, cujo domínio éindicador de competência e cujo não domínio configura a incompetênciatécnica, Paolo também supõe entendido59

o significado de "cultura histórico-proletária" e, à luz dele, formula sua críticaMas, por que essa suposição?Ao adjetivar de escolar o saber ao qual se refere, Guiomar está com issoquerendo dizer que esse saber não é outro senão aquele que constitui objeto desistematização e transmissão através da escola e não de uma escola ideal masdesta escola nesta sociedade. Por isso considera dispensável explicitar com maisdetalhes o conteúdo desse saber, uma vez que todas as pessoas que passaram dealgum modo pelo processo de escolarização entenderão sem maioresdificuldades o que significa o saber escolar.Paolo também não vê necessidade de explicitar o significado da "culturahistórico-proletária" porque tal cultura está em desenvolvimento a partir daspráticas, das lutas do movimento proletário e seu núcleo fundamenta! foisistematizado e elaborado na "filosofia da práxis" cuja perspectiva necessita serassumida se se quer articular a educação com essa concepção histórico-proletária de cultura e não apenas falar a respeito dela. E acredita que essaconcepção se difundirá pela crítica e polemização sem tréguas que for capaz demover à "cultura enciclopédico-burguesa".E da diferença acima indicada que, ao que me parece, deriva a divergênciaCom efeito Guiomar tem plena clareza de que, nas condições atuais, o saberescolar é dominado e controlado pela burguesia. Entende, porém, que é deinteresse da classe trabalhadora dominar esse saber. No fundo, Guiomar apostana capacidade da classe trabalhadora de, ao se apropriar do saber "burguês",inverter-lhe o sinal desarticulando-o dos interesses burgueses e colocando-o aserviço de seus interesses.Paolo pensa que isso não é suficiente. O saber burguês é nefasto aos interessesdos trabalhadores. Assim, enquanto o saber escolar for dominantemente burguêsa tarefa principal do movimento proletário é proceder à crítica desse saber. Talcrítica supõe, portanto que desde o início sejamos capazes de nos colocar noponto de vista da "cultura histórico-proletária". É daí que emergirá um novosaber escolar e, conseqüentemente, uma nova competência técnica (no campopedagógico).60

Mas em que se funda a crença de Guiomar? Ela admite que a escola tem a vercom o saber universal Portanto, se o saber escolar. em nossa sociedade, édominado pela burguesia nem por isso cabe concluir que etc é intrinsecamenteburguês. Daí, a conclusão: esse saber que, de si, não é burguês serve, noentanto, aos interesses burgueses de vez que a burguesia dele se apropria,coloca-o a seu serviço e o sonega das classes trabalhadoras; portanto, éfundamental a luta contra essa sonegação, uma vez que é pela apropriação dosaber escolar por parte dos trabalhadores 9~ serão retirados desse saber seuscaracteres burgueses e se lhe imprimirão os caracteres proletários.

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Paolo vê nessa maneira de entender o problema a afirmação da neutralidadecientífico-cultural. Tratar-se-ia de uma interpretação abstrata e a-histórica dosaber; daí, a crença num saber universal. Reclama, pois, a necessidade dehistoricização dos conceitos.Essa historicização é fundamental e eu ousaria afirmar que ela não é feita demodo suficiente também no texto do Paolo.Penso que a partir desse ponto talvez tenhamos condições de fazer o debateavançar.Em verdade, se a afirmação da saber universal pode ser (não o énecessariamente) abstrata e a-histórica eu diria que sua negação não apenaspode como necessariamente resulta abstrata e a-histórica Isto porque tal negaçãosignifica a diluição da objetividade do saber num relativismo que não temrespaldo histórico e por isso é abstrato.Penso não ser difícil compreender que objetividade do saber não é sinônimo deneutralidade, Essa identificação foi feita com sinal positivo pelo positivismo enós corremos o risco de cair na mesma armadilha quando a adotamos com sinalnegativo. Em outros termos: o Positivismo proclamou a neutralidade do saberem nome da objetividade. E nós corremos o risco de negar a objetividade dosaber a partir da constatação de sua não neutralidade. Em ambos os casos opressuposto é a identificação entre neutralidade e objetividade.O raciocínio supra pode ser formulado através do seguinte silogismo que traduza perspectiva positivista:Premissa maior. S[o existe o saber objetivo se existir a neutralidade;61

Premissa menor: Ora, existe a neutralidade; Conclusão: Logo, existe o saberobjetivo.A crítica cai na armadilha dessa argumentação quando mantém intacta apremissa maior limitando-se a negar a premissa menor, o que s6 é possível pelanegação da conclusão. Com efeito, esse é um silogismo do tipo condicional emque a neutralidade opera como antecedente e a objetividade como conseqüente.Tal silogismo se rege basicamente por duas regras lógicas:a) posto o antecedente, põe-se o conseqüente ("modus ponens")b) disposto o conseqüente, dispõe-se o antecedente ("modus tollens"). No casoem questão tem-se, pois, que a afirmação da neutralidade acarretanecessariamente a afirmação da objetividade e a negação da objetividadeacarreta necessariamente a negação da neutralidade. Já a afirmação do con-seqüente ou a negação do antecedente não permitem conclusão alguma.Compreende-se, então, porque, no afã de demonstrar a impossibilidade daneutralidade, a critica tenha se fixado na negação do saber objetivo.Em meu entender, é necessário, para desmontar o raciocínio positivista e evitara armadilha, negar a premissa maior, isto é, demonstrar a falsidade do vínculoentre neutralidade e objetividade.Importa, pois, compreender que a questão da neutralidade (ou não neutralidade)é uma questão ideológica, isto é, diz respeito ao caráter interessado ou não doconhecimento, enquanto que a objetividade (ou não objetividade) é uma questãognosiológica, isto é, diz respeito à correspondência ou não do conhecimentocom a realidade à qual se refere. Por aí se pode perceber que não existeconhecimento desinteressado; portanto, a neutralidade é impossível. Entretanto,o caráter sempre interessado do conhecimento não significa a impossibilidadeda objetividade. Com efeito, se existem interesses que se opõem à objetividadedo conhecimento, há interesses que não só não se opõem como exigem essaobjetividade. É nesse sentido que podemos afirmar que, na atual etapa histórica,os interesses da burguesia tendem cada vez mais a se opor à objetividade do co-nhecimento encontrando cada vez mais dificuldades de se justificarracionalmente, ao passo que os interesses proletários exigem62

a objetividade e tendem cada vez mais a se expressar objetiva e racionalmente.É fácil de se compreender isso uma vez que a burguesia, beneficiária dascondições de exploração, não tem interesse algum em desvendá-las, ao passoque o proletariado que sofre a exploração tem todo interesse em desvendar osmecanismos dessa situação que é objetiva. Esta é a razão da superioridade dacultura "histórico-proletária" à qual Paolo se referiu.Ora, se o entendimento do que foi dito acima já não é tão difícil, uma vez que se

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trata de uma noção que começou a se incorporar à nossa concepção de culturapor força do trabalho crítico já desenvolvido - e que necessita prosseguir - omesmo não acontece com a noção de saber universal. Esta noção (e adisseminação do positivismo contribuiu para solapá-la) ainda se encontra presaa uma concepção metafísica. Entretanto, o ponto de vista dialético, centrado nacategoria da totalidade concreta, possibilita liberá-la de sua carapaça metafísica(abstrata e a-histórica) e resgatar suas raízes históricas.Não vou, nesse momento, aprofundar essa reflexão. Apenas registro que auniversalidade do saber está intimamente ligada à questão da objetividade. Comefeito, dizer que determinado conhecimento é universal significa dizer que ele éobjetivo, isto é, se ele expressa as leis que regem a existência de determinadofenômeno, trata-se de algo cuja validade é universal. E isto se aplica tanto afenômenos naturais como sociais. Assim, o conhecimento das leis que regem anatureza tem caráter universal, portanto, sua validade ultrapassa os interessesparticulares de pessoas, classes, época e lugar, embora tal conhecimento sejasempre histórico, isto é, seu surgimento e desenvolvimento é condicionadohistoricamente. O mesmo cabe dizer do conhecimento das leis que regem, porexemplo, a sociedade capitalista. Ainda que seja contra os interesses daburguesia, tal conhecimento é válido também para ela.Feitos esses esclarecimentos podemos retomar o ponto nodal: a historicização.Com efeito, entendo que o viés positivista, vinculando a objetividade àneutralidade e descartando a universalidade do saber se vincula ao processo dedesistoricização que caracteriza essa concepção. A historicização, pois, emlugar de negar a objetividade e universalidade do saber, é a forma de resgatá-las.63

Se afirmei antes que na etapa histórica atual, os interesses burgueses se opõemao saber objetivo, é preciso dizer que nem sempre foi assim. Na etapa em que aburguesia era classe revolucionária seus interesses coincidiam com a exigênciade objetividade. Por isso ela submetia à critica a ordem então vigente,desvendando os mecanismos que a regiam, isto é, historicizando-a.ï Nesse sentido é que afirmei que o texto do Paolo carece, também ele, dehistoricização. Com efeito, as expressões "cultura enciclopédico-burguesa" e"cultura histórico-proletária" resultam abstratas se não forem historicizadas, istoporque, assim formuladas, podem sugerir que o enciclopedismo sejainerentemente burguês, o que não tem suporte histórico.Aliás, no próprio texto de Gramsci em que Paolo se inspira para cunhar essasexpressões, tal questão fica clara At Gramsci critica o enciclopedismo paramostrar que ele não temnada a ver com a cultura. "Mas isso não é cultura, é pedantismo... A cultura éuma coisa bem diferente", diz ele. (Gramsci, 1975, p. 24). Em seguida ilustracom o caso da Revolução Francesa mostrando a importância, a objetividade, osignificado histórico-cultural do Iluminismo: "O período anterior cultural, ditoIluminismo, tão difamado pelos críticos fáceis da razão teorética, não foiapenas, ou ao menos não foi completamente aquele farfalhar de superficiaisinteligências enciclopédicas quediscorriam sobre tudo e sobre todos com igual imperturbabilidade ... não foi emsuma só um fenômeno de intelectualismo pedante e árido... Foi uma magníficarevolução ele próprio, pela qual, como nota agudamente De Sanctis na Históriada literatura italiana, se formava em toda a Europa como uma consciênciaunitária, uma internacional espiritual burguesa sensível em todas as suas partesàs dores e às desgraças comuns e que era a melhor preparação para a revoltasangrenta depois verificada na França". (P. ?A-5)E prossegue, realçando os efeitos materiais desse fenômeno cultural edestacando sua universalidade: "Na Itália, na França, na Alemanha se discutiamas mesmas coisas, as mesmas instituições, os mesmos princípios. (...) Asbaionetas dos exércitos de Napoleão encontravam o caminho já aplainado porum exército invisível dos livros, dos opúsculos, que eram disseminados de Parisno fim da primeira metade do século XVIII e64

que haviam preparado homens e instituições para a renovação necessária. Maistarde, quando os fatos da França soldaram as consciências, bastava ummovimento popular em Paris para suscitar outros semelhantes em Milão, em

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Viena e nos mais pequenos centros. Tudo isso parece natural, espontâneo àsmentes superficiais, e no entanto seria incompreensível se não se conhecessemos fatores de cultura que contribuíram para criar aqueles estados de ânimoprontos para a explosão por uma causa que acreditavam comum". (P· 25)Retira, a seguir os ensinamentos práticos dessa reflexão histórica ehistoricizadora: "O mesmo fenômeno se repete hoje para o socialismo. É atravésda critica da civilização capitalista que se forma ou está se formando aconsciência unitária do proletariado e crítica quer dizer cultura, e não jáevolução espontânea e naturalística (...) E não se pode obter isso se não seconhece também os outros, a sua história, o suceder-se dos esforços que elesfizeram para ser isto que são, para criar a civilização que criaram e que nósqueremos substituir pela nossa. Quer dizer, ter noções de que coisa é a naturezae as suas leis para conhecer as leis que governam o espírito". (P· 25-~A conclusão do artigo é cristalina ao situar a necessidade do proletariadodominar o saber histórico, situando-se, assim, como um elo na cadeia da históriauniversal:..Se é verdade que a história universal é uma cadeia dos esforças que o homemfez para libertar-se tanto dos privilégios como dos preconceitos e da idolatria,não se compreende porque o proletariado que um outro anel quer juntar a essacadeia, não deva saber como e porque e de quem tenha sido precedido, e qual avantagem que pode tirar desse saber" (p. 2~Do ponto de vista cultural, a critica ao passado não significa, Pois, outra coisasenão a apropriação ativa do saber acumulado que é, assim, depurado de seuselementos anacrônicos (pelos quais serve à perpetuação desse mesmo passadoenquanto cristalizado na ordem constituída) e articulado às exigências dodesenvolvimento histórico. Daí, a desautorização da concepção enciclopédicade cultura que é justamente a concepção positivista segundo a qual a cultura seresume a uma coleção de noções, a uma somatória de conhecimentos.65

Ora, assim como intelectuais do tipo de Montesquieu e Rousseau seconstituíram em ideólogos da burguesia revolucionária e por isso foram capazesde fazer a crítica do Antigo Regime apontando as exigências de uma novaordem histórica; e assim como Hegel se configurou como o ideólogo da burgue-sia triunfante, celebrando no conceito (na idéia absoluta) a consolidação dopoder burguês, assim também o positivismo se caracterizou como a ideologia daburguesia conservadora Por isso ele exorcizou as contradições e a negatividadefixando-se apenas no lado positivo (daí o seu nome) da sociedade burguesa quepassou a ser cultuada como a ordem e o progresso permanentes. Dessa forma, separa os ideólogos burgueses da fase revolucionária a cultura expressava asexigências do desenvolvimento histórico e para Hegel a cultura fazia a históriamover-se no âmbito do espírito absoluto, para o positivismo a cultura se situafora da história; se desistoriciza. Por isso ela é identificada com o "saberenciclopédico": uma coleção de conhecimentos que valem em si e por si,independentemente das condições em que foram produzidos e sem as quaisseriam impossíveis.Essa reificação (naturalização) da cultura, Marx a expressou da seguinte forma,referindo-se aos economistas:"Os economistas têm uma maneira de proceder singular. Para eles só há duasespécies de instituições, as artificiais e as naturais. As do feudalismo sãoinstituições artificiais; as da burguesia, naturais. Equiparam-se, assim, aosteólogos, que classificam as religiões em duas espécies. Toda religião que nãofor a sua é uma invenção dos homens; a sua é uma revelação de Deus. Dessemodo, havia história, mas, agora, não há mais". (Marx, P. 90- 1)Paradoxalmente, portanto, é justamente a subordinação do saber objetivo aosinteresses burgueses que conduziu o positivismo a proclamar a neutralidade dosaber como condição de sua objetividade. Que, entretanto, para Marx o saberobjetivo é possível, fica evidente na seguinte passagem referente à situação daeconomia política no final da primeira metade do século XlX:"A burguesia conquistara poder político, na França e na Inglaterra. Daí emdiante, a luta de classes adquiria, prática e teoricamente, formas mais definidase ameaçadoras. Soou66

o dobre de finados da ciência econômica burguesa. Não interessava mais saber

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se este ou aquele teorema era verdadeiro ou não; mas importava saber o que,para o capital, era útil ou prejudicial, conveniente ou inconveniente, o quecontrariava ou não a ordenação policial. Os pesquisadores desinteressadosforam substituídos por espadachins mercenários, a investigação científicaimparcial cedeu seu lugar á consciência deformada e às intenções perversas daapologética". (p, 40)Ao desmontar o raciocínio positivista penso ter encaminhado ao mesmo tempoa questão da historicização tanto do "saber escolar" como da "concepção decultura".Com efeito, o saber escolar pressupõe a existência do saber objetivo (euniversal). Aliás, o que se convencionou chamar de saber escolar não é outracoisa senão a organização seqüencial e gradativa do saber objetivo disponívelnuma etapa histórica determinada para efeitos de sua transmissão-assimilaçãoao longo do processo de escolarização. É essa também a posição de Gramsci.Diz ele:"A escola, mediante o que ensina, lula contra o folclore, contra todas assedimentações tradicionais de concepções do mundo, a fim de difundir umaconcepção mais moderna, cujos elementos primitivos e fundamentais são dadospela aprendizagem da existência de leis naturais como algo objetivo e rebelde,as quais é preciso adaptar-se para dominá-las, bem como de leis civis e estataisque são produto de uma atividade humana estabelecidas pelo homem e podemser por ele modificadas visando a seu desenvolvimento coletivo". (Gramsci, p.130. grifos nossos)Assim entendido, longe de se opor à "concepção histórico-proletária de cultura",o saber escolar constituí o seu ponto de partida já que é ele que:"cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo liberta de toda magiaou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento deuma concepção histórico-dialética do mundo, para a compreensão do mo-vimento e do devenir, para a valorização da soma de esforços e de sacríf5ciosque o presente custou ao passado e que o futuro custa ao presente, para aconcepção da atualidade como síntese do passado de todas as geraçõespassadas, que se projeta no futuro. É este o fundamento da escola elementar".(P. 130-I)67

Concordo com o Paolo quando ele afirma que se deve desconfiar da pressa emsuperar a reflexão crítica e a análise polêmica. Mas concordo também comGuiomar quando ela insiste na necessidade de se ultrapassar a fase meramentenegativa da crítica e da denúncia. Com isso quero dizer que não é exato afirmarque o momento da crítica já passou, tendo soado a hora da ação. Penso, isto sim,que são os conteúdos tanto da crítica e da denúncia como da ação que estãomudando. Importa, pois, aprofundar esse processo de modo a se atingir um novapatamar. Importa passar da "fase romântica à fase clássica" como afirmouGramsci a propósito da escola ativa:"Ainda se está na face romântica da escola ativa, na qual os elementos da lutacontra a escola mecânica e jesuítica se dilataram morbidamente por causa docontraste e da polêmica: é necessário entrar na fase 'clássica , racional,encontrando nos fias a atingir a fonte natural para elaborar os métodos e asformas". (p. I24)Parafraseando Gramsci eu diria que nós estamos ainda na fase romântica dadefesa do compromisso político em educação. Nessa fase os elementos da lutacontra a concepção técnico-pedagógica restrita e supostamente apolítica sedilataram morbidamente por causa do contraste e da polêmica. É necessáriopassar à fase clássica, encontrando nos fins a atingir a fonte para a elaboraçãodas formas adequadas de reali7á-los.Ora, a identificação dos fins implica imediatamente competência política emediatamente competência técnica; a elaboração dos métodos para atingi-losimplica, por sua vez, imediatamente competência técnica e mediatamentecompetência política. Logo, sem competência técnico-política não é possívelsair da fase românticaCabe, enfim, acumular forças, unificar as lutas visando a consolidar os avançose tornar irreversíveis as conquistas feitas, trilhando um caminho sem retorno noprocesso de reapropriação, por parte das camadas trabalhadoras, doconhecimento elaborado e acumulado historicamente. Nisto Guiomar, Paolo eeu, estamos inteiramente de acordo.

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A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA NO QUADRO DAS TENDÊNCIASCRÍTICASDA EDUCAÇÃO BRASILEIRA*O crítico-reprodutivismo e seus limitesA Pedagogia histórico-crítica vai tomando forma ü medida que se diferencia nobojo das concepções críticas; ela se diferencia da visão crítico-reprodutivista,uma vez que procura articular um tipo de orientação pedagógica que seja críticasem ser reprodutivista. Esta colocação me parece importante porque boa partedos debates que hoje se travam e das objeções que se levantam a essa tendência,acabam desconsiderando que ela está além do crítico-reprodutivismo e nãoaquém. As críticas formuladas pelo crítico-reprodutivismo são algo que seconsidera superado. Vejamos como se deu o processo.A visão crítico-reprodutivista surgiu basicamente a partir das conseqüências domovimento de maio de 68, a chamada tentativa de revolução cultural dosjovens, que teve sua manifestação mais retumbante na França, mas se espalhoupor diversos países, inclusive o Brasil. Esse movimento pretendia realizar arevolução social pela revolução cultural. Se a bandeira das nossos pioneiros daeducação nova era fazer a revolução social pela revolução educacional, isto é,através da escola, o movimento de 68 foi mais ambicioso, pois pretendia efetuara revolução social, mudar as bases da sociedade pela revolução cultural(abrangia, portanto, não apenas a escola, mas todo o âmbito da cultura). Essemovimento chegou, de fato, a ameaçar a ordem constituída. No momento emque o movimento estudantil atingiu limites mais radicais, a estrutura político-institucional da* Este texto é a transcrição, com leves adaptações, da fala gravada no Semináriosobre Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, realizado em Niterói emdezembro de 1985. Publicado anteriormente na revista da ANDE, n° 11, 1986.70

França foi abalada. De Gaulle, que estava viajando pela Europa, teve quecancelar os seus encontros e regressar à França para tentar controlar o processo.De fato, foi possível contornar a crise e a conseqüência disso foi umaexacerbação do autoritarismo tecnocrático. Com a substituição de De Gaulle,primeiro por Pompidou e depois por Giscard d'Estaing, a perspectivatecnocrático-autoritária prevaleceu sobre os diferentes interesses da sociedade.Isso manifestou-se também no Brasil, com a crise estudantil evidenciada natomada das escolas como expressão da tentativa de revolucionar a sociedadepela via da reforma cultural. Também aqui prevaleceu o autoritarismotecnocrático, só que com uma especificidade: o componente militar, que nãoapareceu na França. Ora, as teorias crítico-reprodutivistas são elaboradas tendopresente o fracasso do movimento de maio de 68. Buscam, pois, pôr emevidência a impossibilidade de fazer uma revolução social pela revoluçãocultural. No fundo, os reprodutivistas raciocinam mais ou menos nos seguintestermos: tal movimento fracassou e nem podia ser diferente. Com efeito, acultura (e, em seu bojo, a educação) é um fenômeno superestrutura; integra,pois, a instancia ideológica, sendo assim determinado pela base material.Portanto, não tem o poder de alterar a base material. Logo, era inevitável que asestruturas materiais prevalecessem sobre essas pretensões acionadas no âmbitoda cultura. De fato, não parece por acaso que estas teorias tenham surgido emseguida ao movimento francês de 68. Assim, a teoria dos aparelhos ideológicosde Estado, de Althusser, é de 1969; a teoria da reprodução, isto é, a teoria daviolência simbólica de Bourdieu-Passeron é de 1970, e a teoria da escolacapitalista, de Baudelot-Establet é de 197l.Esta visão crítico-reprodutivista desempenhou um papel importante em nossopaís, porque de alguma forma impulsionou a crítica ao regime autoritário e àpedagogia autoritária desse regime, a pedagogia tecnicista. De uma certa forma,estas teorias alimentaram as reflexões, as análises daqueles que em nosso paísse colocavam na oposição à pedagogia oficial e à política :educacionaldominante. Nessa fase há, pois, uma indiferenciação: a perspectiva críticaaparece como se fosse dotada de certa homogeneidade, em que não se distingueo reprodutivismo não-reprodutivismo; o próprio reprodutivismo é entendidocomo de inspiração marxista, de caráter dialético, e esses enfoques ficam maisou menos misturados, imbricados. Progressivamente,

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no entanto, foram se tornando cada vez mais evidentes os limites da teoriacrítico-reprodutivista. Ela se revela capaz de fazer a crítica do existente, deexplicitar os mecanismos da existente, mas não tem proposta de intervençãoprática, isto é, limita-se a constatar e, mais do que isso, a constatar que é assim enão pode ser de outro modo. O problema, no entanto, que os educadoresenfrentavam extrapola esse âmbito, porque a questão central era justamentecomo atuar de modo crítico no campo pedagógico, como ser um professor que,ao agir, desenvolve uma prática de caráter crítico. A teoria crítico-reprodutivistanão pode oferecer resposta a estas questões, porque, segundo ela, é impossívelque o professor desenvolva uma prática critica; a prática pedagógica situa-sesempre no âmbito da violência simbólica, da inculcação ideológica, dareprodução das relações de produção. Para cumprir essa função, é necessárioque os educadores desconheçam seu papel; quanto mais eles ignoram que estãoreproduzindo, tanto mais eficazmente eles reproduzem. Consequentemente, nãohá como ter uma atuação crítica, uma atuação contrária às determinaçõesmateriais dominantes; o professor pode até desejar isso, mas é um desejo intei-ramente inócuo, porque as forças materiais não dão margem a que ele se realize.Neste contexto, foi crescendo um clamor no sentido da busca de saídas. Esteanseio é que está na base da formulação de uma proposta que superasse a visãocrítico-reprodutivista.A busca de saídas teóricasDesde que comecei a trabalhar em Filosofia da Educação, procurei abordar asquestões educacionais em termos dialéticos. Até então o problema da dialéticana educação não se havia colocado no Brasil de forma explícita e sistemáticaEm um texto inédito, de 69, denominado Esboço de formulação de uma ideo-logia educacional- para o Brasil, fiz um primeiro esforço neste sentido,discutindo o problema dos objetivos da educação brasileira e dos meios paraatingi-los. Essa tentativa isolada foi tomando corpo. À medida que os debatesavançavam, o campo cultural foi se aguçando, a preocupação pedagógica foi seaguçando. Ao sistematizar e estruturar minha abordagem da Filosofia daEducação cheguei a um esquema classificatório que72

envolvia quatro grandes tendências: a concepção humanista tradicional daFilosofia da Educação, a concepção humanista moderna, a concepção analítica ea concepção dialéticaAté esse momento eu não diferenciava a concepção crítico-reprodutivista daprópria dialética. Para um curso da Universidade Federal de São Carlos, em1976, tentei selecionar os textos mais representativos de cada tendência. Issofoi relativamente simples em relação às concepções humanistas tradicional,moderna e analítica, mas não em relação à dialética. Ficava mesmo a sensaçãode que não havia uma reflexão sistematizada e explícita de caráter dialéticosobre a questão educacional. ática Então, que textos utilizar? O que se podiafazer era produzir eu o da próprio alguma sistematização.Nesta ocasião, ensaiei trabalhar com dois textos que me o pareciam até certoponto representativos da concepção dialética: um de Baudelot-Establet, "Aescola capitalista na França", e outro de Paulo Freire, "Ação cultural para aliberdade". Fixei-me neste texto de Paulo Freire porque nos anteriores não seconfigurava uma abordagem dialética da educação; há, sim, referência àdialética, mas é uma dialética idealista, uma dialética m a de consciências. Em"Ação cultural para a liberdade", ele se refere explicitamente à luta de classes, àrevolução, à ação cultural como um trabalho que precede a mudança daestrutura social e à revolução cultural como um trabalho que se desenvolveapós a mudança da estrutura social. Na verdade, esse texto é inspirado naexperiência maoísta da Revolução Cultural chinesa. No texto "A escolacapitalista na França", Baudelot-Establet afirmava, explicitamente, a primaziada categoria da contradição na análise dos problemas educacionais e aimpossibilidade de entender as questões escolares fora do contexto da lutade classes. Por esta razão, o texto poderia ser classificado no interior daconcepção dialéticaÀquela altura, já estava inteiramente claro para mim que Bourdieu e Passeronnão se encaixavam na concepção dialética. Cunhei pata a sua teoria adenominação de vertente "sócio-lógica" porque no fundo o que eles pretendem

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fazer é uma lógica do social, quer dizer, uma teoria da educação válida paratodas as épocas e todas as sociedades que existiram, existem ou venham aexistir. À medida que minhas análises se aprofundaram, fui percebendo que aTeoria da Escola Capitalista de73

Baudelot-Establet não poderia ser considerada a expressão da visão dialética.Isso está patente no fato de que os autores trabalham as contradições apenas noâmbito da sociedade; não existe uma análise da educação como um processocontraditório. Para eles, a educação escolar é unicamente um instrumento daburguesia na luta contra o proletariado. Em nenhum momento admitem que aescola possa ser um instrumento do proletariado na luta contra a burguesiaBaudelot-Establet consideram a escola apenas como reprodutora das relaçõessociais. A transformação da estrutura social não passe pela escola. A ideologiaproletária, a cultura proletária, cuja resistência, autonomia e consistência, elesadmitem, surgem dos movimentos da prática e das lutas populares. Nãodependem propriamente do processo de escolarização. A burguesia, segundoeles, utiliza a escola para inculcar a sua ideologia no proletariado e recalcar aideologia proletária, ou seja, atua sobre os trabalhadores de modo a enfraquecera visão ideológica que eles trazem de sua própria classe.Detectada a insuficiência dialética das teorias de Bourdieu-Passeron e Baudelot-Establet, assim como de Althusser, fui levado a ampliar meu esquemaclassificatório, introduzindo um quinto grupo de tendências pedagógicas emFilosofia da Educação - as incluídas na concepção crítico-reprodutivista Passeientão a considerar cinco grandes tendências: humanista tradicional, humanistamoderna, analítica, crítico-reprodutivista e dialética.O nomeDiante da insatisfação com essas análises crítico-reprodutivistas, foi seavolumando a exigência de uma análise do problema educacional que desseconta de seu caráter contraditório, resultando em orientações com influxo naprática pedagógica, alterando-a e possibilitando sua articulação com osinteresses populares em transformar a sociedade. Esse processo toma corpo apartir de 1977. Em 1978 há um seminário sobre a Educação Brasileira, emCampinas, onde as visões críticas estão mais ou menos indiferenciadas, e aindanão se distinguiam teóricos crítico-reprodutivistas e histórico-críticos. Adenominação "tendência histórico-crítica" eu iria introduzir depois,74

porque a denominação "dialética" também gerava algumas dificuldades: há umentendimento idealista da dialética, onde dialética é concebida como relaçãointersubjetiva, como dialógica. Cunhei então, a expressão "concepção histórico-crítica", onde eu procurava reter o caráter crítico de articulação com as con-dicionantes sociais que a visão reprodutivista possui, vinculado porém àdimensão histórica que o reprodutivismo perde de vista Os crítico-reprodutivistas têm dificuldade em dar conta das contradições exatamenteporque elas se explicitam no movimento histórico. .Um marco: 1979Costumo situar o ano de 1979 como um marco da configuração mais clara daconcepção histórico-crítica. Em 1979 o problema de abordar dialeticamente aeducação começou a ser discutido mais ampla e coletivamente. Os esforçosdeixaram de ser individuais, isolados, para assumirem expressão coletiva. Eucoordenava, então, a primeira turma de doutorado da PUC-SP; eram onzeelementos, dentre eles o Cury, o Neidson, o Luís Antônio Cunha, a Guiomar, oPaolo Nosella, a Betty Oliveira, a Mirian Warde e o Osmar Fávero. Ao tentarformular teoricamente o fenômeno educativo, o problema central deste grupoera a superação do crítico-reprodutivismo. Esta questão teve uma formulaçãosistemática na tese do Cury, que foi defendida em 1979, embora publicadaapenas em 1985, com o título Educação e contradição. O projeto inicial do Curyera um estudo sobre a universidade católica. Todavia, após uma exposição quefiz sobre a importância de levar em conta a categoria da contradição emeducação, ele organizou e produziu um texto sobre o assunto e distribuiu para oscolegas, e então o grupo considerou que ele devia centrar sua tese aquele tema,muito mais urgente que o da universidade católica. Ele topou o desafio. Quemanalisou o texto, percebeu claramente que o interlocutor principal é a visãocrítico-reprodutivista. Neste sentido, há um empenho em colocar a contradição

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como a categoria-chave e mostrar como as outras se subordinam a ela: mesmo oaspecto reprodutor da educação é contraditório e não mecânico.75

A partir daí, estas preocupações tomam corpo e vão sendo discutidas maisamplamente, tanto pelos movimentos de professores e especialistas emeducação, como pelos mestrandos e orientadores de mestrado. Começava-se atentar descobrir formas de analisar a educação, mantendo presente anecessidade de criar alternativas, e não apenas fazer a crítica do existente.Em 1981, por exemplo, sai a tese da Guiomar que já pressupõe as análisessistematizadas no trabalho do Cury. Ela coloca o problema partindo dopressuposto de que a educação tem uma função política (que ninguém maisdiscute) e também de que essa função da educação é contraditória e, portanto, aclasse dominante se empenha em colocar a educação a sen serviço, ao mesmotempo em que as classes dominadas, os trabalhadores, buscam articular a escolatendo em vista os seus interesses. Colocando-nos nessa segunda perspectiva,quando a escola pode atender aos interesses dos trabalhadores? A tese central daGuiomar é que a função política da educação cumpre-se pela mediação dacompetência técnica. Ela considera que para realizar essa função política deforma transformadora, é necessário possuir competência pedagógica, dominaros processos internos ao trabalho pedagógico. Note-se que o interlocutor daGuiomar já não é mais a tendência crítico-reprodutivista, mas uma visão deeducação que a gente poderia chamar, grosso modo, de "politicista". Segundo os"politicistas", já 9ue 8 edacação é sempre um ato pol(tico, Vabalhar a educaçãopolfticamente é fazer política na escola - as questões pedagógicas seriamperfumarias. tergiversação, mecanismos ideológicos de dominação daburguesia. São esses, no fundo, os interlocutores da tese de Guiomar ou seja,trata-se de mostrar que para a escola cumprir sua função política é preciso queela exerça bem sua contribuição específica. No texto dela, já surge com certaforça a noção de que o papel político da educação cumpre-se, na perspectiva dosinteresses dos dominados, quando se garante aos trabalhadores o acesso aosaber, ao saber sistematizado.Em 1983 elaboro o texto "Onze teses sobre educação e política", publicado nolivro Escola e democracia, onde procuro caracterizar mais precisamente asrelações entre política e educação de modo a superar tanto o "politicismopedagógico" que dissolve a educação na política, quanto o "pedagogismo políti-co" que dissolve a política na educação. E assim foi emergindo76

e tomando forma essa nova proposta pedagógica. A partir de 1979, quandocomeça a assumir a forma sistematizada, vai se desenvolvendo e chega, porvolta de 1983, a conseguir uma certa hegemonia na discussão pedagógica Oreprodutivismo cede espaço, e este esforço em encontrar saídas para a questãopedagógica na base de uma valorização da escola como instrumento importantepara as camadas dominadas, vai se generalizando. E multiplicaram-se osclamores no sentido de que essa concepção pedagógica se desenvolvesse demodo a exercer um influxo mais direto sobre a prática específica dosprofessores na sala de aula. Nesse quadro ganha relevância o trabalho de JoséCarlos Libâneo, que vem se empenhando em analisar a prática dos professores eredefinir a didática à luz da referida concepção, por ele denominada de"pedagogia Crítico-Social dos conteúdos".Surge a crítica da criticaTodavia, de uns dois anos para cá, um conjunto de críticas vem sendo acionadocontra essa tendência. É interessante notar que nessas críticas, unem-seconservadores da direita e ultras da esquerda. Estes últimos consideram que sercritico é ser intransigente, é negar inteiramente tudo o que a burguesia produziu,e acabam fazendo uma espécie de coro comum com a direita, fustigando aPedagogia histórico-crítica.Por outro lado, os "ultracríticos" tentam reabilitar a Escola Nova. Isso meparece um fenômeno muito estranho porque esses elementos se distinguiram porfazer a critica da concepção liberal, do pedagogismo e, conseqüentemente, daEscola Nova. Talvez a mudança se deva ao fato de que, ao tentar encaminhar aproposta de uma pedagogia crítica não-reprodutivista, eu comecei por fustigar aEscola Nova na CBE de 1980. Partindo do pressuposto de que a platéia erapredominantemente escolanovista, utilizei a metáfora de Lênin, da curvatura da

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vara, forçando a argumentação para o outro lado, o da defesa da EscolaTradicional. Deixava claro, todavia, que isso não queria dizer que a PedagogiaTradicional estava certa. Eu estava apenas aplicando a técnica da curvatura davara, ou seja, para endireitá-la não basta colocá-la na posição correta, é precisocurvá-la do lado oposto.77

Minha intervenção na CBE foi publicada na revista da ANDE com o título de"Escola e democracia: a teoria da curvatura da vara". Em função das discussõesque esse texto provocou, lancei uma continuação, na mesma revista, quedenominei de "Escola e democracia: para além da teoria da curvatura da vara".Nesse artigo tentava mostrar como se configuraria uma proposta que não fossenem tradicional nem escolanovista Porém, como a crítica inicial foi muitocontundente, de alguma forma marcou a mente das pessoas, e às vezes sou maisidentificado como anti-escolanovista do que propriamente como um educadorcrítico que tenta fundar o trabalho pedagógico à base da perspectiva histórica. Éa( que surgem algumas tentativas de reabilitação da Escola Nova e colocaçõescomo: "Não é possível jogar a Escola Nova na lata do lixo; a Escola Nova foiimportante, teve um papel na democratização da escola pública no Brasil etc."No entanto, isso não foi negado em nenhum momento nos meus trabalhos. Areabilitação da Escola Nova me parece ainda mais estranha porque temavançado ao ponto de con,siderá-1a revolucionária!As objeções levantadas contra a pedagogia histórico-crítica costumam assumir aforma de falsas dicotomias, que comentarei a seguir.OBJEÇÕES E DICOTOMIAS1. Forma e conteúdoUma primeira dicotomia é aquela que se expressa na oposição entre forma econteúdo. Segundo essa objeção, a proposta em questão seria conteudista, e,nesse sentido, desconsideraria as formas, os processos e os métodospedagógicos. Acho que a denominação "Pedagogia dos Conteúdos", em quepese o fato de ser acrescida da especificação "Crítico-Social", tem dado margemà objeção de que a proposta centra-se nos conteúdos e secundariza as formas eos processos. No entanto, isso já tem sido refutado de diferentes maneiras. Numdiscurso que escrevi para a formatura da Universidade de Santa Úrsula e que foipublicado na revista da ANDE n° 9, 1985, sob o titulo "Sentido da pedagogia epapel do pedagogo", enfatizo que a questão central da Pedagogia é a questãodos métodos, dos processos. O conteúdo,78

o saber sistematizado, não interessa à Pedagogia enquanto tal.É nesse sentido que em trabalhos mais antigos eu faço referência ao fato de q~ ocientista tem uma perspectiva diferente do professor em relação ao conteúdo.Enquanto o cientista está interessado em fazer avançar a sua área deconhecimento, em fazer progredir a ciência, o professor está mais interessadoem fazer progredir o aluno. O professor vê o conhecimento como um meio parao crescimento do aluno; enquanto para o cientista o conhecimento é um fim,trata-se de descobrir novos conhecimentos na sua área de atuação. Nessesentido, eu afirmava num texto de 1971, incluído no meu livro de 1980 - Edu-cação: do senso comum à consciência filosófica -, que o melhor geógrafo nãoserá necessariamente o melhor professor de geografia; nem será o historiadoraquele que desempenhará melhor o papel de professor de história ou o melhorliterato, o melhor escritor necessariamente o melhor professor de português. Epor quê? Porque para ensinar é fundamental que se coloque inicialmente aseguinte pergunta: para que serve ensinar uma disciplina como geografia,história ou português aos alunos concretos com os quais se vai trabalhar? Emque essas disciplinas são relevantes para o progresso, Para o avanço e para odesenvolvimento desses alunos?Daí surge o problema da transformação do saber elaborado em saber escolar.Essa transformação é o processo através do qual selecionam-se, do conjunto dosaber sistematizado, os elementos relevantes para o crescimento intelectual dosalunos e organizam-se esses elementos numa forma, numa seqüência tal quepossibilite a sua assimilação. Assim, a questão central da pedagogia é oproblema das formas, dos processos, dos métodos; certamente, nãoconsiderados em si mesmos, pois as formas só fazem sentido na medida em queviabilizam o domínio de determinados conteúdos.

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O método é essencial no processo pedagógico. Pedagogia, como é sabidosignifica literalmente a condução da criança, e a sua origem está no escravo quelevava a criança até o local dos jogos, ou o local onde ela recebia instrução dopreceptor. Depois, esse escravo passou a ser o próprio educador. Os romanos,percebendo o nível de cultura dos escravos gregos, confiavam a eles a educaçãodos filhos. Essa é a etimologia da palavra. Do ponto de vista semântico, osentido se alterou. No entanto,79

a paidéia entre os gregos não significava apenas infância, paidéia significava acultura, os ideais da cultura grega. Assim, a palavra pedagogia, partindo de suaprópria etimologia, significa não apenas a condução da criança, mas aintrodução da criança na cultura.A pedagogia é o processo através do qual o homem se torna plenamentehumano. No meu discurso distingui entre a pedagogia geral, que envolve essanoção de cultura como tudo o que o homem produz, tudo o que o homemconstrói, e a pedagogia escolar; ligada à questão do saber sistematizado, dosaber elaborado, do saber metódico. A escola tem o papel de possibilitar oacesso das novas gerações ao mundo do saber sistematizado, do saber metódico,científico. Ela necessita organizar processos, descobrir formas adequadas a essafinalidade. Esta é a questão central da pedagogia escolar. Os conteúdos não re-presentam a questão central da pedagogia, porque se produzem a partir dasrelações sociais e se sistematizam com autonomia em relação à escola. Asistematização dos conteúdos pressupõe determinadas habilidades que a escolanormalmente garante, mas não ocorre no interior das escolas de 1-° e 2°- graus.A existência do saber sistematizado coloca à pedagogia o seguinte problema:como torná-lo assimilável pelas novas gerações, ou seja, por aqueles queparticipam de algum modo de sua produção enquanto agentes sociais, masparticipam num estágio determinado estágio esse que é decorrente de toda umatrajetória histórica?2. Socialização versus produção do saberÉ possível articular a questão da relação forma e conteúdo com a dasocialização do saber produzido. A objeção que vem sendo formulada é aseguinte: "Falar em socialização do saber elaborado é voltar a Durkheim, que jádizia que a função da escola é socializadora". No entanto, não é o fato de euutilizar a palavra socialização que me torna durkheimiano; é preciso considerarem que contexto a expressão é utilizada. Se fosse assim, ter(amos que concluirque Marx é durkheimiano, e que todos os socialistas são durkheimianos, porquea bandeira básica de luta do socialismo é a socialização dos meios de produção.Ora, é sobre a base da questão da socialização dos meios de produção80

que consideramos fundamental a socialização do saber elaborado. Isso porque osaber produzido socialmente é uma força produtiva, é um meio de produção. Nasociedade capitalista, a tendência é torná-lo propriedade exclusiva da classedominante. Não se pode levar esta tendência às últimas conseqüências porqueisso entraria em contradição com os próprios interesses do capital. Assim, aclasse dominante providencia para que o trabalhador adquira algum tipo desaber, sem o que ele não poderia produzir; se o trabalhador possui algum tipo desaber, ele é dono da força produtiva e no capitalismo os meios de produção sãopropriedade privada! Então, a história da escola no capitalismo traz consigo estacontradição.Em Adam Smith já aparecia claramente a indicação de que os trabalhadoresdeviam ser educados, porém em doses homeopáticas. Deviam receber apenas omínimo necessário de instrução para serem produtivos, para fazerem crescer ocapital. Nada além disso. Depois, o taylorismo aperfeiçoou esse processo. Notexto "Extensão universitária, uma abordagem não extensionista" (Saviani 1984,pp. 46-65), coloco que o taylorismo é um processo através ,do qual o saber dostrabalhadores é desapropriado e apropriado pelos setores dominantes, elaboradoe devolvido de forma parcelada. Taylor fez estudos de tempo e movimento,analisou como os trabalhadores produziam, elaborou e sistematizou oconhecimento daí resultante, desapropriando os trabalhadores do saber sobre oconjunto do processo, que passou a ser propriedade privada da classedominante. Como os trabalhadores não podem ser desapropriados, de formaabsoluta, do saber, é preciso que eles tenham acesso ao mínimo de saber

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necessário para produzirem. A devolução na forma parcelada significa isso:devolve-se ao trabalhador apenas o conhecimento relativo àquela operação quevai desenvolver no processo produtivo. O saber relativo ao conjunto já não maislhe pertence.Esta é a base da idéia da socialização do saber que a gente tem formulado emtermos pedagógicos. Aqui é preciso desfazer uma confusão. Elaboração dosaber não é sinônimo de produção do saber. A produção do saber é social, se dáno interior das relações sociais. A elaboração do saber implica em expressar deforma elaborada o saber que surge da prática social. Essa expressão elaboradasupõe o domínio dos instrumentos de elaboração e sistematização. Daí aimportância da escola se a escola81

não permite o acesso a esses instrumentos, os trabalhadores ficam bloqueados eimpedidos de ascenderem ao nível da elaboração do saber, embora continuem,pela sua atividade prática real, a contribuir para a produção do saber. O sabersistematizado continua a ser propriedade privada a serviço do grupo dominante.Assim, a questão da socialização do saber, nesse contexto, jamais poderia serassimilada à visão do funcionalismo durkheimiano. Porque se inspira toda naconcepção dialética, na crítica da sociedade capitalista desenvolvida por Marx.3. Saber versus consciênciaA terceira dicotomia, saber versus consciência, sustenta que a pedagogiahistórico-crítica estaria dando mais importância à aquisição do saber do que daconsciência crítica. Ora, tal objeção pressupõe que é possível desenvolver aconsciência à margem do saber. E como se o acesso ao saber pudesse ser feitode forma inconsciente. Na verdade, o nível de consciência dos trabalhadoresaproxima-se de uma forma elaborada na medida em que eles dominam osinstrumentos de elaboração do saber. Nesse sentido é que a própria expressãoelaborada da consciência de classe passa pela questão do domínio do saber.4. Saber acabado versus saber em processoSegundo essa dicotomia, a pedagogia histórico-crítica implicaria uma visão dosaber como algo definitivo e acabado, tratando-se apenas de transmiti-lo. Ora,tal objeção também é descabida. Com efeito, ao afirmar que o saber é produzidosocialmente, isso significa que ele está sendo produzido socialmente, e,portanto, não cabe falar em saber acabado. A produção social do saber éhistórica, portanto não é obra de cada geração independente das demais. Oproblema da pedagogia é justamente permitir que as novas gerações seapropriem, sem necessidade de refazer o processo, do patrimônio da humanida-de, isto é, daqueles elementos que a humanidade já produziu e elaborou. Nãopodemos fazer com que cada criança volte à Idade da Pedra lascada para poderdepois atingir, na idade adulta, o82

domínio do saber científico, tal como é formulado em nossa época. Esse é umaspecto que me parece importante considerar.O fato de falar na socialização de um saber supõe um saber existente mas issonão significa que o saber existente seja estático, acabado. É um saber suscetívelde transformação, mas sua própria transformação depende de alguma forma dodomínio deste saber pelos agentes sociais. Portanto, o acesso a ele se impõe.5. Saber erudito versus saber popular ou ponto de partida versus ponto dechegadaQuanto à dicotomia saber erudito versus saber popular, acho que pode ser ligadaà questão do ponto de partida e ponto de chegada. Através dessas dicotomiasafirma-se que a pedagogia histórico-crítica estaria valorizando a cultura eruditaem detrimento da cultura popular e, ao centrar-se no ponto de chegada, estariadesconsiderando o ponto de partida. Tradicionalmente, a concepção dominanteconsidera que a única cultura digna desse nome é a cultura erudita Cultosseriam os intelectuais, os que estudaram e tiveram acesso à cultura letrada Opovo seria inculto porque suas formas de consciência e de saber sãoespontâneas, assistemáticas. Em contraposição a essa tendência, firma-se umaoutra que acabou por concluir que só a cultura popular é digna desse nome, é acultura legítima, autêntica. A cultura erudita seria uma cultura espúria, artificial;deveríamos trabalhar com a cultura popular porque aí está a verdade, a força, aconsistência. A outra seria uma cultura ornamental, que só serviria paralegitimar mecanismos de um poder obtido pela força material. Já abordei esta

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questão em outros momentos, inclusive no texto "Competência política ecompromisso técnico"; aí chamo a atenção para o fato de que o saber é históricoe como tal é apropriado pelas classes dominantes, mas isso não significa que eleseja inerentemente dominante. O que hoje se chama "saber burguês" é um saberdo qual a burguesia se apropriou e colocou a serviço de seus interesses. Emsuma, o que parece importante entender é o seguinte: essa dicotomia entre sa6ererudito como saber da dominação e saber popular como saber autêntico próprioda libertação é uma dicotomia falsa.83

Nem o saber erudito é puramente burguês, dominante, nem a cultura popular épuramente popular. A cultura popular incorpora elementos da ideologia dacultura dominante que, ao se converterem em senso comum, penetram nasmassas.Então, a questão fundamental aqui parece ser a seguinte: como a populaçãopode ter acesso às formas do saber sistematizado de modo a expressar de formaelaborada os seus interesses, os interesses populares? Chegaríamos assim a umacultura popular elaborada, sistematizada. Isto aponta na direção da superaçãodessa dicotomia, porque se o povo tem acesso ao saber erudito, o saber eruditoneo é mais sinal distintivo de elites, quer dizer, ele se torna popular. A culturapopular, entendida como aquela cultura que o povo domina, pode ser a culturaerudita, que passou a ser dominada pela população. A isto se liga a questão doPonto de partida versus ponto de chegada. A acusação de que descuidamos dacultura popular é injusta. No meu texto "Para além da curvatura da vara",trabalhei o problema pedagógico à luz dessa diferença entre o ponto de partida eo ponto de chegada. Mostrei que o processo pedagógico tem que realizar noponto de chegada o que no ponto de partida não está dado. Refiro-me, porexemplo, à questão da igualdade que não está dada no ponto de partida, mas queé algo que tem que ser alcançado no ponto de chegada. A cultura popular, doponto de vista escolar, é da maior importância enquanto ponto de partida. Não é,porém, a cultura popular que vai definir o ponto de chegada do trabalhopedagógico nas escolas. Se as escolas se limitarem a reiterar a cultura popular,qual será sua função? Para desenvolvei cultura popular, essa culturaassistemática e espontânea, o povo não precisa de escola Ele a desenvolve porobra de suas próprias lutas, relações e práticas. O povo precisa da escola para teracesso ao saber erudito, ao saber sistematizado e, em conseqüência, paraexpressar de forma elaborada os conteúdos da cultura popular quecorrespondem aos seus interesses.Levando em consideração os debates que ainda se travam no momento atual,outras dicotomias poderiam ser identificadas. Entretanto, para os limites dotempo destinado a esta exposição oral, creio ter mencionado e respondido àsprincipais objeções84

Outras precises e novos esclarecimentos poderão ser acrescentadosoportunamente.

DebateAlexandre - Gostaria de pedir ao professor Saviani que comentasse umacontestação que tem aparecido muito na Universidade da Paraíba, e querealmente balança as pessoas que estão trabalhando na linha da pedagogiaCrítico-Social dos conteúdos. A contestação é que a ênfase aos conteúdosinstrumentais faria com que estes assumissem uma certa autonomia em relaçãoaos dados presentes na realidade concreta. Não se levaria em conta, porexemplo, as condições iniciais dos alunos das classes dominadas, cujasdeficiências precisam efetivamente ser superadas.Dermeval - Em relação à questão de uma possível hipertrofia dos conteúdosinstrumentais, onde as condições concretas do aluno fossem esquecidas, eu teriaa dizer o seguinte: a proposta pedagógica que vimos formulando implica oesforço de desenvolver uma pedagogia concreta, que supere a pedagogiaabstrata, a pedagogia das formas pelas formas. Estou utilizando o termo"concreto" não no sentido piagetiano, mas no sentido em que Marx define oconceito de concreto. Assim, poderíamos traduzir pedagogia concreta porpedagogia dialética. A dialética é uma lógica concreta, enquanto a lógicaformal, a lógica das formas, é abstrata Uma lógica concreta é uma lógica dos

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conteúdos. Só que não podemos confundir conteúdos concretos com conteúdosempíricos. Os conteúdos empíricos manifestam-se na experiência imediata. Osconteúdos concretos são captados em suas múltiplas relações, o que só podeocorrer pela mediação do abstrato. Para chegar ao concreto é preciso superar oempírico pela via do abstrato. Esse discurso pode ter ficado muito hermético,então vou ilustrá-lo pedagogicamente, na direção da questão feita.Veja, acho que uma das limitações da contribuição da psicologia à educaçãoestá no fato de que a psicologia tem tratado principalmente do indivíduoempírico, não do indivíduo concreto. Ora, o professor na sala de aula não sedefronta com o indivíduo empírico, descrito em todas as suas variáveis, arespeito85

do qual existem conclusões precisas, estatisticamente significativas. O professorestá lidando com o indivíduo concreto; enquanto indivíduo correto ele é umasíntese de inúmeras relações sociais. Ele não se enquadra no modelo descritopela psicologia, pois o indivíduo empírico é uma abstração, pressupõe um corteonde se definem determinadas variáveis que são objeto de estudo. O professornão pode fazer o corte; o aluno está diante dele, vivo, inteiro, concreto. É emrelação a este aluno que ele tem de agir. Daí a necessidade de se desenvolveruma psicologia que leve em conta o indivíduo concreto e não apenas oindivíduo empírico. Uma questão fundamental na pedagogia e que o movimentoda Escola Nova expôs com veemência, é a questão dos interesses do aluno. Oobjetivo do processo pedagógico é o crescimento do aluno, logo, seus interessesdevem necessariamente ser levados em conta. O problema é o seguinte: quaissão os interesses do aluno? De que aluno estamos falando, do aluno empírico oudo aluno concreto? O aluno empírico, o indivíduo imediatamente observável,tem determinadas sensações, desejos e aspirações que correspondem à suacondição empírica imediata. Estes desejos e aspirações não correspondemnecessariamente aos seus interesses reais, definidos pelas condições sociais queo situam enquanto indivíduo concreto. Neste sentido, tenho mencionado que ospais das camadas trabalhadoras costumam dizer o seguinte: "Eu botei o meufilho ma escola para aprender mas ele não está aprendendo; o professor está lápara ensinar mas não está ensinando; o que será que está acontecendo?". Os paisviveram todo um conjunto de experiências mostrando que a estudos fazem falta.Ora, os pais, ao perceberem isso, acham que os professores têm obrigação desaber o que é realmente importante para os alunos. Nem sempre o que a criançamanifesta à primeira vista como sendo de seu interesse é de seu interesse comoser concreto, inserido em determinadas relações sociais. Em contrapartida,conteúdos que ela tende a rejeitar são, no entanto, de seu maior interesseenquanto indivíduos concretos. Assim, a ênfase nos conteúdos instrumentaisnão se desvincula da realidade concreta dos alunos, pois é justamente a partirdas condições concretas que se tenta captar porque e em que medida essesinstrumentos são importantes.Dácio - Alguns princípios da pedagogia histórico-crítica vêm sendo utilizadospor setores conservadores para justificar86

um retomo à escola tradicional. Em vista disso, eu pediria ao professor Savianique esclarecesse melhor a opção de classe e a opção por uma visão dialética dahistória implícita na proposta da pedagogia histórico-crítica.Dermeval - A apropriação de conceitos e teorias é feita a partir dos interesses,da visão de mundo e da posição que os indivíduos ocupam no quadro social. Éum fato que setores conservadores vêm se apropriando não só da pedagogiahistórico-crítica como de outras propostas - a utilização do método Paulo Freireé um exemplo disso, Desnatura-se o quadro original, encaixando-se conceitosde uma proposta em outro esquema teórico. Esse é um fenômeno real. Temosque aprender a lidar com ele, explicitando-o. Em relação à opção políticaassumida por nós, é bom lembrar que na pedagogia histórico-crítica a questãoeducacional é sempre referida ao problema do desenvolvimento social e dasclasses. A vinculação entre interesses populares e educação é explícita. Osdefensores da proposta desejam a transformação da sociedade. Se este marconão está presente, não é da pedagogia histórico-crítica que se trata. Algunstentam sugerir que não é nada disso, que estas colocações são "de fachada" e nofundo a proposta "fecha com a burguesia". Tais afirmações no entanto, não se

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sustentam. Apóiam-se 'es vezes em mutilações. Por exemplo, há abordagem aomeu texto Educação e política onde se considera que eu hipertrofio o papel doEstado, em detrimento das relações sociais. No entanto, esta análise não podeser extraída do texto, se ele for cotejado com o artigo "A defesa da EscolaPública", onde destaco o papel da sociedade civil, do movimento dostrabalhadores como forma de controlar e fiscalizar a ação do Estado naeducação. Portanto, o caráter de classe da Pedagogia histórico-crítica estáexplícito. Aliás, na minha exposição eu enfatizei este ponto, quando lembrei quea proposta de socialização do saber elaborado é a tradução pedagógica doprincípio mais geral da socialização dos meios de produção. Ou seja, do pontode vista pedagógico também se trata de socializar o saber elaborado, pois este éum meio de produção,Betty A. Oliveira - Estou muito preocupada com o grande desvio que adenominação pedagogia Crítico-Social dos conteúdos está gerando entre oseducadores. Eu já fiz parte de debates onde as pessoas usavam o termopedagogia dos conteúdos87

suprimindo a expressão "crítico-social", que é de difícil entendimento. Isto é umdesvio, já que estamos buscando a relação conteúdo e forma dentro do processoeducativo. Então proponho que, em vez de pedagogia crítico-social dosconteúdos, usemos a denominação histbrico-cr5tica, que tem muito maisfundamento, como foi explicado aqui pelo Saviani.Parece-me que a nova pedagogia histórico-crítica está avançando, mas o mesmonão acontece com o estudo da dialética, necessário para a compreensão e práticadessa concepção. As dicotomias enunciadas por Saviani são frutos do dualismológico que domina nossas operações mentais. Pensamos na base do "ou-ou".Não conseguimos pensar por relações. Álvaro Vieira Pinto alertou para oproblema quando notou que pensamos a contradição mas não pensamos porcontradição. A minha questão para o Dermeval é: como avançar no estudo danova concepção histórico-crítica, sem pensá-la dialeticamente para que e1a sejaconcretizada, superando os falsos dualismos?Dermeval - Quando o Libâneo estava para publicar seu livro utilizando adenominação pedagogia crítico-social dos conteúdos, ficou sabendo dadenominação "pedagogia histórico-crítica" criada por mim. Disse-me então queesta era exatamente a denominação que estava buscando e chegou a pensar emutilizá-la no livro. Mas eu considerei secundária a questão do nome, pois o maisimportante era difundir a proposta A fixação do nome mais adequadodependeria das reações suscitadas. Então, não me opus a que ele empregasse asua denominaçãoMesmo a expressão "pedagogia dos conteúdos" não é totalmente rejeitável. Aquestão dos métodos está presente na palavra pedagogia Acontece que asexpressões se difundem e no final você fica com formas sem conteúdos. É porisso que se fala em pedagogia sem estar atento ao significado da palavra. Háuma fetichização, uma reificação dos conceitos. A vantagem da denominação"pedagogia histórico-crítica" é que não se predetermina o sentido. Se você nãoentende o que é "histórico" ou "crítica" vai tentar inteirar-se do significadodaquilo que lhe escapa, lendo e estudando os representantes da concepção. Oproblema da denominação "pedagogia dos conteúdos" é a ressonância que elatraz, dando margem a uma interpretação na linha88

de uma volta à pedagogia tradicional, ou de uma recuperação dessa proposta.Em relação ao estudo da dialética,para a compreensão do fenômeno em pauta, creio que ë fundamental. Difundiruma concepção implica sua incorporação a nível de senso comum, desnaturadoem vários aspectos o que é pressuposto. No nosso caso. há o risco de,apresentada a proposta que pretende orientar a prática, acredite-se que é sóaplicá-1a e as coisas estão resolvidas. Isso já é uma distorção da proposta, quenão se expressa em fórmulas abstratas e externas ao objeto.89

A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E A EDUCAÇÃO ESCOLAR*O tema do nosso encontro gira em torno da Pedagogia Histórico-Crítica. Talvezdevesse iniciar a exposição referindo-me a essa denominação, quer dizer, à

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nomenclatura "Pedagogia Histórico-Crítica". Logo de início é possível afirmarque, em verdade, Pedagogia Histórico-Crítica pode ser considerada comosinônimo de Pedagogia Dialética. No entanto, a partir de 1984 dei preferência àdenominação de Pedagogia Histórico-Crítica, pois o outro termo - PedagogiaDialética - vinha se revelando um tanto genérico e passível de diferentesinterpretações. Sabe-se que há uma interpretação idealista da Dialética, além deuma tendência a julgá-la de uma forma especulativa, portanto descolada dodesenvolvimento histórico real. Há correntes, por exemplo, próximas àtecnologia que utilizam a palavra dialética como sinônimo de dialógico, ou seja,referente ao dialogo, à troca de idéias, à contraposição de opiniões, e nãopropriamente como teoria do movimento da realidade, isto é, teoria que buscacaptar o movimento objetivo do processo histórico. Outro motivo da opção porPedagogia Histórico-Crítica foi a ocorrência de diferentes visões da palavradialética considerando que, quando a pronunciamos, cada um tem na cabeça umconceito de dialética - em conseqüência do que a expressão Pedagogia Dialéticaacaba sendo entendida por conotações diversas.Além disso, tal nomenclatura, por não ser muito corrente, provoca a curiosidadedos ouvintes, criando a oportunidade de se explicar as intenções contidas notema. A outra denominação, por sua vez, acaba sendo entendida segundo ospressupostos de cada um e, conseqüentemente, é possível que em lugar* Publicado anteriormente em Pensando a Educação. São Paulo, UNES P, 1989,p. 23-33.90

de se adquirir clareza, instale-se uma certa confusão a respeito.Em outros termos, o que eu quero traduzir com a expressão "PedagogiaHistórico-Crítica" é o empenho em compreender a questão educacional a partirdo desenvolvimento histórico objetivo. Portanto, a concepção pressuposta nestavisão da Pedagogia Histórico-Crítica é o materialismo histórico, ou seja, acompreensão da história a partir do desenvolvimento material, da determinaçãodas condições materiais da existência humana. No Brasil, esta correntepedagógica se fuma, fundamentalmente, a partir de 1979 (1).Quando situo este momento, 1979, é importante ter em conta o seguinte: aeducação brasileira se desenvolveu, principalmente por influência da pedagogiacatólica (a pedagogia tradicional de orientação católica), com os jesuítas que,praticamente, exerceram o monopólio da Educação até 1759, quando foramexpulsos por Pombal. A partir daí se tenta desencadear uma interpretação daquestão educacional à luz da pedagogia tradicional leiga, ou seja, pedagogiainspirada no liberalismo clássico. É o empenho de Pombal em se pautar pelasidéias do Iluminismo e rever a cultura e a instrução pública segundo estaconcepção. Obviamente, isso não significou a exclusão da influência católica naEducação mas, sim, a quebra de seu monopólio. Este período vai até início desteséculo, quando se torna forte a influência da Escola Nova. A Pedagogia Nova é,pois, uma concepção já inspirada naquilo que chamo de concepção humanistamoderna de Filosofia da Educação.A década de 20 é muito fértil nessa influência do escolanovismo. Nós sabemosque, em 1924, é fundada a ABE- Associação Brasileira de Educação -, quereunia os principais representantes das novas idéias em educação. A IgrejaCatólica também se organiza e entra em polêmica com os pioneiros daEducação Nova. Esta organização se dá através da AEC - Associação dosEducadores Católicos -, que se contrapõe à ABE.Em 1932, é lançado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Em 1934,com as discussões em torno da Constituição,1. Historio um pouco esta problemática num artigo publicado na revista ANDE,n.º 11, 1986, chamado “A Pedagogia Histórico-Crítica no Quadro dasTendências Críticas da Educação Brasileira”.91

polarizam-se as posições no âmbito da Educação entre os liberais, representadospelos escolanovistas, e os católicos, que defendiam a posição tradicional emeducação. Como vocês vêem, a polêmica atual "Educação Pública versusEducação Confessional", a propósito da discussão da nova Constituição, éalguma coisa que já vem fazendo história em nosso país. Por ocasião da LDB,essa polêmica foi retomada, no final da década de 50, e agora assume novoscontornos.

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Após a promulgação da Constituição de 1934, a Escota Nova vai ganhandoterreno no Brasil e, em 1947, em decorrência já da nova Constituição, a de 46,que determinou ser atribuição da União fixar a Lei de Diretrizes e Bases daEducação Nacional, compõe-se uma comissão para elaborar o anteprojeto danova lei. Essa comissão reúne os principais educadores da época e nela figuram,em maior número, escolanovistas, o que já traduz uma predominância doescolanovismo na Educação brasileira nesse período que vai até cerca de 1960.Um indicador também dessa predomin5ncia é o fato de que a própria Educaçãocatólica busca renovar-se e, de uma certa forma, atender a certos requisitos deinfluência do escolanovismo. É nesse sentido que, em 1955, 1956 e 1957, aIgreja organiza as Semanas da Educação, traz o Padre Pierre Faure, da França,que divulga aqui as idéias de Lubienska, associadas a Montessori,representantes, portanto, da Escola Nova. A ênfase especial em Lubienska seexplica pela sua maior compatibilidade com a Doutrina da Igreja. Com efeito,Lubienska tinha um pensamento místico - com influência oriental - e litúrgico;baseava-se na Bíblia e aplicava os processos litúrgicos na educação dascrianças. Apoiada nessa pedagogia, a Igreja, de uma certa forma, busca seatualizar e incorporar no aspecto metodológico algumas das conquistas daEscola Nova, obviamente sem abrir mão da doutrina Na década de 60, a EscolaNova começa a apresentar sinais de crise, delineando-se uma outra tendênciaque eu chamo de Pedagogia Tecnicista. Esta pedagogia acaba se impondo, apartir de 1969-depoís da Lei 5.540 que reestruturou o ensino superior,destacando-se nesse quadro o Parecer 252/69 que reformulou o curso dePedagogia. Nessa reformulação a influência tecnicista já está bem presente, Ocurso é organizado mais à base de formação de técnicos e de habilitaçõesprofissionais e reflui aquela formação básica, formação geral, que era a marcaanterior do curso de Pedagogia. Em 1971 vem a92

Lei 5.692, com a tentativa de profissionalização universal a nível de 2°-grau. A influência tecnicista, então, se impõe; é na década de 70 que o regimemilitar tenta implantar uma orientação pedagógica inspirada na assessoraiamericana, através dos acordos MEC-USAID, centrada aos idéias deracionalidade, eficiência e produtividade, que são as características básicas dachamada pedagogia Tecnicista Mas, ao mesmo tempo que, nessa década. a pedagogia assumida pelo governo busca imprimir esse caráter à Educação,desencadeia-se um processo de crítica à mesma. Boa parte dos educadoresnão aceita a educação oficial e busca articular as críticas ao regime militar,autoritário e tecnocrático, e à sua proposta educacional. Essas, formuladasao longo da década de 70, tiveram forte apoio de uma concepção crítico-reprodutivista de Educação. Esta concepção foi sistematizada por algunsteóricos, entre os quais se destacam alguns autores franceses, basicamenteBourdieu e Passeron, com a Teoria do Sistema de Ensino enquanto ViolênciaSimbólica sistematizada na obra "A Reprodução" (1970); Althusser, com oartigo "Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado", publicado na revista LaPensée, em 1969, e depois republicado na forma de livro; e o livro de Baudelote Establet, A Escola Capitalista na França, que data de 1971. Por influênciadessas obras se procurou empreender a crítica da educação, pondo em evidênciaseu caráter reprodutivista, isto é, educação como reprodução das relaçõessociais de produção. Chamo esta corrente de crítico-reprodutivista porque nãose pode negar seu caráter crítico, se entendermos por concepção crítica aquelaque leva em conta os determinantes sociais da educação, em contraposição àsteorias não críticas, que acreditam ter a educação o poder de determinar asrelações sociais, gozando de uma autonomia plena em relação à estrutura social,(Nesse senti- do, nós poderíamos dizer que a Pedagogia Tradicional, assim coma Pedagogia Nova e a Pedagogia Tecnicista são não-críticas); sãoreprodutivistas, no sentido em que chegam invariavelmente à conclusão de quea educação tem a função de reproduzir as relações sociais vigentes. Sendoassim, essa concepção crítico-reprodutivista não apresenta proposta pedagógica,além de combater qualquer uma que se apresente. Assim, dada uma sociedadecapitalista, sua Educação reproduz os interesses do capital. Esta concepçãoserviu para municiar a denúncia da pedagogia oficial dominante e, no períodoentre 1975 e 1978, era confundi- da com a concepção dialética93

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Um marco da situação acima indicada foi o Seminário de Educação Brasileira,organizado em Campinas, em 1978, no qual prevalece a crítica à pedagogiaoficial, tendo ficado em segundo plano a questão relativa aos rumos que sedeveria imprimir à Educação. No entanto, de modo especial a partir da segundametade da década de 70, vai se generalizando entre os professores a expectativaem torno da busca de alternativas. À medida que se tornam mais evidentes ainsuficiência, a inadequação, a inviabilidade da orientação oficial, a tendênciados professores é raciocinar, mais ou menos, nos seguintes termos: "Está bem.Esta pedagogia oficial que se tentou generalizar é inconsistente, é passível decontestação, atende a interesses minorit5rios, atende à tentativa dos gruposdominantes de impor a toda a sociedade a sua dominação", mas, e então? Seessa educação, essa forma de ensinar, não é adequada, qual será? Havia, pois,uma expectativa muito grande entre os professores no sentido de se responder àquestão: como devo me conduzir no processo educativo? A concepção crítico-reprodutivista não tem resposta para essas indagações e tende a concluir quequalquer tentativa na área de Educação é necessariamente reprodutora dascondições vigentes e das relações de dominação - características próprias dasociedade capitalista. Ora, genericamente isso poderia até ser aceito, mas osprofessores se perguntavam qual seria o resultado de se levar às últimasconseqüências a análise dessas teorias, frente a possibilidade de, inculcando aideologia dominante nos alunos, contribuir para que uma sociedade baseada naexploração se perpetue. Ou então, ao discordar e não compactuar com esse tipode sociedade, a decisão mais acertada, e talvez a única opção, seria deixar aprofissão de educador. No entanto, boa parte dos professores intuía que essaconclusão não podia prevalecer, acreditando na viabilidade de uma educaçãoque não seja, necessariamente, reprodutora da situação vigente, e sim adequadaaos interesses da maioria, aos interesses daquele grande contingente dasociedade brasileira, explorado pela classe dominante. Daí a questão: como agirnessa nova direção? Qual é a proposta pedagógica 9ue responderia a essasexigências?É nesse quadro que se procurou fazer uma análise mais aprofundada da questãoeducacional em geral e da própria teoria crítico-reprodutivista, ou seja, submetê-la à crítica, pondo94

em evidência o seu caráter mecanicista e, portanto, o seu caráter não dialético,a-histórico. Em verdade, o que fazia, no fundo, a concepção crítico-reprodutivista? Considerava a sociedade capitalista, de classes, como algo nãosuscetível a transformações, um fenômeno que se justifica em si mesmo; umaestrutura que se impunha compactamente, portanto, de forma não contraditória.Em outros termos, não considerava esta sociedade contraditória, dinâmica e,portanto, em transformação. Com efeito, foi a partir das contradições do modode produção feudal que se desenvolveu o capitalista. Conseqüentemente, a so-ciedade capitalista contém, também, em seu interior um caráter contraditóriocujo desenvolvimento conduz à transformação e, mais tarde, à sua própriasuperação. A questão era, pois, a seguinte: como compreender a educação nessemovimento histórico? Tratava-se de percebê-la como sendo também determina-da por contradições internas à sociedade capitalista, na qual se inseria, podendonão apenas ser um elemento de reprodução mas um elemento que impulsione atendência de transformação dessa sociedade.É esta análise que em nosso país começa a adquirir forma mais sistemática apartir de 1979, quando se empreende a crítica da visão crítico-reprodutivista ese busca compreender a questão educacional a partir dos condicionantes sociais.Trata-se, assim, de uma análise crítica porque consciente da determinaçãoexercida pela sociedade sobre a Educação; no entanto, é uma análise crítico-dialética e não crítico-mecanicista. Com efeito, a visão mecanicista inerente àsteorias crítico-reprodutivistas considera a sociedade como determinanteunidirecional da Educação. Ora, sendo esta determinada de forma absoluta pelasociedade, isso significa que se ignora a categoria de ação recíproca, ou seja,que a Educação é, sim, determinada pela sociedade, mas que essa determinaçãoé relativa e na forma da ação recíproca - o que significa que o determinadotambém reage sobre o determinante. Consequentemente, a Educação tambéminterfere sobre a sociedade, podendo contribuir para a sua própriatransformação. Em suma, a passagem dessa visão crítico-mecanicista, crítico-a-histórica para uma visão crítico-dialética, portanto histórico-crítica, da

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Educação, é o que queremos traduzir com a expressão Pedagogia histórico-crítica. Esta formulação envolve a necessidade de se compreender a95

Educação no seu desenvolvimento histórico-objetivo e, por conseqüência, apossibilidade de se articular uma proposta pedagógica cujo ponto de referência,cujo compromisso, seja a transformação da sociedade e não sua manutenção, asua perpetuação. Esse é o sentido básico da expressão Pedagogia histórico-crítica. Seus pressupostos, portanto, são os da concepção dialética da história.Isso envolve a possibilidade de se compreender a Educação escolar tal como elase manifesta no presente, mas entendida essa manifestação presente comoresultado de um longo processo de transformação histórica. Assim, a segundaparte do enunciado do tema desta palestra, que se refere à relação da PedagogiaHistórico-Crítica com a realidade escolar do presente, pode ser enfocada sobdois aspectos.Num primeiro sentido, pode-se dizer que a relação entre a Pedagogia Histórico-Crítica e a realidade escolar presente é muito íntima. Com efeito, como semostrou, a referida concepção pedagógica surgiu em decorrência denecessidades postas pela prática dos educadores nas condições atuais. É, pois,na realidade escolar presente que se enraíza a proposta da Pedagogia Histórico-Crítica.Num outro ângulo de análise, a relação com a realidade escolar presente implicaa compreensão dessa realidade nas suas raízes históricas.Sabe-se que o que caracteriza o homem é o fato dele necessitar continuamenteestar produzindo a sua existência. Em outros termos, o homem é um ser naturalpeculiar, distinto dos demais seres naturais, pelo seguinte: enquanto estes emgeral os animais inclusive - adaptam-se à natureza e, portanto, têm já garantidas,pela própria natureza, suas condições de existência, o homem precisa adaptar anatureza a si, ajustando-a, segundo as suas necessidades. Esta é a marcadistintiva do homem, que surge no universo, no momento em que um ser naturalse destaca da natureza, entra em contradição com ela e, para continuarexistindo, precisa transformá-la. Eis a razão pela qual o que define a essência darealidade humana é o trabalho, pois é através dele que o homem age sobre anatureza, ajustando-a às suas necessidades.O que se chama desenvolvimento histórico não é outra coisa senão o processoatravés do qual o homem produz a sua existência no tempo. Agindo sobre anatureza, ou seja, trabalhando,96o homem vai construindo o mundo histórico, vai construindo o mundo decultura, o mundo humano. E a educação tem suas origens nesse processo. Noprincípio, o homem agia sobre a natureza coletivamente e a Educação coincidiacom o próprio ato de agir e existir, com o trabalho, portanto. O ato de viver erao ato de se formar homem, de se educar. E já que não existe produção semapropriação, nessa fase inicial, os homens se apropriavam coletivamente dosmeios necessários à produção de sua existência, fenômeno este adequadamentetraduzido 00 conceito de "modo de produção comunal". Portanto, no chamado"comunismo primitivo" os homens produziam sua existência de forma coletiva,ou seja, apropriavam-se em comum dos elementos necessários à sua existência.Os meios de produção de existência eram, pois, de uso comum.A partir do momento em que a apropriação da terra - que era, então, o meio deprodução fundamental - assume a forma privada, surge a classe dosproprietários; estes, por deterem a propriedade da terra, colocavam paratrabalhar aqueles não proprietários. Sobre essa base se constitui o modo deprodução antigo ou escravista, no qual os escravos trabalhavam para produzir asua existência e a dos seus senhores. Esta propriedade privada da terra, queocorre tanta no modo de produção antigo ou escravista quanto no modo deprodução medieval ou feudal, propicia o surgimento de uma classe ociosa, quenão precisa trabalhar para sobreviver porque o trabalho de outros garantetambém a sua sobrevivência. E aí que podemos localizar a origem da escolaEscola, em grego, significa o lugar do ócio. O tempo destinado ao ócio. Aquelesque dispunham de lazer, que não precisavam trabalhar para sobreviver, tinhamque ocupar o tempo livre, e esta ocupação do ócio era traduzida pela expressãoescota. Na Idade Média, inclusive, evidenciou-se a expressão latina otium cumdignitate, o ócio com dignidade, isto é, a maneira de se ocupar o tempo livre deforma nobre e digna. A palavra 8násio possui origem semelhante. Ginásio era, e

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ainda é, o local onde se praticam os jogos, a ginástica; era pois, o local utilizadopor aqueles que dispunham de lazer, de tempo livre de ócio.À medida que nesses dois tipos de sociedade, antiga ou escravista e medieval oufeudal, havia uma diminuta classe de proprietários e uma grande massa de nãoproprietários, a escola97

aparecia como uma modalidade de educação complementar e secundária. Istoporque a modalidade principal de educação continuava sendo ainda o trabalho,uma vez que a grande massa, a maioria, não se educava através da escola masatravés da vida, ou seja, do processo de trabalho. Era trabalhando a terra,garantindo a sua sobrevivência e a dos seus senhores, que eles se educavam.Eles aprendiam a cultivar a terra, cultivando a terra. E esse trabalho fundavadeterminadas relações entre os homens através das quais eles construíam acultura e, assim, se instruíam e se formavam como homens. A maioria, portanto,se educava pelo trabalho; só uma minoria tinha acesso à forma escolar deeducação.A educação escolar, por seu vez, era uma forma secundária e dependente da nãoescolar, que era o trabalho.Com a época moderna, em decorrência do desenvolvimento das forçasprodutivas no âmbito do feudalismo, acumulam-se recursos através dasatividades mercantis, que deslocam a terra da condição de meio de produçãoprincipal. Os meios de produção passam a assumir a forma de capital, o qualinclui não apenas a terra mas os mais variados instrumentos de trabalho. Surgeentão uma nova sociedade, chamada moderna ou capitalista ou burguesa. Estadesloca o eixo do processo produtivo, do campo para a cidade, da agriculturapara a indústria. E a classe dominante dessa nova sociedade, que é a burguesia,diferentemente dos proprietários de terra, dos senhores de escravos daAntigüidade e dos senhores feudais da Idade Média, não era uma classe ociosa.A burguesia não pode ser considerada uma classe ociosa, ao contrário, é umaclasse empreendedora, que tem a necessidade de estar produzindocontinuamente, para reproduzir indefinidamente, de forma insaciável, o capital.Em conseqüência, a burguesia revoluciona as relações de produção e passa aconquistar cada vez mais espaços, a dominar a natureza através doconhecimento metódico, e converte a ciência, que é um conhecimentointelectual, uma potência espiritual, em potência material, através da ind5striaNesse quadro, surgem as cidades como local determinante das relações sociais.Em lugar do que ocorria na Idade Média, em que o campo determinava acidade, a agricultura determinava a indústria, na época moderna, é a cidade quepassa a determinar as relações do campo e é a indústria que rege a agricultura.Nesse sentido, a época moderna98

vai se caracterizar por uma crescente industrialização da agricultura e umaprogressiva urbanização do campo; vai ser marcada por relações sociaisbaseadas no direito positivo. A cidade é uma construção artificial, as relaçõessociais aí já não são mais naturais; são relações em que o social predominasobre o natural, em que o contrato estabelecido entre os homens predominasobre as formas consuetudinárias que predominavam anteriormente. Portanto,ao direito natural, sucede o direito positivo. E é neste quadro que a exigência deconhecimento intelectual se torna necessidade geral.Conseqüentemente, a partir da época moderna, o conhecimento sistemático - aexpressão letrada, a expressão escrita se generaliza dadas as condições da vidana cidade. Eis porque é na sociedade burguesa que se vai colocar a exigência deuniversalização da escola básica. Há um conjunto de conhecimentos básicos queenvolvem o domínio dos Códigos escritos, que se tornam importantes paratodos.Com o advento desse tipo de sociedade, vamos constatar que a forma escolar daEducação se generaliza e se toma dominante. Assim, se até o final da IdadeMédia a forma escolar era parcial, secundária, não generalizada, quer dizer, eradeterminada pela forma não escolar, a partir da época moderna ela se generalizae passa a ser a forma dominante, à luz da qual são aferidas as demais.E é esta a situação em que nos encontramos hoje. Por isso é que, hoje em dia,vivemos uma situação um tanto paradoxal, do ponto de vista escolar. De umlado, a escola é secundarizada; afirma-se que não é só através dela que se educa;

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educa-se através de múltiplas formas, através de outras instituições, como ospartidos, os sindicatos, associações de bairros, associações religiosas, através derelações informais, da convivência, dos meios de comunicação de massa - istoé, do cinema, do rádio, da televisão. Portanto, há múltiplas formas de Educação,entre as quais se situa a escolar. Segundo essa tend8nc~a, a escola não é a 5nicae nem mesmo a principal forma de educar; há, inclusive, aqueles queconsideram a escola negativa, do ponto de vista educacional, o que foiformulado explicitamente pela proposta de desescolarização, cujo principalmentor foi Ivan Illich. De acordo com esta proposta, a escola não apenas édesnecessária e prescindível, como até prejudicial. Portanto, o que de99

melhor a sociedade pode fazer é se livrar das escolas; é um peso inútil. Mais doque inútil, a escola é considerada nociva. Ora, esta visão na sua radicalidade, noseu extremo, tal como formulada por Illich, está um pouco atenuada, está emrefluxo. Mas de qualquer modo, ainda existe hoje, difundido, um sentimento desecundarização da escola. Isso, de um lado. Mas, de outro lado,contraditoriamente nós assistimos a uma hipertrofia da escola.A escola é também, na situação atual, hipertrofiada tanto vertical comohorizontalmente. Em sentido vertical, há não apenas a tendência a ampliar otempo de escolaridade do 2-' grau para a universidade, da graduação para a pós-graduação e assim por diante, como também a ampliá-la, antecipando seu início.Daí a reivindicação mais ou menos generalizada de educação escolar para a faseanterior â idade propriamente escolar. A chamada educação pré-escolar oueducação infantil é requerida hoje não mais em termos de apenas um ou doisanos, correspondentes ao antigo curso pré-primário, mas desde o zero ano. Areivindicação está nas ruas e foi posta também para a Assembléia Constituinte.O Fórum das Entidades Educacionais em Defesa da Escola Pública aprovou odever do Estado de cuidar da educação das crianças desde zero ano de idade.Há, pois, uma tendência a hipertrofiar a escola, a ampliar a sua esfera de açãoeducativa, reduzindo os demais espaços. A própria família, em lugar de requererpara si a exclusividade da educação, na primeira infância, tende a exigir aeducação escolar desde a roais tenra idade; se possível, desde o nascimento.Além desta extensão vertical, há a extensão horizontal. Reclama-se a ampliaçãoda jornada escolar. Pretende-se que as crianças não fiquem apenas três horas pordia na escola mas sim seis, ou até oito horas. Em suma, reivindica-se a escola dejornada integral. Qual o significado dessa tendência?Essa hipertrofia da escola, de uma certa forma, coloca a seguinte questão: apartir da sociedade moderna, ainda vigente pelo menos no Ocidente, a formadominante de educação é a escolar. Isso é tão claro que é difícil pensarmos emeducação sem a escola.A educação escolar é simplesmente a educação; já as outras modalidades sãosempre definidas pela via negativa. Referimo-nos a elas através dedenominações como educação não100

escolar, não-formal, informal, extra-escolar. Portanto, a referência de análise,isto é, o parâmetro para se considerar as outras modalidades de educação, é aprópria educação escolar. Esta é a situação com a qual nos defrontamos hoje. Énesse quadro e a partir dessas bases históricas que o que chamamos dePedagogia Histórico-Crítica se empenha na defesa da especificidade da escola.Em ou Vos termos a escola tem uma função específica educativa, propriamentepedagógica, ligada à 9uestão do conhecimento; é preciso pois, resgatar aimportância da escola e reorganizar o trabalho educativo, levando em conta oproblema do saber sistematizado, a partir do qual se define a especificidade daeducação escolar. A Pedagogia Histórico-Crítica entende que a tendência asecundarizar a escola traduz o caráter contraditório que atravessa a Educação, apartir da contradição da própria sociedade. À medida que estamos ainda numasociedade de classes com interesses opostos e que a instrução generalizada dapopulação contraria os interesses de estratificação de classes, ocorre estatentativa de desvalorização da escola, cujo objetivo é reduzir o seu impacto emrelação às exigências de transformação da própria sociedade. Esta é umacaracterística que está presente na sociedade burguesa desde a sua constituição,mas que assume características marcantes na fase final, ou seja, no momento emque se acirram as contradições entre o avanço sem precedentes das forças

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produtivas e as relações de produção baseadas na propriedade privada e,portanto, na oposição de classes. Conforme se acirra a contradição entre aapropriação privada dos meios de produção e a socialização do trabalhorealizada peta própria sociedade capitalista, o desenvolvimento das forçasprodutivas passa a exigir a socialização dos meios de produção, o que implica asuperação da sociedade capitalista. Com efeito, socializar os meios de produçãosignifica instaurar , uma sociedade socialista, com a conseqüente superação dadivisão em classes. Ora, considerando-se que o saber, que é o objeto específicodo trabalho escolar, é um meio de produção, ele também é atravessado por essacontradição. Consequentemente, a expansão da oferta de escolas consistentes demodo a atender a toda a população significa que o saber deixa de serpropriedade privada para ser socializado. Tal fenômeno entra em contradiçãocom os interesses atualmente dominantes. Daí a tendência101

a secundarizar a escola esvaziando-a de sua função específica que se liga àsocialização do saber elaborado, convertendo-a numa agência de assistênciasocial, destinada a atenuar as contradições da sociedade capitalista. No limite,como já foi assinalado, esses mecanismos se expressam na proposta da"desescolarização" que significa a negação cabal da própria escola. Eis porquecritiquei essa proposta, desde o seu surgimento, considerando que ela provémd~ já escolarizados, os quais já se beneficiaram daquilo que a escola poderiaoferecer e, portanto, não serão atingidos pela desescolarização. Cumpreassinalar que o problema em pauta já aparecia nos inícios da sociedade bur-guesa, pelo menos num vetor dessa sociedade representado pela economiapolítica. Os economistas tinham clara consciência, de um lado, da necessidadede se generalizar a escola e, de outro, que essa generalização tinha que serlimitada à escola básica. Este é o sentido da famosa frase de Adam Smith, muitorepetida, em que ele admitia a instrução intelectual para os trabalhadores, masacrescentava: "porém, em doses homeopáticas". Quer dizer, os trabalhadorestêm que ter instrução, mas apenas aquele mínimo necessário para participaremdessa sociedade, isto é, da sociedade moderna baseada na indústria e na cidade,a fim de se inserirem no processo de produção, concorrendo para o seudesenvolvimento. Ora, na sociedade capitalista, desenvolvimento produtivosignifica geração de excedentes, isto é, trabalho que, por gerar mais-valia,amplia o capital. Isso era nítido entre os economistas políticos.Os ideólogos da burguesia colocavam a necessidade de educação de forma maisgeral e, nesse sentido, cumpriam o papel de hegemonia, ou seja, de articulartoda a sociedade em torno dos interesses dominantes. Enquanto a burguesia erarevolucionária, isso fazia sentido; quando ela se consolidou no poder a questãoprincipal não era superar a velha ordem, o Antigo Regime. Este, com efeito, jáfora superado e a burguesia, em conseqüência, já consolidava o seu poder; nessemomento, o problema principal da 6urguesia passa a ser evitar as ameaças eneutralizar as pressões para que se avance no processo revolucionário e sechegue a uma sociedade socialista. A burguesia, então, se torna conservadora epassa a ter dificuldades ao lidar com o problema da escola, pois a verdade ésempre revolucionária. Enquanto a burguesia era revolucionária e1a tinha in102

interesse na verdade. Quando passa a ser conservadora, a verdade então aincomoda, choca-se com os seus interesses. Isto ocorre porque a verdadehistórica evidencia a necessidade das transformações, as quais, para a classedominante - uma vez consolidada no poder - não são interessantes; ela teminteresse na perpetuação da ordem existente. A ambigüidade que atravessa aquestão escolar hoje é marcada por essa situação social. E a clareza disso é quetraduz o sentido crítico da Pedagogia. Com efeito, a Pedagogia Crítica implica aclareza dos determinantes sociais da educação, a compreensão do grau em queas contradições da sociedade marcam a educação e, consequentemente, como épreciso se posicionar diante dessas contradições e desenredar a educação dasvisões ambíguas, para perceber Claramente qual é a direção que cabe imprimir àquestão educacional. Aí está o sentido fundamental do que chamamos dePedagogia Histórico-Crítica. Nesse quadro, tenho insistido em alguns pontosque, de certo modo, poderiam ser chamados de óbvios. No entanto, é precisoinsistir porque eles acabam sendo obscurecidos. Por exemplo, que a escolabásica é importante para todos, que a alfabetização deve ser acessível a todos é

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o óbvio. No entanto, isso fica obscurecido por toda uma série de tergiversaçõesas quais servem para retardar a consecução desse objetivo, contemporizar e,nesse sentido, prolongar as desigualdades vigentes. Nesse sentido, tenho sidocrítico dos chamados modismos na educação, porque aparecem como algomuito avançado mas, na verdade, apenas obscurecem questões até certo pontoóbvias, que não podiam ser perdidas de vista e que dizem respeito ao trabalhoescolar. Eis porque em um de meus textos(2) enunciei a distinção entre otradicional e o clássico. Tradicional é o que se refere ao passado, ao arcaico,ultrapassado. Nesse sentido, nós temos que combater a pedagogia tradicional ereconhecer a validade de algumas das críticas que a Escola Nova formulou àpedagogia tradicional. No entanto, isto não pode obscurecer um elementoclássico na educação, pois este não se confunde com o tradicional. Clássico éaquilo que resistiu ao tempo, logo sua validade extrapola o momento em que elefoi proposto. E por isso que a cultura greco-romana é considerada2. Dermeval Saviani. "O ensino básico e o processo de democratização dasociedade brasileira." ANDE, 07: 9-13, 1984.103

clássica embora tenha sido produzida na Antigüidade, mantém-se válida,mesmo para as épocas posteriores. De fato, ainda hoje reconhecemos evalorizamos elementos que foram elaborados naquela época. É neste sentidoque se considera Descartes um clássico da Filosofia moderna. Aqui o clássiconão se identifica com o antigo, porque um moderno é também considerado umclássico. Dostoievski, por exemplo - segundo a periodização dos manuais deHistória, um autor contemporâneo - é tido como um clássico da literaturauniversal. Da mesma forma, diz-se que Machado de Assis é um clássico daliteratura brasileira, apesar de o Brasil ser mais recente até mesmo que a IdadeMédia, quanto mais que a Antigüidade. Então, o clássico não se confunde com otradicional, razão pela qual tenho procurado chamar a atenção para certascaracterísticas, certas funções clássicas da escola que não podem ser perdidas devista porque, do contrário, acabamos invertendo o sentido da escola econsiderando questões secundárias e acidentais como sendo principais,passando para o plano secundário aspectos principais da escolaExemplo disso são as comemorações nas escolas, que se espalhavam por todo oano letivo, tais como a Semana da Revolução, Festa das Mães; Semana Santa,as Festas Juninas, Semana do Índio, Semana do Folclore, Semana da Pátria,Jogos da Primavera, Semana da Árvore, Semana da Criança, Semana da Asa.Ao final do ano letivo, após todas estas atividades comemorativas, fica aquestão: as crianças foram alfabetizadas? Aprenderam Português? AprenderamMatemática? Ciências Naturais, História, Geografia? Ora, estes são oselementos clássicos do currículo escolar, tão clássicos que ninguém contesta. Àsvezes se contesta a forma: será que se deve alfabetizar assim ou seria melhor deoutra forma? Mas alguém ousaria afirmar que a escola não deve alfabetizar? Noentanto, esses elementos acabam sendo secundarizados, diluídos numaconcepção difusa de currículo. Afirma-se que tudo o que a escola faz,importante ou não, válido ou não, é currículo. Para evitar esse tipo de equívoco,propus(3) a recuperação da distinção entre curricular e extra-curricular. Dessaforma, reserva-se para o termo currículo as atividades essenciais que a escolanão pode deixar de3. Dermeval Saviani, op. cit.104

desenvolver, sob pena de se descaracterizar, de perder a sua especificidade. Asdemais atividades, tais como es comemorações antes mencionadas, não sendoessenciais, definem-se como extra-curriculares. Nessa condição elas só fazemsentido na medida em que possam enriquecer as atividades curriculares, não de-vendo, em hipótese alguma, prejudicá-las ou substituí-las.Creio ter apresentado o significado fundamental da Pedagogia Histórico-Crítica.Trata-se de uma concepção que, como o nome indica, procura se firmar sobreuma base histórica e hìstoricì2ante. Em texto recente4 observo que Marx, aoanalisar a problemática histórica; chegou à conclusão que é a partir do maisdesenvolvido que se compreende o menos desenvolvido. Por isso ele afirmouque é possível compreender o capital sem a renda da terra mas não é possívelcompreender a renda da terra sem o capital, uma vez que na sociedade modernaa renda da terra é determinada pelo capital. Ora, na sociedade atual pode-se

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perceber que já não é possível compreender a educação sem a escola porque aescola é a forma dominante e principal de educação. Assim, para secompreender as diferentes modalidades de educação, exige-se a compreensão daescola. Em contrapartida, a escola pode ser compreendida independentementedas demais modalidades de educação.Com reflexões e análises do tipo das apresentadas nesta palestra, procuramosfundar e objetivar historicamente a compreensão da questão escola, a defesa daespecificidade da escola e a importância do trabalho escolar como elementonecessário ao desenvolvimento cultural, que concorre pua o desenvolvimentohumano em geral. A escola é, pois, compreendida a partir do desenvolvimentohistórico da sociedade; assim compreendida, torna-se possível a sua articulaçãocom a superação da sociedade vigente em direção a uma sociedade sem classes,a uma sociedade socialista. É dessa forma que se articula a concepção PolíticaSocialista com a concepção Pedagógica Hístórico-Crítica, ambas fundadas nomesmo conceito geral de realidade, que envolve a compreensão da realidadehumana como sendo construída pelos próprias homens, a partir do processo detrabalho, quer dizer, da produção das condições materiais ao longo do tempo.4. Dermeval Saviani, "Contribuição à elaboração da nova L.D.B.: um início deconversa". ANDE, n.º 13, 1988.105

Apêndice

Prefácio à 20ª edição deEscola e Democracia

A primeira edição de Escola e Democracia data de setembro de 1983. Portanto,em pouco mais de quatro anos se esgotaram 19 edições, cada uma delas comtiragem de 5.000 exemplares. A acolhida vem sendo, pois, calorosa, chegandomesmo alguns leitores a revelar grande entusiasmo por esse trabalho.A par da grande acolhida (e talvez mesmo por causa dela), surgiram tambémalgumas críticas, Obviamente, a obra não está isenta de limitações e defeitos. Ajulgar pelos depoimentos dos leitores, o reconhecimento de limitações nãoobscurece os méritos que o trabalho contém.Assim, o primeiro texto, se não esgota a temática que aborda, constitui umasíntese clara e didática das principais teorias da educação, o que tem sidosobremaneira útil aos educadores ajudando-os na compreensão de sua prática epermitindo-lhes situarem-se mais claramente no universo pedagógico. Ospróprios críticos têm se beneficiado dessa síntese já que nela se apóiam, o queimplica um endosso da classificação e análise das teorias pedagógicas aíapresentadas.O segundo texto tem um caráter preparatório para a teoria crítica da educaçãoque fora apenas anunciada no texto anterior e cujo esboço é objeto da exposiçãoefetuada no terceiro texto. Trata-se de uma abordagem centrada mais no aspectopolêmico do que no aspecto gnosiológico. Por isso, mutatis mutandis, vale paraele a observação feita por Gramsci a propósito da critica de Croce à concepçãomarxista de "superestrutura ideológica": "Quando, por razões `políticas',práticas, para tornar um grupo social independente da hegemonia de um outrogrupo, fala-se de `ilusão', como é possível - de boa-fé - confundir umalinguagem polêmica com um princípio gnosiológico?"106

(Gramsci, 1978: 261). A par dos limites ligados ao caráter polêmico, aexposição contém também defeitos de estilo derivados do fato de ser transcriçãodireta de uma fala não baseada em texto escrito. Daí o tom oral de que estáimpregnada O mérito do texto é antes heurístico do que analítico. Não se tratade uma exposição exaustiva e sistemática, mas da indicação de caminhos para acrítica do existente e para a descoberta da verdade histórica. O leitor encontra aíum estímulo para um ajuste de contas consigo mesmo ante as tendênciaspedagógicas com as quais tem se envolvido.de se- Se na polêmica avulta a questão da Escola Nova, isto não se es- deveinduzir a equívocos. Escola e Democracia não é um livro contra a Escola Novaenquanto tal. É, antes, um livro contra a pedagogia liberal burguesa. Por isso, enganam-se aqueles que imaginam que;por efetuar a crítica à Escola Nova, o autor estaria de algum modo reabilitando a

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pedagogia burguesa. Ora, não se nega à Escola Nova o seu caráter progressista em relação à EscolaTradicional. Aliás, isso está formalmente explícito no terceiro texto. Entretanto,enquanto proposta burguesa, a Escola Nova articula em torno dos interesses daburguesia os elementos progressistas que, obviamente, não são intrinsecamenteburgueses. E dessa forma que a burguesia trava a luta pela hegemoniaprocurando subordinar aos seus interesses os interesses das demais classes. Doponto de vista do proletariado a luta do hegemônica implica o processo inverso:"Trata-se de desarticular dos interesses dominantes aqueles elementos que estãoarticulados em torno deles, mas não são inerentes à ideologia dominante arearticulá-los em torno dos interesses dominados" (Saviani, 1980: 10-11).Dessa forma, a denúncia da Escola Nova é apenas uma estratégia visando ademarcar mais precisamente o âmbito da pedagogia burguesa de inspiraçãoliberal e o âmbito da pedagogia socialista de inspiração marxista. Aliás, não foioutro o comportamento do próprio Marx que, em 1848, ao se engajar na lutapolítica dos trabalhadores na Alemanha não se negou a participar doMovimento Democrático sob a condição, porém, de deixar sempre explícita adiferença entre a perspectiva proletária e aquela dos burgueses e pequeno-burgueses progressistas (cf. Fedosseiev et alii, 1983: 190). De minha parte,tenho procurado sistematicamente estabelecer esta diferenciação como107

pode ser comprovado de forma recorrente em meus diferentes trabalhos. Dentreeles, cito como exemplo o texto "A defesa da escola pública" que deveriaintegrar "Escola e Democracia', o que não ocorreu por falta de espaço - e esta éoutra limitação da obra. No referido texto me empenho em demarcar aperspectiva burguesa da perspectiva socialista, explicitando os limites daconcepção liberal na defesa da escola pública e registrando como o própriomovimento popular acabou por cair na armadilha da "ilusão liberal" (Saviani,1984: 10-25).É esse e não outro o sentido que assume no livro a crítica à Escola Nova. Nessecontexto chegam a soar um tanto deslocadas as abordagens que, provocadas poresse trabalho, pretendem reabilitar a Escola Nova a partir da perspectivaproletária.Demarcadas as perspectivas, feita a crítica da visão liberal burguesa, oselementos progressistas desarticulados da concepção dominante são, no terceirotexto, articulados no âmbito da perspectiva pedagógica correspondente aosinteresses da classe trabalhadora Ainda que não se tenha podido explorar eaprofundar suas diversas implicações, avança-se aí decididamente naformulação de uma nova teoria crítica (não-reprodutivista) da educação a qual,como foi assinalado no final do primeiro texto, só pode ser formulada do pontode vista dos interesses dominados (cf. p. 41).O último texto, "Onze teses sobre educação e política", procura situar o debatepedagógico muito além dos acanhados limites geralmente marcados pelarepetição de slogans esvaziados de conteúdo. Com efeito, sem perder de vista arealidade concreta da sociedade de classes, projetou-se a reflexão para ohorizonte de possibilidades, isto é, para o momento da passagem do reino danecessidade ao reino da liberdade, o momento da constituição da sociedade semclasses, momento catártico por excelência em que toda a sociedade humana sereencontra consigo mesma. A alguns leitores parece ter escapado tal intento,talvez em razão do caráter lapidar das teses formuladas e da economia dasexplicações apresentadas (seria este outro defeito do livro?). A questão do"desaparecimento do Estado" permite ilustrar esse ponto. No texto afirmo:"Sabe-se que não se trata de destruir o Estado; ele simplesmente desaparecerápor não ser mais necessário" (cf. p. 96). Obviamente, o contexto a( é o dapassagem do reino da necessidade ao reino da liberdade, por108

tanto, a passagem do socialismo ao comunismo que significa o advento dasociedade sem classes. Conseqüentemente, o Estado que fora utilizado peloproletariado como instrumento de transição para a sociedade sem classes, ao seresta consolidada, perde a razão de ser e desaparece.Que dizer então da interpretação que considera a colocação supra comoindicadora de que o Estado burguês não é destruído mas consente no seudesaparecimento? Antes de qualquer outra consideração, cabe registrar que tal

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interpretação não corresponde ao que foi registrado no texto. Com efeito, lá estáescrito: "sabe-se que não se trata de destruir o Estado"; e não: "sabe-se que nãose trata de destruir o Estado burguês". Nesse ponto da reflexão supõe-se jásuperada a sociedade burguesa. Ora, a revolução socialista (proletária) nãodestrói o Estado em si mesmo. Ao conquistar o poder, o proletariado através domesmo ato revolucionário, destitui (destrói) o Estado burguês e constitui oEstado proletário. Como falar, nessa nova situação, de destruição do Estado?Quem destruirá o Estado proletário? Não será uma outra classe, pois com a con-quista do poder pelo proletariado, que é a classe cujo domínio consiste nasuperação das classes, já não há outra classe que a ele se possa contrapor comohistoricamente progressista. Seria, então o próprio proletariado? Na verdade,não se trata já da destruição do Estado. Uma vez cumprido o papel deinstrumento coercitivo para inviabilizar as tentativas de restauração do poderburguês, o Estado (sociedade política), não sendo mais necessário, desapareceráA concepção acima exposta é encontrada reiterativamente nos escritos de Marx,resultando, assim, um contra-senso invocar esse autor para desautorizar a linhade reflexão por mim desenvolvida (cf. Marx, s. d.: 38; Marx, 1974: 80 e 90;Marx, 1968: 47-8; Marx 1984: 62-8). Para economia deste prefácio, cito apenaso final de A miséria da filosofia: "Somente numa ordem de coisas em que nãoexistem mais classes e antagonismos entre classes as evoluções sociais deixarãode ser revoluções políticas" (Marx, 1985: 160). O mesmo se diga de Gramsci:"O fim do Estado sublinhado por Marx e Lênin é concebido por Gramsci comoa absorção, pela sociedade civil, da sociedade política que, numa sociedade semclasses, está voltada à extinção na proporção e na medida em que seharmonizam os109

interesses do proletariado e os interesses do conjunto do corpo social" (Grisoni& Maggiori, 1973: 177-8). Nas palavras do próprio Gramsci: "A classeburguesa está `saturada'; não só não se amplia, mas se desagrega; não sóassimila novos elementos, mas desassimila uma parte de si mesma (ou, pelomenos, as desassimilações são muitíssimo mais numerosas do que as assimi-lações). Uma classe que se considere capaz de assimilar toda a sociedade, e aomesmo tempo seja realmente capaz de exprimir este processo, leva à perfeiçãoesta concepção do Estado e do direito, de tal modo a conceber o fim do Estado edo direito, em virtude de terem eles completado a sua missão e de terem sidoabsorvidos pela Sociedade Civil" (Gramsci, 1976: 147). E, mais adiante: "Oelemento Estado-coerção pode ser imaginado em processo de desaparecimento,à medida que se afirmam elementos cada vez mais conspícuos de sociedaderegulada (ou Estado ético ou sociedade civil)" (Gramsci, 1976: 149):Para a 20ª edição foi feita uma revisão de todo o trabalho corrigindo-se algumasfalhas de impressão ao mesmo tempo em que se procurou minorar os defeitosde estilo do segundo texto.Agradecendo a confiança dos leitores espero que os esclarecimentos desteprefácio os ajudem a melhor compreender as posições assumidas pelo autor. Oscomentários feitos tiveram apenas essa intenção, não cabendo, pois, interpretá-los como resposta 'as objeções dos críticos. Pelo respeito que merecem oscolegas que valorizaram este trabalho com suas apreciações, cabe considerá-lasuma a uma de forma detida. Como não é possível fazer isso num simplesprefácio, tais considerações são remetidas para outro momento e outro lugar.

São Sepé (RS), 26 de janeiro de 1988

O Autor

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