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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
PENSANDO A DEMOCRACIA: HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO FEMINISMO LATINO-
AMERICANO DOS ANOS DE 1990
Gleidiane de Sousa Ferreira1
Resumo: Este trabalho objetiva discutir a noção de “democracia” a partir dos debates feministas
latino-americanos, especialmente na transição e consolidação democrática no Cone Sul. Parto da
ideia de que a democracia, mais que um marco político datado, é um princípio de múltiplas
interpretações na sociedade. Desse modo, ao problematizar se e como aparece a noção de
democracia em algumas memórias feministas dos anos de 1990 busco apresentar alguns embates
centrais construídos nos espaços de articulação continental dos feminismos na América Latina ao
longo dessa década, refletindo sobre o potencial dessas fontes para uma compreensão histórica
desse processo. Parto de um relato de pesquisa recente, que tem como base as publicações das
memórias dos Encontros Feministas Latino-americanos e Caribenhos (1993-66) e que indaga as
discussões sobre estratégias e táticas feministas desse contexto. No trabalho propõe-se refletir as
seguintes questões: como os feminismos debateram as noções de democracia nesse momento?
Como o debate sobre autonomia feminista pode ou não se relacionar com a noção de democracia
nesse período?
Palavras-chave: Feminismo. Democracia. América Latina. Autonomia. Institucionalização.
Relato de pesquisa e objetivos do texto
Esse texto surge como fruto de uma pesquisa histórica em andamento, e que tem os
feminismos latino-americanos como uma referência contextual e não como um tema de pesquisa.2
A partir de algumas experiências de investigação documental e bibliográfica sobre o tema, pude
conhecer alguns dos debates desenvolvidos nos últimos trinta anos no continente e que foram
marcados por reflexões e avaliações das estratégias e táticas políticas adotadas pelas diversas
expressões do feminismo na região. É importante dizer que essa pesquisa se deu de um modo
extremamente pessoal e afetivo, pois ela me possibilitou conhecer uma série de autoras, textos e
questões que até então eu desconhecia, salvo poucas e resumidas leituras que fiz ao longo das
disciplinas cursadas no doutorado. Essas experiências foram marcantes no sentido de que
extrapolaram a relação de pesquisa acadêmica, mas me trouxeram interessantes momentos de
1 Doutoranda em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Florianópolis - Santa Catarina,
Brasil. (Bolsista Capes). 2 Atualmente desenvolvo uma pesquisa que problematiza o feminismo da organização Mujeres Creando na Bolívia.
Através da atuação desse grupo ao longo dos últimos vinte e cinco anos (1992-atual) nesse país e no continente conheci
alguns temas e discussões que foram intensos no movimento feminista nessa periodização. Nesse sentido, o desafio de
entender um pouco mais sobre os feminismos que desenvolveram suas lutas na América Latina se deu na tentativa de
melhor entender e situar os temas e processos que fazem parte da contextualização da tese.
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formação e de amadurecimento, não somente como alguém que pesquisa feminismo, mas também,
como uma feminista em contínua formação.
Explorar um pouco mais algumas das manifestações, dos espaços de encontro e
desenvolvimento de ideias feministas, de debates e tensões do feminismo latino americano recente,
me possibilitou diferentes etapas de compreensão sobre o que significa ser feminista nesse espaço-
tempo, seus desafios, e, principalmente, sobre a forma como conhecer essas histórias são
fundamentais na formação política de pessoas que assim como eu desenvolvem pesquisa e ação
feminista. Conhecer a diversidade de interpretações advindas desses feminismos e os processos
políticos vividos no continente nos últimos anos nos convida constantemente a pensar sobre as
continuidades e as rupturas políticas vivenciadas até então, e acima do tudo, e exatamente por isso,
a pensar nossos fazeres feministas na atualidade.
Nesse sentido, no primeiro ponto deste texto busco trazer essa dimensão de proximidade
com o tema, ressaltando a maneira como se deu o processo de familiaridade com o que podemos
chamar de “feminismo latino-americano”. Aqui entendo como “feminismo latino-americano”, as
pessoas, os grupos e as organizações que se reivindicaram e reivindicam enquanto tal, ou que
tomam esse espaço um marco importante nas suas análises críticas, e/ou participam/participaram de
espaços de articulação continental, como por exemplo, os Encontros Latino Americano e do Caribe
(EFLAC).
É importante considerar também que a bibliografia sobre o período e os temas que marcam
esses processos de luta feminista recente é extensa e diversa. A partir das leituras iniciais que
realizei, pude perceber que muitas dessas bibliografias possuem algumas características
interessantes. Uma parte considerável é produzida como fruto de construções, sistematizações e
teorizações individuais e/ou coletivas, especialmente entre pesquisadoras e ativistas que
geracionalmente atuaram nas últimas décadas, muitas delas participando ativamente das lutas e dos
debates que marcaram os espaços feministas.3 Cada uma delas, e muitas outras que não pude ler ou
que ainda não tive contato, contribuiu e de alguma maneira esteve implicada politicamente nesses
processos. Algumas vezes convergindo, e em muitos aspectos se diferenciando nas análises e
avaliações, muitas dessas produções expressam a diversidade regional, teórica e de experiências das
que as produziram.
3 Para citar alguns nomes, Yuderkis Espinosa-Miñoso, Virginia Vargas, Margarita Pisano, Ximena Bedregal, Edda
Gabiola, Julieta Kirkwood, algumas integrantes atuais ou antigas do grupo Mujeres Creando, como Julieta Paredes e
María Galindo, são alguns exemplos dentre as muitas pensadoras que aportaram reflexões sobre os processos recentes
vividos pelas lutas feministas dentro e fora da academia.
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Nesse sentido, o contato com essas bibliografias e documentos4 me fez construir algumas
considerações sobre as complexidades de se fazer história do tempo presente, e também, sobre
como os debates que emergem dessas fontes podem nos ajudar como feministas, especialmente
mais jovens, no entendimento e na reflexão crítica sobre a historicidade de nossas ideias. Percebi
que esse contato foi se dando a partir do que poderia chamar de “duas camadas de afeto”. A
primeira, porque é marcada pelos afetos de quem produziu essas bibliografias e documentos, suas
posições políticas, ideológicas e o contexto de sua produção, considerando que muitas delas atuam
no movimento feminista até os dias de hoje. E o “segunda camada” são os meus próprios afetos,
marcados pela vontade de “entender se entendendo” os processos recentes de ação feminista latino-
americana e que também interferem nas leituras, nos caminhos de pesquisa e nas observações que
se sobressaem através da minha subjetividade.
A partir dessa pesquisa pude perceber a amplitude e a relevância do conteúdo desses
debates para pensar histórias do feminismo latino americano; mas também, observei que elas trazem
muitos elementos para a compreensão de processos políticos, econômicos e sociais da história
recente da região. É essa questão que gostaria de comentar um pouco mais no próximo ponto.
As fontes e seus potenciais para a construção de narrativas históricas
Ao longo desse processo de pesquisa, que resultou num primeiro contato com documentos
de memórias dos encontros feministas latino-americanos e de outros encontros feministas que
aconteceram em vários países da região tematizando as demandas específicas das mulheres, foi
possível observar a potencialidade desses registros documentais para a produção de leituras
históricas sobre diferentes temas que marcaram as últimas décadas da América Latina. Essa
potência não se dá somente na construção dessas leituras no que se refere aos feminismos latino-
americanos em si, mas também na consideração de que a partir desses registros podemos indagar e
questionar processos, marcos, acontecimentos, escalas, conceitos, categorias, dentre vários outros
tópicos que envolvem abordar a história recente latino americana.5
4 Os documentos a que me refiro são especialmente as memórias produzidas sobre cada Encontro Feminista Latino
Americano e Caribenho – EFLAC, com destaque para os que aconteceram ao longo da década de noventa. Eu tive a
oportunidade de ter contato com essa documentação a partir das pesquisas que fiz na Biblioteca Rosario Castellanos,
vinculada ao Centro de Investigaciones y Estudios de Género – CIEG, da Universidad Nacional Autónoma de México,
durante o período de estancia acadêmica nesse centro, e de doutorado sanduíche (PDSE-Capes) finalizados em junho de
2017. 5 Esse tipo de abordagem é de alguma maneira o que propõem as pesquisas coletivas realizadas pelo Laboratório de
Estudos de Gênero e História (LEGH) da UFSC, sob a coordenação das professoras Joana Maria Pedro e Cristina
Sheibbe Wolff. De um modo geral, as pesquisas desenvolvidas há alguns anos e vinculadas a seus projetos,
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Essa potencialidade não é exatamente nova, ela se refere à importância já registrada e
debatida pelas contribuições teóricas da história das mulheres, de pensar os diferentes processos
sociais a partir de fontes que nos permitam conhecer as vivências e as leituras realizadas pelas
mulheres sobre eles; com destaque aqui para as experiências que advém das mulheres militantes,
dentro ou não do movimento feminista.6
No caso das bibliografias e documentos que registram as vivências dentro da articulação
feminista continental, essa questão aparece de modo interessante visto que elas se referem direta ou
indiretamente (geralmente de modo direto e articulado) aos momentos políticos, econômicos,
sociais e culturais que marcaram o continente, dando a conhecer também as especificidades de cada
país e das sub-regiões. Os governos em turno, os diagnósticos socioeconômicos, os aspectos
culturais apresentados como desafios aos feminismos de cada país, os antifeminismos, as lutas e
pautas priorizadas em dado momento, as articulações entre movimento de mulheres e movimento
feminista, os conflitos e a pluralidade dos feminismos são algumas das temáticas que aparecem nas
memórias e que podem ser abordadas a partir de pontos de vistas históricos.
Pensar esses registros, em especial os que se apresentam como uma sistematização das
pautas dos encontros e articulações feministas do/no continente, é interessante, também, para uma
releitura de processos sociais que fizeram parte das vivências nos últimos anos, como a transição e a
consolidação dos governos democráticos, as novas conformações da esquerda, a elaboração de
novos caminhos identitários para as mulheres, a circulação de ideias feministas, os projetos
alternativos ou não de organização social, dentre muitos outros temas que também são potentes para
dar historicidade às ideias e às lutas dos feminismos da região e suas intervenções nesses mesmos
processos.
No que se refere à própria diversidade do que estou chamando de feminismo latino-
americano, esses documentos são fundamentais numa compreensão mais “palpável” da diversidade
dos feminismos que compuseram diferentes momentos da região. É muito interessante conhecer as
escritas e as memórias de mulheres, algumas delas relativamente conhecidas, que colaboraram com
ideias e ações no feminismo do continente, mas que até então eu não tinha tido a oportunidade de
ler e que estavam distantes da minha formação como feminista.
possibilitam, através de uma leitura teórica que dialoga com a história das mulheres e suas experiências, outros olhares
sobre as ditaduras militares no Brasil e nos demais países no Cone Sul. 6 Aqui me refiro a “mulheres”, considerando que de alguma maneira esse é o sujeito político que aparece de maneira
majoritária nessas memórias. De nenhum modo pretende-se demarcar que esse seria um sujeito exclusivo do
movimento feminista. Entendo que recuperar a própria historicidade identitária é um dos elementos que podem ser
observados processualmente na história recente do movimento, trazendo aportes situados de como novas e antigas
assunções aparecem nas lutas continentais.
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Foi através desse percurso que cheguei ao tema da autonomia, que de modo particular,
pelas minhas próprias experiências de luta sempre foi central, visto que boa parte da minha
formação está marcada pela leitura de mulheres anarquistas e libertárias, em que os temas da
autonomia e da autogestão são historicamente problematizados. Embora eu compreenda a
autonomia de modo geral como uma independência das instituições mais tradicionais de
participação política, como os partidos políticos e as instituições vinculadas às instâncias de
governos nacionais e internacionais, a leitura e a familiarização com essas memórias me fez dar
mais historicidade ao termo7, além de me possibilitar entender a sua importância para a compressão
do que é considerado ou não democrático nesse momento. No ponto seguinte comentarei um pouco
mais essa questão.
Algumas reflexões sobre democracia a partir do debate da autonomia feminista
Como sinalizado no resumo, retomo que o objetivo desse texto é inicialmente pensar como a
noção de democracia apareceu em questão e em clima de disputa nos debates feministas desse
momento. Buscar entender a circulação dessa noção significa investigar algumas das discussões
centrais que fizeram parte da organização desses feminismos. Não pretendo realizar uma análise
pormenorizada sobre a questão, que por motivos de tamanho e conhecimento acumulado seriam
impossíveis neste momento, visto que são muitas as temáticas, os documentos e as bibliografias;
gostaria apenas de sinalizar algumas reflexões iniciais a partir da minha pesquisa.
Primeiramente, um dos temas principais que parecem fazer parte desse momento são os
possíveis diálogos e enfrentamentos entre as “tendências autônomas” e “institucionalizadas” do
feminismo latino americano. A complexa conformação de um debate sobre essas tendências8 parece
estar relacionada aos próprios processos de mudanças que estariam marcando os feminismos da
região. Vale lembrar que para o caso de muitos países latino americanos, especialmente do Cone
Sul, o fim dos anos de 1980 e a década de 1990 são períodos que marcam transições e
7 Esse é um termo que venho trabalhando como uma categoria de análise no que será a minha tese. 8 Estou usando a ideia de “tendência” ao invés de “corrente” porque entendo que os grupos e ativistas que colaboraram
com esses debates são muito diversos e de difícil delimitação. Definir de modo esquemático o que seria fazer feminismo
autônomo ou feminismo institucionalizado foi se mostrando algo cada vez mais impossível e qualquer tentativa de
definição só poderia ser realizada, a meu ver, a partir de estudos de caso e numa escala de análise mais cotidiana.
Algumas feministas que viveram esse momento inclusive rechaçaram a ideia de existência dessas tendências ou
correntes. Assim, a ideia de “corrente” poderia remeter a uma ação sistematizada tomando a autonomia como mote de
articulação, o que parece não ter existido e o que demandaria mais pesquisa sobre o tema. A autora Jules Falquet traz
bastante esse debate para as suas análises. Ver: FALQUET, 2014.
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consolidações de uma governabilidade democrática, e que, portanto, pensar a democracia, mesmo
que em diferentes chaves interpretativas, era um elemento quase obrigatório na experiência
organizativa de movimentos e organizações sociais desse período. Embora essa seja uma marca
principalmente dos feminismos dos anos de 1980, acredito que muitos elementos seguem como
desafios ao longo dos anos de 1990 e talvez até a atualidade.
Como muito já se escreveu sobre o tema, a década de 1990 é marcada por uma
intensificação das políticas neoliberais em todo o continente, o que reduziu drasticamente a
qualidade de vida dos grupos com maior vulnerabilidade e mais explorados nas nossas sociedades.
Ao mesmo tempo, esse foi um momento em que os debates feministas foram marcados pelo uso do
“gênero”, que ganhava mais espaço nas esferas tradicionais da política, isto é, nas políticas públicas
fomentadas pelo Estado, nas plataformas dos partidos políticos e nos acordos internacionais.9 Pode-
se dizer de um modo geral que essa tensão entre a visibilidade e o uso do gênero em tais
instituições, que foi crescentemente um conceito atrelado à governabilidade nas últimas décadas, e a
concomitante situação social e econômica de muitos dos países latino-americanos possibilitou certa
retomada do debate sobre o caráter da participação e da inclusão social das mulheres numa esfera
pública e legitimada socialmente.10
Nesse sentido, debater o tema da autonomia feminista trazia ponderações quanto às
inserções das pautas feministas nesse cenário social, econômico e político; retomando a importância
de se questionar o quão patriarcais poderiam ser as instituições tradicionais da democracia estatal,
como as governamentais voltadas para a administração pública e as partidárias. Nesse sentido, e a
partir da minha primeira aproximação com o tema, entendo que o debate sobre democracia, mesmo
que o termo não apareça mencionado diretamente como um conceito fundamental, aparece como
uma noção defendida em meio a várias categorias e termos que marcaram os questionamentos sobre
o fazer político do movimento feminista nesse momento, como, por exemplo, a autonomia.
É importante lembrar que a autonomia feminista foi tema debatido e explorado teoricamente
desde os anos de 1960-70. As relações entre as mulheres que assumiam o feminismo como
identidade política, as que atuavam em partidos políticos e/ou movimentos de esquerda, ou as que
faziam parte de organizações de mulheres que não se definiam feministas, geraram vários debates
9 Seria possível mencionar muitos dos acordos e conferências que trabalharam o tema nesse período, mas destaco aqui a
Conferência de Beijin de 1995, que suscitou antes e depois muitas das principais discussões sobre o uso do gênero e
sobre as políticas para as mulheres nesse momento. 10 Essa reflexão aparece em muitos textos dos feminismos que defendiam o tema da autonomia nesse momento. O
grupo Mujeres Creando, por exemplo, que venho estudando na minha tese doutoral, possui vários escritos que
problematizam criticamente as contradições dos usos dados ao termo nesse período.
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sobre o tema da autonomia nas últimas décadas. Os limites do diálogo entre as que buscavam uma
agenda, um compromisso e um pensamento próprio feminista, advindo da vida e da experiência das
mulheres, e aquelas que pensavam a sua emancipação como um tópico dentro de outras teorias
políticas, fez parte desse longo processo de debater a autonomia feminista dentro e fora da América
Latina. Um importante e conhecido texto que de algum modo resumiu esse tema foi o Feministas y
Políticas (1984) da chilena Julieta Kirkwood. Nele, a autora aponta para os vários “nudos” que
envolvem a tensão de construir, em termos de ideias e ações, os espaços feministas, especialmente
no contexto do Chile. Kirkwood explora de modo geral as dificuldades e as possibilidades entre o
diálogo entre as mulheres “feministas” e as mulheres “políticas”, isto é, entre aquelas que se
assumem como feministas e as que não assumem esse lugar, embora estas exerçam outras formas de
militância social e marquem presença nos espaços feministas. Ao tratar especificamente das
mulheres da esquerda, muitas das quais compartilhavam as ideias da “teoria do proletariado”,
Julieta Kirkwood se perguntava se:
Habría entonces y desde esta perspectiva, una postergación, por no usar aquello de
descalificación teórica y práctica, del ‘tema-mujer’ y de la ‘organización-mujer’
que permite, y que abre el camino para considerar, ‘mirar’, a las concentraciones de
mujeres, sean públicas o privadas, grandes o pequeñas, a la vez como vacío teórico
y como espacio/terreno apto para implementar la semilla política. Esta forma de
expresión de la participación militante no feminista en los espacios feministas
plantea a éstas últimas el dilema: ¿se está frente a una pura intromisión indebida o
frente a un expresado intento de diálogo? Y, ¿es posible este último si las ‘miradas’
ya están constituídas previamente? (KIRKWOOD, 1984, p. 18)
No trecho, o desafio de entender a importância, o caráter político e a legitimidade de uma
articulação feminista por parte dessas perspectivas é visto como um impasse constante na
articulação das lutas pela emancipação das mulheres. Julieta Kirkwood escreve na década de 1980 e
a questão do diálogo entre as principais tendências de organização das mulheres já era revisitada
dentro de uma perspectiva que buscava entendê-lo na sua historicidade mais recente. Mesmo não
levantando expressamente os conceitos de autonomia, a autora se questiona sobre a possibilidade de
produção de um conhecimento-ação feminista que de alguma maneira tivesse a capacidade de
romper com interpretações patriarcais e já dadas sobre a “situação das mulheres”, que
recorrentemente, segundo a autora, fazia com que a categoria “mulher” aparecesse subordinada a
outros tópicos prioritários e/ou interpretada a partir de temas reducionistas, como por exemplo,
família e maternidade.
Problematizando as máximas da época “Não há democracia sem feminismo” e “Não há
feminismo sem democracia” (KIRKWOOD, 1984, p.5-6), debatidas pelas “feministas” e as
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“políticas” respectivamente nesse momento, Julieta Kirkwood trazia uma reflexão que se
desenvolvia nos espaços feministas chilenos, mas que de alguma maneira podem ser percebidos em
vários outros países dentro e fora do continente americano, principalmente naqueles países em que
os temas feministas estiveram relacionados às lutas dos setores da esquerda, antiautoritárias e pela
democracia.
Enquanto que nas décadas anteriores o debate sobre autonomia feminista e democracia
social parecia estar marcado pelo questionamento sobre a participação “não autônoma” de mulheres
militantes de outros espaços e que às vezes subestimavam a organização e o pensamento próprio
feminista, ao longo da década de 1990 ele estará mais voltado para os grupos de mulheres e
feministas que lograrão certa inserção nas dinâmicas do poder oficial, sejam elas locais ou de
visibilidade internacional. Alguns dos encontros feministas latino-americanos e caribenhos ao longo
da década de 1990 foram intensos nesses debates.11
Como analisados e discutidos posteriormente por diversas ativistas e pesquisadoras
feministas ao longo dessa década, a formação de uma tendência autônoma do feminismo latino-
americano aparece na tentativa de retomar a reflexão sobre a autonomia do movimento entre as
muitas correntes e táticas que o conformavam naquele momento.12 Discutir esse conceito-princípio
do movimento parecia não estar mais voltado exclusivamente para aquelas pessoas e organizações
que apenas dialogavam com os espaços feministas (as “políticas” para Kirkwood), mas, talvez
principalmente, para muitas mulheres que atuavam no próprio movimento feminista.13
A partir do questionamento sobre táticas e estratégias políticas é possível sintetizar algumas
análises da tendência autônoma que existiu no feminismo continental, principalmente entre o
período do VI e VII EFLAC14, quando e onde se debateu de maneira mais intensa esse tema. A
autonomia feminista era retomada como ponto central a partir da interpelação de diversos grupos de
diferentes países que questionavam as possíveis inserções do movimento em espaços de poder. Ela
aparecia recorrentemente como fundamental para uma leitura crítica das novas configurações que
estavam sendo colocadas para o movimento feminista nesse período. Como questionava a boliviana
residente no México, Ximena Bedregal, no periódico La Correa Feminista:
11 Essa é uma questão que tenho trabalhado como contextualização dos debates que estou construindo na minha tese. 12 Como já citado anteriormente, reforço que Jules Falquet é uma pesquisadora que tem trabalhado com esses debates
dos feminismos latino-americanos. Para uma análise mais detalhada sobre essas tensões e sobre as proposições dessa
corrente autônoma, ver: (FALQUET, 2003; 2014). 13 Isso não quer dizer que os debates sobre a autonomia em relação às mulheres da esquerda, que possuam uma
militância em partidos políticos ou em outras organizações que poderiam interferir de maneira externa na proposição de
demandas para o movimento feminista tenha acabado. Esse novo foco do debate não aparece de modo “etapista”, mas
como uma forma contingente de discutir, retomar e avançar sobre a questão. 14 Que aconteceram em El Salvador e Chile respectivamente.
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Un enorme síndrome de moderación política atraviesa a nuestro movimiento.
Partes importantes del movimiento feminista buscan hoy una suerte de legitimidad.
Una aspiración a la respetabilidad dentro del orden establecido define los modos y
contenidos del trabajo feminista. Parece que se han olvidado las pistas que el
feminismo nos ha dado para entender las causas y devenires de la mayor crisis que
el modelo macrocultural patriarcal haya instalado nunca y se corre detrás de él para
salvarlo. Frecuentemente me parece que para esa corriente salvar al mundo es
sinónimo de salvar al sistema.
Si tiende hoy a creer que los logros obtenidos, sus éxitos – es decir nuestros
aprendizajes y su consecuente influencia en el medio – están ya en tiempos de
cosecha. El que más mujeres participen en los espacios laborales y públicos, el que
algunos varones y algunas de sus estructuras no puedan ya negar – por lo menos en
el discurso – la validez de la lucha de las mujeres, ha hecho que algunos aspectos
parciales de nuestra mirada resulten hasta útiles a sus estrategias de poder y, por lo
tanto, que dejen de ser polémicas. Esto parece gustarle a algunas mujeres, llegando
incluso a plantearlo como un objetivo que se muestra en búsqueda de demandas
‘respetables’ que deben ser planteadas en lenguajes suaves y aprehensibles por el
poder. Nuestra lucha que buscaba cambiar el mundo debe ahora mostrarse
aceptable y legítima dentro del orden establecido. (BEDREGAL, 1997, p. 55-56)
Assim como Ximena, muitas ativistas e grupos desse momento escreveram sobre o que seria
a tentativa de suavizar o discurso feminista como forma de inserção e diálogos com espaços de
poder. Em diversos documentos aparece registrada a tentativa de retomar e refletir alguns princípios
que seriam base da atuação política feminista, que rechaçam o que era visto como estratégias que
corroborariam com o poder patriarcal. Um dos principais exemplos desses documentos são as
próprias memórias dos EFLAC ao longo dos anos de 1990. Na relatoria do foro “Avances, nudos y
rectos del feminismo” do EFLAC de 1993, em El Salvador, a mesma feminista já compartilhava
suas reflexões sobre o tema. Problematizava:
Se levanta em América Latina, en general, la estratégia de empoderamiento de las
mujeres pero hay que aclarar qué significa desde el feminismo, la construcción de
poder y desde dónde construímos el poder.
Plantea como preguntas:
“¿Es posible ser coherente con los principios feministas y a la vez hacer que sea
viable nuestro quehacer político con las reglas del juego de la política patriarcal
tradicional? (…) ¿Qué nos ha dado el feminismo para pensar y construir de otra
manera la sociedad y la política?15
Assim como podemos observar no trecho citado, as reflexões sobre as estratégias feministas
nesse momento apareceram em vários outros foros, e muitas questões em torno a essa temática
foram levantadas ao longo da década. Dentro de uma leitura inicial, entendo que as problemáticas
surgidas ao longo desse processo recente de debate feminista possuem fundamentalmente um
15 Menção à fala de Ximena Bedregal na Relatoría del Foro facilitado por Itziar Lozano (México), Ximena Bedregal
(México), María Suárez (Costa Rica-Puerto Rico) y Mónica Tarducci (Argentina), p.41-42. In: COMISIÓN
ORGANIZADORA, 1993.
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componente histórico, ou seja, elas são tensões existentes entre “novas” e “antigas” demandas,
ações, diálogos e desafios que marcam a historicidade dessas lutas no continente. Quando pensamos
a década de noventa e os discursos construídos quanto à “participação social” e a “modernização do
sistema democrático”, que fizeram parte de boa parte dos discursos públicos nacionais e
internacionais neoliberais, entender essas questões e conflitos gerados por elas, e internamente ao
movimento, nos traz importantes pistas para complexificar a compreensão desse contexto.
Nesse aspecto, a noção de democracia vai aparecendo simultaneamente como um ponto que
diz respeito tanto aos desafios vividos por muitos países de modo específico e pela região de um
modo mais amplo; mas também, como elemento que sustenta uma reflexão sobre as táticas e os
caminhos adotados internamente pelo movimento feminista. Dessa maneira, pensar o que significa
viver em uma sociedade democrática a partir do movimento feminista e dos debates que emergem
dentro dele me parece ser um elemento interessante para entender o que é e como se constrói
discursos sobre democracia a partir dos feminismos. O que estou querendo propor como reflexão
aqui é que embora os feminismos da década de 1980 estivessem, especialmente no Cone Sul,
trazendo importantes, articuladas e diretas demandas sobre o retorno à democracia dos países, o que
pode ser simbolizado pela bandeira “Democracia no país, na casa e na cama”; os anos de 1990
seguem com o desafio de democratizar a sociedade e o feminismo a partir de outras debates e em
torno a outros questionamentos. Isto é, embora o termo não apareça de uma maneira tão repetida e
direta como nos anos anteriores, a noção de democracia vai se construindo através dos acúmulos
coletivos sobre os desafios desse momento. Isso pode ser percebido também pelas constantes
demandas internas por mais visibilidade das mulheres negras, indígenas e lésbicas, que
intensamente exigiam mais espaços de aprofundamento sobre suas experiências e demandas nesses
espaços continentais, ou seja, lutas que apontavam para a necessidade da democratização do próprio
movimento.
Pensar a articulação entre democracia e feminismo latino-americano na década de 1990 é
observar uma série de elementos de grande potencial para reflexão, alguns, como citado
anteriormente, se referem à própria organização interna do movimento, enquanto outros à
interpretação filosófica, sociológica e histórica sobre as contribuições do movimento para toda a
sociedade. De um modo mais sistemático e partindo especialmente das memórias dos encontros
feministas latino-americanos e do caribe, elenco alguns temas que pude perceber como centrais
durante essa década. Internamente ao movimento: debate sobre estratégias e táticas diante dos
diagnósticos socioeconômicos da região; questionamento sobre os diálogos com instituições e
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formas de fazer políticas consideradas patriarcais; debate sobre representação social e política do
movimento feminista em escalas nacionais, regionais e internacionais; discussões sobre a
importância e os objetivos de se produzir conhecimento feminista nesse momento; análises críticas
sobre a mudança da linguagem e da ação feministas que estariam vivendo certo processo de
moralização e oficialização para respaldar instituições patriarcais. Externamente ao movimento:
problematizações sobre financiamento; análises sobre elaborações de agendas em diálogos com os
Estados e organizações internacionais; reflexão crítica sobre a construção de lideranças
reconhecidas desde fora do movimento e os benefícios/problemas pessoais e/ou coletivos que elas
podem trazer.
Sistematizei alguns desses pontos pois acredito que eles podem nos ajudar a pensar em
respostas às perguntas levantadas no resumo no texto sobre a noção de democracia nos feminismos
desse momento. Como afirmado anteriormente, ao retomar o tema da autonomia, ao pensar os
desafios e os limites colocados pelas políticas institucionais, à liderança, aos formatos
organizativos, dentre outros temas que marcaram a década, entendo que a noção de democracia e o
desejo por democratização do feminismo aparecia com outras palavras, mas como elemento
constituinte do período. Além disso, quando pensamos as conceituações e categorizações
construídas sobre o termo a partir de outros discursos sociais, acredito que as fontes e documentos
que apresentam as visões debatidas e compartilhadas pelos feminismos do continente nos ajudam a
repensar e re-nominar as definições e abordagens hegemônicas sobre o termo a partir dessas
vivências.
Considerações finais
Como é possível perceber ao longo da leitura, esse texto não tem nenhuma pretensão de
trazer uma visão nova ou aprofundada sobre o que seria o feminismo latino-americano. Mais bem
ele pretende ser um relato-reflexão de pesquisa de quem apenas recentemente pôde ter um contato
maior com documentos, textos e memórias que ressaltam as experiências históricas recentes do
feminismo continental. Reforço também que essa é uma percepção a partir das minhas vivências. A
partir delas pude refletir sobre a necessidade de conhecermos e entendermos ainda mais as
memórias de lutas desses processos no âmbito do ativismo, especialmente, entre aqueles que se
sentem interpelados pela produção conceitual e prática dos feminismos latino-americanos.
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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Referências
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primavera). México, 1997, p. 55-56. (Serie Archivos Feministas – Biblioteca Rosario Castellanos,
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disidencias. Universitas Humanísticas. 2014. p. 39-63. Disponível em:
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LOZANO, Itzar; BEDREGAL, Ximena; SUÁREZ, María; TARDUCCI, Mónica. Relatoría del
Foro Avances, nudos y rectos del feminismo. In: COMISIÓN ORGANIZADORA. Memorias del
VI Encuentro Feminista Latino Americano y del Caribe. 1994, p. 41-42. (Acervo Biblioteca Rosario
Castellanos, CIEG-UNAM. Cidade do México-México).
Thinking the Democracy: histories and memories of Latin American Feminism in the 1990s
Astract: This paper aims to discuss the notion of "democracy" from Latin American feminist debates, especially
in the democratic transition and consolidation in the Southern Cone. I start from the idea that
democracy, rather than a dated political framework, is a principle of multiple interpretations in society.
Thus, in discussing whether and how the notion of democracy appears in some feminist memories of the
1990s, I try to present some central struggles built in the continental articulations of feminisms in Latin
America during this decade, reflecting on the potential of these sources for an understanding of this
process. I start from a recent research report that is based on the publications of the Latin American and
Caribbean Feminist Meetings (1993-66) and which investigates the feminist strategies and tactics of this
context. This paper proposes to reflect on the following questions: how did feminisms debate the
notions of democracy at that moment? How can the debate on feminist autonomy relate to the notion of
democracy in this period?
Keywords: Feminism. Democracy. Latin American. Autonomy. Institutionalization.