pequenos desvalidos: a infância pobre, abandonada e … · abandonada e trabalhadora, em juiz de...
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIEcircNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA ndash DOUTORADO
PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre
abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)
RAQUEL PEREIRA FRANCISCO
Niteroacutei
2015
ii
RAQUEL PEREIRA FRANCISCO
PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre
abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)
NITEROacuteI
2015
iii
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIEcircNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA
PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre
abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)
RAQUEL PEREIRA FRANCISCO
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em
Histoacuteria da Universidade Federal Fluminense como
requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor Aacuterea
de Concentraccedilatildeo Histoacuteria Social e Econocircmica
Orientadora Profordf Drordf
Gizlene Neder
NITEROacuteI
2015
iv
Ficha Catalograacutefica
F818P FRANCISCO RAQUEL PEREIRA
Pequenos desvalidos a infacircncia pobre abandonada e operaacuteria de
Juiz de Fora (1888-1930) Raquel Pereira Francisco ndash 2015
343 f il color
Orientadora Gizlene Neder
Tese (Doutorado em Histoacuteria) ndash Universidade Federal Fluminense
2015
Bibliografia f 307-323
1 Trabalho infantil - Brasil 2 Infacircncia - aspecto social 3
Assistecircncia social 4 Acidente de trabalho I Neder Gizlene
Orientadora II Universidade Federal Fluminense Instituiccedilatildeo
responsaacutevel III Tiacutetulo
CDD 331340981
v
PEQUENOS DESVALIDOS a infacircncia pobre
abandonada e operaacuteria de Juiz de Fora (1888-1930)
Raquel Pereira Francisco
Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria da Universidade Federal
Fluminense como requisito para a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor Aacuterea de Concentraccedilatildeo
Histoacuteria Social e Econocircmica
Comissatildeo Examinadora
__________________________________________________________
Profordf Drordf Gizlene Neder (Orientadora)
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________________
Prof Dr Marcos Luiz Bretas da Fonseca (Arguidor)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
__________________________________________________________
Profordf Drordf Keila Grinberg (Arguidora)
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
__________________________________________________________
Profordf Drordf Laura Antunes Maciel (Arguidora)
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________________
Prof Dr Gisaacutelio Cerqueira Filho (Arguidor)
Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________________
Profordf Drordf Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva (Suplente)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro ndash FFPSatildeo Gonccedilalo
__________________________________________________________
Profordf Drordf Larissa Moreira Viana (Suplente)
Universidade Federal Fluminense
vi
A Ana Doro voacute Nica meu exemplo de vida (in memoriam)
A Neuza minha matildee e fortaleza
Para minha filha Ana Sophia amor da minha vida
vii
AGRADECIMENTOS
Agradecer eacute um ato de demonstrar gratidatildeo de reconhecer a orientaccedilatildeo a ajuda
o carinho o companheirismo e a amizade de algueacutem Assim satildeo muitas as pessoas a
quem preciso agradecer pela realizaccedilatildeo deste trabalho
Em primeiro lugar agradeccedilo agrave professora Gizlene Neder por ter aceitado
orientar-me por sua atenccedilatildeo pelo incentivo pelas sugestotildees e por seu
comprometimento com a pesquisa Sou extremamente grata por ter sido nesses anos
minha incentivadora para eu apresentar meus trabalhos em congressos e seminaacuterios
ajudando-me a superar minhas dificuldades de falar em puacuteblico Com esse estiacutemulo jaacute
realizei alguns progressos
Aos professores da Universidade Federal Fluminense Veroacutenica Secreto e
Humberto Machado pelas indicaccedilotildees de leituras e discussotildees de importantes temas
realizadas nas disciplinas que cursei durante o doutorado
A Kalna Mareto Teao e Raquel de Faacutetima dos Reis amigas que conheci no
percurso do doutorado Foram muito prazerosas as nossas conversas sobre coisas da
vida problemas frustraccedilotildees medos e sonhos e os nossos passeios pelo Rio de Janeiro
A Raquel agradeccedilo tambeacutem por me acolher algumas vezes no seu apartamento em
Niteroacutei Valeu
Agraves professoras Elione Silva Guimaratildees e Sheila de Castro Faria pelas valiosas
criacuteticas sugestotildees e pelos enriquecedores comentaacuterios durante o Exame de
Qualificaccedilatildeo os quais muito contribuiacuteram para que eu refletisse sobre algumas questotildees
e para o desenvolvimento final deste trabalho
A Elione Silva Guimaratildees endosso a minha gratidatildeo pela disponibilidade em
realizar o Parecer Criacutetico de dois terccedilos da minha tese Seus comentaacuterios foram uma
ldquoinjeccedilatildeo de acircnimordquo em um momento de tristeza e desacircnimo
Aos funcionaacuterios da Secretaria de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria-UFF em especial
a Silvana e Thais pela atenccedilatildeo e paciecircncia
Ao professor Manuel Roph de Viveiros Cabeceiras coordenador do Curso de
Graduaccedilatildeo em Histoacuteria-UFF pela atenccedilatildeo durante o meu Estaacutegio Docecircncia no primeiro
semestre letivo de 2012 Aos funcionaacuterios da secretaria do Curso de Graduaccedilatildeo em
Histoacuteria-UFF por sempre se mostrarem soliacutecitos
Aos alunos da graduaccedilatildeo em Histoacuteria-UFF que fizeram o curso ldquoInfacircncia e
Trabalho fins do seacuteculo XIX e iniacutecio do XXrdquo ministrado por mim no primeiro
viii
semestre letivo de 2012 no programa de Estaacutegio Docecircncia PPGH-UFFCAPES por
levantarem questotildees e promoverem debates que enriqueceram as aulas e muito
subsidiaram a reflexatildeo de problemaacuteticas discutidas nesta pesquisa
A CAPES pelo financiamento desta pesquisa
A Heliane Casarin do Setor de Memoacuteria da Biblioteca Municipal Murilo
Mendes sempre presente atenta preocupada com o andamento das pesquisas pelo
incentivo e pelo compromisso com os pesquisadores e com a Histoacuteria de Juiz de Fora
Meus sinceros agradecimentos por tudo
Aos funcionaacuterios do Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora
Tarciacutesio e Edna por sempre se mostrarem prestativos e dispostos a ajudar-me no que
fosse preciso
Aos funcionaacuterios do Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora Francisco
Carlos Limp (Chicatildeo) Elione Guimaratildees e Antocircnio Henrique Lacerda pela atenccedilatildeo
Especialmente a Elione e Chicatildeo por sempre se mostrarem dispostos a auxiliar e a
sanar algumas duacutevidas Chicatildeo sua alegria seus conhecimentos sobre a histoacuteria de Juiz
de Fora e sobre a documentaccedilatildeo vatildeo fazer muita falta no arquivo Assim resta-me
desejar-lhe uma boa aposentadoria
Aos amigos do Laboratoacuterio Cidade e Poder do PPGH-UFF Jefferson de
Almeida Pinto Ana Paula Barcelos e Adriano Paranhos pelo incentivo e pelas palavras
de estiacutemulo antes das apresentaccedilotildees
Agraves amigas e aos amigos Rita de Caacutessia Vianna Rosa Antocircnia (Toninha) Sonia
Maria de Souza Elisacircngela Mendes Jussaramar Silva Jerusa Andrade Leda Maria
Ribeiro de Lima Silvania Andrade Patriacutecia Lage Mocircnica Costa Wal Barbosa Tarcilia
Nascimento Cristiano Duarte Zamblute Tarciacutezio Mancini Alexandre Glugliotta
Geraldo Pereira Maacuterio Henrique Dias pelo incentivo e pela amizade Desculpem-me
pela ausecircncia Agradeccedilo especialmente ao Tarciacutezio pelas informaccedilotildees sobre algumas
fontes e pela traduccedilatildeo do ldquoResumordquo para o inglecircs
A Rita de Caacutessia Vianna Rosa amiga sempre presente pelo incentivo e pela
presteza Obrigada por sua leitura atenta e criacutetica de meus textos pelas discussotildees
teoacutericas e metodoloacutegicas pelos empreacutestimos de livros e pelas sugestotildees de leituras Sou
ainda muito grata a Rita por ter me cedido gentilmente os seus fichamentos do jornal
O Dia pelas informaccedilotildees sobre a questatildeo da infacircncia pobre nos perioacutedicos locais do poacutes
1930 e por me ceder alguns exemplares dos jornais das deacutecadas de 1930 1940 e 1950
que digitalizou pertencentes aos acervos dos arquivos e setores de memoacuteria da cidade
ix
A Mocircnica Costa e Arthur Silva pela ajuda na digitalizaccedilatildeo de alguns anos do
Diaacuterio Mercantil e processos judiciais A Mocircnica por me auxiliar na leitura e
fichamento de alguns exemplares do jornal O Pharol
A todos os meus familiares matildee pai marido filha irmatilde cunhados e cunhadas
por todo o incentivo carinho compreensatildeo e paciecircncia que me dispensaram
Aos meus pais Neuza e Manoel pelo grande amor e dedicaccedilatildeo Sou
eternamente grata a minha matildee pelo incentivo pela compreensatildeo e por ter me ajudado
a cuidar de Ana Sophia permitindo-me assim a tranquilidade necessaacuteria para
pesquisar estudar e escrever a tese
A minha irmatilde Giovanna agradeccedilo pelas leituras do meu texto pela confecccedilatildeo
dos bancos de dados e dos graacuteficos e pela paciecircncia em me escutar Ao meu cunhado
Leandro pela ajuda com o computador que sempre resolve dar problemas nos
momentos que dele mais precisamos A minha cunhada Cristina agradeccedilo pela leitura e
pelo fichamento de algumas ediccedilotildees do Jornal do Commercio
Ao meu querido companheiro Aureacutelio pelo carinho pelo incentivo por
compreender a minha ausecircncia o meu nervosismo e os meus medos Obrigada por
compartilhar de todos os momentos bons ou ruins pelas leituras do meu texto e
discussotildees a respeito de algumas questotildees sociais Esses momentos foram muito
enriquecedores para mim Vamos agora compartilhar outros e novos sonhos
A minha pequena Ana Sophia que nasceu no meio desse turbilhatildeo de papeacuteis
livros questionamentos processos falta de tempo prazos medos ansiedades Sempre
ao meu lado vendo-me escrever e estudar chamando minha atenccedilatildeo com um sorriso
um chorinho um gritinho e uma brincadeira Agradeccedilo por simplesmente existir e dar a
minha vida um sentido a cada novo dia Terei mais tempo para darmos uma ldquovoltinhardquo
meu amorzinho
A tia Ana minha ldquomatildee pretardquo por todo o seu carinho e pela cumplicidade
Desculpe-me pela falta de tempo Mas agora natildeo haacute mais tempo neacute Agradeccedilo a
senhora por tudo o que me ensinou ateacute em seu uacuteltimo suspiro naquele abraccedilo eterno
doloroso Dedico agrave senhora todo o meu respeito e amor Saudades
x
Agraves vezes nos esquecemos de que os abusos podem permanecer
ldquodesconhecidosrdquo por longo tempo ateacute serem publicamente
revelados e que as pessoas podem ver a miseacuteria e natildeo
percebecirc-la ateacute a proacutepria miseacuteria se rebelar
E P Thompson (2002 p 215)
xi
RESUMO
Nesta tese busca-se fazer uma reflexatildeo sobre a problemaacutetica da infacircncia pobre
abandonada e trabalhadora em Juiz de Fora Minas Gerais nos anos finais do seacuteculo
XIX e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX O recorte temporal delimitado para a
realizaccedilatildeo desta anaacutelise eacute o da implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do mercado de trabalho livre
em substituiccedilatildeo ao escravo do processo de industrializaccedilatildeo e de reestruturaccedilatildeo do
Estado sob o sistema republicano de governo No contexto dessas transformaccedilotildees as
classes dominantes sentiram a necessidade de criar novas formas de controle social No
que diz respeito agraves crianccedilas pobres e ou abandonadas diversas foram as estrateacutegias de
controle social adotadas pelos segmentos dominantes com o objetivo de manterem o
domiacutenio sobre a matildeo de obra dos ldquomenoresrdquo sendo uma delas o viacutenculo tutelar Nesse
momento de estruturaccedilatildeo do mercado de trabalho capitalista setores da intelectualidade
poliacuteticos meacutedicos-higienistas juristas entre outros apresentaram diversas propostas de
assistecircncia social para as crianccedilas dos estratos mais baixos da hierarquia
socioeconocircmica com o objetivo de educar preservar e regenerar os ldquomenoresrdquo pelo e
para o trabalho A educaccedilatildeo destinada aos setores vulneraacuteveis da sociedade era a
elementar conjugada com o aprendizado de um ofiacutecio ou seja destinava-se a preparar
matildeo de obra disciplinada e submissa O trabalho infanto-juvenil foi uma problemaacutetica
debatida ao longo dos primeiros anos republicanos Poreacutem a sua regulamentaccedilatildeo
ocorreu apenas nos anos finais da deacutecada de 1920 com a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de
Menores A presenccedila de pequenos operaacuterios nas induacutestrias no comeacutercio nas oficinas e
em outros estabelecimentos da cidade de Juiz de Fora no iniacutecio do seacuteculo XX pode ser
constatada por meio dos perioacutedicos e dos processos de acidentes no trabalho analisados
neste estudo onde muitos pequenos foram viacutetimas
Palavras-chave Trabalho Infantil Tutelas Acidentes de Trabalho Assistecircncia Social
xii
ABSTRACT
This thesis intends to analyse the problems involving the poor neglected and
worker infancy in Juiz de Fora Minas Gerais during the last years of the XIX century
and the first decades of the XX century The period studied relates to setting up and
consolidation of free work market to substitute the slave one the process of
industrialization and restructuring of State under a republican system of government In
this context of changes the upper classes felt the necessity to create new ways of social
control Specifically about the poor andor neglected children a lot of strategies of social
control were adopted by the upper classes purposing to keep dominance over the
infantile work market being one of them the guardianship In the historic present of
consolidation of the capitalist work market some sectors like the intellectuality
politicians sanitary doctors and jurists showed proposals of social assistance for
children of the lower economic and social status purposing educate preserve and
regenerate them by and for work The education applied to those children was the
elementary associated to an apprenticeship of manual labour focusing a disciplined and
submissive labour force The infant-juvenile work was a topic debated during the first
republin years although its regulation only occurred in the last years of the decade of
1920 with the Child Act The presence of under-age workers in the local plants
commerce and manufactures of Juiz de Fora at the beginning of the XX century can be
seen through some newspapers and proceedings of work accidents where a lot of under-
age workers were victims
Key-words infantile work guardianships work accidents social assistance
xiii
REacuteSUMEacute
Cette thegravese vise agrave faire une reacuteflexion sur la probeacutematique de lrsquoenfance pauvre
abandonneacutee et travailleuse agrave Juiz de Fora Minas Gerais dans les derniegraveres anneacutees du
XIXe siegravecle et dans les premiegraveres deacutecennies du XXe siegravecle La peacuteriode deacutelimiteacutee pour
cette analyse est celle du deacuteploiement et de la consolidation du marcheacute du travail libre
qui remplace lrsquoesclave du processus drsquoindustrialisation et de restructuration de lrsquoEacutetat
sous la forme reacutepublicaine de gouvernement Dans le contexte de ces transformations
les classes dominantes ont ressenti le besoin de creacuteer de nouvelles formes de controcircle
social En ce qui concerne les enfants pauvres etou abandonneacutes plusieurs strateacutegies de
controcircle social ont eacuteteacute adopteacutees par des segments dominants afin de maicirctriser la main
drsquooeuvre des ldquomineursrdquo lrsquoune drsquoelles eacutetant la relation tuteacutelaire Dans ce moment de
structuration du marcheacute de travail capitaliste les secteurs des intellectuels des
politiciens des meacutedecins-hygieacutenistes des juristes entres autres ont presenteacute de
diffeacuterentes propositions drsquoaide social pour les enfants des couches les plus basses de la
hieacuterarchie socio-eacuteconomique afin drsquoeacuteduquer preacuteserver et reacutegeacuteneacuterer les ldquomineursrdquopar et
pour le travail Lrsquoeacuteducation destineacutee aux secteurs vulneacuterables de la socieacuteteacute eacutetait
eacuteleacutementaire conjugueacutee agrave lrsquoapprentissage drsquoun meacutetier crsquoest-agrave-dire elle avait pour but de
preacuteparer une main drsquooeuvre disciplineacutee et soumise Le travail des enfants et des jeunes a
eacuteteacute une question deacutebattue au long des premiegraveres anneacutees reacutepublicaines Toutefois sa
reacuteglementation na eu lieu quagrave la fin des anneacutees 1920 avec la promulgation du Code des
mineurs La preacutesence de petits travailleurs dans les industries les commerces les
ateliers et drsquoautres eacutetablissements dans la ville de Juiz de Fora au deacutebut du XXe siegravecle
peut ecirctre deacutetecteacutee par des journaux et des procegraves drsquoaccidents du travail analyseacutes dans
cette eacutetude et dont beaucoup de victimes eacutetaient des enfants
Mots-cleacutes Travail des Enfants Tutelle Accidents du Travail Aide Sociale
xiv
IacuteNDICE DOS QUADROS
Quadro 1 Populaccedilatildeo escrava e livre do municiacutepio de Juiz de Fora (1853-18723)52
Quadro 2 Populaccedilatildeo do municiacutepio de Juiz de Fora (1890 ndash 1907 ndash 1920) 52
Quadro 3 Crescimento populacional do municiacutepio de Juiz de Fora (1853-1920) 53
Quadro 4 Nuacutemero de crianccedilas tuteladas por periacuteodo 109
Quadro 5 Presenccedila feminina e masculina nos processos de tutelas (1888 ndash 1930) 117
Quadro 6 Faixa etaacuteria dos ldquomenoresrdquo viacutetimas de acidentes no trabalho (1919 ndash 1930)
178
Quadro 7 Operaacuterios do setor tecircxtil e de malharia envolvidos em acidentes no trabalho
(1919 ndash 1930) 178
Quadro 8 Tipos de abandonoentrega de ldquomenoresrdquo (1888-1930) 257
xv
IacuteNDICE DOS GRAacuteFICOS
Graacutefico 1 Nuacutemero de crianccedilas tuteladas (1888-1930) 111
Graacutefico 2 Nuacutemero de autos de tutela (1888-1930) 111
Graacutefico 3 ldquoMenoresrdquo envolvidos em acidentes no trabalho ndash divisatildeo por
sexo179
Graacutefico 4 ldquoMenoresrdquo envolvidos em acidentes no trabalho ndash divisatildeo por sexo e
setor180
xvi
IacuteNDICE DAS IMAGENS
Imagem 1 ldquoMenorrdquo Joatildeo Theodoro Monteiro ndash 192914
Imagem 2 Fachada e operaacuterios - Faacutebrica de Tecelagem e Fiaccedilatildeo Moraes Sarmento
(Festa 03051922)59
Imagem 3 Fachada da Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial
Mineira60
Imagem 4 ldquoMenoresrdquo nas ruas e pedra nos trilhos dos
bonds 190066
Imagens 5 Habitaccedilatildeo Operaacuteria ndash 192290
Imagem 6 Habitaccedilatildeo Operaacuteria ndash 192291
Imagem 7 Joseacute Procoacutepio Teixeira 92
Imagem 8 Edifiacutecio das Reparticcedilotildees Municipais 1921 93
Imagem 9 Avenida Baratildeo do Rio Branco ndash Juiz de Fora 192094
Imagem 10 Jardim da Infacircncia 1925 Largo do Riachuelo97
Imagem 11 Meninos capinadores 193999
Imagem 12 Meninos capinadores 1939100
Imagem 13 Capa do Processo de Tutela do ldquomenorrdquo Joaquim Mariano Alves 101
Imagem 14 Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas ndash 1928161
Imagem 15 Nota sobre o abandono de uma ldquomenorrdquo pelos patrotildees 181
Imagem 16 Nota sobre acidente de trabalho de uma ldquomenorrdquo ndash serviccedilo domeacutestico182
Imagem 17 Propaganda da Estamparia Universal ndash 1922191
Imagem 18 Fachada da Faacutebrica de Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Tecidos de Malha
Meurer208
Imagem 19 Interior da Faacutebrica Meurer 212
Imagem 20 Fachada do Asilo Joatildeo Emilio ndash 1915 234
Imagem 21 ldquoDeclaraccedilatildeo de entrega do filhordquo 254
Imagem 22 Bilhete sobre uma ldquomenorrdquo abandonada na usina de Marmelo
265
Imagem 23 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) - ldquoMenorrdquo Geraldo
1929288
Imagem 24 Ficha de identificaccedilatildeo ndash Abrigo de Menores (BH) - ldquoMenorrdquo Geraldo
1929288
xvii
Imagem 25 Ficha Meacutedica ndash Geraldo Theodoro Monteiro 290
Imagem 26 Ficha Meacutedica (2) Idem291
Imagem 27 Ficha Meacutedica (3) Idem 292
Imagem 28 Ficha Meacutedica (4) Idem 293
xviii
IacuteNDICE DE ABREVIATURAS
AHCJF Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora
AHUFJF Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora
SM - BMMM Setor de Memoacuteria - Biblioteca Municipal Murilo Mendes
xix
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO 1
CAPIacuteTULO 1 A INFAcircNCIA COMO UM PROBLEMA SOCIAL NA PASSAGEM
Agrave MODERNIDADE NO BRASIL 14
11 ldquoFlores de uma geraccedilatildeo futurardquo a questatildeo da infacircncia pobre no Brasil 15
12 Os ldquomenoresrdquo desvalidos na Repuacuteblica da ldquoOrdemrdquo e do ldquoProgressordquo 37
13 A ldquoManchester Mineirardquo e seus ldquomenoresrdquo 47
CAPIacuteTULO 2 OS PEQUENOS DESVALIDOS JUIZ DE FORA (1888-1930) 101
21 Os Processos de tutelas das Ordenaccedilotildees Filipinas ao Coacutedigo Civil
Brasileiro (1916) 102
22 Dar tutor ldquoa todos os oacuterfatildeos e menoresrdquo 108
2 3 Tensotildees e confrontos as disputas entre pais e Tutores pela guarda dos
ldquomenoresrdquo 119
24 Entre tinas vassouras e cafezais as tutelas e contratos de soldadas de
ldquomenoresrdquo desvalidos 135
25 Apreensatildeo de ldquomenoresrdquo 149
CAPIacuteTULO 3 POR ENTRE MAacuteQUINAS E ENGRENAGENS AS CRIANCcedilAS
OPERAacuteRIAS DA ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo 161
31 A questatildeo social na Primeira Repuacuteblica Lei de Acidentes de Trabalho e
Coacutedigo de Menores 162
311 A Lei de Acidentes de Trabalho ndash Brasil 1919 162
312 O Coacutedigo de Menores e a regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil 170
3 2 Da rua agrave faacutebrica o proletariado infanto-juvenil da ldquoManchester Mineirardquo 174
33 Micucci a morte de um pequeno proletaacuterio da ldquoManchester Mineirardquo 207
331 Entre tapas e pontapeacutes o pequeno operaacuterio Micucci 209
CAPIacuteTULO 4 OS ldquoDESERDADOS DA SORTErdquo A ASSISTEcircNCIA AOS
ldquoMENORESrdquo POBRES 234
41 As instituiccedilotildees para ldquomenoresrdquo desvalidos uma obra de caridade cristatilde e
um dever do estado 235
411 A assistecircncia aos ldquomenoresrdquo 240
xx
42 Os ldquofilhos da piedaderdquo os processos de tutelas de crianccedilas abandonadas
enjeitadas expostas ou ldquoentreguesrdquo 253
43 As accedilotildees de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo desvalidos 269
431 Laccedilos do infortuacutenio a accedilatildeo de internaccedilatildeo dos irmatildeos Joatildeo e Geraldo 282
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 297
FONTES 304
FONTES DIGITAIS E ACESSADAS ONLINE 305
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFIAS 307
INTRODUCcedilAtildeO
Na infacircncia estaacute o adulto eacute dele que os educadores e os gestores da cidade se
preocupam de seu lugar social de seus espaccedilos de seus valores e condutas
de sua cor e de seu disciplinamento (Miguel Arroyo)1
Neste trabalho propotildee-se examinar a questatildeo da infacircncia desvalida oacuterfatilde
abandonada e trabalhadora do municiacutepio de Juiz de Fora Minas Gerais na passagem agrave
modernidade O interesse por tal temaacutetica surgiu durante minhas pesquisas para a
elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo de mestrado que tinha como objeto de anaacutelise as relaccedilotildees
familiares e de parentesco ndash consanguiacuteneo e ritual ndash entre a populaccedilatildeo escrava e liberta
de Juiz de Fora Mas foi sobretudo no capiacutetulo em que examinei as solicitaccedilotildees de
tutelas de ingecircnuos e de pequenos libertos por segmentos das classes dominantes que
surgiram vaacuterios questionamentos relativos agrave problemaacutetica da infacircncia pobre durante o
processo de constituiccedilatildeo do mercado de trabalho livre no Brasil2 Assim surgiu uma
necessidade de buscar compreender como a assistecircncia agrave infacircncia fiacutesica e socialmente
desamparada e o trabalho infantil foram tratadosdiscutidos na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX
para o XX por poliacuteticos meacutedicos higienistas juristas liacutederes operaacuterios empresariado e
demais setores da intelectualidade Em outras palavras quais eram as preocupaccedilotildees e os
problemas que as crianccedilas dos estratos vulneraacuteveis da sociedade causavam e quais eram
as soluccedilotildees apresentadas pelos setores dominantes para solucionar esse problema social
Dessa maneira o recorte temporal escolhido para realizar este estudo foram os
anos finais do seacuteculo XIX ndash poacutes-aboliccedilatildeo do trabalho escravo ndash e as trecircs primeiras
deacutecadas do seacuteculo XX (1888 a 1930) A escolha se justifica por ser esse momento
marcado pela aboliccedilatildeo do trabalho escravo implantaccedilatildeo do sistema republicano de
governo pelo incremento do processo de implantaccedilatildeo das relaccedilotildees capitalistas de
produccedilatildeo bem como por ser esse periacuteodo caracterizado por uma ampliaccedilatildeo do debate a
respeito do controle social3 das classes subalternas
4
1 ARROYO Miguel ldquoApresentaccedilatildeordquo In VEIGA Cynthia Greive FARIA FILHO Luciano Mendes
Infacircncia no soacutetatildeo Belo Horizonte Autecircntica 1999 p 14 2 FRANCISCO Raquel Pereira Laccedilos da senzala arranjos da flor de maio relaccedilotildees familiares e de
parentesco entre a populaccedilatildeo escrava e liberta - Juiz de Fora (1870-1900) Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Niteroacutei UFF 2007 3 Estou utilizando o conceito de controle social desenvolvido por Roberto Bergalli em ldquoHistoria
ideoloacutegica del control socialrdquo De acordo com Bergalli o controle social foi se convertendo
progressivamente em um ldquoconceito criacutetico em muacuteltiplos campos de anaacutelisesrdquo nos vaacuterios ramos das
ciecircncias sociais principalmente nos estudos dedicados aos chamados problemas sociais e de sua
2
Assim dentro dos questionamentos sobre a infacircncia desvalida de Juiz de Fora
um colocou-se como de grande relevacircncia a compreensatildeo das estrateacutegias e poliacuteticas de
controle social dos setores dominantes sobre a matildeo de obra infantil No
desenvolvimento dessa problemaacutetica foi necessaacuterio levar em consideraccedilatildeo o projeto dos
grupos dominantes de construccedilatildeo de uma imagem da cidade como ldquocivilizadardquo
moderna desenvolvida e constituiacuteda por uma populaccedilatildeo ordeira e laboriosa
A obra de Michel Foucault ldquoVigiar e Punirrdquo foi um referencial significativo para
fundamentar este trabalho no que diz respeito agrave discussatildeo do controle social sobre os
segmentos vulneraacuteveis da populaccedilatildeo Em seus estudos Foucault procurou demonstrar
que as praacuteticas de poder eram constituiacutedas de aspectos negativos e positivos Segundo
Roberto Machado Foucault chamaou a atenccedilatildeo para o fato de que o ldquopoder possui uma
eficaacutecia produtiva uma riqueza estrateacutegica uma positividaderdquo o que ldquoexplica o fato de
que tem como alvo o corpo humano natildeo para supliciaacute-lo mutilaacute-lo mas para aprimoraacute-
lo adestraacute-lordquo5 O vieacutes positivo do poder objetiva controlar e dominar todos os aspectos
da vida dos homens como seus haacutebitos sexualidade crenccedilas modos de pensar e agir
entre outros para extrair o maacuteximo de suas ldquopotencialidades e utilizando um sistema de
aperfeiccediloamento gradual e contiacutenuo de suas capacidadesrdquo Esse aspecto do poder era
perpassado ao mesmo tempo por objetivos econocircmicos e poliacuteticos ou seja tornar os
homens trabalhadores economicamente produtivos em sua capacidade maacutexima e por
outro lado diminuir sua ldquoforccedila poliacuteticardquo tornando-os submissos e em corpos ldquodoacuteceis
politicamenterdquo6
Esse poder sobre todos os domiacutenios da vida social dos homens era alcanccedilado
pela ldquodisciplinardquo ou ldquopoder disciplinarrdquo proveniente dos vaacuterios mecanismos de controle
e de vigilacircncia presentes em vaacuterias instituiccedilotildees como faacutebricas escolas hospitais prisotildees
e exeacutercito As estrateacutegias de disciplinarizaccedilatildeo extrapolavam os muros das instituiccedilotildees e
ldquointerpretaccedilatildeo atraveacutes das distintas instancias de controle socialrdquo Assim o conceito de controle social se
constitue em um instrumente de criacutetica social as instituiccedilotildees que promovem a restriccedilatildeo da liberdade
individual Desta maneira os estudiosos tecircm examinado de forma mais acurada como que o controle
social ldquocondiciona a orientaccedilatildeo de processos e estruturas a respeito da procedecircncia de problemas sociais
tais como a pobreza e a criminalidade e de fenocircmeno como o desamparo e abandono de pessoasrdquo Na
interpretaccedilatildeo de Bergalli o direito a educaccedilatildeo e a religiatildeo satildeo aacutereas de maacutexima importacircncia no processo
de instituiccedilatildeo do controle social Cf BERGALLI Roberto MARI Enrique E (coords) ldquoIntroduccioacutenrdquo
In Histoacuteria Ideologica del control social (Espantildea-Argentina siglos XIX y XX) Barcelona PPU 1989 p
X XI XX 4 Cf NEDER Gizlene Discurso Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio
Fabris Editor 1995 5 MACHADO Roberto ldquoPor uma genealogia do poderrdquo In FOUCAULT Michel Microfiacutesica do poder
23 ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 2007 p XV XVI Cf FOUCAULT Michel Vigiar e punir
nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis (RJ) Editora Vozes 2007 p 118-119 6 MACHADO Roberto Op cit 2007 p XVI
3
se espraiavam no seio de toda a sociedade fabricando assim ldquoo tipo de homem
necessaacuterio ao funcionamento e manutenccedilatildeo da sociedade industrial capitalistardquo7
Por meio da anaacutelise das fontes busquei identificar as estrateacutegias de controle e
vigilacircncia de setores das classes dominantes de Juiz de Fora sobre os segmentos
vulneraacuteveis da sociedade mais especificamente sobre os ldquomenoresrdquo e suas famiacutelias Os
processos judiciais de acidentes de trabalho e o de lesatildeo corporal delinearam as vaacuterias
estrateacutegias de disciplinarizaccedilatildeo do trabalhador infanto-juvenil por parte do empresariado
industrial do municiacutepio Nesses espaccedilos de ldquodisciplinardquo o ldquomenorrdquo estava
constantemente sob controle tendo cada accedilatildeogesto vigiado Desse modo ele estava
continuamente sujeito agraves ldquomicropenalidadesrdquo em consequecircncia de alguma falha ou
desvio8
Todavia as classes dominadas natildeo aceitaram pacificamente as imposiccedilotildees
disciplinares e os valores dos segmentos dominantes A documentaccedilatildeo compulsada
tambeacutem revelou as estrateacutegias de reaccedilatildeo dessa parcela da sociedade as medidas de
controle de seus modos de vida de suas tradiccedilotildees e valores Nessa perspectiva as
contribuiccedilotildees teoacutericas de E P Thompson sobre a histoacuteria social do trabalho foram
muito importantes O historiador inglecircs dedicou-se agrave anaacutelise da classe operaacuteria inglesa
agraves reaccedilotildees e resistecircncias dos trabalhadores agraves tentativas de transformaccedilatildeo pelos setores
dominantes de suas tradiccedilotildeescostumes ou seja os ldquoconfrontos entre uma economia de
mercado inovadora e a economia moral da plebe baseada no costumerdquo9 Segundo
Ronaldo Vainfas ldquoo campo teoacuterico da cultura popular em Thompson valoriza portanto
a resistecircncia social e a luta de classes em conexatildeo com as tradiccedilotildees os ritos e o
cotidiano das classes populares em um contexto de transformaccedilatildeordquo10
Assim a
abordagem teoacuterico-metodoloacutegica desta tese eacute perpassada por escolhas heterodoxas que
estabelecem uma articulaccedilatildeo entre o enfoque foucaultiano e sua metodologia
genealoacutegica e as abordagens de E P Thompson autor marxista que adotou e
7 Ibidem p XVII
8 Cf FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis (RJ) Editora Vozes
2007 9 THOMPSON E P Costumes em comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1998 p 21 Cf THOMPSON E P A formaccedilatildeo da classe operaacuteria inglesa 1 a
aacutervore da liberdade 6 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2011 10
VAINFAS Ronaldo Os protagonistas anocircnimos da Histoacuteria micro-histoacuteria Rio de Janeiro Campus
2002 p 66
4
desenvolveu anaacutelises sobre aspectos subjetivos da cultura nos processos histoacuterico-
sociais quando do exame da constituiccedilatildeo da classe trabalhadora inglesa11
Ao analisar a infacircncia desvalida e operaacuteria do municiacutepio de Juiz de Fora em um
momento marcado por profundas mudanccedilas na sociedade brasileira ndash aboliccedilatildeo do
trabalho escravo e implantaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre instauraccedilatildeo do sistema
republicano de governo processo de urbanizaccedilatildeo e industrializaccedilatildeo em expansatildeo ndash as
consideraccedilotildees de Thompson sobre as resistecircncias dos trabalhadores agraves tentativas das
classes dominantes de desestruturaccedilatildeo de seus modos de vidacostumes e de imposiccedilatildeo
de novos valores foram extremante valiosas Assim as lutas dos pais dos ldquomenoresrdquo
para manterem e ou reaverem os seus filhos tutelados por pessoas dos setores
dominantes as fugas dos pupilos das casas de seus tutores e das instituiccedilotildees
assistenciais a retirada dos filhosnetos da casa do tutor sem autorizaccedilatildeo legal a
solicitaccedilatildeo em juiacutezo para que o tutor do filhoneto fosse destituiacutedo do cargo as
denuacutencias de maus tratos e de natildeo recebimento das soldadas o recursar-se a executar as
tarefas entre outras accedilotildees praticadas pelas crianccedilas e famiacutelias dos setores desfavorecidos
foram analisadas em consonacircncia com as abordagens de Thompson
A preocupaccedilatildeo central desta tese foi compreender a problemaacutetica do trabalho
infantil na passagem agrave modernidade dentro do contexto de instauraccedilatildeo do trabalho livre
e de elaboraccedilatildeo de uma nova concepccedilatildeo sobre o trabalho Para tanto tornou-se
necessaacuterio especificar qual forma de trabalho infantil adotei para examinar a questatildeo da
infacircncia desvalida e operaacuteria de Juiz de Fora uma vez que nem todas as atividades que
empregam crianccedilas satildeo marcadas pela exploraccedilatildeo Existem as que satildeo caracterizadas
pela
[] transmissatildeo do patrimocircnio de saberes e disciplinas de certas profissotildees e
de construccedilatildeo do herdeiro e principalmente do sucessor no caso do
trabalhador artesanal profissional ou camponecircs Sob a orientaccedilatildeo e
supervisatildeo dos pais ou de geraccedilotildees anteriores de trabalhadores os
adolescentes e preacute-adolescentes se incorporam ao processo de socializaccedilatildeo
profissional e de ritualizaccedilatildeo da mudanccedila de posiccedilatildeo ingressando-se na idade
adulta A orientaccedilatildeo do uso da forccedila de trabalho nesses casos natildeo responde
diretamente agrave crescente expansatildeo da apropriaccedilatildeo da mais-valia e ao uso
descartaacutevel de seu portador Outros valores referenciais da reproduccedilatildeo social
de posiccedilotildees se encontram em jogo inclusive aqueles que qualificam a relaccedilatildeo
positiva entre pais e filhos mestres e aprendizes Estas formas de uso do
trabalho infantil antecedem e ultrapassam o sistema de produccedilatildeo capitalista
11
A mesma abordagem heterodoxa estaacute presente em ldquoDiscurso juriacutedico e ordem burguesa no Brasilrdquo de
Gizlene Neder Cf NEDER Gizlene Op cit 1995
5
mas natildeo eliminam necessariamente as condiccedilotildees penosas e prejudiciais ao
desenvolvimento da crianccedila ou do adolescente12
Com relaccedilatildeo ao trabalho infantil E P Thompson assinalou em seu estudo sobre
a classe operaacuteria inglesa do seacuteculo XVIII que entre os anos 1780 e 1840 ocorreu ldquouma
intensificaccedilatildeo draacutestica da exploraccedilatildeo do trabalho das crianccedilasrdquo embora o trabalho
infantil natildeo fosse uma novidade sendo mesmo a ldquocrianccedila uma parte intriacutenseca da
economia industrial e agriacutecola antes de 1780rdquo e sua matildeo de obra empregada nas
atividades domeacutesticas ou da ldquoeconomia familiarrdquo Todavia sua capacidade e idade eram
respeitadas e as tarefas natildeo lhes ocupavam o dia inteiro bem como natildeo eram
monoacutetonas ou seja natildeo executavam uma uacutenica e repetitiva tarefa ao longo do dia13
Poreacutem com a constituiccedilatildeo do sistema fabril ocorreu uma ruptura extremamente
profunda nesse padratildeo de utilizaccedilatildeo da matildeo de obra infanto-juvenil impondo-se a partir
de entatildeo uma contundente exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho onde a execuccedilatildeo de uma
mesma atividade durante horas se impocircs como regra pois ldquona faacutebrica a maquinaria
ditava as condiccedilotildees a disciplina a velocidade e a regularidade da jornada de trabalho
tornando-as equivalentes para o mais delicado e o mais forterdquo14
Segundo Thompson
provavelmente natildeo foi apenas o sistema fabril que contribuiu para a ldquointensificaccedilatildeo do
trabalho infantilrdquo poacutes 1780 havendo pois a necessidade de se levar em conta tambeacutem a
questatildeo da especializaccedilatildeo a crescente diferenciaccedilatildeo dos papeacuteis econocircmicos a ruptura
da economia familiar entre outros fatores15
Alan Macfarlane tambeacutem ressaltou as mudanccedilas ocorridas na utilizaccedilatildeo da matildeo
de obra infantil com o advento da Revoluccedilatildeo Industrial na Inglaterra O autor assinalou
que o emprego de crianccedilas de poucos anos de idade e durante longas horas era tatildeo
expressivo nas nascentes manufaturas que ldquonatildeo apenas chocavam alguns
contemporacircneos como tambeacutem teriam espantado os ingleses de dois seacuteculos antesrdquo16
A utilizaccedilatildeo e exploraccedilatildeo da matildeo de obra infantil nas sociedades reguladas pelas
relaccedilotildees capitalistas de produccedilatildeo foi algo que perpassou as formaccedilotildees histoacutericas do
Velho e do Novo continente em seus processos de industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo A
12
PESSANHA NEVES Delma A perversatildeo do trabalho Infantil loacutegicas sociais e alternativas de
prevenccedilatildeo Niteroacutei Intertexto 1999 p 12-13 13
THOMPSON EP A formaccedilatildeo da classe operaacuteria inglesa II a maldiccedilatildeo de Adatildeo 4 ed Rio de
Janeiro Paz e Terra 2002 p 202-205 Cf MACFARLANE Alan Histoacuteria do casamento e do amor ndash
Inglaterra 1300-1840 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 p 87-89 14
THOMPSON EP Op cit 2002 207 15
Ibidem p 205 16
MACFARLANE Alan Histoacuteria do casamento e do amor ndashInglaterra 1300-1840 Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1990 p 87-89
6
Inglaterra que liderou o processo de industrializaccedilatildeo utilizou abundantemente do
trabalho de crianccedilas Engels em A situaccedilatildeo da classe trabalhadora na Inglaterra
salientou que enquanto os trabalhadores viviam no campo os seus filhos os ajudavam
esporadicamente mas que tal situaccedilatildeo modificou-se completamente a partir do
momento em que eles tiveram de vender sua forccedila trabalho nas cidades As crianccedilas e os
jovens passaram entatildeo a ter uma jornada de oito ou doze horas de labor17
O emprego da matildeo de obra infantil esteve presente em vaacuterias sociedades sendo
anterior agrave constituiccedilatildeo do sistema fabril e das relaccedilotildees capitalistas de produccedilatildeo Como
salientado anteriormente a Revoluccedilatildeo Industrial maximizou o processo de utilizaccedilatildeo e
de exploraccedilatildeo do trabalhador infanto-juvenil Assim sem deixar de perceber que
existiram (existem) outras formas de trabalho infantil que natildeo aquelas perpassadas
exclusivamente pela exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho analisei os casos em que
crianccedilas e adolescentes das classes subalternas tiveram sua matildeo de obra explorada em
condiccedilotildees muitas vezes improacuteprias para suas idades e constituiccedilotildees fiacutesicas nos
estabelecimentos industriais e comerciais nas propriedades rurais e nas residecircncias das
classes dominantes de Juiz de Fora durante o periacuteodo de constituiccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do
mercado de trabalho livre e do processo de industrializaccedilatildeo da sociedade brasileira18
Com o desenvolvimento das relaccedilotildees sociais capitalistas nas sociedades
modernas forjou-se a ideia do trabalho como algo positivo que conferia honra e
dignidade ao homem Ele passou a ser considerado um ldquoremeacutediordquo para combater os
viacutecios a ociosidade e a criminalidade
No Brasil a construccedilatildeo de uma nova eacutetica sobre o trabalho ocorreu durante o
processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre e a concomitante constituiccedilatildeo do
proletariado urbano19
Segundo Sidney Chalhoub durante o processo de constituiccedilatildeo do
trabalho livre no Brasil no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX tornou-se
imprescindiacutevel a formulaccedilatildeo de novos conceitos e valores sobre o trabalho ou seja era
de fundamental importacircncia retirar o ldquocaraacuteter aviltante e degradadorrdquo que possuiacutea em
consequecircncia de seacuteculos de regime escravista e dar-lhe ldquouma roupagem nova que lhe
17
ENGELS Friedrich A situaccedilatildeo da classe trabalhadora na Inglaterra Satildeo Paulo Boitempo 2010 p
46 18
Delma Pessanha Neves desenvolve uma instigante discussatildeo a respeito da utilizaccedilatildeo do trabalho
infantil (socialmente condenado) no setor agropecuaacuterio Cf PESSANHA NEVES Delma Op cit 1999 19
Cf NEDER Gizlene Op cit 1995
7
desse um valor positivo tornando-se entatildeo o elemento fundamental para a implantaccedilatildeo
de uma ordem burguesa no Brasilrdquo20
Assim analisando a documentaccedilatildeo compulsada procurei compreender as
estrateacutegias forjadas por parte dos grupos dominantes ndash durante o processo de
implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do trabalho livre assalariado e de edificaccedilatildeo de uma
concepccedilatildeo positiva sobre o trabalho ndash para manter sob controle uma parcela da matildeo de
obra infantil pertencente aos grupos subalternos da sociedade O emprego da matildeo de
obra de crianccedilas era visualizado com ldquobons olhosrdquo por fraccedilotildees das classes dominantes
uma vez que a sua remuneraccedilatildeo era inferior a de um trabalhador adulto21
Aleacutem do fator
econocircmico o trabalho infanto-juvenil tambeacutem era concebido como um ldquomecanismo
disciplinadorrdquo e fundamental para a constituiccedilatildeo de futuros trabalhadores ordeiros e
obedientes agraves leis22
Desse modo constitui-se o trinocircmio trabalho-disciplina-submissatildeo
As fontes examinadas forneceram um retrato da situaccedilatildeo vivida pelas classes
pobres que aleacutem das duras condiccedilotildees de vida e de sobrevivecircncia ainda precisavam
enfrentar a descaracterizaccedilatildeo de suas relaccedilotildees familiares por parte dos grupos
dominantes que propalavam que as famiacutelias das classes desfavorecidas eram marcadas
pela desestruturaccedilatildeo pela falta de haacutebitos de higiene e pela imoralidade Com esse
discurso pretendia-se justificar as accedilotildees de controle social visando enquadrar a
populaccedilatildeo pobre dentro dos valores e das normas disciplinares da sociedade burguesa
Nesse contexto o discurso juriacutedico teve um papel relevante uma vez que
segundo o pensamento corrente entre vaacuterios intelectuais brasileiros do periacuteodo para o
paiacutes alcanccedilar o patamar de naccedilatildeo ldquocivilizadardquo e moderna um dos pressupostos seria o
disciplinamento de sua populaccedilatildeo ou seja era preciso manter a ldquoordemrdquo para atingir o
ldquoprogressordquo Como assinala Gizlene Neder o discurso juriacutedico foi extremamente
importante naquele momento para normatizar a repressatildeo e o controle social
principalmente com relaccedilatildeo agrave questatildeo do mercado de trabalho capitalista que estava se
constituindo no paiacutes23
A imprensa foi um relevante veiacuteculo de divulgaccedilatildeo da nova eacutetica do trabalho
sendo que os jornais foram um instrumento utilizado pelos setores dominantes ou por
20
CHALHOUB Sidney Trabalho lar e botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle eacutepoque 2 ed Campinas (SP) Ed da UNICAMP 2001 p 65 21
MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Crianccedilas operaacuterias na receacutem industrializada Satildeo Paulo In
PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil Satildeo Paulo Contexto 2006 p 271-273 Cf
THOMPSON EP Op cit 2002 215 22
FOUCAULT Michel Op Cit 2007 23
NEDER Gizlene Discurso Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris
Editor 1995 p 12-23
8
seus representantes para divulgarem suas ideias bem como um meio de exigirem dos
poderes puacuteblicos medidas mais eneacutergicas contra os ditos problemas sociais crianccedilas
pobres mendigos vadios e prostitutas Por meio da imprensa o discurso meacutedico-
juriacutedico passou a ser divulgado no seio da sociedade e a caracterizaccedilatildeo da infacircncia
pobre foi se consolidando como um grave problema para a sociedade Nesse contexto
deu-se a construccedilatildeo do termo ldquomenorrdquo para designar a crianccedila desvalida abandonada e
delinquente tendo a imprensa contribuiacutedo para difusatildeo do termo com esse caraacuteter
estigmatizante24
Pelo fato de o termo ldquomenorrdquo ter adquirido essa conotaccedilatildeo preconceituosa no
final do seacuteculo XIX e ao longo do XX o seu emprego no texto seraacute sempre entre aspas
para indicar a existecircncia de um sentido pejorativo em torno da referida expressatildeo
A pesquisa nas fontes consultadas teve principalmente um caraacuteter qualitativo o
que exigiu uma leitura e uma anaacutelise minuciosa da documentaccedilatildeo Este meacutetodo me
possibilitou um conhecimento mais detalhado da fonte bem como uma percepccedilatildeo mais
apurada da visatildeo dos setores dominantes com relaccedilatildeo agraves crianccedilas desvalidas25
A partir de leituras que discutem a situaccedilatildeo da infacircncia pobre no Brasil comecei
a perceber a importacircncia de examinar esse tema para o municiacutepio de Juiz de Fora por
dois motivos Primeiro pela importacircncia da cidade no cenaacuterio econocircmico do estado de
Minas Gerais e do Brasil na passagem agrave modernidade A cidade se constituiu ateacute por
volta da deacutecada de 1920 em um dos principais municiacutepios cafeicultor de Minas Gerais
e no principal centro industrial mineiro Em segundo lugar por se tratar de um tema
24
Cf MARCIacuteLIO Maria Luiza Histoacuteria Social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC
2006 NEDER Vinicius Jornalismo e exclusatildeo social anaacutelise comparativa nas coberturas sobre
crianccedilas e adolescentes Rio de Janeiro Editora Multifoco 2011 BATISTA Vera Malaguti Difiacuteceis
ganhos faacuteceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro 2 ed Rio de Janeiro Editora Revan 2003
LONDONtildeO Fernando Torres ldquoA origem do conceito menorrdquo In DEL PRIORE Mary (org) Histoacuteria
da crianccedila no Brasil Satildeo Paulo Contexto 1991 25 Gizlene Neder no artigo ldquoEntre o dever e a caridaderdquo analisou o Asilo dos Meninos Desvalidos e o
Imperial Instituto de Meninos Cegos Segundo o Regulamento do Asilo de 1875 o estabelecimento
destinava-se a recolher ldquomenoresrdquo com idades entre 6 e 12 anos NEDER Gizlene ldquoEntre o dever e a
caridade assistecircncia abandono repressatildeo e responsabilidade parental do Estadordquo In Discursos
Sediciosos (RJ) RJ v Ano 9 n 14 pp 199 ndash 231 2004 Cf FRAGA FILHO Walter Mendigos
moleques e vadios na Bahia do seacuteculo XIX Satildeo Paulo HICITECSalvador (BA) EDUFBA 1996
FRANCISCO Raquel Pereira ldquoOs deserdados da Repuacuteblica a infacircncia pobre em Juiz de Fora no final do
seacuteculo XIX e nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XXrdquo In Anais do XV Encontro Regional de Histoacuteria
(Anpuh-Rio) ndash Ofiacutecio do Historiador ensino e pesquisa Satildeo Gonccedilalo UERJFFP 2012a Disponiacutevel
em
wwwencontro2012rjanpuhorgresourcesanais1513383334456_ARQUIVO_OsDeserdadosdaRepublic
a_anpuh_2012pdf Acessado em 01-07-2015 ___________ ldquoA infacircncia como objeto de estudordquo In
Duc in Altum ndash Revista de Ciecircncias e Conhecimento Muriaeacute (MG) Faculdade de Filosofia Ciecircncias e
Letras Santa Marcelina (FAFISM) v 12 n 1 dezembro 2013 pp 179-190
9
pouco explorado pelos pesquisadores da aacuterea de histoacuteria26
Os trabalhos desenvolvidos
pelos estudiosos locais dedicam-se principalmente agrave anaacutelise da economia cafeeira da
propriedade escrava dos conflitos por terras das relaccedilotildees familiares e de parentesco dos
escravos e dos libertos das estrateacutegias camponesas de sobrevivecircncia da questatildeo da
pobreza e da assistecircncia da imigraccedilatildeo do movimento operaacuterio do processo de
urbanizaccedilatildeo e industrializaccedilatildeo da ldquoAtenas Mineirardquo27
e de seus literatos entre outros
Entretanto eacute necessaacuterio ressaltar que alguns desses trabalhos abordam o problema da
infacircncia desvalida e ou operaacuteria mas esta natildeo constitui o cerne da discussatildeo dos
estudos dos pesquisadores28
A existecircncia de fontes disponiacuteveis nos arquivos e centros de memoacuteria do
municiacutepio tornou viaacutevel o desenvolvimento do projeto Ao iniciar a pesquisa nos
arquivos tinha a intenccedilatildeo de examinar apenas os processos de tutelas e os jornais
Entretanto deparei-me com outras seacuteries documentais que se apresentaram de grande
relevacircncia para o meu estudo Desta maneira foram incluiacutedos os processos de
apreensatildeo de internaccedilatildeo de acidentes no trabalho envolvendo ldquomenoresrdquo e um
processo de lesatildeo corporal A inclusatildeo dos processos judiciais trouxe novos
questionamentos com relaccedilatildeo agrave infacircncia pobre e operaacuteria do municiacutepio de Juiz de Fora
A tese eacute composta por quatro capiacutetulos O primeiro foi intitulado ldquoA infacircncia
como um problema social na passagem agrave modernidade no Brasilrdquo Nele analisei a
historiografia brasileira sobre a problemaacutetica da infacircncia pobre no Brasil fazendo um elo
com os estudos em acircmbito internacional Essa questatildeo foi examinada levando em
consideraccedilatildeo o processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre bem como de
implantaccedilatildeo de uma nova forma de governo na sociedade brasileira o republicano O
objetivo era compreender como as classes dominantes que procuravam construir uma
imagem do Brasil como uma naccedilatildeo ldquocivilizadardquo e moderna na passagem agrave
26
O uacutenico trabalho de cunho histoacuterico de que tenho conhecimento que discute a questatildeo da infacircncia no
municiacutepio de Juiz de Fora durante a Primeira Repuacuteblica eacute o de Laura Valeacuteria Pinto Ferreira Cf
FERREIRA Laura Valeacuteria Pinto Entre a repressatildeo e a caridade crianccedilas desamparadas em uma
sociedade em construccedilatildeo (1890-1927) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Juiz de Fora UFJF 2009 27
ROSA Rita de Caacutessia Vianna ldquoA General das Letrasrdquo a literata Cosette de Alencar e a ldquosuardquo cidade
ndash Juiz de Fora (MG) 1918 a 1973 Tese de Doutoramento Niteroacutei UFF 2013 28
Cf ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe operaacuteria em Juiz de Fora uma histoacuteria de lutas
(1912 ndash 1924) Juiz de Fora EDUFJF 1987 GOODWIN JUNIOR James William Cidades de Papel
imprensa progresso e tradiccedilotildees Diamantina e Juiz de Fora MG (1884-1914) Tese de Doutoramento
Satildeo Paulo USP 2007 GUIMARAtildeES Elione S Muacuteltiplos viveres de afrodescendentes na escravidatildeo e
no poacutes-emancipaccedilatildeo famiacutelia trabalho terra e conflito (Juiz de Fora ndash MG 1828-1928) Satildeo Paulo
Annablume Juiz de Fora FUNALFA 2006 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Os trabalhadores e a cidade
a formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de Fora e suas lutas por direito (1877-1920) Juiz de Fora (MG)
Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV 2010 PINTO Jefferson de Almeida Controle social e pobreza
(Juiz de Fora c 1876 ndash c 1922) Juiz de Fora (MG) Editar 2008
10
modernidade posicionaram-se frente ao problema da infacircncia desvalida que vivia pelas
ruas das grandes cidades Nesse contexto o pensamento meacutedico-juriacutedico teve um papel
de grande relevacircncia na formulaccedilatildeo de estrateacutegias de controle social natildeo apenas
destinadas aos ldquomenoresrdquo mas para a populaccedilatildeo pobre em geral Assim as propostas de
supressatildeo do paacutetrio poder e de o Estado assumir a responsabilidade parental29
sobre a
infacircncia desvalida abandonada e delinquente foi se ampliando no decorrer das
primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Por meio da anaacutelise empreendida sobre a literatura que
discute tal temaacutetica pude observar a ineficaacutecia das poliacuteticas de assistecircncia destinadas agraves
crianccedilas das classes subalternas da sociedade No terceiro item do primeiro capiacutetulo
examinei a cidade de Juiz de Fora e seus ldquomenoresrdquo abandonados desvalidos
delinquentes e operaacuterios atraveacutes fundamentalmente dos perioacutedicos locais Nesse item
procurei compreender como as ideias de modernidade ldquocivilizaccedilatildeordquo higienismo e
controle social foram incorporadas pelas classes dominantes locais A presenccedila de
ldquomenoresrdquo nas vias puacuteblicas foi algo constantemente combatido pelos oacutergatildeos da
imprensa no decorrer das trecircs primeiras deacutecadas do novecentos Os artigos publicados
referentes a tal situaccedilatildeo advogavam da necessidade urgente de a cidade contar com uma
instituiccedilatildeo que educasse e protegesse as crianccedilas desvalidas preparando-as para serem
bons trabalhadores ordeiros e disciplinados
No segundo capiacutetulo ldquoOs pequenos desvalidos Juiz de Fora ndash (1888-1930)rdquo
desenvolvi uma reflexatildeo acerca das estrateacutegias forjadas pelas classes dominantes de
manutenccedilatildeo e controle de uma parcela da matildeo de obra a baixo custo atraveacutes do
estabelecimento do viacutenculo tutelar de crianccedilas pertencentes agraves camadas subalternas da
sociedade Por meio dos processos de tutelas e de apreensatildeo de menores investiguei a
ldquoresistecircnciardquo das classes desfavorecidas agraves medidas de controle social e de
descaracterizaccedilatildeo de suas relaccedilotildees familiares e de parentesco bem como a ldquolutardquo para
manterem a guarda de suas crianccedilas O exame dessa documentaccedilatildeo ndash tutelas e
apreensatildeo de menores ndash apresentou uma variedade de questotildees a ser abordada sobre a
infacircncia pobre Por intermeacutedio dos processos eacute viaacutevel examinar as relaccedilotildees familiares e
a precariedade das condiccedilotildees de vida e de sobrevivecircncia das classes populares As
29
Pierre Legendre (1992) na obra ldquoLes enfants du texte Eacutetude sur la fonction parentale des Eacutetatsrdquo
trabalha com o conceito de funccedilatildeo parental do Estado Segundo Gizlene Neder o conceito refere-se a um
ldquoconjunto de praacuteticas poliacuteticas e ideoloacutegicas encetadas a partir de um lugar de poder dentro de uma dada loacutegica institucionalrdquo A autora assinala que fez ldquoum pequeno deslocamento conceitual afirmando a ideia
de responsabilidade parentalrdquo por entender que o conceito empregado por Legendre ldquoestaacute muito mais
proacuteximo da ideia de responsabilidade do que de funccedilatildeordquo Neder ressalta que a responsabilidade parental
do Estado (do ponto de vista social poliacutetico ideoloacutegico e juriacutedico) natildeo eacute equivalente ao paternalismo
ldquono seu sentido pejorativordquo Cf NEDER Gizlene Op cit 2004 p 202-203
11
condiccedilotildees sociais e econocircmicas desfavoraacuteveis em determinados momentos
contribuiacuteram para que as famiacutelias pobres abandonassem sua prole solicitassem a
nomeaccedilatildeo de um tutor e ou a destituiccedilatildeo do paacutetrio poder
No terceiro capiacutetulo ldquoPor entre maacutequinas e engrenagens as crianccedilas operaacuterias
da lsquoManchester Mineirarsquordquo analisei as reivindicaccedilotildees operaacuterias durante a Primeira
Repuacuteblica e o esboccedilar de uma legislaccedilatildeo social trabalhista nos anos 1920 As condiccedilotildees
precaacuterias e as longas jornadas de trabalho bem como a exploraccedilatildeo do trabalho infantil e
feminino foram questotildees debatidas nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX Nessa mesma
deacutecada deu-se a aprovaccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo destinada agrave infacircncia pobre abandonada e
delinquente O Coacutedigo de Menores (1927) procurou abarcar todos os aspectos referentes
agrave assistecircncia proteccedilatildeo ao controle e puniccedilatildeo das crianccedilas das classes pobres Por esse
Coacutedigo o trabalho infanto-juvenil foi regulamentado Nesse capiacutetulo foram analisados
os acidentes no trabalho e as agressotildees e violecircncias contra os operaacuterios nos
estabelecimentos industriais de Juiz de Fora Pela anaacutelise dos processos de acidentes no
trabalho pude apurar as condiccedilotildees precaacuterias de trabalho e de vida dos trabalhadores do
municiacutepio Nesses espaccedilos de ldquodisciplinardquo o emprego de crianccedilas e adolescentes
submetidas a uma longa jornada de trabalho sem momentos para o lazer e as
brincadeiras ndash proacuteprias para suas idades ndash foram palcos de graves acidentes sendo
alguns fatais Os estabelecimentos industriais comerciais entre outros tambeacutem foram
locais onde as crianccedilas proletaacuterias vivenciaram vaacuterios tipos de violecircncias fiacutesicas morais
e psicoloacutegicas Examinando um processo de lesatildeo corporal de um operaacuterio do setor
tecircxtil pude abordar a questatildeo dos castigos fiacutesicos impostos aos trabalhadores de forma
geral e principalmente sobre as crianccedilas
No quarto e uacuteltimo capiacutetulo ldquoOs lsquodeserdados da sortersquo a assistecircncia aos
lsquomenoresrsquo pobres de Juiz de Forardquo meu objetivo foi examinar os discursos em torno da
problemaacutetica da assistecircncia social aos ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e
indigitados como delinquentes No alvorecer do seacuteculo XX a sociedade brasileira
passava por um momento de reestruturaccedilatildeo e organizaccedilatildeo do Estado sob a forma
republicana Desse modo estava dando os primeiros passos no processo de
regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre nas questotildees relativas ao controle social
agrave assistecircncia a ser destinada aos setores desfavorecidos entre outros encaminhamentos
Segundo Gizlene Neder as modificaccedilotildees pelas quais o paiacutes estava passando
espelhavam ldquoas necessidades histoacuterico-sociais da edificaccedilatildeo de uma ordem juriacutedico-
12
poliacutetica a um soacute tempo moderna e legitimada poliacutetica e ideologicamenterdquo30
Assim
durante todo o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica a problemaacutetica da assistecircncia do controle
social da educaccedilatildeo e da necessidade de o Estado assumir as suas funccedilotildees parentais para
com a infacircncia desvalida foi uma questatildeo presente continuamente nos debates e
projetos de segmentos da intelectualidade de poliacuteticos juristas meacutedicos higienistas
setores da burguesia industrial entre outros
Neste uacuteltimo capiacutetulo examinei tambeacutem os casos de abandono de dar ldquopara
criarrdquo e de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo O ato de abandonar a prole - seja o literal o dar
ldquopara criarrdquo ou internaacute-la em instituiccedilotildees - era (eacute) perpassado por diversos fatores como
a falta de recursos econocircmicos problemas de sauacutede motivos morais dificuldades de
relacionamento entre os filhos e os novos companheiros dos genitores entre outros
motivos Analisei processos de tutelas e internaccedilatildeo em que foi possiacutevel presumir o ato
do abandono e que me permitiram em alguns casos examinar as condiccedilotildees de vida e de
sobrevivecircncia dos ldquomenoresrdquo e de seus familiares
Por meio dos perioacutedicos e dos processos judiciais foi possiacutevel observar a
presenccedila do discurso dominante sobre o caraacuteter positivo do trabalho como um meio de
preservar a infacircncia desvalida e de regenerar aquela considerada delinquente As
instituiccedilotildees assistenciais aparecem como o locus privilegiado em alguns discursos para
a salvaccedilatildeo da infacircncia e que redundaria na salvaccedilatildeo da paacutetria
Finalizando o capiacutetulo realizei um estudo de caso referente ao processo de
internaccedilatildeo de dois irmatildeos em estabelecimentos de assistecircncia situados na capital do
estado de Minas Gerais Estudando esse processo pude alargar o meu conhecimento
sobre as condiccedilotildees de vida e familiar das crianccedilas provenientes das classes mais baixas
As discussotildees realizadas nesta tese procurou dialogar de certa forma com a
situaccedilatildeo atual da infacircncia pobre de ldquoruardquo trabalhadora abandonada interna e
explorada sexualmente Em outras palavras minha pretensatildeo foi procurar perceber as
mudanccedilas e permanecircncias nos debates e accedilotildees praacuteticas no que concerne agrave infacircncia
pobre fiacutesica e socialmente desamparada Essa eacute uma temaacutetica bem atual visto que
ainda eacute uma questatildeo natildeo resolvida e em debate no Brasil No momento presente a
discussatildeo eacute relativa agrave reduccedilatildeo da maioridade penal na qual pode ser observada a
permanecircncia de ideias de princiacutepios do seacuteculo XX em alguns discursos
30
NEDER Gizlene Discurso juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris
Editor 1995 p 39
13
A epiacutegrafe escolhida para este trabalho fala dos silecircncios do ldquodesconhecimentordquo
dos ldquoabusosrdquo de natildeo se querer perceber a miseacuteria Assim eacute a situaccedilatildeo da infacircncia
pobre na histoacuteria do Brasil Ela eacute ldquoesquecidardquo ldquodesconhecidardquo ldquoinvisiacutevelrdquo ateacute ldquose
rebelarrdquo mostrar a sua fragilidade a sua forccedila a sua revolta e o seu grito de socorro
Quando isso ocorre planejam e constroem novos espaccedilos de reclusatildeo com novas
nomenclaturas Voltam com a infacircncia pobre para os porotildees da sociedade e da histoacuteria
14
CAPIacuteTULO 1
A INFAcircNCIA COMO UM PROBLEMA SOCIAL NA
PASSAGEM Agrave MODERNIDADE NO BRASIL
Imagem 1 ldquoMenorrdquo Joatildeo Theodoro Monteiro ndash 1929 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processo
relativo agrave internaccedilatildeo de Menores ndash Joatildeo Theodoro Monteiro -1929
15
11 ldquoFLORES DE UMA GERACcedilAtildeO FUTURArdquo A QUESTAtildeO DA
INFAcircNCIA POBRE NO BRASIL
Assistido educado a tempo na escola da honra e do trabalho o menino
desvalido desabrocharaacute no homem forte de corpo e de alma aparelhado
material e moralmente para ser uma unidade no movimento de expansatildeo
civilisadora da Patria [] (Leacuteon Renault)31
A infacircncia tornou-se objeto de estudo da historiografia brasileira a partir
principalmente da deacutecada de 1980 em cujo contexto as classes subalternas foram
obtendo cada vez mais espaccedilos nas anaacutelises histoacutericas e socioloacutegicas32
Para a produccedilatildeo
e o crescimento da temaacutetica sobre a infacircncia as ldquoflores de uma geraccedilatildeo futurardquo33
foi de
suma importacircncia a incorporaccedilatildeo de novos procedimentos teoacutericos e metodoloacutegicos
Nesse sentido a histoacuteria demograacutefica o diaacutelogo com as outras ciecircncias sociais como a
antropologia a pedagogia a psicologia o direito e a sociologia foram extremamente
importantes uma vez que possibilitaram aos estudiosos a realizaccedilatildeo de uma releitura
das fontes com um novo olhar bem como o emprego de outras seacuteries documentais ndash
revistas jornais fotografias cartas processos crimes tutelas entre outras
A revisatildeo historiograacutefica levada a cabo a partir sobretudo dos anos de 1980
possibilitou uma nova interpretaccedilatildeo das relaccedilotildees entre dominantes e dominados na
sociedade brasileira As novas abordagens histoacutericas embasadas em fontes diversas
demonstraram que mesmo nas relaccedilotildees assimeacutetricas de dominaccedilatildeo haacute negociaccedilatildeo e
31 RENAULT Leacuteon A assistencia a infancia desvalida em Minas Geraes Belo Horizonte Imprensa
Official do Estado de Minas 1930 p 211 32
De acordo com Acircngela de Castro Gomes na deacutecada de 1970 observa-se uma mudanccedila na
historiografia brasileira no que diz respeito ao tema da questatildeo social Em algumas anaacutelises os
dominados jaacute figuravam como atores histoacutericos e sujeitos de suas histoacuterias Entretanto foi nos anos de
1980 que efetivamente os estudos produziram uma reflexatildeo e um debate mais amplo tendo as classes
menos favorecidas da sociedade como protagonistas de suas histoacuterias Essa revisatildeo historiograacutefica
iniciou-se em um periacuteodo de expansatildeo dos programas de poacutes-graduaccedilatildeo e de redemocratizaccedilatildeo do paiacutes
GOMES Acircngela de Castro ldquoQuestatildeo social e historiografia no Brasil do poacutes-1980 notas para um
debaterdquo Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro n 34 jul-dez 2004 p 157-158 e 183 Disponiacutevel em
httpbibliotecadigitalfgvbrojsindexphpreharticleview22281367 Acessado em 28-12-2013 Cf
BRETAS Marcos Luiz ROSEMBERG Andreacute ldquoA histoacuteria da poliacutecia no Brasil balanccedilos e
perspectivasrdquo In Topoi v 14 n 26 jan-jul pp 162-173 2013 p 166 Disponiacutevel em
wwwrevistatopoiorgnumeros_anteriorestopoi26TOPOI26_2013_TOPOI_26_E01pdf Acessado em
02-07-2015 33 SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 02 ago 1912 p 1 A expressatildeo ldquoflores de uma geraccedilatildeo
futurardquo foi retirada da reportagem sobre o projeto de lei para a regulamentaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho das
crianccedilas nos estabelecimentos industriais de Juiz de Fora O projeto apresentado agrave Cacircmara Municipal
pelo vereador Dr Pinto de Moura foi elogiado pela mateacuteria que assinalou que as accedilotildees em prol dos
operaacuterios deveriam comeccedilar pelas crianccedilas que eram as ldquoflores de uma geraccedilatildeo futurardquo Cf ldquoTirasrdquo
Jornal do Commercio 02 ago 1912 p 1
16
pacto poliacutetico e que os setores dominantes da sociedade natildeo foram (e natildeo satildeo ainda)
capazes de anular a subjetividade dos dominados As anaacutelises poacutes-1980 transformaram
o ldquosentido de um conjunto de comportamentos individuais e coletivos politizando uma
seacuterie de accedilotildees e introduzindo novos atores como participantes da poliacuteticardquo34
A revisatildeo
nos estudos brasileiros relacionados ao tema da questatildeo social estaacute inserida em um
contexto internacional de renovaccedilatildeo teoacuterica e metodoloacutegica da historiografia35
No processo de inserccedilatildeo das classes subalternas da sociedade nos estudos a
demografia histoacuterica teve um papel relevante A sua utilizaccedilatildeo como meacutetodo de anaacutelise
pela Histoacuteria Social trouxe uma dimensatildeo ldquoateacute entatildeo inusitada agrave histoacuteria da famiacuteliardquo36
Os primeiros esforccedilos de anaacutelise sobre o comportamento reprodutivo e econocircmico das
famiacutelias foram realizados pelos franceses seguidos pelos ingleses37
De acordo com
Maria Luiza Marciacutelio ldquoa Demografia Histoacuterica agrave frente acompanhada de diversas
ciecircncias do Homem vem dando ecircnfase ao estudo da infacircncia desvalidardquo38
No Brasil em consonacircncia com toda renovaccedilatildeo pela qual a historiografia
passou a partir dos anos de 1980 vaacuterios trabalhos abordando uma multiplicidade de
questotildees sobre a infacircncia comeccedilaram a ser desenvolvidos Dentro desse cenaacuterio foram
criados os centros de estudos destinados a promover pesquisas abordando esse tema em
distintos periacuteodos de nossa histoacuteria da colocircnia aos dias atuais39
Segundo Irene Rizzini em niacutevel internacional as abordagens histoacutericas sobre a
infacircncia datam do iniacutecio do seacuteculo XX podendo-se encontrar trabalhos dedicados a tais
34
Idem p 158 35
Ibidem 36
CASTRO Hebe ldquoHistoacuteria Socialrdquo In CARDOSO Ciro Flamarion VAINFAS Ronaldo (orgs)
Domiacutenios da Histoacuteria ensaios de teoria e metodologia Rio de Janeiro Campus 1997 p 49 37
FARIA Sheila de Castro ldquoHistoacuteria da famiacutelia e demografia histoacutericardquo In CARDOSO Ciro
Flamarion VAINFAS Ronaldo (orgs) Op cit 1997a p 244-249 38
MARCIacuteLIO Maria Luiza Histoacuteria social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo Ed HUCITEC
2006 p 11-12 e 127 39
Em 1984 foi fundada na Universidade Santa Uacutersula a Coordenaccedilatildeo de Estudos e Pesquisas sobre a
Infacircncia (CESPIUSU) O CESPIUSU eacute um centro de pesquisa e documentaccedilatildeo que definiu como meta
ldquopromover o desenvolvimento da pesquisa e da accedilatildeo social junto agrave infacircncia pobre e excluiacuteda estimular o
conhecimento e socializar a informaccedilatildeo produzida no Brasil e em outros paiacuteses sobretudo da Ameacuterica
Latinardquo RIZZINI Irene RIZZINI Irma HOLANDA Fernanda Rosa Borges de A crianccedila e o
adolescente no mundo do trabalho Rio de Janeiro USU Ed Universitaacuteria Amais Livraria e Editora
1996 (Seacuterie Banco de Dados ndash 4) No mesmo ano de 1984 foi criado pela professora Maria Luiza
Marciacutelio na Universidade de Satildeo Paulo (USP) o Centro de Estudos de Demografia Histoacuterica da Ameacuterica
Latina (Cedhal) Um dos campos de pesquisa desenvolvidos pelo Cedhal foi sobre a histoacuteria da infacircncia
brasileira com destaque para a infacircncia pobre desvalida abandonada e marginal MARCIacuteLIO Maria
Luiza Histoacuteria social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo Ed HUCITEC 2006 Na deacutecada de
1990 surgiu o Nuacutecleo de Estudos Avanccedilados em Histoacuteria Social da Infacircncia ligado ao Centro de
Documentaccedilatildeo e Apoio agrave Pesquisa em Histoacuteria da Educaccedilatildeo (CDAPH) da Universidade de Satildeo
Francisco FREITAS Marcos Cezar de Histoacuteria Social da Infacircncia no Brasil 6 ed Satildeo Paulo Cortez
2006
17
temaacuteticas em paiacuteses como Inglaterra Franccedila e Estados Unidos Entretanto foi com o
trabalho de Philippe Ariegraves ldquoHistoacuteria Social da crianccedila e da famiacuteliardquo tendo o tiacutetulo
original ldquoLrsquoenfance et la vie familiale sous lrsquoAncien Reacutegimerdquo na deacutecada de 1960 que as
anaacutelises histoacutericas com foco na infacircncia adquiriram maior relevacircncia A autora ainda
assinala que essa obra ldquocausou tanto impacto que passou a ser uma das principais
referecircncias para qualquer texto publicado no mundo ocidental sobre crianccedila inclusive
no Brasilrdquo40
Colin Heywood assevera que ateacute a deacutecada de 1950 poucos historiadores haviam
se dedicado ao estudo da infacircncia sendo tal temaacutetica praticamente nova entre os
trabalhos historiograacuteficos41
As primeiras anaacutelises dedicaram-se mais a aspectos
institucionais ficando em um plano secundaacuterio as ldquoideias sobre a infacircncia e as
crianccedilasrdquo42
Entretanto as pesquisas histoacutericas contribuiacuteram ldquopara um reconhecimento
da construccedilatildeo social da infacircncia no qual as comparaccedilotildees no decorrer do tempo foram
tatildeo instrutivas quanto agraves de caraacuteter intelectualrdquo43
O autor tambeacutem destaca que apesar
dos problemas metodoloacutegicos e de anaacutelise observados por alguns pesquisadores na
abordagem desenvolvida por Ariegraves eacute inegaacutevel a sua relevacircncia para o estudo de tal
questatildeo
O trabalho de Philippe Ariegraves foi alvo de severas criacuteticas nas deacutecadas de 1960 e
1970 O historiador francecircs examinou a questatildeo da infacircncia e da morte na Europa
ocidental cristatilde da Idade Meacutedia ao seacuteculo XVIII utilizando diversas fontes para
embasar seus argumentos a respeito da pouca importacircncia conferida agraves crianccedilas naquela
sociedade e de como a mesma foi paulatinamente adquirindo cada vez mais relevo no
seio familiar e no conjunto da sociedade agrave medida que declinava o periacuteodo medieval44
Ariegraves em ldquoHistoacuteria Social da crianccedila e da famiacuteliardquo assinalou que a crianccedila apenas na
sua tenra idade recebia os cuidados necessaacuterios ou ldquopaparicosrdquo como ele nomeou
Apoacutes essa fase da vida ela ingressava no mundo dos adultos e todo o seu aprendizado
ocorria atraveacutes desse conviacutevio ou seja natildeo havia uma consciecircncia da especificidade
dessa fase da vida Essa situaccedilatildeo vivenciada pelas crianccedilas durante o periacuteodo medieval
segundo o autor foi se transformando ao longo do tempo em que as sociedades
40
RIZZINI Irene O seacuteculo perdido raiacutezes histoacutericas das poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil 2
ed Satildeo Paulo Cortez 2008 p 37 41
HEYWOOD Colin Uma histoacuteria da infacircncia da Idade Meacutedia agrave Eacutepoca Contemporacircnea no Ocidente
Porto Alegre Artmed 2004 p 13 42
Idem p 13 43
Ibidem 44
VAINFAS Ronaldo Os protagonistas anocircnimos da Histoacuteria micro-histoacuteria Rio de Janeiro Campus
2002 p 42 ndash 43
18
modernas apresentaram caracteriacutesticas completamente opostas e a crianccedila passou a ser
cercada de cuidados e afeiccedilotildees bem como passou a ser percebida como um ser diferente
do adulto45
Segundo Kuhlmann Jr e Fernandes a anaacutelise desenvolvida por Ariegraves sobre a
infacircncia durante o periacuteodo medieval foi construiacuteda em cima de ldquofundamentos
insuficientes e vulneraacuteveisrdquo46
A percepccedilatildeo das vaacuterias fases da vida humana e de que a
infacircncia constituiacutea uma delas com suas especificidades proacuteprias foi observada em
vaacuterios estudos desde a Antiguidade e nas mais diversas constituiccedilotildees sociais Os
autores ainda ressaltaram os graves problemas que a aplicaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo de
Ariegraves sobre a infacircncia na sociedade francesa pode ocasionar quando utilizada em
outros paiacuteses com caracteriacutesticas distintas daquela por ele analisada A observaccedilatildeo por
parte dos estudiosos das tensotildees existentes entre ldquouniversalidade e particularidadesrdquo eacute
uma preacute-condiccedilatildeo das anaacutelises histoacutericas47
Esses aspectos precisam ser levados em
consideraccedilatildeo quando do exame de uma determinada sociedade
Jacques Geacutelis em seu estudo demonstrou que os povos da Europa Ocidental no
periacuteodo medieval tinham a percepccedilatildeo de que a vida humana eacute constituiacuteda de vaacuterias
etapas sendo uma delas a infacircncia O autor ainda assevera que a preocupaccedilatildeo com a
vida da crianccedila fica bem evidente nas anaacutelises a partir da Idade Moderna Entretanto
isso natildeo significa que nos periacuteodos histoacutericos anteriores natildeo tenha havido a preocupaccedilatildeo
com a sauacutede e a vida das crianccedilas48
Geacutelis ressalta que a atitude de recusa dos homens
frente agrave doenccedila e agrave perda de um ente representa um ldquonovo imaginaacuterio da vida e do
tempordquo e que esse aspecto torna-se mais evidente a partir do seacuteculo XVI quando a
ldquovontade de tratar-se e sarar manifesta-se tatildeo fortemente que natildeo deixa duacutevida quanto
ao novo olhar que o homem agora lanccedila sobre si mesmordquo49
Com relaccedilatildeo agrave questatildeo do
sentimento dos paisfamiacutelia pela crianccedila Geacutelis assinala o seguinte
Eacute difiacutecil acreditar que a um periacuteodo de indiferenccedila com relaccedilatildeo agrave crianccedila se
teria sucedido outro durante o qual com a ajuda do ldquoprogressordquo e da
ldquocivilizaccedilatildeordquo teria prevalecido o interesse O interesse ou a indiferenccedila com
relaccedilatildeo agrave crianccedila natildeo satildeo realmente a caracteriacutestica desse ou daquele periacuteodo
45
ARIEgraveS Philippe Histoacuteria social da crianccedila e da famiacutelia 2 ed Rio de Janeiro LTC 2006 46
KUHLMANN JR Moiseacutes FERNANDES Rogeacuterio ldquoSobre a histoacuteria da infacircnciardquo In FARIA FILHO
Luciano Mendes (org) A infacircncia e sua educaccedilatildeo ndash materiais praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e
Brasil) Belo Horizonte Autecircntica 2004 p 16 47
Idem p 16-17 48
GEacuteLIS Jacques ldquoA individualizaccedilatildeo da crianccedilardquo In CHARTIER Roger Histoacuteria da vida privada da
renascenccedila ao Seacuteculo das Luzes Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 p 307-309 49
Idem p 309
19
da histoacuteria As duas atitudes coexistem no seio de uma mesma sociedade
uma prevalecendo sobre a outra em determinado momento por motivos
culturais e sociais que nem sempre eacute faacutecil distinguir A indiferenccedila medieval
pela crianccedila eacute uma faacutebula50
(Grifos meus)
Geacutelis chama de ldquofaacutebulardquo a interpretaccedilatildeo desenvolvida por Ariegraves de que no
periacuteodo medieval tenha predominado uma indiferenccedila em relaccedilatildeo agrave infacircncia As criacuteticas
direcionadas agrave interpretaccedilatildeo de Ariegraves destacam a necessidade de se considerar as
caracteriacutesticas culturais sociais poliacuteticas entre outras de cada eacutepoca regiatildeo e povo
Cada periacuteodo da histoacuteria da humanidade cada sociedade apresentouapresenta suas
especificidades no que diz respeito ao tratamento dispensado aos seus pequenos Como
destacam Kuhlmann JR e Fernandes ldquoassim como mudam os mais variados aspectos
da atividade humana a relaccedilatildeo da sociedade com a infacircncia natildeo poderia permanecer
estaacuteticardquo51
Por intermeacutedio das criacuteticas feitas ao estudo de Ariegraves uma pluralidade de
questotildees foi levantada o que contribuiu sobremaneira para a ampliaccedilatildeo das anaacutelises
sobre a infacircncia A obra ldquoHistoacuteria Social da crianccedila e da famiacuteliardquo constitui uma
referecircncia fundamental para a historiografia sobre a infacircncia E na trilha aberta por
Ariegraves multiplicaram-se as abordagens sobre as infacircncias A histoacuteria desses pequenos eacute
procurada nas folhas amareladas e carcomidas pelo tempo por fungos e insetos dos
processos dos diaacuterios dos jornais das cadernetas escolares nas fotografias e em vaacuterias
outras fontes52
O objeto em tela nesse trabalho eacute a infacircncia desvalida do final do seacuteculo XIX e
das primeiras deacutecadas do XX Ao analisar essa parcela da sociedade dentro desse
recorte temporal torna-se imprescindiacutevel discorrer sobre o fim do sistema escravista e
das mudanccedilas que o processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre trouxe para a
sociedade O Brasil foi um paiacutes que durante mais de trecircs seacuteculos utilizou-se do
trabalho escravo africano Ao se examinar a questatildeo da infacircncia pobre da famiacutelia das
classes populares enfim dos grupos desfavorecidos da sociedade natildeo haacute como natildeo
estabelecer um diaacutelogo com a historiografia sobre a escravidatildeo e o poacutes-aboliccedilatildeo dadas
as caracteriacutesticas intriacutensecas da nossa formaccedilatildeo social
50
Ibidem p 317-318 51
KUHLMANN JR Moiseacutes FERNANDES Rogeacuterio Op cit 2004 p 18 52 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoA infacircncia como objeto de estudordquo In Duc in Altum ndash Revista de
Ciecircncias e Conhecimento Muriaeacute (MG) Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras Santa Marcelina
(FAFISM) v 12 n 1 dezembro pp 179-190 2013
20
A reposiccedilatildeo da matildeo de obra escrava ocorreu nas unidades produtivas durante a
maior parte do periacuteodo em que perdurou a escravidatildeo no Brasil por meio do traacutefico
Atlacircntico Somente nos anos derradeiros de tal instituiccedilatildeo jaacute na segunda metade do
seacuteculo XIX por intermeacutedio da Lei Euzeacutebio de Queiroacutes em 1850 o traacutefico internacional
de escravos foi abolido no Brasil Mas a necessidade de braccedilos para a lavoura cafeeira
na regiatildeo sudeste soacute aumentava Uma das soluccedilotildees encontrada pelos ldquobarotildees do
Impeacuteriordquo53
para a continuaccedilatildeo do cultivo da rubiaacutecea foi a importaccedilatildeo de cativos de
outras proviacutencias brasileiras e ou de pequenas e meacutedias unidades Dessa forma o
traacutefico interno de escravos generalizou-se como mecanismo de reposiccedilatildeo de matildeo de
obra Essa estrateacutegia senhorial das regiotildees dinacircmicas da economia teve como efeito a
concentraccedilatildeo social e regional da propriedade escrava que em longo prazo levou agrave
deslegitimaccedilatildeo do sistema escravista bem como a ldquoquebra da cumplicidade do conjunto
da populaccedilatildeo livre com a continuidade da escravidatildeordquo54
Aleacutem de recorrer ao traacutefico interno de escravos restava ainda aos escravocratas
a reposiccedilatildeo por meio dos filhos de suas escravas Poreacutem um novo golpe foi desfechado
sobre a propriedade escrava em 1871 com a promulgaccedilatildeo da Lei Rio Branco de no
2040 de 28 de setembro mais conhecida pelo nome de Lei do Ventre Livre55
a qual
53
Expressatildeo empregada por Joatildeo Luiacutes Fragoso Cf FRAGOSO Joatildeo Luiacutes ldquoO Impeacuterio escravista e a
repuacuteblica dos plantadores parte A economia brasileira no seacuteculo XIX mais que uma plantation
escravista-exportadorardquo In LINHARES Maria Yedda (org) Histoacuteria Geral do Brasil Rio de Janeiro
Campus 1990 54
CASTRO Hebe Maria Mattos de ldquoLaccedilos de famiacutelia e direitos no final da escravidatildeordquo In NOVAIS
Fernando A (coord) e ALENCASTRO Luiz Felipe de (org) Histoacuteria da vida privada no Brasil
Impeacuterio Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997b p 343-344 55
Segundo Martha Abreu a Lei de 28 de setembro de 1871 passou a ser chamada de ldquoVentre Livrerdquo pelos
opositores ao projeto da mesma O governo usava as expressotildees ldquoa questatildeo do elemento servilrdquo ou
ldquoliberdade dos nasciturosrdquo ABREU Martha ldquoMatildees escravas e filhos libertos novas perspectivas em
torno da Lei do Ventre Livre Rio de Janeiro 1871rdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila
no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria
Amais 1997 p 111 112 A Lei do Ventre Livre que muitos acreditam tratar apenas da liberdade dos
filhos das escravas abordou outras questotildees aleacutem do fruto do ventre da mulher cativa Por intermeacutedio
dessa lei aos escravos foi facultada a possibilidade de formar um pecuacutelio de resgatar a si mesmo atraveacutes
da alforria desde que possuiacutesse o seu valor e a revelia do proprietaacuterio entre outros dispositivos Durante
um longo periacuteodo foi corrente na historiografia a ideia de que era um direito dos escravos que
possuiacutessem em espeacutecie o seu valor poderem comprar a si mesmos Era pois colocado como um direito
do escravo Mas em um estudo apurado realizado por Manuela Carneiro da Cunha ficou demonstrado
que esse direito soacute passou a existir formalmente escrito em lei a partir de 1871 atraveacutes da Lei do Ventre
Livre Segundo Manuela Carneiro da Cunha esse erro histoacuterico tem sua origem em Henry Koster e a
partir dele propagou-se entre os viajantes do seacuteculo XIX e os estudiosos do seacuteculo XX Com relaccedilatildeo agrave
intervenccedilatildeo do Estado na libertaccedilatildeo de cativos Cunha cita algumas ocasiotildees excepcionais em que
ocorreram estas interferecircncias Todavia assevera que antes de 1871 o ato de alforriar era uma
prerrogativa exclusiva dos senhores mesmo que o escravo oferecesse seu valor ao senhor este podia
recusar Aceitar a alforria do cativo que oferecia seu valor fazia parte da lei costumeira bem como o
manciacutepio ter um pecuacutelio Cf CUNHA Manoela Carneiro da ldquoSobre os silecircncios da lei lei costumeira e
positiva nas alforrias de escravos no Brasil do seacuteculo XIXrdquo In Antropologia do Brasil mito histoacuteria
etnicidade 2 ed Satildeo Paulo Brasiliense 1987
21
previa que toda crianccedila filha de mulher escrava que nascesse apoacutes a sua promulgaccedilatildeo
seria livre podendo permanecer em companhia de sua matildee ateacute a idade de oito anos de
idade A partir de entatildeo o destino do ingecircnuo56
o filho livre da mulher escrava ficava
nas matildeos do proprietaacuterio da matildee que poderia fazer a opccedilatildeo de aproveitar-se do trabalho
do ldquomenorrdquo ateacute os 21 anos de idade ou entregaacute-lo ao governo e receber uma
indenizaccedilatildeo Essa lei representou mais uma barreira para a continuidade do regime de
trabalho escravo pois acabou com ldquoa parte mais produtiva da propriedade escravardquo ao
deixar livre o ldquoventre geradorrdquo de novos escravos de acordo com as palavras de
fazendeiros do Piraiacute57
A Lei do Ventre Livre promoveu um acalorado debate na sociedade brasileira
atraveacutes dos jornais e de reuniotildees puacuteblicas ateacute ser votada em setembro de 1871 Setores
das classes dominantes comprometidos com o trabalho escravo criticaram o projeto da
lei alegando que era um franco desrespeito ao direito de propriedade Ressaltavam
ainda que seria um desastre para as famiacutelias escravas existentes nas senzalas porque as
crianccedilas livres nascidas apoacutes a lei natildeo respeitariam seus familiares e parentes escravos
A libertaccedilatildeo do ventre teria como consequecircncia o desmantelamento das relaccedilotildees
familiares Outro ponto ressaltado foi que os chamados ldquoventre-livresrdquo natildeo suportariam
ver o sofrimento de seus familiares dentro do cativeiro e por essa razatildeo iriam embora
Segundo Hebe Mattos e Ana Lugatildeo Rios essa argumentaccedilatildeo dos senhores de que a lei
dividiria a famiacutelia escrava pois manteria uma parte presa agrave escravidatildeo e a outra ao
mundo livre natildeo se justificava uma vez que essa situaccedilatildeo jaacute era vivida por alguns
escravos durante o seacuteculo XIX A conquista da liberdade nem sempre significava
afastar-se do grupo familiar uma vez que muitos ex-escravos permaneceram na mesma
unidade produtiva onde haviam sido escravos por causa da existecircncia de parentes ainda
nas senzalas As autoras assinalam que as famiacutelias buscavam formar um pecuacutelio para
56
Segundo Anna Gicelle Garciacutea Alaniz o termo ingecircnuo adotado para denominar o filho livre da mulher
escrava no Brasil foi inspirado no Direito Romano Mas por causa dos receios de parcela da classe
dominante com relaccedilatildeo aos direitos a que as crianccedilas assim denominadas poderiam ter acesso caso
futuramente reivindicassem apoiados no significado que o termo possuiacutea na Roma antiga esse termo foi
retirado do texto da lei do Ventre Livre apesar de ter continuado a ser empregado para se referir a esses
ldquomenoresrdquo Cf ALANIZ Anna Gicelle G Ingecircnuos e libertos estrateacutegias de sobrevivecircncia familiar em
eacutepocas de transiccedilatildeo 1871-1895 Campinas CMUUNICAMP 1997 p 38-39 Cf NEDER Gizlene ldquoAs
poliacuteticas educacionais para a infacircncia e a juventude pobres no Brasil na passagem a Modernidaderdquo In
Revista Ibero-Americana de Educaccedilatildeo n 541 25 out 2010a p 4 Disponiacutevel em
wwwrieoeiorgdeloslectores3402Nederpdf Acessado em 10-07-2015 57
NABUCO Joaquim O Abolicionismo Rio de Janeiro Nova Fronteira Satildeo Paulo Publifolha 2000 p
101
22
comprarem a liberdade de cada um de seus membros ateacute que todos conseguissem
alcanccedilar a liberdade58
De acordo com Martha Abreu a lei de 1871 feria um dos pilares da relaccedilatildeo
escravista ou seja a ldquopoliacutetica paternalistardquo dos senhores de ldquoconceder benesserdquo a seus
cativos como a manumissatildeo Essa poliacutetica senhorial funcionava para os proprietaacuterios
como uma maneira de controlar suas escravarias uma vez que apenas os ldquobons cativosrdquo
recebiam as graccedilas A Lei Rio Branco libertava os filhos de todas as escravas sem a
anuecircncia de seus donos mesmo os filhos daquelas que natildeo se enquadravam no modelo
padratildeo do ldquobom escravordquo59
Hebe Mattos e Ana Lugatildeo Rios corroboram com as
interpretaccedilotildees de que o ponto central na discussatildeo sobre a libertaccedilatildeo do ventre nada
mais era do que a questatildeo da autoridade senhorial Segundo as autoras todas as medidas
tomadas pelo estado imperial com relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo escrava desde 1850 tiveram
como resultado praacutetico transformar antigos costumes em leis A decretaccedilatildeo de leis que
beneficiavam a famiacutelia escrava e a conquista da liberdade foi sentida pelos senhores
como uma interferecircncia em sua autoridade e no seu direito exclusivo de conceder
ldquobenessesrdquo aos seus manciacutepios e em retribuiccedilatildeo ter a gratidatildeo desses indiviacuteduos60
Apoacutes longos debates e algumas modificaccedilotildees no projeto original a lei Rio
Branco foi finalmente promulgada em 28 de setembro de 1871 Para Sidney Chalhoub
o texto aprovado representou ldquoo reconhecimento legal de uma seacuterie de direitos que os
escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitaccedilatildeo de alguns objetivos das lutas dos
negrosrdquo61
A lei de 1871 tem um caraacuteter ambivalente observado pelos contemporacircneos
que a criticaram pelas suas limitaccedilotildees mas tambeacutem ressaltaram a sua importacircncia no
processo de emancipaccedilatildeo do trabalho escravo62
O abolicionista Joaquim Nabuco
assinalou que este foi um ldquopasso de gigante dado pelo paiacutesrdquo ndash apesar de todas as suas
imperfeiccedilotildees sua incompletude e sua injusticcedila ndash pelo fato de simbolizar um ldquobloqueio
moral da escravidatildeordquo63
Em suas ponderaccedilotildees Nabuco ressaltou que a lei de 1871 foi
uma ldquoficccedilatildeo de direitordquo pois as crianccedilas nasciam juridicamente livres mas de fato aos
oito anos de idade eram avaliadas em 600$000 mil reacuteis isto eacute o valorindenizaccedilatildeo pago
58
RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Memoacuterias do cativeiro famiacutelia trabalho e cidadania no poacutes-
emancipaccedilatildeo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 p 165-167 59
ABREU Martha Op cit 1997 p 112 60
RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Op cit 2005 p 49-51 61
CHALHOUB Sidney Visotildees da liberdade uma histoacuteria das uacuteltimas deacutecadas da escravidatildeo na corte
Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 p 159-160 62 Cf NEDER Gizlene Op cit 2010a 63
NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 51
23
ao proprietaacuterio que natildeo quisesse aproveitar-se do trabalho do ingecircnuo a partir dessa
idade ateacute os vinte e um anos Para o abolicionista a lei de setembro de 1871 jaacute nasceu
obsoleta sendo por isso necessaacuterio denunciar os absurdos como o fato de manter o
ldquoingecircnuordquo preso ao cativeiro ateacute a idade de vinte e um anos64
Apesar de todas as falhas
descritas e de muitas outras que poderiam ser citadas a lei de 1871 foi segundo
Nabuco o ldquoprimeiro ato de legislaccedilatildeo humanitaacuteria de nossa Histoacuteriardquo65
Joaquim Nabuco inquiriu sobre o futuro que teriam essas crianccedilas nascidas
livres mas vivendo dentro das senzalas ateacute os vinte e um anos de idade Esses ldquoescravos
provisoacuteriosrdquo66
durante as duas primeiras deacutecadas de suas vidas se sobrevivessem
cresceriam totalmente envolvidos com o trabalho escravo e receberiam a mesma
educaccedilatildeo moral Que cidadatildeo seria o ingecircnuo criado na escravidatildeo e exposto a todos os
seus viacutecios Para Nabuco a sorte do escravo estava associada agrave do ingecircnuo A luta dos
abolicionistas visava atender a essas duas classes dos efeitos maleacuteficos do sistema
escravista67
A indefiniccedilatildeo da situaccedilatildeo social e juriacutedica do ingecircnuo na sociedade brasileira
pode ser observada no estudo desenvolvido por Gizlene Neder sobre o Asilo dos
Meninos Desvalidos e o Imperial Instituto de Meninos Cegos As duas instituiccedilotildees
posicionaram-se contraacuterias agrave admissatildeo de ingecircnuos e crianccedilas libertas Segundo Neder
o diretor do Asilo dos Meninos Desvalidos em um ofiacutecio explicou os motivos para a
recusa da matriacutecula de dois ldquomenoresrdquo assinalou que a instituiccedilatildeo natildeo havia sido criada
para receber ingecircnuos Com relaccedilatildeo ao Imperial Instituto de Meninos Cegos a mesma
problemaacutetica se apresenta ou seja destinava-se ao atendimento de crianccedilas livres Os
meninos portadores de alguma deficiecircncia fiacutesica ou mental e de ldquomoleacutestias contagiosas
ou incuraacuteveisrdquo tambeacutem natildeo eram aceitos nas ditas instituiccedilotildees68
Para Neder o
64
A Lei Rio Branco de 28 de setembro de 1871 no Art 1o assinala que ldquoOs filhos da mulher escrava que
nascerem no Impeacuterio desde a data desta lei seratildeo considerados de condiccedilatildeo livre E fica estipulado no
sect1ordm ldquoOs ditos filhos menores ficaratildeo em poder e sob a autoridade dos senhores de suas matildees os quais
teratildeo obrigaccedilatildeo de criaacute-los e trataacute-los ateacute a idade de oito anos completos Chegando o filho da escrava a
esta idade o senhor da matildee teraacute a opccedilatildeo ou de receber do Estado a indenizaccedilatildeo de 600$000 ou de
utilizar-se dos serviccedilos do menor ateacute a idade de 21 anos completosrdquo etc Cf CONRAD Robert ldquoA lei
Rio Brancordquo In Os uacuteltimos anos da escravatura no Brasil 1850-1888 2 ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo
Brasileira 1978 p 366 65
NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 51 66
Joaquim Nabuco chamava as crianccedilas nascidas apoacutes a lei que libertou o ventre das escravas de
ldquoescravos provisoacuteriosrdquo pelo fato de os senhores poderem usufruir ndash se desejassem ndash os serviccedilos dessas
crianccedilas ateacute elas completarem 21 anos de idade NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 23 67
NABUCO Joaquim Op cit 2000 p 23-24 57 68
NEDER Gizlene ldquoEntre o dever e a caridade assistecircncia abandono repressatildeo e responsabilidade
parental do Estadordquo In Discursos Sediciosos (RJ) RJ v Ano 9 n 14 pp 199 ndash 231 2004 p 206 210-
211 215-216
24
abandono pelo Estado das ldquopessoas necessitadas de sua assistecircncia omitindo-se de suas
responsabilidades parentaisrdquo pode ser interpretado como uma poliacutetica de negar ldquoa
assistecircncia agravequeles que natildeo se enquadravam em alguma possibilidade de
desenvolvimento de aptidatildeo uacutetil agrave sociedade e ao proacuteprio Estadordquo69
Com relaccedilatildeo aos ingecircnuos Robert Conrad assinala que em 1885 havia cerca de
quatrocentos mil matriculados mas apenas 01 deles tinha sido entregue ao governo70
Com base nesses dados eacute viaacutevel supor que seja esporaacutedico o caso analisado por Gizlene
Neder sobre a questatildeo da matriacutecula de dois meninos ingecircnuos (ou libertos) no Asilo dos
Meninos Desvalidos
Uma das contradiccedilotildees presentes na lei do Ventre Livre eacute o fato de ela ter
permitido aos senhores decidirem o destino das crianccedilas quando as mesmas chegassem
agrave idade de 8 anos Os proprietaacuterios podiam continuar com os ldquomenoresrdquo explorando
seus serviccedilos ateacute a idade de 21 anos ou entregaacute-los ao governo recebendo de acordo
com os anos de cuidado uma indenizaccedilatildeo de 600 mil reacuteis que seriam pagos em tiacutetulos
de renda com juros de seis por cento ao ano Os senhores em sua grande maioria
escolheram utilizar os trabalhos dessas crianccedilas71
A lei que libertou o ventre contrariou uma determinaccedilatildeo expressa na lei de 1869
que protegia a uniatildeo familiar De acordo com a lei de 1869 os filhos menores de quinze
anos natildeo poderiam ser separados de sua matildee Na lei de 28 de setembro de 1871 essa
idade caiu para 12 anos caso a matildee fosse vendida e para 8 anos na possibilidade de o
senhor dispensar os serviccedilos do ldquomenorrdquo que tivesse nascido depois da lei Se
compararmos a lei que deu proteccedilatildeo aos laccedilos familiares com a que libertou o ventre da
mulher escrava percebe-se que ocorreu um endurecimento com relaccedilatildeo agrave idade em que
as crianccedilas poderiam ser separadas de suas matildees ou pais ou seja de 15 anos passou-se
para 12 anos de idade72
A lei do Ventre Livre foi criticada tanto pelos favoraacuteveis ao fim da escravidatildeo
quanto por aqueles defensores de sua manutenccedilatildeo Para muitos ela teve de imediato um
efeito psicoloacutegico sobre os escravos e muitos senhores mas seus resultados praacuteticos soacute
seriam visiacuteveis vinte anos mais tarde Para vaacuterios poliacuteticos e escravocratas a lei de 1871
69
Idem p 215 70
CONRAD Robert Op cit 1978 p 144 71
ALANIZ Anna Gicelle Garciacutea Op cit 1997 p 40-41 CONRAD Robert Op cit 1978 p 144
NEDER Gizlene Op cit 2010a p 4 72
GUIMARAtildeES Elione S Muacuteltiplos viveres de afrodescendentes na escravidatildeo e no poacutes-emancipaccedilatildeo
famiacutelia trabalho terra e conflito (Juiz de Fora ndash MG 1828-1928) Satildeo Paulo Annablume Juiz de Fora
FUNALFA 2006 p 263
25
estava interferindo no direito de propriedade resguardado pela Constituiccedilatildeo do
Estado73
As criacuteticas mais ferrenhas ao projeto de lei que libertava o ventre da mulher
escrava vieram das regiotildees brasileiras mais comprometidas com o braccedilo escravo isto eacute
Minas Gerais Rio de Janeiro e Satildeo Paulo proviacutencias produtoras de cafeacute que era o
carro-chefe da economia brasileira no periacuteodo O desapego ao trabalho escravo
segundo Emiacutelia Viotti da Costa foi mais lento nas aacutereas em que havia uma grande
necessidade de braccedilos para a lavoura como eacute o caso do Sudeste brasileiro no final do
seacuteculo XIX em funccedilatildeo dos cafezais Nas demais proviacutencias do Impeacuterio em que natildeo
havia um grande comprometimento com o trabalho escravo a transiccedilatildeo para o trabalho
livre foi mais raacutepida74
De acordo com Hebe Mattos e Ana Lugatildeo Rios eacute difiacutecil ldquoprecisar o impactordquo da
lei de 1871 entre os cativos mas em alguns depoimentos dos descendentes dos uacuteltimos
escravos existem pistas de que a mesma teve um efeito marcante entre eles A
relevacircncia da lei pode ser mensurada pelo fato de ser destacada nos depoimentos dos
descendentes depois de decorridos mais de cem anos de sua promulgaccedilatildeo sendo que
alguns depoentes fazem questatildeo de afirmar que eram filhos de mulheres que nasceram
de ldquoventre livrerdquo75
Para as autoras eacute viaacutevel supor ldquoatraveacutes de alguns indiacutecios esparsos eacute
que a liberdade das crianccedilas tenha vindo reforccedilar projetos e comportamentos que
preparavam a uacuteltima geraccedilatildeo de escravos para a liberdaderdquo76
Os referidos relatos
sugerem que a lei que libertou o ventre teve uma conotaccedilatildeo muito importante para os
mesmos uma vez que os seus descendentes doravante nasceriam livres Portanto
presumo que os escravos natildeo concebessem os ingecircnuos como ldquoescravos provisoacuteriosrdquo
como Nabuco os haviam denominado
Para Sidney Chalhoub a lei de setembro de 1871 natildeo eacute passiacutevel de ldquouma
interpretaccedilatildeo uniacutevoca e totalizanterdquo pois segundo sua argumentaccedilatildeo a referida lei pode
ser visualizada como uma conquista dos homens e mulheres escravizados e que teve
certa influecircncia no processo de extinccedilatildeo da escravidatildeo77
Gizlene Neder ressalta com
relaccedilatildeo agraves consequecircncias da Lei do Ventre Livre que a partir de sua promulgaccedilatildeo os
setores desvalidos da sociedade passaram a ser percebidos e que a criaccedilatildeo do Asilo de
Meninos Desvalidos (1874) eacute mais um indiacutecio para os estudos que discutem os ldquoefeitos
73
COSTA Emiacutelia Viotti da Da senzala agrave colocircnia 3 ed Satildeo Paulo UNESP 1998 p 420-421 451 74
Idem p 449 452 465 ABREU Martha Op cit 1997 p 112 75
RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Maria Op cit 2005 p 164-167 76
Idem p 167 77
CHALHOUB Sidney Op cit 1990 p 161
26
muacuteltiplos e contraditoacuterios da Lei do Ventre Livre apontando que ela natildeo foi
completamente inoacutecua ou protelatoacuteriardquo78
Apoacutes a promulgaccedilatildeo da Lei do Ventre Livre setores da classe dominante com
um discurso de proteccedilatildeo e amparo aos ingecircnuos e crianccedilas desvalidas passaram a
recorrer aos meios legais para terem a guarda desses pequenos Os setores abastados da
sociedade solicitaram aos Juiacutezes de Oacuterfatildeos a tutela79
de meninos e meninas pobres
oacuterfatildeos ingecircnuos abandonados etc Foi a partir da Lei do Ventre Livre que esses
ldquomenoresrdquo passaram a interessar as classes dominantes antes eram basicamente os
oacuterfatildeos ricos que possuiacuteam tutores Aproveitando-se da lei que estipulava que se deveria
dar tutor a todos os ldquomenoresrdquo as famiacutelias abastadas com um discurso de proteccedilatildeo de
amizade e de afeto passaram a solicitar aos juiacutezes de oacuterfatildeos a tutela de crianccedilas
desvalidas Num momento de crise do escravismo essa atitude pode ser interpretada
como uma maneira de controlar uma parcela de trabalhadores80
Parafraseando Kaacutetia
Mattoso por detraacutes desse discurso de amparo aos ldquomenoresrdquo estava o trabalhador uacutetil
ao seu senhortutor81
Segundo assinala Arethuza Helena Zero a partir da Lei Rio
Branco o viacutenculo tutelar foi transformado num meio de controle social e econocircmico dos
ingecircnuos por parte dos senhores Essa atitude senhorial tinha por objetivo suprir em
certa medida a carecircncia de matildeo de obra82
Elione S Guimaratildees no estudo desenvolvido sobre a populaccedilatildeo escrava do
municiacutepio de Juiz de Fora ressaltou que encontrou apenas um uacutenico processo de tutela
envolvendo uma crianccedila afro-americana anterior agrave lei do ventre livre A autora
argumentou que antes da Lei 1871 existiram crianccedilas alforriadas e que estavam aptas
de acordo com as leis a receberem tutores mas aparentemente natildeo houve interesse no
periacuteodo anterior em formalizar a ldquoguardardquo e ldquoproteccedilatildeordquo desses ldquomenoresrdquo Esse
interesse surgiu quando o ventre da escrava deixou de gerar novos seres escravizados83
78 NEDER Gizlene Op cit 2010a p 6 79
A tutela eacute o encargo dado a um indiviacuteduo para administrar a pessoa e bens de um menor Ela pode ser
imposta pela lei ou pela vontade proacutepria de quem estaacute assumindo a funccedilatildeo Chama-se tutor a pessoa que
exerce essa incumbecircncia 80
ZERO Arethuza Helena O preccedilo da liberdade caminhos da infacircncia tutelada ndash Rio Claro (1871-
1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Campinas (SP) Unicamp 2004 p 69
httplibdigiunicampbrdocumentcode=vtls000329956 81
MATTOSO Kaacutetia Queiroacutes ldquoO filho da escrava (em torno da lei do ventre livre)rdquo In LARA Silvia
Hunold (org) Escravidatildeo Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo ANPUH Marco Zero v 8 n 16
marag 1988 p 37 ndash 55 p 54 82
ZERO Arethuza Helena Op cit 2004 p 64 e 73 83
GUIMARAtildeES Elione S Op cit 2006 p 110-111 Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas escravas Guimaratildees
ressalta que a estas natildeo eram dados tutores uma vez que os senhores eram seus tutores naturais Idem p
110 Cf NEDER Gizlene Op cit 2010a p 6
27
A anaacutelise de Guimaratildees estaacute de acordo com os estudos que abordam a problemaacutetica da
infacircncia durante a segunda metade do seacuteculo XIX mais especificamente poacutes deacutecada de
1870 ressaltando que o interesse pelos ldquomenoresrdquo das classes populares e pelos
ingecircnuos apareceu justamente num momento em que eacute dado um novo golpe na
propriedade escrava com a decretaccedilatildeo do fim da reproduccedilatildeo vegetativa de escravos
Dentro da nova realidade poliacutetica social e econocircmica era necessaacuterio manter o controle
sobre a matildeo de obra desses ldquomenoresrdquo e o viacutenculo tutelar apareceu como uma das
possibilidades para setores das classes dominantes
A deacutecada de 1870 tem uma grande representatividade no processo que pocircs fim agrave
escravidatildeo no Brasil colocado em andamento pelo governo imperial Nesse periacuteodo
ocorreu um acirramento do movimento de contestaccedilatildeo do regime escravista quando
vaacuterios setores da intelectualidade passaram a utilizar a imprensa para demonstrar os
males que essa instituiccedilatildeo representava para a naccedilatildeo A argumentaccedilatildeo dos abolicionistas
dos anos de 1870 jaacute pode ser observada no pensamento de intelectuais do iniacutecio do
seacuteculo XIX como no de Joseacute Bonifaacutecio e Frederico Leopoldo Ceacutesar Burlamaque
Entretanto a receptividade pela populaccedilatildeo foi distinta nesses dois momentos Na
primeira metade do oitocentos a grande maioria da populaccedilatildeo brasileira estava
comprometida com a propriedade escrava poreacutem essa situaccedilatildeo modificou-se
profundamente no poacutes-1850 quando entatildeo ocorreu uma concentraccedilatildeo regional e social
do elemento servil em consequecircncia das leis emancipacionistas Aleacutem desse fator
interno havia toda uma movimentaccedilatildeo internacional contraacuteria agrave escravidatildeo e vaacuterias
naccedilotildees americanas estavam promovendo a emancipaccedilatildeo de seus cativos Tal conjuntura
contribuiu no processo de deslegitimaccedilatildeo do trabalho escravo e para maior mobilizaccedilatildeo
e aceitaccedilatildeo pela populaccedilatildeo das ideias contraacuterias agrave escravidatildeo
Lilia M Schwarcz destaca outra relevacircncia da deacutecada de 1870 para a anaacutelise da
sociedade brasileira Segundo a autora foi nesse dececircnio que ocorreu a ldquoentrada de todo
um novo ideaacuterio positivista-evolucionista em que os modelos raciais de anaacutelise
cumprem um papel fundamentalrdquo84
Essas ideias tiveram uma grande influecircncia nos
84
SCHWARCZ Lilia Moritz O espetaacuteculo das raccedilas cientistas instituiccedilotildees e questatildeo racial no Brasil ndash
1870-1930 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1993 p 14 Gizlene Neder e Ana Paula Barcelos Ribeiro
da Silva empreenderam um estudo sobre a histoacuteria das ideias poliacuteticas em consonacircncia com o processo de
circulaccedilatildeo de ideias e apropriaccedilatildeo cultural na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX As autoras examinaram
as vaacuterias correntes de pensamento que influenciaram os setores da intelectualidade brasileira bem como
os diaacutelogos intelectuais entre brasileiros portugueses argentinos e espanhoacuteis para demonstrarem ldquoo
movimento de circulaccedilatildeo de ideias e apropriaccedilatildeo culturalrdquo Esse ldquomovimentordquo natildeo ocorria apenas entre
pensadores brasileiros e europeus mas tambeacutem entre intelectuais brasileiros e latino-americanos Cf
NEDER Gizlen SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da ldquoIntelectuais circulaccedilatildeo de ideias e apropriaccedilatildeo
28
discursos bem como nas accedilotildees dos homens de letras e dos poliacuteticos brasileiros sobre as
camadas empobrecidas
A importacircncia dos anos de 1870 tambeacutem eacute ressaltada nos estudos sobre a
infacircncia Foi a partir desse dececircnio no bojo das discussotildees em torno do novo ator
social o ingecircnuo que a sociedade brasileira passou a repensar o papel da crianccedila
sobretudo com relaccedilatildeo agravequelas pertencentes as classes subalternas Foi nesse momento
que a crianccedila pobre emergiu como um ldquoproblema socialrdquo que medidas foram
formuladas e colocadas em praacuteticas com o fito de controlar essa parcela da populaccedilatildeo
Segundo Irene Rizzini a lei de setembro de 1871 impocircs agrave sociedade uma nova
percepccedilatildeo sobre a crianccedila85
A partir da deacutecada de 1870 o ldquomenorrdquo e a sua educaccedilatildeo passaram a ter uma
importacircncia maior nos debates de pedagogos meacutedicos higienistas intelectuais juristas
e poliacuteticos A preocupaccedilatildeo presente nesses debates estava intimamente relacionada com
uma das principais questotildees que estava perpassando a sociedade brasileira desse
periacuteodo a da constituiccedilatildeo de trabalhadores livres disciplinados e ordeiros durante o
processo de transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre De acordo com Maria Luiza
Marciacutelio a lei de 1871 provocou em vaacuterios setores das classes dominantes o pavor de
ficarem sem trabalhadores domeacutesticos A decretaccedilatildeo dessa lei teve um impacto
importante sobre as poliacuteticas direcionadas agrave ldquoproteccedilatildeordquo bem como a ldquocapacitaccedilatildeo para o
mundo do trabalhordquo da ldquocrianccedila expostardquo86
Comeccedila a ganhar forccedila na sociedade brasileira uma preocupaccedilatildeo entre uma
parcela dos meacutedicos juristas parlamentares entre outros sobre a necessidade de se
ldquoprotegerrdquo ldquoeducarrdquo e ldquoampararrdquo as crianccedilas das camadas populares A educaccedilatildeo era
concebida como uma estrateacutegia para disciplinar e preparar esses ldquomenoresrdquo para o
futuro como trabalhadores disciplinados e ordeiros A proposta de ensino para essa
camada desvalida da sociedade era o baacutesico (ler e escrever) acompanhado do
cultural Anotaccedilotildees para uma discussatildeo metodoloacutegicardquo In Passagens Revista Internacional de Histoacuteria
Poliacutetica e Cultura Juriacutedica v 1 n 1 jan-jun 2009 p 29-54 Disponiacutevel em
wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv1n1a2pdf Acessado em 08-07-2015 Cf PINTO Jefferson
de Almeida ldquoA restauraccedilatildeo catoacutelico-tomista a partir do campo poliacutetico e juriacutedico de Minas Gerais na
passagem agrave modernidaderdquo Passagens Revista Internacional de Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio
de Janeiro v 2 n 5 set-dez 2010 p 147-148 e 150 Disponiacutevel em
wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv2n5a72010pdf Acessado em 10-07-2015 85
RIZZINI Irene ldquoCrianccedilas e menores do paacutetrio poder ao paacutetrio dever Um histoacuterico da legislaccedilatildeo para
a infacircncia no Brasilrdquo In RIZZINI Irene PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas a
histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil 3 ed Satildeo Paulo
Cortez 2011 p 104 86
MARCILIO Maria Luiza Histoacuteria social da crianccedila abandonada 2 ed Satildeo Paulo HUCITEC 2006
p 206
29
aprendizado de um ofiacutecio manual como pedreiro carpinteiro sapateiro ferreiro etc
Essa modalidade de ensino tinha como pretensatildeo entre outros fatores reorganizar as
relaccedilotildees de trabalho e as de controle social sob o regime de trabalho livre A foacutermula
ldquoeducar e instruirrdquo os ldquomenoresrdquo pobres era considerada por setores da classe
dominante brasileira como um antiacutedoto para a vadiagem a criminalidade e o oacutecio87
As anaacutelises sobre a infacircncia tecircm reiteradamente afirmado que a crianccedila na
transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX passou a ser vista sob dois acircngulos como o ldquofuturo
da naccedilatildeordquo e como um ldquoproblema para a naccedilatildeordquo A partir do binocircmio futuro-problema
para a naccedilatildeo estabeleceu-se uma diferenciaccedilatildeo entre as infacircncias88
uma necessitava de
proteccedilatildeo e de cuidados e a outra deveria ser vigiada punida e preparada para o mundo
trabalho Foi nesse processo de divisatildeo das infacircncias que tambeacutem ocorreu a
diferenciaccedilatildeo no plano juriacutedico (Coacutedigo Civil 1916 e do Coacutedigo de Menores 1927) de
sua denominaccedilatildeo ou seja o termo crianccedila passou a ser empregado basicamente para
as que estavam inseridas dentro do modelo de famiacutelia-padratildeo e as que estavam alijadas
dessa estrutura familiar passou a ser denominada de ldquomenorrdquo89
Com relaccedilatildeo ao termo ldquomenorrdquo Maria Luiza Marciacutelio ressalta que a
interferecircncia meacutedico-juriacutedica na questatildeo da infacircncia contribuiu para que essa expressatildeo
se tornasse um ldquodiscriminativo da infacircncia desfavorecida delinquente carente
abandonadardquo90
Nessa mesma linha interpretativa Vinicius Neder assinala que na
passagem do seacuteculo XIX para o XX ocorreu um processo de estigmatizaccedilatildeo da infacircncia
e juventude pobre no Brasil Segundo o autor o termo ldquomenorrdquo sofreu um
ldquodeslizamento semacircnticordquo em trecircs niacuteveis - poliacutetico-cultural juriacutedico e linguiacutestico na
passagem agrave modernidade Nesse processo a expressatildeo adquiriu uma conotaccedilatildeo
pejorativa de ldquorejeiccedilatildeo e preconceitordquo91
Para Vera Malaguti Batista com a criaccedilatildeo da
Justiccedila de Menores (1923) e a aprovaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores (1927) o termo
ldquomenorrdquo passou a ser definitivamente relacionado agraves ldquocrianccedilas pobres a serem tuteladas
87
MARTINEZ Alessandra Frota ldquoEducar e instruir olhares pedagoacutegicos sobre a crianccedila pobre no seacuteculo
XIXrdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de Janeiro
Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 88
Estou chamando de as infacircncias pois foi dado um tratamento diferenciado agraves crianccedilas que tinham uma
estrutura familiar burguesa e agraves que natildeo possuiacuteam tal estrutura 89
Sobre a discussatildeo a respeito da divisatildeo da infacircncia entre ldquomenorrdquo e crianccedila ver RIZZINI Irene O
seacuteculo perdido raiacutezes histoacutericas das poliacuteticas puacuteblicas para a infacircncia no Brasil 2 ed Rev Satildeo Paulo
Cortez 2008 FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Infacircncia no soacutetatildeo Belo
Horizonte Autecircntica 1999 NEDER Vinicius Jornalismo e exclusatildeo social anaacutelise comparativa nas
coberturas sobre crianccedilas e adolescentes Rio de Janeiro Editora Multifoco 2011 90
MARCILIO Maria Luiza Op cit 2006 p 195 91
NEDER Vinicius Op cit 2011 p 103-104
30
pelo Estado para a preservaccedilatildeo da ordem e asseguramento da modernizaccedilatildeo capitalista
em cursordquo92
A preocupaccedilatildeo com os ldquomenoresrdquo pobres tambeacutem se estendeu agraves suas famiacutelias
Estas eram concebidas sob o signo da desorganizaccedilatildeo da promiscuidade e da
imoralidade sendo comum a associaccedilatildeo entre pobreza e marginalidade As famiacutelias dos
afro-brasileiros eram os alvos principais desse estereoacutetipo Os indiviacuteduos saiacutedos das
senzalas e seus descendentes que sempre realizaram todos os tipos de trabalhos foram
caracterizados como preguiccedilosos vadios e suas relaccedilotildees familiares tidas como
permeadas pela promiscuidade
As relaccedilotildees familiares e de parentesco dos cativos e dos libertos bem como a
integraccedilatildeo dos ex-escravos na sociedade burguesa competitiva foram objetos de
investigaccedilatildeo dos pesquisadores nas deacutecadas de 1960 e 1970 Os estudiosos se dedicaram
agrave anaacutelise da escravidatildeo e do poacutes-aboliccedilatildeo na sociedade brasileira e em suas reflexotildees
ressaltaram que os afro-brasileiros natildeo se adaptaram agrave ordem burguesa e competitiva
em consequecircncia dos males que o regime escravista havia produzido no seio da
populaccedilatildeo negra escravizada De acordo com essa abordagem os ex-cativos natildeo sabiam
se comportar em tal sociedade por causa da falta de preceitos morais familiares e de
ideais de acumulaccedilatildeo de riquezas Tais interpretaccedilotildees podem ser observadas nas
anaacutelises desenvolvidas por pesquisadores da chamada ldquoEscola Paulista de Sociologiardquo
como Florestan Fernandes em ldquoA integraccedilatildeo do negro na sociedade de classerdquo e na de
Celso Furtado em ldquoFormaccedilatildeo Econocircmica do Brasilrdquo Os trabalhos dos estudiosos da
referida ldquoEscolardquo contestaram a visatildeo da escravidatildeo brasileira como mais amenasuave
se comparada com outras naccedilotildees americanas que utilizaram o trabalho escravo Suas
criacuteticas recaiacuteram principalmente sobre as interpretaccedilotildees de Gilberto Freyre
especialmente em sua obra ldquoCasa Grande amp Senzalardquo Poreacutem transformaram os
escravos em seres anocircmicos sem personalidade em uma ldquocoisardquo Esses pesquisadores
em suas anaacutelises natildeo conseguiram perceber os significados e as ldquovisotildees de liberdaderdquo93
dos ex-escravos no poacutes-emancipaccedilatildeo As atitudes de autonomia de individualidade dos
libertos foram lidas como anomia vadiagem e ociosidade94
92
BATISTA Vera Malaguti Difiacuteceis ganhos faacuteceis drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro 2 ed
Rio de Janeiro Editora Revan 2003 p 68-69 93
A expressatildeo ldquovisotildees da liberdaderdquo foi apropriada do tiacutetulo do livro de Sidney Chalhoub em que o autor
estuda os anos finais do sistema escravista na Corte Cf CHALHOUB Sidney Visotildees da liberdade uma
histoacuteria das uacuteltimas deacutecadas da escravidatildeo na Corte Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 94
Cf CARDOSO Fernando Henrique Capitalismo e escravidatildeo no Brasil Meridional Satildeo Paulo Difel
1962 FERNANDES Florestan A integraccedilatildeo do negro na sociedade de classes (o legado da ldquoraccedila
31
Entretanto a visatildeo do ldquoescravo coisardquo e do liberto natildeo adaptado agrave sociedade
burguesa e competitiva bem como a falta de laccedilos familiares e de parentesco entre eles
passou a ser contestada pela historiografia brasileira na deacutecada de 1980 Com base em
uma gama variada de fontes as abordagens poacutes-1980 inseriram os cativos e os libertos
como sujeitos histoacutericos e demonstraram que eles foram capazes de construir redes de
sociabilidade relaccedilotildees familiares e de parentesco padrotildees culturais proacuteprios entre
outras coisas95
Todavia as uniotildees familiares dos ex-escravos e de seus descendentes natildeo foram
as uacutenicas a serem alvos de criacuteticas e preocupaccedilotildees por parte de fraccedilotildees das classes
dominantes brasileiras A organizaccedilatildeo familiar das camadas populares da mesma
forma natildeo coincidia com o modelo que era esperado por segmentos da intelectualidade
e poliacuteticos ou seja o modelo burguecircs nuclear higiecircnico e sexualmente regulado96
O
modelo burguecircs de famiacutelia almejado pelos grupos dominantes estava bem distante da
realidade das camadas pobres (nacionais afro-brasileiros e imigrantes) A natildeo
oficializaccedilatildeo religiosa e ou civil das uniotildees era a regra para a grande maioria desse
segmento social Muitas mulheres-matildees precisavam trabalhar para ajudar nas despesas
domeacutesticas Esse fato as impedia de exercer o papel da esposa-matildee burguesa que se
dedicava ao lar e agrave educaccedilatildeo dos filhos Com relaccedilatildeo ao ldquolarrdquo Cynthia Greive e Luciano
Faria salientam que ldquona modernidade a casa eacute uma das condiccedilotildees para viabilizar uma
famiacutelia e organizar papeacuteisrdquo97
entretanto uma parcela expressiva das classes subalternas
vivia em moradias com precaacuterias condiccedilotildees sanitaacuterias e de privacidade Essas
brancardquo) 3 ed v 1 Satildeo Paulo Aacutetica 1978 FURTADO Celso Formaccedilatildeo econocircmica do Brasil 14 ed
Satildeo Paulo Companhia Editora Nacional 1976 95
Cf FARIA Sheila S de Castro A colocircnia em movimento fortuna e famiacutelia no cotidiano colonial Rio
de Janeiro Nova Fronteira 1998 CHALHOUB Sidney Visotildees da liberdade uma histoacuteria das uacuteltimas
deacutecadas da escravidatildeo na corte Satildeo Paulo Companhia das Letras 1990 MATTOS Hebe Maria Das
cores do silecircncio os significados da liberdade no Sudeste escravista Brasil seacuteculo XIX Rio de Janeiro
Nova Fronteira 1998 RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Memoacuterias do cativeiro famiacutelia trabalho e
cidadania no poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 SLENES Robert W Na
senzala uma flor as esperanccedilas e recordaccedilotildees na formaccedilatildeo da famiacutelia escrava ndash Brasil Sudeste seacuteculo
XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 SLENES Robert W ldquoLares negros olhares brancos histoacuteria
da famiacutelia escrava no seacuteculo XIXrdquo Revista Brasileira de Histoacuteria v 8 n 16 marccediloagosto 1988 Entre
os estudiosos que apresentaram os escravos enquanto sujeitos histoacutericos podemos destacar Robert
Slenes que foi um dos iniciadores dos estudos demograacuteficos sobre a vida familiar dos escravos no Brasil
Suas reflexotildees sobre o viver dos cativos contribuiacuteram para modificar os ldquoolhares brancosrdquo sobre os ldquolares
negrosrdquo O contato estabelecido por esse pesquisador com outras ciecircncias como a antropologia e a
linguiacutestica fez emergir uma nova visatildeo do cativeiro Em suas anaacutelises os homens e as mulheres presos ao
cativeiro possuiacuteam ldquosonhosrdquo ldquoesperanccedilasrdquo e ldquorecordaccedilotildeesrdquo 96
NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoFamiacutelia poder e controle social concepccedilatildeo sobre
famiacutelia no Brasil na passagem agrave modernidaderdquo In ________ Ideias juriacutedicas e autoridade na famiacutelia
Rio de Janeiro Revan 2007 pp 14 ndash 15 COSTA Jurandir Freire Ordem meacutedica e norma familiar 4
ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1999 pp 12-14 97
FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Op cit 1999 pp 66 ndash 67
32
habitaccedilotildees com espaccedilos exiacuteguos expunham as intimidades de seus moradores e
contribuiacuteam para que as crianccedilas encontrassem nas ruas o local para suas brincadeiras
longe dos olhares atentos de suas genitoras
Os moradores desses ldquolaresrdquo que se encontravam nos corticcedilos nas periferias das
cidades e nas favelas tornaram-se alvos das accedilotildees sociais Muitas crianccedilas desses
ldquolaresrdquo eram analfabetas e ainda bem jovens jaacute compunham a matildeo de obra das faacutebricas
oficinas dos ldquolaresrdquo burgueses das construccedilotildees e das lavouras Dentro da concepccedilatildeo de
que as famiacutelias pobres eram desestruturadas e que essa situaccedilatildeo contribuiacutea para a
constituiccedilatildeo do criminoso o Estado procurou assumir a responsabilidade pela educaccedilatildeo
sauacutede e puniccedilatildeo das crianccedilas e adolescentes pobres que se encontrassem nas ditas
famiacutelias desestruturadas Essa accedilatildeo estatal deu origem a um aparato de ldquopoliacuteticas sociais
especiaisrdquo para a infacircncia pobre que tinham o intuito de reduzir a delinquecircncia e a
criminalidade98
Edson Passetti assim assinala
Durante o seacuteculo XX em nome da preservaccedilatildeo da ordem social da educaccedilatildeo
estatal obrigatoacuteria da necessidade de integrar crianccedilas e jovens pobres pelo
trabalho o Estado tambeacutem passou a zelar pela defesa da famiacutelia monogacircmica
estruturada99
(Grifo meu)
Entretanto eacute necessaacuterio assinalar que as famiacutelias pobres mas trabalhadoras
gozavam de uma visatildeo mais complacente por parte dos setores dominantes pois
estavam de acordo com o quadro social projetado pela burguesia trabalho disciplina
famiacutelia e religiatildeo100
Poreacutem essa situaccedilatildeo poderia modificar-se radicalmente em
consequecircncia de uma eventualidade qualquer como a morte de um dos membros a
perda do emprego levando-os ao mundo dos viacutecios e das doenccedilas Acreditava-se que a
populaccedilatildeo pobre era mais propensa aos mencionados males Pelo exposto uma poliacutetica
preventiva deveria ser direcionada a esse grupo como por exemplo os cuidados que
deveriam ter com seus filhos e a importacircncia de os manterem longe das ruas101
Assim observa-se que a discussatildeo sobre a infacircncia estaacute intimamente relacionada
com a da famiacutelia Entretanto como salientam Gizlene Neder e Gisaacutelio Cerqueira ao se
examinar as relaccedilotildees familiares brasileiras eacute necessaacuterio levar em conta as diferenccedilas
eacutetnico-culturais bem como os vaacuterios tipos de organizaccedilatildeo familiar Dessa forma eacute
98
PASSETTI Edson ldquoCrianccedilas carentes e poliacuteticas puacuteblicasrdquo In DEL PRIORI Mary (org) Histoacuteria
das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 348 99
Idem p 349 100
RIZZINI Irene Op cit 2008 p 59 101
Idem p 60
33
necessaacuterio ldquopensar as famiacutelias de forma pluralrdquo102
A esse respeito Sheila Faria
acrescenta que as anaacutelises sobre a famiacutelia devem levar em consideraccedilatildeo a eacutepoca as
especificidades regionais e os grupos sociais103
A famiacutelia passou a ser concebida ao longo do seacuteculo XIX como a ldquoceacutelula da
ordem vivardquo104
Foi tambeacutem naquele seacuteculo que essa instituiccedilatildeo comeccedilou a sofrer de
forma mais contundente as interferecircncias do Estado destacando nessa accedilatildeo o poder
judiciaacuterio O Estado ldquonatildeo podendo agir constantemente em nome dela vem a ocupar
seu lugar em especial na gestatildeo da crianccedila o ser social e o capital mais preciosordquo105
Essa accedilatildeo intervencionista foi sentida de forma mais contundente na organizaccedilatildeo
familiar dos segmentos empobrecidos da sociedade considerados incapazes de gerir
seus rebentos A interferecircncia no acircmbito privado das famiacutelias pobres prossegue ao
longo do seacuteculo XX com a intromissatildeo de ldquojuiacutezes meacutedicos e policiaisrdquo com a
justificativa de que tal accedilatildeo era ldquoem nome de um lsquointeresse da crianccedilarsquo dirigindo-se agrave
crianccedila como ser socialrdquo106
A literatura sobre a infacircncia tem destacado que parcela da classe dominante
brasileira defendeu a intervenccedilatildeo do Estado nas questotildees da vida privada das famiacutelias
pobres especialmente as relacionadas agrave crianccedila As classes dominantes propunham que
as crianccedilas abandonadas bem como as que conviviam no seio de famiacutelias que
supostamente natildeo dispunham de condiccedilotildees morais e higiecircnicas para educaacute-las e criaacute-
las deveriam ser encaminhadas para instituiccedilotildees que iriam preparaacute-las para a vida em
uma sociedade ldquocivilizadardquo A suspensatildeo do paacutetrio poder justificava-se como uma
necessidade para o bem da naccedilatildeo
Com o objetivo de manter sobre controle as crianccedilas pobres e abandonadas
vaacuterias associaccedilotildees e sociedades foram criadas nas deacutecadas de 1870 e 1880 para abrigar
esses pequenos elevados agrave categoria de ldquoproblema socialrdquo Entretanto no periacuteodo
republicano ocorreu um crescimento no nuacutemero de instituiccedilotildees governamentais para
assistir os ldquomenoresrdquo deserdados da fortuna107
que deveriam ser ldquomoldadosrdquo
102
NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 pp 10-11 103
FARIA Sheila S de Castro A colocircnia em movimento fortuna e famiacutelia no cotidiano colonial Rio de
Janeiro Nova Fronteira 1998 p 45 104
PERROT Michelle ldquoOs atoresrdquo In ________ (org) Histoacuteria da Vida Privada da Revoluccedilatildeo
Francesa agrave Primeira Guerra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 p 78 105
Idem p 78 106
Ibidem p 78 103 107
Expressatildeo encontrada nos perioacutedicos do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX para se referir aos
desvalidospobres Cf O Pharol Diaacuterio Mercantil Jornal do Commercio entre outros Segundo Joseacute
Gonccedilalves Gondra havia um vocabulaacuterio extenso para descrever a ldquoinfacircncia pobre no Brasil
oitocentistardquo Termos como ldquoignorantesrdquo ldquodesvalidosrdquo ldquodesprotegidosrdquo ldquodesamparadosrdquo
34
amparados pelo Estado para no futuro serem uacuteteis agrave naccedilatildeo108
Gizlene Neder ressalta
que na passagem do seacuteculo XIX para o XX havia um consenso entre os homens
puacuteblicos de que a assistecircncia agrave infacircncia desvalida ldquodeveria ser prioridade de poliacuteticas
governamentaisrdquo apesar de haver uma diversidade de propostas para a implementaccedilatildeo
dessas poliacuteticas109
Segundo Irma Rizzini durante as primeiras deacutecadas do seacuteculo XX ocorreu uma
ldquoconsolidaccedilatildeo do modelo institucional com base na internaccedilatildeo da crianccedila em perigo
(chamada de menor abandonado) ou perigosa (menor delinquente) em instituiccedilotildees
fechadasrdquo Paralelo a esse sistema surgem tambeacutem o ldquoextra-asilarrdquo que era proposto
pelos meacutedicos higienistas e se constituiacutea em uma modalidade preventiva e que tinha a
famiacutelia como base para a sua consecuccedilatildeo110
Os institutosasilos eram concebidos como o locus privilegiado para ldquosalvarrdquo a
infacircncia pobre da ociosidade da vadiagem da prostituiccedilatildeo do mundo do crime bem
como livrar a naccedilatildeo de futuros problemas A foacutermula defendida por setores dominantes
para transformarem os pequenos deserdados da fortuna em cidadatildeos uacuteteis agrave sua paacutetria
foi a internaccedilatildeo em institutos em que a educaccedilatildeo elementar era acompanhada do
aprendizado de um ofiacutecio manual ou seja preparar a matildeo de obra do amanhatilde Segundo
Irene Rizzini a educaccedilatildeo destinada agraves crianccedilas pobres tinha como objetivo moldaacute-las
ldquopara a submissatildeordquo e acrescenta
Foi por essa razatildeo que o paiacutes optou pelo investimento numa poliacutetica
predominantemente juriacutedico-assistencial de atenccedilatildeo agrave infacircncia em detrimento
de uma poliacutetica nacional de educaccedilatildeo de qualidade ao acesso de todos Tal
opccedilatildeo implicou na dicotomizaccedilatildeo da infacircncia de um lado a crianccedila mantida
sob os cuidados da famiacutelia para a qual estava reservada a cidadania e do
outro o menor mantido sob a tutela vigilante do Estado objeto de leis
medidas filantroacutepicas educativasrepressivas e programas assistenciais e
ldquoabandonadosrdquo ldquoinfelizes da sorterdquo entre outros eram comuns tanto entre os meacutedicos higienistas quanto
entre os poliacuteticos religiosos e juristas Cf GONDRA Joseacute Gonccedilalves ldquoFilhos da sombra os ldquoenjeitadosrdquo
como problema da ldquoHygienerdquo no Brasilrdquo In FILHO Luciano Mendes Faria (org) A infacircncia e sua
educaccedilatildeo ndash materiais praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e Brasil) Belo Horizonte Autecircntica 2004 p
125 108
ABREU Martha MARTINEZ Alessandra Frota ldquoOlhares sobre a crianccedila no Brasil perspectivas
histoacutericasrdquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de
Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 pp 22-25 e 35
MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 206-207 109
NEDER Gizlene ldquoAssistecircncia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gisele (org) Educar na infacircncia
perspectivas histoacuterico-sociais Satildeo Paulo Contexto 2010 p 116 110
RIZZINI Irma ldquoPrincipais temas abordados pela literatura especializada sobre infacircncia e
adolescecircnciardquo In RIZZINI Irene (org) Olhares sobre a crianccedila no Brasil seacuteculo XIX e XX Rio de
Janeiro Petrobras-BR Ministeacuterio da Cultura USU Ed Universitaacuteria Amais 1997 p 42
35
para o qual poder-se-ia dizer como Joseacute Murilo de Carvalho estava
reservada a ldquoestadaniardquo111
As crianccedilas abandonadas as que trabalhavam nas ruas as de famiacutelias pobres e
sem meios precisavam de acordo com o pensamento higienista e civilizador da eacutepoca
de ser protegidas e educadas para que no futuro natildeo se tornassem um pesado fardo para
a naccedilatildeo Irene Rizzini assinala que nas ldquosociedades modernas crescentemente
urbanizadas e industrializadasrdquo a presenccedila de ldquomenoresrdquo pobres representava um grave
problema social que exigia accedilotildees eneacutergicas e em razatildeo da propalada gravidade dessa
questatildeo ldquoum complexo aparato meacutedico-juriacutedico-assistencialrdquo foi arquitetado e tinha
como metas a ldquoprevenccedilatildeo educaccedilatildeo recuperaccedilatildeo e repressatildeordquo desse estrato da
sociedade112
O ldquomenorrdquo deveria ser vigiado e controlado para evitar que se
desencaminhasse Os que jaacute se encontravam desviados do caminho que uma parcela da
sociedade esperava que eles seguissem (leia-se o do trabalho) deveriam ser reprimidos e
reabilitados pelo trabalho nas instituiccedilotildees assistenciais
Os discursos da eacutepoca satildeo enfaacuteticos em caracterizar a educaccedilatildeo como algo
importante na transformaccedilatildeo da sociedade Todavia como jaacute foi comentado ao menor
pobre abandonado a proposta educacional defendida por alguns segmentos da
sociedade era a elementar acompanhada do aprendizado de um ofiacutecio Apesar da crenccedila
na educaccedilatildeo como um meio transformador da sociedade a questatildeo da seguranccedila
nacional veio primeiro que a obrigatoriedade do ensino puacuteblico para todos pois a jovem
Repuacuteblica brasileira preocupou-se em primeiro tornar o serviccedilo militar obrigatoacuterio para
soacute mais tarde determinar isso para a educaccedilatildeo113
No final do seacuteculo XIX o pensamento higienista norteou as atitudes e praacuteticas
de intelectuais poliacuteticos e juristas Era necessaacuterio preparar o cidadatildeo para a vida em
sociedade Para isso era preciso criar novos haacutebitos de higiene e de relaccedilatildeo desses
indiviacuteduos com o espaccedilo Cynthia Veiga e Luciano Faria salientam que as ldquoelites
intelectuaisrdquo do periacuteodo entendiam que era preciso introduzir uma ldquonova moralidade no
corpo e na mente das pessoasrdquo114
O meacutedico tornou-se nesse contexto o salvador o
indiviacuteduo que iria levar ateacute as camadas pobres ldquoas noccedilotildees baacutesicas de higiene e sauacutede ndash
111
RIZZINI Irene Op cit 2008 p 29 112
Idem p 26 113
NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoAlguns aspectos do confronto entre iliberais versus
liberais em Portugal (meados do seacuteculo XVIII e iniacutecio do XX)rdquo In NEDER Gizlene CERQUEIRA
FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 82 NEDER Gizlene Op cit 2010 p 100 Cf NEDER Gizlene Op
cit 2010b p 100 114
FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Op cit 1999 p 38
36
em sentido fiacutesico e moralrdquo115
e o caminho para se atingir esse objetivo era a crianccedila
pelo fato de constituir a base da estrutura social A famiacutelia precisava ser saneada para o
bem da naccedilatildeo A preocupaccedilatildeo dos meacutedicos higienistas tambeacutem se fez presente com
relaccedilatildeo aos abrigos agraves instituiccedilotildees e aos asilos para crianccedilas onde as taxas de
mortalidade eram altiacutessimas
O pensamento juriacutedico tambeacutem teve grande destaque no periacuteodo abordado A
conjunccedilatildeo das ideias da medicina higienista com as do direito procuraram interferir nos
modos de vida dos estratos mais baixos da sociedade brasileira por serem considerados
por estas esferas de saberpoder como contaminados por diversos viacutecios e destituiacutedos de
valores morais Esses dois ramos do saber comeccedilaram a propugnar novas formas de
assistecircncia para o ldquomenorrdquo desvalido delinquente atraveacutes da prevenccedilatildeo ou de sua
reclusatildeo em instituiccedilotildees para sua recuperaccedilatildeo e transformaccedilatildeo em indiviacuteduos uacuteteis a
naccedilatildeo116
As accedilotildees dos meacutedicos higienistas e dos juristas tambeacutem se voltaram contra as
antigas praacuteticas de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo ou seja a caritativa Segundo eles era
necessaacuterio introduzir novos meacutetodos de assistecircncia a esse estrato da sociedade Em
substituiccedilatildeo agrave caridade de cunho religioso propunham accedilotildees de filantropia em razatildeo de
seus pretensos meacutetodos cientiacuteficos Segundo Irene Rizzini a ldquoracionalizaccedilatildeo da
assistecircnciardquo ou a ldquociecircncia da caridaderdquo foi um ldquoimperativo da eacutepocardquo117
Em outras
palavras um ajuste no atendimento aos ldquomenoresrdquo dentro da nova ordem econocircmica e
social dos Estados com seu desenvolvimento industrial urbano e capitalista O trabalho
desenvolvido pela accedilatildeo caritativa foi se tornando obsoleto dentro da nova mentalidade
higiecircnica e juriacutedica do seacuteculo XIX e XX Um dos principais alvos de criacuteticas dos
defensores das accedilotildees filantroacutepicas de assistecircncia aos pequenos desvalidos foram as
Rodas dos Expostos Tais criacuteticas respaldavam-se em valores morais e higiecircnicos118
Entre os meacutedicos higienistas preocupados com a causa da infacircncia desvalida
destacou-se a accedilatildeo de Moncorvo Filho que desde o final do seacuteculo XIX e no decorrer
das primeiras deacutecadas do XX dedicou-se agrave ldquocausa da crianccedila pobrerdquo O meacutedico
desenvolveu um amplo programa de assistecircncia aos ldquomenoresrdquo bem como de
orientaccedilatildeo das matildees e das famiacutelias Tambeacutem levou a efeito campanhas de
conscientizaccedilatildeo das camadas populares onde expunha os prejuiacutezos que os viacutecios
115
Idem p 108 116
MARCILIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 194-196 117
RIZZINI Irene Op cit 2008 p 94 118
MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 pp 194-195 RIZZINI Irene Op cit 2008 pp 92-96 111
37
acarretavam em suas vidas e nas de seus filhos com destaque para o alcoolismo
Moncorvo Filho foi o responsaacutevel pelo Primeiro Congresso Brasileiro de Proteccedilatildeo agrave
Infacircncia que se realizou na entatildeo capital do Brasil Rio de Janeiro em 1922119
12 OS ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS NA REPUacuteBLICA DA ldquoORDEMrdquo E
DO ldquoPROGRESSOrdquo
A crenccedila no progresso eacute uma das caracteriacutesticas das sociedades modernas O
amanhatilde seraacute melhor que hoje tem sido a crescente convicccedilatildeo do homem
ocidental desde os tempos do Renascimento [] Por vezes ele tem chegado
a achar que tal mudanccedila seraacute sempre para melhor concluindo por isso que o
progresso eacute inevitaacutevel (Richard Graham)120
No decorrer principalmente da segunda metade do seacuteculo XIX no Brasil
vaacuterios pensadoresgestores puacuteblicos levantaram a bandeira de que o regime republicano
era melhor do que o monaacuterquico A partir especialmente da deacutecada de 1870 com a
publicaccedilatildeo do Manifesto Republicano houve um crescimento da criacutetica ao regime
monaacuterquico Geralmente fazia-se uma associaccedilatildeo entre ldquoprogressordquo e ldquocivilizaccedilatildeordquo e
regime republicano sendo que o sistema monaacuterquico era comparado com o atraso e a
barbaacuterie Vaacuterios intelectuais da geraccedilatildeo 1870 defenderam essa forma de governo para o
Brasil demonstrando atraveacutes da anaacutelise da histoacuteria do paiacutes os graves problemas das
instituiccedilotildees poliacuteticas imperiais Os contestadores 1870 criticavam a estrutura poliacutetica
ldquosaquaremardquo do Estado imperial brasileiro como o centralismo poliacutetico e econocircmico
bem como a praacutetica do ldquofilhotismo poliacuteticordquo ou seja a distribuiccedilatildeo de cargos puacuteblicos a
ldquoafilhadosrdquo e parentes impedindo dessa forma a entrada de pessoas por suas
competecircncias nos cargos puacuteblicos121
Os intelectuais da geraccedilatildeo 1870 defendiam
reformas nos setores educacional eleitoral no regime de trabalho e a separaccedilatildeo entre
119
WADSWORTH James E ldquoMoncorvo Filho e o problema da infacircncia modelos institucionais e
ideoloacutegicos da assistecircncia agrave infacircncia no Brasilrdquo Revista Brasileira de Histoacuteria v 19 n 37 Satildeo Paulo
set 1999 Disponiacutevel em httpwwwscielobrscielophpscript=sciarttextamppid=S0102-
01881999000100006 Acessado em 10-01-2014 RIZZINI Irene Op cit 2008 pp 60-63 120
GRAHAM Richard ldquoSpencer e o progressordquo In _______ Gratilde-Bretanha e o iniacutecio da modernizaccedilatildeo
no Brasil Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1973 p 242 121
ALONSO Acircngela Ideias em movimento a geraccedilatildeo de 1870 na crise do Brasil Impeacuterio Satildeo Paulo
Paz e Terra 2002 p 232
38
Estado e Igreja A defesa da aboliccedilatildeo da escravidatildeo no Brasil foi um ponto comum entre
os vaacuterios grupos da geraccedilatildeo 1870122
Com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica em 1889 a crenccedila de que no novo regime
seriam empreendidas as reformas poliacuteticas defendidas pelos contestadores de 1870 e de
que o paiacutes entraria enfim nos trilhos do progresso e da civilizaccedilatildeo natildeo se concretizou
pelo menos para a grande maioria da populaccedilatildeo pobre (afro-brasileiros nacionais e
imigrantes) analfabeta destituiacuteda de terra e de educaccedilatildeo que continuou excluiacuteda do
acesso agrave cidadania plena e agraves riquezas do paiacutes As propostas de alguns intelectuais de
que o paiacutes deveria promover uma reforma agraacuteria e oferecer educaccedilatildeo para os ex-
escravos foram ignoradas pelos ldquodonos do poderrdquo123
republicano como haviam feito os
poliacuteticos do periacuteodo imperial124
Aos deserdados da Repuacuteblica restaram apenas a
repressatildeo a exploraccedilatildeo a desqualificaccedilatildeo de seus laccedilos familiares o abandono de seus
filhos e a mendicacircncia E para os filhos desses homens e mulheres foram planejados
construiacutedos os abrigos as instituiccedilotildees que tinham a missatildeo de transformaacute-los em
indiviacuteduos uacuteteis a sociedade atraveacutes do trabalho e da submissatildeo
A Repuacuteblica brasileira que muitos acreditavam que iria inaugurar ldquouma nova era
de direitosrdquo125
deixou claro jaacute nos primeiros anos que essa natildeo seria a realidade da
Repuacuteblica brasileira Setores das classes subalternas da sociedade perceberam logo que
os agentes do novo status quo natildeo estavam preocupados com mudanccedilas que pudessem
lhes trazer benefiacutecios
O sistema republicano decepcionou tanto os intelectuais (geraccedilatildeo 1870) quanto
uma parcela dos liacutederes operaacuterios uma vez que natildeo atendeu aos anseios reformadores
dos primeiros assim como dificultou a organizaccedilatildeo em partidos e a participaccedilatildeo
eleitoral dos segundos126
122
Idem Sobre a criacutetica empreendida pela geraccedilatildeo 1870 agrave poliacutetica imperial ver principalmente o
capiacutetulo 3 ldquoTeorias para a reformardquo 123
A expressatildeo ldquodonos do poderrdquo foi apropriada do tiacutetulo do livro de Raymundo Faoro Cf FAORO
Raymundo Os donos do poder formaccedilatildeo do patronato poliacutetico brasileiro 6 ed Porto Alegre Globo
1984 124
RESENDE Maria Efigecircnia Lage de ldquoO processo poliacutetico na Primeira Repuacuteblica e o liberalismo
oligaacuterquicordquo In FERREIRA Jorge DELGADO Lucilia de Almeida Neves O tempo do liberalismo
excludente da Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica agrave Revoluccedilatildeo de 1930 2 ed Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo
Brasileira 2006 p 100 125
BATALHA Claacuteudio ldquoLimites da liberdade trabalhadores relaccedilotildees de trabalho e cidadania durante a
Primeira Repuacuteblicardquo In LIBBY Douglas Cole FURTADO Juacutenia Ferreira (orgs) Trabalho livre
trabalho escravo Brasil e Europa seacuteculos XVII e XIX Satildeo Paulo Annablume 2006a p 107 126
Cf ALONSO Acircngela Op cit p 232 BATALHA Claacuteudio ldquoFormaccedilatildeo da classe operaacuteria e projetos
de identidade coletivardquo In FERREIRA Jorge DELGADO Lucilia de Almeida Neves O tempo do
liberalismo excludente da Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica agrave Revoluccedilatildeo de 1930 2 ed Rio de Janeiro
39
Os agentes poliacuteticos do novo regime fazendo jus ao lema positivista da bandeira
republicana ldquoordem e progressordquo deram iniacutecio a vaacuterias empreitadas com o objetivo de
conduzir o Brasil ao que concebiam como ldquomodernordquo e ldquocivilizadordquo tendo a Europa
como modelo Para elevar o paiacutes ao progresso e agrave civilizaccedilatildeo alcanccedilados pelas naccedilotildees
europeias e os Estados Unidos as autoridades republicanas empreenderam reformas nas
grandes cidades e capitais da jovem naccedilatildeo republicana Para tanto aliados agraves
concepccedilotildees sobre saneamento e urbanizaccedilatildeo diversas estrateacutegias foram colocadas em
praacutetica para modernizar sanear e urbanizar os grandes centros em especial a capital
federal Rio de Janeiro Dentro desse processo modernizador almejado pela
intelectualidade republicana as camadas pobres da sociedade permaneceram excluiacutedas
das mudanccedilas pelas quais o Estado brasileiro estava passando Os militares que
comandaram inicialmente o novo regime e logo depois os representantes das
oligarquias principalmente a cafeeira de Satildeo Paulo e de Minas Gerais procuraram
manter ldquoum padratildeo de controle poliacutetico e social excludente (sobretudo da massa de ex-
escravosrdquo127
Os homens que comandaram a implantaccedilatildeo e a consolidaccedilatildeo do regime
republicano no Brasil mantiveram em outras bases a estrutura excludente do periacuteodo
imperial no que diz respeito ao direito de participaccedilatildeo poliacutetica das classes subalternas
Com o estabelecimento entre outros criteacuterios de que apenas os homens alfabetizados
estavam aptos a votar uma parcela expressiva da populaccedilatildeo ficou excluiacuteda desse
direito Ao mesmo tempo em que se determinava que apenas a populaccedilatildeo masculina
alfabetizada poderia votar o Estado natildeo assumia a responsabilidade de oferecer
educaccedilatildeo puacuteblica agrave populaccedilatildeo128
O texto da primeira Constituiccedilatildeo Republicana (1891)
assinala que o ensino nas escolas puacuteblicas seria leigo natildeo determinando a sua
obrigatoriedade e nem o dever do Estado de oferececirc-lo (Tiacutetulo IV Seccedilatildeo II art 72
sect 6o) A despreocupaccedilatildeo com a educaccedilatildeo das classes populares da sociedade brasileira
fica mais evidente quando se observa que ldquoa jovem Repuacuteblica aprovou em primeiro
lugar o serviccedilo militar obrigatoacuterio em detrimento da obrigatoriedade da educaccedilatildeo
baacutesicardquo129
Segundo Maria Efigecircnia L de Resende na Carta Magna de 1891 a questatildeo
dos direitos se apresentou de forma limitada no que tange a cidadania plena e aos
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2006b pp 173-174 CARVALHO Joseacute Murilo de Os bestializados o Rio de
Janeiro e a Repuacuteblica que natildeo foi Satildeo Paulo Companhia das Letras 1987 p 37 127
NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 14 128
CARVALHO Joseacute Murilo de Op cit 1987 p 45 129
NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 16
40
direitos poliacuteticos Poreacutem no tocante aos direitos sociais estes ficaram agrave margem da
Constituiccedilatildeo de 1891130
Com o estabelecimento definitivo dos representantes das oligarquias no
comando do governo republicano as poliacuteticas governamentais voltadas ldquoagrave famiacutelia e agrave
educaccedilatildeordquo foram tornando-se cada vez mais escassas Esse fato se explica segundo
Gizlene Neder e Gisaacutelio Cerqueira Filho pela suposta descrenccedila por parte dos setores
dominantes na ldquoeficaacutecia de qualquer poliacutetica social de inclusatildeordquo das classes
populares131
Na passagem do seacuteculo XIX para o XX o Brasil assistiu a vaacuterias
transformaccedilotildees como o processo de industrializaccedilatildeo mudanccedila do regime de trabalho
(do escravo para o livre) e de forma de governo (do monaacuterquico para o republicano)
Durante o processo de constituiccedilatildeo da ordem burguesa no Brasil tiveram papel de
destaque os juristas uma vez que segundo o pensamento corrente entre vaacuterios
intelectuais do periacuteodo para o paiacutes alcanccedilar o patamar de naccedilatildeo ldquocivilizadardquo e
ldquomodernardquo um dos pressupostos seria o disciplinamento de sua populaccedilatildeo ou seja era
preciso manter a ldquoordemrdquo para atingir o ldquoprogressordquo Por isso como assinala Gizlene
Neder o discurso juriacutedico foi extremamente importante nesse contexto para normatizar
a repressatildeo e o controle social principalmente com relaccedilatildeo agrave questatildeo do mercado de
trabalho capitalista que estava se constituindo no paiacutes132
A autora ainda assevera que a
implantaccedilatildeo da ordem burguesa no Brasil foi acompanhada e exigiu ldquoo aperfeiccediloamento
e a eficaacutecia das instituiccedilotildees de controle social (justiccedila e poliacutecia)rdquo133
Assim o discurso
criminoloacutegico teve grande relevacircncia no que diz respeito agrave ldquoregulamentaccedilatildeo do mercado
de trabalho e de combate agrave ociosidaderdquo134
Dentro do discurso de combate agrave ociosidade e agrave vagabundagem alguns setores
das classes dirigentes advogavam que nenhuma poliacutetica de bem-estar social deveria ser
dispensada agrave populaccedilatildeo em especial para os ditos indiviacuteduos ldquoineptos os
imprevidentes os viciososrdquo135
Joaquim Murtinho que foi Ministro da Fazenda durante
130
RESENDE Maria Efigecircnia Lage de Op cit 2006 pp 101 ndash 102 131
NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio Op cit 2007 p 16 132
NEDER Gizlene Discurso Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris
Editor 1995 pp 12-23 133
Idem p 23 Cf BRETAS Marcos Luiz ROSEMBERG Andreacute ldquoA histoacuteria da poliacutecia no Brasil
balanccedilos e perspectivasrdquo In Topoi v 14 n 26 jan-jul pp 162-173 2013 BRETAS Marcos Luiz ldquoA
poliacutecia carioca no Impeacuteriordquo In Revista Estudos Histoacutericos Rio de Janeiro v 12 n 22 pp 219-234
1998 Disponiacutevel em wwwpmalgovbrdownloadsbc_policialpol_05pdf Acessado 10-07-2015 134
NEDER Gizlene Op cit p 23 135 GRAHAM Richard ldquoSpencer e o progressordquo In ______ Gratilde-Bretanha e o iniacutecio da modernizaccedilatildeo
no Brasil Satildeo Paulo Ed Brasiliense 1973 pp 253-254
41
o governo de Campos Salles apoiando-se nas teorias de Hebert Spencer ressaltava que
nenhuma assistecircncia deveria ser direcionada aos indiviacuteduos ociosos uma vez que o
sofrimento que lhes adviria em consequecircncia de suas atitudes seria o remeacutedio para seus
viacutecios Para ele qualquer poliacutetica que procurasse minorar os sofrimentos desses seres
ldquoineptosrdquo contribuiria para a perpetuaccedilatildeo dos viacutecios136
Com a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre e a concomitante constituiccedilatildeo
do proletariado urbano uma nova eacutetica sobre o trabalho comeccedilou a ser forjada ao
mesmo tempo em que se reprimia a suposta ociosidade das classes populares
As classes dominantes (econocircmica poliacutetica e intelectual) no afatilde de manterem o
status quo da sociedade sentiram a necessidade de implantaccedilatildeo de novos mecanismos
de controle social sobre as classes empobrecidas Nesse sentido o novo valor que
passou a ser atribuiacutedo ao trabalho como uma atividade que conferia dignidade e
respeito bem como um ldquorecurso de superaccedilatildeo da pobrezardquo se adequou perfeitamente agraves
poliacuteticas de repressatildeo e controle social pois o ldquonatildeo-trabalho se identifica com a
vadiagem que eacute matildee do crime da imoralidade dos viacutecios da preguiccedilardquo137
De acordo com Gizlene Neder o vocaacutebulo trabalho estava envolto em uma teia
de significados pois estava dentro do ldquoprocesso de ideologizaccedilatildeo relacionado agrave
honestidade bem-estar dignidade sendo que seu oposto ociosidade relaciona-se a
afrontamento corrupccedilatildeo depravaccedilatildeo suspeitardquo138
Essa nova visatildeo sobre o trabalho era imprescindiacutevel em um paiacutes que foi o
uacuteltimo a abolir o trabalho compulsoacuterio bem como a repressatildeo agrave ociosidade agrave
mendicacircncia e agrave vagabundagem segundo os setores dominantes pelo fato de os homens
receacutem-libertos natildeo estarem preparados ldquopara a vida em sociedaderdquo As classes
dominantes acreditavam que os libertos natildeo teriam amor ao trabalho natildeo se
preocupariam em ocupar-se em uma atividade honesta por conta dos viacutecios que traziam
dos ldquotempos do cativeirordquo Chalhoub ressalta que a preocupaccedilatildeo em coibir a ociosidade
e a mendicacircncia era dirigida prioritariamente aos ex-cativos sendo que os imigrantes
eram raramente citados nos debates139
Para diversos poliacuteticos e setores da intelectualidade brasileira os imigrantes
especialmente os europeus eram tidos como um modelo a ser seguido pelos
136
Idem pp 253-254 137
LAPA Joseacute Roberto do Amaral Os excluiacutedos contribuiccedilatildeo agrave histoacuteria da pobreza no Brasil (1850-
1930) Campinas (SP) Ed da UNICAMP 2008 p 17 138
NEDER Gizlene Op cit 1995 p 52 139
CHALHOUB Sidney Op cit 2001 p 68
42
trabalhadores nacionais e pelos libertos Acreditava-se que os imigrantes estariam mais
capacitados para as atividades urbanas e industriais Entretanto estudos recentes
utilizando uma gama variada de fontes documentais vecircm demonstrando que essa
suposta superioridade dos imigrantes natildeo ocorreu realmente As pesquisas tecircm revelado
que um nuacutemero expressivo dos imigrantes italianos que vieram para o Brasil durante o
processo de substituiccedilatildeo do trabalho escravo era em sua maioria trabalhadores rurais
de aacutereas pobres da Itaacutelia Desse modo ao se investigar se eles possuiacuteam preparo para as
atividades tipicamente urbanas e industriais observa-se que esses imigrantes eram tatildeo
inaptos quanto os homens receacutem-saiacutedos das senzalas nessas atividades140
A concepccedilatildeo de que os libertos natildeo tinham amor ao trabalho natildeo se
preocupavam em economizar e que natildeo estavam preparados para se integrarem agrave
sociedade competitiva e de classe que estava se implantando no Brasil foi
compartilhada pela classe dominante e sua intelectualidade Essa visatildeo sobre os ex-
escravizados natildeo foi uma peculiaridade da sociedade brasileira No estudo desenvolvido
por Thomas Holt sobre o processo emancipacionista na Jamaica essas mesmas
caracteriacutesticas desqualificadoras foram atribuiacutedas aos libertos uma vez que as ldquovisotildees
de liberdaderdquo dos homens e mulheres egressos do cativeiro nas sociedades escravistas
da Ameacuterica como um todo natildeo condiziam com o que era esperado por fraccedilotildees das
classes dominantes De acordo com o autor foi dessa visatildeo sobre os libertos que ldquosurgiu
o estereoacutetipo do lsquoquasheersquo ndash preguiccediloso moralmente degenerado licencioso e sem
preocupaccedilotildees com o futurordquo141
A aboliccedilatildeo da escravidatildeo (1888) e a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889)
provocaram mudanccedilas profundas na sociedade brasileira que fizeram com que vaacuterios
setores das classes dominantes passassem a exigir a elaboraccedilatildeo de novos mecanismos de
controle social e de ordenamento dos espaccedilos urbanos Nesse momento houve toda uma
discussatildeo sobre a construccedilatildeo da nacionalidade e do povo brasileiro e da necessidade de
o Estado modernizar as suas estruturas a exemplo das naccedilotildees europeias Eacute nessa
140
BATALHA Claacuteudio H M Op cit 2006b Sobre a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre ver
entre outros os trabalhos de ALMADA Vilma Paraiacuteso Ferreira de Escravismo e transiccedilatildeo o Espiacuterito
Santo 1850-1888 Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1984 OLIVEIRA Luacutecia Lippi O Brasil dos
imigrantes Rio de Janeiro Jorge Zahar Editora 2001 SARAIVA Luiz Fernando Um correr de casas
antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora ndash 18701900 Dissertaccedilatildeo
de mestrado Niteroacutei UFF 2001 DOMINGUES Petrocircnio Uma Histoacuteria natildeo contada negro racismo e
branqueamento em Satildeo Paulo no poacutes-aboliccedilatildeo Satildeo Paulo Editora Senac Satildeo Paulo 2004 141
HOLT Thomas C ldquoA essecircncia do contrato a articulaccedilatildeo entre raccedila gecircnero sexual e economia poliacutetica
no programa britacircnico de emancipaccedilatildeo 1838-1866rdquo In COOPER Frederick et all Aleacutem da Escravidatildeo
investigaccedilatildeo sobre raccedila trabalho e cidadania em sociedades poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de Janeiro
Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 pp 122 ndash 123
43
perspectiva que as crianccedilas das classes populares passam a figurar nos debates pois era
preciso preparaacute-las para a vida em uma sociedade assentada nos valores do progresso e
da civilizaccedilatildeo Nesse ideaacuterio ldquosalvar a crianccedilardquo significava ldquosalvar o paiacutesrdquo Segundo
Irene Rizzini essa preocupaccedilatildeo era parte de um ldquoprojeto essencialmente poliacuteticordquo em
que a questatildeo fundamental era a preparaccedilatildeo desses ldquomenoresrdquo em futuros trabalhadores
que atendessem as necessidades da sociedade capitalista em formaccedilatildeo142
Dentro desse contexto de transformaccedilatildeo da sociedade brasileira e de constituiccedilatildeo
do mercado de trabalho livre a questatildeo da infacircncia pobre (afro-brasileira nacional e
imigrante) apresentou-se como de suma importacircncia para as autoridades e para as
classes dominantes como um todo A crianccedila era concebida como a ldquosemente do
futurordquo por isso era preciso ser cuidada preparada para tornar-se um cidadatildeo uacutetil ao seu
paiacutes Nas uacuteltimas deacutecadas do oitocentos e nos primeiros anos do seacuteculo XX a infacircncia
desvalida passou a despertar a preocupaccedilatildeo dos mais diversos setores da sociedade
como meacutedicos juristas poliacuteticos pedagogos entre outros Uma das questotildees era o que
fazer com as crianccedilas abandonadas pobres oacuterfatildes e indigitadas de delinquentes que
viviam pelas ruas das cidades Essas e outras inquietaccedilotildees mobilizaram diversos grupos
da sociedade brasileira na formulaccedilatildeo de estrateacutegias e poliacuteticas voltadas tanto para
amparar como reprimir esses futuros cidadatildeos da jovem Repuacuteblica Como Gizlene
Neder assinala as poliacuteticas de assistecircncias tinham uma ldquoinvocaccedilatildeo pendular ora de
assistecircncia ora de repressatildeordquo143
Com a emancipaccedilatildeo uma grande massa de pessoas empobrecidas foram para as
aacutereas urbanas em busca de melhores condiccedilotildees de vida outros indiviacuteduos simplesmente
foram abandonados por seus antigos senhores por causa da idade avanccedilada e ou de
doenccedilas144
As ruas das cidades tornaram-se entatildeo palco da presenccedila desses indiviacuteduos
pauperizados e de suas crianccedilas Esse cenaacuterio natildeo condizia com os anseios das classes
dominantes de fazer do Brasil uma naccedilatildeo civilizada nos moldes europeus ou dos
142
RIZZINI Irene Op cit 2008 p 28 143
NEDER Gizlene Op cit 2004 p 213 144
Nos perioacutedicos locais foram publicadas algumas reportagensnotas sobre o abandono de ex-escravos
idosos eou doentes por seus antigos proprietaacuterios e que viviam pelas ruas da cidade O Pharol do dia 30
de maio de 1888 comunicou que na praccedila do mercado de Juiz de Fora encontrava-se ldquohaacute muitos dias
abandonado e exposto aos rigores da temperatura siberiana que ultimamente nos afflige um desgraccedilado
velho ex-escravo que a generosidade de nossos legisladores acaba de proteger e a imprevidecircncia de seu
ex-senhor atirou aos horrores da miseacuteria e da fome []rdquo Segundo a mateacuteria ldquopor dolorosa enfermidade
[]rdquo era impossiacutevel ao infeliz ex-escravo ldquopromover os meios de alimentar-serdquo assim clamavam as
ldquoalmas caridosasrdquo do municiacutepio que auxiliassem o ex-cativo ldquoun bon mouvement srs habitantes de Juiz
de Foacutera Protegei o desgraccedilado que foi escravo hontem e que ainda natildeo pode respirar a plenos pulmotildees o
ar oxygenado da liberdaderdquo AHUFJF ldquoAacute caridade publicardquo O Pharol 30 mai 1888 p 1 Ver tambeacutem
O Pharol 07 fev 1900 p 1
44
Estados Unidos O desejo dos setores dominantes de viverem a belle eacutepoque nos
troacutepicos colocava a necessidade de reformas urgentes nos grandes centros bem como a
necessidade de moralizar e sanear as classes populares
Na passagem agrave modernidade a cidade a vida urbana com suas luzes lojas
automoacuteveis bondes oficinas teatros cinemas cafeacutes faacutebricas suas edificaccedilotildees passou a
gerar um fasciacutenio nas pessoas A cidade era o siacutembolo do desenvolvimento da
sociedade moderna Mas a urbs possuiacutea outra face representada pela criminalidade
pelas greves e agitaccedilotildees populares pela ldquoimoralidaderdquo pelas epidemias pela miseacuteria
sem disfarce pelos corticcedilos etc Esse tambeacutem era o espaccedilo onde ocorria uma
[] mistura populacional desconhecida assustadora Em meio agrave fervilhante
movimentaccedilatildeo ostentatoacuteria de riqueza circulavam e vadiavam nas cidades
tipos humanos de toda a espeacutecie trabalhadores pobres vagabundos
mendigos capoeiras prostitutas pivetesrdquo145
Segundo Maria Stella M Bresciani os homens de letras do seacuteculo XIX
perceberam as transformaccedilotildees que a sociedade urbana e industrializada provocou na
vida das pessoas especialmente nas pertencentes agraves camadas empobrecidas A presenccedila
da multidatildeo e dos pobres nas ruas das cidades das condiccedilotildees miseraacuteveis de vida dos
trabalhadores urbanos que habitavam os bairros pobres em moradias insalubres foi
objeto de anaacutelise dos escritores do seacuteculo XIX Os intelectuais tambeacutem alertaram para
os perigos e os custos poliacutetico-econocircmicos e sociais que a miseacuteria em que viviam os
trabalhadores urbanos poderia trazer para a sociedade como o desemprego a
prostituiccedilatildeo o crime a revoluccedilatildeo etc Esses homens identificavam as cidades como o
local onde a miseacuteria se apresentava de forma mais agressiva e desenvolvida e a
sociedade burguesa e industrial como a responsaacutevel pelo pauperismo do proletariado146
O adensamento populacional que algumas cidades brasileiras assistiram a partir
principalmente da segunda metade do seacuteculo XIX contribuiu para que o saber da
medicina higienista adquirisse grande relevo entre as classes letradas e poliacuteticas
desejosas de sanearem os espaccedilos urbanos remodelando-os e afastando os focos de
epidemias doenccedilas associados agrave populaccedilatildeo pobre Essas accedilotildees tinham entre outros
objetivos o de embelezamento e o de profilaxia da aacuterea urbana com o consequente
afastamento das classes empobrecidas para a periferia As luzes da cidade seus teatros
145
RIZZINI Irene Op cit 2008 p 34 146
BRESCIANI Maria Stella Martins Op cit 1982
45
confeitarias e cinemas siacutembolos do progresso e da modernidade estariam reservados
aos segmentos abastados da sociedade
Richard Sennett realizou uma anaacutelise da histoacuteria das cidades da Atenas de
Peacutericles agrave Nova York de hoje Em seu estudo o autor procurou compreender a
ldquoexperiecircncia corporal do povordquo nos espaccedilos urbanos O corpo humano eacute colocado como
a peccedila central para a compreensatildeo do desenvolvimento das cidades bem como as
relaccedilotildees e sensaccedilotildees vividas e experimentadas pelas pessoas no espaccedilo citadino Dentro
dessa perspectiva Sennett procurou demonstrar como que a ldquorevoluccedilatildeo anatocircmicardquo
com destaque para as descobertas sobre a respiraccedilatildeo e a circulaccedilatildeo sanguiacutenea por
William Harvey no seacuteculo XVII influenciou no planejamento das cidades Essa
ldquorevoluccedilatildeordquo sobre o funcionamento do corpo humano eacute apontada como tendo
provocado um forte impacto nas concepccedilotildees dos homens do seacuteculo XVII e XVIII sobre
os espaccedilos urbanos Segundo o autor
A revoluccedilatildeo de Harvey favoreceu mudanccedilas de expectativas e planos
urbaniacutesticos em todo o mundo Suas descobertas sobre a circulaccedilatildeo do sangue
e a respiraccedilatildeo levaram a novas ideias a respeito da sauacutede puacuteblica No
Iluminismo do seacuteculo XVIII elas comeccedilaram a ser aplicadas aos centros
urbanos Construtores e reformadores passaram a dar maior ecircnfase a tudo que
facilitasse a liberdade de tracircnsito das pessoas e seu consumo de oxigecircnio
imaginando uma cidade de arteacuterias e veias contiacutenuas por meio das quais os
habitantes pudessem se transportar tais quais hemaacutecias e leucoacutecitos no
plasma saudaacutevel A revoluccedilatildeo meacutedica parecia ter operado a troca de
moralidade por sauacutede e os engenheiros sociais estabelecido a identidade
entre sauacutede e locomoccedilatildeocirculaccedilatildeo Estava criado o novo arqueacutetipo da
felicidade humana147
A revoluccedilatildeo anatocircmica modificou a visatildeo dos idealizadores das cidades que
pegaram de empreacutestimo palavras como ldquoarteacuteriasrdquo e ldquoveiasrdquo para se referirem ao desenho
urbano A preocupaccedilatildeo com a circulaccedilatildeo no espaccedilo urbano contribuiu para a elaboraccedilatildeo
de projetos que tinham como meta o saneamento das cidades com a construccedilatildeo de
canais de esgoto abertura e pavimentaccedilatildeo de ruas drenagem de pacircntanos etc Os
projetistas tambeacutem se preocuparam com a questatildeo da respiraccedilatildeo para isso planejaram e
construiacuteram praccedilas e jardins ldquoos pulmotildees urbanosrdquo onde as pessoas poderiam se
embrenhar ldquopara limpar os pulmotildeesrdquo148
Na sociedade brasileira essas concepccedilotildees sobre sauacutede puacuteblica e reordenamento
do espaccedilo urbano tornou-se a tocircnica dos discursos dos ldquohomens de letrasrdquo e de ciecircncia a
147
SENNETT Richard Carne e pedra o corpo e a cidade na civilizaccedilatildeo ocidental 2 ed Rio de Janeiro
BestBolso 2010 pp 262-263 148 Idem pp 271 274-275
46
partir principalmente da segunda metade do seacuteculo XIX De acordo com o exposto as
grandes cidades em especial a Capital Federal passaram a se preocupar com o
remodelamento e o ordenamento de seus espaccedilos urbanos com aberturas de ruas mais
largas construccedilatildeo de praccedilasjardins (pulmotildees urbanos) novos e modernos preacutedios
Como ocorreu em alguns paiacuteses europeus e na sociedade norte-americana do seacuteculo
XVIII em terras brasileiras tambeacutem se estabeleceu a equivalecircncia entre pobreza-doenccedila
e a cura para esse mal estava na eliminaccedilatildeo das aglomeraccedilotildees constituiacutedas de pessoas
empobrecidas149
Walter Fraga Filho no estudo que empreendeu sobre a pobreza na Bahia
(Salvador) durante o seacuteculo XIX assinala que foram os meacutedicos que ldquoinspiraramrdquo
ldquosugeriramrdquo e ldquojustificaramrdquo as accedilotildees dos poderes puacuteblicos como o objetivo de afastar a
populaccedilatildeo pobre das ruas da cidade150
Segundo o autor as reformas urbanas que foram
empreendidas em Salvador a partir de 1850 tinham por objetivo promover ldquouma
espeacutecie de saneamento socialrdquo uma vez que ldquodar agrave cidade ar moderno significava retirar
do seu recinto indiviacuteduos cuja presenccedila atentava contra a lsquocivilizaccedilatildeorsquordquo151
Essas
concepccedilotildees sobre reformas e ordenamento social tambeacutem podem ser observadas nas
anaacutelises de outras cidades brasileiras Em suma o anseio de setores da elite era
conquistar o status de ldquosociedade civilizadardquo mas isso natildeo implicava uma preocupaccedilatildeo
com ldquoas causas da pobreza e sim com o ocultamento da miseacuteria e dos miseraacuteveisrdquo152
Essa atitude endossava a ideia de que a civilizaccedilatildeo deveria ser reservada agraves classes
abastadas da sociedade as camadas empobrecidas ocupariam os espaccedilos civilizados
apenas como matildeo de obra ordeira e disciplinada A atitude de natildeo atacar as causas da
pobreza e da miseacuteria ainda hoje infelizmente eacute uma praacutetica dos nossos governantes As
paisagens urbanas satildeo maquiadas com ares modernos tecnoloacutegicos mas por traacutes dos
outdoors letreiros luminosos dos arranha ceacuteus fervilha uma grande massa
empobrecida destituiacuteda de escolas de qualidade sauacutede saneamento baacutesico
No proacuteximo item analisarei como que a ideia de modernidade civilizaccedilatildeo e
progresso influenciou as classes dominantes (poliacutetica econocircmica e intelectual) da
cidade de Juiz de Fora e como elas agiram frente agrave problemaacutetica da pobreza da
149
Idem p 282 150
FRAGA FILHO Walter Mendigos moleques e vadios na Bahia do seacuteculo XIX Satildeo Paulo
HICITECSalvador (BA) EDUFBA 1996 p 141 151
Idem p 142 152
Ibidem p 143
47
mendicacircncia da infacircncia desvalida oacuterfatilde abandonada delinquente e dos operaacuterios no
espaccedilo urbano
13 A ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo E SEUS ldquoMENORESrdquo
Ouccedilo as sirenes das faacutebricas apitando para o almoccedilo Juiz de Fora dizem
antecipou-se a Satildeo Paulo em certos pontos da industrializaccedilatildeo conta uma
usina hidroeleacutetrica aleacutem de muitas faacutebricas de tecidos de cerveja de moacuteveis
etc faacutebricas de pesadelos segundo o poeta Arnaldo B inimigo da maacutequina
natildeo ando laacute por dentro pouquiacutessimas vezes entrei numa faacutebrica [] agraves vezes
vou assistir agrave saiacuteda dos operaacuterios quando a chamineacute apita na realidade para
catalogar as operaacuterias haacute mesmo certas feias que me agradam por enquanto
eacute claro ignoro o manifesto comunista de Marx e Engels mesmo a
insuficiente enciacuteclica Rerum Novarum pensar que Rui Barbosa soacute na uacuteltima
hora incluiu na sua plataforma de candidato algumas linhas sobre a questatildeo
social (Murilo Mendes)153
A cidade de Juiz de Fora localizada na Zona da Mata de Minas Gerais surgiu
nas bordas do Caminho Novo aberto por Garcia Rodrigues Paes por volta de 1703
Esse Caminho tinha por objetivo encurtar a distacircncia entre a regiatildeo mineradora de
Minas Gerais e o porto do Rio de Janeiro uma vez que o Caminho Velho como ficou
conhecida a primeira estrada era longo e perigoso154
Em seus primoacuterdios o povoado
de Santo Antocircnio do Paraibuna (que veio a ser Juiz de Fora) dedicou-se agrave produccedilatildeo de
gecircneros alimentiacutecios para abastecer os tropeiros e viajantes do Caminho Novo Com a
queda da produccedilatildeo auriacutefera nas deacutecadas finais do seacuteculo XVIII ocorreu um
deslocamento da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora para outras aacutereas da capitania de
Minas Gerais inclusive para a regiatildeo da Zona da Mata Mineira155
Inicialmente os povoados ao longo do Caminho Novo que deram origem agrave
cidade de Juiz de Fora desenvolveram-se na margem esquerda do rio Paraibuna156
153
MENDES Murilo A Idade do Serrote Rio de Janeiro Record 2003 p 146 154
BASTOS Wilson de Lima ldquoDo Caminho Novo dos campos gerais agrave estrada de rodagem Uniatildeo e
Induacutestria e Estrada de Ferro D Pedro IIrdquo In BASTOS Wilson de Lima et al Histoacuteria econocircmica de
Juiz de Fora subsiacutedios Instituto Histoacuterico e Geograacutefico de Juiz de Fora 1987 pp 9-10 PIRES
Anderson Joseacute Capital agraacuterio investimento e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (1870-1930)
Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 1993 pp 36-37 155
SOUZA Sonia Maria de Terra famiacutelia e solidariedade estrateacutegias de sobrevivecircncia camponesa no
periacuteodo de transiccedilatildeo ndash Juiz de Fora (1870-1920) Tese de Doutoramento Niteroacutei UFF 2003 p 22 156
Paraibuna nome de origem indiacutegena que significa rio de aacuteguas escuras ESTEVES Albino Aacutelbum do
municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees 2008 p 150 Wilson de
Lima Bastos assinala que nas primeiras cartas de sesmarias da regiatildeo o rio Paraibuna era chamado de
ldquoRio Barrordquo Cf BASTOS Wilson de Lima Op cit 1987 p 12
48
Poreacutem em 1836 a construccedilatildeo na margem direita do rio da Estrada Nova157
- uma
variante do Caminho Novo ndash transformou o lado direito na aacuterea mais desenvolvida do
arraial A Estrada Nova foi construiacuteda pelo engenheiro germacircnico Henrique Guilherme
Fernando Halfeld e tinha por objetivo facilitar o traacutefego entre Minas e a capital do
Impeacuterio Essa estrada passou a denominar-se Rua Principal depois Rua Direita e jaacute no
periacuteodo republicano Avenida Baratildeo do Rio Branco (denominaccedilatildeo atual) Ao longo
dessa avenida foram construiacutedos a Santa Casa de Misericoacuterdia a Matriz de Santo
Antocircnio o preacutedio das reparticcedilotildees puacuteblicas municipais o parque municipal e outras
edificaccedilotildees158
O povoado de Santo Antocircnio do Paraibuna foi elevado agrave categoria de Vila em
1850 quando se emancipou do municiacutepio de Barbacena Em maio de 1853 a Vila foi
elevada agrave categoria de cidade passando a chamar-se Cidade do Paraibuna Em 1865 o
municiacutepio recebeu a denominaccedilatildeo de Juiz de Fora devido ao projeto apresentado pelo
vereador Marcelino de Assis Tostes futuro baratildeo de Satildeo Marcelino159
Com a elevaccedilatildeo
da vila agrave categoria de cidade novas ruas foram abertas paralelas ou cortando a rua
Direita que segundo Albino Esteves ldquoeacute a primeira em edade que possue Juiz de
Foacuterardquo160
Jaacute na deacutecada de 1860 observa-se uma preocupaccedilatildeo por parte da Cacircmara
Municipal com a sede do municiacutepio quando entatildeo foi contratado o engenheiro alematildeo
Gustavo Dott para ldquolevantar o plano demarcaccedilatildeo e nivelamento desta cidaderdquo161
O
Plano Dott como entatildeo ficou conhecido o projeto de urbanizaccedilatildeo da aacuterea central de
Juiz de Fora natildeo foi executado completamente A sua execuccedilatildeo se deu de forma lenta e
parcial sendo implementadas basicamente as obras referentes agraves condiccedilotildees sanitaacuterias da
cidade e de ldquoaformoseamentordquo ou seja aquelas referentes agrave localizaccedilatildeo fora da aacuterea
central do hospital do matadouro e do cemiteacuterio assim como de abertura calccedilamento e
arborizaccedilatildeo de ruas162
157
BASTOS Wilson de Lima Op cit 1987 p 20 A abertura dessa estrada deu-se depois da lei no 18 de
01-04-1835 que estabeleceu um plano de estradas ligando Ouro Preto agrave Capital do Impeacuterio 158
GUIMARAtildeES Elione Silva Op cit 2006 pp 41-42 AZZI Riolando Op cit 2000 p 48
BASTOS Wilson de Lima Op cit 1987 pp 18-19 159
ESTEVES Albino Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa
Ediccedilotildees 2008 pp 54-55 63 Marcelino de Assis Tostes foi vereador na administraccedilatildeo 1865-1868 e
tornou-se Baratildeo (Baratildeo de Satildeo Marcelino) em agosto de 1889 BASTOS Wilson de Lima Op cit p 27
ESTEVES Albino Op cit 2008 p 130 160
ESTEVES Albino Op cit 2008 p 159 161
Idem p 62 162
OLIVEIRA Paulino de Histoacuteria de Juiz de Fora 2 ed Juiz de Fora (MG) Graacutefica Comeacutercio e
Induacutestria LTDA 1966 pp 65-66 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Os trabalhadores e a cidade a
formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de Fora e suas lutas por direito (1877-1920) Juiz de Fora (MG)
Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV 2010 pp 44-45
49
Ainda durante a deacutecada de 1860 ocorreu a inauguraccedilatildeo da Estrada Uniatildeo e
Induacutestria (1861) que ligava Juiz da Fora a Petroacutepolis A sua construccedilatildeo foi realizada
pela Companhia Uniatildeo e Induacutestria sob a direccedilatildeo do Comendador Mariano Procoacutepio
Ferreira Lage que obteve do governo imperial uma concessatildeo para ldquomanter e explorar a
estrada durante meio seacuteculordquo163
A Uniatildeo e Induacutestria foi a primeira estrada
macadamizada164
do paiacutes e tinha por objetivo facilitar o escoamento da produccedilatildeo
cafeeira do municiacutepio e regiatildeo para o Rio de Janeiro Segundo Albino Esteves essa via
colocava ldquoa capital do Imperio em contacto immediato com a densa populaccedilatildeo de
Minasrdquo165
Entretanto a chegada dos trilhos da estrada de Ferro D Pedro II na deacutecada
de 1870 suplantou a importacircncia dessa estrada para a regiatildeo sendo que nos anos finais
desse dececircnio ocorreu o fim da Companhia166
Alguns estudos ressaltam que foram os trabalhadores germacircnicos os
responsaacuteveis pela abertura e construccedilatildeo da Rodovia Uniatildeo e Induacutestria167
O cafeicultor
Mariano Procoacutepio contratou trabalhadores alematildees para trabalharem nas obras e os
primeiros imigrantes chegaram agrave cidade em 1856168
Todavia vaacuterios estudos
embasados em fontes diversas demonstram que apesar de o contrato de construccedilatildeo da
Rodovia Uniatildeo e Induacutestria natildeo permitir a utilizaccedilatildeo da matildeo de obra escrava esta foi
amplamente utilizada As pesquisas tecircm constatado que a Companhia desrespeitando o
163
OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando Gaudereto Lamas ldquoA Companhia Uniatildeo e Induacutestria e
as vicissitudes da escravidatildeo e da imigraccedilatildeo na fronteira das Proviacutencias mineira e fluminense (1850-
1870)rdquo In VARELLA Flaacutevia F MATA Seacutergio R ARAUJO Valdei L (org) Anais do Seminaacuterio
Nacional de Histoacuteria da Historiografia historiografia brasileira e modernidade Ouro Preto EDUFOP
2007 p 1 Disponiacutevel em wwwseminaacuteriodehistoriaufopbrseminariodehistoria2007tMicrosoftword-
luis_eduardo_e_fernandopdf Acessado em 19-11-2014 164
Macadame (de Mac-Adam) sistema de empedramento de ruas ou estradas por meio de granito e
saibro que se recalca com um cilindro Macadamizar empedrar pelo sistema de macadame SEGUIER
Jayme de (dir) Diccionaacuterio Praacutetico Illustrado (novo diccionaacuterio encyclopeacutedico Luso-Brasileiro) Porto
Lello amp Irmatildeo 1947 p 685 165
ESTEVES Albino Op cit 2008 p 59 166 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando Gaudereto Lamas Op cit 2007 p 1 167 Cf BASTOS Wilson de Lima Mariano Procoacutepio Ferreira Lage sua vida sua obra sua
descendecircncia genealogia Juiz de Fora Ediccedilotildees Paraibuna 1991 168
ESTEVES Albino Op cit 2008 p 60 As condiccedilotildees de vida habitaccedilatildeo e trabalho dos imigrantes
alematildees que vieram trabalhar na Companhia Uniatildeo e Induacutestria segundo os relatos da eacutepoca eram
precaacuterias Em fins de 1858 dadas as peacutessimas condiccedilotildees de alimentaccedilatildeo habitaccedilatildeo e aos baixos salaacuterios
constantemente atrasados houve uma tentativa de sublevaccedilatildeo que foi sufocada pelo destacamento policial
local O representante diplomaacutetico do reino da Pruacutessia no Brasil o baratildeo de Mausebach protestou
formalmente contra as condiccedilotildees degradantes de vida e de trabalho que os trabalhadores germacircnicos
estavam submetidos Possivelmente a situaccedilatildeo dos operaacuterios nacionais livres e dos portugueses na
Companhia Uniatildeo e Induacutestria natildeo eram diferentes das dos imigrantes alematildees ou seja um cotidiano
pautado pela exploraccedilatildeo violecircncia e miseacuteria Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando
Gaudereto Lamas Op cit 2007 pp 7-10
50
que o contrato estipulava alugou centenas de cativos de proprietaacuterios locais e da regiatildeo
para trabalharem na construccedilatildeo da via169
O desenvolvimento de Juiz de Fora esteve intimamente relacionado com a
agricultura cafeeira destinada ao mercado externo sendo que jaacute nos anos de 1850
apresentava-se como o principal produtor da proviacutencia mineira A produccedilatildeo cafeeira
teve um papel de grande relevo na economia do municiacutepio de Juiz de Fora e do estado
de Minas Gerais ateacute por volta da deacutecada de 1920170
Com o desenvolvimento da
agricultura cafeeira jaacute nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XIX voltada para o mercado
externo a produccedilatildeo de alimentos na regiatildeo natildeo perdeu sua importacircncia tornando-se
mesmo responsaacutevel pelo abastecimento das ldquofazendas cafeeiras atuando como um
redutor de custos da produccedilatildeo dessas unidadesrdquo171
Aleacutem desse fator essa produccedilatildeo
tambeacutem foi importante para abastecer o mercado interno da regiatildeo em franca expansatildeo
A produccedilatildeo de cafeacute bem como de alimentos transformou Juiz de Fora em uma regiatildeo
economicamente dinacircmica funcionando como um entreposto comercial que atraiacutea
populaccedilotildees vizinhas que necessitavam dos mais variados produtos e serviccedilos172
A expansatildeo do municiacutepio de Juiz de Fora ocorreu num periacuteodo marcado pela
crise do regime escravista devido ao processo gradual da aboliccedilatildeo do trabalho escravo
no Brasil que iniciou-se com a lei que colocou fim ao traacutefico atlacircntico de escravos
(1850) e culminou com a Lei Aacuteurea que em maio de 1888 decretou a extinccedilatildeo da
escravidatildeo no paiacutes Apesar da conjuntura desfavoraacutevel aos setores que empregavam a
matildeo de obra escrava o desenvolvimento da cafeicultura nessa cidade da Mata Mineira
natildeo foi prejudicado devido agrave possibilidade de os proprietaacuterios adquirirem cativos
atraveacutes do traacutefico inter e intraprovincial bem como no ldquointerclasserdquo (proprietaacuterios com
169
OLIVEIRA Luiacutes Eduardo LAMAS Fernando Gaudereto Lamas Op cit 2007 pp 3-6
GUIMARAtildeES Elione S GUIMARAtildeES Valeacuteria Alves Aspectos Cotidianos da Escravidatildeo em Juiz de
Fora Juiz de Fora Funalfa 2001 pp 32 76-77 Cf BIRCHAL Seacutergio de Oliveira ldquoO mercado de
trabalho mineiro no seacuteculo XIXrdquo In Histoacuteria Econocircmica amp Histoacuteria da Empresa n 01 Satildeo Paulo
Hucitec 1998 Disponiacutevel em httpwwwceaeeibmecmgbrwpwp12pdf Acessado em 02-02-2015 170
SOUZA Sonia Maria de Aleacutem dos cafezais produccedilatildeo de alimentos e mercado interno em uma regiatildeo
de economia agroexportadora ndash Juiz de Fora na segunda metade do seacuteculo XIX Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Niteroacutei UFF 1998 p 39 SARAIVA Luiz Fernando Op cit 1 pp 42 46-47 63 171
SOUZA Sonia Maria de Op cit 2003 p 25 LACERDA Antocircnio Henrique Duarte Os padrotildees de
alforrias em Juiz de Fora um municiacutepio cafeeiro em expansatildeo (Zona da Mata de Minas Gerais 1948-
88) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 2002 p 39 172
PIRES Anderson Joseacute Op cit 1993 pp 38 e 151 SOUZA Sonia Maria de Op cit 2003 p 25
SOUZA Sonia Maria de Op cit 1998 pp 45-46
51
poucos recursos vendiam seus escravos para os mais ricos)173
Os senhores de Juiz de
Fora se mantiveram apegados agrave escravidatildeo ateacute nos momentos finais dessa instituiccedilatildeo
O dinamismo econocircmico e urbano de Juiz de Fora observado acima foi
acompanhado por um crescimento populacional tanto de livres quanto de escravos
sendo que nos anos de 1870 a cidade detinha a maior populaccedilatildeo manciacutepia da Zona da
Mata Mineira Todavia a presenccedila de imigrantes de vaacuterias nacionalidades na sua
composiccedilatildeo populacional tambeacutem foi significativa No final do oitocentos e iniacutecio do
novecentos o distrito-sede do municiacutepio apresentou um crescimento populacional
expressivo poreacutem ao contraacuterio do que muitos contemporacircneos procuravam destacar tal
fato natildeo se deu em consequecircncia de os trabalhadores estarem abandonando as unidades
produtivas para viverem na aacuterea urbana mas sobretudo pela entrada constante de
pessoas vindas de diversas regiotildees de Minas Gerais de outros estados brasileiros bem
como pela chegada de imigrantes europeus174
O referido dinamismo econocircmico
vivenciado pelo municiacutepio nesse periacuteodo pode ter funcionado como um fator de atraccedilatildeo
populacional O sucesso das accedilotildees empreendidas pelos setores dominantes da sociedade
juiz-forana de expansatildeo da oferta de matildeo de obra na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o
XX contribuiu fortemente para a constituiccedilatildeo de um proletariado heterogecircneo formado
pelo trabalhador nacional ex-escravos e seus descendentes e imigrantes de vaacuterias
nacionalidades175
Os quadros abaixo fornecem uma dimensatildeo do crescimento
populacional do municiacutepio de Juiz de Fora nas deacutecadas finais do oitocentos e nas
primeiras do seacuteculo XX
173
FRAGOSO Joatildeo Luiacutes ldquoO Impeacuterio escravista e a repuacuteblica dos plantadores parte A economia
brasileira no seacuteculo XIX mais que uma plantation escravista-exportadorardquo In LINHARES Maria
Yedda (org) Histoacuteria Geral do Brasil Rio de Janeiro Campus 1990 pp 133 148-149 154-155
MATTOS Hebe Maria Das cores do silecircncio os significados da liberdade no Sudeste escravista Brasil
seacuteculo XIX Rio de Janeiro Nova Fronteira 1998 pp 108-109 174
OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 pp 189-192 175
Idem pp 205-206
52
QUADRO 1
POPULACcedilAtildeO ESCRAVA E LIVRE DO MUNICIacutePIO DE JUIZ DE FORA
(1853 -18723)
1853(1)
18723
LIVRES ESCRAVOS TOTAL LIVRES ESCRAVOS TOTAL
9003 13037 22070
23968(2)
19351(3)
43319 Nacionais Estrangeiros
18619 5349
FONTE (1)
Apud OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 48 tabela 1 (2)
Biblioteca do IBGE Recenseamento Geral de 1872 apud SOUZA Sonia M de Terra famiacutelia
solidariedade estrateacutegias de sobrevivecircncia camponesa no periacuteodo de transiccedilatildeo ndash Juiz de Fora (1870-
1920) Bauru (SP) EDUSC 2007 p 166 (3)
Relatoacuterio do Presidente da Proviacutencia de Minas Gerais de 1874 apud GUIMARAES Elione S
Op cit 2006 p 45 O censo realizado em 1872 deixou de computar os escravos da freguesia de
Nossa Senhora da Gloacuteria de Satildeo Pedro de Alcacircntara que de acordo com Elione Guimaratildees
detinha aproximadamente cinco mil manciacutepios que natildeo foram registrados Segundo a autora no
Relatoacuterio do Presidente da Proviacutencia de Minas Gerais de 1874 com dados referentes ao ano de
1873 o municiacutepio de Juiz de Fora possuiacutea 19351 escravos Idem p 45
QUADRO 2
POPULACcedilAtildeO DO MUNICIacutePIO DE JUIZ DE FORA
(1890-1907-1920)
ANO POPULACcedilAtildeO DO MUNICIacutePIO TOTAL
NACIONAIS ESTRANGEIROS
1890(1)
68686 5450 74136
1907(2)
--- --- 85450
1920(3)
112082 6062 118166(4)
Fonte (1) Recenseamento Geral de 1890 apud SOUZA Sonia Maria de
Op cit 2007 p 163
(2) Recenseamento Jornal do Commercio 31 de dez 1907 p 1 apud
OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 190
(3) ldquoPopulaccedilatildeo do Municiacutepio de Juiz de Fora Estado de Minas Gerais
segundo o sexo a idade e a nacionalidaderdquo Recenseamento do Brasil de
1920 ndash Populaccedilatildeo do Brasil por Estados e Municiacutepios segundo o sexo a
idade e a nacionalidade v 4 2a parte Tomo II p 79 Disponiacutevel em
bibliotecaibgegovbrvisualizaccedilatildeomonografiasGEBIS-
RJCensode1920RecenGeraldoBrasil1920_v4_Parte2_tomo2_Populacao
pdf Acessado em 21-01-2015
(4) Foram declaradas 22 pessoas com nacionalidade ignorada
53
QUADRO 3
CRESCIMENTO POPULACIONAL DO MUNICIacutePIO DE JUIZ DE FORA
(1853-1920)
ANOS POPULACcedilAtildeO DO
MUNICIacutePIO
INCREMENTO
POPULACIONAL
(1853-1920)
1853 22070
43519
18723 43319
1890 74136
1907 85450
1920 118116
O municiacutepio de Juiz de Fora experimentou um crescimento na ordem de
43519 passando de 22 mil habitantes em 1855 para 118116 almas em 1920 O
crescimento do contingente populacional verificado em Juiz de Fora durante a segunda
metade do seacuteculo XIX propiciou uma expansatildeo no setor de prestaccedilatildeo de serviccedilos com a
instalaccedilatildeo de carpintarias sapatarias oficinas de ferreiros etc A chegada dos trilhos da
estrada de ferro D Pedro II em 1875 promoveu um impulso na economia de Juiz de
Fora e regiatildeo principalmente no setor cafeeiro e favoreceu o desenvolvimento dos
serviccedilos urbanos Nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX a cidade jaacute contava com a presenccedila
de estabelecimentos de ensino companhia de transportes urbanos (Cia Ferrocarril
Bondes de Juiz de Fora) 1881 serviccedilos de telefones e teleacutegrafos 1883 e 1884
respectivamente aacutegua em domiciacutelios 1885 com uma hidreleacutetrica Marmelo Zero176
(a
primeira da Ameacuterica Latina) e iluminaccedilatildeo eleacutetrica puacuteblica e domeacutestica (Companhia
Mineira de Eletricidade) 1889-1890177
Nesse periacuteodo tambeacutem ocorreu a fundaccedilatildeo de
176
Coube ao industrial Bernardo Mascarenhas (Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Bernardo
Mascarenhas) a construccedilatildeo da primeira usina hidreleacutetrica da Ameacuterica do Sul Marmelos Zero
aproveitando-se das aacuteguas do rio Paraibuna Para mais informaccedilotildees sobre a usina hidreleacutetrica de
Marmelos e a iluminaccedilatildeo puacuteblica em Juiz de Fora Cf VAZ Alisson Mascarenhas Bernardo
Mascarenhas desarrumando o arrumado ndash um homem de negoacutecios do seacuteculo XIX Belo Horizonte Cia
de Fiaccedilatildeo e Tecidos Cedro e Cachoeira 2005 Ainda sobre esse tema pode ser consultado BARROS
Cleyton Souza Eletricidade em Juiz de Fora modernizaccedilatildeo por fios e trilhos (1889-1915) Dissertaccedilatildeo
de Mestrado UFJF 2008 177
PIRES Anderson Cafeacute financcedilas e induacutestria Juiz de Fora 18891930 Juiz de Fora (MG) Funalfa
2009 p 75 VAZ Alisson Mascarenhas Op cit 2005 pp 342-343 346-349 PINTO Jefferson de
Almeida Controle Social e Pobreza (Juiz de Fora c 1876 ndash c 1922) Juiz de Fora (MG) Editar 2008 p
20-21
54
casas bancaacuterias Banco Territorial e Mercantil de Minas Gerais (1887) e Banco de
Creacutedito Real de Minas Gerais (1889)
A deacutecada de 1880 eacute extremamente importante para a constituiccedilatildeo de Juiz de Fora
em uma cidade ldquocapitalistardquo178
uma vez que os investimentos na infraestrutura urbana e
no setor financeiro contribuiacuteram para o processo de industrializaccedilatildeo do municiacutepio179
O
capital agraacuterio local teve um papel ativo no processo de diversificaccedilatildeo urbano-
industrial contribuindo efetivamente para uma dinamizaccedilatildeo da economia em vias de
transiccedilatildeo para a ordem capitalista e de constituiccedilatildeo do mercado de trabalho livre180
Os
investimentos nos serviccedilos urbanos ficaram a cargo do setor privado enquanto o poder
puacuteblico local preocupava-se com o ldquoembelezamento urbano e nivelamento das ruasrdquo181
Essa descriccedilatildeo sobre a constituiccedilatildeo e o desenvolvimento de Juiz de Fora eacute
necessaacuteria para a compreensatildeo do seu processo de industrializaccedilatildeo que eacute uma das
questotildees do presente estudo Os grupos dominantes se compraziam em ressaltar o
progresso e a modernidade desse municiacutepio do interior mineiro que havia se antecipado
a Satildeo Paulo ldquoem certos pontos da industrializaccedilatildeordquo182
como destaca a epiacutegrafe que
abre este item Semelhante exaltaccedilatildeo pode ser observada no texto do Almanak de Juiz
de Fora de 1892 intitulado ldquoJuiz de Fora agrave Vol DrsquoOiseaurdquo
Natildeo conta ainda meio seacuteculo de existecircncia a mais bela a mais prospera e
mais adiantada cidade mineira
[]
Cidade essencialmente moderna foi aos poucos tornando-se um centro de
atraccedilatildeo das duas forccedilas invenciacuteveis quando reunidas e inteligentes - o capital
e o trabalho ndash que elevaram-na ao grao de riqueza e prosperidade de que
justamente se ufana ndash vamos tentar descrever a vol drsquooiseau a cidade yakee
felizes se o exemplo de seu desenvolvimento servir de estimulo a suas irmatildes
aleacutem Mantiqueira onde todos reconhecem e lastimam na falta de iniciativa
individual a causa uacutenica de seu estacionarismo quase completo
Nemo183
[Grifos no original]
No texto Juiz de Fora eacute descrita como ldquoessencialmente modernardquo e a ldquomais bela
a mais prospera e mais adiantada cidade mineirardquo enfim como a cidade yakee em
178
Expressatildeo utilizada por Sonia Regina Miranda e Anderson Pires em suas anaacutelises sobre o
desenvolvimento industrial e urbano de Juiz de Fora Cf PIRES Anderson Op cit 2009 MIRANDA
Sonia Regina Cidade Capital e Poder poliacuteticas puacuteblicas e questatildeo urbana na Velha Manchester Mineira
Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Histoacuteria) Niteroacutei UFF 1990 179
PIRES Anderson Op cit 2009 p 78 180
Idem p 20-22 76 78 MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 pp 106-107 181
MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 106 182
MENDES Murilo Op cit 2003 p 146 183
SM-BMMM Almanak de Juiz de Fora (publicaccedilatildeo commercial industrial administrativa litteraria
artiacutestica recreativa scientifica etc) Editores ndash Leite Ribeiro amp Comp 1892 ndash Rua Halfeld JF 2o anno
p xiv-xviii
55
referecircncia ao norte dos Estados Unidos da Ameacuterica que entatildeo era a parte mais
desenvolvida e industrializada daquele paiacutes Segundo James William Goodwin a
identificaccedilatildeo de setores da classe dominante da cidade mineira com os Estados Unidos
acentuava-se agrave medida que avanccedilava o seu processo de industrializaccedilatildeo O municiacutepio
tambeacutem contou com a presenccedila de imigrantes estadunidenses tendo uma parcela se
dedicado ao ramo educacional para a formaccedilatildeo dos filhos dos grupos dominantes Na
deacutecada de 1890 a Igreja Metodista Episcopal do Sul (EUA) fundou o Coleacutegio
Americano que passou a se chamar posteriormente Granbery que foi a ldquoprimeira escola
protestante em Minas Geraisrdquo184
Na reportagem publicada no jornal O Pharol185
de marccedilo de 1900 aleacutem da
exaltaccedilatildeo da cidade yankee mineira a sua populaccedilatildeo tambeacutem eacute enaltecida como
laboriosa de iniciativa e caridosa Segundo a mateacuteria jornalistica
Eacute Juiz de Fora incontestavelmente uma cidade yankee onde natildeo soacute trabalham
seus filhos pelo conforto proacuteprio no sentido material como pela sua
elevaccedilatildeo espiritual procurando instruccedilatildeo e exercitando a caridade virtude
que dilata o coraccedilatildeo humano tornando-o um sacraacuterio de sentimentos outros
cuja sublimidade e grandeza o aproximam do coraccedilatildeo de Deus
Em a nossa cidade ao mesmo tempo que se constroe um palacete levanta-se
um hospital um asylo para alliviar o doente pobre para abrigar o orpham
desamparado e nessa bella alternativa segue caminho do progresso arcando
com as vicissitudes de todas as situaccedilotildees penosas em que se tem visto a
braccedilos a sociedade brasileira inteira
Daqui se irradia sem duvida por todo o Estado o exemplo do trabalho
assiduo da iniciativa que proporciona o bem estar o credito emfim daqui
184
GOODWIN JUNIOR James William Cidades de Papel imprensa progresso e tradiccedilotildees
Diamantina e Juiz de Fora MG (1884-1914) Tese de Doutoramento Satildeo Paulo USP 2007 p 59 185
O jornal O Pharol foi fundado na cidade de Paraiacuteba do Sul (Rio de Janeiro) em 1866 por Thomas
Cameron Posteriormente foi transferido para Juiz de Fora Entretanto natildeo haacute um consenso com relaccedilatildeo
ao ano que o jornal passou a ser editado no municiacutepio da Mata Mineira sendo que haacute indiacutecios de que tal
accedilatildeo tenha ocorrido ainda na deacutecade de 1860 Todavia o exemplar mais antigo preservado do jornal
editado em Juiz de Fora data de janeiro de 1870 e foi localizado em um processo crime que estaacute sob a
guarda do Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora O Pharol circulou da deacutecada de 1860 ateacute o ano
de 1939 quando faliu e paralisou as suas atividades Cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna ldquoA General das
Letrasrdquo a literata Cosette de Alencar e a ldquosuardquo cidade ndash Juiz de Fora (MG) 1918 a 1973 Tese de
Doutoramento ndash Histoacuteria Niteroacutei UFF 2013 p 81 nota 3 Nesse longo periacuteodo de atividade O Pharol
apresentou diversas caracteriacutesticas poliacuteticas seguindo o posicionamento de seus proprietaacuterios-redatores
(liberal conservador monarquista republicano ligado a determinados grupos poliacuteticos e ou ao poder
oficial) De acordo com Almir de Oliveira apesar das vaacuterias orientaccedilotildees pelas quais passou o jornal ldquofoi
sempre o arauto de ideias e opiniotildees que agitaram a poliacutetica mineirardquo O autor ainda ressaltou que O
Pharol possui uma grande importacircncia para a histoacuteria de Juiz de Fora bem como de Minas Gerais tanto
no que diz respeito aos aspectos poliacuteticos-econocircmicos quanto aos sociais e intelectuais Cf OLIVEIRA
Almir de A imprensa em Juiz de Fora Juiz de Fora (MG) Imprensa Universitaacuteria 1981 p 18 Ver
tambeacutem GOODWIN JUNIOR James William Op cit 2007 p 100-104 e 111 Os exemplares
preservados de O Pharol estatildeo no SM-BMMM poreacutem a coleccedilatildeo estaacute incompleta (1876-1879 1881-1888
1890-1897 1890-1919 e 1922-1926) Os exemplares foram microfilmados e atualmente encontram-se
disponiacuteveis para a pesquisa no Arquivo Histoacuterico da UFJF e no site da Biblioteca Nacional
56
partiraacute egualmente o exemplo das boas praticas que constituem o elo forte da
humanidade ndash a Religiatildeo ensinada pelo filho de Deus feito homem186
Nessa mateacuteria Juiz de Fora e sua populaccedilatildeo satildeo novamente apresentadas como
um exemplo para as outras cidades do estado de Minas isto eacute como um siacutembolo do
progresso do labor e da iniciativa Poreacutem satildeo acrescidas as caracteriacutesticas da caridade e
da feacute de sua gente em socorrer os considerados ldquodesvalidos da sorte e da fortunardquo
Entretanto o discurso jornaliacutestico que procurava propagar a imagem da urbs como
moderna e civilizada estava imbuiacutedo do pensamento de setores das classes dominantes
de controle das camadas subalternas dos espaccedilos puacuteblicos e da ideia do trabalho como
algo positivo Ainda eacute ressaltado no texto que em Juiz de Fora ao mesmo tempo em
que era construiacutedo um palacete tambeacutem acontecia a construccedilatildeo de um asilo para
atender aos doentes e oacuterfatildeos pobres Fazia parte do ideal civilizatoacuterio a criaccedilatildeo de locais
para abrigar os grupos que natildeo se adequavam aos espaccedilos modernos e higienizados da
cidade bem como para as classes dominantes satisfazerem seus deveres cristatildeos e
sociais de socorrer os necessitados Nos jornais do periacuteodo em tela neste trabalho satildeo
constantes as notiacutecias sobre doaccedilotildees e eventos realizados por setores dos grupos
dominantes da sociedade juiz-forana para o Asilo Padre Joatildeo Emiacutelio (que abrigava
meninas oacuterfatildes e desvalidas) e para a Santa Casa de Misericoacuterdia e de outras accedilotildees em
prol dos pobres e das crianccedilas desvalidas Nos anuacutencios satildeo relacionados os nomes dos
benemeacuteritos e das distintas senhoras e senhoritas que se dedicavam a tatildeo nobre causa187
O modelo de cidade que era almejado pelas classes dirigentes locais era a capital
da jovem Repuacuteblica o Rio de Janeiro Para elas ldquocivilizar-se significava estar proacuteximo agrave
vida mundana do Rio de Janeirordquo188
Geograficamente Juiz de Fora estaacute mais proacutexima
do Rio de Janeiro do que da capital do estado Belo Horizonte Essa proximidade
contribuiu para uma identificaccedilatildeo maior da cidade e sua populaccedilatildeo com a brisa do mar
carioca do que com as montanhas e os belos horizontes de Minas Nesse sentido
pondera Maraliz Christo
186
AHUFJF ldquoZaacutes-Traacutezrdquo O Pharol 08 mar de 1912 p 1 A reportagem eacute sobre uma romaria que iria
partir de Juiz de Fora para Congonhas (MG) O autor do artigo assina como o pseudocircnimo de Pif Paf 187
Para mais informaccedilotildees ver entre outros os jornais SM-BMMM Jornal do Commercio 20 dez 1896
SM-BMMM Jornal do Commercio 13 mai 1897 SM-BMMM Jornal do Commercio 11 jun 1897
AHUFJF O Pharol de 10 jan1900 e 14 jan 1900 SM-BMMMO Dia 16 nov 1920 AHCJF Diaacuterio
Mercantil 9 nov 1926 AHCJFDiaacuterio Mercantil 25 out 1927 E P Thompson em ldquoFolclore
Antropologia e Histoacuteria Socialrdquo discutiu a questatildeo do ldquoato de doarrdquo da ldquoaccedilatildeo da daacutedivardquo Cf
THOMPSON Edward P As peculiaridades dos ingleses e outros artigos Campinas (SP) Editora da
Unicamp 2001 pp 243- 249 188
CHRISTO Maraliz de Castro Vieira A ldquoEuropa dos pobresrdquo Juiz de Fora na Belle-Eacutepoque mineira
Juiz de Fora EDUFJF 1994 p 12
57
[] Como cidade do seacuteculo XIX Juiz de Fora natildeo participa da cultura
colonial mineira A proximidade e o maior intercacircmbio econocircmico e cultural
com o Rio de Janeiro assim como a luta poliacutetica contra o predomiacutenio da zona
de Mineraccedilatildeo provocam na cidade um maior cosmopolitismo uma abertura
mais acentuada se a compararmos com o antigo centro cultural do Estado
seja pelo seu nuacutemero de jornais e teatros seja pela expressatildeo de suas escolas
e instituiccedilotildees culturais189
A autora ainda ressaltou que esse distanciamento de Juiz de Fora da cultura
mineira pode ser explicado pelas caracteriacutesticas de sua urbanizaccedilatildeo uma vez que as
cidades barrocas se constituiacuteram e se guiaram
[] pelos sinos das igrejas a populaccedilatildeo de Juiz de Fora teve sua vida
normatizada pelos apitos das faacutebricas de estilo neo-claacutessico e o bater dos
tamancos de seus operaacuterios de ambos os sexos e diversas nacionalidades190
O desejo da populaccedilatildeo abastada e letrada de Juiz de Fora de ldquocivilizar-serdquo aos
moldes do Rio de Janeiro lhe rendeu o apelido de ldquocarioca do brejordquo expressatildeo
pejorativa utilizada pelos belo-horizontinos para criticar a ligaccedilatildeo da cidade com o
Rio191
Creio que a alcunha de ldquocarioca do brejordquo esteja relacionada agrave presenccedila de
terrenos pantanosos nas aacutereas centrais da cidade e agraves enchentes do rio Paraibuna que
alagavam nos periacuteodos de chuvas as aacutereas nas proximidades de suas margens Vaacuterias
propostas desde meados do seacuteculo XIX foram feitas para a retificaccedilatildeo do leito do rio
para seu alargamento e rebaixamento de suas aacuteguas com o intuito de ldquofacilitar o
dessecamento dos terrenosrdquo192
As obras de urbanizaccedilatildeo do centro de Juiz de Fora
tiveram que enfrentar as dificuldades impostas pelos terrenos alagadiccedilos193
Aleacutem
dessas caracteriacutesticas do solo as chuvas tambeacutem traziam as enchentes e os lamaccedilais para
189
Idem p 1 190
Idem p 10 191
Ibidem p 1 A indisposiccedilatildeo de Juiz de Fora com a capital do estado pode ser apreendida atraveacutes dos
jornais que circulavam no municiacutepio Os governos do estado eram acusados de nada fazerem por Juiz de
Fora ldquoafim de que aacute capital natildeo fique em 2ordm logarrdquo poreacutem a cidade que era descrita como um ldquocolosso
que embasbaca o visitante por ver tanto progresso por iniciativa particularrdquo (SM-BMMM O Lynce 20
de out 1923 p 1) Em outra mateacuteria eacute assinalado que pelo fato da cidade da Mata mineira ter ldquovida
proacutepria foi sempre uma cidade desprezada e mesmo guerreada pelos presidentes que o Estado de Minas
tem tidordquo (SM-BMMM ldquoAteacute que emfimrdquo O Lynce 16 set 1922 p 3) Uma das reclamaccedilotildees da
mateacuteria jornalista de setembro de 1922 eacute com relaccedilatildeo ao nuacutemero de grupos escolares que eram mantidos
na cidade pelo governo estadual apenas quatro sendo que deveriam ser seis ou mais 192
OLIVEIRA Paulino de Op cit p 37 68-69 193
SM-BMMM Jornal do Commercio 22 jan 1897 p 1 No Jornal do Commercio de 22 de Jan de
1897 foi publicada uma reclamaccedilatildeo sobre a necessidade de serem tomadas providecircncias com relaccedilatildeo agrave
existecircncia de ldquouma grande poccedila de agua que ha na rua Direita em frente aacute Mecanica proacuteximo ao Largo
do Riachuelo As aguas ali estagnadas em consequencia de aterros feitos na rua de S Sebastiatildeo podem
fazer desenvolver-se alguma palustre com o calor que tem feitordquo
58
as ruas da cidade Sobre as chuvas Rachel Jardim em suas memoacuterias ressalta que Juiz
de Fora ldquoera uma cidade feita para a alergiardquo dadas as chuvas constantes que traziam a
umidade e o mofo194
Todavia Juiz de Fora recebeu vaacuterios epiacutetetos que exaltavam o seu progresso o
seu desenvolvimento industrial e intelectual A cidade foi chamada de a ldquoManchester
Mineirardquo ldquoPrincesa de Minasrdquo ldquoAtenas Mineirardquo ldquoNinho de Poetasrdquo ldquoBarcelona
Mineirardquo entre outros Segundo Rita de Caacutessia Vianna Rosa a imprensa local teve uma
contribuiccedilatildeo consideraacutevel na construccedilatildeo e propagaccedilatildeo do discurso ldquocivilizadorrdquo das
classes dominantes195
O epiacuteteto de ldquoManchester Mineirardquo196
foi atribuiacutedo a Juiz de Fora em virtude de
seu desenvolvimento industrial do pioneirismo no setor de energia eleacutetrica da
arquitetura racionalista de suas faacutebricas com tijolos vermelhos aparentes das chamineacutes
e seus apitos e dos operaacuterios de vaacuterias etnias Todos esses aspectos muito se
assemelhavam agrave Manchester inglesa Poreacutem como muito bem ressaltou Sonia Miranda
as semelhanccedilas com a cidade industrial inglesa iam muito aleacutem desses aspectos Como
na Manchester ldquorealrdquo na urbs mineira a urbanizaccedilatildeo e a industrializaccedilatildeo trouxeram
diversos problemas de saneamento de habitaccedilatildeo de transporte bem como a
ldquomarginalizaccedilatildeordquo e a ldquomanutenccedilatildeo de setores empobrecidos em situaccedilotildees miacutenimas de
sobrevivecircncia sine qua non para a garantia da expansatildeo do mercado de trabalho formal
assalariado e da reproduccedilatildeo ampliada do capitalrdquo197
194
JARDIM Rachel Os anos 40 a ficccedilatildeo e o real de uma eacutepoca 5 ed Juiz de Fora Funalfa Rio de
Janeiro Editora Joseacute Olympio 2003 p 52 195
ROSA Rita de Caacutessia Vianna Op cit 2013 p 28 Sobre o papel da imprensa na propagaccedilatildeo do
discurso civilizador das classes dominantes de Juiz de Fora ver o trabalho de GOODWIN JUNIOR
James William Op cit 2007 196
O cognome ldquoManchesterrdquo mineira se deve ao poeta Antonio Salles poreacutem existe outra semelhante
ldquoManchesterrdquo utilizada por Raja Gabaglia no final do seacuteculo XIX Cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna
Op cit 2013 p 28 197
MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 145 Cf SILVA Renata Lutiene da Famiacutelia direito
normas e poder os diversos relacionamentos familiares em Juiz de Fora MG (1890-1920) Dissertaccedilatildeo
de Mestrado Satildeo Joatildeo Del-Rei UFSJ 2010 p 39
59
Imagem 2 Fachada e operaacuterios - Faacutebrica de Tecelagem e Fiaccedilatildeo Moraes
Sarmento (Festa 03-05-1922) SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica
literaria poliacutetica e noticiosa Juiz de Fora 31 de maio de 1922 p 335
Foi principalmente a partir da deacutecada de 1890 que o processo de
industrializaccedilatildeo de Juiz de Fora teve um impulso consideraacutevel e que levou o municiacutepio
a se constituir no principal polo industrial de Minas Gerais nos primeiros anos do seacuteculo
XX198
Eacute nesse momento que ocorreu um investimento maior de capitais e tecnologia e
uma predominacircncia dos setores de meacutedio e grande porte com uma produccedilatildeo em larga
escala O setor que sobressaiu foi o tecircxtil sendo que esse ramo da induacutestria destacou-se
pelo montante de capital investido nuacutemero de operaacuterios e tamanho das faacutebricas
Todavia o municiacutepio contava com outras atividades industriais como de bebidas
alcooacutelicas e gasosas cervejarias massas alimentares produtos ceracircmicos ladrilhos
hidraacuteulicos maacutequinas entre outros sobrepondo-se assim agrave capital do estado em
nuacutemero de empreendimentos industriais199
Conforme dados do Censo de 1905 a cidade
ldquodetinha em relaccedilatildeo ao conjunto do estado de Minas 8 do nuacutemero de
estabelecimentos 22 do capital 16 do nuacutemero de operaacuterios e cerca de 26 do valor
198
OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 38 PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 20-
21 MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 101 CHRISTO Maraliz de Castro Vieria Op cit
1994 pp 78-79 199
MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 pp 96-97 101 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoPor
entre maacutequinas amp engrenagens as crianccedilas operaacuterias nos acidentes de trabalho em Juiz de Fora (1919-
1930) In SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da PINTO Jefferson de Almeida (orgs) Poder e
Poliacutetica pensando a toleracircncia e a cidadania (Coloacutequio InternacionalSeminaacuterio de Histoacuteria Poliacutetica da
UFF) Niteroacutei (RJ) UFF 2012b pp 109-127 Disponiacutevel em
wwwhistoriauffbrstrictofilespublic_ppghcap_2012_lcp_PoderPoliticapdf Acessado em 04-07-2015
60
total da produccedilatildeo industrial do estadordquo200
De acordo com o Censo Industrial de 1907 a
urbs do interior mineiro contava com duas faacutebricas manufatureiras entre as 100 maiores
do Brasil em termos de produccedilatildeo a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial
Mineira e a Faacutebrica de Sacos de Juta de Luiz de Souza Brandatildeo201
Imagem 3 Fachada da Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial
Mineira Calendaacuterio 2011 ndash FunalfaPJFUFJF
Todavia o progresso o desenvolvimento e a modernizaccedilatildeo da cidade de Juiz de
Fora natildeo foi compartilhado por todos os seus habitantes As condiccedilotildees de vida das
classes pobres da ldquoManchester Mineirardquo como de outras regiotildees do paiacutes se
caracterizavam pela exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho e pelas precaacuterias condiccedilotildees de
vida e trabalho
No cenaacuterio construiacutedo por fraccedilotildees das classes dominantes de uma cidade
moderna industrial siacutembolo do progresso e com uma populaccedilatildeo laboriosa e ordeira a
presenccedila de alguns grupos sociais comeccedilou a incomodar como os mendigos e as
crianccedilas pobres e abandonadas que viviam pelas ruas a esmolar e a praticar vaacuterias
travessuras e delitos
Nos jornais do final do oitocentos e iniacutecio do novecentos satildeo constantes as
reclamaccedilotildees da presenccedila de pessoas esmolando mendigando pelas ruas da cidade
200
PIRES Anderson Cafeacute financcedilas e induacutestria Juiz de Fora 18891930 Juiz de Fora (MG) Funalfa
2009 p 89 201
MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 131
61
Indagavam se todos os que viviam a esmolar eram realmente necessitados e solicitavam
das autoridades providecircncia com relaccedilatildeo aos indiviacuteduos que estavam supostamente a
explorar a caridade puacuteblica Na reportagem publicada no dia 28 de marccedilo de 1900 no
Jornal do Commercio202
intitulada ldquoRepressatildeo Urgenterdquo a preocupaccedilatildeo era com a
presenccedila de ldquomendigos e vagabundosrdquo que ficavam esmolando pelas ruas da cidade De
acordo com a mateacuteria
[] provoca intensa indignaccedilatildeo o espetaculo immoral e altamente irritante
dado por indiviacuteduos no vigor da edade sadio e talhados para o trabalho a
especularem cynicamente com a caridade publica esmolando diariamente de
manha aacute noite quando deviam empregar a actividade em outras misteres de
utilidade geral concorrendo assim para o progresso do paiz203
A presenccedila desses indiviacuteduos como consta da reportagem causava indignaccedilatildeo
aos ldquoyankeerdquo de Minas uma vez que a presenccedila deles contrapunha-se ao desejo da
classe dominante de construir uma imagem da cidade como ldquocivilizadardquo e moderna
Natildeo eacute questionado no texto jornaliacutestico o porquecirc dessas pessoas estarem esmolando
pelas ruas da cidade natildeo eacute assinalado se essas pessoas tinham saiacutedo da zona rural para a
aacuterea urbana em busca de melhores condiccedilotildees de vida e de trabalho fugindo da
exploraccedilatildeo e dos desmandos dos antigos escravocratas A uacutenica preocupaccedilatildeo eacute com o
incocircmodo que elas provocavam por natildeo estarem trabalhando e nem contribuindo para o
progresso da naccedilatildeo Mas em quais atividades esses indiviacuteduos ldquotalhados para o
trabalhordquo poderiam empregar-se O discurso do texto aponta que para os setores
dominantes de Juiz de Fora as pessoas que viviam a esmolar pelas ruas deveriam
submeter-se ao jugo da classe proprietaacuteria aos baixos salaacuterios e a exploraccedilatildeo de sua
forccedila de trabalho204
O artigo do jornal assinalava que as pessoas que viviam esmolando possuiacuteam
ldquouma fisionomia pouco animadorardquo Possivelmente a fisionomia dessa populaccedilatildeo
202 O Jornal do Commercio foi fundado por Vicente de Leon Anibal em 20 de dezembro de 1896 No ano
seguinte 1897 passou para as matildeos do influente poliacutetico mineiro Antonio Carlos Ribeiro de Andrade O
perioacutedico pertenceu ainda a outros poliacuteticos importantes como Joatildeo Penido Filho e Francisco Valadares
Em 1939 o Jornal do Commercio e O Pharol cessaram suas atividades ambos pertenciam agrave viuacuteva de
Francisco Valadares que enfrentou seacuterios problemas financeiros Cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna Op
cit 2013 p 95 AHCJF ldquoHistoacuteria da imprensa de Juiz de Forardquo Diaacuterio Mercantil 27 abr 1946 O
jornal ao longo de sua existecircncia passou por vaacuterias orientaccedilotildees poliacuteticas seguindo o posicionamento de
seus proprietaacuterios Segundo James W Goodwin Juacutenior em princiacutepios do seacuteculo XX os perioacutedicos O
Pharol e Jornal do Commercio pertenciam a grupos poliacuteticos rivais Cf GOODWIN JUacuteNIOR James W
Op cit p 111 203
SM-BMMM ldquoRepressatildeo Urgenterdquo Jornal do Commercio 28 mar 1900 p 1 204
Para mais informaccedilotildees sobre a questatildeo do controle social e da pobreza no municiacutepio de Juiz de Fora
ver o trabalho de PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008
62
empobrecida ficaria mais ldquoanimadorardquo se ela se submetesse a exploraccedilatildeo das classes
dominantes
Michel Mollat analisando as palavras pobreza e pobre assinala que ldquoo emprego
no plural da palavra ldquopobresrdquo traduz a percepccedilatildeo quantitativa de um grupo social de fato
e o despertar de um sentimento de piedade ou de inquietude suscitado pelo nuacutemero de
pobresrdquo205
Nas mateacuterias dos jornais observa-se essa ambiguidade nas atitudes das
classes dominantes com relaccedilatildeo agrave grande concentraccedilatildeo de pessoas pobresdesvalidas
pelas ruas das cidades ora se exigiam puniccedilatildeorepressatildeo para os ldquomenoresrdquo e pobres
que viviam a esmolar transformados em vadios e vagabundos e ora se compadeciam
pela sorte desses deserdados da fortuna
Segundo Sidney Chalhoub a sociedade brasileira nos dececircnios finais do periacuteodo
imperial e ao longo da Primeira Repuacuteblica parecia estar dividida em ldquodois mundosrdquo um
da ordemtrabalho e outro da ociosidadecrime O mundo do oacuteciocrime deveria ser
reprimido e controlado Para o autor essa visatildeo de mundo estava calcada ldquona tradiccedilatildeo
cristatilde ocidental de procurar distinguir sempre o bem do mal o certo do errado etcrdquo e
esse posicionamento parecia ser a ldquocaracteriacutestica fundamental da visatildeo de mundo das
classes dominantes brasileirasrdquo206
A hipoacutetese levantada pelo autor eacute de que o mundo do
oacuteciocrime tinha uma utilidade servia para justificar ldquoos mecanismos de controle e
sujeiccedilatildeo dos grupos sociais mais pobresrdquo pelas classes dominantes207
A desqualificaccedilatildeo
do modo de vida das relaccedilotildees familiares e de trabalho dos setores empobrecidos da
sociedade constitui-se em uma construccedilatildeo das classes dominantes para legitimar sua
dominaccedilatildeo208
Desde que o governo imperial colocou em andamento o processo de aboliccedilatildeo
gradual do trabalho escravo ateacute seu derradeiro fim em maio de 1888 e mesmo deacutecadas
depois da extinccedilatildeo de tal instituiccedilatildeo tornou-se uma constante a reivindicaccedilatildeo por parte
dos grupos dominantes de medidas governamentais de controle sobre a massa de ex-
escravos libertos e da populaccedilatildeo pobre em geral209
Geralmente exigiam-se medidas
205
MOLLAT Michel Os pobres na Idade Meacutedia Rio de Janeiro Campus 1989 p 2 206
CHALHOUB Sidney Op cit 2001 p 78 207
Idem p 80 208
Ibidem p 80 209
A respeito da questatildeo do controle social da disciplina e da exclusatildeo social dos trabalhadores pobres na
transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre e das poliacuteticas de reordenamento e remodelamento dos espaccedilos
urbanos ver NEDER Gizlene ldquoCidade identidade e exclusatildeo socialrdquo Tempo Rio de janeiro v 2 n 3
pp 106-134 1997 MACIEL Laura Antunes SOUZA Vitor Leandro de ldquoOrdem na praccedila normas e
exerciacutecio de administraccedilatildeo em mercados do Rio de Janeirordquo In Passagens Revista Internacional de
Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro v 4 n 1 pp 55-80 jan-abr 2012 p 60-61
Disponiacutevel em wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv4n1a32012pdf Acessado em 10-07-2015
63
que conduzissem os grupos subalternos da sociedade ao trabalho Como jaacute foi discutido
neste capiacutetulo na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX a ideia do trabalho como algo
positivo passou a ser construiacuteda e propagada no seio da sociedade O trabalho passou a
ser uma condiccedilatildeo para o indiviacuteduo ldquocivilizar-serdquo Em maio de 1888 uma mateacuteria
publicada no jornal O Pharol ressaltava que era necessaacuterio ldquoorganisar quanto antes o
trabalho livre para que os novos cidadatildeos que o paiz acaba de receber saibam
comprehender devidamente quaes as circumstancias em que devem gosar a liberdade210
Creio que para uma parcela da classe dominante a liberdade para esses ldquonovos
cidadatildeosrdquo do ldquopaizrdquo significava trabalhar de forma ordeira e obediente agraves leis e aos
antigos ldquosenhores de homens e de terrasrdquo211
210
AHUFJF ldquoNova Ersquorardquo O Pharol 15 maio 1888 p 1 211
A inserccedilatildeo do liberto no mundo do trabalho livre e o trabalhador imigrante satildeo questotildees que vecircm haacute
tempos sendo examinadas pela historiografia brasileira Os estudos revelam a preocupaccedilatildeo em se analisar
a formaccedilatildeo da matildeo de obra livre no Brasil do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX e as novas relaccedilotildees de
trabalho que foram gestadas dentro da nova conjuntura do poacutes-emancipaccedilatildeo Todavia natildeo se concretizou
a crenccedila de que com a aboliccedilatildeo da escravidatildeo os campos ficariam abandonados e de que seria a ruiacutena da
lavoura nacional como era assinalado por muitos defensores do regime escravista Entretanto logo apoacutes a
emancipaccedilatildeo ocorreu certa movimentaccedilatildeo dos libertos alguns abandonaram as unidades onde haviam
sido escravos por longos anos por natildeo concordarem com a permanecircncia de praacuteticas dos ldquotempos do
cativeirordquo outros deixaram as propriedades para buscarem parentes que haviam sido separados durante a
escravidatildeo etc Todavia essa movimentaccedilatildeo natildeo chegou a desestruturar as atividades uma vez que nas
regiotildees de economia mais dinacircmica podia contar com o trabalhador imigrante Essa atitude inicial de
muitos libertos fez com que setores das classes dominantes passassem a exigir medidas que coibissem o
que elas denominavam de vadiagem e ociosidade que eram atribuiacutedos principalmente aos ex-escravos e
seus descendentes De acordo com Eric Foner todas as sociedades em que houve o predomiacutenio da grande
lavoura experimentaram durante o seu processo de emancipaccedilatildeo da escravidatildeo ldquoum amargo conflito em
torno do controle da matildeo de obra ou como pode ser mais bem descrito da formaccedilatildeo de classesrdquo que
necessariamente fez surgir a questatildeo da definiccedilatildeo dos ldquodireitos e privileacutegios e papel social de uma nova
classe a dos libertosrdquo (cf FONER 1988 p 27) O autor ainda assevera que medidas coercitivas em boa
parte dos casos foram empregadas como uma estrateacutegia para forccedilar os antigos escravos a ldquovoltarem a
trabalhar nas fazendasrdquo embora generalizaccedilotildees natildeo possam ser feitas por causa da ldquocomplexidade de
relaccedilotildees de trabalho que surgiram em sociedades especiacuteficasrdquo Cf FONER Eric Nada aleacutem da
liberdade a emancipaccedilatildeo e seu legado Rio de Janeiro Paz e Terra Brasiacutelia CNPq 1988 p 27-28
Sobre a discussatildeo a respeito da inserccedilatildeo do liberto no mundo do trabalho livre apoacutes a emancipaccedilatildeo do
trabalho escravo no Brasil e na Ameacuterica ver entre outros os trabalhos de CASTRO Hebe M Mattos
de Laccedilos de famiacutelia e direitos no final da escravidatildeo In NOVAIS Fernando (coord) ALENCASTRO
Luiz Felipe (org) Histoacuteria da vida privada no Brasil Satildeo Paulo Companhia das Letras 1997 HOLT
Thomas A essecircncia do contrato In COOPER Frederick HOLT Thomas SCOTT Rebeca J Aleacutem da
escravidatildeo investigaccedilotildees sobre raccedila trabalho e cidadania em sociedades poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 FONER Eric Op cit 1988 MATTOS Hebe Maria Das cores do
silecircncio Os significados da liberdade no sudeste escravista Brasil seacuteculo XIX Rio de Janeiro Nova
Fronteira 1998 MATTOS Hebe Maria Prefaacutecio In COOPER Frederick HOLT Thomas SCOTT
Rebeca J Op cit RIOS Ana Lugatildeo MATTOS Hebe Memoacuterias do Cativeiro famiacutelia e cidadania no
poacutes-aboliccedilatildeo Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 FRANCISCO Raquel Pereira ldquoInfacircncia e
Trabalho a questatildeo da matildeo de obra infantil no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XXrdquo In 3ordm Seminaacuterio de
Histoacuteria Econocircmica amp Social da Zona da Mata Mineira Juiz de Fora (MG) Faculdade de Economia ndash
UFJF outubro de 2011 (mesa 22pdf miacutedia eletrocircnica) 2011a SARAIVA Luiz Fernando Um correr de
casas antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora ndash 18701900
Dissertaccedilatildeo de Mestrado Niteroacutei UFF 2001
64
Para os objetivos deste estudo interessa-me a anaacutelise da problemaacutetica da
infacircncia pobre abandonada e trabalhadora que vivia pelas ruas da cidade nas faacutebricas
nas residecircncias das classes abastadas como empregados domeacutesticos nas moradias
populares e nos asilos212
O recorte temporal eacute o da transiccedilatildeo do trabalho escravo para o
livre periacuteodo esse marcado pela presenccedila de um contingente expressivo de indiviacuteduos
empobrecidos saiacutedos das senzalas tendo uma parcela dessa populaccedilatildeo se direcionado
para os centros urbanos em busca de melhores condiccedilotildees de vida Poreacutem as cidades
natildeo possuiacuteam infraestrutura e condiccedilotildees de absorver integralmente os grupos desvalidos
compostos natildeo apenas dos libertos mas tambeacutem dos nacionais e de muitos imigrantes
A presenccedila dessas pessoas na trama urbana descortinou uma seacuterie de novos problemas
como carecircncia de habitaccedilatildeo e saneamento desemprego mendicacircncia e criminalidade
Entre essa camada de desvalidos estavam as ldquosementes do futurordquo muitas
acompanhadas de seus genitores outras abandonadas ou oacuterfatildes vivendo da caridade
puacuteblica de esmolas de pequenos delitos da prostituiccedilatildeo e de trabalhos esporaacutedicos A
presenccedila desses pequenos era uma constante nas vias puacuteblicas Nesse espaccedilo eles
brincavam brigavam trabalhavam e atraiacuteam os olhares e as atenccedilotildees de setores da
sociedade preocupados com a presenccedila dos mesmos nas ruas O ponto nodal da questatildeo
eram as implicaccedilotildees que futuramente esses ldquomenoresrdquo poderiam trazer para a sociedade
vivendo em um ambiente tatildeo deleteacuterio Os discursos meacutedico-juriacutedico-jornaliacutesticos
apregoavam a necessidade de intervenccedilatildeo do Estado por meio da criaccedilatildeo de instituiccedilotildees
para abrigar esses ldquomenoresrdquo preparando-os para a vida em uma sociedade civilizada
ancorada nos valores da disciplina e do trabalho Por causa das agruras da vida muitos
pais entregaram seus filhos e filhas para as instituiccedilotildees de assistecircncia ou para famiacutelias
abastadas criaacute-los ou alegando natildeo terem condiccedilotildees de mantecirc-los Pedro Nava em suas
memoacuterias da casa de sua avoacute Inhaacute Luiza localizada na Rua Direita (atual Av Baratildeo do
Rio Branco) relata que as meninas eram entregues a sua avoacute para trabalharem e que
seus nomes e a data em que haviam chegado eram registrados no livro de notas por ela
ldquoJacintha entrou para minha casa a 23 de novembro de 1911rdquo ou ldquotomei Catita para
criar em junho de 1913rdquo no que foi chamado por Nava de ldquo13 de maio agraves avessasrdquo
Aleacutem de relatar o emprego dessas meninas Nava tambeacutem fala dos castigos que eram
infligidos agraves mesmas transparecendo que o treze de maio natildeo havia acontecido pois o
212
A discussatildeo sobre pobreza urbana e controle social em Juiz de Fora foi realizada por Jefferson de
Almeida Pinto que discutiu as vaacuterias facetas desenvolvidas pelos grupos dominantes locais de controle da
populaccedilatildeo pobre em especial no que diz respeito agrave mendicacircncia e agrave vadiagem Cf PINTO Jefferson de
Almeida Op cit 2008
65
tapa na boca a vara de marmelo e a palmatoacuteria ainda eram utilizados para disciplinar
natildeo apenas as ldquocrias da casardquo mas tambeacutem as ldquoempregadas assalariadasrdquo213
Essas
histoacuterias de abandono abdicaccedilatildeo do paacutetrio poder seratildeo vistas oportunamente nos
demais capiacutetulos
Segundo o discurso de segmentos das classes dominantes as crianccedilas eram as
ldquosementes do futurordquo Dessa forma as transformaccedilotildees na sociedade deveriam comeccedilar
por elas ou seja desde cedo deveriam ser incutidos os valores do amor ao trabalho e do
respeito agraves leis Nos jornais do municiacutepio de Juiz de Fora eacute comum a presenccedila de
mateacuterias discorrendo sobre a importacircncia de se proteger e reprimir a infacircncia pobre
Atraveacutes da leitura percebe-se a preocupaccedilatildeo de determinados setores da sociedade com
a existecircncia de ldquomenoresrdquo desvalidos vagando pelas ruas frequentando tabernas casas
de prostituiccedilatildeo etc Nos perioacutedicos satildeo constantes as mateacuterias solicitando agraves autoridades
policiais atitudes para conter a ldquomalta de meninos vagabundos que infestam as ruas da
cidaderdquo214
Tal situaccedilatildeo era apresentada pela imprensa como um ldquovexamerdquo215
para a
ldquoManchester Mineirardquo Em finais do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX a cidade de Juiz de
Fora natildeo contava com uma instituiccedilatildeo de assistecircncia para abrigar os ldquomenoresrdquo
abandonados desvalidos e delinquentes do sexo masculino E essa situaccedilatildeo se manteve
ao longo das primeiras deacutecadas republicanas De acordo com Wesleyuml Silva a alternativa
encontrada pelas cidades do interior de Minas Gerais que natildeo contavam com
instituiccedilotildees de assistecircncia para atender ldquomenoresrdquo era de enviaacute-los para os institutos da
capital216
Como foi salientado anteriormente o desenvolvimento industrial da
ldquoManchester Mineirardquo foi acompanhado de um adensamento populacional em seu
periacutemetro urbano Aleacutem dos consumidores a cidade com suas faacutebricas oficinas e
comeacutercio variado atraiacutea tambeacutem pessoas dispostas a venderem sua forccedila de trabalho
Outro fator de atraccedilatildeo populacional foi o ldquoexcesso de caridaderdquo217
dos habitantes da
urbs mineira que contribuiacutea para o afluxo de mendigos e indigentes Essas pessoas eram
provenientes dos municiacutepios proacuteximos dos distritos e das fazendas nos arredores da
aacuterea urbana e de outros estados e junto a elas estavam muitas crianccedilas e jovens que
213
NAVA Pedro ldquoMorro do Imperadorrdquo In _____ Balatildeo Cativo (memoacuterias2) 2 ed Rio de Janeiro J
Olympio 1974 p 4-5 214
AHUFJF O Pharol 08 mar 1900 p 1 215
AHUFJF ldquoAacute Camarardquo O Pharol 17 abr 1887 p 1 216
SILVA Wesleyuml Por uma Histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da delinquecircncia de menores em Belo
Horizonte 1921-1941 Tese de Doutoramento Satildeo Paulo USP 2007 p 251 217
PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 p 89
66
contribuiacuteam para engrossar a massa de desvalidos da cidade Uma parcela desses
ldquomenoresrdquo que natildeo era absorvida como matildeo de obra barata pelas induacutestrias oficinas e
outros estabelecimentos vivia pelas ruas colocando pedras e material explosivo nos
trilhos dos bondes praticando pequenos furtos dirigindo provocaccedilotildees agrave populaccedilatildeo
proferindo palavras de baixo calatildeo invadindo quintais entre outras tropelias como
denunciavam os jornais juiz-foranos218
Imagem 4 Menores nas ruas e pedras nos trilhos dos bonds AHUFJF O
Pharol 22 mar 1900 p 1
A presenccedila e accedilotildees desses ldquomenoresrdquo no cenaacuterio urbano foi alvo constante da
imprensa local que exigia providecircncias das autoridades Com o passar dos anos
218
AHUFJF O Pharol 22 mar 1900 O Pharol 8 mar 1900 O Pharol 4 jan 1911 O Pharol 28 jan
1911 SM-BMMM Jornal do Comeacutercio 22 mar 1900 O Lynce 13 ago 1921
67
passaram a sugerir a criaccedilatildeo de institutos de assistecircncia para os meninos desfavorecidos
Desde os anos finais do seacuteculo XIX jaacute era colocado pelas classes dominantes por
intermeacutedio dos perioacutedicos a necessidade de criaccedilatildeo em Juiz de Fora de um ldquoasylo para
meninos desoccupadosrdquo Na mateacuteria publicada no O Pharol em abril de 1887 com o
tiacutetulo Aacute Camara foi ressaltado que ldquode longa data temo [sic] nos esforccedilado com as
auctoridades locaes instando pela cohibiccedilatildeo de abusos cometidos por esses desordeiros
e vagabundosrdquo O texto destacava que era um ldquovexame de ser uma cidade como a
nossa infestada de pequenos capoeiras desordeiros e vagabundosrdquo De acordo com a
reportagem as induacutestrias poderiam ser uma aliada para a soluccedilatildeo desse grave problema
uma vez que ldquoindustrias natildeo faltam em um logar como este em que as fabricas
formigam o trabalho eacute bem remuneradordquo Sendo assim a Cacircmara tinha ldquopessoas a
quem chamar e encarregar de uma pequena parte do dia no ensino da industria que
exerce mediante retribuiccedilatildeo do governordquo219
Segundo Irene Rizzini os primeiros anos do seacuteculo XX foram ldquoum periacuteodo feacutertil
na idealizaccedilatildeo dos estabelecimentos destinados agrave recuperaccedilatildeo dos menoresrdquo sendo
propostos muacuteltiplos tipos de estabelecimentos para dar atendimento agraves crianccedilas
desvalidas220
Em 1909 foi inaugurado em Belo Horizonte capital de Minas Gerais o Instituto
Joatildeo Pinheiro anexo agrave fazenda da Gameleira para agrave assistecircncia a ldquomenoresrdquo pobres
Esse estabelecimento tinha na educaccedilatildeo profissionalizante ldquoagrozootheacutecniardquo um de
seus principais pilares221
Segundo Jefferson de Almeida Pinto no governo de Joatildeo
Pinheiro (1906-1908) iniciou-se em Minas Gerais uma reforma do sistema educacional
que entre outros fatores objetivava ldquoimplantar um sistema puacuteblico de ensino e a
edificaccedilatildeo e implantaccedilatildeo da educaccedilatildeo em grupos escolares que seriam as bases
responsaacuteveis pela irradiaccedilatildeo do perfil republicano e liberal que se queria fundarrdquo222
Assim de acordo com o autor a fundaccedilatildeo do Instituto deve ser ldquopensado no conjunto
219 AHUFJF Aacute Camarardquo O Pharol 17 abr 1887 p 1 Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010
p 254 220
RIZZINI Op cit 2008 p 136-137 221
PINTO Jefferson de Almeida Ideias juriacutedico-penais e cultura religiosa em Minas Gerais na
passagem agrave modernidade (1890-1955) Rio de Janeiro Editora Multifoco 2013 p 71 Cf O jornal O
Pharol trouxe uma longa mateacuteria sobre o Decreto n 2416 de 9 de fevereiro de 1909 ldquoque organiza a
assistecircncia publica a meninos desvalidos e crea o Instituto Joatildeo Pinheirordquo A mateacuteria prosseguiu nos dias
seguintes AHUFJF ldquoAssistencia a menoresrdquo O Pharol 11 fev 1909 p 1 12 fev 1909 p 1 13 fev
1909 p 2 14 fev 1909 p 1 e 17 fev 1909 p 1 222
PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2013 p 72 Joatildeo Pinheiro assumiu o governo do estado de
Minas Gerais em 1906 poreacutem natildeo terminou o seu mandato pois faleceu em 25 de outubro de 1908 no
Palaacutecio de Liberdade em Belo Horizonte Idem p 71 nota 126
68
das mudanccedilas no sistema educacional que estavam ocorrendo em Minas Gerais e que
tinham suas razotildees na fundaccedilatildeo do proacuteprio sistema republicano no Brasilrdquo223
A
organizaccedilatildeo do Instituto Joatildeo Pinheiro com seu ldquoself governementrdquo e sua postura neutra
e liberal no que diz respeito a crenccedilas religiosas colocou-se como um modelo para os
estabelecimentos assistenciais que viessem a ser organizados futuramente224
Pela leitura dos perioacutedicos do periacuteodo pode-se conjecturar que o Instituto Joatildeo
Pinheiro efetivamente tornou-se o modelo de assistecircncia que era almejado pelas outras
cidades mineiras Na mateacuteria que foi publicada no O Pharol de 22 de fevereiro de 1911
com o tiacutetulo ldquoA Infacircncia desvalidardquo observa-se a crenccedila nas instituiccedilotildees como
formadora de uma nova consciecircncia entre os ldquomenoresrdquo que deveria ser atingida
atraveacutes da pedagogia do trabalho como mostrado no texto transcrito a seguir
A Infacircncia Desvalida
Haacute muito se faz sentir em Juiz de Fora a falta de um estabelecimento para
abrigo da infancia desvalida que sem o minimo cuidado para a sua educaccedilatildeo
vive a toa pelas ruas da cidade a encher tabernas e casas suspeitas de toda a
ordem onde adquire habitos perniciosissimos que cedo a conduzem ao
caminho tortuoso do roubo e do crime
[]
Os poderes publicos tecircm o dever de zelar pela sorte dos menores desvalidos
apparelhando-os convenientemente para convertel-os em cidadatildeos uteis aacute
sociedade e aacute paacutetria225
Observa-se na parte transcrita que a rua eacute colocada como um espaccedilo de
perversatildeo de vadiagem ou seja um local deformador dos ldquomenoresrdquo O discurso
meacutedico caracterizava os ldquomenoresrdquo que viviam nas ruas como os mais nocivos para a
sociedade uma vez que nesse espaccedilo instruiacuteam-se em todos os tipos de crimes e
viacutecios226
Dessa forma as crianccedilas deveriam ser retiradas desse ambiente pernicioso
Para a realizaccedilatildeo de tal meta seria necessaacuteria a implantaccedilatildeo de um instituto que
abrigasse essas crianccedilas e que lhes incutisse valores e as preparasse para serem bons
cidadatildeos por meio do aprendizado de um oficio O texto jornaliacutestico tambeacutem colocava
a questatildeo como um dever dos poderes puacuteblicos ou seja competia ao governo a
moralizaccedilatildeo do espaccedilo urbano e a preparaccedilatildeo dessa matildeo de obra para futuramente ser
uacutetil agrave sociedade e agrave paacutetria
Os debates em torno dos ldquomenoresrdquo desvalidos que viviam nas ruas referem-se
apenas agrave necessidade de contecirc-los de reprimi-los mas natildeo discutem as causas que
223
Ibidem p 71 224
Ibidem p 72-74 225
AHUFJF ldquoA Infacircncia Desvalidardquo O Pharol 22 fev 1911 p 2 226
FRAGA FILHO Walter Op cit 1996 p 115 120-121
69
levaram meninos e meninas para as ruas das cidades Um dos fatores foi (eacute) o aumento
da pobrezamiseacuteria Os pais sem condiccedilotildees de criarem seus filhos muitas vezes
abandonavam-os nas vias puacuteblicas das grandes cidades situaccedilatildeo ainda comum na
atualidade Entretanto natildeo apenas a miseacuteria levava (leva) as crianccedilas para as ruas
outros fatores como a violecircncia domeacutestica sexual exploraccedilatildeo de sua forccedila de trabalho
a perda dos pais ou responsaacuteveis eram motivos para que elas encontrassem nas ruas nas
calccediladas debaixo das pontes o seu novo lar
Esses ldquomenoresrdquo que eram tidos como um problema para a sociedade
geralmente eram desprovidos de laccedilos de famiacutelia e de parentesco ou estavam inseridos
em arranjos familiares que natildeo eram o esperado pela sociedade civilizada higiecircnica da
ordem e do progresso Muitas dessas crianccedilas pertenciam a famiacutelias constituiacutedas apenas
pela matildee e irmatildeos ou seja natildeo estavam dentro do modelo nuclearburguecircs em que
havia a presenccedila do pai e da matildee227
Com relaccedilatildeo agraves meninas desvalidasoacuterfatildes o municiacutepio de Juiz de Fora contava
com o asilo Joatildeo Emiacutelio desde o final dos anos de 1890 que poderia como era usual
dizer na eacutepoca encaminhaacute-las na vida dotando-as das qualidades necessaacuterias para o
serviccedilo domeacutestico nas casas das famiacutelias idocircneas para serem boas matildees e donas de
casa De acordo com Maria Luiza Marciacutelio a educaccedilatildeo ministrada agraves meninas nos
asilos tinha por objetivo ldquopreparaacute-las para serem matildees de famiacutelia e ou empregadas
domeacutesticas instruiacutedas e bem treinadasrdquo228
A educaccedilatildeo que deveria ser dada agraves meninas
desvalidas era a baacutesica seguida do aprendizado de um ofiacutecio O projeto de educaccedilatildeo
para os ldquodeserdados da fortunardquo independente do sexo era o mesmo Os institutos
asilos escolas reformatoacuterias e tantas outras instituiccedilotildees de assistecircncia tinham uma
missatildeo clara preparar trabalhadores submissos e obedientes agraves leis
A construccedilatildeo do asilo na deacutecada de 1890 teve inicialmente o objetivo de
atender aos mendigos e indigentes que viviam pelas ruas da cidade sendo o idealizador
desse projeto o padre Joatildeo Emiacutelio Ferreira da Silva229
que veio posteriormente a dar
nome ao estabelecimento A edificaccedilatildeo do preacutedio do ldquoAsilo da Mendicidaderdquo encontrou
227
Cf SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 228
MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 173-175 229
Joatildeo Emiacutelio foi um dos padres que assumiu a funccedilatildeo de introduzir na cidade de Juiz de Fora o modelo
eclesial tridentino ultramontano e romanizante Cf AZZI Riolando Op cit 2000 p 106 Para mais
informaccedilotildees sobre a reforma da Igreja Catoacutelica no Brasil na passagem agrave modernidade do modelo luso-
brasileiro para um modelo em conformidade com o catolicismo romano cf AZZI Riolando A Igreja e o
menor na histoacuteria social brasileira Satildeo Paulo Cehila ndash Ediccedilotildees Paulinas 1992 SERBIN Kenneth P
Padres celibato e conflito social uma histoacuteria da Igreja Catoacutelica no Brasil Companhia das Letras
2008
70
inicialmente algumas dificuldades uma vez que o terreno doado pelo Tenente Custoacutedio
da Silveira Tristatildeo para tal fim localizado na rua Antonio Dias foi considerado
inadequado pela Sociedade de Medicina e Cirurgia por encontrar-se no centro da
cidade o que poderia futuramente representar problemas agrave higiene puacuteblica A
construccedilatildeo do asilo deu-se entatildeo na chaacutecara doada pelo comendador Gervaacutesio Monteiro
da Silva em 1891 no bairro Alto dos Passos com a aprovaccedilatildeo da Sociedade de
Medicina e Cirurgia A inauguraccedilatildeo do ldquoPalaacutecio dos Mendigosrdquo como o asilo era
chamado pelos jornais ocorreu em 1895 e redundou em um total fracasso pois natildeo
contou com a adesatildeo dos desvalidos ao qual se destinava Apoacutes a morte do padre Joatildeo
Emiacutelio em 1899 as irmatildes da Congregaccedilatildeo de Santa Catarina ficaram responsaacuteveis pela
administraccedilatildeo do asilo Entretanto em 1902 a administraccedilatildeo foi transferida para as
Irmatildes da Congregaccedilatildeo do Bom Pastor que prosseguiram com as obras de atendimento
agraves meninas oacuterfatildes funccedilatildeo que o asilo assumiu apoacutes natildeo lograr ecircxito no atendimento aos
mendigos e indigentes230
Na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX vaacuterias congregaccedilotildees religiosas se
instalaram em Juiz de Fora a pedido do Bispo de Mariana Dom Silveacuterio que pretendia
com essa accedilatildeo intensificar o modelo eclesial tridentino ultramontano e romanizado na
cidade Nesse periacuteodo o municiacutepio mineiro recebeu sete congregaccedilotildees vindas da
Europa sendo trecircs masculinas e quatro femininas entre elas estava a das Irmatildes do Bom
Pastor231
Segundo Kenneth Serbin ocorreu uma ldquoavalanche de padres religiosos
estrangeirosrdquo na sociedade brasileira nas primeiras deacutecadas republicanas tendo a naccedilatildeo
recebido ldquomais de trecircs duacutezias de ordens religiosas masculinasrdquo Com relaccedilatildeo agraves
congregaccedilotildees femininas o autor assevera que a inserccedilatildeo delas nesse mesmo periacuteodo foi
ainda mais expressiva tendo-se instalado 96 ordens no paiacutes232
Como salientado neste item Juiz de Fora com suas induacutestrias seus teatros seus
poetas enfim com seu progresso e modernidade estava afastada da religiosidade das
barrocas cidades mineiras Segundo Maraliz Christo a urbs da Mata mineira estava
230
PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 p 109-111 AZZI Riolando Sob o baacuteculo episcopal a
Igreja Catoacutelica em Juiz de Fora 1850 ndash 1950 Centro da Memoacuteria da Igreja de Juiz de Fora 2000 p
174-175 OLIVEIRA Paulino Op cit 1966 p 129-130 SM-BMMM ldquoAsylo Joatildeo Emiacuteliordquo Jornal do
Commercio 16 de ago de 1902 p 1 231
AZZI Riolando Op cit 2000 p 165 Segundo Riolando Azzi as congregaccedilotildees religiosas que se
instalaram em Juiz de Fora a partir dos primeiros anos republicanos foram congregaccedilotildees masculinas
redentoristas holandeses salesianos italianos e verbitas alematildees congregaccedilotildees femininas irmatildes francesas
do Sion irmatildes alematildes de Santa Catarina irmatildes alematildes Servas do Espiacuterito Santo e irmatildes francesas do
Bom Pastor (Idem p 165) 232
SERBIN Kenneth P Op cit 2008 p 95
71
ldquoproacutexima ao anti-clericalismordquo constituindo-se em uma preocupaccedilatildeo para os
representantes da Igreja desde meados do seacuteculo XIX O padre Juacutelio Maria233
em 1894
chamou a cidade de a ldquoNova Niacuteniverdquo234
e repreendeu ldquoos lsquojovensrsquo os lsquooperaacuteriosrsquo e os
lsquoricosrsquo por estarem afastados da Igreja e de seus sacramentosrdquo bem como denunciou o
crescimento do protestantismo na cidade235
O desenvolvimento do espiritismo na cidade a partir do iniacutecio do seacuteculo XX
representou mais um obstaacuteculo para a Igreja Catoacutelica em sua ldquocruzada evangelizadorardquo
segundo os preceitos do Vaticano As transformaccedilotildees culturais de Juiz de Fora
advindas do desenvolvimento urbano-industrial criaram um ldquoambiente propiacutecio agrave
proliferaccedilatildeo de novas doutrinas religiosas praticadas por camadas meacutedias e letradas
receptivas agraves novidades em meio agrave proximidade da capital federalrdquo236
Na primeira
deacutecada republicana a ldquoNova Niacuteniverdquo jaacute contava com a presenccedila de catoacutelicos maccedilons
protestantes positivistas espiacuteritas e ateus E os seguidores desses vaacuterios credos faziam
dos jornais locais um locus de divulgaccedilatildeo de suas crenccedilas237
Os espiacuteritas em Juiz de Fora passaram a se dedicar agraves atividades de caridade para
com a populaccedilatildeo pobre disputando dessa forma um espaccedilo de accedilatildeo e representaccedilatildeo na
cidade que ateacute entatildeo era de domiacutenio da Igreja Catoacutelica Aleacutem das obras de caridade de
atendimento aos mendigos e indigentes embrenharam-se tambeacutem no caminho da
educaccedilatildeo dos setores desvalidos da sociedade ofertando agraves crianccedilas pobres ensino e
curso profissionalizante gratuitos238
As obras de assistecircncia agrave infacircncia pobre no municiacutepio de Juiz de Fora no
decorrer dos trinta primeiros anos da Repuacuteblica ficaram a cargo das accedilotildees de caridade e
233
Riolando Azzi assinala que o Padre Juacutelio Maria juntamente com os padres Joatildeo Emiacutelio e Venacircncio
Cafeacute compunha o ldquotrio de sacerdotes que se encarregavam de introduzir em Juiz de Fora o modelo
eclesial tridentinordquo Cf AZZI Riolando Op cit 2000 p 106 234
No livro de Jonas das Escrituras Sagradas ndash a Biacuteblia a cidade de Niacutenive eacute descrita como ldquoa grande
cidaderdquo em que imperava a maldade Jonas 12 235
CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 12 236
CAMURCcedilA Marcelo Ayres ldquoFora da caridade natildeo haacute religiatildeo breve histoacuteria da competiccedilatildeo religiosa
entre catoacutelicos e espiritismo kardecista e de suas obras sociais em Juiz de Fora 19001960rdquo In Locus
Revista de Histoacuteria Juiz de Fora v 7 n 1 2001 p 146 237
Idem p 141 238
Ibidem p 147-148 Jefferson de Almeida Pinto ressalta que com o advento da Repuacuteblica a Igreja
Catoacutelica perdeu um espaccedilo importante na formaccedilatildeo das pessoas uma vez que o ensino tornou-se laico A
educaccedilatildeo era visualizada pelos membros do clero catoacutelico como um meio para a divulgaccedilatildeo do modelo
eclesial ultramontano pretendido pela Igreja Com a Repuacuteblica a Igreja perdeu a sua primazia no ensino
passando este a ser ofertado tambeacutem por protestantes e espiritas Cf PINTO Jefferson de Almeida ldquoA
restauraccedilatildeo catoacutelico-tomista a partir do campo poliacutetico e juriacutedico de Minas Gerais na passagem agrave
modernidaderdquo Passagens Revista Internacional de Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro
v 2 n 5 set-dez 2010 p 143 e 145 Disponiacutevel em
wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv2n5a72010pdf Acessado em 10-07-2015
72
filantropia dos catoacutelicos e espiacuteritas como a distribuiccedilatildeo de brinquedos para as crianccedilas
carentes agasalhos festividades na Paacutescoa e Natal recolhimento das meninas oacuterfatildes e
desvalidas cursos profissionalizantes entre outras accedilotildees Entretanto os meninos
desvalidos oacuterfatildeos abandonados e indigitados de delinquentes continuavam a vagar
pelas ruas Como comentado neste item em 1911 poucos anos apoacutes a inauguraccedilatildeo do
Instituto Joatildeo Pinheiro (1909) em Belo Horizonte para atendimento aos ldquomenoresrdquo
desvalidos a imprensa local expunha a necessidade de instalaccedilatildeo no municiacutepio de uma
instituiccedilatildeo congecircnere agrave da capital do estado Todavia a situaccedilatildeo de abandono dos
ldquomenoresrdquo pelas ruas da cidade ainda era uma realidade nos anos de 1920 sendo a
cidade descrita como tendo ldquogarotos lsquoaacute bessarsquordquo que faziam ldquograccedilolas aacutes moccedilas e
meninasrdquo e que natildeo respeitavam os ldquomais velhosrdquo239
As reclamaccedilotildees sobre a presenccedila
desses meninos ldquoa infestar as ruas da cidaderdquo depredando os jardins quebrando as
lacircmpadas dos postes de iluminaccedilatildeo puacuteblica e as vidraccedilas das casas particulares que
ainda tinham as paredes garatujadas ldquocom obscenidadesrdquo foram constantes nos
perioacutedicos do final da deacutecada de 1920 que ressaltava que ldquotaes menores que por esse
caminho em breve se tornaratildeo ndash e muitos deles jaacute o satildeo ndash lsquopivettesrsquo240
e viciadosrdquo
mereciam ldquoum eneacutergico correctivo da policiardquo241
A situaccedilatildeo da infacircncia desvalida abandonada e delinquente e a accedilatildeo do Estado
para com a mesma era uma questatildeo presente nos perioacutedicos locais A presenccedila dos
Estado geralmente se fazia apenas nos momentos de repressatildeo e puniccedilatildeo deixando
parcela da infacircncia pobre e abandonada sem educaccedilatildeo e assistecircncia
A prisatildeo na Argentina de uma menina que havia furtado da casa de seu patratildeo
ldquodez tostotildees para leval-os aacute sua famiacutelia residente foacutera da capitalrdquo serviu de pano de
fundo para uma mateacuteria publicada no jornal Diaacuterio Mercantil242
em fevereiro de 1912
239
SM-BMMM ldquoUrge uma medidardquo O Lynce 13 ago 1921 p 1 Na mateacuteria com o tiacutetulo ldquoUrge uma
medidardquo o foot ball e tambeacutem o jogo de krica (pequenas bolinhas de vidro) eram acusados em parte pelo
comportamento desrespeitoso dos ldquomenoresrdquo Com relaccedilatildeo agrave krica o texto assinala que eram numerosos
os grupos de meninos pelas ruas envolvidos com esse jogo ldquoquando deviam estar na escola ou no
trabalho mesmo em casa dos paesrdquo Por isso era solicitada ao delegado de poliacutecia uma atitude ldquopara que
estes fucturos cidadatildeos natildeo continuem no caminho da malandragemrdquo Idem 240
O termo ldquopiveterdquo segundo Irene Rizzini jaacute era empregado no Rio de Janeiro no iniacutecio do seacuteculo XX
para fazer alusatildeo agraves crianccedilas moradoras nas ruas RIZZINI Irene Op cit 2011 p 115 nota 16 241
SM-BMMM ldquoUrge uma medidardquo O Lynce Juiz de Fora 13 de agosto de 1921 242 O jornal Diaacuterio Mercantil (DM) passou a circular em janeiro de 1912 O perioacutedico tinha um perfil
liberal (defesa das liberdades individuais e da propriedade privada) Desde o iniacutecio o jornal deixou
expresso as suas pretensotildees No editorial da primeira ediccedilatildeo foi assinalado que ldquoos interesses das classes
produtoras do paiacutes quando legiacutetimos teratildeo em o lsquoDiaacuterio Mercantilrsquo um advogado soliacutetico e fielrdquo Cf
GOODWIN JUNIOR James William Op cit 2007 p 81 Segundo Almir de Oliveira o Diaacuterio
Mercantil foi desde sua fundaccedilatildeo um ldquojornal poliacutetico por excelecircnciardquo tendo como fundadores Antocircnio
Carlos Ribeiro de Andrade e Joatildeo Penido Filho ldquopoliacuteticos de forte influecircncia no Municiacutepio e no Estadordquo
73
sobre a situaccedilatildeo da infacircncia desvalida brasileira bem como sobre essa problemaacutetica em
Juiz de Fora Assim pronunciava a mateacuteria
A sorte desta pobre creanccedila [argentina] faz-nos lembrar a de muitos seres
pequeninos que vivem jogado no mundo ao Deus daraacute e para os quaes a
justiccedila humana tem a brutalidade das feras bravias quando apanham nas
garras um animal indefeso e fraacutegil
Quantas e quantas crenccedilas sem pae e sem matildee tendo por guia na vida
exploradores perversos e deshumanos natildeo se atiram pelas ruas aacute
mendicidade e ao crime expostas ao achincalhe da gente abastada e ao
verdugo das autoridades perversas soffrendo mais do que os irracionaes para
conquistarem uma fatia de patildeo que lhes mitigue a fome
A infancia desamparada foacuterma hoje uma legiatildeo tatildeo numerosa que autorisa
uma previsatildeo tristissima sobre o futuro dessa parcella da humanidade que
seraacute amanhatilde talvez a maioria dos homens a lutar pela existencia E eacute faacutecil de
se avaliar a sorte que se reserva a todos indistinctamente quando se
desenvolverem esses desgraccedilados irmatildeos creados e formados no meio da
corrupccedilatildeo avassaladora dos bordeis e das ruas uacutenicos lugares onde
encontram abrigo e refugio orphatildeos como vivem da proteccedilatildeo que lhes devem
os governos e as classes incumbidas de zelar pela sorte dos humildes
Nas grandes cidades eacute um espectaculo compungente que se offerece aos
olhos do transeunte a concorrecircncia de menores mendigos e meninas perdidas
a assaltarem as casa cafeacutes e vehiculos implorando aos que passam ldquoum
nickel para comprar um patildeordquo ou ldquoauxilio para enterro da irmatildezinhardquo ou
ldquodinheiro para levar remeacutedio ao pae moribundordquo ou enfim para outra
qualquer cousa que levam muito bem decorada como o exigem os seus
miseraacuteveis instigadores quase sempre individuos criminosos e suspeitos a
cujo torpe mister as autoridades natildeo procuram crear embaraccedilos com a energia
e o rigor que as leis lhes facultam
A mendicidade constitue o melhor meio de que lanccedilam matildeo os traficantes de
toda a especie para viverem regaladamente sem occupaccedilatildeo e sem trabalho Si
ainda esses typos abjectos se valessem da sua laacutebia somente na conquista das
ambiccedilotildees que lhes corroem a alma negra natildeo era tanto para indignar porque
elles mesmos teriam de acarretar com os males resultantes de sua infame
tarefa
As autoridades declaram-se sempre impotentes e quando se reclama allegam
que os estabelecimentos de caridade eacute que devem recolher os pequenos
desvalidos
Conhecemos um menor nesta cidade chamado Thomeacute um infeliz mulatinho
de 10 annos de edade creado nas tavernas e casas de jogo em que eacute tatildeo feacutertil
esta nossa Princeza Thomeacute foi sempre o accusado o responsavel por todos
os pequenos furtos de que a policia tinha conhecimento As queixas de furto
de guarda-sol de patildeo nas janellas das casas de roscas nas portas das
padarias etc davam sempre em resultado a prisatildeo do abandonado
delinquumlente Vimol-o varias vezes na cadeia entre a fuacuteria do delegado e a
carranca de agentes de policia chorando copiosamente e defendendo-se das
accusaccedilotildees que lhe imputavam O infeliz sempre que era interpelado por taes
crimes rematava assim as suas escusas
- Pobre de quem natildeo tem pae e matildee neste mundo
Casos como o de Thomeacute contam-se aos milhares por toda a parte da terra O
mal estaacute generalisado de modo assustador Ningueacutem veacutela pela sorte da
infacircncia sem assistecircncia Os governos a quem competia em primeiro logar
resolver o problema cruzam os braccedilos criminosamente
Cf OLIVEIRA Almir de Op cit 1981 p 44 Em 1932 o DM foi adquirido pelo grupo dos ldquoDiaacuterios
Associadosrdquo do Rio de Janeiro dirigido pelo empresaacuterio Assis Chateaubriand Cf ROSA Rita de Caacutessia
Vianna Op cit 2013 p 92-95
74
E quando um menor desamparado commete um acto delictuoso qualquer
que deveria ser perdoado por ser inconsciente a justiccedila sem entranhas com
assentimento claro da sociedade faz como este malvado juiz argentino
condemna a DOIS ANNOS de prisatildeo uma creanccedila que furtou duas patacas ndash
Joc [Grifos no original]243
O texto levanta a questatildeo da puniccedilatildeo de crianccedilas que eram ldquoorphatildeos [] da
proteccedilatildeo que lhes devem os governosrdquo Tal problemaacutetica eacute bem atual uma vez que
nossa sociedade se vecirc agraves voltas com a discussatildeo da maioridade penal quando ainda
presenciamos um atendimento governamental insuficiente desumano e brutal para com
a infacircncia carente abandonada e em situaccedilatildeo de risco social Ainda hoje parcela
expressiva das crianccedilas e jovens pobres estaacute alijada de direitos sociais baacutesicos e o uacutenico
contato com o Estado ocorre somente em momentos de repressatildeo e puniccedilatildeo Uma
reportagem veiculada pelo programa Fantaacutestico da emissora Rede Globo em 18 de
agosto de 2013 denuncia o espancamento brutal de seis jovens internos da Fundaccedilatildeo
Casa (antiga Febem) na cidade de Satildeo Paulo por dois funcionaacuterios da instituiccedilatildeo Os
jovens apenas de cuecas receberam chutes cotoveladas e tapas244
Essas cenas
demonstram a permanecircncia de praacuteticas arcaicas de atendimento aos jovens das classes
subalternas em instituiccedilotildees que deveriam zelar pela sua integridade fiacutesica e pelo
desenvolvimento humano e intelectual Oportunamente discutirei em um proacuteximo
capiacutetulo a questatildeo da internaccedilatildeo de jovens em institutos de assistecircncia quando
analisarei os processos de internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo nos primeiros anos da Repuacuteblica
Ainda com relaccedilatildeo agrave mateacuteria do Diaacuterio Mercantil esta chamou a atenccedilatildeo para o
fato de a infacircncia pobre ser usada por indiviacuteduos para explorarem a caridade da
populaccedilatildeo atraveacutes de pedidos de esmolas e tambeacutem para a praacutetica de delitos bem como
ressaltou a omissatildeo da justiccedila em solucionar essa questatildeo245
O artigo fez uma previsatildeo
bem pessimista sobre o futuro da sociedade e desses cidadatildeos ldquocreados e formados no
meio da corrupccedilatildeo avassaladora dos bordeis e das ruasrdquo sendo estes os uacutenicos locais
aonde encontravam ldquoabrigo e refugiordquo uma vez que os ldquogovernos a quem competia em
primeiro logar resolver o problemardquo cruzavam ldquoos braccedilos criminosamenterdquo transferindo
243
AHCJF ldquoTraccedilosrdquo Diaacuterio Mercantil 06 fev 1912 p 1 244
Fantaacutestico Rede Globo 18 de agosto de 2013 - ldquoImagens mostram funcionaacuterios da Fundaccedilatildeo Casa
espancando menoresrdquo Disponiacutevel em httpg1globocomfantasticonoticia201308imagens-mostram-
funcionarios-da-fundacao-casa-espacando-menoreshtmlhash=2 Acessado em 25-05-2014 245
Para mais informaccedilotildees sobre a exploraccedilatildeo da caridade puacuteblica atraveacutes dos pedidos de esmolas e da
tentativa por parte da Cacircmara de Vereadores de Juiz de Fora de regulamentar essa accedilatildeo atraveacutes da
identificaccedilatildeo dos mendigos aptos a esmolar pelas ruas ver o trabalho de PINTO Jefferson de Almeida
Op cit 2008
75
a responsabilidade para os ldquoestabelecimentos de caridaderdquo246
O governo por meio da
justiccedila soacute assumia a sua responsabilidade frente a essa fraccedilatildeo da sociedade nos
momentos de puniccedilatildeo e repressatildeo
Manter o espaccedilo urbano ldquoordenadordquo ldquosaneadordquo e ldquopoliciadordquo era o objetivo dos
setores dominantes que buscavam imprimir uma imagem de cidade moderna e
civilizada a Juiz de Fora Entretanto a presenccedila de ldquomenoresrdquo como o ldquomulatinhordquo
Thomeacute de 10 anos de idade ldquocreado nas tavernas e casas de jogordquo afigurava-se pelas
ruas da cidade como um problema para essa sociedade uma vez que ele era a expressatildeo
da outra cidade a cidade insalubre dos corticcedilos dos ldquomenoresrdquo abandonados e
desvalidos dos mendigos dos ex-escravos e seus descendentes das prostitutas dos
becircbados dos operaacuterios dos imigrantes pobres que os setores dominantes queriam
esconder
A questatildeo da exploraccedilatildeo de ldquomenoresrdquo colocados para pedir esmolas nas ruas da
cidade por ldquomiseraacuteveis instigadoresrdquo foi objeto de denuacutencia de O Lynce247
de agosto de
1922248
Segundo o perioacutedico estavam circulando pelas ruas do municiacutepio de Juiz de
Fora havia cerca de dois anos duas ou trecircs meninas morenas e ldquomeio opiladasrdquo que
abordavam os transeuntes com cartotildees supostamente para fins religiosos com uns
quadradinhos que eram perfurados com um alfinete devendo a pessoa abordada
contribuir ldquocom um nickelrdquo O artigo intitulado ldquoCom a Poliacuteciardquo ressaltava que a
educaccedilatildeo das meninas ficava prejudicada com essa atividade tornando-as ldquoinsolentesrdquo e
expondo-as ldquoaos ditos chistosos e avaccalhados dos mal educadosrdquo e que essa tarefa
executada por elas se afigurava como uma exploraccedilatildeo pois ldquouma hora eacute para uma
egreja outra para um santo qualquer ou sinatildeo para uma festa religiosardquo A poliacutecia
deveria averiguar se as meninas estavam explorando o puacuteblico a mando dos pais ou por
alguma Congregaccedilatildeo ldquoporque eacute impossiacutevel que os responsaacuteveis por estas meninas natildeo
encontrem um meio de occupal-as num serviccedilo mais honestordquo249
Na anaacutelise que realizou sobre o Imperial Instituto de Meninos Cegos (atual
Instituto Benjamin Constant - Rio de Janeiro) Gizlene Neder ressaltou que um dos
fatores apontado pelo diretor do Instituto em 1858 para a pouca procura por vagas
246
AHCJF ldquoTraccedilosrdquo Diaacuterio Mercantil Juiz de Fora 6 fev 1912 p 1 247 O Lynce surgiu em janeiro de 1912 seu fundador foi o liacuteder espirita Jesus de Oliveira Segundo Almir
de Oliveira inicialmente foi um jornal de formato pequeno que se tornou gradativamente em uma
ldquorevista literaacuteria e noticiosardquo e posteriorme ldquovoltou agrave feiccedilatildeo de jornal mensalrdquo OLIVEIRA Almir Op
cit 1981 p 48 248
SM-BMMM ldquoCom a policiardquo O Lynce 12 ago 1922 p 2 249
Idem
76
naquele estabelecimento residia no fato de as famiacutelias utilizarem as crianccedilas cegas para
esmolarem250
Ao que parece a praacutetica de utilizar crianccedilas para explorar a caridade da
populaccedilatildeo era comum haja vista as colocaccedilotildees da mateacuteria jornaliacutestica transcrita
anteriormente e as observaccedilotildees do diretor do Instituto de Meninos Cegos examinadas
por Neder
Com o desmantelamento do sistema escravista no Brasil no decorrer da segunda
metade do seacuteculo XIX o trabalho passou a ter uma conotaccedilatildeo positiva como atividade
que conferia respeito e dignidade Todavia quanto ao trabalho infanto-juvenil
determinados setores da sociedade faziam ressalvas quanto aos tipos e tarefas que essas
crianccedilas deveriam executar Os trabalhos desenvolvidos nas ruas eram geralmente
considerados improacuteprios para os ldquomenoresrdquo haja vista a imagem que se formou sobre
esse espaccedilo como um lugar perigoso De acordo com Luciano Faria e Cynthia Veiga no
final do seacuteculo XIX a rua passou a ter uma conotaccedilatildeo de lugar perigoso O uso desse
espaccedilo ganhou duas dimensotildees para a populaccedilatildeo pobre e trabalhadora era um local
ldquosocializador de trocas de experiecircncias de lazer de solidariedade e de lutasrdquo e para as
elites era um ldquoespaccedilo de circulaccedilatildeordquo251
Analisando a questatildeo do trabalho infantil na
Argentina no final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX Maria C Zapioli corrobora as
palavras de Faria e de Veiga no sentido de que as classes dominantes e a populaccedilatildeo
pobre tinham visotildees diferentes sobre o espaccedilo denominado de rua De acordo com a
autora para os estratos mais baixos da sociedade ldquono todo era trabajo o delito en las
callesrdquo esse tambeacutem era um local para o estabelecimento de ldquosociabilidad com sus
paresrdquo252
Entretanto apesar dos receios que o binocircmio ldquorua-infacircnciardquo causava em vaacuterios
setores da sociedade por conta da relaccedilatildeo que havia sido estabelecida entre rua-
delinquecircncia-vadiagem muitos ldquomenoresrdquo tiravam o seu sustento e de seus familiares
valendo-se de atividades realizadas nesse espaccedilo Inuacutemeros afazeres eram realizados por
essas crianccedilas nas ruas das grandes cidades do Brasil e da Argentina como vendedores
de jornais engraxates verdureiros entre tantas outras atividades Segundo Zapioli os
250
NEDER Gizlene Op cit 2004 p 215-216 251
FARIA FILHO Luciano Mendes de VEIGA Cynthia Greive Op cit 1999 p 33 252
ZAPIOLI Mariacutea Carolina ldquoLos liacutemites de la obligatoriedad escolar en Buenos Aires 1884-1915rdquo
Cadernos de Pesquisa Satildeo Paulo v 39 n 136 Janabr 2009 pp 69-91 p 9 Disponiacutevel em
httpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S0100-15742009000100005 Acessado em 28-
12-2013 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoDa rua agrave faacutebricardquo a questatildeo do ldquomenorrdquo no Brasil e na
Argentina nas primeiras deacutecadas do seacuteculo XX In Anais FoMerco 2011 XII Congresso Internacional
FoMerco ndash Foacuterum Universitaacuterio do Mercosul (GT13 ndash Identidades sul-americanas cultura(s) juriacutedica(s) e
direito(s) na Ameacuterica do Sul) Rio de Janeiro UERJ setembro de 2011b
77
ldquomenoresrdquo exerciam as mais diversas atividades nas ruas de Buenos Aires e os que
conseguiram estabelecer-se em uma funccedilatildeo permanente como ldquolustrabotas o
lsquocanillitasrsquordquo gozavam de uma situaccedilatildeo melhor que a das demais crianccedilas pobres253
Conforme salientado anteriormente a rua passou a ter novos significados no
decorrer do seacuteculo XIX De maneira similar as concepccedilotildees sobre a cidade tambeacutem
foram se modificando no decorrer dos oitocentos De acordo com Carl Schorske podem
ser identificadas trecircs concepccedilotildees sobre a cidade entre os seacuteculos XVIII e XIX a cidade
como ldquovirtuderdquo como ldquoviacuteciordquo e ldquopara aleacutem do bem e do malrdquo sendo que esses
diferentes pensamentos coexistiram por certo tempo254
Com o acelerado processo de
industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo vivenciado por algumas naccedilotildees europeias no iniacutecio do
seacuteculo XIX e o consequente agravamento das condiccedilotildees sociais a imagem sobre a
cidade foi adquirindo tons cada vez mais sombrios passando a ser visualizada como um
espaccedilo de viacutecios Segundo o autor ldquoa cidade como siacutembolo ficou presa na rede
psicoloacutegica de esperanccedilas frustradasrdquo Dessa maneira a imagem ldquodeslumbrante da
cidade como virtuderdquo dos pensadores Iluministas contribuiu para que ldquoa imagem da
cidade como viacuteciordquo exercesse uma forte ldquoinfluencia sobre a mente europeiardquo Por volta
da segunda metade do seacuteculo XIX foi surgindo uma nova noccedilatildeo no pensamento
europeu sobre a cidade que a situava ldquopara aleacutem do bem e do malrdquo ou seja a cidade
moderna era concebida ldquocom todas as suas gloacuterias e seus horrores suas belezas e sua
feiurardquo e com suas ldquomultidotildeesrdquo255
A influecircncia dessas concepccedilotildees do pensamento
europeu sobre a ldquocidaderdquo pode ser observada nas mateacuterias dos perioacutedicos do municiacutepio
de Juiz de Fora Ora a cidade eacute descrita como o espaccedilo da virtude do progresso da
induacutestria e da civilizaccedilatildeo ora como da degradaccedilatildeo moral da miseacuteria dos corticcedilos dos
vadios dos ldquomenoresrdquo a perturbarem a ordem urbana
A presenccedila de crianccedilas nas ruas de Juiz de Fora colocando pedras nos trilhos dos
bondes quebrando lacircmpadas e vidraccedilas xingando os transeuntes praticando pequenos
furtosroubos brigando jogando entre outras accedilotildees subvertia a imagem de ordem e
disciplina da cidade difundida pelos oacutergatildeos da imprensa local Junto com o
desenvolvimento urbano e industrial vivenciado pelo municiacutepio na passagem agrave
253
ZAPIOLI Mariacutea Carolina Op it 2009 p 9 Cf FRANCISCO Raquel Pereira Op cit 2011b 254
SCHORSKE Carl E ldquoA ideia de cidade no pensamento europeu de Voltaire a Spenglerrdquo In
_________ Pensando com a Histoacuteria indagaccedilotildees na passagem para o modernismo Satildeo Paulo
Companhia das Letras 2000 p 53 255 Idem p 61 66-67 Cf SENNETT Richard Carne e pedra o corpo e a cidade na civilizaccedilatildeo
ocidental 2 ed Rio de Janeiro BestBolso 2010 BRESCIANI Maria Stella Martins Londres e Paris no
seacuteculo XIX o espetaacuteculo da pobreza Satildeo Paulo Editora Brasiliense 1982
78
modernidade vieram os problemas sociais inerentes ao processo como a presenccedila de
um grande contingente de crianccedilas pobres abandonadas e oacuterfatildes nas ruas da cidade A
soluccedilatildeo apontada por fraccedilotildees das classes dominantes para o grave problema dos
ldquomenoresrdquo que ldquoinfestavamrdquo esse espaccedilo urbano eram os institutos e o aprendizado de
um ofiacutecio manual Como discuti anteriormente neste capiacutetulo o trabalho numa
conjuntura de constituiccedilatildeo do mercado de trabalho livre dentro de uma ordem
capitalista apresentava-se como a soluccedilatildeo mais viaacutevel para tal problema A faacutebrica a
oficina o comeacutercio o asilo e outras instituiccedilotildees se apresentavam como o locus
privilegiado para disciplinar as crianccedilas desvalidas e abandonadas para moldaacute-las pelo
e para o trabalho
Como foi salientado no decorrer do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX Juiz de Fora
recebeu um afluxo populacional expressivo e uma parcela desse contingente foi
absorvida pelos estabelecimentos industriais e comerciais da cidade Entre os admitidos
estavam muitas crianccedilas e adolescentes A presenccedila do trabalhador infanto-juvenil nas
faacutebricas oficinas e comeacutercio da cidade estatildeo constantemente presentes nas mateacuterias dos
perioacutedicos locais nas mais diversas situaccedilotildees como de acidentes precariedade das
condiccedilotildees de trabalho violecircncia entre outras No relatoacuterio realizado pelo ldquoinspector da
industriardquo Dr Carlos Prates para ser submetido agrave consideraccedilatildeo do Estado em 1906
Juiz de Fora foi descrita como a cidade industrialmente mais importante de Minas
Gerais Na descriccedilatildeo das faacutebricas (que utilizavam maacutequinas movidas a vapor e a
eletricidade) visitadas o inspetor registrou o nuacutemero total de operaacuterios de cada
estabelecimento ressaltando que este era composto por homens mulheres e crianccedilas256
A sociedade possuiacutea (e ainda possui) uma opiniatildeo ambivalente a respeito da
inserccedilatildeo de ldquomenoresrdquo no mercado de trabalho Para diversos segmentos das classes
dominantes essa era a soluccedilatildeo para o grave problema social representado pelas crianccedilas
pobres abandonadas e oacuterfatildes Entretanto essa opiniatildeo natildeo era compartilhada por liacutederes
operaacuterios e por parcela dos segmentos vulneraacuteveis da sociedade Basicamente as
criacuteticas recaiacuteam sobre o emprego de ldquomenoresrdquo em atividades tipicamente urbanas
induacutestrias faacutebricas oficinas etc A exploraccedilatildeo da matildeo de obra de meninas como babaacutes
empregadas domeacutesticas nas casas das senhoras dos grupos dominantes natildeo foi uma
questatildeo de vulto nos debates Provavelmente muitas meninas eram provenientes das
256
SM-BMMM ldquoMuniciacutepio de Juiz de Forardquo Jornal do Commercio 3 jan 1906 p 1
79
fazendas de seus patrotildees e passaram a vida inteira a servi-los recebendo parcos
ordenados
Os setores da sociedade que defendiam o trabalho infanto-juvenil advogavam
que este era um dos caminhos para manter a ldquopaz socialrdquo uma vez que era necessaacuterio
tornaacute-los cidadatildeos uacuteteis ao paiacutes Junto ao discurso do trabalho como uma estrateacutegia
regeneradora dos ldquomenoresrdquo infratores e de preservaccedilatildeo dos desvalidos estava a
preocupaccedilatildeo com o fornecimento de matildeo de obra para as induacutestrias que estavam se
formando
Segundo Esmeralda de Moura a utilizaccedilatildeo indiscriminada da matildeo de obra
infanto-juvenil no iniacutecio do periacuteodo republicano retrata o ldquobaixo padratildeo de vida da
famiacutelia operaacuteria pautado em salaacuterios insignificantes e em iacutendices de custo de vida
extremamente elevadosrdquo257
A precariedade da vida dos operaacuterios contribuiu para a
inserccedilatildeo de crianccedilas bem jovens no ldquomundo do trabalhordquo Elas eram empregadas nos
mais variados ramos de atividades Aleacutem dos baixos salaacuterios das longas jornadas os
ldquomenoresrdquo estavam mais expostos agraves doenccedilas aos acidentes e aos castigos fiacutesicos258
O trabalho infantil no Brasil na passagem agrave modernidade foi objeto de leis para
a sua regulamentaccedilatildeo A legislaccedilatildeo brasileira por meio do Decreto N 1313 de 17 de
janeiro de 1891 buscou regulamentar ldquoo trabalho dos menores empregados nas faacutebricas
da Capital Federalrdquo poreacutem ele jamais surtiu o efeito esperado259
A literatura sobre a
utilizaccedilatildeo da matildeo de obra infantil destaca que essa natildeo foi uma questatildeo que tenha
gerado muitas querelas entre os parlamentares brasileiros uma vez que esses ldquomenoresrdquo
foram amplamente empregados nas faacutebricas oficinas e nos campos Contribuiacuteram para
a expressiva exploraccedilatildeo desses pequenos trabalhadores a ineficiecircncia da fiscalizaccedilatildeo e
de accedilotildees governamentais para conter os abusos e excessos260
Os estados brasileiros tambeacutem legislaram sobre a carga horaacuteria que seria exigida
desses ldquomenoresrdquo com qual idade poderiam comeccedilar a desempenhar atividades e sobre
o trabalho noturno As leis e os decretos estaduais tornaram-se letra morta pois a
257
MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro ldquoCrianccedilas operaacuterias na receacutem-industrializada Satildeo Paulordquo In
DEL PRIORE Mary (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil 5 ed Satildeo Paulo Contexto 2006 p 262 258
Cf BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p 99-100 MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro Op cit
2006 p 266 -268 270 Cf PERROT Michelle ldquoA juventude operaacuteria da oficina agrave faacutebricardquo In LEVI
Giovanni SCHMITT Jean-Claude (org) Histoacuteria dos Jovens a eacutepoca contemporacircnea Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1996 p 103-105 259
RIZZINI Irene RIZZINI Irma HOLANDA Fernanda Rosa Borges de ldquoA infacircncia e o mundo do
trabalho consideraccedilotildees conceituaisrdquo In __________ A crianccedila e o adolescente no mundo do trabalho
Rio de Janeiro USU Ed Universitaacuteria Amais Livraria e Editora 1996 p 31 260
Idem p 32-33
80
fiscalizaccedilatildeo era insuficiente e as diversas brechas existentes no texto desses
documentos permitiam que a matildeo de obra dessas crianccedilas continuasse a ser explorada
Esmeralda Moura assinala que a exploraccedilatildeo mais draacutestica sobre a forccedila de trabalho
infantil recaiu sobre a categoria denominada de ldquoaprendizesrdquo O empresariado paulista
com o discurso de que estava dando uma oportunidade para que esses ldquomenoresrdquo
aprendessem um oficio utilizou-se do trabalho de meninos e meninas sem nenhuma
despesa salarial com os mesmos261
O trabalho infantil era vantajoso para os empregadores uma vez que os seus
salaacuterios eram baixos e a sua forccedila de trabalho era amplamente explorada A utilizaccedilatildeo
indiscriminada dessa matildeo de obra fez com que muitos meacutedicos legisladores
professores e poliacuteticos passassem a criticar a sua utilizaccedilatildeo e a exigirem uma
regulamentaccedilatildeo para essa atividade No Brasil ao longo das primeiras deacutecadas do
seacuteculo XX foram surgindo grupos que criticavam a utilizaccedilatildeo do trabalho de crianccedilas
A imprensa em especial a operaacuteria abriu suas paacuteginas para denunciar os maus tratos e a
exploraccedilatildeo a que esses ldquomenoresrdquo estavam sujeitos dentro das faacutebricas das oficinas etc
Chegaram mesmo a comparar a vida e as condiccedilotildees de trabalho dos pequenos operaacuterios
com a dos ex-escravos A imprensa operaacuteria tambeacutem reivindicava que esses ldquomenoresrdquo
tivessem condiccedilotildees de frequentar a escola Outros segmentos sociais comeccedilaram a
denunciar os males fiacutesicos causados pelo emprego de crianccedilas em atividades
extenuantes e improacuteprias para sua idade262
A imprensa foi uma das ldquotribunasrdquo utilizadas pelos ldquohomens de letrasrdquo e pelos
liacutederes operaacuterios para defenderem ou criticarem a utilizaccedilatildeo da matildeo de obra feminina e
infantil nas induacutestrias263
Nos perioacutedicos consultados deparei-me com notiacutecias sobre a
importacircncia da educaccedilatildeo para os operaacuterios sobre os malefiacutecios que o trabalho poderia
causar em muitos jovens entre outras questotildees Compulsando o jornal O Pharol de
261
MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro Op cit 2006 p 271-273 Cf PERROT Michelle Op cit
1996 p 111 119 262
Idem p 279-281 Cf RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Puniccedilatildeo e estrutura social 2 ed
Rio de Janeiro Editora Revan 2004 p 56-57 263 Laura Antunes Maciel ressaltou que a imprensa entre o seacuteculo XIX e princiacutepios do XX se constituiacuteu
em um espaccedilo privilegiado de ldquoluta socialrdquo Os diversos setores da sociedade provavelmente tinham a
percepccedilatildeo de que suas ldquolutasrdquo tambeacutem poderiam ser travadas ldquono terreno da palavra impressardquo MACIEL
Laura Antunes ldquoO popular na imprensa linguagens e memoacuteriasrdquo In Anais do XIX Encontro Regional
de Histoacuteria Poder violecircncia e exclusatildeo ANPUHSP ndash USP Satildeo Paulo pp 1-8 set 2008 p 1 e 5-6
Disponiacutevel em wwwanpuhsporgbrspdownloadsCD XIXPDFAutores e ArtigosLaura Antunes
Macielpdf Acessado em 10-07-2015
81
1911 encontrei na Folha de Mariano264
que estava inclusa no dito perioacutedico uma
reportagem sobre a luta dos caixeiros de Juiz de Fora pela reduccedilatildeo da jornada de
trabalho Aproveitando o ensejo a mateacuteria informava sobre as condiccedilotildees de trabalho das
mulheres e crianccedilas nas faacutebricas tecircxteis da regiatildeo de Mariano Procoacutepio como pode ser
observado na transcriccedilatildeo seguinte
Todas as classes proletarias tratam de diminuir as horas de trabalho Aqui
mesmo a classe caixeira reclama aliaacutes muito justamente o fechamento das
portas algumas horas mais cedo
Haacute entretanto outros operarios mais sobrecarregados de trabalho e mais mal
remunerados Entre elles os das fabricas de tecidos principalmente mulheres
e crianccedilas
E assim que pobres operarias da fabrica de tecidos de Mariano a maioria
composta de menores trabalham das 5 horas da manhatilde aacutes 5 horas da tarde
com os pequenos intervallos das refeiccedilotildees e ainda fazem seratildeo ate as 11
horas da noite segundo nos informam
A atmosfera que se respira nas fabricas de tecidos jaacute contribue para alterar a
saude dos operarios O mal augmenta consideravelmente com o accrescimo
de horas de trabalho sobretudo no veratildeo e principalmente quando esses
operarios satildeo moccedilas e crianccedilas
Parece-nos que essa classe proletaria tambeacutem merece a attenccedilatildeo de quem
deve cuidar da saude e da hygiene publica que estatildeo um pouco acima do
interesse industrial265
Na localidade de Mariano Procoacutepio citada na reportagem ora transcrita
localizava-se uma das mais importantes faacutebricas tecircxtil de Juiz de Fora a Companhia de
Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira fundada na deacutecada de 1880 e popularmente
conhecida pelo nome de ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo A Companhia era fruto de um
consoacutercio que tinha como principais promotores e acionistas os ingleses Andrew John e
Peter Steele Willian Moreth e Henry Whittaker ndash ldquocomerciantes e industriais
estabelecidos na Corte e na vizinha Petroacutepolisrdquo266
A reportagem destaca as peacutessimas condiccedilotildees de trabalho e as longas jornadas a
que estavam expostos natildeo apenas as crianccedilas e aproveita para chamar a atenccedilatildeo das
autoridades para tal situaccedilatildeo que foi colocada como uma questatildeo de sauacutede e higiene
puacuteblica267
Dentro dessas ditas condiccedilotildees precaacuterias de trabalho a tuberculose aparecia
como uma das moleacutestias que mais inspiravam cuidados por ceifar a forccedila de trabalho de
muitos operaacuterios Todavia as medidas para combater os focos de insalubridade e de
264
Mariano Procoacutepio eacute um bairro de Juiz de Fora Nessa regiatildeo estava localizada a ldquoFaacutebrica dos
Inglesesrdquo A maior parte do preacutedio da antiga faacutebrica foi demolido e na construccedilatildeo que restou funciona
uma empresa de alimentos 265
AHUFJF O Pharol 2 fev 1911 p 2 ldquoFolha de Marianordquo 266
Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit 2010 p 124 267 FRANCISCO Raquel Pereira Op cit 2012b p 116
82
propagaccedilatildeo da tuberculose e outras doenccedilas geralmente paravam nas portas das
faacutebricas e nas porteiras das fazendas onde as autoridades natildeo conseguiam intervir para
melhorar as condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios O Delegado de Higiene de Juiz de
Fora Dr Joseacute de Mendonccedila Mattos Moreira em seu relatoacuterio de janeiro de 1910
atribuiacutea as dificuldades encontradas pelas autoridades no que diz respeito a um controle
maior sobre as condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios agrave ausecircncia de uma legislaccedilatildeo sobre
as condiccedilotildees de trabalho particularmente no que se refere agrave higiene industrial268
A presenccedila de crianccedilas nas induacutestrias de Juiz de Fora foi observada tambeacutem nos
processos de acidentes no trabalho onde as precaacuterias condiccedilotildees de trabalho satildeo
observadas nos mais diversos tipos de acidentes em que os jovens operaacuterios se
envolveram levando alguns a oacutebito
O problema da carga horaacuteria dos pequenos operaacuterios foi uma questatildeo que
suscitou debates entre vaacuterios grupos da sociedade brasileira nas deacutecadas iniciais do
seacuteculo XX sendo tambeacutem uma questatildeo debatida pela Cacircmara de Vereadores e pela
imprensa de Juiz de Fora
Em julho de 1912 o vereador Dr Francisco Augusto Pinto de Moura269
apresentou um projeto a Cacircmara Municipal de Juiz de Fora em que as crianccedilas operaacuterias
de ateacute 14 anos natildeo poderiam exercer suas atividades depois das 17 horas270
Essa
proposta segundo um artigo do Jornal do Commercio estava sendo muito bem recebida
268
CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 133-134 269
Francisco Augusto Pinto de Moura formado em Direito pela Faculdade de Direito de Satildeo Paulo foi
vereador da Cacircmara Municipal de Juiz de Fora de 1912 a 1922 Atuou no magisteacuterio sendo professor da
Academia de Comeacutercio de Juiz de Fora e da Faculdade de Direito da qual foi um dos fundadores Cf
CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 23 (Quadro II) 270
AHCJF ldquoCamara Municipalrdquo Diaacuterio Mercantil 24 jul 1912 p 2 O texto do projeto sobre a
regulamentaccedilatildeo do trabalho de crianccedilas nas faacutebricas de Juiz de Fora saiu publicado no Jornal Diaacuterio
Mercantil no dia 24-07-1912 AHCJF ldquoCamara Municipalrdquo Diaacuterio Mercantil 26 out 1912 p 2 Em 18
de outubro de 1912 pela Resoluccedilatildeo da Cacircmara Municipal n 669 foi aprovado o projeto de lei
ldquoO presidente da Camara Municipal de Juiz de Foacutera
Faccedilo saber a todos os habitantes do municipio que a Camara Municipal votou e eu promulguei a
resoluccedilatildeo seguinte
Artigo 1o - Eacute vedado aacutes creanccedilas de ambos os sexos menores de 14 anos de edade o serviccedilo nas fabricas
e officinas da cidade e seu municiacutepio da 5 horas da tarde em deante sob pena de incorrerem os
proprietaacuterios das fabricas ou officinas na multa de cem mil reis e no dobro em caso de reincidecircncia
Art 2o - Esta pena seraacute imposta pelo director de hygiene municipal quando no desempenho das funcccedilotildees
que lhe satildeo conferidas pelo art 3o sect 6 da Resol n
o 3 de 14 de maio de 1892 ou em qualquer occasiatildeo em
que verifique a infracccedilatildeo do artigo antecedente sendo a cobranccedila da multa effectuada pela forma
determinada em lei
Art 3o - O conhecimento ou determinaccedilatildeo da edade das creanccedilas em caso de duvida ficaraacute a criteacuterio do
director de hygiene salvo prova irrecusaacutevel em contrario
Art 4o - Revogam-se as disposiccedilotildees em contrariordquo
Mando portanto a todas as autoridades a quem o conhecimento e execuccedilatildeo pertencerem da referida
resoluccedilatildeo que a cumpram e faccedilam cumprir tatildeo inteiramente como nella se contecircm
Dada no paccedilo da Camara Municipal da cidade de Juiz de Foacutera aos dezoito dias []
Oscar Vidal Barbosa Lage presidente da Camara e agente executivo municipal
83
pelos ldquoorgams da imprensardquo271
De acordo com a notiacutecia as crianccedilas eram ldquoas flores de
uma geraccedilatildeo futurardquo e por isso era por elas que se deveria ldquoiniciar a campanha em
nome das generosas ideias como essa que a todos nos move em prol das classes
operariasrdquo A mateacuteria do jornal continua afirmando que era necessaacuterio cuidar da
ldquoeducaccedilatildeordquo do ldquopreparo espiritualrdquo da ldquohygienerdquo desses pequenos para que dessa
maneira pudesse ldquoassegurar em cada crianccedila de hoje um homem uacutetil agrave sociedade de
amanhatilderdquo e o pai vendo ldquoesse carinho pelo filhordquo ficaria mais conformado com as
dificuldades da vida e mesmo tendo que continuar a trabalhar 10 horas por dia
encontraria consolo no fato de saber que seus filhos estavam sendo protegidos por leis
que velavam ldquopela sua educaccedilatildeo e aprendizagem methodicasrdquo A reportagem destacou a
importacircncia de projetos para a proteccedilatildeo dos ldquooperariosinhosrdquo e dentro desse contexto
fez referecircncia agrave Lei do Ventre Livre (1871) como uma importante medida para a
extinccedilatildeo do trabalho escravo no paiacutes que comeccedilou pelo ventre das escravas ou seja
pelas crianccedilas As medidas em prol do operariado dentro dessa linha de raciociacutenio
deveriam iniciar-se pelas ldquoflores do futurordquo272
Esse projeto regulamentando o horaacuterio de trabalho das crianccedilas nas faacutebricas de
Juiz de Fora foi apresentado dentro de um contexto de tensatildeo entre o operariado e os
patrotildees culminando na deflagraccedilatildeo da greve em agosto de 1912 quando operaacuterios de
diversas aacutereas paralisaram suas atividades273
As crianccedilas operaacuterias foram suprimidas de seu direito agrave escolarizaccedilatildeo por causa
das longas e extenuantes horas de trabalho Essa problemaacutetica tambeacutem foi debatida pela
notiacutecia que assinala que a Cacircmara deveria criar escolas noturnas para atender esse
segmento da sociedade sendo caracterizado como dever do poder puacuteblico ldquoauxiliar o
operaacuterio na educaccedilatildeo de seus filhosrdquo274
Essa notiacutecia sobre a regulamentaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho dos ldquomenoresrdquo de
Juiz de Fora abre um leque de questotildees que natildeo satildeo visiacuteveis inicialmente sendo pois
necessaacuterio esquadrinhar ldquoos silecircncios e os aspectos ocultos nas entrelinhasrdquo do discurso
jornaliacutestico275
271
SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1 272
Idem 273
Em agosto de 1912 ocorreu uma greve em Juiz de Fora sendo uma das propostas a reduccedilatildeo da jornada
de trabalho para 8 horas Esse objetivo natildeo foi atingido pelos operaacuterios da ldquoManchesterrdquo em 1912 Para
mais informaccedilotildees sobre a greve de 1912 ver ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe
operaacuteria em Juiz de Fora uma histoacuteria de lutas (1912 ndash 1924) Juiz de Fora EDUFJF 1987 274
SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1 275
MACHADO Humberto F ldquoA atuaccedilatildeo da Imprensa do Rio de Janeiro no Impeacuterio do Brasilrdquo In
Revista do IHGB Rio de janeiro n 448 julhosetembro de 2010 p 33
84
O texto destaca a relevacircncia do projeto a necessidade de se proteger e educar os
pequenos operaacuterios Mas essas medidas tatildeo saudadas pela imprensa do municiacutepio
mineiro demonstram que os ditos anseios e zelos para com a infacircncia operaacuteria traziam
em seu bojo a preocupaccedilatildeo com o trabalhador em que essas crianccedilas iriam se
transformar futuramente O que a leitura dessa notiacutecia sugere eacute que as leis projetos
foram concebidas para abrandar as reivindicaccedilotildees das lutas operaacuterias Observando com
ldquolentes de aumentordquo as partes ldquoopacasrdquo do texto jornaliacutestico percebe-se que os projetos
leis seriam na verdade uma estrateacutegia dos setores dominantes da sociedade para amainar
a insatisfaccedilatildeo do proletariado Os pais ldquofelizesrdquo pelas leis que protegiam seus filhos
aceitariam ldquosacrifiacutecios indiziacuteveisrdquo e encontrariam ldquomais consolo nas agruras da vida
inevitaacuteveis de prompto e desculparaacute muita iniquidade que por enquanto natildeo nos eacute dado
impedirrdquo276
Presumo que os projetos com vistas a proteger e amparar os
ldquooperariosinhosrdquo traziam em seu bojo a expectativa de refrear o desejo de luta por
melhores condiccedilotildees de trabalho de seus genitores
Junto com a discussatildeo sobre o trabalho de crianccedilas nas induacutestrias a questatildeo da
sua escolarizaccedilatildeo tambeacutem se apresentou A educaccedilatildeo para as crianccedilas desvalidas era
visualizada como uma estrateacutegia para educar e preparar o trabalhador do futuro O
ensino destinado a elas era o baacutesico acompanhado do aprendizado de um oficio ou seja
visava tatildeo somente disciplinar e incutir valores morais nos trabalhadores do amanhatilde e
natildeo promover a sua elevaccedilatildeo social atraveacutes de um ensino de qualidade
No Diaacuterio Mercantil de quatro de agosto de 1912 foram publicados artigos
elogiando o projeto de lei do Dr Pinto de Moura Em uma das mateacuterias foi destacada a
reportagem do ldquoillustre e brilhante chronista do Jornal do Commercio localrdquo da ldquosecccedilatildeo
lsquoTirasrsquordquo que havia chamado a atenccedilatildeo sobre a necessidade de criaccedilatildeo de escolas
noturnas para atender os jovens operaacuterios A respeito do ensino para os ldquomenoresrdquo o
texto do Diaacuterio Mercantil ressaltou que essa era uma necessidade e chamou a atenccedilatildeo
para o fato de que o ensino primaacuterio era obrigatoacuterio ldquoem face do dec Estadoal n 3911
de 1911 a nenhum pae ou tutor eacute licito deixar de mandar seus filhos agrave escolardquo e ainda
assinalou que na cidade existia uma ldquoescola nocturna na Avenida D Rita Halfeld da
conferencia de S Vicente de Paulordquo que era ldquodirigidardquo pelo professor Carlos Machado
Mas que natildeo havia procura por parte das ldquocreanccedilas filhas das socorridas dessa Avenida
porque aacute noite estatildeo occupadas nas fabricasrdquo Assim era imprescindiacutevel que de ldquopar
276
SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1
85
com a lei municipalrdquo sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil a lei estadual do
ensino fosse respeitada277
Em outra mateacuteria do mesmo jornal e data assinada por Joatildeo Vargas discutiu-se
a importacircncia do projeto bem como a problemaacutetica em que estava envolvida a questatildeo
do trabalho infanto-juvenil no periacuteodo Segundo Joatildeo Vargas o projeto apresentado agrave
Cacircmara pelo vereador Pinto de Moura sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho noturno de
crianccedilas era ldquocompleto e perfeitordquo e atendia as necessidades do municiacutepio e colocava
em ldquoharmonia interesses permanentemente em jogordquo Dessa maneira natildeo cabia
ldquoampliaccedilotildees que os sentimentos excessivamente generosos de alguns distinctos
confrades e as suas convicccedilotildees philosophicas tem sugeridordquo278
Em sua explanaccedilatildeo
ainda ressaltou que natildeo era justo que se limitasse a
[] analyse a um aspecto uacutenico da questatildeo que se procura resolver Natildeo basta
examinal-a exclusivamente do lado moral do ponto de vista de direitos que
se possam ferir eacute imprescindiacutevel o estudo sob o aspecto da economia publica
e privada279
De acordo com Joatildeo Vargas a preocupaccedilatildeo que perpassava o projeto era a
ldquoelevaccedilatildeo do niacutevel intellectual moral e physico do operaacuterio do futurordquo e tal objetivo
seria ldquorelativamente atingidordquo O projeto tinha o meacuterito de natildeo tirar o
[] menor do trabalho privando-o de collaborar com o seu auxilio
muitiacutessimas vezes indispensavel na mantenccedila dos pais invalidos para
abandonal-o aacute rua aacutes solicitaccedilotildees da vadiagem e viacutecios daacute-lhe apenas
descanccedilo preciso para que o seu desenvolvimento physico moral e
intellectual natildeo seja retardado ou annullado na sua marcha pela ausecircncia de
repouso frequecircncia escolar e recreios280
Ainda para embasar a sua argumentaccedilatildeo de que o projeto do vereador Pinto de
Moura estava ldquocompleto e perfeitordquo o cronista do Diaacuterio Mercantil passou a discorrer
sobre os paiacuteses europeus (Inglaterra Franccedila Suiacuteccedila e Aacuteustria) que haviam decretado leis
relativas ao trabalhador infanto-juvenil Assim ressaltou que as ldquolegislaccedilotildees operariasrdquo
desses paiacuteses estava ldquoproduzindo efeitos desastrososrdquo De acordo com Joatildeo Vargas o
277
AHCJ ldquoSemanalrdquo Diaacuterio Mercantil 04 ago 1912 p 1 No mesmo perioacutedico e data saiu uma nota em
que a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora declarava que estava de ldquopleno accordordquo com o
projeto do vereador Dr Pinto de Moura sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho noturno de crianccedilas 278
AHCJ ldquolsquoFilmsrsquo Cariocasrdquo Diaacuterio Mercantil 04 ago 1912 p 1 279
Idem p 1 280
Ibidem
86
intelectual francecircs Gustave Le Bon281
havia constatado em seus estudos que a ldquolei
franceza de 1900rdquo referente ao trabalhador ldquomenorrdquo teve como resultado a
ldquodesappariccedilatildeo da aprendizagem e o aumento da criminalidade infantilrdquo Entretanto o
projeto apresentado agrave Cacircmara de Juiz de Fora natildeo expunha a cidade a tal risco pois o
Dr Pinto de Moura natildeo era ldquoum metaphysicordquo282
As duas reportagens do Diaacuterio Mercantil comentadas anteriormente ressaltam
a importacircncia do projeto de lei para a cidade e para as crianccedilas operaacuterias no que diz
respeito a sua escolarizaccedilatildeo Todavia no artigo assinado por Joatildeo Vargas observa-se
uma provaacutevel preocupaccedilatildeo com reivindicaccedilotildees ou propostas ditas mais radicais com
relaccedilatildeo agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil no municiacutepio Conjecturo que um dos
receios estivesse relacionado agraves propostas de se estabelecer um limite de idade para o
ldquomenorrdquo ser admitido nos estabelecimentos industriais Provavelmente tal receio era
compartilhado por vaacuterios segmentos das classes dominantes locais O projeto do
vereador Pinto de Moura versava sobre o horaacuterio de trabalho das crianccedilas nos
estabelecimentos fabris natildeo tocando na questatildeo idadeadmissatildeo e esse detalhe foi
elogiado pelo cronista pelo fato de natildeo retirar a crianccedila do trabalho O projeto de lei
basicamente objetivava propiciar meios para as crianccedilas operaacuterias terem acesso agrave
escola No texto de J Vargas observa-se a presenccedila do discurso dominante do periacuteodo
em que o trabalho era concebido como um antiacutedoto para a vadiagem e a criminalidade
infantil bem como uma defesa dos interesses das classes detentoras dos meios de
produccedilatildeo
Na anaacutelise dos processos judiciais observei a partir dos ldquoautos de perguntasrdquo dos
documentos que a grande maioria das crianccedilas envolvidas natildeo havia recebido a
instruccedilatildeo elementar Nos ldquoautosrdquo os ldquomenoresrdquo geralmente declaravam que ldquonatildeo sabia
ler e nem escreverrdquo ou que ldquosabia assinar o nomerdquo Apesar da constante exaltaccedilatildeo da
educaccedilatildeo nos perioacutedicos do final do seacuteculo XIX e princiacutepios do XX como uma vereda
para o paiacutes atingir o tatildeo decantado progresso natildeo houve realmente uma poliacutetica voltada
281
Charles-Marie Gustave Le Bon (1841-1931) intelectual francecircs que atuou nos campos da psicologia
social e da sociologia Cf CONSOLIM Maacutercia Cristina Raccedila e histoacuteria na obra de Gustave Le Bon In
Anais do XIX Encontro regional de Histoacuteria Poder Violecircncia e Exclusatildeo ANPUHSP-USP Satildeo Paulo
08 a 12 de setembro de 2008 Disponiacutevel em
httpwwwanpuhsporgbrspdownloadsCD20XIXPDFAutores20e20ArtigosMarcia20Cristin
a20Consolimpdf Acessado em 10-05-2015 282
AHCJ ldquolsquoFilmsrsquo Cariocasrdquo Diaacuterio Mercantil 04 ago 1912 p 1 Segundo informaccedilotildees da reportagem
a legislaccedilatildeo social de alguns paiacuteses europeus estabeleceu os limites de idades em que os ldquomenoresrdquo
poderiam ser admitidos nas faacutebricas e oficinas sendo na Inglaterra a partir dos 12 anos na Franccedila dos 13
anos e na Suiacuteccedila e Aacuteustria dos 14 anos de idade Idem
87
para a preparaccedilatildeo dos jovens desvalidos O que as fontes compulsadas sugerem eacute que a
preocupaccedilatildeo das classes dominantes (poliacutetico-econocircmica) era com a constituiccedilatildeo de
trabalhadores ordeiros e disciplinados para compor a matildeo de obra da nascente sociedade
industrial brasileira
A ideologia do trabalho como um ldquoremeacutediordquo para a vadiagem e a ociosidade e
como um caminho para se alcanccedilar a prosperidade ultrapassou a barreira do discurso
das classes dominantes Esse pensamento constantemente presente nas paacuteginas dos
perioacutedicos nas falas dos policiais das autoridades poliacuteticas dos juristas nos sermotildees
dos padres pastores foi criando raiacutezes no seio das camadas empobrecidas da sociedade
tornando-se o trabalho um santo de devoccedilatildeo283
de expressiva parcela da populaccedilatildeo
pobre sendo ele visualizado como uma atividade que conferia dignidade bens materiais
e respeito Ditados como lsquosou pobre mas sou trabalhadorrsquo lsquoescola de pobre eacute a faacutebricarsquo
lsquoestudo natildeo enche barrigarsquo presentes ainda hoje nas falas das pessoas mais humildes
demonstram como que no processo de construccedilatildeo da eacutetica do trabalho a questatildeo da
formaccedilatildeo intelectual das crianccedilas das camadas empobrecidas ficou em um plano
secundaacuterio O importante era a preparaccedilatildeo desses pequenos para o mercado de trabalho
competitivo e assalariado que entatildeo estava se constituindo Os setores desfavorecidos da
sociedade sem perspectivas de mudanccedilas de suas condiccedilotildees de vida visualizavam o
trabalho como o uacutenico mecanismo de transformaccedilatildeo e ou de soluccedilatildeo de seus problemas
imediatos alimentaccedilatildeo e moradia Eles natildeo conseguiram ter a dimensatildeo ou natildeo tiveram
condiccedilotildees materiais de ver as possibilidades que a educaccedilatildeo poderia trazer para seus
rebentos e nem o Estado e os setores dominantes se comprometeram efetivamente
com o ensino das crianccedilas pobres
Dentro desse contexto os Grupos Escolares se destacaram como espaccedilos de
formaccedilatildeo das classes trabalhadoras Segundo Maraliz Christo eles tinham uma
[] funccedilatildeo social bem definida fazer bons cidadatildeos e acima de tudo bons
trabalhadores Cabia ao ensino elementar uma missatildeo moralizadora e
civilizatoacuteria onde o saber apesar do discurso liberal natildeo era visto como um
direito mas como um mecanismo disciplinar para formar o tipo de cidadatildeo
prestaacutevel ditado pelas classes dominantes o trabalhador submisso284
283
Estou empregando essa metaacutefora religiosa para me referir agrave importacircncia que parcela expressiva da
populaccedilatildeo pobre dava (daacute) ao trabalho como um meio de lhe conferir dignidade e respeito perante a
sociedade 284
CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 116
88
A reforma do ensino em Minas Gerais (1906) durante o governo de Joatildeo
Pinheiro resultou na criaccedilatildeo dos Grupos Escolares tendo Juiz de Fora sediado o
primeiro estabelecimento desse gecircnero que comeccedilou a funcionar em fevereiro de 1907
com a inauguraccedilatildeo do Grupo Escolar ldquoDelfim Moreirardquo O curriacuteculo desses grupos
escolares tinha como principal vieacutes o ldquoensino da submissatildeordquo285
Para Maraliz Christo a
estrutura de ensino montada para esses grupos visava a ldquodomesticaccedilatildeordquo natildeo apenas das
pessoas que estavam inseridas como da populaccedilatildeo excluiacuteda de seus muros286
O inspetor escolar da Cacircmara de Juiz de Fora Heitor Guimaratildees287
em um
artigo publicado no jornal Correio de Minas288
quando da inauguraccedilatildeo do Grupo
Escolar ldquoDelfim Moreirardquo intitulado ldquoPelos Pobresrdquo ressaltou que pensava que os
ldquogrupos escolares como as escolas primarias isoladasrdquo se destinavam ao atendimento
das crianccedilas pobres entretanto consideradas as exigecircncias com calccedilados uniformes e
livros muitas natildeo teriam condiccedilotildees de permanecer e dessa forma o ldquoEstadordquo acabaria
ldquoministrando instrucccedilatildeo gratuita aos favorecidos da sorte apenasrdquo Para o inspetor
deveria ser exigido apenas asseio dos alunos pois isso fazia parte da educaccedilatildeo Outra
criacutetica lanccedilada por Heitor Guimaratildees aos grupos escolares se refere ao vestuaacuterio que as
professoras ldquoforam convidadas a apresentar-se sempre de roupa branca de chapeacuteo e
luvas []rdquo [grifos no original] Para ele a ldquoinstrucccedilatildeo publica nada lucra com esse luxo
inuacutetil[]rdquo289
De fato a educaccedilatildeo puacuteblica para os pobres de nada lucrou com o ldquoluxo
inuacutetilrdquo das normas do grupo escolar sendo que a evasatildeo foi grande290
285
Idem p 118-119 Segundo Maraliz Christo no curriacuteculo dos grupos escolares constavam ldquoevoluccedilotildees
militares a ginaacutestica os hinos escolares a disciplina o estudo seriado o aprendizado de lsquocoisas
concretasrsquo a ecircnfase agrave praacutetica o culto da autoridade do trabalho e da higienerdquo Ibidem p 119 286
Ibidem p 119 Cf FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis
Vozes 2007 p 174 287
Heitor Guimaratildees foi um dos fundadores da Academia Mineira de Letras (AML) em Juiz de Fora (25
de dezembro de 1909) e o fundador da Associaccedilatildeo de Imprensa de Minas aleacutem de ser membro de vaacuterias
outras instituiccedilotildees Na aacuterea do magisteacuterio atuou como professor em diversos coleacutegios (Juiz de Fora e Rio
de Janeiro) e foi Inspetor Escolar Municipal de Juiz de Fora No jornalismo fundou o Democraacutetico
(1884) e em 1893 a revista literaacuteria Folha Azul no Rio de Janeiro Guimaratildees atuou em vaacuterios oacutergatildeos da
imprensa Com relaccedilatildeo a sua produccedilatildeo literaacuteria escreveu poesias contos crocircnicas e livros didaacuteticos Cf
CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 21-22 (Quadro I ndash continuaccedilatildeo) 288
O Correio de Minas foi fundado por Estevatildeo de Oliveira em maio de 1894 Segundo o artigo do
Diaacuterio Mercantil intitulado ldquoHistoacuteria da imprensa de Juiz de Forardquo o perioacutedico era um ldquoorgatildeo
republicano e democraacutetico consagrado aos interesses fundamentais do Estado de Minasrdquo e que o seu
proprietaacuterio e redator Estevatildeo de Oliveira ldquolhe deu cunho poliacutetico acentuadamente nacionalistardquo
AHCJF ldquoHistoacuteria da imprensa de Juiz de Forardquo Diaacuterio Mercantil 27 abr 1946 Ao longo de sua
existecircncia o jornal perteceu a diversos proprietaacuterios que de lhe deu diferentes orientaccedilotildees poliacuteticas Em
1929 foi colocado a ldquoserviccedilo da Alinaccedila Liberalrdquo sendo o seu proprietaacuterio o industrial e poliacutetico
Severino Costa Circulou ateacute 1949 Cf OLIVEIRA Almir de Op cit 1981 p 27-28 289
SM-BMMM ldquoPelos Pobresrdquo Correio de Minas Juiz de Fora 5 fev 1907 p 1 290
CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 p 120
89
Por causa em grande parte ao ldquoluxo inuacutetilrdquo dos grupos escolares uma parcela
expressiva das crianccedilas pobres ficou alijada dos bancos escolares Aleacutem das exigecircncias
como uniformes sapatos e livros que representavam uma barreira para os filhos dos
operaacuterios frequentarem a escola outro fator que os afastavam do ambiente escolar era a
necessidade de ajudar a famiacutelia com seu trabalho constituindo muitos jovens operaacuterios
em ldquoarrimordquo ou ldquoprovedorrdquo de famiacutelia Nos processos de acidentes no trabalho que
pesquisei e que adiante seratildeo analisados muitos deles declararam-se como provedores
da famiacutelia principalmente naquelas constituiacutedas pela matildee (viuacutevas ou natildeo) e filhos
Nas faacutebricas de Juiz de Fora a matildeo de obra infanto-juvenil era abundante sendo
constantemente objeto de apreciaccedilatildeo pela imprensa local que registrava os acidentes as
condiccedilotildees de trabalho os espancamentos a necessidade de reduccedilatildeo da jornada de
trabalho a proibiccedilatildeo dos serotildees entre outros assuntos As crianccedilas das classes populares
aparecem basicamente nos perioacutedicos nas situaccedilotildees de carecircncia como operaacuterias ou
como perturbadores da ordem e da disciplina o que levava os ldquohomens de letrasrdquo291
em
nome dos interesses das classes dominantes a solicitar das autoridades ora medidas de
proteccedilatildeo ora de puniccedilatildeo para esse estrato da sociedade292
Muitos desses ldquomenoresrdquo pobres que viviam pelas ruas das cidades trabalhando
nas faacutebricas e em outros estabelecimentos eram filhos de moradores dos corticcedilos que
segundo o discurso da imprensa eram lugares ldquonos quaes se accumula[va] grande
numero de individuos ndash operarios famiacutelias etcrdquo293
e enfrentavam desde cedo as
dificuldades de sobrevivecircncia impostas agraves camadas populares A ldquoManchester Mineirardquo
a exemplo da capital federal jaacute nos anos finais do seacuteculo XIX enfrentava o problema
dos corticcedilos A preocupaccedilatildeo era com as condiccedilotildees higiecircnicas dessas moradias que
poderiam acarretar graves problemas para a sociedade como um todo uma vez que se
localizavam na aacuterea central ou nos subuacuterbios proacuteximos ao centro da cidade Os corticcedilos
e casas populares habitados pelos trabalhadores prostitutas desordeiros em suma pela
populaccedilatildeo pobre localizavam-se nas regiotildees proacuteximas ao rio Paraibuna ou seja nas
aacutereas que estavam mais sujeitas agraves enchentes Jaacute a classe mais abastada ocupava as
aacutereas mais nobres e de colinas longe das inundaccedilotildees como a Rua Direita (atual Av
Baratildeo do Rio Branco) Rua Santo Antocircnio a parte alta da Rua Halfeld a regiatildeo do Alto
291
A expressatildeo foi utilizada por James Goodwin Junior que a adaptou de ldquoordem gendelettrerdquo (ldquogente de
letrasrdquo) de Balzac Para o historiador os literatos que paralelamente atuavam como ldquojornalistasrdquo no final
do seacuteculo XIX e no iniacutecio do seacuteculo XX eram ldquohomens de letrasrdquo Cf GOODWIN JUNIOR James
William Op cit 2007 p 87 292
NEDER Gizlene Op cit 2004 p 213 293
SM-BMMM Jornal do Commercio 29 maio 1897 p 1
90
dos Passos294
entre outras Apesar das condiccedilotildees insalubres e precaacuterias dessas
habitaccedilotildees segundo os jornais os alugueacuteis eram altos para os parcos rendimentos de
seus habitantes A imprensa local constantemente solicitava das autoridades
ldquohygienicasrdquo e policiais providecircncias com relaccedilatildeo a essas habitaccedilotildees por causa dos
miasmas que exalavam O combate aos corticcedilos decorria principalmente de questotildees
sanitaacuterias e higiecircnicas bem como morais295
As imagens seguintes datildeo uma dimensatildeo
das condiccedilotildees precaacuterias das casas habitadas pelos segmentos vulneraacuteveis da populaccedilatildeo
de Juiz de Fora
Imagem 5 ldquoHabitaccedilatildeo Operaacuteriardquo SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica
literaria politica e noticiosa Juiz de Fora 26 de fevereiro de 1922 p 244
294
A ligaccedilatildeo de Juiz de Fora com o Rio de Janeiro pode ser apreendida em pequenos detalhes como
apelidar um arrabalde do municiacutepio com nomes de bairros cariocas Em 1921 a revista A Evoluccedilatildeo
chamou o Alto dos Passos de o ldquolsquoBotafogorsquo de Juiz de Forardquo SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista
pedagogica literaria poliacutetica e noticiosa Juiz de Fora 31 de outubro de 1921 v I fasciacuteculo VI p 97 295
Para mais informaccedilotildees sobre as condiccedilotildees de moradias da populaccedilatildeo trabalhadora e pobre de Juiz de
Fora na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX ver o trabalho de SILVA Maiacutera Carvalho Carneiro Lugar
de trabalhador eacute na aacuterea de serviccedilo moradia popular em Juiz de Fora (1892-1930) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Juiz de Fora UFJF 2008 p 55-62 90
91
Imagem 6 Habitaccedilatildeo Operaacuteria SM-BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica
literaria politica e noticiosa Juiz de Fora 26 de fevereiro de 1922 p 245
As crianccedilas e as famiacutelias pobres viviam em uma sociedade que buscava por meio
de vaacuterias medidas de controle social enquadraacute-las dentro de uma visatildeo de mundo
burguesa de ordem civilizaccedilatildeo e progresso Por essa razatildeo a sua organizaccedilatildeo familiar
suas habitaccedilotildees seus costumes sua religiosidade e meios de lazer eram alvos constantes
das medidas puacuteblicas de coerccedilatildeo e controle Entretanto a essa parcela da populaccedilatildeo natildeo
eram dadas as condiccedilotildees materiais de sobrevivecircncia dentro dessa sociedade
ldquocivilizadardquo da disciplina e da ordem Com os parcos salaacuterios recebidos pela populaccedilatildeo
pobre em geral restavam apenas as casas de cocircmodos os corticcedilos que geralmente
localizavam-se em aacutereas carentes de infraestrutura urbana
A preocupaccedilatildeo dos agentes da administraccedilatildeo municipal com relaccedilatildeo aos serviccedilos
urbanos baacutesicos e de embelezamento era primordialmente com a aacuterea central e em
especial a que era habitada pelos setores dominantes da sociedade Durante a
administraccedilatildeo de Joseacute Procoacutepio Teixeira o ldquoHaussmann de Juiz de Forardquo296
houve um
consideraacutevel investimento nos serviccedilos de calccedilamentos embelezamento ndash arborizaccedilatildeo
jardins ndash abertura de novas vias de acesso construccedilatildeo do novo paccedilo municipal entre
296
Gazeta Comercial Juiz de Fora 17 de maio de 1928 Apud MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990
p 197-198
92
outras obras localizadas nas aacutereas mais valorizadas297
O novo preacutedio das Reparticcedilotildees
Municipais em estilo neoclaacutessico foi inaugurado em 1918 ndash durante a administraccedilatildeo do
Haussmann mineiro sendo uma construccedilatildeo mais moderna e antenada com o progresso
da cidade estando localizado na Avenida Baratildeo do Rio Branco (antiga Rua Direita)
esquina com a Rua Halfeld um ldquoprotoacutetipo em termos arquitetocircnicos da Avenida Central
no Rio de Janeirordquo298
Imagem 7 ldquoJoseacute Procoacutepio Teixeirardquo SM-BMMM A
Evoluccedilatildeo revista pedagogica literaria poliacutetica e noticiosa
Juiz de Fora 30 de setembro de 1922
297
MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 196-197 Sobre a questatildeo das reformas urbanas
empreendidas na capital federal nos primeiros anos da Repuacuteblica e das poliacuteticas de controle social
exclusatildeo e segregaccedilatildeo da populaccedilatildeo pobre das ldquoaacutereas nobresrdquo da cidade ver entre outros o trabalho de
NEDER Gizlene Op cit 1997 298
MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990 p 207
93
Imagem 8 ldquoEdifiacutecio das Reparticcedilotildees Municipaisrdquo SM-
BMMM A Evoluccedilatildeo revista pedagogica literaria
poliacutetica e noticiosa Juiz de Fora 30 de setembro de 1921
p 43
Nessa avenida onde predominavam os ldquopalacetes e chalets construiacutedos dentro
de um padratildeo arquitetocircnico ecleacutetico caracteriacutestico do periacuteodo da Belle Eacutepoquerdquo299
estavam localizados tambeacutem outros siacutembolos do poder (poliacutetico econocircmico e religioso)
do progresso e modernidade de Juiz de Fora dentre os quais o Foacuterum a Matriz o
Parque Municipal (atual Parque Halfeld) a Santa Casa de Misericoacuterdia e o Club Juiz de
Fora O dito Club uma associaccedilatildeo civil foi inaugurado no mesmo ano em que as novas
instalaccedilotildees das Reparticcedilotildees Municipais e localizava-se na esquina da Avenida Rio
Branco com a Rua Halfeld No salatildeo desse preacutedio ocorriam os bailes de gala onde se
reuniam os grupos dominantes da cidade 300
299
Idem p 207 300
O preacutedio do Club Juiz de Fora foi destruiacutedo na deacutecada de 1950 por um incecircndio sendo no local
construiacutedo outro preacutedio com a mesma denominaccedilatildeo e que tecircm em sua fachada os paineacuteis em azulejos
ldquoAs quatro estaccedilotildeesrdquo e ldquoCavalosrdquo ambos de Cacircndido Portinari Os paineacuteis foram tombados pelo poder
executivo municipal em 1997 pelo Decreto no 058691997 e o preacutedio em 2002 pelo Decreto 7475 de 25
de julho de 2002 Para mais informaccedilotildees sobre o Club Juiz de Fora cf ROSA Rita de Caacutessia Vianna
Op cit 2013 p 28 e 29
94
Imagem 9 Avenida Baratildeo do Rio Branco ndash Juiz de Fora 1920 Acervo Ramon Brandatildeo
Como salientado anteriormente a populaccedilatildeo pobre ficava excluiacuteda dos serviccedilos
urbanos baacutesicos e segregada espacialmente uma vez que as poliacuteticas puacuteblicas de
controle social procuravam afastar os grupos que natildeo se identificavam com a imagem
de progresso e modernidade da cidade para as aacutereas distantes da regiatildeo central
A populaccedilatildeo pobre da ldquoManchester Mineirardquo que vivia nas aacutereas insalubres e
afastadas da Avenida Rio Branco com seus palacetes e chalets comeccedilou a reivindicar
melhores condiccedilotildees de vida e de trabalho desfazendo a imagem propagada pelos oacutergatildeos
da imprensa de uma cidade ordeira Joseacute Procoacutepio Teixeira presidente da Cacircmara
enfrentou em sua administraccedilatildeo os protestos e comiacutecio da populaccedilatildeo ndash em frente ao
novo preacutedio das Reparticcedilotildees Municipais ndash contra a carestia de vida em agosto de 1918
Os protestos resultaram em saques nos estabelecimentos da cidade Esse movimento
popular ficou conhecido como ldquogreve do accediluacutecarrdquo e foi reprimido pela poliacutecia e pelo
exeacutercito301
A exemplo dos grandes centros industriais da jovem Repuacuteblica brasileira Rio de
Janeiro e Satildeo Paulo a classe operaacuteria juiz-forana tambeacutem promoveu movimentos
grevistas no decorrer das deacutecadas de 1910 e 1920 Na pauta de reivindicaccedilatildeo estavam a
301
ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 p 103 -105 Nas localidades proacuteximas de
Juiz de Fora tambeacutem ocorreram movimentos populares de protestos contra a carestia de vida Cf
ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987
95
melhoria das condiccedilotildees de trabalho o aumento salarial a reduccedilatildeo da jornada de
trabalho para oito horas a regulamentaccedilatildeo do trabalho feminino e infanto-juvenil entre
outras questotildees As mobilizaccedilotildees operaacuterias da ldquoManchester Mineirardquo estavam em
consonacircncia com as que estavam ocorrendo nas outras regiotildees industrializadas do paiacutes
Segundo Silvia Vilela de Andrade a conjuntura de 1917-1920 eacute um periacuteodo
emblemaacutetico de ldquomobilizaccedilatildeo da classe trabalhadora no Brasil que pressiona a atuaccedilatildeo
dos industriais e do Estado quanto agrave elaboraccedilatildeo de leis regulamentadoras do
trabalhordquo302
Dentro do quadro de reivindicaccedilotildees do operariado de Juiz de Fora uma
conquista foi obtida com a aprovaccedilatildeo pela Cacircmara Municipal em 1912 do Decreto que
regulamentou o horaacuterio de trabalho dos jovens operaacuterios anteriormente examinado
A precariedade de vida da classe trabalhadora que em fases mais agudas
resultavam em protestos contribuiacutea para que muitas crianccedilas ingressassem no universo
adulto e no ldquomundo do trabalhordquo precocemente sendo assim privadas das brincadeiras
e dos bancos escolares Essa mesma precariedade fazia com que as mulheres pobres
deixassem o seu lar contrapondo-se dessa maneira ao ideal burguecircs da esposa-matildee-
dona de casa para trabalharem no serviccedilo domeacutestico ou fabril Seus filhos que ainda
natildeo trabalhavam fora do lar sem escolas (pela falta de vagas nos estabelecimentos
puacuteblicos ou de condiccedilotildees de atenderem agraves exigecircncias da instituiccedilatildeo de ensino) viviam
pelas ruas das cidades a praticarem vaacuterias travessuras descritas pelos jornais como
tropelias Com relaccedilatildeo aos filhos da classe operaacuteria juiz-forana O Lynce publicou uma
mateacuteria discutindo a necessidade de as autoridades promoverem a assistecircncia para os
filhos dos operaacuterios O artigo intitulado ldquoAssistecircncia aacute infanciardquo criticava a falta de
assistecircncia escolar agrave crianccedila filha de operaacuterios nos seguintes termos
A falta de assistencia official aacute infancia pobre nesta cidade eacute um facto
Esta cidade cuja populaccedilatildeo em sua maioria vive do trabalho nas fabricas
devia ter nas zonas mais importantes um pequeno estabelecimento de
proteccedilatildeo aacutes creanccedilas de operarios mantidos pelo governo visto que a renda
estadoal aqui recompensa qualquer despeza nesse sentido
Essa protecccedilatildeo poderia ser feita da seguinte foacuterma o Estado construiria em
cada zona operaria um edifiacutecio adequado para receber durante o dia as
creanccedilas cujas matildees fossem trabalhar nas fabricas Completa a construccedilatildeo do
edifiacutecio [] faria entrega do mesmo juntamente como uma quota mensal a
Camara Municipal que por sua vez organizaria uma associaccedilatildeo que zelasse
pelas creanccedilas durante as horas em que as pobres matildees estivessem no
emprego
[]
O operario com alugueis e alimentos caros para manter a familia tem que
trabalhar aacute bessa dahi a necessidade da esposa ir para fabrica em prejuiacutezo de
sua sauacutede e dos filhinhos
302
Idem p 103
96
Proveacutem desse facto a crescente mortalidade infantil que no ponto em que
estaacute eacute o comeccedilo de uma grande e proacutexima calamidade
Emquanto que os filhos dos operaacuterios se definham e morrem porque os seus
paes natildeo podem dar-lhes o conforto que precisam o governo manteacutem o
pomposo e dispensavel Jardim da Infacircncia que natildeo demonstra vantagem de
espeacutecie alguma visto que soacute podem frequental-o creanccedilas de famiacutelias ricas
ou remediadas taes satildeo exigencias para a matricula Vejamos uniformes
caro cestinha de vime com merenda (que natildeo seja anguacute) bonde etc
Eacute ateacute irrisoacuterio O rico aleacutem de ter meios proprios para dar conforto e
divertimento aos filhos tem aacute sua disposiccedilatildeo um grande Jardim da
Infancia[] o pobre que natildeo tem meios para alimentar regularmente sua
prole natildeo merece dos governos a protecccedilatildeo que faz jus
[] Jardim da Infacircncia do Largo do Riachuelo fosse transformado em escola
maternal operaria
Como estaacute natildeo tem utilidade nenhuma303
Ao longo desse item do capiacutetulo tenho apresentado que era uma constante nos
perioacutedicos as reclamaccedilotildees quanto agrave presenccedila de ldquomenoresrdquo pelas ruas da cidade Creio
que uma parcela expressiva dessas crianccedilas que faziam das vias puacuteblicas da cidade um
local de brincadeiras de amizades e de sobrevivecircncia fossem filhos de pais
trabalhadores que passavam longe da prole os dias e agraves vezes a noite dados os
constantes serotildees304
das faacutebricas Como o grosso da populaccedilatildeo pobre e trabalhadora
morava em habitaccedilotildees precaacuterias e pequenas em consequecircncia as crianccedilas que ficavam
em casa para os pais e ou matildees trabalharem encontravam na rua um espaccedilo de lazer e
de liberdade
O artigo jornaliacutestico transcrito acima chama a atenccedilatildeo para essa problemaacutetica
social ndash os pais necessitando trabalhar para sustentar a famiacutelia deixavam os filhos em
casa por conta proacutepria sem ter quem cuidasse de sua educaccedilatildeo Posto isso eacute colocado
pela mateacuteria a necessidade de o poder puacuteblico auxiliar os pais nessa tarefa criando um
estabelecimento que cuidasse dos filhos das operaacuterias enquanto as mesmas
trabalhavam Essa discussatildeo sobre a assistecircncia agraves crianccedilas e adolescentes eacute bem atual
haja vista os debates em torno da educaccedilatildeo de tempo integral que entre outros fatores
reforccedilam a intenccedilatildeo de os manterem longe das ruas e das situaccedilotildees de risco social
A mateacuteria ainda faz uma denuacutencia com relaccedilatildeo agrave existecircncia na cidade de um
ldquopomposordquo Jardim da Infacircncia que apesar de puacuteblico era frequentado apenas pelas
ldquocreanccedilas de famiacutelias ricas ou remediadasrdquo pois as camadas pobres natildeo tinham
303
SM-BMMM ldquoAssistencia aacute Infanciardquo O Lynce 27 set 1925 p 1 304
Segundo Luiacutes Eduardo de Oliveira os serotildees eram visualizados pelos setores dominantes como um
siacutembolo do vigor e da pujanccedila da ldquoeconomia urbana da Manchester Mineirardquo Ao operariado dos
estabelecimentos industriais de Juiz de Fora constituiacutedo em sua maioria por ldquomenoresrdquo e mulheres era
imposta uma jornada de trabalho que poderia chegar ateacute16 hora por dia OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de
Op cit 2010 p 249
97
condiccedilotildees de arcarem com as despesas de uniformes cestinhas para merenda e
transporte Sobre a merenda eacute destacado que os alunos do Jardim da Infacircncia natildeo
podiam levar angu ou seja o alimento baacutesico ou o uacutenico de muitas casas das classes
mais pobres Tais exigecircncias eram um fator de exclusatildeo dos filhos das famiacutelias pobres
que geralmente eram constituiacutedas de uma prole numerosa
Imagem 10 Jardim da Infacircncia - Largo do Riachuelo 1925 SM-BMMM
Banco de Fotos
A questatildeo das exigecircncias das instituiccedilotildees de ensino e a dificuldade de acesso das
classes pobres jaacute haviam sido ressaltadas por Heitor Guimaratildees em 1906 quando da
inauguraccedilatildeo dos Grupos Escolares em Juiz de Fora como jaacute salientei anteriormente
As condiccedilotildees precaacuterias de vida das crianccedilas trabalhadoras do municiacutepio de Juiz
de Fora ficam evidentes na mateacuteria de O Lynce de 27 de junho de 1925 sobre os
ldquomenoresrdquo capinadores contratados pela Cacircmara Municipal O texto comeccedila
assinalando que ldquopor conveniecircncia financeira ou outro motivordquo as ruas da cidade eram
ldquocapinadas por uma turma de mais ou menos 40 menores sob a chefia de um adultordquo A
utilizaccedilatildeo desses ldquomenoresrdquo nessa tarefa natildeo eacute criticada pela mateacuteria que se propunha
tatildeo somente ldquoclamar aacutes autoridades municipaes uma providencia para que desapareccedila a
situaccedilatildeo penosa desses pequenos trabalhadoresrdquo que causava doacute ver esses
[] menores maltrapilhos e immundos tiritando de frio pela manhatilde a hora
do almoccedilo entatildeo os quadros tristes surgem com mais negrura pois uns
almoccedilam um gelado tutuacute com verdura outros um pedaccedilo de linguiccedila com
patildeo comprados na venda finalmente os mais infelizes ficam com os olhos
amortecidos olhando para um e outro companheiro afim de que estes lhes
decircem umas migalhas de anguacute feijatildeo ou melhor correm aacute primeira porta
98
batem e pedem um pedaccedilo de patildeo Ao largarem o serviccedilo aacute tarde alguns
sahem de porta em porta pedindo patildeo305
O texto salienta que a maacute alimentaccedilatildeo faria desses pequenos ldquocidadatildeos rachiticos
quasi imprestaacuteveis E os xingamentos do chefe os tornam malandros e
semvergonhas o que quer dizer ndash uma geraccedilatildeo inuacutetilrdquo306
E prosseguiu assinalando que
a precariedade da alimentaccedilatildeo desses ldquomenoresrdquo era fruto da ldquofalta de escruacutepulo dos
paesrdquo uma vez que os mesmos recebiam ldquoum salario razoaacutevelrdquo Posta essa questatildeo o
artigo do perioacutedico sugeria que a Cacircmara dividisse a turma dos pequenos capinadores
em trecircs cada uma para uma aacuterea da cidade e que ao exemplo dos fazendeiros da regiatildeo
fornecessem alimentaccedilatildeo quente para os operaacuterios307
Mal alimentados mal educados maltrapilhos imundos e a tiritar de frio Esse
era o quadro pintado pela mateacuteria do jornal sobre os pequenos operaacuterios da capina
contratados pela municipalidade Mas essas caracteriacutesticas atribuiacutedas aos ldquomenoresrdquo
satildeo segundo o texto fruto da ldquofalta de escruacutepulo dos paesrdquo As dificuldades enfrentadas
pelos operaacuterios em termos de baixos salaacuterios alugueacuteis altos custo de vida elevado uma
prole extensa ausecircncia de leis sociais natildeo eram consideradas pelo discurso produzido
por fraccedilotildees das classes dominantes sobre as camadas pobres da sociedade que
geralmente eram caracterizadas como imorais viciosas vagabundas e alcooacutelatras
Em fevereiro de 1939 uma reportagem especial para o supplemento illustrado
do Diaacuterio Mercantil tratou da problemaacutetica dos ldquocapinadores de ruardquo do municiacutepio308
A
leitura dessa mateacuteria jornaliacutestica passados quatorze anos desde a publicaccedilatildeo de O Lynce
(1925) sobre o assunto em tela aponta que houve uma permanecircncia das condiccedilotildees
precaacuterias de vida desses ldquomenoresrdquo empregados na capina das ruas De acordo com o
artigo de 1939 ldquoa cidaderdquo jaacute estava acostumada a ldquovecircl-os todo dia quase maltrapilhos
cantando lsquodesafiosrsquo no meio daquella azoada de vozes e do barulho de suas
ldquoenxadinhasrdquo feitas com arcos de barricasrdquo Em outras palavras os ldquomenoresrdquo
capinadores jaacute faziam parte dos ldquoaspectos diariosrdquo da cidade e acreditava-se que a
extinccedilatildeo dessa ldquoclasserdquo soacute ocorreria ldquono caso em que o parallelepipedo e o lsquopeacute de
molequersquordquo cedessem lugar para o ldquoluzidio asphaltordquo Ainda foi ressaltado que as
crianccedilas ldquotrabalhavam realmenterdquo e que recebiam ldquoo bastante para comprar o que
305
SM-BMMM ldquoDe Relancerdquo O Lynce 27 jun 1925 p 2 306
Idem 307
Idem 308 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo Diaacuterio Mercantil - Supplemento Illustrado 05 fev 1939 A informaccedilatildeo
sobre a reportagem ldquoCapinadores de ruardquo de 1939 me foi passada gentilmente por Rita de Caacutessia
Vianna Rosa
99
comer no dia seguinterdquo As roupas que usavam em sua maioria eram provenientes de
ldquoesmolas de alguma alma caridosardquo ou de ldquoinstituiccedilotildees de caridaderdquo Com relaccedilatildeo agrave
comida que os jovens capinadores levavam em suas ldquomarmitasrdquo foi assinalado pelo
repoacuterter ldquoque tomou uma das lsquomarmitasrsquo e olhou laacute dentro feijatildeo e fubaacute um bolo
pastoso feito no dia anterior e jaacute cheirando a azedordquo e que a outra refeiccedilatildeo levada pelos
capinadores de rua era uma ldquosopardquo feita de ldquocouves cosidas com fubaacute e aguardquo Na
reportagem ressalta-se que os capinadores eram ldquorecrutados pelo proacuteprio feitor entre os
vagabundos sem paes nem casa onde comer e dormirrdquo e que eles eram ldquomuitas vezes
obrigados pela poliacutecia a adoptar a profissatildeo transformando-se numa espeacutecie de
forccediladordquo e que tal situaccedilatildeo decorria da ldquoescassez alarmante de reformatoacuterios e de
patronatosrdquo para se dar um destino mais digno a esses ldquomenoresrdquo309
O que se
depreende da leitura dessa reportagem eacute que a situaccedilatildeo da infacircncia desvalida fiacutesica e
socialmente abandonada e desamparada natildeo foi uma problemaacutetica exclusiva da
chamada Repuacuteblica Velha Ela persistiu no poacutes-1930 e atualmente ainda constitui uma
lamentaacutevel realidade A imagem seguinte apresenta um grupo de meninos capinadores
onde pode ser observado que a grande maioria era composta de crianccedilas negras ou seja
provenientes de setores da populaccedilatildeo brasileira que tendiam a estar em uma posiccedilatildeo
inferior dentro da hierarquia socioeconocircmica
Imagem 11 Meninos capinadores 1939 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo
Diaacuterio Mercantil Supplemento Illustrado 05 fev 1939
309 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo Diaacuterio Mercantil - Supplemento Illustrado 05 fev 1939
100
Imagem 12 Meninos capinadores 1939 AHCJF ldquoCapinadores de ruardquo
Diaacuterio Mercantil Supplemento Illustrado 05 fev 1939
A presenccedila constante de ldquomenoresrdquo nas ruas da cidade expunha para a sociedade
a necessidade de poliacuteticas sociais que atendessem esse setor Entretanto a relaccedilatildeo entre
o poder puacutebico poliacuteticas sociais e a crianccedila desvalida e abandonada mostrou-se sempre
estanque sendo que o Estado geralmente apresentava-se apenas para punir No meu
entender as instituiccedilotildees ndash religiosas leigas e estatais ndash criadas para o atendimento da
infacircncia pobre abandonada e delinquente apesar do discurso de que tinham a missatildeo de
transformaacute-los em cidadatildeos buscavam limpar os espaccedilos puacuteblicos da presenccedila de
indiviacuteduos que se contrapunham aos discursos valores e regras sociais das classes
dominantes bem como almejavam transformaacute-los atraveacutes do aprendizado de um ofiacutecio
manual em trabalhadores disciplinados e obedientes agraves leis natildeo constituindo a
alfabetizaccedilatildeo uma prioridade Nesse sentido o estudo da infacircncia pobre no principal
nuacutecleo agraacuterio-exportador e industrial da Zona da Mata e de Minas Gerais
respectivamente na passagem agrave modernidade mostra-se de grande relevacircncia para a
compreensatildeo do encaminhamento que essa sociedade propunha para a problemaacutetica do
ldquomenorrdquo Os setores dominantes construiacuteram uma representaccedilatildeo da cidade e de seus
habitantes como modernos ldquocivilizadosrdquo laboriosos e ordeiros Nesse sentido no
proacuteximo capiacutetulo seraacute examinada a questatildeo da infacircncia pobre do municiacutepio levando em
consideraccedilatildeo esses valores
101
CAPIacuteTULO 2
OS PEQUENOS DESVALIDOS JUIZ DE FORA
(1888-1930)
Imagem 13 Capa do processo de tutela do ldquomenorrdquo Joaquim
Mariano Alves AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos
relativos agrave accedilatildeo de tutelas 18 nov 1890 cx4 proc 7
102
21 OS PROCESSOS DE TUTELAS DAS ORDENACcedilOtildeES FILIPINAS
AO COacuteDIGO CIVIL BRASILEIRO (1916)
Abolida esta [escravidatildeo] e natildeo se podendo mais comprar o negro as
senhoras de Minas tomavam para criar negrinhas e mulatinhas sem pai e sem
matildee ou dadas pelos pais e pelas matildees Comeccedilava para as desgraccediladas o
dormir vestidas em esteiras postas em qualquer canto da casa as noites de
frio a roupa velha o nenhum direito o pixaim rapado o peacute descalccedilo o tapa
na boca o bolo a feacuterula o correatildeo a vara a solidatildeo (Pedro Nava)310
Onofre Olivia Maria da Luz Ramon Jayme Francisca Hildegart Judith
Dinah Sebastiatildeo entre outros Um pouco da histoacuteria de vida dessas e de outras crianccedilas
e jovens estatildeo registradas nos processos de tutelas Satildeo histoacuterias de abandono de
orfandade de disputas de renuacutencias e de violecircncias
Os processos de tutelas satildeo constituiacutedos de peticcedilotildees comunicados pareceres
recibos certidotildees solicitaccedilotildees procuraccedilotildees prestaccedilatildeo de contas sentenccedilas e outros
documentos No periacuteodo em estudo ndash 1888 a 1930 ndash praticamente todos os processos
satildeo manuscritos com apenas algumas partes datilografadas Assim atraveacutes das letras
bordadas ou dos garranchos dos textos produzidos pelos peticionaacuterios tutores pais
avoacutes procuradores advogados promotores puacuteblicos e juiacutezes entre outros eacute possiacutevel
analisar as relaccedilotildees familiares e sociais das pessoas envolvidas bem como as tensotildees e
os confrontos pela guarda das crianccedilas ou jovens Dessa maneira as accedilotildees de tutelas satildeo
uma excelente fonte de pesquisa para o estudo da famiacutelia das relaccedilotildees de trabalho das
estrateacutegias de controle social entre outras problemaacuteticas
Nos autos de tutelas geralmente haacute indicaccedilotildees como a cor dos envolvidos a
nacionalidade dos pais e ou das crianccedilas a filiaccedilatildeo a idade a condiccedilatildeo juriacutedica
(escravolibertolivre) a profissatildeo dos tutores e mais raramente dos ldquomenoresrdquo e de seus
pais a existecircncia de bens e de legados pertencentes aos pupilos a determinaccedilatildeo do
pagamento de uma soldada311
ao ldquomenorrdquo e outras informaccedilotildees Poreacutem nem todos os
310
NAVA Pedro Bauacute de Ossos memoacuterias 2 ed Rio de Janeiro Livraria Joseacute Olympio Editora Sabiaacute
1973 p 259 311 A soldada constituiacutea-se no pagamento de um moacutedico salaacuterio pelos serviccedilos prestados pelo ldquomenorrdquo
Cf BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes ldquoOacuterfatildeos tutelados nas malhas do
judiciaacuterio (Braganccedila ndash Satildeo Paulo 1871-1900)rdquo Cadernos de Pesquisa v 39 n 136 p 41-68 janabr
2009 p 44 Disponiacutevel em httpwwwscielobrpdfcpv39n136a0439136pdf Acessado em 21-10-
2014 AZEVEDO Gislane Campos ldquoDe Sebastianas e Geovannisrdquo o universo do menor nos processos
dos juiacutezes de oacuterfatildeos da cidade de Satildeo Paulo (1871-1917) Dissertaccedilatildeo Mestrado Satildeo Paulo Pontifiacutecia
Universidade Catoacutelica 1995 p 47 Disponiacutevel em httpwwwhistoriaeimagemcombrwp-
contentuploads201404de-sebastianas-e-geovannispdf Acessado em 20-10-2014
103
documentos apresentam esses diversos dados sendo que alguns possuem apenas a
peticcedilatildeo e o auto de tutela outros apenas a peticcedilatildeo e um carimbo dizendo que a tutela foi
assinada e ainda outros apenas a solicitaccedilatildeo Mas haacute processos extremamente ricos em
detalhes registrando as tensotildees e disputas entre os pais das crianccedilas e os tutores pela
guarda das mesmas os contratos de soldada os registros de fugas dos pupilos da casa
dos tutores as denuacutencias de maus-tratos as solicitaccedilotildees de suspensatildeo do paacutetrio poder
entre outros dados
A peticcedilatildeo ou comunicado ao Juiz da Comarca da existecircncia de crianccedilas nas
condiccedilotildees de serem tuteladas segundo as determinaccedilotildees das leis eacute o documento que daacute
iniacutecio ao processo de tutela Os motivos apresentados nesses requerimentos satildeo os mais
diversos possiacuteveis satildeo senhores solicitando a tutela dos filhos de suas ex-escravas
alegando que as mesmas haviam se entregado agrave vida de prostituiccedilatildeo agrave vadiagem e agrave
embriaguez satildeo ldquocidadatildeosrdquo assinalando que em suas residecircncias viviam ldquomenoresrdquo
oacuterfatildeos abandonados ou que haviam sido entregues por seus familiares para que os
criassem satildeo pais solicitando a destituiccedilatildeo do paacutetrio poder por natildeo disporem de meios
para criar seus filhos fazendo a entrega dos mesmos a ditas pessoas idocircneas da
localidade satildeo pedidos de nomeaccedilatildeo de tutores ad hoc312
para a autorizaccedilatildeo de
casamentos de jovens que haviam sido defloradas entre outras alegaccedilotildees
Em algumas peticcedilotildees haacute uma suposta tentativa de desmoralizaccedilatildeo das matildees dos
pais ou familiares da crianccedila provavelmente com tal iniciativa almejava-se a obtenccedilatildeo
de um parecer favoraacutevel do juiz Essa dita estrateacutegia pode ser observada no caso de
Edgar de trecircs anos de idade filho da ex-escrava Bernarda solteira No dia 6 de
setembro de 1888 o suplicante Gabriel de [Mello] ldquomorador em S Anna do Dezerto
drsquoeste termordquo comunicou ao Juiz de Oacuterfatildeos a necessidade de se dar tutor ao ldquomenorrdquo
uma vez que sua matildee havia se retirado da ldquocasa de sua senhora levando consigo o seo
filhordquo aleacutem de ter ldquose desmandado entregando-se aacute prostituiccedilatildeo sem dispor de meios pordf
crear e educar o dito menor sendo ainda certo natildeo ter ella domiciliordquo313
Observa-se que
nesse pedido realizado poucos meses apoacutes a aboliccedilatildeo da escravidatildeo eacute assinalado que
Bernarda havia deixado a ldquocasa de sua senhorardquo como se ela ainda fosse propriedade de
algueacutem Trabalhos que discutem a questatildeo da tutela de ingecircnuos e ldquomenoresrdquo pobres
destacam que o estabelecimento desse viacutenculo foi uma estrateacutegia utilizada pelos
312
Ad hoc eacute uma expressatildeo latina muito utilizada no meio juriacutedico e significa ldquopara istordquo ou ldquopara esta
finalidaderdquo 313
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutelas Tutelado Edgar Data 06-
09-1888 cx 100
104
proprietaacuterios para manterem sobre controle uma parcela da matildeo de obra a baixo custo
Esta se constituiacutea basicamente na alimentaccedilatildeo e no vestuaacuterio ou como em alguns casos
no pagamento de uma soldada de baixo valor314
Mas no caso acima relatado o
ldquomenorrdquo Edgar natildeo tinha ainda condiccedilotildees de prestar qualquer tipo de serviccedilo Por que
entatildeo requerer a tutela desse menino Algumas hipoacuteteses podem ser levantadas a esse
respeito Eacute um fato ocorrido logo apoacutes a aboliccedilatildeo da escravidatildeo quando o temor de
ficar sem serviccedilaisempregados pelos setores dominantes era provavelmente grande
Assim seria uma maneira de assegurar legalmente braccedilos para serem empregados
brevemente em atividades laborativas Outra hipoacutetese eacute a ser uma estrateacutegia das classes
dominantes de manutenccedilatildeo dos pais dos ldquomenoresrdquo desvalidos na localidade pelo fato
de seus filhos estarem sob a guarda de terceiros evitando desse modo a perda de
trabalhadores para outras regiotildees
Em outros processos satildeo possivelmente as condiccedilotildees precaacuterias de
sobrevivecircncia que levaram os pais a solicitarem a entrega de seus filhos a tutores que
deles pudessem cuidar Em fevereiro de 1922 Esmeraldina Braga de Campos viuacuteva
alegando estar doente e em estado de extrema pobreza fatores que de acordo com a sua
peticcedilatildeo a impedia de exercer o paacutetrio poder solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para seu
filho Onofre de 1 mecircs de idade e indicou para assumir o encargo o sr Sebastiatildeo
Augusto Gaio marido de sua amiga Helena Gaio315
Os dois exemplos citados acima satildeo apenas uma mostra da variedade de motivos
apresentados para a solicitaccedilatildeo do estabelecimento do viacutenculo tutelar
Arlette Farge e Michel Foucault em ldquoLe deacutesordre des famillesrdquo analisaram as
lettres de cachet des archives de la Bastille em que familiares solicitaram ao rei ou
autoridades policiais o encarceramento geralmente de seus cocircnjuges filhos e parentes
De acordo com os autores essas cartaspeticcedilotildees eram possivelmente permeadas por um
modeloesquema Dito de outra maneira as cartas empregavam o discurso dominante do
periacuteodo do que seria uma boa esposa um bom marido e um(a) filho(a) para
demonstrarem o desvio e ou a periculosidade do outro (maridoesposafilhosfilhas) e
314
Cf GUIMARAtildeES Elione Silva Muacuteltiplos viveres de afrodescendentes na escravidatildeo e no poacutes-
emancipaccedilatildeo famiacutelia trabalho terra e conflito (Juiz de Fora ndash MG 1828-1928) Satildeo Paulo
Annablume Juiz de Fora FUNALFA 2006 ZERO Arethuza Helena O preccedilo da liberdade caminhos
da infacircncia tutelada ndash Rio Claro (1871-1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Campinas (SP) Unicamp 2004
httplibdigiunicampbrdocumentcode=vtls000329956 315
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos a accedilatildeo de Tutelas Menor Onofre Data 07-
02-1922 cx 101
105
com isso obterem o parecer favoraacutevel316
Assim creio que as peticcedilotildees de tutelas de
ldquomenoresrdquo desvalidos tambeacutem fossem permeadas pelo discursomodelo dominante da
eacutepoca do que seria uma boa matildee e ou bons pais de famiacutelia A desqualificaccedilatildeo moral o
alcoolismo a suposta precariedade econocircmica entre outros fatores das genitoras e ou
dos pais das crianccedilas pobres provavelmente afiguravam-se como fatores no periacuteodo
em tela para a concessatildeo da tutela ao peticionaacuterio Essas (des)qualificaccedilotildees das famiacutelias
foram amplamente empregadas nas solicitaccedilotildees com a intenccedilatildeo presumiacutevel de se ter o
pedido aceito
A tutela se constituiacutea no encargo dado a uma pessoa para velar e administrar um
ldquomenorrdquo e os bens que o mesmo tinha ou poderia vir a ter317
Para a anaacutelise dos
processos de tutelas no periacuteodo de 1888 a 1930 eacute necessaacuterio levar em conta a legislaccedilatildeo
brasileira Ateacute 1916 quando ocorreu a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo Civil as questotildees
referentes ao Direito de Famiacutelia eram fundamentalmente reguladas pelas Ordenaccedilotildees
Filipinas (1603) que se constituiacuteam numa versatildeo ampliada das ldquoleis civis fiscais
administrativas militares e penais portuguesasrdquo contidas nas Ordenaccedilotildees Manuelinas318
A aprovaccedilatildeo de um Coacutedigo Civil no Brasil foi bem demorada acontecendo 94
anos depois de sua emancipaccedilatildeo poliacutetica (1822) e 27 anos apoacutes tornar-se uma naccedilatildeo
republicana (1889)319
Essa protelaccedilatildeo pode ser atribuiacuteda a muacuteltiplos fatores como a
dificuldade de definir quem era cidadatildeo ndash ainda durante o periacuteodo escravista ndash a
interferecircncia da Igreja Catoacutelica a dificuldade de definiccedilatildeo juriacutedica da mulher a questatildeo
do poder e da disciplina no que diz respeito agrave famiacutelia a problemaacutetica da
316
FARGE Arlette FOUCAULT Michel Le deacutesordre des familles lettres de cachet des archives de la
Bastille Paris Eacuteditions Gallimard Julliard 1982 p 171-172 Cf FRAGA FILHO Walter Mendigos
moleques e vadios na Bahia do seacuteculo XIX Satildeo Paulo HICITECSalvador (BA) EDUFBA 1996
Walter Fraga Filho encontrou na documentaccedilatildeo compulsada sobre a pobreza na Bahia do seacuteculo XIX
situaccedilatildeo semelhante agrave examinada por Farge e Foucault ou seja os paisfamiliares solicitando agraves
autoridades o internamentoprisatildeo de seus entes Para tanto apresentavam diversas justificativas 317
Ordenaccedilotildees Filipinas Quarto Livro Tiacutetulo 102 p 994 Disponiacutevel em
httpwww1ciucptihtiprojfilipinasl4p994htm Acessado em 20-10-2014 Coacutedigo Civil artigo 422
Coacutedigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Lei n 3071 de 1o de Janeiro de 1916 Disponiacutevel em
httpwww2camaragovbrleginfedlei1910-1919lei-3071-1-janeiro-1916-397989-publicacaooriginal-
1-plhtml Acessado em 10-10-2014 318
BICALHO Maria Fernanda Baptista ldquoCrime e castigo em Portugal e seu Impeacuteriordquo Topoi (Resenha)
Rio de Janeiro n 1 pp 224-231 2000 Disponiacutevel em
wwwrevistatopoiorgnumeros_anterioresTopoi0101_resenha02pdf Acessado em 28-12-2014 319
NEDER Gizlene ldquoO bibliotecaacuterio-mor e o Iluminismo juriacutedico coimbrenserdquo Op cit 2007 p 50
NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoO Atlacircntico como paacutetria livros e ideias entre Portugal
e Brasilrdquo Op cit 2007 p 44 Cf GRINBERG Keila Coacutedigo Civil e cidadania Rio de Janeiro Jorge
Zahar Ed 2001
106
regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees de trabalho livre e de direitos dos trabalhadores entre
outros fatores320
Assim o exame dos processos de tutelas ateacute 1916 vatildeo se pautar basicamente
nas determinaccedilotildees das Ordenaccedilotildees Filipinas (1603) no que diz respeito ao Direito de
famiacutelia A partir de 1916 a anaacutelise da documentaccedilatildeo teraacute como referencial o Coacutedigo
Civil
Segundo as Ordenaccedilotildees Filipinas a tutela podia ser testamentaacuteria legiacutetima ou
dativa321
A testamentaacuteria era aquela em que o tutor era indicado em testamento Na
impossibilidade de ele assumir tinha lugar a nomeaccedilatildeo dos tutores legiacutetimos tendo as
matildees e avoacutes prioridade Entretanto deveriam viver honestamente natildeo serem casadas
em segundas nuacutepcias e renunciarem a todos os privileacutegios que lhes eram conferidos322
Nos casos em que o tutor testamentaacuterio e ou legiacutetimo natildeo existia ou natildeo podia assumir
as funccedilotildees do cargo era entatildeo indicado um parente ldquomais chegado que tiver no lugar
ou seu termo onde estatildeo os bens do oacuterfatildeordquo323
Na ausecircncia do testamentaacuterio e ou
legiacutetimo e de um parente chegado o Juiz de Oacuterfatildeos intimava um ldquohomem bomrdquo da
localidade para assumir a funccedilatildeo constituindo esse tipo na chamada tutela dativa324
O Coacutedigo Civil de 1916 versou sobre vaacuterios aspectos a respeito da instituiccedilatildeo do
viacutenculo tutelar tendo pontos de semelhanccedila com as Ordenaccedilotildees Filipinas De acordo
com o Coacutedigo de 1916 a tutela seria instituiacuteda nos casos de falecimento dos pais ou de
serem os mesmos julgados ausentes e com a perda do paacutetrio poder (art 406 incisos I e
II) O Coacutedigo tambeacutem versou sobre a nomeaccedilatildeo do tutor pelos pais em testamento ou
outro documento autecircntico (art 407 sect uacutenico) e na ausecircncia ou impossibilidade de os
testamentaacuterios assumirem deveria o encargo ser transferido aos parentes
consanguiacuteneos tendo prioridade os avoacutes paternos os irmatildeos ou tios do sexo masculino
320
GRINBERG Keila Op cit 2001 p 58 - 66 NEDER Gizlene CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio ldquoOs
filhos da leirdquo Op cit 2007 321
A tutela testamentaacuteria era aquela em que o tutor era indicado em testamento o tutor legiacutetimo era
aquele indicado pela lei na impossibilidade de o tutor testamentaacuterio assumir e o tutor dativo era aquele
indicado pelo Juiz de Oacuterfatildeos quando os testamentaacuterios e legiacutetimos natildeo podiam ser nomeados
CARVALHO Joseacute Pereira (1865 p 112 ndash nota 211) apud ZERO Arethuza Helena (2003 p 13)
Algumas pessoas estavam impedidas de serem tutores como os menores de 25 anos os sandeu o
proacutedigo o inimigo do oacuterfatildeo o pobre o infame religioso etc Ordenaccedilotildees Filipinas (quarto livro tiacutetulo
102 sect 1 p 995-996) De acordo com as notas introdutoacuterias das Ordenaccedilotildees Filipinas havia ainda a
tutela pactiacutecia ou prometida que se dava quando o pai pactuava com ldquoalgueacutem o ser por sua morte Tutor
de seu filhordquo Esse tipo de tutela podia ser incluiacuteda na Tutela Testamentaacuteria Ordenaccedilotildees Filipinas (quarto
livro tiacutetulo 102 p 994) 322
CARVALHO Joseacute Pereira (1865 p 113 ndash nota 214) apud ZERO Arethuza Helena Op cit 2003
p 14 Ordenaccedilotildees Filipinas quarto livro tiacutetulo 102 p 995-998 323
Ordenaccedilotildees Filipinas quarto livro tiacutetulo 102 sect 5 p 1001-1002 324
Ordenaccedilotildees Filipinas quarto livro tiacutetulo 102 p 1002-1003
107
No caso dos irmatildeos destaca-se que seriam preferiacuteveis os ldquobilaterais aos unilateraisrdquo (art
409 incisos I II e III C Civil) Nestes e em outros artigos do Coacutedigo Civil observa-se
que a mulher estava juridicamente subordinada ao homem Entretanto eacute necessaacuterio
ressaltar que no projeto de codificaccedilatildeo das leis civil apresentado por Cloacutevis Bevilaacutequa
havia a proposta da igualdade juriacutedica entre os sexos que foi rejeitada pelos membros
da comissatildeo de avaliaccedilatildeo325
Como nas Ordenaccedilotildees Filipinas o Coacutedigo Civil tambeacutem determinou que as
matildees perderiam o paacutetrio poder caso se casassem novamente (art 393 C Civil)326
Entretanto ficou estabelecido no artigo 329 do Coacutedigo de 1916 que as genitoras
poderiam manter os filhos consigo e somente perderia esse direito caso fosse provado
que ela e ou o padrasto natildeo estavam tratando dos ldquomenoresrdquo de maneira conveniente
Em suma as crianccedilas continuavam a conviver com suas matildees mas eram legalmente
representadas por um tutor
Aos ldquomenoresrdquo que natildeo tinham tutores testamentaacuterios ou legiacutetimos e aos
abandonados o juiz deveria indicar uma pessoa idocircnea e residente no domiciacutelio (art
410 e 412 C Civil) Com relaccedilatildeo aos abandonados ficou ainda determinado que estes
poderiam ser ldquorecolhidos a estabelecimentos puacuteblicos para este fim destinadosrdquo e na
falta destes deveriam ficar sob a tutelas de pessoas que ldquovoluntariamente e
gratuitamenterdquo se dispusessem a criaacute-los (art 412 C Civil)
O processo de tutela do ldquomenorrdquo Oswaldo conhecido por Bibi de 14 anos de
idade oacuterfatildeo de pai e matildee datado de maio de 1920 demonstra que nem sempre era faacutecil
a nomeaccedilatildeo de um tutor para uma crianccedila ou jovem abandonado327
Segundo as
informaccedilotildees do documento Bibi encontrava-se a alguns anos em abandono Assim o
juiz de Direito Augusto Ceacutesar Pedreira Franco nomeou para tutor do dito jovem o sr
Custoacutedio Vaz que deveria prestar o juramento e obrigar-se a fornecer ao menino
alimento e vestuaacuterio necessaacuterio Poreacutem o indicado pediu para ser dispensado pois
estava de viagem marcada para a Europa O processo terminou com a solicitaccedilatildeo de
dispensa do cargo Desse modo natildeo eacute possiacutevel saber que destino o juiz de Direito Ceacutesar
325
GRINBERG Keila Op cit 2001 p 44-45 Cf Neder Gizlene (colaboraccedilatildeo de Gisaacutelio Cerqueira
Filho) ldquoCloacutevis Bevilaacutequa e Paulo Merecirca campo intelectual e processos de secularizaccedilatildeo no Brasil e em
Portugalrdquo In _____ Duas Margens Ideias juriacutedicas e sentimentos poliacuteticos no Brasil e em Portugal na
passagem agrave modernidade Rio de Janeiro RevanFAPERJ 2011 326
No Coacutedigo Civil art 393 ficou estipulado que as matildees recuperariam o paacutetrio poder dos filhos do
primeiro casamento caso ficassem viuacutevas do segundo matrimocircnio poreacutem nas Ordenaccedilotildees do Reino natildeo
havia tal possibilidade Ordenaccedilotildees Filipinas Quarto Livro tiacutetulo 102 sect 4 p 1000 ndash 1001 327
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Oswaldo data 08-
05-1920 caixa 101
108
Franco deu para Oswaldo uma vez que a cidade de Juiz de Fora natildeo dispunha de uma
instituiccedilatildeo para abrigar ldquomenoresrdquo do sexo masculino como jaacute foi examinado no
primeiro capiacutetulo Provavelmente outro ldquocidadatildeordquo idocircneo foi indicado para tutor ou o
jovem pode ter sido encaminhado para algum abrigo para ldquomenoresrdquo existente no
estado de Minas Gerais
A dificuldade de nomeaccedilatildeo de um tutor para ldquomenoresrdquo oacuterfatildeos e ou
abandonados tambeacutem pode ser observada em outros processos de minha anaacutelise Em
maio de 1893 o juiz de Direito foi informado de que o ldquomenorrdquo Carlos de 13 anos de
idade oacuterfatildeo de pai e matildee estava nas condiccedilotildees de receber tutor O processo se arrastou
ateacute janeiro de 1895 sem deixar expliacutecito se um dos indicados assumiu a funccedilatildeo328
Na
accedilatildeo de tutela de Ramiro de maio de 1888 os cidadatildeos indicados para o encargo
tambeacutem solicitaram escusa329
Geralmente os pedidos de dispensa do cargo se
justificavam pelo fato de os indicados jaacute terem ldquomenoresrdquo sob sua tutela por estarem de
mudanccedila para outra cidade ou estado pela idade avanccedilada entre outros motivos Nas
Ordenaccedilotildees Filipinas e no Coacutedigo Civil estavam especificados quais eram as pessoas
que poderiam assumir a tutela quais eram impedidas e as razotildees para a escusa
Na proacutexima parte seratildeo examinados os processos de tutela de ldquomenoresrdquo
desvalidos oacuterfatildeos e abandonados do municiacutepio de Juiz de Fora no periacuteodo de 1888 a
1930 Na anaacutelise da documentaccedilatildeo procurei observar as estrateacutegias das classes
dominantes de controle da matildeo de obra de crianccedilas e jovens as disputas entre tutores e
familiares pela posse dos ldquomenoresrdquo as dificuldades enfrentadas pelas famiacutelias pobres
na criaccedilatildeo de seus filhos entre outras problemaacuteticas
22 DAR TUTOR ldquoA TODOS OS OacuteRFAtildeOS E MENORESrdquo
De fato o filho natildeo pertence apenas aos pais ele eacute o futuro da naccedilatildeo e da
raccedila produtor reprodutor cidadatildeo e soldado do amanhatilde Entre ele e a
famiacutelia principalmente quando esta eacute pobre e tida como incapaz insinuam-se
terceiros filantropos meacutedicos estadistas que pretendem protegecirc-lo educaacute-lo
disciplinaacute-lo (Michelle Perrot)330
328
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Carlos data 01-05-
1893 caixa 5 processo 2 329
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Ramiro data 25-09-
1888 caixa 100 330 PERROT Michelle ldquoFiguras e papeacuteisrdquo In ______ Histoacuteria da vida privada 4 Da Revoluccedilatildeo
Francesa agrave Primeira Guerra Satildeo Paulo Companhia das Letras 2009 p 134
109
Examinei todos os processos de tutelas preservados que estatildeo sob a custoacutedia do
Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora e do Arquivo Histoacuterico da Universidade
Federal de Juiz de Fora no periacuteodo de 1888331
a 1930 Da anaacutelise dessa documentaccedilatildeo
foram selecionados 239 autos que tratam do estabelecimento do viacutenculo tutelar de 346
crianccedilas e jovens pertencentes agraves classes subalternas Utilizei como criteacuterio para
selecionar os documentos a descriccedilatildeo constante nos autos de que o ldquomenorrdquo era pobre
ou extremamente miseraacutevel e natildeo possuiacutea ldquobens de espeacutecie algumardquo era abandonado
Entretanto nem todas as accedilotildees de tutelas trazem essas informaccedilotildees mas atraveacutes de uma
leitura minuciosa percebe-se que se trata de crianccedilas das camadas desfavorecidas da
sociedade A identificaccedilatildeo da profissatildeo do tutor dos pais ou do ldquomenorrdquo a natildeo
declaraccedilatildeo de bens nos termos de tutela o estabelecimento de contrato de soldada satildeo
alguns indicativos da condiccedilatildeo social dos pupilos
Dos 239 processos compulsados 95 (3975) satildeo referentes aos anos de 1888 a
1899 3 (126) ao periacuteodo de 1900 a 1909 9 autos (376) satildeo correspondentes aos
anos de 1910 a 1919 e de 1920 a 1930 foram 132 (5523) registros Todavia o
nuacutemero de crianccedilas tuteladas nesses quatro recortes temporais estabelecidos
apresentou uma grande variaccedilatildeo como pode ser observado no Quadro 4
QUADRO 4
NUacuteMERO DE CRIANCcedilAS TUTELADAS POR PERIacuteODO
NUacuteMERO
TOTAL DE
CRIANCcedilAS
PERIacuteODO
NUacuteMERO
DE
CRIANCcedilAS
346
1888 ndash 1899 172 4971
1900 ndash 1909 05 145
1910 ndash 1919 17 491
1920 - 1930 152 4393
FONTE AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo
de tutelas (1888-1930)
331
Com relaccedilatildeo ao ano de 1888 analisei apenas os processos posteriores agrave aboliccedilatildeo da escravidatildeo em 13
de maio de 1888
110
Com relaccedilatildeo ao periacuteodo de 1888-1899 eacute necessaacuterio ressaltar que o ano de 1888
correspondeu sozinho por 39 (4105) processos que incidiram sobre 87 (5058)
crianccedilas As pesquisas nos processos de tutelas nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX tecircm
destacado que o ano de 1888 assistiu a uma verdadeira corrida de parcela dos setores
dominantes aos juiacutezes de oacuterfatildeos para legalizarem a situaccedilatildeo dos filhos das ex-escravas
atraveacutes do viacutenculo tutelar Muitos ex-senhores conseguiram se beneficiar desse
expediente legal e mantiveram sob sua guarda os filhos de ex-cativas Maria Aparecida
Papali assinala que das 330 accedilotildees de tutela analisadas para a cidade de Taubateacute no
periacuteodo de 1871-1895 154 se deram no ano de 1888332
O periacuteodo de 1888 a 1899 apresentou um nuacutemero menor de processos de tutelas
se comparado com o intervalo de 1920 a 1930 Poreacutem quando a anaacutelise recai sobre o
nuacutemero de crianccedilas observa-se que nos anos finais do seacuteculo XIX mais ldquomenoresrdquo
foram tutelados sendo 172 pupilos para o primeiro momento e 152 para o segundo Isso
se deve ao fato de um mesmo processo de tutela se referir a diversos ldquomenoresrdquo Logo
apoacutes a aboliccedilatildeo os antigos senhores solicitaram a tutela dos filhos de suas ex-escravas
em uma uacutenica peticcedilatildeo como na accedilatildeo em que o capitatildeo Joseacute Pedro Ferreira de Souza em
agosto de 1888 requereu a tutela dos rebentos de suas ex-cativas ao todo foram 21
ldquomenoresrdquo tutelados por esse ldquocidadatildeordquo333
No graacutefico 1 estaacute apresentado o nuacutemero de
crianccedilas tuteladas no municiacutepio de Juiz de Fora no periacuteodo de 1888 a 1930
332
PAPALI Maria Aparecida C R A legislaccedilatildeo de 1871 o judiciaacuterio e a tutela de ingecircnuos na cidade de
Taubateacute In Revista Justiccedila e Histoacuteria Porto Alegre Tribunal de Justiccedila do Rio Grande do Sul v 2 n 3
2002 httpwwwtjrsjusbrexportpoder_judiciariohistoriamemorial_do_poder_judiciariomemorial
_judiciario_gauchorevista_justica_e_historiaissn_1676-5834v2n3doc09-Papalipdf Acessado 01-07-
2015 Anna Gicelle G Alaniz ressalta que a partir do momento que os proprietaacuterios perceberam que o fim
da escravidatildeo era inevitaacutevel foram tomados de ldquouma febre tutelarrdquo A autora tambeacutem percebeu um
aumento no nuacutemero de tutelas de menores afrodescendentes no ano de 1888 (1997 p 51e 59) 333
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de tutelas Suplicante Capitatildeo Joseacute
Pedro Ferreira de Souza Data 04-08-1888 caixa 100
111
GRAacuteFICO 1
FONTE AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos
relativos agrave accedilatildeo de Tutelas (1888-1930)
No que diz respeito ao nuacutemero de tutelas por periacuteodo no graacutefico abaixo eacute
apresentado um iacutendice elevado de autos na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX ou seja
num momento de implantaccedilatildeo do regime de trabalho livre na sociedade brasileira
seguido de uma queda acentuada na documentaccedilatildeo nos primeiros 20 anos do novecentos
e uma retomada de crescimento das accedilotildees tutelares na deacutecada de 1920
GRAacuteFICO 2
FONTE AHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos
relativos agrave accedilatildeo de Tutelas (1888-1930)
O nuacutemero expressivo de tutelas no intervalo de 1888 a 1899 estaacute possivelmente
relacionado com o fim do regime de trabalho compulsoacuterio e a implantaccedilatildeo das relaccedilotildees
112
de trabalho livre Assim num primeiro momento os setores dominantes de Juiz de Fora
vislumbraram no viacutenculo tutelar uma estrateacutegia de manutenccedilatildeo e controle de uma
parcela da matildeo de obra no caso especiacutefico a do trabalhador infanto-juvenil Um
percentual maior de processos nos anos finais do seacuteculo XIX corrobora com as
pesquisas que afianccedilam que apoacutes a lei Rio Branco mais conhecida por Lei do Ventre
Livre (1871) houve uma corrida por parte dos setores dominantes para o
estabelecimento do viacutenculo tutelar de crianccedilas desvalidas e ou abandonadas As
solicitaccedilotildees encaminhadas ao poder judiciaacuterio utilizavam o discurso da proteccedilatildeo do
educar e amparar os ldquomenoresrdquo e ingecircnuos334
Apesar das Ordenaccedilotildees do Reino determinarem que fossem dados tutores ldquoa
todos os oacuterfatildeos e menoresrdquo ndash ricos pobres e expostos335
ndash tal praacutetica parece natildeo ter sido
a regra no Brasil colonial e monaacuterquico uma vez que antes da lei de 1871 foram
sobretudo as crianccedilas ricas que receberam tutores Aproveitando-se dessa determinaccedilatildeo
do Coacutedigo Filipino uma parcela da classe dominante com um discurso de proteccedilatildeo de
amizade e afeto pelos ldquomenoresrdquo pobres e pelos ingecircnuos passou a solicitar aos juiacutezes a
tutela dos mesmos apoacutes a decretaccedilatildeo da Lei do Ventre Livre336
Elione Guimaratildees em seu estudo sobre a populaccedilatildeo afrodescendente do
municiacutepio de Juiz de Fora (1850-1895) assinalou que foi encontrado apenas um
processo de tutela envolvendo uma crianccedila afrodescendente anterior a lei Rio Branco
de 1871 A tutela de marccedilo de 1869 era da menina Margarida de 11 anos de idade
parda que foi liberta por seu senhor A autora argumentou que antes da Lei do Ventre
Livre houve crianccedilas alforriadas e que estavam de acordo com a legislaccedilatildeo vigente
aptas a receberem tutores mas aparentemente natildeo houve uma preocupaccedilatildeo no periacuteodo
anterior em formalizar a guarda e proteccedilatildeo dessas crianccedilas O interesse surgiu apenas
quando o ventre da escrava deixou de gerar novos seres escravizados337
334
ZERO Arethuza Helena O preccedilo da liberdade caminhos da infacircncia tutelada ndash Rio Claro (1871-
1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Campinas (SP) Unicamp 2004 p 64 e 73
httplibdigiunicampbrdocumentcode=vtls000329956) Cf FRANCISCO Raquel Pereira
ldquoAutonomia e Liberdade os processos de tutelas de menores ingecircnuos e libertos ndash Juiz de Fora (1870-
1900)rdquo In Cadernos de Ciecircncias Humanas ndash Especiarias Ilheacuteus (BA) Universidade Estadual de Santa
Cruz v 10 n 18 jul-dez pp 649-676 2007 Disponiacutevel em
wwwuescbrrevistasespeciariased1811_raquel_franciscopdf Acessado em 05-07-2015 335
As notas introdutoacuterias do Quarto Livro Tiacutetulo 102 das Ordenaccedilotildees Filipinas assinalam que se deveria
dar tutor aos oacuterfatildeos ricos pobres e expostos Ordenaccedilotildees Filipinas (Quarto Livro Tiacutetulo 102 p 995) 336
ZERO Arethuza Helena Op cit 2004 p 69 337
GUIMARAtildeES Elione Silva Op cit 2006 p 110-111 Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas escravas Guimaratildees
ressalta que a estas natildeo eram dados tutores uma vez que os senhores eram seus tutores naturais p 110
113
No periacuteodo de 1900 a 1919 como evidenciado no graacutefico anterior ocorreu uma
queda draacutestica no nuacutemero de processos de tutelas de ldquomenoresrdquo pobres e ou
abandonados se comparado com os anos anteriores e posteriores Esses vinte anos soacute
registraram 12 accedilotildees de tutelas de ldquomenoresrdquo desvalidos Tal fato pode ser um
indicativo de que muitos processos natildeo foram preservados ou de uma procura menor
pelo estabelecimento do viacutenculo tutelar por parte das classes dominantes A presenccedila
abundante de matildeo de obra no municiacutepio em tela ndash o que contribuiacutea para a reduccedilatildeo dos
niacuteveis salariais ndash e a ausecircncia de uma legislaccedilatildeo trabalhista nos primeiros anos
republicanos provavelmente foram fatores que desestimularam os setores dominantes a
assumir a guarda legal de crianccedilas desvalidas e ou abandonadas338
Ressalta-se ainda
que o viacutenculo tutelar implicava algumas obrigaccedilotildees do tutor com o pupilo disputas com
familiares da crianccedila pela guarda problemas com a justiccedila em caso de fugas ou
desparecimento do ldquomenorrdquo entre outras questotildees
Quando argumento que as classes dominantes se desinteressaram pela tutela de
crianccedilas das classes subalternas natildeo estou desconsiderando o fato de muitas famiacutelias
abastadas terem continuado a receber ou a manter em suas residecircncias esses ldquomenoresrdquo
na condiccedilatildeo de empregados e ou aprendizes sem nenhum viacutenculo legal Faccedilo tal
ponderaccedilatildeo pelo fato de algumas peticcedilotildees assinalarem que a crianccedila vivia a 4 5 anos ou
mais na residecircncia do suplicante O pedido de tutela em muitos casos soacute foi realizado
quando havia uma necessidade legal ndash por exemplo para o consentimento de casamento
ndash ou quando algum familiar ou outra pessoa pretendesse retirar o ldquomenorrdquo da casa em
que estava vivendo entre outros fatores A transcriccedilatildeo a seguir endossa a minha
reflexatildeo a esse respeito Em julho de 1922 Mauro Roquete Pinto solicitou a tutela de
Maria da Conceiccedilatildeo Oliveira de 17 anos Segundo o peticionaacuterio
[] em outubro de 1907 recolheu sob seu tecto a menor Maria da Conceiccedilatildeo
Oliveira que abandonada por sua mae Francisca de Oliveira ebria habitual
perambulava pelas estradas do Districto de Stordf Anna do Deserto sem
assistencia moral e material e como o suppte ignore o paradeiro desta vem
requerer lhe seja permittido assignar termo de tutela da referida menor que
conta presentemente 17 annos de idade para o fim de consentir no seu
casamento com Jose Lopes de Carvalho tambem empregado do suppte339
338
Luiacutes Eduardo de Oliveira em seu estudo sobre a formaccedilatildeo do proletariado em Juiz de Fora ressalta
que no municiacutepio natildeo houve a tatildeo propalada carecircncia de trabalhadores na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o
XX Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Os trabalhadores e a cidade A formaccedilatildeo do proletariado de Juiz de
Fora e suas lutas por direitos (1877-1920) Juiz de Fora (MG) Funalfa Rio de Janeiro Editora FGV
2010 p 154-155 191-192 205-206 339
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Maria da Conceiccedilatildeo
Oliveira data 17-07-1922 caixa 101
114
Atraveacutes da descriccedilatildeo acima observa-se que Maria da Conceiccedilatildeo Oliveira passou
praticamente os primeiros anos de sua vida sob o ldquotectordquo do suplicante sem nenhuma
regularizaccedilatildeo de sua situaccedilatildeo Pelo relato de Mauro Roquete Pinto depreende-se que a
ldquomenorrdquo era sua empregada entretanto natildeo haacute nos autos nenhuma referecircncia a um
contrato de trabalho ou a existecircncia de uma caderneta para recolhimento de seus
proventos Em muitos processos de tutela o Juiz arbitrava o valor mensal de uma
ldquosoldadardquo340
para o pupilo Os salaacuterios deveriam ser depositados em uma caderneta da
Caixa Econocircmica Estadual que seriam resgatados mais os juros quando o ldquomenorrdquo
atingisse a maioridade civil ou se emancipasse pelo casamento como o caso em anaacutelise
Com relaccedilatildeo agrave soldada o juiz de Direito Augusto Ceacutesar Pedreira Franco
assinalou no processo de tutela de Maria Duarte de 16 anos de idade de julho de 1920
O direito moderno natildeo manteve o instituto da soldada de que cogitava o
direito antigo anterior ao Cod Civil Entretanto sendo a menor pobre e jaacute
estando em edade de trabalhar poacutede o tutor empregal-a em serviccedilos
compatiacuteveis com a sua condiccedilatildeo e recolher mensalmente em seu nome aacute
Caixa econocircmica os seus salaacuterios que devem ser conhecidos em juiacutezo
[]341
Apesar de o Coacutedigo Civil natildeo tratar da remuneraccedilatildeo do trabalho dos ldquomenoresrdquo
tutelados nos processos que analisei poacutes Coacutedigo a expressatildeo soldada ou contrato de
soldada manteve-se O mesmo juiz de Direito Ceacutesar Franco em uma accedilatildeo de tutela de
fevereiro de 1926 determinou que o tutor pagasse uma soldada a sua pupila Arriquinto
Costa em sua peticcedilatildeo assinalou que a ldquomenorrdquo Maria de Almeida Costa de 17 anos de
idade abandonada pelos pais vivia em sua companhia desde um ano de idade e que
estava numa faixa etaacuteria que ldquonecessita(va) de proteccedilatildeo legalmente auctorisadardquo por
340
De acordo com o dicionaacuterio publicado sob a direccedilatildeo de Jayme de Seguier (1947) soldada era o salaacuterio
de criados operaacuterios etc Cf SEGUIER Jayme de Diccionaacuterio Praacutetico Illustrado novo diccionaacuterio
encyclopeacutedico luso-brasileiro Porto Lello amp Irmatildeo Editores 1947 p 1068 A soldada poderia ser paga
pelo tutor mediante a arbitragem do Juiz ou poderia ser assinada por outra pessoa em conformidade com o
Juiz No processo de tutela dos irmatildeos Francisco Idalina e Emygdio de julho de 1891 o tutor e tio dos
ldquomenoresrdquo Albino Franco Barreiro solicitou a autorizaccedilatildeo do Juiz de Oacuterfatildeos para que pudesse dar os
ldquomenoresrdquo Idalina e Emygdio de 14 e 12 anos de idade respectivamente agrave soldada ou fazer contrato de
locaccedilatildeo de serviccedilos O Juiz de Oacuterfatildeos Adeodato de Andrade Botelho deferiu o pedido e em setembro de
1892 Manoel de Aquino Ramos assinou o contrato de soldada e locaccedilatildeo de serviccedilos dos ditos irmatildeos O
locataacuterio dos serviccedilos se obrigava ldquoa cuidar-lhes da educaccedilatildeo moral e litteraria obrigando-se mais a todas
as condiccedilotildees offerecidas na dita peticcedilatildeo e ainda recolhendo os vencimentos dos menores mensalmente a
caixa econocircmica drsquoesta cidade e apresentando os a este juiz sempre que lhes for ordenado []rdquo
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menores Francisco Idalina e
Emygdio data 02-07-1891 caixa 5 processo 4 341 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Maria Duarte data
22-07-1920 caixa 101
115
isso solicitava a guarda da mesma e se comprometia a continuar a ldquoprotegerrdquo a jovem
que residia ldquocom a famiacutelia do suplicanterdquo O juiz deferiu o requerimento e determinou
que Arriquinto Costa tinha a ldquoobrigaccedilatildeo de sustental-a ou antes alimental-a e pagar-lhe
a soldada de 15$000 mensaesrdquo342
De maneira idecircntica ao caso de Maria da Conceiccedilatildeo Oliveira a legalizaccedilatildeo da
situaccedilatildeo de Maria de Almeida Costa ocorreu depois de longos anos de convivecircncia com
a famiacutelia do peticionaacuterio Poreacutem o pedido de sua tutela foi justificado pelo fato de a
jovem encontrar-se em uma idade que ldquonecessita(va) de proteccedilatildeo legalmente
auctorisadardquo Ateacute a idade de 17 anos Maria de Almeida natildeo necessitou de proteccedilatildeo
legal Seria a atitude de Arriquinto Costa motivada pelo receio da jovem resolver deixar
sua residecircncia ou pela existecircncia de algum parente ou outra pessoa que estivesse
procurando ter a guarda da mesma uma vez que a ldquomenorrdquo se encontrava em uma faixa
etaacuteria que poderia ser empregada como matildeo de obra em diversas atividades laborativas
Retornando a discussatildeo sobre o pequeno nuacutemero de processos de tutelas no
intervalo de 1900 a 1919 outra consideraccedilatildeo pode ser feita a esse respeito Juiz de Fora
constituiu-se no principal municiacutepio industrial do estado de Minas Gerais nas primeiras
deacutecadas do seacuteculo XX Esse setor empregava um nuacutemero expressivo de crianccedilas em
suas instalaccedilotildees como jaacute ressaltei neste estudo Dessa forma argumento que a queda no
nuacutemero de processos de tutelas entre 1900 a 1919 possa tambeacutem estar relacionada ao
fato de as famiacutelias pobres estarem empregando seus rebentos nos estabelecimentos
industriais assim natildeo precisavam abandonaacute-los ou entregaacute-los agraves famiacutelias abastadas
Ressalto ainda que estamos num momento em que natildeo havia leis de proteccedilatildeo ao
trabalhador de forma geral nem uma regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-juvenil
Crianccedilas de pouca idade eram empregadas e jaacute contribuiacuteam com as despesas familiares
Outro fator relacionado agrave induacutestria pode ser elencado foi nesse periacuteodo que se deu a
eclosatildeo da Primeira Grande Guerra Mundial (1914-1918) O conflito mundial trouxe
problemas para o setor agroexportador brasileiro mas em contrapartida o setor
industrial de bens de consumo foi beneficiado com investimentos e experimentou um
crescimento expressivo Poreacutem os benefiacutecios auferidos pelos industriais com a guerra
natildeo foram repartidos com os operaacuterios que continuaram recebendo baixos salaacuterios e
enfrentando um custo de vida cada vez mais alto Nessa conjuntura de carestia para as
classes subalternas provavelmente muitos pais empregaram seus rebentos nas faacutebricas
342
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Maria de Almeida
Costa data 25-02-1926 caixa 101
116
que em expansatildeo necessitavam de mais braccedilos ou entregaram os ldquomenoresrdquo para as
famiacutelias abastadas sem as formalidades legais
Todavia o periacuteodo de 1920 a 1930 assistiu a um crescimento no nuacutemero de
processos de tutelas no municiacutepio de Juiz de Fora chegando a 132 autos O que teraacute
ocorrido nessa deacutecada para explicar o aumento dos pedidos de tutelas de crianccedilas
desvalidas por setores das classes dominantes Uma das provaacuteveis explicaccedilotildees pode
estar relacionada agraves reivindicaccedilotildees do movimento operaacuterio por direitos sociais e pela
regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-juvenil e feminino A mobilizaccedilatildeo operaacuteria
principalmente nos grandes centros industriais (Rio de Janeiro e Satildeo Paulo) durante a
deacutecada de 1910 pressionou o governo a classe empresarial e setores da intelectualidade
a discutir a chamada questatildeo social Apoacutes longos debates foi aprovada a primeira lei
trabalhista brasileira a de Acidentes no Trabalho em 1919 que seraacute discutida no
proacuteximo capiacutetulo Outro fator para esse crescimento nos autos de tutelas no decorrer do
dececircnio de 1920 pode ser o fato de que apoacutes a Primeira Guerra Mundial em acircmbito
internacional ocoreu uma intensa discussatildeo sobre os direitos da crianccedila sendo
aprovada em 1923 a Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila (Declaraccedilatildeo de Genebra)
Dentro desse contexto internacional de discussatildeo sobre a infacircncia o Brasil tambeacutem
passou a debater sobre a situaccedilatildeo de sua infacircncia desvalida abandonada delinquente e
operaacuteria Segundo Irene Rizzini o periacuteodo de 1923 a 1927 foi especialmente produtivo
em termos de leis que visavam abarcar todos os aspectos relativos agrave ldquoassistecircncia e
proteccedilatildeo agrave infacircncia abandonada e delinquenterdquo no Brasil343
A culminacircncia desses
debates foi a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores em 1927 Creio que em virtude da
intervenccedilatildeo estatal na questatildeo trabalhista e agraves discussotildees sobre os direitos da crianccedila no
decorrer dos anos 1920 as classes dominantes passaram a ver no viacutenculo tutelar
novamente uma forma de controle da matildeo de obra dos ldquomenoresrdquo A utilizaccedilatildeo do
trabalho dos pupilos pelos tutores natildeo foi objeto de consideraccedilatildeo do Coacutedigo Civil nem
do Coacutedigo de Menores Apesar de o Coacutedigo de 1927 versar sobre diversos assuntos
relativos agrave utilizaccedilatildeo do trabalho de ldquomenoresrdquo como seraacute examinado no terceiro
capiacutetulo natildeo haacute nos seus 231 artigos uma referecircncia ao pagamento de salaacuteriossoldadas
aos tutelados pobres que tinham sua matildeo de obra explorada pelos tutores Assim a
343
RIZZINI Irene ldquoCrianccedilas e menores ndash do Paacutetrio poder ao Paacutetrio Dever Um histoacuterico da legislaccedilatildeo
para a infacircncia no Brasilrdquo In RIZZINI Irene PILOTTI Francisco (orgs) A arte de governar crianccedilas
a histoacuteria das poliacuteticas sociais da legislaccedilatildeo e da assistecircncia agrave infacircncia no Brasil Satildeo Paulo Cortez
2011 p 130
117
tutela se constituiacutea em um meio legal de utilizaccedilatildeo compulsoacuteria do trabalho infanto-
juvenil pelos tutores
Com relaccedilatildeo agrave idade dos ldquomenoresrdquo tutelados as abordagens tecircm demonstrado
que o sexo masculino se fez mais presente no periacuteodo de transiccedilatildeo do trabalho escravo
para o livre Alessandra David no estudo desenvolvido em Franca (1859-1888)
percebeu que 74 dos tutelados eram meninos344
Essa superioridade masculina
tambeacutem foi observada por Arethuza Zero na anaacutelise de 140 registros de Rio Claro
(1871-1888) 61 referia-se a ldquomenoresrdquo do sexo masculino345
Essa presenccedila maior de
meninos nas tutelas tambeacutem foi detectada para Juiz de Fora no periacuteodo de 1871 a 1900
sendo que 572 dos tutelados refere-se a esse grupo346
Nos primeiros anos apoacutes a
aboliccedilatildeo da escravidatildeo o sexo masculino ainda continuou a predominar nas accedilotildees de
tutelas processadas pelo poder judiciaacuterio da comarca de Juiz de Fora Das 172 crianccedilas
tuteladas entre 1888 a 1899 78 (4535) eram referentes ao sexo feminino e 94
(5465) ao masculino Todavia para o periacuteodo de 1900 a 1930 o quadro se inverte
completamente ou seja as meninas tornam-se majoritaacuterias nessa documentaccedilatildeo Das
174 crianccedilas tuteladas 123 (7069) satildeo referentes a meninas e 51 (2931) a meninos
como pode ser visualizado no quadro abaixo
QUADRO 5
PRESENCcedilA FEMININA E MASCULINA NOS PROCESSOS DE TUTELAS
(1888-1930)
PERIacuteODO MENINAS MENINOS TOTAL
1888-1899 78 4535 94 5465 172
1900-1909 03 60 02 40 05
1910-1919 10 5882 07 4118 17
1920-1930 110 7237 42 2763 152
FONTEAHCJFAHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de
tutelas (1888-1930)
344
DAVID Alessandra (1997) apud TEIXEIRA Heloisa M TEIXEIRA Heloisa Maria A natildeo-
infacircncia crianccedilas como matildeo-de-obra compulsoacuteria em Mariana (1850-1900) 2004 p 11
httpwwwcedeplarufmgbrdiamantina2004textosD04A030PDF 345
ZERO Arethuza H Op cit 2004 p 81 346
FRANCISCO Raquel Pereira Laccedilos da senzala arranjos da flor de maio relaccedilotildees familiares e de
parentesco entre a populaccedilatildeo escrava e liberta ndash Juiz de Fora (1870-1900) Dissertaccedilatildeo de Mestrado
Niteroacutei UFF 2007
118
No decorrer do processo de emancipaccedilatildeo do regime de trabalho escravo muito
se discutiu sobre o provaacutevel abandono das fazendas pelos cativos quando da aboliccedilatildeo
Poreacutem tal fato natildeo ocorreu como as previsotildees mais pessimistas alardeavam Num
primeiro momento poacutes-aboliccedilatildeo ocorreu uma movimentaccedilatildeo dos libertos alguns
deixaram a propriedade em que tinham sido escravos para se empregarem em outras
unidades produtivas Outros abandonaram as fazendas em busca de melhores condiccedilotildees
de vida na aacuterea urbana outros mudaram de cidade e ou regiatildeo mas a maioria
permaneceu no trabalho da lavoura Aleacutem do fato de um grande contingente de libertos
ter permanecido no campo no municiacutepio de Juiz de Fora deve-se ressaltar que essa
regiatildeo da Mata Mineira tambeacutem recebeu uma leva expressiva de imigrantes o que
contribuiu para a natildeo desestruturaccedilatildeo da produccedilatildeo nas unidades347
Posto isso presumo
que num primeiro momento de estruturaccedilatildeo das novas relaccedilotildees de trabalho poacutes-
emancipaccedilatildeo setores dos grupos dominantes tenham recorrido ao viacutenculo tutelar como
uma medida de manutenccedilatildeo e controle de uma parcela da matildeo de obra com prioridade
para a masculina possivelmente em funccedilatildeo da atividade agriacutecola em que se pretendia
empregaacute-la
Todavia natildeo tendo se concretizado a tatildeo propalada escassez de braccedilos para a
lavoura no municiacutepio de Juiz de Fora e com o assentamento das relaccedilotildees de trabalho
livre possivelmente tenha arrefecido o iacutempeto dos setores dominantes pela tutela de
ldquomenoresrdquo do sexo masculino para serem empregados nos trabalhos agriacutecolas Por outro
lado a matildeo de obra de meninas para serem utilizadas principalmente nas atividades
domeacutesticas dos lares das classes dominantes manteve-se Acrescente-se que essa matildeo de
obra tambeacutem estava sendo requisitada pelo setor fabril da cidade o que tornava o
viacutenculo tutelar uma maneira de manutenccedilatildeo da criadagem
Joseacute Carlos da Silva Cardozo em seu estudo com processos de tutelas de Porto
Alegre (RS) no periacuteodo da Primeira Repuacuteblica (1902 ndash 1925) tambeacutem encontrou um
nuacutemero maior de meninas sendo tuteladas Das 267 crianccedilas de sua anaacutelise 59 eram
do sexo feminino O autor argumentou que a preferecircncia por esse sexo poderia estar
347
GUIMARAES Elione Silva Op cit 2006 p 78 Cf SARAIVA Luiz Fernando Um correr de
casas antigas senzalas a transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre em Juiz de Fora Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Niteroacutei UFF 2001 SOUZA Sonia Maria de (2003) Terra famiacutelia e solidariedade
estrateacutegias de sobrevivecircncia camponesa no periacuteodo de transiccedilatildeo ndash Juiz de Fora (1870-1920) Tese de
Doutoramento Niteroacutei UFF 2003
119
relacionada agrave questatildeo da proteccedilatildeo da honra e da virgindade bem como agrave prestaccedilatildeo de
serviccedilos domeacutesticos348
Na proacutexima parte apresento a anaacutelise dos processos de tutelas em que os
ldquomenoresrdquo foram alvos de disputas entre familiares e tutores Creio que os motivos para
uma parte expressiva desses conflitos entre tutores e familiares seja a questatildeo da
utilizaccedilatildeo da matildeo de obra das crianccedilas
2 3 TENSOtildeES E CONFRONTOS AS DISPUTAS ENTRE PAIS
E TUTORES PELA GUARDA DOS ldquoMENORESrdquo
Entre inuacutemeros pontos divergentes que o momento ensejou [fim da
escravidatildeo] uma questatildeo parece ter se destacado como foco de tensotildees
remanescentes entre ex-senhores e libertos Tal pendecircncia refere-se agrave
fragilidade social na qual se encontrava o ingecircnuo transformado em oacuterfatildeo
crianccedila abandonada ou simplesmente ldquomenorrdquo com o findar do mundo
escravista (Maria Aparecida C R Papali)349
Com a aboliccedilatildeo da escravidatildeo no Brasil em maio de 1888 diversos proprietaacuterios
recorreram aos juiacutezes de oacuterfatildeos para conseguirem a tutela dos filhos de suas ex-cativas
Como jaacute salientado provavelmente esta foi uma estrateacutegia das classes dominantes de
manutenccedilatildeo e controle da matildeo de obra dos rebentos das ex-escravas Todavia nem
sempre os homens e mulheres egressos do cativeiro se mantiveram passivos aos mandos
e desmandos dos antigos senhores Atraveacutes dos processos de tutelas eacute possiacutevel
acompanhar a luta dos libertos para terem ou manterem a guarda de sua prole
A tutela como um recurso de manutenccedilatildeo e controle de uma parcela da matildeo de
obra natildeo se restringiu apenas aos filhos dos libertos mas se estendeu agraves crianccedilas dos
estratos sociais subalternos Estes tambeacutem lutaram pela guarda de seus entes
Atraveacutes dos autos de tutela eacute possiacutevel acompanhar a luta de tutores e familiares
pela guarda das crianccedilas As disputas na justiccedila pela guarda dos ldquomenoresrdquo agraves vezes
arrastavam-se por meses e ateacute anos
348
CARDOZO Jose Carlos da Silva ldquoO juiacutezo dos oacuterfatildeos e a tutela de menoresrdquo Scripta Nova Revista
Eletroacutenica de Geografia y Ciencias Sociales Universidad de Barcelona v XVI n 395 (14) mar 2012
pp 1-15 Disponiacutevel em httpwwwubesgeocritsnsn-395sn-395-14htm Acessado em 30-10-2014 349 PAPALI Maria Aparecida C R ldquoA legislaccedilatildeo de 1871 o judiciaacuterio e a tutela de ingecircnuos na cidade
de Taubateacuterdquo In Revista Justiccedila e Histoacuteria v 2 n 3 pp 1-18 2002 p 10 Disponiacutevel em
wwwtjrsjusbrexportpoder_judiciariohistoriamemorial_do_poder_judiciariomemorial_judiciario_gau
chorevista_justica_e_historiaissn_1676-5834v2n3doc09-Papalipdf Acessado em 10-07-2015
120
Nos processos de tutelas examinados na peticcedilatildeo dirigida ao Juiz comunicando a
existecircncia de ldquomenoresrdquo pobres ou abandonados em determinado lugar ou residecircncia do
municiacutepio em condiccedilotildees de receber tutor as matildees eram geralmente descritas como
ldquomuito pobresrdquo ldquodadas ao vicio da embriagues e da prostituiccedilatildeordquo ldquosolteira e sem
residecircncia fixardquo etc A suposta maacute conduta das mulheres conjugada agrave situaccedilatildeo de
pobreza contribuiu para que muitas crianccedilas fossem dadas a tutores dativos Segundo
Martha Abreu e Alessandra Martinez
[] As famiacutelias dos setores populares quase sempre associadas agrave
ldquoignoracircncia pobreza descuido viacutecio abandono licenciosidaderdquo e muitas
vezes vistas como criadoras de criminosos e delinquentes eram acusadas de
ldquoincapazesrdquo no que diz respeito agrave educaccedilatildeo e agrave formaccedilatildeo de suas crianccedilas350
A partir do momento em que o juiz tomava conhecimento da existecircncia de
ldquomenoresrdquo a que se deveria dar tutor era entatildeo indicado um tutor dativo caso natildeo
houvesse um testamentaacuterio ou um legiacutetimo A tutela dativa poderia ser dada ao
peticionaacuterio caso aceitasse o encargo ou a outra pessoa da localidade desde que ficasse
provada a sua idoneidade
Com a emancipaccedilatildeo do cativeiro os libertos tiveram de enfrentar diversas
dificuldades como a falta de educaccedilatildeo de terras de trabalho de moradia entre outras
Um artigo do jornal O Pharol do dia 19 de maio de 1888 assinado por Olympio de
Arauacutejo351
chamava a atenccedilatildeo para as dificuldades que os libertos do 13 de maio teriam
de enfrentar e indagava sobre quantos ldquolibertos valetudinaacuteriosrdquo e ldquoquantos ingecircnuos
desprotegidos iram sofrer os horrores da miseacuteria e da fomerdquo352
Feitas essas
indagaccedilotildees ele ainda perguntava se natildeo seria o caso de se criar uma associaccedilatildeo
beneficente para cuidar desses ldquoinfelizesrdquo
Nos dias seguintes agrave promulgaccedilatildeo da Lei Aacuteurea o jornal O Pharol publicou
vaacuterias notiacutecias de festejos em homenagem agrave dita lei bem como reclamaccedilotildees de
fazendeiros que se sentiram espoliados pelo ato da princesa Isabel Mas passados os
momentos de empolgaccedilatildeo os libertos se depararam com uma dura realidade entre
outras a dificuldade de reconstruiacuterem seus laccedilos familiares O ldquotreze de maio o mecircs das
floresrdquo353
tambeacutem trouxe os espinhos para os homens e mulheres egressos do cativeiro
350
ABREU Martha MARTINEZ Alessandra Frota op cit p 25 351
AHUFJF O Pharol 19 mai 1888 p 1 Olympio de Araujo em seu artigo ressaltou uma coincidecircncia
admiraacutevel segundo ele a lei Aacuteurea foi assinada no dia de Nossa Senhora dos Maacutertires 352
Idem 353
AHUFJF O Pharol 18 mai 1888 p 1-2 Artigo exaltando a Lei de 13-05-1888
121
A existecircncia de ldquomenoresrdquo afrodescendentes tutelados por ldquohomens bonsrdquo do
municiacutepio de Juiz de Fora levou os pais a terem de lutar pela guarda de seus filhos no
poacutes-emancipaccedilatildeo
O Pharol do dia 18 de julho de 1888 publicou uma mateacuteria da Gazeta da
Comarca em que se discutia a falta de providecircncias do governo com relaccedilatildeo agrave situaccedilatildeo
dos ingecircnuos e dos libertos inabilitados para o trabalho por algum motivo depois de jaacute
terem passados dois meses da assinatura da Lei Aacuteurea Com relaccedilatildeo agrave sorte dos
ingecircnuos segundo o texto jornaliacutestico o Juiz de Oacuterfatildeos da comarca havia deliberado
que iriam lhes dar a soldada ldquo[] ainda mesmo aos lavradores mediante contrato feito
com o juiacutezo e aceitaccedilatildeo de certas clausulas essenciaisrdquo para que estes ldquomenoresrdquo
tivessem uma ldquoeducaccedilatildeo proveitosardquo354
Ainda eacute ressaltado que os ldquomenoresrdquo soacute seriam
entregues a seus pais mediante o reconhecimento deles por meio do casamento ou por
intermeacutedio de declaraccedilatildeo realizada em cartoacuterio De acordo com o texto parece que os
lavradores teriam primazia na soldada dessas crianccedilas No final da mateacuteria novamente
eacute feita referecircncia aos lavradores fazendeiros tomarem esses ldquomenoresrdquo para protegecirc-
los como se pode observar por este trecho
Assim pois para assegurar-se aos ingecircnuos e oacuterfatildeos menores uma proteccedilatildeo
definida que tanto atenda aacute sorte atual como ao seu aproveitamento futuro e
jaacute para que sobre este assunto natildeo se suscitem duvidas reciprocamente
desagradaacuteveis conveacutem que os fazendeiros que desejem tomar a si o cargo da
educaccedilatildeo dos ingecircnuos faccedilam os respectivos contratos com o juiacutezo de oacuterfatildeos
que procuraraacute estamos certos conciliar todos os interesses e atender a todas
as circunstacircncias355
[grifos meus]
Ter algueacutem que cuidasse da educaccedilatildeo dos ingecircnuos e oacuterfatildeos era importante
como se depreende do texto tanto para o presente quanto para o futuro deles e presumo
que tambeacutem da lavoura uma vez que representariam braccedilos para a mesma A educaccedilatildeo
desses ldquomenoresrdquo permitiria que eles fossem ldquoaproveitados no futurordquo como
trabalhadores ordeiros A educaccedilatildeo destinada agraves crianccedilas desvalidas era o ensino
primaacuterio e o aprendizado de um ofiacutecio O trabalho para esses ldquomenoresrdquo era concebido
como um ldquoremeacutediordquo para os viacutecios e para o oacutecio a que estavam sujeitos se natildeo
houvesse quem os amparasse E eles podiam encontrar esse ldquoamparo e proteccedilatildeordquo
segundo o artigo do jornal entre a classe dos fazendeiros
354
AHUFJF O Pharol 18 jul 1888 p 1 355
AHUFJF O Pharol 18 jul 1888 p 1
122
Alguns proprietaacuterios colocavam em seus requerimentos que aceitavam o encargo
ldquoespinhosordquo356
de tutor com o intuito apenas de proteger os ldquomenoresrdquo desamparados
bem como pela estima e amizade que tinham pelos mesmos Para Elione Guimaratildees
algumas solicitaccedilotildees de tutelas realmente poderiam ser motivadas por sentimentos de
afeto e amizade e ainda acrescenta que muitas das crianccedilas requeridas poderiam ser
frutos ilegiacutetimos de algum parente do peticionaacuterio357
A esse respeito argumento que
algumas dessas crianccedilas poderiam ser filhas ilegiacutetimas do proacuteprio requerente358
Em
outros casos segundo Guimaratildees a tutela era solicitada como uma medida preventiva
de problemas com a justiccedila pois os juiacutezes de oacuterfatildeos poderiam ser informados por
algueacutem da existecircncia de crianccedilas nas condiccedilotildees de se dar tutor Por isso ldquoalguns
provavelmente preferiram se adiantar a ter algum vizinho lsquopreocupadorsquo com o bem estar
de menores a denunciaacute-losrdquo359
O processo de tutela dos oacuterfatildeos Edgar Cyrino e Edson Cyrino de 2 e 6 anos de
idade respectivamente filhos de Antonio Cyrino e de D Palmyra Marccedilolla
provavelmente eacute um caso em que o viacutenculo tutelar foi estabelecido por relaccedilotildees de
amizade Em setembro de 1929 o operaacuterio Eugenio Ribeiro Bastos solicitou a tutela dos
irmatildeos Edgar e Edson Cyrino que natildeo possuiacuteam bens Segundo o peticionaacuterio essa
famiacutelia era do seu ldquoconhecimentordquo e com a qual ldquomanteve relaccedilotildeesrdquo Em virtude da
suposta amizade e ao fato de os ldquomenoresrdquo terem ficado ldquoem plena orphandade e no
mais triste dos desamparosrdquo ele requereu a tutela dos mesmos alegando que
[] apesar de operaacuterio pobre e chefe de famiacutelia condoendo-se da sorte desses
infelizes e cumprindo um dever que natildeo pode furtar-se estaacute disposto a ter em
sua casa e sob sua proteccedilatildeo os ditos menores aos quaes dispensaraacute cuidados
de pae360
356
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menor Enedina Martins
Gonccedilalves data 30-07-1925 caixa 07 processo 07 357
GUIMARAtildeES Elione S Op cit 2006 p 114 358
A respeito da tutela de filhos ilegiacutetimos pelo suposto pai ver no capiacutetulo 4 parte 46 ldquoFelicidade
Perpeacutetua a matildee crioula do filho do senhorrdquo de minha dissertaccedilatildeo de mestrado em que analisei um
processo em que o proprietaacuterio Antocircnio Manoel Tostes reconheceu um filho que tivera com sua escrava
Felicidade Perpeacutetua atraveacutes de uma escritura de perfilhaccedilatildeo Ele tornou-se tutor de outros dois filhos da
mesma cativa Pedro e Francisca supostamente seus filhos Os ldquomenoresrdquo Pedro e Francisca nasceram
apoacutes o casamento de Antocircnio Manoel Tostes com D Ameacutelia de Almeida Tostes de quem natildeo houve
filhos Assim se realmente fossem filhos do dito senhor natildeo poderiam ser reconhecidos pois eram filhos
adulterinos Os ldquomenoresrdquo receberam instruccedilatildeo e legados de seu tutor que se colocava como ldquopai de
criaccedilatildeordquo dos mesmos FRANCISCO Raquel Pereira Op cit 2007 p 144-158 359
GUIMARAtildeES Elione Silva Op cit 2006 p 114 360 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Tutela menores Edgar e Edson
Cyrino data 11-09-1929 caixa 08 processo 06
123
As peticcedilotildees enviadas ao Juiz de Oacuterfatildeos comunicando a existecircncia de crianccedilas
em condiccedilotildees de serem tuteladas tecircm em comum o fato de descreverem as matildees como
solteiras e ou viuacutevas muito pobres sem condiccedilotildees morais e econocircmicas para criaacute-las Eacute
recorrente tambeacutem assinalar que as matildees pobres haviam se entregado agrave prostituiccedilatildeo ou
ao viacutecio da embriaguez Outras expressotildees presentes nas solicitaccedilotildees eacute o fato de que o
ldquomenorrdquo jaacute vivia em companhia do peticionaacuterio que jaacute o estava educando e criando que
nutria por ele grande afeiccedilatildeo e amizade
Muitos pais contestaram essas alegaccedilotildees difamatoacuterias e lutaram judicialmente
pela guarda de seus filhos Da leitura dos processos de tutelas emerge a importacircncia que
os homens e mulheres receacutem-saiacutedos do cativeiro bem como das classes subalternas
davam a seus viacutenculos familiares Aleacutem do fator emocional pode-se acrescentar que em
alguns casos a disputa pela crianccedila pelos seus familiares estava relacionada agrave
possibilidade de o ldquomenorrdquo poder ajudar com sua forccedila de trabalho na sobrevivecircncia do
grupo familiar
As famiacutelias das classes populares e incluo a dos libertos eram concebidas sob o
acircngulo da desorganizaccedilatildeo e da desestruturaccedilatildeo Nesse periacuteodo predominava a
concepccedilatildeo de que era necessaacuterio moralizar e higienizar as classes subalternas da
sociedade Essa parcela da populaccedilatildeo era tida como incapaz de cuidar e educar os seus
filhos uma vez que a sua organizaccedilatildeo familiar natildeo se conformava com a noccedilatildeo de
famiacutelia burguesa das classes dominantes Essa concepccedilatildeo sobre as famiacutelias pobres
serviu de argumento para alguns tutores contestarem os pedidos de remoccedilatildeo de tutela
impetrados pelos pais dos ldquomenoresrdquo Esse foi o caso da tutela de Conceiccedilatildeo e Gabriel
datada de 16 de maio de 1888
O tutor Francisco Baptista de Assis lavrador morador no distrito de Sarandy
solicitou a tutela dos ldquomenoresrdquo alegando que eles haviam sido criados e mantidos pela
sua famiacutelia e que lhes dedicavam ldquosincera afeiccedilatildeordquo A matildee dos ldquomenoresrdquo Constanccedila
havia sido escrava do peticionaacuterio Segundo o suplicante a matildee das crianccedilas continuava
como sua empregada mas era dada ao viacutecio da embriaguez e temendo que ela ldquopossa
querer retirar-se da noite para o diardquo requeria a nomeaccedilatildeo de um tutor para as
crianccedilas361
No termo de tutela os ldquomenoresrdquo aparecem como filhos de pai incoacutegnito poreacutem
Constanccedila casou-se com Ignaacutecio Cardoso ex-escravo do Conde de Cedofeita e passou a
361
AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos Relativos a accedilatildeo de tutelas Menores
Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-05-1888
124
requerer a tutela de seus filhos Numa das primeiras peticcedilotildees enviadas ao Juiz de Paz
pela matildee dos ldquomenoresrdquo Ignaacutecio Antonio Cardoso eacute descrito como padrasto dos
mesmos Entretanto Ignaacutecio reconheceu as crianccedilas como seus filhos por um termo de
reconhecimento datado de 21 de agosto de 1889 uma vez que Constanccedila e Gabriel natildeo
foram reconhecidos no ato do matrimocircnio que havia se realizado em julho de 1888 na
Igreja de Satildeo Francisco do Caeteacute ou se foram reconhecidos tal informaccedilatildeo natildeo foi
anotada pelo paacuteroco362
Esse termo de reconhecimento eacute contestado pelo tutor Francisco Baptista de
Assis que alega natildeo haver possibilidades de os libertos terem se conhecido antes da
concepccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo uma vez que natildeo residiam na mesma freguesia e ainda
ressaltava que na peticcedilatildeo enviada por Constanccedila os ldquomenoresrdquo satildeo descritos como
enteados de Ignaacutecio Na accedilatildeo de embargo que entatildeo move contra Constanccedila e o suposto
pai (Ignaacutecio) o tutor acrescenta que mesmo que fosse provada a paternidade natildeo era
conveniente que as crianccedilas fossem entregues aos peticionaacuterios da remoccedilatildeo da tutela
pois natildeo possuiacuteam ldquoidoneidade moralrdquo para educaacute-los e ainda poderiam corrompecirc-los
com os seus maus exemplos posto que Constanccedila e Ignaacutecio brigavam muito e era
notoacuterio o viacutecio da embriaguez da liberta sempre ldquovista caiacuteda em estrada puacuteblicardquo O
tutor alegou que se recusava a entregar as crianccedilas era pela amizade que lhes devotava e
pelo bem-estar das mesmas uma vez que os encargos da tutela de ldquomenoresrdquo desvalidos
eram superiores agraves vantagens que lhe poderia resultar com a permanecircncia desses em sua
residecircncia Como jaacute salientei alguns tutores colocavam o encargo da tutela como uma
accedilatildeo humanitaacuteria que estavam prestando a esses ldquomenoresrdquo desprotegidos
As testemunhas que foram chamadas para deporem fazem coro agraves alegaccedilotildees de
Francisco Baptista de Assis de que Constanccedila e Ignaacutecio natildeo tinham condiccedilotildees para
cuidar das crianccedilas O advogado dos embargados Constanccedila e Ignaacutecio contestou os
depoimentos das testemunhas ouvidas alegando que duas eram parentes do embargante
362
Decreto no 5604 de 25 de abril de 1874 ndash art 63sect 9
o ldquoo assento de casamento deveraacute conter
necessariamente Declaraccedilatildeo do numero nomes e idades dos filhos havidos antes do casamento e que
ficam por ele legitimadosrdquo A referecircncia a esse decreto estaacute no processo de tutela dos ldquomenoresrdquo
Conceiccedilatildeo (10 a 12 anos) e Gabriel (7 anos mais ou menos) Segundo o advogado dos pais das crianccedilas
Dr Joseacute Caetano de Moraes e Castro o reconhecimento tambeacutem podia se dar por outros meios como por
um terno de reconhecimento lavrado por escritura puacuteblica AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci ndash
Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menores Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-051888
125
Nas razotildees finais do processo o embargante Francisco Baptista de Assis
assinala que o ldquomenorrdquo Gabriel estava aprendendo a ler e escrever363
e que Conceiccedilatildeo
ldquopor jaacute estar muito desenvolvida e mesmo por natildeo ser costume na roccedila mandar ensinar a
ler as mulheres natildeo frequenta a classerdquo poreacutem ela estava ldquoaprendendo os serviccedilos a que
pode dedicar-se uma pessoa nas suas condiccedilotildeesrdquo364
[grifos meus]
Pelo que se depreende da declaraccedilatildeo do tutor a educaccedilatildeo escolar natildeo era
destinada agraves mulheres da roccedila principalmente as pobres que deveriam se dedicar a
outras tarefas entre as quais a do serviccedilo domeacutestico Maria Cristina S de Gouvecirca em
seu estudo sobre a escolarizaccedilatildeo feminina no seacuteculo XIX assinala que natildeo havia muito
interesse da famiacutelia e dos responsaacuteveis com a educaccedilatildeo das meninas e que o governo da
proviacutencia de Minas pouco investia nessa aacuterea A relutacircncia da famiacutelia e dos
responsaacuteveis em enviar as meninas agrave escola principalmente agraves das classes pobres
estava relacionada a vaacuterios fatores sendo um deles o auxiacutelio que elas deveriam prestar
nas atividades domeacutesticas365
A respeito da instruccedilatildeo feminina Rachel Soihet assinala
que o ldquohorizonte ideoloacutegicordquo brasileiro na passagem agrave modernidade concebia o
casamento como ldquoocupaccedilatildeo principalrdquo da mulher natildeo se valorizando desse modo a sua
escolarizaccedilatildeo Segundo a autora essa ldquomentalidaderdquo persistiu por longos anos e
contribuiu sobremaneira para a manutenccedilatildeo da mulher ldquoao exerciacutecio do trabalho na
praacutetica das tarefas menos qualificadas e mais desvalorizadasrdquo366
O advogado dos embargados o dr Joseacute Caetano de Moraes e Castro contra-
argumentou dizendo que o costume de natildeo mandar ensinar as meninas a ler deveria ser
desprezado Prosseguiu explanando que o tutor gozava dos serviccedilos de Conceiccedilatildeo (15
anos) e de Gabriel (9 anos) pela quantia de 4$000 mensais (fazendo referecircncia agrave
363
De acordo com a declaraccedilatildeo de Symphronio de Souza e Silva professor particular de instruccedilatildeo
primaacuteria na fazenda de S Luzia o menor Gabriel Pereira de Andrade frequentava a sua classe e recebia
do tutor do mesmo a mensalidade de quatro mil reacuteis 364
Conforme declaraccedilotildees da testemunha Severino Pires de Almeida (lavrador) a menor Conceiccedilatildeo vivia
em companhia dos filhos de Francisco Baptista de Assis e era empregada em serviccedilos domeacutesticos e em
acompanhar as crianccedilas A testemunha Custodio Nogueira da Silva natural de Portugal informou que
sabia que a ldquomenorrdquo se ocupava em coser 365
GOUVEcircA Maria Cristina Soares de ldquoMeninas nas salas de aula dilemas da escolarizaccedilatildeo feminina
no seacuteculo XIXrdquo In FILHO Luciano Mendes Faria (org) A infacircncia e sua educaccedilatildeo ndash materiais
praacuteticas e representaccedilotildees (Portugal e Brasil) Belo Horizonte Autecircntica 2004 p 203-205 Thomas Holt
tambeacutem aborda a questatildeo do desinteresse na Jamaica pela educaccedilatildeo puacuteblica para crianccedilas em idade
escolar HOLT Thomas C ldquoA essecircncia do contrato a articulaccedilatildeo entre raccedila gecircnero sexual e economia
poliacutetica no programa britacircnico de emancipaccedilatildeo 1838-1866rdquo In COOPER Frederick et all Aleacutem da
Escravidatildeo investigaccedilatildeo sobre raccedila trabalho e cidadania em sociedades poacutes-emancipaccedilatildeo Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 2005 p 120-121 Cf PERROT Michelle Op cit 1996 p 118 366
SOIHET Rachel Condiccedilatildeo feminina e formas de violecircncia mulheres pobres e ordem urbana 1890-
1920 Rio de Janeiro Forense Universitaacuteria 1989 p 170 Cf PERROT Michelle Op cit 1996 p 118-
119
126
mensalidade escolar de Gabriel) e acrescentou ldquoe como se natildeo haacute de estimar a quem
por tatildeo moacutedica quantia nos serve O interesse infelizmente eacute mola real do coraccedilatildeo
humanordquo367
A disputa entre embargante e embargados continuou demonstrando o interesse
das partes pela guarda das crianccedilas Provavelmente fosse real a alegaccedilatildeo do tutor de
que Ignaacutecio declarou-se pai dos ldquomenoresrdquo apenas como um subterfuacutegio para conseguir
a guarda dos mesmos Se tal afirmaccedilatildeo for verdadeira pode ser interpretada como um
gesto de afeto de Ignaacutecio por sua companheira pois desse modo ela poderia passar a
conviver junto a seus filhos368
Sendo padrasto369
a remoccedilatildeo da tutela poderia natildeo ser
realizada mas reconhecendo a paternidade os entraves diminuiacuteam e a probabilidade de
obter a posse dos ldquomenoresrdquo aumentava Aleacutem do laccedilo afetivo pode-se acrescentar o
fator econocircmico Gabriel e Conceiccedilatildeo estavam em uma faixa etaacuteria em que poderiam
trabalhar e contribuir com as despesas do seu grupo familiar Gizlene Neder observou
no estudo sobre o Asilo dos Meninos Desvalidos a mesma situaccedilatildeo de disputas
ldquoenvolvendo o exerciacutecio do paacutetrio poderrdquo A autora examinou um caso de confronto
entre a famiacutelia de um interno e o diretor do Asilo pela sua guarda As crianccedilas quando
atingiam uma faixa etaacuteria que podeira contribuir com seu trabalho com as despesas do
lar geralmente a sua posse era reivindicada por seus familiares370
Segundo Sheila
Faria os filhos enquanto pequenos eram apenas ldquoconsumidoresrdquo e representavam ldquoum
fardordquo para as famiacutelias pobres poreacutem quando mais velhos eram ldquoprodutoresrdquo e
poderiam contribuir com seu trabalho para a prosperidade de sua famiacutelia371
Outra
367
AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores
Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-05-1888 Razotildees finais do processo de embargo movido por Francisco
Baptista de Assis p 49 368
Segundo a declaraccedilatildeo de uma das testemunhas o lavrador Custodio Nogueira da Silva natural do
reino de Portugal Ignaacutecio havia lhe dito que queria a guarda dos menores ou de pelo menos um deles
para que pudessem fazer companhia agrave matildee e que eles natildeo eram seus filhos 369
De acordo com o Livro 4o Tiacutetulo 102 paraacutegrafo 1 (p 995-996) das Ordenaccedilotildees Filipinas alguns
indiviacuteduos estavam inabilitados para serem tutores Eram os casos dos menores de 25 anos do sandeu do
proacutedigo do inimigo do oacuterfatildeo do pobre ao tempo do falecimento do defunto entre outros Na nota
explicativa estaacute assinalado que os padrastos estavam incluiacutedos entre os inabilitados considerados como
inimigos do oacuterfatildeo Segundo a nota os padrastos poderiam ateacute ser admitidos mas com toda a cautela 370 NEDER Gizlene ldquoAssistencia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gizele de (org) Educar na infacircncia
perspectivas histoacuterico-sociais Satildeo Paulo Contexto 2010b p 108-110 371
FARIA Sheila de Castro ldquoA propoacutesito das origens dos enjeitados no periacuteodo escravistardquo In
VENANCIO Renato Pinto (org) Uma Histoacuteria Social do abandono de crianccedilas de Portugal ao Brasil
seacuteculos XVIII-XIX Satildeo Paulo Alameda Editora PUC Minas 2010 p 85 Uma das questotildees discutida
por Alan Macfarlane em sua obra a ldquoHistoacuteria do casamento e do amorrdquo na Inglaterra do periacuteodo de 1300
a 1840 eacute a questatildeo sobre o nuacutemero de filhos e a relaccedilatildeo destes com a prosperidade e ou pobreza da
famiacutelia Na anaacutelise eacute observada tanto essa problemaacutetica no meio rural quanto urbano bem como nos
diversos grupos sociais e periacuteodos Cf MACFARLANE Alan Histoacuteria do casamento e do amor
Inglaterra ndash 1300-1840 Satildeo Paulo Companhia das letras 1990
127
hipoacutetese eacute a de que os ldquomenoresrdquo fossem realmente filhos desse casal de libertos e por
isso lutaram para reconstruiacuterem seus laccedilos familiares
Eric Foner exorta que os receacutem-libertos do sul dos Estados Unidos
consideravam melhor adotar os filhos de algum parente ou amigo falecido do que deixaacute-
los serem entregues aos brancos como aprendizes ou ainda serem enviados para os
orfanatos e ou internatos Eles buscavam livrar-se de todas as caracteriacutesticas da
escravidatildeo com o objetivo de ldquodestruir a autoridade real e simboacutelica que os brancos
haviam exercido sobre todos os aspectos de suas vidasrdquo372
Assim retirar a famiacutelia da
autoridade de homens brancos era considerado pelos ex-escravos provavelmente um
elemento de suma importacircncia da liberdade373
Talvez Ignaacutecio desejasse apenas livrar a
prole de sua esposa do jugo do ex-senhor da mesma adotando-os como seus filhos
como discorreu Foner com relaccedilatildeo aos libertos norte-americanos
O embargo promovido por Francisco Baptista de Assis foi indeferido e a custa
do processo de acordo com a determinaccedilatildeo do Juiz seria paga por ele Ele natildeo aceitou
a sentenccedila e apelou no Tribunal da Relaccedilatildeo do Distrito (22-11-1889) desistindo pouco
depois de tal accedilatildeo alegando que natildeo tinha recursos para continuar com a apelaccedilatildeo e
que fora movido ateacute entatildeo ldquosoacute para defender o que ele supunha ser do interesse dos seus
pupilos a quem professava sincero afeto e tratava sempre com o mesmo carinho e
desvelo com que tratava seus proacuteprios filhosrdquo O ex-tutor ainda asseverou que estava
com a ldquoconsciecircncia tranquilardquo por ter desempenhado bem o seu cargo de tutor e
acrescentou que se o juiz de oacuterfatildeos havia determinado que os ldquomenoresrdquo fossem entatildeo
entregues ldquoao individuo que se diz pairdquo que assim fosse feito374
Ateacute o uacuteltimo instante
Francisco Baptista de Assis nega que o liberto Ignaacutecio fosse pai das crianccedilas Fica a
duacutevida sobre o que realmente motivou o tutor a apelar da sentenccedila de remoccedilatildeo de tutela
se foi a suposta estima que nutria pelos ldquomenoresrdquo ou o serviccedilo que os mesmos
poderiam lhe oferecer por uma pequena remuneraccedilatildeo O que depreendo desse processo
eacute que o casal de libertos natildeo desistiu da luta apesar de todas as tentativas feitas pelo
tutor para manter a tutela Independentemente de ser ou natildeo pai de Conceiccedilatildeo e Gabriel
372
FONER Eric ldquoO significado da liberdaderdquo In LARA Silvia Hunold (org) Escravidatildeo Revista
Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo ANPUH Marco Zero v 8 n 16 marag 1988 p 12 373
Idem pp 17 e 20 Cf FRANCISCO Raquel Pereira Laccedilos de Solidariedade famiacutelia e parentesco
entre os afrodescendentes do municiacutepio de Juiz de Fora no poacutes-emancipaccedilatildeo In Passagens Revista
Internacional de Histoacuteria Poliacutetica e Cultura Juriacutedica Rio de Janeiro v 4 n 2 maio-agosto 2012c p
233-253 Disponiacutevel em wwwhistoriauffbrrevistapassagensartigosv4n2a32012pdf Acessado 10-07-
2015 374
AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores
Conceiccedilatildeo e Gabriel Data 16-05-1888
128
Ignaacutecio junto com Constanccedila a matildee conseguiu o direito de formar uma famiacutelia a sua
famiacutelia Constanccedila teria a partir de entatildeo seus filhos sob sua proteccedilatildeo sob sua
autoridade Mas nem todos os casais de libertos tiveram a mesma sorte de Ignaacutecio e
Constanccedila em reconstruiacuterem seus laccedilos familiares formados ainda nos ldquotempos do
cativeirordquo ou de darem iniacutecio a uma ldquofamiacuteliardquo
A histoacuteria de Magdalena e Juacutelio ela ex-escrava de Balbino de Magalhatildees
Gomes teve um final totalmente oposto ao da Constanccedila e Ignaacutecio apesar de ser bem
semelhante Esse casal uniu-se em matrimocircnio em novembro de 1893 e em
consequecircncia desse enlace Magdalena perdeu o paacutetrio poder sobre seus filhos Laura de
7 anos de idade e Joatildeo de 4 anos375
O promotor de justiccedila Luiz Barbosa Gonccedilalves
Penna comunicou esse fato ao Juiz de Oacuterfatildeos e indicou para tutor das crianccedilas o Sr
Balbino de Magalhatildees Gomes no ldquoseio de cuja famiacutelia tem os menores sido criados ateacute
esta idaderdquo376
Mas no ano de 1896 Juacutelio solicitou que a tutela sobre a menina cessasse
pois esta era sua filha tida no tempo de solteiro com Magdalena e dessa forma ele e
sua mulher eram os ldquoprotetores naturaisrdquo da mesma (01-10-1896) A peticcedilatildeo enviada ao
Juiz de Oacuterfatildeos em que Juacutelio solicita a guarda de Laura foi contestada pelo promotor
interino o advogado Herculano A Gomes de Souza pois a declaraccedilatildeo de paternidade
feita na peticcedilatildeo natildeo era instrumento legal de reconhecimento de filhos (01-10-1896)377
A ldquomenorrdquo natildeo foi reconhecida no ato do matrimocircnio e nem por uma escritura
puacuteblica de reconhecimento mas apenas atraveacutes da peticcedilatildeo endereccedilada ao Juiz de
Oacuterfatildeos em que Juacutelio dizia-se pai de Laura Por esse motivo o pedido foi indeferido e a
custa do processo ficou a cargo do suplicante Segundo o promotor de Justiccedila a atitude
de Juacutelio em solicitar a guarda da menina era motivada pelo fato de ter-se tornado
inimigo do tutor como era puacuteblico O parecer do promotor foi de que a Laura
continuasse sob a guarda do tutor
Segundo o Sr Balbino de Magalhatildees Gomes Magdalena e o suposto pai natildeo
tinham condiccedilotildees para educarem as crianccedilas uma vez que eram ldquoanalfabetos e baldos
de recursosrdquo e tambeacutem natildeo eram capazes ldquode conservarem em seu poder uma menina
375
AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores Laura e
Joatildeo Data 15-05-1894 Juacutelio Francisco Antonio de Lima era jornaleiro e natural de Mangaratiba (RJ)
Sua condiccedilatildeo juriacutedica natildeo estaacute clara no processo mas acredito que ele fosse um liberto Magdalena Maria
da Conceiccedilatildeo era brasileira empregada domeacutestica natural de Juiz de Fora onde residia 376
Idem folha 2 ano 1894 377
Ibidem folha 9 ano 1896
129
que atingiu a idade que [mais] se torna necessaacuterio que dela tenha o maior cuidado
[]rdquo378
O que teria levado Juacutelio a requerer a guarda da ldquomenorrdquo Seraacute que o fato de ter-
se tornado ldquoinimigo do tutorrdquo como alegou o promotor induziu Juacutelio a dizer que era pai
de Laura Por que somente depois de decorridos quase dois anos da assinatura da tutela
o suposto pai assumiu a paternidade e solicitou a remoccedilatildeo da mesma Seria Juacutelio
realmente o pai de Laura
Se a tese de que Juacutelio estava solicitando a remoccedilatildeo da tutela simplesmente por
ter-se tornado inimigo do tutor for verdadeira por que entatildeo natildeo solicitou tambeacutem a
guarda de Joatildeo Como inimigo de Balbino de Magalhatildees Gomes era oacutebvio que
desejasse retirar ambas as crianccedilas do domiacutenio do tutor Uma possibilidade para o
suposto pai de Laura ter solicitado a posse da ldquomenorrdquo apenas dois anos apoacutes a
assinatura da tutela por Balbino de Magalhatildees talvez esteja relacionada agraves condiccedilotildees
financeiras do casal Possivelmente em 1894 quando se deu a tutela eles natildeo tivessem
recursos financeiros para ficarem com as crianccedilas e por isso concordaram que eles
permanecessem sob a responsabilidade do ex-senhor de Magdalena Anna Gicelle G
Alaniz sugere que muitos libertos se viram sem recursos no poacutes-aboliccedilatildeo sendo pois o
viacutenculo tutelar uma possibilidade de sobrevivecircncia para seus rebentos Todavia quando
tinham uma situaccedilatildeo econocircmica mais definida a presenccedila de filhos em idade produtiva
lhes permitiam dispensar o viacutenculo tutelar379
Laura jaacute estava na idade de tornar-se uma
forccedila de trabalho para sua famiacutelia Mas por que natildeo solicitaram em 1896 a posse de de
Joatildeo tambeacutem Seria Joatildeo um ldquofardordquo para o casal que estava buscando sobreviver no
poacutes-aboliccedilatildeo O ldquomenorrdquo contava com apenas 6 anos e pouco serviccedilo poderia oferecer
naquele momento Seraacute que ambos eram filhos do casal mas por causa das dificuldades
de sobrevivecircncia requereram apenas a posse da ldquomenorrdquo que jaacute poderia oferecer algum
trabalho Ou seria apenas Laura filha de Juacutelio e por ser dificultada aos padrastos a
tutela de seus enteados ele natildeo tenha requerido a guarda do menino Mas se a ldquomenorrdquo
era realmente sua filha por que natildeo a reconheceu no ato do matrimocircnio Natildeo saberia
Juacutelio que para obter o paacutetrio poder sobre o rebento havido antes do casamento deveria
reconhececirc-lo nessa cerimocircnia Seraacute que o juiz as testemunhas natildeo perguntavam sobre a
existecircncia de filhos para os nubentes Infelizmente natildeo haacute respostas para estas
questotildees apenas conjecturas
378
Ibidem folha 4 e 4 v ano 1896 379
ALANIZ Anna Gicelle Garcia op cit p 73 -74
130
Anna Gicelle G Alaniz ressaltou que o viacutenculo tutelar pode ter sido uma
possibilidade de sobrevivecircncia para os filhos de muitos libertos sem meios de
sobrevivecircncia no poacutes-emancipaccedilatildeo Poreacutem apoacutes os pais conseguirem se estabelecer
com empregomoradia buscavam reaver seus filhos principalmente os que estavam em
uma faixa etaacuteria produtiva O processo de tutela dos irmatildeos Romatildeo Romana e Paulo
filhos da liberta Anna preta sugere que essa foi a situaccedilatildeo vivida por esse grupo
familiar O processo eacute de fevereiro de 1890 e na peticcedilatildeo encaminhada ao Juiz eacute
colocado que Romatildeo de 11 anos de idade e Romana de 9 anos viviam cada qual na casa
de um proprietaacuterio e que era necessaacuterio dar tutor aos ldquomenoresrdquo visto serem ldquopessoas
destrahidasrdquo No requerimento eacute colocado que eles viviam na companhia de cidadatildeos do
municiacutepio por ldquocaridaderdquo e pelo temor que tinham de que os mesmos fossem
ldquodesencaminhadosrdquo A outra crianccedila de nome Paulo de 7 anos mais ou menos vivia em
companhia de sua matildee e do liberto Gregorio O lavrador Antocircnio Joseacute Teixeira aceitou
o encargo da tutela dativa dos trecircs irmatildeos em marccedilo de 1890 e declarou que o fazia
ldquomais por attender aacute pobresa dos menores e de sua matildee que podem ser equiparados a
pessocircas desvalidasrdquo380
Em dezembro do mesmo ano o tutor solicitou escusa da tutela
alegando que natildeo poderia mais continuar com a mesma e declarou que havia aceitado
tal encargo pelo fato de as crianccedilas se encontrarem no
[] mais lamentaacutevel abandono attenta aacute precaria posiccedilatildeo da matildee [] que
remida da condiccedilatildeo de escrava pela aurea lei de 13 de maio de 1888 natildeo
dispunha absolutamente de mais para delles cuidar alimentar vestir e tratar
como convinha aacute posiccedilatildeo de cada um delles que pelas respectivas edades se
viam na impossibilidade de trabalhar para o sustento381
Antocircnio Joseacute Teixeira indicou para substitui-lo no cargo de tutor o padrasto dos
ldquomenoresrdquo Gregoacuterio Joseacute da Costa que segundo ele era ldquohomem muito trabalhador
honesto e de bons costumes e que a todos os respeitos reuacutene condiccedilotildees para ser um
zeloso tutor de seus enteadosrdquo O discurso do trabalho como uma ldquovirtuderdquo que tornava
o trabalhador em uma pessoa disciplinada honesta e de boa moral foi utilizado pelo
tutor para se referir ao padrasto Na passagem agrave modernidade o trabalho foi revestido
de um caraacuteter ldquosagradordquo e que tinha a capacidade de transformaccedilatildeo do operaacuterio em uma
380
AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutelas Menores Romatildeo e
Romana Data 03-08-1890 Caixa 4 Processo 12 381
Idem
131
pessoa disciplina e ordeira382
A matildee dos ldquomenoresrdquo tambeacutem solicitou a guarda de seus
filhos alegando que estando casada civilmente com Gregoacuterio Joseacute da Costa estava
protegida pela lei Ao que parece a situaccedilatildeo de Anna estava melhor e dessa maneira
ela poderia ter os filhos consigo e ateacute mesmo beneficiar-se da matildeo de obra dos mesmos
para a sobrevivecircncia da famiacutelia
O tutor dos filhos da liberta Anna natildeo se opocircs agrave destituiccedilatildeo da tutela como
tantos outros proprietaacuterios fizeram natildeo desmoralizou a matildee dos ldquomenoresrdquo e nem o
padrasto O comportamento de Antocircnio Joseacute Teixeira eacute atiacutepico da documentaccedilatildeo
analisada Seria o casal Anna e Gregoacuterio empregados desse proprietaacuterio e por isso ele
natildeo criou empecilhos Natildeo teria ele necessidade dos serviccedilos desses ldquomenoresrdquo Ou
aceitou a tutela realmente por causa das condiccedilotildees precaacuterias das crianccedilas
Histoacuterias como a dos libertos Anna e Gregoacuterio e de outros que tiveram acesso agrave
justiccedila pela guarda de seus filhos natildeo foi a realidade para diversas pessoas dos estratos
sociais subalternos Poreacutem eles natildeo deixaram de lutar por seus rebentos da maneira que
podiam Uma das formas de reaccedilatildeo era a recusa em entregar as crianccedilas Mas para que
a lei fosse cumprida os tutores nomeados solicitavam aos juiacutezes que fosse passado
mandado de entrega e apreensatildeo A partir dessa accedilatildeo ou os processos silenciam-se pois
terminavam com a entrega do ldquomenorrdquo ao seu tutor ou prosseguiam com novos pedidos
de apreensatildeo do pupilo por esse ter fugido para a casa de sua matildee ou de um parente de
os pais os terem retirado da casa do tutor entre outras accedilotildees As fugas das crianccedilas das
casas de seus tutores era uma maneira de contestarem de demonstrarem sua
insatisfaccedilatildeo e essas accedilotildees podem estar relacionadas a fatores como os maus tratos a
vontade de estar junto a seus familiares a oportunidade de ter os seus serviccedilos
remunerados de trabalhar para quem desejava383
Gislane Campos Azevedo ressalta que
os castigos fiacutesicos nas crianccedilas tuteladas eram uma praacutetica corriqueira e que muitos
pupilos encontravam na fuga uma maneira de se livrarem de tal situaccedilatildeo384
Aleacutem dos
castigos fiacutesicos as meninas tambeacutem estavam sujeitas aos abusos sexuais por parte dos
382
Segundo E P Thompson durante o processo de gestaccedilatildeo da sociedade industrial na Inglaterra do
seacuteculo XVIII a ideia do trabalho como uma ldquovirtuderdquo e contendo um caraacuteter ldquosagradordquo foi difundido
pelas igrejas protestantes Assim a ldquocruzrdquo e o ldquosanguerdquo de Cristo serviram aos interesses das classes
dominantes para a criaccedilatildeo de haacutebitos de disciplina nos operaacuterios Cf THOMPSON E P A formaccedilatildeo da
classe operaacuteria inglesa 2 a maldiccedilatildeo de Adatildeo 4 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p 239-243 383
Com relaccedilatildeo agrave fuga dos ldquomenoresrdquo da residecircncia de seus tutores ver entre outros os processos de
tutelas de Benvindo Fortunato e Sebastiatildeo AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave
accedilatildeo de tutela Menor Benvindo Data 16-11-1888 caixa 100 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci
Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menores Fortunato e Sebastiatildeo Data 28-05-1888 Caixa 100 384
AZEVEDO Gislane Campos Op cit 1995 p 87-88
132
tutores ou de algum de seus parentes385
A recusa em entregar as crianccedilas as fugas as
retiradas dos ldquomenoresrdquo da residecircncia dos tutores pode ser interpretada como parte de
uma ldquoeconomia moralrdquo386
da famiacutelia desvalida isto eacute de sua visatildeo sobre o direito de
permanecer com seus filhos e ou de entregaacute-los para quem desejasse
Da anaacutelise da tutela de Geralda de setembro de 1929 eacute viaacutevel supor que ela
fosse viacutetima de maus-tratos na casa de seu tutor o Juiz Municipal do termo de Satildeo Joatildeo
Nepomuceno Jose Eugenio de Miranda Lima O pedido de tutela dessa ldquomenorrdquo
comeccedila como tantos outros colocando a matildee de Geralda Blandina domeacutestica como
incapaz de exercer o paacutetrio poder por supostamente ter ldquovida licenciosa e viver em
estado de quase indigecircnciardquo Aleacutem dessas alegaccedilotildees tambeacutem foi colocado que a
ldquomenorrdquo jaacute vivia na residecircncia do dito cidadatildeo havia mais de cinco anos O pedido foi
deferido e o tutor nomeado solicitou que sua pupila fosse apreendida pois ela havia sido
ldquosorrateiramente extraviada por elementos despeitados e interessados no trabalho de
Geraldardquo387
Suponho que as alegaccedilotildees do requerente sobre a conduta de Blandina Maria da
Conceiccedilatildeo natildeo foram averiguadas pelos representantes do poder judiciaacuterio Natildeo haacute uma
solicitaccedilatildeo do Juiz para que o suplicante comprovasse as suas palavras A suposta
displicecircncia da justiccedila nesse caso e em outros provavelmente estaacute relacionada com a
posiccedilatildeo social do requerente bem como com a associaccedilatildeo que as classes dominantes
faziam entre mulheres pobres e imoralidade Gislane Azevedo em seu estudo sobre as
385
Elione S Guimaratildees assevera que por causa de vaacuterios fatores provavelmente muitos dos abusos
sexuais sofridos pelas ldquomenoresrdquo tuteladas natildeo foram registrados pelas fontes Dos processos de tutelas de
afrodescendentes analisados para o municiacutepio de Juiz de Fora em apenas um caso houve a denuacutencia de
abuso sexual sofrida por uma ldquomenorrdquo A autora analisou o processo de tutela e o de estupro de Vitalina
que foi tutelada por seu padrinho de batismo Ricardo Augusto de Carvalho Vitalina era filha de Cassiana
que fora escrava de D Generosa Horta de Carvalho (matildee do tutor) A acusaccedilatildeo de estupro foi feita pelo
irmatildeo da menina que acusou o tutor-padrinho da mesma Vitalina ficou graacutevida e a famiacutelia de Ricardo
sendo influente conseguiu reverter a acusaccedilatildeo desmoralizando a ldquomenorrdquo e sua famiacutelia GUIMARAtildeES
Elione Silva Op cit 2006 p 133-137 Na documentaccedilatildeo que pesquisei para a elaboraccedilatildeo da dissertaccedilatildeo
de mestrado deparei-me com o processo de tutela das oacuterfatildes Gabriela e Virginia filhas de Joseacute Luiz da
Costa falecido e de D Minelvina Maria de Satildeo Joseacute onde haacute o relato de uma tentativa de abuso sexual
contra uma ingecircnua D Minelvina Maria de Satildeo Joseacute era casada em segundas nuacutepcias com Joaquim
Antonio Baptista padrasto e tutor de suas filhas Ela solicitou a remoccedilatildeo da tutela pelo fato de ter
descoberto que seu marido havia tentado deflorar uma ingecircnua que possuiacutea entre 10 e 12 anos de idade
sendo tal tentativa praticada em presenccedila de suas filhas Segundo o relato de D Minelvina a ingecircnua
havia sido enviada para a casa de uma famiacutelia vizinha e o fato era conhecido no distrito de Chapeacuteu
drsquoUvas e confessado pela ldquomenorrdquo AHUFJF Fundo Foacuterum Benjamim Colucci ndash Processos relativos agrave
accedilatildeo de tutelas - Menores Gabriela e Virginia Data 16-08-1883 Cf SILVA Renata Lutiene Op cit
2010 p 78 386
Cf THOMPSON E P Costumes em comum estudos sobre a cultura popular tradicional Satildeo Paulo
Companhia das Letras 1998 especialmente os capiacutetulos 4 ldquoA economia moral da multidatildeo inglesa no
seacuteculo XVIIIrdquo e 5 ldquoEconomia moral revisitadardquo 387
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Geralda Data 02-
09-1929 Caixa 8 processo 11
133
accedilotildees de tutelas da cidade de Satildeo Paulo tambeacutem fez essa observaccedilatildeo com relaccedilatildeo aos
processos referentes agraves crianccedilas pobres os juiacutezes natildeo procuravam comprovar as
informaccedilotildees dos suplicantes sobre os familiares dos ldquomenoresrdquo388
Entretanto eacute
necessaacuterio ressaltar que houve processos em que os requerentes tiveram que comprovar
suas declaraccedilotildees sobre os pais das crianccedilas No processo de Francisca de Jesus de 12
anos de idade o Promotor de Justiccedila solicitou que o peticionaacuterio Affonso Colucci
provasse suas alegaccedilotildees a respeito da conduta da matildee da ldquomenorrdquo ou indicasse
testemunhas389
A matildee da ldquomenorrdquo Geralda contestou as alegaccedilotildees sobre sua conduta e
apresentou atestado de procedimento expedido pelo delegado de poliacutecia e certidatildeo de
que era empregada na casa de Manoel do Couto e Silva por quase 8 anos e requereu a
posse de sua filha Joseacute Eugenio de Miranda Lima em resposta agrave peticcedilatildeo de Blandina
fez uma longa explanaccedilatildeo sobre a vida da mesma e de seus outros filhos assinalado que
dos seus seis filhos trecircs encontravam-se em uma fazenda em Coronel Pacheco sem
instruccedilatildeo escolar dois viviam com a matildee na casa onde era cozinheira sem nenhuma
assistecircncia sendo que um deles ldquoia crescendo no canto da cosinha desnudo e
encardidordquo e o outro vivia vagando pelas ruas e estradas da cidade ldquomaltrapilhordquo sem
nunca ter entrado em uma escola ou encontrado quem ldquolhe desse uma cartilha de A B
Crdquo e ia se enveredando pelo caminho do crime
A dar creacutedito as palavras do tutor a vida de Blandina e de seus filhos era
perpassada pela carecircncia e pela separaccedilatildeo de seus membros Uma mulher solteira
pobre com seis filhos para criar em uma sociedade que impunha como padratildeo a famiacutelia
nuclear jaacute se apresentava desqualificada perante a justiccedila
Apoacutes as alegaccedilotildees de Blandina e do tutor ao que parece os membros do poder
judiciaacuterio procuraram verificar a veracidade das mesmas concluindo o Juiz que a matildee
da ldquomenorrdquo Geralda natildeo estava nas ldquocondiccedilotildees de exercer o poder materno visto que
mora em casa alheia em emprego humilde e sem meios de educar outros filhos
menoresrdquo Todavia a tutela da ldquomenorrdquo concedida a Joseacute Eugenio de Miranda Lima foi
considerada sem efeito e foi indicado outro tutor uma vez que a matildee se opunha
388
AZEVEDO Gislane Campos Op cit 1995 p 119-120 Cf CARDOZO Jose Carlos da Silva Op
cit 2012 389
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Francisca de Jesus
Data 25-11-1893 Caixa 5 Processo 4
134
ldquoexpressamenterdquo que sua filha permanecesse com o mesmo390
Aleacutem disso Geralda foi
ouvida em juiacutezo e ldquopediu em pranto que natildeo fosse mandada para a casa do Dr Miranda
Limardquo sendo que jaacute havia se ldquoausentadordquo da casa do tutor e se colocado sobre a
ldquoprotecccedilatildeordquo do Sr Carlos Grande
Por que Geralda teria pedido ldquoem prantosrdquo para natildeo voltar para a casa de seu
tutor Seria maltratada por ele e seus familiares Teria sofrido algum tipo de violecircncia
fiacutesica ou sexual A recusa de Blandina de que sua filha permanecesse sob a tutela de
Miranda Lima seria motivada por ter conhecimento de que sua filha era explorada
maltratada Nesse caso apenas indagaccedilotildees podem ser tecidas uma vez que temos
apenas um pequeno fragmento dessa histoacuteria
O tutor natildeo concordou com a sentenccedila e recorreu Alegou que as laacutegrimas da
menina se deviam ao temor que lhe haviam incutido A recusa em aceitar a remoccedilatildeo da
tutela por Joseacute Eugenio de Miranda Lima seria motivada por preocupaccedilatildeo com a
ldquomenorrdquo ou pela perda da matildeo de obra O tutor em suas consideraccedilotildees sobre a sua
remoccedilatildeo da tutela assinalou que a ldquomenorrdquo estava em sua casa ldquohaacute mais de 5 annosrdquo e
que solicitou a tutela depois de decorrido esse tempo ldquopara poder valer a sua qualidade
contra terceiros manhosamente empenhados em retirar a menor da sua casardquo [grifado no
original] Eacute viaacutevel supor que o cerne da questatildeo nessa disputa tenha sido a forccedila de
trabalho da ldquomenorrdquo que jaacute estava possivelmente treinada para os serviccedilos domeacutesticos
Quando do pedido de apreensatildeo de Geralda logo apoacutes a assinatura da tutela o tutor
alegou que ela havia sido ldquosorrateiramente extraviada por elementos despeitados e
interessadosrdquo em seu trabalho Creio que um nuacutemero expressivo de tutelas de crianccedilas
pobres tenha se configurado em uma forma disfarccedilada de trabalho compulsoacuterio dos
ldquomenoresrdquo e que por isso a sua perda significava prejuiacutezos para os interessados
Aleacutem da questatildeo da utilizaccedilatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo outras questotildees tambeacutem
podem ser observadas atraveacutes dos processos de tutelas como a preocupaccedilatildeo com o
ldquomenorrdquo com a sua honra a sua seguranccedila e o seu futuro tanto da parte do tutor quanto
da parte dos familiares da crianccedila
A ldquomenorrdquo Maria da Conceiccedilatildeo de 4 anos de idade filha de Sebastiana Augusta
do Carmo solteira e que havia sido assassinada teve a sua tutela solicitada pelo avocirc
materno Augusto Alves da Silva em fevereiro de 1929 O avocirc da menina que era
390
O Coacutedigo Civil estabeleceu quem natildeo poderia ser tutor ou deveria ser exonerado do cargo em seu art
413 inciso III que ldquoos inimigos do menor ou de seus pais ou que tiverem sido por estes expressamente
excluiacutedos da tutelardquo
135
estafeta do Correio declarou no requerimento que sua neta havia sido levada por
Eduardo de Tal ldquoindividuo mal afamado e destituiacutedo de recursosrdquo e que se declarava pai
da menina391
A tutela foi concedida a Augusto Alves da Silva e provavelmente os
agentes do judiciaacuterio natildeo averiguaram a autenticidade das informaccedilotildees prestadas pelo
avocirc quanto ao comportamento do suposto pai da ldquomenorrdquo
Nesse processo a dar creacutedito agraves palavras de Augusto Alves da Silva a
motivaccedilatildeo para o pedido da tutela foi o afeto pela neta e a preocupaccedilatildeo com a sua
seguranccedila e seu futuro
Na proacutexima parte discutirei a questatildeo da utilizaccedilatildeo da matildeo de obra dos pupilos
pelos tutores as soldadas ou contratos de locaccedilatildeo de serviccedilo desses ldquomenoresrdquo bem
como as formas de reaccedilatildeo das crianccedilas e de seus familiares agraves condiccedilotildees impostas pelas
classes dominantes
2 4 ENTRE TINAS VASSOURAS E CAFEZAIS AS TUTELAS E
CONTRATOS DE SOLDADAS DE ldquoMENORESrdquo DESVALIDOS
A exploraccedilatildeo das crianccedilas na escala e na intensidade com que foi praticada
representou um dos acontecimentos mais vergonhosos da nossa histoacuteria (E
P Thompson)392
O trabalho na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX passou a ter uma conotaccedilatildeo
positiva na sociedade brasileira ou seja ele passou a ser valorizado como algo que
conferia dignidade e respeito sendo tambeacutem considerado um ldquoremeacutediordquo contra a
vadiagem a ociosidade e o crime Com relaccedilatildeo agraves crianccedilas dos estratos sociais
subalternos o trabalho era colocado como o caminho para a constituiccedilatildeo dos mesmos
em cidadatildeos uacuteteis agrave paacutetria
O trabalho infantil fundamentalmente o realizado em faacutebricas e oficinas foi
objeto de discussatildeo por parte da imprensa do movimento operaacuterio de
meacutedicoshigienistas de advogados de pedagogos e de poliacuteticos A discussatildeo pautava-se
nos malefiacutecios que as atividades realizadas em tais estabelecimentos poderiam gerar
391
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Maria Augusta
Data 26-02-1929 Caixa 8 Processo 12 392 THOMPSON E P A formaccedilatildeo da classe operaacuteria inglesa II a maldiccedilatildeo de Adatildeo 4 ed Rio de
Janeiro Paz e Terra 2002 p 224
136
para a sauacutede do jovem operaacuterio O emprego de ldquomenoresrdquo nesses estabelecimentos foi
alvo de leis nos estados e municiacutepios com certo niacutevel de desenvolvimento industrial ao
longo da Primeira Repuacuteblica poreacutem pela falta de uma fiscalizaccedilatildeo efetiva natildeo
lograram ecircxito como seraacute discutido no proacuteximo capiacutetulo
Se a regulamentaccedilatildeo de horas de trabalho da proibiccedilatildeo do trabalho noturno da
idade de admissatildeo entre outras questotildees preocupava setores da intelectualidade com
relaccedilatildeo ao operaacuterio infanto-juvenil nas faacutebricas essa preocupaccedilatildeo natildeo se estendeu ao
trabalho de ldquomenoresrdquo no serviccedilo domeacutestico e rural As atividades nos lares das classes
dominantes e no campo muitas vezes eram extenuantes para a pouca idade de quem
estava executando e possivelmente representavam riscos agrave integridade fiacutesica e ateacute de
morte dos ldquomenoresrdquo em muitos casos
A lei de acidentes no trabalho 1919 que seraacute examinada oportunamente natildeo
contemplou o trabalhador rural e domeacutestico apenas os operaacuterios urbanos que utilizavam
motores inanimados Quantos trabalhadores do campo e domeacutesticos natildeo sofreram
graves acidentes durante a execuccedilatildeo de seus trabalhos como cortes com instrumentos
(foices machados facotildees facas enxadas) queimaduras entre outros e natildeo receberam
auxiacutelio de seus empregadores
Com relaccedilatildeo agraves atividades domeacutesticas realizadas pelas ldquomenoresrdquo Pedro Nava
em suas lembranccedilas da infacircncia na casa de sua avoacute Inhaacute Luiacutesa em Juiz de Fora relatou
que as ldquonegrinhas [] carregavam menino traziam aacutegua varriam aqui espanavam ali
serviam mesa apanhavam fruta lavavam louccedila quebravam louccedila []rdquo393
Aleacutem de
executarem diversas tarefas as ldquocriasrdquo e as empregadas assalariadas da casa de sua avoacute
ainda sofriam com os castigos fiacutesicos a ldquoratambardquo394
os tapas na boca e a vara de
marmelo Pelo que se depreende do relato de Nava algumas meninas foram entregues
para serem criadas395
por sua avoacute como no caso da ldquomenorrdquo Evangelina Berta a Catita
de sete anos de idade que provavelmente foi abandonada pela matildee Suponho que
muitas meninas tenham sido entregues para serem criadas pelas distintas senhoras do
municiacutepio e em retribuiccedilatildeo tinham que trabalhar
Wesleyuml Silva em sua anaacutelise sobre a problemaacutetica da infacircncia abandonada e
delinquente em Belo Horizonte entre os anos de 1920 a 1940 abordou a questatildeo de
393
NAVA Pedro Balatildeo Cativo memoacuterias 2 Rio de Janeiro J Olympio 1974 p 4-5 394
Ratamba chicote chibata vergasta Cf Dicionaacuterio Aulete Digital httpwwwauletecombr Acessado
em 18-11-2014) 395
O ldquocriarrdquo no meu entender essas ldquomenoresrdquo significava dar-lhes comida um local para dormir e em
troca usufruir do trabalho das mesmas
137
meninas de cidades do interior serem levadas para a capital para trabalharem como
empregadas domeacutesticas Essas trabalhadoras mirins estavam expostas a vaacuterios tipos de
violecircncia como o afastamento da famiacutelia tarefas estafantes baixos salaacuterios maus tratos
e agressotildees (fiacutesicas sexuais e psicoloacutegicas)396
Em estudo realizado no Rio de Janeiro
na deacutecada de 1980 sobre o emprego domeacutestico constatou-se a existecircncia de um ldquotraacutefico
de meninas da zona rural para a zona urbana realizado pelas famiacutelias empregadorasrdquo397
Creio que esse ldquotraacuteficordquo fosse resquiacutecio de praacuteticas arraigadas de segmentos das classes
dominantes de arregimentar ldquomenoresrdquo da aacuterea rural para trabalharem em suas
residecircncias urbanas por baixos salaacuterios ou em troca de um suposto aprendizado
profissional Com o fim do trabalho escravo em maio de 1888 essa pode ter sido uma
das estrateacutegias utilizada pelas classes dominantes de manterem trabalhadores
domeacutesticos em seus lares O viacutenculo tutelar e o criar ldquomenoresrdquo oacuterfatildeos abandonados ou
entregues pelos pais possivelmente configurou-se em outros mecanismos de controle
da matildeo de obra infantil no periacuteodo em estudo nesse trabalho
O horaacuterio de trabalho e a idade dos ldquomenoresrdquo trabalhadores nas induacutestrias e
oficinas foram uma problemaacutetica que permeou as discussotildees sobre a regulamentaccedilatildeo do
trabalho infantil ao longo da Primeira Repuacuteblica398
Poreacutem o serviccedilo domeacutestico
realizado por diversas ldquomenoresrdquo nos lares das classes dominantes natildeo foi contemplado
O trabalho domeacutestico geralmente tinha hora para comeccedilar mas natildeo para terminar e as
ldquomenoresrdquo provavelmente passavam os dias as semanas ndash sem dias santos e feriados ndash
na labuta ocupando as aacutereas de serviccedilo da casa os quartinhos insalubres399
Tambeacutem
396 SILVA Wesleyuml Por uma histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da delinquecircncia de menores em Belo
Horizonte ndash 1921-1941 Doutorado em Educaccedilatildeo Satildeo Paulo Universidade de Satildeo Paulo 2007 p 204-
206 397
CAMPOS Maria Machado Malta ldquoInfacircncia abandonada o piedoso disfarce do trabalho precocerdquo In
MARTINS Joseacute de Souza O massacre dos inocentes a crianccedila sem infacircncia no Brasil 2 ed Satildeo Paulo
HUCITEC 1993 p 122 O telejornal ldquoBom Dia Brasilrdquo da emissora Rede Globo do dia 08 de maio de
2015 anunciou que estava sendo investigando pela poliacutecia do Paraacute os anuacutencios de contrataccedilatildeo de crianccedilas
para trabalharem como babaacutes Segundo a mateacuteria do telejornal o Ministeacuterio Puacuteblico do estado jaacute havia
recebido mais de 200 denuacutencias sobre o assunto Nos anuacutencios de serviccedilos publicados nos jornais os
contratantes se comprometiam em oferecer educaccedilatildeoescola e moradia para os interessados Outro dado
assinalado pela reportagem eacute do costume que haacute em Beleacutem dos setores dominantes empregarem meninas
do interior como babaacutes e ou empregadas domeacutesticas O trabalho domeacutestico eacute considerado uma das piores
formas de exploraccedilatildeo do trabalho infantil (OIT) Disponiacutevel em httpg1globocombom-dia-
brasilnoticia201505policia-do-para-investiga-anuncios-para-criancas-trabalharem-como-babahtml
Acessado em 03-07-2015 398
GOMES Acircngela Maria de Castro Burguesia e trabalho poliacutetica e legislaccedilatildeo social no Brasil 1917-
1937 Rio de Janeiro Campus 1979 399
Rita C V Rosa examinando a relaccedilatildeo entre patroas e empregadas domeacutesticas ressaltou que apesar do
conviacutevio aparentemente harmonioso e de afeto havia uma relaccedilatildeo hieraacuterquica que definia o papel e a
posiccedilatildeo de cada uma das partes ROSA Rita de Caacutessia Vianna ldquoA General das Letrasrdquo a literata
138
natildeo havia a preocupaccedilatildeo com a formaccedilatildeo escolar dessas meninas uma vez que para
uma parcela expressiva dos setores dominantes elas jaacute estavam sendo preparadas para o
papel que se esperava principalmente das mulheres pobres de serem boas donas de
casa esposas e matildees
Dos 239 processos analisados em 40 (1674) houve a menccedilatildeo de soldadas ou
de pagamento pelos serviccedilos prestados pelos ldquomenoresrdquo Dessa parcela 27 (675) se
referiam a meninas e 13 (325) a meninos Provavelmente boa parte dessas
ldquomenoresrdquo senatildeo todas foram destinadas ao trabalho domeacutestico Com relaccedilatildeo aos
meninos creio que foram encaminhados para os trabalhos ligados agrave lavoura Os 13
ldquomenoresrdquo foram tutelados ou dados a soldadas para lavradores ou fazendeiros A faixa
etaacuteria das 27 meninas variou entre 5 a 19 anos de idade e a dos meninos entre 5 e 15
anos
Segundo Kaacutetia Mattoso as crianccedilas escravas entre sete-oito anos de idade jaacute
comeccedilavam a exercer atividades na qualidade de aprendizes era o periacuteodo de transiccedilatildeo
dos escravos para a vida adulta400
A inserccedilatildeo de crianccedilas escravas no mundo do
trabalho a partir dos oito anos tambeacutem eacute ressaltada por Sandra L Graham que assinala
que era costume dos proprietaacuterios de escravos terem manciacutepios entre oito e doze anos
como aprendizes de serviccedilos domeacutesticos Apoacutes a aboliccedilatildeo da escravidatildeo as classes
dominantes passaram a empregar meninas de dezdoze anos em razatildeo dos salaacuterios
baixos ou pelo fato de poderem apenas fornecer roupas e o aprendizado de um ofiacutecio401
Presumo que essa faixa etaacuteria de iniciaccedilatildeo profissional tambeacutem possa ser aplicada ao
caso dos ldquomenoresrdquo desvalidos (afro-americanos nacionais e imigrantes)
Atraveacutes da documentaccedilatildeo compulsada foi possiacutevel observar que a forccedila de
trabalho de crianccedilas de bem pouca idade foi utilizada na ldquoManchester Mineirardquo natildeo
apenas nas faacutebricas mas tambeacutem nas residecircncias das classes dominantes O processo de
tutela da ldquomenorrdquo Isolina eacute um bom exemplo disso
Em 24 de abril de 1896 o Escrivatildeo de Oacuterfatildeos Ignacio Ernesto N da Gama
comunicou ao Juiz a necessidade de se dar tutor agrave menina Isolina de 5 anos de idade
filha da falecida liberta Antocircnia solteira O representante do judiciaacuterio indicou para o
cargo o Major Guilherme Justino Halfeld que era ldquopessoa idocircneardquo e assinalou que a
ldquomenorrdquo natildeo possuiacutea ldquobens de qualquer especierdquo O juiz de Direito Josino de Alcacircntara
Cosette de Alencar e a ldquosuardquo cidade ndash Juiz de Fora (MG) 1918 a 1973 Tese de Doutoramento Niteroacutei
UFF 2013 p 43-46 Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 236-239 400
MATTOSO Kaacutetia Queiros Op cit 1988 p 39-43 401
GRAHAM Sandra Lauderdale Op cit 1992 p 35-36
139
Arauacutejo concordou com a indicaccedilatildeo do cidadatildeo de que deveria ser intimado para assinar
o ldquotermo de responsabilidade com as obrigaccedilotildees do estylo independente de soldada ateacute
a edade de 12 annosrdquo Trecircs dias apoacutes a comunicaccedilatildeo da situaccedilatildeo da menina o cidadatildeo
Guilherme Justino Halfeld assinou a tutela com a obrigaccedilatildeo de zelar por sua ldquopessocirca e
bens e dandolhe (sic) educaccedilatildeo compatiacutevel com a sua condiccedilatildeo de que daraacute contas em
Juizo e tendo seus serviccedilos em troca ateacute que complete doze anos ou desta data a sete
anos []rdquo402
Foi dado um tutor dativo para a oacuterfatilde Isolina mas natildeo teria ela algum parente nas
condiccedilotildees de assumir o encargo Avoacutes Tios Irmatildeos Possivelmente a infacircncia dessa
menina foi como a de tantas outras crianccedilas pobres marcada pelo trabalho submissatildeo e
humilhaccedilatildeo
Ao assinar o termo o tutor se comprometeu a dar educaccedilatildeo ldquocompatiacutevelrdquo com a
condiccedilatildeo da ldquomenorrdquo em suma o aprendizado de um ofiacutecio e a educaccedilatildeo elementar
uma vez que essa era a educaccedilatildeo destinada agraves classes pobres Entretanto haacute a
possibilidade de Isolina natildeo ter recebido instruccedilatildeo escolar pois eacute comum na
documentaccedilatildeo examinada as ldquomenoresrdquo natildeo saberem ler e escrever Enquanto
propunha-se para as mulheres dos setores dominantes uma formaccedilatildeo educacional que
lhes possibilitassem ser boas matildees esposas educadoras dos filhos e com haacutebitos
burgueses de ldquoboas maneirasrdquo para as dos estratos sociais subalternos visava-se uma
educaccedilatildeo voltada para o trabalho ndash para a formaccedilatildeo de uma matildeo de obra submissa e
disciplina ndash e com um forte cunho moral que as afastassem do mundo da vadiagem e da
prostituiccedilatildeo403
Maria Cristina S de Gouvecirca em seu estudo sobre a escolarizaccedilatildeo
feminina no seacuteculo XIX assinala que natildeo havia muito interesse da famiacutelia e dos
responsaacuteveis com a educaccedilatildeo das meninas pobres Esse desinteresse estava relacionado
a diversos fatores entre os quais o auxiacutelio que as ldquomenoresrdquo deveriam prestar nas
atividades domeacutesticas remuneradas ou natildeo e aos ldquopapeis sociais destinados agrave mulher
adulta que natildeo demandavam o acesso a instruccedilatildeo elementarrdquo404
Associada a essa visatildeo
estava a argumentaccedilatildeo dos pais de que necessitavam do trabalho das filhas no serviccedilo
domeacutestico ou fabril o que contribuiacutea ainda mais para afastaacute-las dos bancos escolares
402
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos Relativos agrave accedilatildeo de Tutela Menor Isolina Data 27-
04-1896 Caixa 5 processo 1 403
Cf NEDER Gizlene ldquoFamiacutelia poder e controle social concepccedilotildees sobre famiacutelia no Brasil na
passagem agrave modernidaderdquo Op cit 2007 p14-15 MARCILIO Maria Luiza Histoacuteria Social da crianccedila
abandonada 2 ed Satildeo Paulo Hucitec 2006 p 175-177 RAGO Margareth Do cabareacute ao lar a utopia
da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista Brasil 1890-1930 4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 p
88-91 404
GOUVEcircA Maria Cristina Soares de Op cit 2004 p 203-205
140
Com relaccedilatildeo agrave utilizaccedilatildeo da forccedila de trabalho de Isolina o Juiz determinou que a
partir dos 12 anos de idade a ldquomenorrdquo deveria passar a receber uma soldada mas ateacute
completar a idade estipulada ela iria compensar o tutor pela sua criaccedilatildeo com trabalho
Nos sete anos de criaccedilatildeo a ldquomenorrdquo seria preparada para os serviccedilos domeacutesticos do lar
do capitatildeo Guilherme Justino Halfeld Provavelmente Isolina experimentou pouco dos
prazeres da infacircncia sendo os seus brinquedos as panelas os tachos a lenha as tinas e
vassouras e suas professoras as outras criadas da residecircncia desse cidadatildeo
Depois da assinatura do termo de tutela segundo Ana Cristina Bastos e Moyseacutes
Kuhlmann JR os juiacutezes pouco sabiam sobre as condiccedilotildees dessas crianccedilas Os
magistrados soacute voltavam a ter alguma informaccedilatildeo sobre os ldquomenoresrdquo nos casos de
denuacutencias de maus-tratos comunicados de fugas dos pupilos renovaccedilatildeo do contrato de
soldada entre outras questotildees405
Sendo assim eacute viaacutevel supor que muitas crianccedilas como
no caso de Isolina que deveria ter a sua soldada estipulada anos depois do
estabelecimento do viacutenculo tutelar nunca tenham gozado desse direito
Com relaccedilatildeo ao pagamento das soldadas em alguns processos de tutelas haacute a
denuacutencia de que o tutor natildeo estava efetivando o pagamento dos soldos dos ldquomenoresrdquo
que deveriam ser depositados (cofres dos menores ou na Caixa Econocircmica Estadual)
conforme o Juiz estipulasse (trimestral semestral anualmente) O natildeo cumprimento do
pagamento da soldada pelos tutores pode ser observado na accedilatildeo de tutela da ldquomenorrdquo
Lucrecia de 10 anos filha da ex-escrava Sophia falecida O tutor Antonio Caiafa
assinou a tutela em 1892 e em 1896 foi intimado a comparecer com a ldquomenorrdquo em juiacutezo
para ser arbitrada uma soldada para mesma Em abril de 1897 Lucrecia declarou que
natildeo havia ldquorecebido remuneraccedilatildeo de seus serviccedilosrdquo406
Tenho argumentado que a tutela foi uma estrateacutegia utilizada por setores das
classes dominantes na transiccedilatildeo do trabalho escravo para o livre de controle e
manutenccedilatildeo da matildeo de obra infantil por baixos salaacuterios ou gratuitamente Apesar dos
baixos valores das soldadas houve tutores que procuraram burlar a lei ou recorreram
para natildeo realizar o pagamento Um exemplo eacute o caso do ldquomenorrdquo Benvindo de 10 anos
de idade filho da liberta Romana que foi tutelado por Militatildeo Honoacuterio Rodrigues
lavrador em Satildeo Joseacute do Rio Preto em janeiro de 1889 No decorrer do processo houve
a solicitaccedilatildeo de apreensatildeo do ldquomenorrdquo por causa das fugas da casa de seu tutor Em
405
BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 56-57 406
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Lucrecia Data 09-
02-1892 Caixa 101
141
1896 o Promotor de Justiccedila Alvaro Macedo Guimaratildees alegou que apesar de os
serviccedilos do ldquomenorrdquo serem remunerados o tutor natildeo havia mandado ldquoensinar-lhe a ler e
escreverdquo e considerou o valor da soldada insignificante Assim foi arbitrada uma nova
soldada O tutor solicitou a sua exoneraccedilatildeo do cargo por provaacuteveis motivos de sauacutede e
pelo fato de o ldquomenorrdquo que jaacute estava com 18 anos de idade natildeo permanecer em sua
companhia e ldquosob o [seu] governordquo Com a alegaccedilatildeo de que Benvindo fugia e
ausentava-se constantemente o tutor requereu que natildeo fosse obrigado a fazer o
pagamento das soldadas no periacuteodo de 1895 a 1897 pois nesse periacuteodo o seu pupilo natildeo
havia lhe prestado serviccedilos O pedido foi indeferido e Militatildeo Honoacuterio Rodrigues ficou
responsabilizado pelo pagamento de ldquotodas as soldadas compreendidas no tempo da
tutela ateacute o dia em que eximiu-serdquo em 1898 pois segundo o parecer do judiciaacuterio se o
pupilo fugia e natildeo prestava os serviccedilos ldquoera por falta de cuidados do tutorrdquo407
No processo de tutela de Benvindo observa-se o descumprimento do tutor da
obrigaccedilatildeo de mandar o pupilo a aprender a ler e escrever e a baixa remuneraccedilatildeo pelos
serviccedilos prestados As ditas ldquofugasrdquo e ldquoausecircnciasrdquo do ldquomenorrdquo podem ser interpretadas
como uma forma de reaccedilatildeo agraves condiccedilotildees de trabalho e de sobrevivecircncia impostas pelo
tutor O poder judiciaacuterio ao que tudo indica nesse caso fez valer os interesses e
direitos do ldquomenorrdquo ao determinar o pagamento das soldadas devidas
Segundo Ana Cristina Bastos e Moyseacutes Kuhlmann JR os valores das soldadas
eram estipulados de acordo com a idade e o sexo dos ldquomenoresrdquo Conforme pude apurar
na documentaccedilatildeo compulsada os valores das soldadas eram baixos As soldadas
estipuladas para as ldquomeninasrdquo variaram de dois mil reacuteis a quinze mil reacuteis mensais e a
dos meninos de cinco mil reacuteis a 25 mil reacuteis mensais
O estabelecimento de contratos de soldadas em alguns casos foram alvos de
disputas entre os pretendentes Os baixos salaacuterios pagos a essas crianccedilas deveria se
afigurar como um atrativo para os setores dominantes O processo de tutela dos
ingecircnuos Sebastiatildeo e Fortunato de 6 e 13 anos de idade respectivamente filhos da
liberta Maria solteira ex-escrava de Dominciano Joseacute Lopes moradora no distrito de
Vargem Grande eacute um bom exemplo Em 28 de maio de 1888 os ldquomenoresrdquo solicitaram
que lhes fosse nomeado um tutor pois apesar da promulgaccedilatildeo da lei de 13 de maio
eles permaneciam no ldquoserviccedilo de seu ex-senhor que os maltratardquo A matildee dos meninos
encontrava-se trabalhando para outro proprietaacuterio A peticcedilatildeo foi realizada pelo
407
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Benvindo Data 16-
11-1888 Caixa 100
142
advogado Joatildeo Severiano da Fonseca a rogo dos meninos que natildeo sabiam escrever O
juiz nomeou para o cargo de tutor Antonio Joseacute dos Santos Nazareth
Atraveacutes da peticcedilatildeo dos irmatildeos Fortunato e Sebastiatildeo eacute provaacutevel supor que
muitos ingecircnuos tenham permanecido sob o poder dos antigos senhores de suas matildees ou
pais Conjecturo que uma parcela dos libertos logo apoacutes aboliccedilatildeo do trabalho escravo
sem recursos e meios de sobrevivecircncia tenham deixado seus rebentos nas unidades em
que haviam sido cativos com ex-companheiros de cativeiro ou com algum parente ateacute
conseguirem se estabelecer com emprego e residecircncia Essa provaacutevel estrateacutegia dos ex-
escravizados pode ter contribuiacutedo para que muitos proprietaacuterios tenham se aproveitado
de tal situaccedilatildeo para solicitarem a tutela dessas crianccedilas sob a alegaccedilatildeo de que elas
haviam sido abandonadas que as matildees haviam se ldquodesmandadordquo estavam vivendo na
prostituiccedilatildeo
Como em outros processos de tutelas foram constantes as fugas dos irmatildeos
Fortunato e Sebastiatildeo da residecircncia do tutor Em uma peticcedilatildeo de 1894 comunicando a
fuga dos pupilos o tutor solicitou a apreensatildeo dos mesmos e que fosse arbitrada uma
soldada O promotor de justiccedila Afracircnio Mello Franco natildeo se opocircs agrave soldada
ressaltando entretanto que ela deveria ser ldquoregulada pela idade agilidade preacutestimos dos
oacuterphatildeos pela qualide do serviccedilo etcrdquo e que deveriam ldquoser preferidos os lavradoresrdquo
Aleacutem dessas ponderaccedilotildees o promotor ainda asseverou que se deveria mandar ensinar a
ler e escrever caso fossem analfabetos bem como o aprendizado de um oficio para o
qual tivessem vocaccedilatildeo Assim o juiz determinou que o tutor indicasse uma pessoa
idocircnea para assinar o contrato de soldada sendo entatildeo indicado o fazendeiro Nicolau
Kennitz Cappelli Nesse iacutenterim o fazendeiro Raphael [Gelhioti] tambeacutem se dispocircs a
assinar o contrato de locaccedilatildeo de serviccedilo dos ldquomenoresrdquo alegando que a matildee dos
mesmos era colona em sua fazenda e desejava ter os filhos proacuteximos de si [Gelhioti]
acrescentou ainda que os meninos fugiam constantemente para a sua propriedade para
ficarem com a matildee Ambos os pretendentes apresentaram suas propostas para a
assinatura do contrato Os valores dos salaacuterios propostos foram os mais altos que
encontrei na documentaccedilatildeo examinada [Gelhioti] comprometeu-se a pagar vinte mil
reacuteis mensais para Fortunato e oito mil reacuteis mensais para Sebastiatildeo enquanto Cappelli
ofereceu pelos serviccedilos dos jovens a quantia de vinte e cinco e doze mil reacuteis mensais
respectivamente A proposta aceita foi a de Cappelli O tutor solicitou que os ldquomenoresrdquo
fossem apreendidos pois estavam haacute mais de cinco meses na propriedade de [Gelhioti]
143
No processo consta apenas a assinatura do contrato de Sebastiatildeo pois Fortunato havia
fugido novamente
Se para algumas famiacutelias dos estratos sociais subalternos a tutela de seus filhos
representou problemas foi motivo para disputas judiciais com os tutores pela guarda
dos ldquomenoresrdquo Para outras creio que tenha representado uma alternativa de dar um
futuro melhor para suas crianccedilas ou tenha sido a uacutenica possibilidade visualizada para
natildeo deixaacute-los ao abandono nas ruas como presas faacuteceis para a delinquecircncia e a
criminalidade
Seacutergio C Fonseca argumenta que nas cidades em que natildeo havia instituiccedilotildees para
abrigar as ldquocrianccedilas oacuterfatildes abandonadas ou cujos pais natildeo podiam cuidar delas []rdquo a
tutela se mostrou como um mecanismo empregado para ldquoremediarrdquo tal problema408
Como foi analisado no primeiro capiacutetulo a cidade de Juiz de Fora nos anos finais do
seacuteculo XIX e nas primeiras deacutecadas do XX natildeo contou com uma instituiccedilatildeo para
abrigar meninos abandonados oacuterfatildeos ou que os pais natildeo tinham condiccedilotildees de criaacute-los e
educaacute-los Assim concordo com o autor quanto agrave tutela ter sido utilizada como uma
medida paliativa pelos setores dominantes para ldquoremediarrdquo a questatildeo do ldquomenorrdquo
abandonado e oacuterfatildeo
Dentro dessa perspectiva a tutela pode ser interpretada como uma via de matildeo
dupla utilizada tanto pelos setores dominantes quanto pelas classes subalternas Para os
primeiros representava um mecanismo de controle de uma parcela da matildeo de obra a
baixo custo ou gratuitamente e para os segundos uma possibilidade de natildeo deixar os
filhos entregues ao abandono pelas ruas das cidades A esse respeito E P Thompson
assinala que ldquoa estrutura em qualquer relaccedilatildeo entre ricos e pobres sempre corre em
matildeo dupla e essa mesma relaccedilatildeo quando girada e vista em perspectiva inversa pode
expor uma heuriacutestica alternativardquo409
O estabelecimento do viacutenculo tutelar nos municiacutepios que natildeo contavam com
instituiccedilotildees para abrigar os ldquomenoresrdquo desvalidos abandonados oacuterfatildeos e que os pais natildeo
tinham condiccedilotildees de criaacute-los ao que tudo indica ainda era considerado pelas classes
dominantes como uma accedilatildeo social ou um gesto de caridade que visava retiraacute-los das
ruas e transformaacute-los em cidadatildeos uacuteteis agrave paacutetria Em alguns processos os peticionaacuterios
ou indicados para tutor colocavam a funccedilatildeo como ldquoespinhosardquo ou como um ldquoocircnusrdquo e
408
FONSECA Seacutergio C ldquoA infacircncia nos autos de tutela da comarca de Ribeiratildeo Preto (1889-1917)rdquo
Anais do XXI Encontro Estadual de Histoacuteria ndash ANPUH ndash Campinas setembro 2012 sp 409
THOMPSON E P As peculiaridades dos ingleses e outros artigos Campinas (SP) Editora da
Unicamp 2001 p 246
144
que se dispunham a assumi-la para o bem da crianccedila e da paacutetria Entretanto esse
discurso da necessidade de se dar tutor para ldquosalvarrdquo o ldquomenorrdquo e a sociedade tambeacutem
foi utilizado pelas classes subalternas para dar um encaminhamento para seus entes
Assim em abril de 1888 Carlos Albino dos Passos solicitou que fosse dado tutor a seu
neto ldquomenorrdquo Alberto filho natural de Minelvina Cacircndida dos Passos falecida com a
seguinte justificativa
[] aproveitando-se de seu estado valetudinario e de achar-se o Suppte
paralytico natildeo queacuter dedicar-se a trabalho ou officio algum vivendo pelas
ruas desta cidade em companhia de outros menores vagabundos o suppt no
intuito de prestar um acto de caridade ao dito menor e um serviccedilo aacute
sociedade vem requerer a VSordf que se [] nomear tutor ao mesmo menor []
o supplet sendo pobre e aleyjado e vivendo da caridade publica como eacute
publico e notorio nesta cidade e se vecirc pelos attestados juntos []410
O avocirc de Alberto utilizou-se do discurso dominante para solicitar um
encaminhamento para o seu neto oacuterfatildeo ou seja a valorizaccedilatildeo do trabalho a caridade ou
preocupaccedilatildeo com o futuro do ldquomenorrdquo e da sociedade A nomeaccedilatildeo de um tutor para
esse jovem foi colocada como importante para livraacute-lo da vadiagem bem como a naccedilatildeo
de problemas futuros com um adulto indisciplinado e vadio Apesar de o texto ter sido
redigido a rogo do suplicante Carlos Albino dos Passos por natildeo ldquopoder escreverrdquo por
estar ldquosem movimento em ambas as pernas e matildeosrdquo esse homem desvalido recorreu aos
meios legais provavelmente com o objetivo de proporcionar um futuro melhor para o
seu neto
Durante o processo de constituiccedilatildeo de mercado de trabalho livre na sociedade
brasileira deu-se a construccedilatildeo da ideia do trabalho como algo positivo regenerador e
dignificante e no mesmo compasso ocorreu tambeacutem a elaboraccedilatildeo do conceito de
vadiagem Dentro desse contexto o natildeo trabalho passou a ser classificado como uma
ameaccedila agrave sociedade e agrave ordem O oacuteciovadiagem era associado agrave depravaccedilatildeo dos
costumes e da moral ao crime agrave corrupccedilatildeo e portanto deveria ser reprimido411
No processo de tutela do ldquomenorrdquo Mariano de 14 anos de idade filho de
Joaquina Maria de Jesus morador no distrito de Satildeo Sebastiatildeo de Chaacutecara o discurso
do natildeo trabalho associado agrave ociosidade vadiagem e crime tambeacutem se fez presente Em
410
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Alberto Data 21-
04-1888 Caixa 100 411
CHALHOUB Sidney Trabalho lar e botequim o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da
belle eacutepoque 2 ed Campinas (SP) Editora da Unicamp 2001 p 73-77 NEDER Gizlene Discurso
Juriacutedico e ordem burguesa no Brasil Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1995 p 18-19 52-53
145
julho de 1890 Joaquina Maria solicitou a nomeaccedilatildeo de um tutor para seu filho que
havia fugido de sua casa e achava-se no distrito de Aacutegua Limpa412
sem trabalho e em
ldquocompleto estado de ociosidade e por isso caminhando para a vagabundagem e viacutecios
aleacutem de deixar a suppte em completo estado de abandonordquo Joaquina Maria ainda
salientou que era velha e aleijada e que era sustentada pelo ldquomenorrdquo e que a fuga teria
decorrido da ldquoinsinuaccedilatildeo de Joatildeo da Silva Lagerdquo413
Com o discurso da vadiagem e do crime a matildee solicitou um tutor para zelar pela
pessoa de seu filho para que o mesmo natildeo se entregasse agrave ldquoperdiccedilatildeordquo Um dado
relevante nesse processo eacute o fato de a matildee declarar que era ldquosustentadardquo pelo filho o
que leva a crer que o ldquomenorrdquo exercia alguma atividade que possibilitava o seu proacuteprio
sustento e o de sua genitora Mas o que teria levado Mariano a fugir da casa de sua
matildee Maus-tratos Exploraccedilatildeo Teria Joatildeo da Silva Lage com suas ldquoinsinuaccedilotildeesrdquo
prometido algum contrato de trabalho vantajoso para o ldquomenorrdquo no distrito de Aacutegua
Limpa Joaquina Maria estaria realmente preocupada com o futuro de seu filho ou
apenas com a sua sobrevivecircncia garantida ao que tudo indica pelos trabalhos ou
biscates realizados pelo ldquomenorrdquo
Na documentaccedilatildeo consultada casos de violecircncia de pais contra os filhos foram
identificados Em novembro de 1895 o delegado de poliacutecia Luiz Alves comunicou ao
Juiz de Direito que havia apreendido a menina Juacutelia de quatro para cinco anos de idade
por ter sido ldquobarbaramente espancada por seu pairdquo tendo as costas em chagas O pai da
ldquomenorrdquo segundo o delegado havia se mudado do municiacutepio ou seja estava
foragido414
A tutela de Juacutelia foi assinada pelo major Joaquim Nogueira Jaguaribe
marido da senhora Maria Luiacutesa a Inhaacute Luiacutesa avoacute do memorialista Pedro Nava Na
epiacutegrafe que abre esse capiacutetulo Nava relata sobre as condiccedilotildees de vida das meninas as
ldquocriasrdquo na casa de sua avoacute sobre os castigos fiacutesicos as palmatoacuterias [] A dar creacutedito
aos relatos de Nava a vida de Juacutelia na casa dos Jaguaribes provavelmente natildeo foi
isenta de castigos e agressotildees
412
O distrito de Aacutegua Limpa foi criado pelo decreto estadual no 158 de 31-07-1890 e Lei Estadual n 2
de 14-09-1891 subordinado ao municiacutepio de Juiz de Fora Em 1948 o distrito passou a denominar-se
Coronel Pacheco (Lei Estadual n 336) e em 1962 foi elevado a categoria de municiacutepio mantendo a
denominaccedilatildeo de Coronel Pacheco (lei Estadual 2764 de 30-12-1962) Disponiacutevel em
httpwwwcidadesibgegovbrpainelhistoricophplang=ampcodmun=311960ampsearch=minas-
gerais|coronel-pacheco|infograficos-historico Acessado em 28-11-2014 413
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Mariano Data 24-
07-1890 Caixa 04 Processo 11 414
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Juacutelia Data 13-11-
1895 Caixa 101
146
Nos jornais os supostos casos de agressotildees dos pais contra os filhos tambeacutem
foram denunciados Em 30 de janeiro de 1900 com o tiacutetulo ldquoPai desnaturadordquo O
Pharol noticiou o espancamento de um ldquomenorrdquo de 14 anos de idade por seu pai no
distrito de Rosaacuterio que culminou no falecimento do mesmo A mateacuteria solicitava
providecircncias do delegado de poliacutecia415
No mesmo perioacutedico e data foi ainda publicado
que a ldquopretardquo Clementina havia sido admoestada pelo delegado de poliacutecia pelo fato de
ter o ldquocostume de maltratar o seu filhordquo Em 24 de janeiro de 1911 o mesmo jornal O
Pharol relatou que havia uma casa na Rua Fonseca Hermes onde uma crianccedila era
constantemente espancada ldquopor seus pais ou coisa que os valhardquo A reportagem
solicitava uma providecircncia da poliacutecia e ressaltava que o fato lhes havia sido denunciado
pela vizinhanccedila que estava comovida e indignada com tal situaccedilatildeo416
Os vizinhos
possuem um papel importante nas denuacutencias de maus tratos infligidos agraves crianccedilas pelos
pais e ou parentes nos comunicados agraves autoridade sobre a presenccedila de ldquomenoresrdquo em
casas de prostituiccedilatildeo tabernas entre outras situaccedilotildees Segundo Arlette Farge e Michel
Foucault a vizinhanccedila eacute um componente importante nos estudos sobre as relaccedilotildees
familiares pois os casais e ou as pessoas natildeo vivem sozinhos ou seja satildeo observados
constantemente pelos vizinhos417
E satildeo eles que em determinadas situaccedilotildees podem com
seus testemunhos esclarecer fatos resguardar a honra de uma meninamoccedila livrar
crianccedilas de situaccedilotildees de abusos e maus tratos entre outras questotildees418
Eacute provaacutevel que as agressotildees fiacutesicas os maus-tratos e a exploraccedilatildeo tenham sido e
ainda satildeo as causas de fugas de muitas crianccedilas dos lares de seus pais familiares ou
tutores As ruas para esses ldquomenoresrdquo poderiam (podem) significar liberdade
solidariedade e autonomia
A questatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo tambeacutem suscitou problemas entre tutor e
pupilo e em alguns casos foi motivo para o pedido de exoneraccedilatildeo do cargo Segundo
Ana Cristina do C L Bastos e Moyseacutes Kuhlmann JR a falta de afetividade entre tutor
415
AHUFJF ldquoPai desnaturadordquo O Pharol 30 jan 1900 p 1 416
AHUFJF O Pharol 24 jan 1911 p 1 417
FARGE Arlette FOUCAULT Michel Op cit 1982 p 35-36 418
Carolina Neder em seu estudo sobre as operaacuterias da ldquoManchester Mineirardquo (1890-1954) analisou entre
outros o caso de ldquoseduccedilatildeordquo e ldquoviolecircncia carnalrdquo da ldquomenorrdquo Augusta de Souza Outeiro de 20 anos de
idade operaacuteria da faacutebrica de tecidos Satildeo Joatildeo no ano de 1917 Segundo a autora o que pesou a favor da
ldquomenorrdquo no processo que moveu contra o noivo Francisco Pereira foi o fato de seus vizinhos entre eles
ldquomuitos homensrdquo terem assinalado em seus testemunhos que Augusta era uma ldquomenina honesta e seacuteriardquo
Assim os testemunhos da vizinhanccedila da ofendida foram fundamentais na decisatildeo do caso pelo poder
judiciaacuterio a favor da ldquomenorrdquo NEDER Carolina Barbosa Memoacuterias que natildeo se apagam o cotidiano de
lutas das operaacuterias na Manchester Mineira (1890-1954) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Juiz de Fora UFJF
2010 p 80-81
147
e tutelado pode ser apreendida nos processos em que haacute a solicitaccedilatildeo do tutor para ser
liberado do encargo Os autores ressaltaram que Evaristo de Moraes na obra ldquoCreanccedilas
abandonadas creanccedilas criminosasrdquo de 1900 jaacute havia alertado para o fato de que com
relaccedilatildeo aos oacuterfatildeos a preocupaccedilatildeo primeira era em estabelececirc-los no exerciacutecio de uma
atividadeocupaccedilatildeo e natildeo em inseri-los no seio de uma famiacutelia em que houvesse a
possibilidade de relaccedilotildees de afetividade419
Segundo Evaristo de Moraes natildeo eram as
pessoas ldquo[] mais dotadas de afetividade familiar as que encomendavam nos cartoacuterios e
aos juiacutezes esses creadinhos baratosrdquo420
A tutela da ldquomenorrdquo Sebastiana dos Reis demonstra o provaacutevel surgimento de
tensatildeo entre tutor e pupila relacionado agrave questatildeo do trabalho Em 2 de novembro de
1912 o farmacecircutico Antonio da Silva Vianna casado residente na Rua de Satildeo Mateus
solicitou a tutela da menina Sebastiana dos Reis de nove anos de idade filha legiacutetima
de Joseacute dos Reis falecido e de D Thereza dos Reis Segundo informaccedilotildees da peticcedilatildeo a
ldquomenorrdquo
[] foi entregue ao suppte com 3 annos de edade por occasiatildeo do
fallecimento do seu pae Jose dos Reis isto espontaneamente pela propria matildee
Dordf Thereza dos Reis que allegando achar-se sem recurso para manter e
educar a referida sua filha entregou-a ao suppte na qualidade de padrinho
para esse ficar tendo tido o mesmo procedimento com as demais filhas em
numero de 3 que tambem entregou aos padrinhos e amigos Acontece agora
que a mesma Dordf Thereza exige do suppte a entrega da referida menor por
isso vem com o devido respeito requerer a V Excia a sua nomeaccedilatildeo de tutor
da mesma menor visto continuar sua matildee sem os necessarios recursos para
mantel-a e educal-a []421
Ao que tudo indica a matildee da ldquomenorrdquo entregou as filhas ldquopara os padrinhos e
amigosrdquo quando se encontrava em uma situaccedilatildeo econocircmica desfavoraacutevel logo apoacutes o
falecimento de seu marido com vaacuterias crianccedilas para sustentar Quando a menina
Sebastiana foi entregue ao padrinho contava apenas com trecircs anos de idade sendo
apenas ldquoconsumidorardquo ou seja ainda natildeo podia contribuir com as despesas domeacutesticas
Entretanto quando D Thereza dos Reis retorna requerendo a guarda Sebastiana jaacute
estava com nove anos de idade ou seja poderia exercer atividades que auxiliariam nos
419
BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 58 420
MORAES A Evaristo de Creanccedilas abandonadas creanccedilas criminosas Typografia Moraes 1900
Apud BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 58 421
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Sebastiana dos
Reis Data 02-12-1912 Caixa 06 Processo 1
148
gastos domeacutesticos jaacute era ldquoprodutorardquo422
Com relaccedilatildeo agraves irmatildes da ldquomenorrdquo que o
peticionaacuterio declarou que haviam sido entregues para os pais espirituais e amigos
provavelmente tambeacutem estavam em uma faixa etaacuteria que natildeo poderiam ajudar nas
despesas familiares quando a matildee as deixou
Foram arroladas duas testemunhas para deporem sobre as alegaccedilotildees do
peticionaacuterio o farmacecircutico Antonio da Silva Vianna Em seus depoimentos as
testemunhas confirmaram que a matildee de Sebastiana a havia entregado ao seu padrinho
de batismo bem como outros filhos para pessoas diversas Disseram que Dordf Thereza
continuava a natildeo ter recursos para cuidar de sua prole era dada ao viacutecio da embriaguez
e natildeo tinha a ldquohonestidaderdquo necessaacuteria para cuidar da menina que era bem tratada na
casa de seu padrinho Uma das testemunhas declarou que natildeo sabia se a ldquomenorrdquo estava
aprendendo a ler e escrever
A desqualificaccedilatildeo da matildeemulher pobre foi uma caracteriacutestica observada nas
fontes consultadas Com o discurso da imoralidade e do viacutecio das genitoras das crianccedilas
desvalidas e ou oacuterfatildes setores das classes dominantes conseguiram a guarda de crianccedilas
que creio que em sua maioria transformaram-se nos denominados ldquocreadinhos baratosrdquo
por Evaristo de Moraes
Assim a tutela de Sebastiana dos Reis foi concedida ao farmacecircutico Antonio da
Silva Vianna apenas um mecircs apoacutes a solicitaccedilatildeo No termo de tutela o suplicante se
comprometeu a cuidar da educaccedilatildeo da menina ldquoensinando-lhe a ler e escreverrdquo A matildee
da ldquomenorrdquo estava vivendo na comarca de Viccedilosa Minas Gerais
Antonio da Silva Vianna apoacutes cinco anos como tutor de Sebastiana solicitou
em fevereiro de 1917 a sua exoneraccedilatildeo do cargo com a alegaccedilatildeo de
[] natildeo podendo mais continuar como tutor da mesma por essa natildeo querer
sujeitar-se ao trabalho tornando-se mmo
insuportavel por isso vem requerer a
V Exa a exoneraccedilatildeo da dita tutella Entregando essa menor a sua avoacute de bom
comportamento residente no municipio de Viccedilosa e cazo essa natildeo queira
acceitar a menor entreguea a uma famiacutelia honesta423
Os motivos declarados para o pedido de exoneraccedilatildeo datildeo a entender que a
preocupaccedilatildeo fundamental do tutor era com o trabalho que a ldquomenorrdquo poderia oferecer
Poreacutem a suposta recusa da pupila em ldquosujeitar-serdquo agraves tarefas impostas por seu tutor a
422
FARIA Sheila de Castro ldquoA propoacutesito das origens dos enjeitados no periacuteodo escravistardquo In
VENANCIO Renato Pinto (org) Op cit 2010 p 85 423
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de tutela Menor Sebastiana dos
Reis Data 02-12-1912 Caixa 06 Processo 1
149
tornou ldquoinsuportaacutevelrdquo ao ponto de natildeo a querer mais em sua residecircncia Mas quais
seriam os trabalhos que a menina deveria realizar A provaacutevel recusa de Sebastiana em
trabalhar poderia estar relacionada a falta de pagamentos pelos seus serviccedilos O
comportamento da ldquomenorrdquo poderia ser uma maneira de demonstrar a sua insatisfaccedilatildeo
em estar vivendo na casa de seu padrinho-tutor Nesse caso apenas conjecturas podem
ser feitas uma vez que natildeo temos a versatildeo da pupila O Juiz deferiu o pedido do tutor
sem escutar a versatildeo da menina Geralmente o pupilo soacute era ouvido judicialmente em
casos de disputas pela sua guarda ou de denuacutencias de maus-tratos
A esse respeito Ana Cristina do C L Bastos e Moyseacutes Kuhlmann JR salientam
que ao ldquomenorrdquo natildeo era dada a oportunidade de dizer se desejava trocar de tutor se
aceitava o novo pretendente ou indicado e sobre o seu destino As argumentaccedilotildees de
que o tutelado era ldquopreguiccedilosordquo ou ldquodoenterdquo eram comuns nos pedidos para deixar o
cargo de tutor Para os autores esse dado ldquoreforccedila a hipoacutetese de ser o contrato de
serviccedilos o elemento determinante na relaccedilatildeo de tutoriardquo424
Compactuo com a hipoacutetese
de Bastos e Kuhlmann JR de que a questatildeo do trabalho foi primordial nas accedilotildees de
tutelas dos ldquomenoresrdquo desvalidos oacuterfatildeos e abandonados No caso analisado a menina
Sebastiana supostamente recusando-se a realizar as tarefas ordenadas foi motivo para
ser deixada por seu tutor
Na proacutexima parte analisarei os processos de apreensatildeo de ldquomenoresrdquo Essa
documentaccedilatildeo assemelha-se em alguns aspectos agraves tutelas uma vez que seu exame nos
permite observar as disputas pela guarda das crianccedilas entre pais e tutores entre os pais
e ou entre os pais e parentes Muitos autos de tutelas constam pedidos dos tutores ou
dos pais de apreensatildeo dos ldquomenoresrdquo que haviam fugido que estavam vivendo fora do
lar que estavam vagando pelas ruas da cidade entre outros fatores
2 5 APREENSAtildeO DE ldquoMENORESrdquo
Moleques de recado vendedores ambulantes criados e aprendizes as
crianccedilas populares escravas livres nacionais ou estrangeiras exerceram
diversas funccedilotildees na sociedade e teceram com suas matildeos um quinhatildeo da
histoacuteria (Alessandra F Martinez)425
424
BASTOS Ana Cristina do C Lopes KUHLMAN JR Moyseacutes Op cit 2009 p 58 425 MARTINEZ Alessandra Frota Op cit 1997 p 163
150
Os processos de apreensatildeo de ldquomenoresrdquo apresenta uma gama variada de
possibilidade de estudos Essa documentaccedilatildeo permite a observaccedilatildeo das tensotildees e
conflitos entre pais e tutores e entre os familiares pela guarda da crianccedila Outro dado
que essa fonte possibilita que seja analisado eacute a questatildeo da utilizaccedilatildeo da matildeo de obra
infantil Os autos de apreensatildeo estatildeo sob a custoacutedia do Arquivo Histoacuterico de Juiz de
Fora Foram preservados 65 processos dos quais analisei 45 (6923) por se referirem a
crianccedilas das camadas populares426
Do total de 45 documentos examinados 17
(3778) dizem respeito a disputas entre os pais das crianccedilas 19 (4222) satildeo
referentes a disputas entre os pais o pai e ou matildee com outras pessoas da comunidade
ou parentes e os outros 9 (20) devem-se a questotildees variadas como fuga da casa dos
pais por maus tratos por casos de defloramento disputa entre o tutor e um outro
indiviacuteduo ou ao fato de a crianccedila se encontrar em casa de prostituiccedilatildeo
Nos processos em que os pais estatildeo em disputas pela guarda as acusaccedilotildees mais
frequentes quando satildeo relativas agraves matildees eacute a de que as mesmas haviam se
ldquodesmandadordquo ou se entregado agrave vida de prostituiccedilatildeo perdendo a ldquoqualidade de matildee de
famiacuteliardquo427
Poreacutem quando as acusaccedilotildees satildeo desferidas contra o pai geralmente as
alegaccedilotildees satildeo de que o mesmo era dado ao viacutecio da embriaguez possuiacutea maus costumes
e mau comportamento e de que abandonou o lar deixando a famiacutelia ao desamparo
Os processos de apreensatildeo de ldquomenoresrdquo iniciam-se com uma peticcedilatildeo
geralmente dirigida ao Juiz de Direito assinalando que o ldquomenorrdquo fugiu foi raptado foi
levado por seu pai ou matildee ou por outro indiviacuteduo que se encontrava vivendo em casa
de prostituiccedilatildeo vagando pelas ruas etc Alguns processos satildeo mais ricos em detalhes e
informaccedilotildees trazendo a cor dos envolvidos a profissatildeo a nacionalidade etc Poreacutem
outros trazem poucos dados possuem apenas a peticcedilatildeo ou natildeo contecircm a conclusatildeo
Assim eacute necessaacuterio ir costurando as informaccedilotildees os pequenos detalhes para que parte
da histoacuteria dessas crianccedilas e de suas famiacutelias desvalidas possa emergir Para que isso
aconteccedila eacute necessaacuterio seguirmos as ldquopistasrdquo e os ldquorastrosrdquo deixados pelos
subdelegados pelos juiacutezes pelos promotores escrivatildees e tantos outros intermediaacuterios
426
Existem no Arquivo Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora 65 processos de apreensatildeo de menores Deste
total 15 processos satildeo referentes ao periacuteodo de 1877 ateacute 1888 e os outros 5 processos satildeo da deacutecada de
1930 Os 45 processos examinados estatildeo compreendidos no periacuteodo de 1888 a 1922 427
AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de
menores Processo da menor Itaacutelia 1897 cx 04
151
presentes nesses documentos ou seja eacute preciso olhar para as partes ldquoopacasrdquo dos
textos428
Os processos de apreensatildeo examinados perfazem um total de 54 crianccedilas onde
38 (7037) satildeo do sexo feminino e 16 (2963) do masculino As idades variam entre
nove meses de idade a vinte e um anos A grande maioria das crianccedilas envolvidas na
documentaccedilatildeo estaacute compreendida na faixa etaacuteria acima dos sete anos de idade
perfazendo um total de 29 casos (5370) Dos 16 meninos 8 (50) deles possuiacuteam
mais de sete anos 5 (3125) menos de sete anos e em 3 (1875) casos natildeo consta a
idade Com relaccedilatildeo agraves 38 meninas 21(5526) delas foram declaradas com mais de sete
anos 10 (2632) com idade inferior a sete anos e em 7 (1842) casos natildeo apareceu a
idade das envolvidas429
De posse desses dados algumas observaccedilotildees podem ser feitas no que se refere agrave
possibilidade de utilizaccedilatildeo da forccedila de trabalho dessas crianccedilas Essa porcentagem
maior de crianccedilas acima dos sete anos de idade eacute bem sugestiva pois era a idade em que
jaacute podiam comeccedilar a exercer atividades na qualidade de aprendizes era o periacuteodo de
transiccedilatildeo dos escravos para a vida adulta430
Daiacute o interesse maior pelas crianccedilas
compreendidas nessa faixa etaacuteria quando estatildeo aptas a executarem atividades a
aprenderem um ofiacutecio Conjecturo que os pais poderiam estar solicitando a apreensatildeo e
a guarda de seus filhos para poderem empregaacute-los em alguma atividade remunerada
para dessa forma ajudarem na subsistecircncia da famiacutelia Pode-se tambeacutem aventar que os
tutores ou parentes que estavam com a guarda ou as retiraram da posse de seus genitores
poderiam estar utilizando dos serviccedilos dessas crianccedilas
Diversos motivos deram origem agrave abertura dos processos de apreensatildeo de
ldquomenoresrdquo e a questatildeo da presenccedila dessas crianccedilas nas ruas foi um deles O incocircmodo
que esses ldquomenoresrdquo vagando nas ruas da cidade causavam agrave sociedade eacute perceptiacutevel
nos processos Como jaacute foi assinalado neste estudo a presenccedila de meninos nas ruas e
suas provaacuteveis accedilotildees eram motivos de reclamaccedilotildees nos jornais locais e de apreensatildeo das
classes dominantes No processo da menina Altina de doze anos mais ou menos filha
428
GINZBURG Carlo Introduccedilatildeo In O fio e os rastros verdadeiro falso fictiacutecio Satildeo Paulo
Companhia das Letras 2007 p 11-12 GINZBURG Carlo Prefaacutecio agrave ediccedilatildeo italiana In O queijo e os
vermes o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisiccedilatildeo Satildeo Paulo Companhia das
Letras 2006 p 13 429
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de Apreensatildeo de Menores (1877-1938)
cx 04 430
MATTOSO Kaacutetia Queiros (1988) ldquoO filho da escrava (em torno da Lei do Ventre Livre)rdquo In LARA
Silvia Hunold (org) Escravidatildeo Revista Brasileira de Histoacuteria Satildeo Paulo ANPUHMarco Zero v 8 n
16 marago 1988 p 39-43
152
natural da ex-escrava Malvina o Juiz Municipal de Oacuterfatildeos foi comunicado por Martins
Kascher que ela estava vagando pelas ruas da cidade ateacute altas horas da noite e que sua
matildee natildeo possuiacutea condiccedilotildees de educaacute-la e vesti-la por isso deveria ser dado a ela um
tutor431
Eacute possiacutevel que Martins Kascher estivesse realmente interessado na situaccedilatildeo da
menina e por outro lado podemos conjecturar a possibilidade de estar preocupado com
os provaacuteveis problemas que essa ldquomenorrdquo poderia causar no futuro vivendo nas ruas jaacute
que esse espaccedilo era tido como um local de marginalidade e de viacutecios sendo
representado pelo discurso meacutedico como a ldquogrande escola do malrdquo Para os meacutedicos
higienistas era necessaacuterio proteger essa infacircncia desvalida e abandonada que vivia pelas
ruas das cidades e as instituiccedilotildees assistenciais eram apresentadas como o locus
privilegiado para a preservaccedilatildeo dessas crianccedilas432
Com relaccedilatildeo agraves meninas ainda havia a preocupaccedilatildeo com a honra a preservaccedilatildeo
da virgindade e com a formulaccedilatildeo de medidas que impedissem que elas entrassem na
vida de prostituiccedilatildeo A prostituiccedilatildeo era tida pelos higienistas e por outros setores dos
grupos dominantes como um grande mal para a sociedade pois as meretrizes pervertiam
ldquoa moral da mulher-matildeerdquo eram irresponsaacuteveis com ldquoa vida dos filhosrdquo um mau
exemplo para as meninas pobres entre outras questotildees433
Assim era de fundamental
importacircncia incutir nessas meninas haacutebitos higiecircnicos e valores de uma boa conduta
para que futuramente fossem disciplinadas trabalhadoras boas matildees e donas e casas
Para setores das classes dominantes a ldquohonra sexualrdquo das meninas e mulheres era a base
da famiacutelia e da naccedilatildeo Sem esses pilares seria o caos social434
A matildee da ldquomenorrdquo Malvina Maria da Conceiccedilatildeo enviou ao Juiz de Oacuterfatildeos uma
peticcedilatildeo declarando-se pobre e sem ldquomeios de vidardquo para educar sua filha Ela solicitou
que o cidadatildeo Quintiliano Alves Horta Jardim fosse indicado para tutor da menina o
que o Juiz aceitou e convocou o citado cidadatildeo para assumir a guarda de Altina
Para muitas mulheres egressas do cativeiro conseguir ldquomeios de vidardquo natildeo deve
ter sido muito faacutecil e possivelmente muitas delas fizeram a entrega de seus filhos agraves
famiacutelias abastadas na esperanccedila de que seus rebentos pudessem receber alguma
431
AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de
menores Menor Altina 15-10-1890 cx 04 432
RAGO Margareth Op cit 2014 p 160-161 433
COSTA Jurandir Freire Ordem meacutedica e norma familiar 4 ed Rio de Janeiro Ediccedilotildees Graal 1999
p 265-266 434
CAULFIELD Sueann Em defesa da honra moralidade modernidade e naccedilatildeo no Rio de Janeiro
(1918-1940) CampinasSP Ed da UNICAMP 2000 p 26
153
educaccedilatildeo ou apenas tivessem um meio de vida e sobrevivecircncia Na peticcedilatildeo Malvina
requer que seja dada ldquoalguma educaccedilatildeordquo para sua filha Altina possivelmente recebeu
ldquoalguma educaccedilatildeordquo o aprendizado de uma tarefa
A inserccedilatildeo dos ex-escravos no poacutes-aboliccedilatildeo foi perpassada por vaacuterias
dificuldades e uma delas foi a luta para conseguirem ter a guarda de seus filhos Muitos
antigos escravocratas buscaram novos mecanismos de obtenccedilatildeo de matildeo de obra e uma
das estrateacutegias foi recorrer ao viacutenculo tutelar como jaacute foi analisado neste capiacutetulo
As famiacutelias das classes populares eram vistas por alguns segmentos da
sociedade pelo prisma da desorganizaccedilatildeo da imoralidade da embriaguez e da
prostituiccedilatildeo A organizaccedilatildeo familiar dos grupos subalternos da sociedade natildeo coincidia
com o modelo que era esperado pelos meacutedicos higienistas juristas poliacuteticos e
intelectuais ou seja com o modelo burguecircs nuclear higiecircnico e sexualmente
regulado435
Nos meses apoacutes a decretaccedilatildeo da lei Aacuteurea 13 de maio de 1888 vaacuterios senhores
recorreram ao expediente de solicitar a tutela dos filhos de suas antigas cativas com a
alegaccedilatildeo de que elas e ou seus familiares natildeo tinham as condiccedilotildees materiais e morais
para cuidarem de sua prole436
A maioria dos homens e mulheres escravizados saiu do
cativeiro destituiacutedo de bens de terra de educaccedilatildeo e de oportunidades de recomeccedilar a
vida sob os novos padrotildees de trabalho e de vida Muitos senhores provavelmente
aproveitaram-se da falta de meios de vida e de instruccedilatildeo dos antigos escravos para
conseguirem legalmente ou natildeo a guarda de seus filhos
O processo de apreensatildeo do ldquomenorrdquo Antocircnio eacute um bom exemplo das
dificuldades enfrentadas pelos libertos no poacutes-emancipaccedilatildeo e das atitudes arbitraacuterias dos
antigos escravocratas Em dezembro de 1888 o liberto Joatildeo de Lima Teixeira que
havia sido escravo de Luiacutes Calisto Mendes morador no distrito de Chapeacuteu DrsquoUvas do
municiacutepio de Juiz de Fora declarou que teve um filho de nome Antocircnio com a tambeacutem
liberta Jacintha ex-escrava do mesmo senhor Joatildeo de Lima e Jacintha haviam se
casado mas o documento natildeo informa se antes ou depois do 13 de maio O ldquomenorrdquo
tinha seis anos quando da abertura do processo de apreensatildeo Segundo o pai de
435
NEDER Gizlene CERQUEIRA Gisaacutelio (2007) Famiacutelia poder e controle social concepccedilotildees sobre
famiacutelia no Brasil na passagem agrave modernidade In Ideias juriacutedicas e autoridade na famiacutelia Rio de
Janeiro Revan p 14-15 COSTA Jurandir Freire Op cit 1999 p 12-14 Cf NEDER Gizlene
ldquoAjustando o foco das lentes um novo olhar sobre a organizaccedilatildeo das famiacutelias no Brasilrdquo In
KALOUSTIAN Silvio Manoug (org) Famiacutelia Brasileira a base de tudo Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia
DF UNICEF 2011 436
Para mais informaccedilotildees sobre a relaccedilatildeo entre viacutenculo tutelar e controle de matildeo de obra ver o trabalho
de ZERO Arethuza Helena Op cit 2004
154
Antocircnio Eduardo Teixeira de Carvalho um importante proprietaacuterio de Juiz de Fora
aproveitou-se de sua pobreza e ignoracircncia e o ldquofez assinar um contrato obrigatoacuteriordquo em
que o ldquomenorrdquo deveria trabalhar para o proprietaacuterio ateacute a idade de 21 anos sem nada
receber podendo ser castigado Pelo suposto ldquocontratordquo Eduardo Teixeira tambeacutem
tinha o direito de buscar o menino onde quer que ele estivesse Na peticcedilatildeo Joatildeo de
Lima contesta o dito documento pelo fato de que ldquotal contrato natildeo podia fazer por ser
uma espeacutecie de novo cativeiro ainda que por 15 anosrdquo437
Infelizmente no processo natildeo
consta o dito contrato o que impossibilita averiguar se ocorreu antes ou apoacutes a
decretaccedilatildeo da Lei Aacuteurea ou a quantos mesesanos Antocircnio estava em poder de Eduardo
Teixeira de Carvalho Poreacutem pode-se indagar que o liberto Joatildeo de Lima Teixeira tenha
aceitado tal ldquocontratordquo em um momento em que estava sem meios de vida e
sobrevivecircncia e que apoacutes se estabelecer junto com sua esposa em alguma atividade
passando a ter condiccedilotildees de manter seu filho Antocircnio tenha resolvido requerecirc-lo Aleacutem
do mais o menino estava com seis anos de idade ou seja numa faixa etaacuteria muito
proacutexima da que normalmente as crianccedilas das camadas subalternas eram empregadas
para executarem tarefas ou seja a forccedila de trabalho do ldquomenorrdquo poderia ser empregada
em pequenas atividades contribuindo dessa maneira com as despesas de sua famiacutelia
O Juiz de Oacuterfatildeos expediu mandado de apreensatildeo em que Eduardo Teixeira de
Carvalho teria que apresentar o menino e a certidatildeo para que dessa forma fosse ldquodado
destino legalrdquo ao ldquomenorrdquo Ele acatou o mandado poreacutem declarou que soacute poderia
atender a solicitaccedilatildeo apoacutes o dia seis de janeiro de 1889 em diante e que iria
pessoalmente O documento termina dessa forma sem que se possa saber qual foi o
ldquodestino legalrdquo dado a Antocircnio
Esse processo indica que o percurso que os antigos escravos teriam de percorrer
na nova condiccedilatildeo de homens livres nem sempre foi tranquilo e sem problemas Como
se observa eles tiveram de enfrentar adversidades como lutar contra antigos senhores
que buscavam atraveacutes de meios legais ou natildeo manter a posse sobre a forccedila de trabalho
de seus filhos como foi chamado no documento de ldquoum novo cativeirordquo no mundo da
liberdade
Semelhante ao caso relatado anteriormente eacute o de Juvenato de 15 anos de idade
ldquomais ou menosrdquo filho de Justino Lino drsquoOliveira Em junho de 1901 o Dr Virgiacutelio
Fabiano Alves comunicou ao delegado de poliacutecia que era tutor dativo do ldquomenorrdquo e que
437
AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de
menores Menor Antocircnio 31-12-1888 cx 04
155
este havia sido seduzido por um italiano e encontrava-se acoitado na fazenda do Dr
Marcello Bifano situada no distrito de Simatildeo Pereira Segundo o relato do peticionaacuterio
o Dr Marcello Bifano se recusava a entregar o ldquomenorrdquo438
O Dr Virgiacutelio Fabiano Alves se declarou como ldquotutor dativordquo de Juvenato na
peticcedilatildeo enviada ao delegado de poliacutecia e como comprovaccedilatildeo de sua alegaccedilatildeo apresentou
uma ldquoEscriptura e Contracto de entregardquo do ldquomenorrdquo feita por Justino Lino drsquoOliveira
pai do menino Assim constava no documento assinado em 26 de marccedilo de 1890 na
cidade de Ribeiro Preto no Cartoacuterio do Tabeliatildeo Castilho
[] por Justino Justino Lino de Oliveira foi dito que se acha justo e
contratado com o Doutor Virgilio Fabiano Alves de entregar-lhe o seu filho
Juvenato de dois annos de idade podendo ou ficando dito Dr Virgilio com
direito ao trabalho do mesmo e obrigado a sustental-o de tudo quanto
necessitar como seja roupa sustento medico e Botica no caso fique doente
e obrigado mais em tempo suficiente ensinal-o a ler e escrever Pelo dito
Justino foi dito que a tempo vive separado de sua mulher Pelo Doutor
Virgilio Fabiano Alves foi dito que acceitava a presente escriptura com as
condiccedilotildees nella estipuladas E de como assim o disseratildeo me pediratildeo lhes
lavrasse esta que lida e aceita assignatildeo com as testemunhas presentes []
[] Em tempo _ Pelo Justino Lino drsquoOliveira foi dito que o menino tem
cinco annos de idade Eu Joatildeo R de Carvalho escrivatildeo juramentado escrevi
[]439
O documento apresentado pelo Dr Virgiacutelio Fabiano Alves natildeo eacute efetivamente
um termo de tutela mas pode-se dizer um termo de renuacutencia do paacutetrio poder um
contrato de trabalho com a obrigaccedilatildeo de cuidar e educar o ldquomenorrdquo Na ldquoescriptura e
contracto de entregardquo natildeo haacute qualquer menccedilatildeo a salaacuteriossoldadas pelos serviccedilos
prestados por Juvenato Ao que parece o ldquomenorrdquo iria pagar pela ldquocriaccedilatildeordquo e
ldquoeducaccedilatildeordquo com sua forccedila de trabalho Por que teria o pai de Juvenato feito esse
contrato com o Dr Virgiacutelio Fabiano Alves Se porventura o motivo que levou Justino
Lino drsquoOliveira a entregar o seu filho foi a falta de recursos para criaacute-lo por que entatildeo
natildeo solicitou ao Juiz de Oacuterfatildeo a nomeaccedilatildeo de um tutor para o mesmo
De acordo com o depoimento da primeira testemunha arrolada no processo de
apreensatildeo Joseacute Dionizio Cardoso brasileiro casado lavrador o ldquomenorrdquo Juvenato
vivia na fazenda do Dr Virgiacutelio F Alves ldquoprestando serviccedilos compatiacuteveis com sua
idade sendo por elle tratado convenientementerdquo Ele relatou que o ldquomenorrdquo havia
fugido da fazenda de seu tutor indo acoitar-se na do Dr Marcello Bifano e que um
438
AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de
menores Menor Juvenato 17-06-1901 cx 04 439
Idem
156
colono da fazenda do dito senhor o aconselhou a natildeo voltar mais para o poder de seu
tutor A testemunha ainda declarou que quando o Dr Virgiacutelio Fabiano Alves tomou
conhecimento da fuga de Juvenato ldquofoi em companhia dele testemunha a fazenda do dr
Marcello onde entenderam-se com o administrador Pedro Brande para lhes ser entregue
o menorrdquo poreacutem este asseverou que soacute faria a entrega ldquopor ordem da Autoridaderdquo
conforme havia determinado o Dr Marcello Bifano ldquoque sabia e consentia na estada do
menorrdquo440
As demais testemunhas arroladas relataram que o Dr Virgiacutelio F Alves tentou
outras vezes reaver o ldquomenorrdquo Leocadio Custoacutedio Gonsalves casado lavrador natural
do estado do Rio de Janeiro em seu depoimento declarou que por ordem do Dr
Virgiacutelio Fabiano Alves havia levado uma carta ao Dr Bifano que na porteira da
fazenda ldquoencontrou-se com um italiano baixo que lhe consta ser chamado de
lsquoPanoramarsquordquo Este declarou que Juvenato soacute sairia da fazenda ldquopela Justiccedilardquo ldquopois do
contrario nem vinte pessoas o levavam e se o Dr Bifano natildeo quisesse resistir elle
ldquoPanoramardquo o levaria para a casardquo A testemunha ainda relatou que entregou a carta ao
administrador Pedro Brande e que este lhe disse ldquoque por sua vontade o menor seria
entregue immediatamente e soacute natildeo o fazia porque natildeo tinha ordem do Dr Bifanordquo que
mandara conservar Juvenato na fazenda O administrador ainda teria dito que o ldquomenor
era surdo e pouco ou nenhum serviccedilo prestava e que por sua vontade isto se resolvia em
harmoniardquo441
Quando do cumprimento do mandado de apreensatildeo o administrador da fazenda
Pedro Brande declarou que o ldquomenorrdquo estava na fazenda ldquomas natildeo apareceurdquo para o
mandado ser executado O subdelegado de poliacutecia Francisco M Romano da
Subdelegacia de Poliacutecia do districto de Satildeo Pedro de Alcacircntara oficiou ao delegado de
poliacutecia de Juiz de Fora relatando que havia se entendido ldquocom Dr Bifano arespeito (sic)
a entrega do menor Juvenatordquo e que este lhe havia dito que o entregaria mas que queria
ldquouma ordem do Juiz de orfam por escriptordquo442
A anaacutelise do processo de Juvenato leva a crer que o que estava em jogo era a
utilizaccedilatildeo de sua forccedila de trabalho a baixo valor ou gratuitamente O ldquomenorrdquo estava
com 15 anos de idade e provavelmente tinha habilidade para a lida com as atividades
rurais Mas examinando mais detalhadamente o documento outra questatildeo ressalta por
440
Ibidem 441
Ibidem 442
Ibidem
157
que a insistecircncia do Dr Marcello Bifano de entregar o ldquomenorrdquo apenas com uma ordem
do Juiz de Oacuterfatildeos Essa insistecircncia estaria relacionada a tal ldquoescriptura e contractordquo
feita entre o pai de Juvenato e o Dr Virgiacutelio Fabiano Alves ou seja natildeo teria ela
validade legal sendo necessaacuteria a indicaccedilatildeo de um tutor para o menor e nesse caso
Bifano se colocaria agrave disposiccedilatildeo para assumir o encargo E por que o colono italiano
defendia ardorosamente Juvenato segundo consta nos relatos das testemunhas Estaria
o ldquomenorrdquo trabalhando junto com o colono e por isso ele natildeo desejava que o mesmo
retornasse para o conviacutevio de seu tutor
Os dois processos acima analisados dos ldquomenoresrdquo Antocircnio e Juvenato
apresentam semelhanccedilas cidadatildeos pertencentes agrave classe dominante proprietaacuteria se
apropriando da matildeo de obra de crianccedilas pertencentes agrave camada subalterna da sociedade
No processo de Juvenato a tal ldquoescriptura e contracto de entregardquo foi registrada em
cartoacuterio entretanto natildeo foi possiacutevel saber se no caso do ldquomenorrdquo Antocircnio ocorreu o
mesmo Provavelmente as dificuldades de sobrevivecircncia levaram esses pais a tal
situaccedilatildeo No processo de apreensatildeo de Antocircnio foi possiacutevel averiguar que os pais eram
ex-escravos poreacutem na accedilatildeo de Juvenato natildeo foi possiacutevel identificar a condiccedilatildeo juriacutedica
dos pais se livreslibertos
O exame desses dois casos permite que sejam levantadas algumas questotildees
esses ldquocontractosrdquo natildeo deveriam ser processados pelo poder judiciaacuterio que estipularia o
valor de uma soldada e a idade que o ldquomenorrdquo comeccedilaria a receber Se porventura
foram as dificuldades de sobrevivecircncia que levaram os ldquomenoresrdquo e os pais a tal
situaccedilatildeo natildeo seria o caso de ser nomeado um tutor para as crianccedilas
E P Thompson assinala que ldquoum modo de descobrir normas surdas eacute examinar
um episoacutedio ou uma situaccedilatildeo atiacutepicosrdquo443
Identifiquei apenas esses dois ldquocontractosrdquo na
documentaccedilatildeo analisada e os considero ldquoatiacutepicosrdquo no conjunto de minhas fontes o que
faz deles um indicativo de que os grupos dominantes utilizaram diversos meios de
controle e coerccedilatildeo sobre a classe trabalhadora Posto isso indago quantas outras
crianccedilas e jovens natildeo ficaram presas a esse tipo de ldquonovo captivierordquo apoacutes a aboliccedilatildeo da
escravidatildeo em maio de 1888 Quantos pais natildeo tiveram condiccedilotildees de recorrer agrave justiccedila
para ter a guarda de seus rebentos e suas histoacuterias ficaram silenciadas
Esses dois contratos acenam para a possibilidade de utilizaccedilatildeo de outra fonte de
pesquisa sobre a problemaacutetica do trabalho infantil no poacutes-aboliccedilatildeo os livros de
443
THOMPSON E P Op cit 2001 p 235
158
escritura Essa documentaccedilatildeo pode descortinar que tais contratos constituiacuteram mais uma
estrateacutegia dos setores dominantes para o controle sobre a matildeo de obra infantil ou
confirmar a minha hipoacutetese de que satildeo documentos atiacutepicos
Da anaacutelise dos processos de apreensatildeo pode-se presumir que outros
proprietaacuterios buscaram manter sob seu controle a posse de crianccedilas filhas de ex-
escravos ou natildeo Em outro documento o pai Augusto Campos de Almeida solicita ao
Juiz que sua filha Domitildes fosse apreendida pois o cidadatildeo Isidoro Raymundo de
Souza a conservava ldquoem seu poder contra a vontade do suplicanterdquo e negava-se a
entregar a ldquomenorrdquo e ainda fazia ameaccedilas de espancaacute-lo se continuasse ldquono intento de
retirar a sua filhardquo444
O processo de Domitildes tambeacutem se desenrola no distrito de Chapeacuteu DrsquoUvas
Segundo Sonia Maria de Souza nesse distrito cultivava-se cafeacute poreacutem o destaque
maior ficava por conta da produccedilatildeo de alimentos e da pecuaacuteria445
O Juiz de Oacuterfatildeos
determinou que a ldquomenorrdquo fosse entregue a seu pai o que foi contestado pelo cidadatildeo
Isidoro Raymundo de Souza que alegou entregaacute-la ldquoem obediecircncia a ordem do Juizrdquo e
ainda assinalou que o suplicante natildeo era pai da menina e que o mesmo natildeo possuiacutea as
ldquoqualidades necessaacuterias para a ter sob sua guardardquo Possivelmente Augusto Campos de
Almeida era um afrodescendente Tal hipoacutetese se justifica pelo fato do dito cidadatildeo
fazer ameaccedilas ao suplicante O regime escravista e suas praacuteticas coercitivas ainda
estavam muito presentes nas atitudes das pessoas logo apoacutes a aboliccedilatildeo Por isso Isidoro
Raymundo talvez se sentisse no direito de espancar ou mandar espancar quem
contrariasse as suas ordens Infelizmente o processo natildeo informa a idade da menina
mas presumo que Isidoro Raymundo de Souza estivesse utilizando-se da forccedila de
trabalho dessa menina talvez no serviccedilo domeacutestico
Os proprietaacuterios brasileiros do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX ainda tinham
a possibilidade de utilizarem os serviccedilos dos ldquomenoresrdquo na aacuterea urbana ou rural
pagando baixos salaacuterios ou mesmo natildeo remunerando o trabalho executado por essas
crianccedilas com a alegaccedilatildeo de que estavam lhes dando uma oportunidade de aprenderem
um ofiacutecio como foi o caso dos chamados aprendizes446
444
AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de
menores Menor Domitildes 02-04-1889 cx 04 445
SOUZA Sonia Maria de Op cit 2007 p 105-108 446
MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Crianccedilas operaacuterias na receacutem industrializada Satildeo Paulo In
PRIORE Mary Del (org) Histoacuteria das crianccedilas no Brasil Satildeo Paulo Contexto 2006 p 271-273
159
Aleacutem dos baixos salaacuterios que os ldquomenoresrdquo recebiam havia ainda os casos de
maus tratos infligidos aos trabalhadores mirins Como nas memoacuterias de Pedro Nava as
meninas que trabalhavam na casa de sua avoacute e de outros parentes assalariadas ou natildeo
eram corrigidas fisicamente em periacuteodo bem posterior a decretaccedilatildeo da aboliccedilatildeo da
escravidatildeo447
Nos processos de apreensatildeo que venho analisando foram encontrados relatos de
violecircncia fiacutesica contra essas crianccedilas Em 20 de abril de 1900 o poder judiciaacuterio tomou
conhecimento de que a oacuterfatilde Albertina de 12 anos de idade era ldquoseviciada
barbaramente na casa de Francisco Pinto [F] Bretatildesrdquo448
Devido a denuacutencia desse
provaacutevel caso de maus tratos a ldquomenorrdquo foi depositada na casa de Antocircnio da Cunha
Figueiredo professor e secretaacuterio da Escola Normal e que depois foi indicado pelo juiz
para assumir a tutela da menina com a condiccedilatildeo de lhe pagar uma soldada
Todavia eacute necessaacuterio ressaltar que os atos de violecircncia fiacutesica e sexual tambeacutem se
davam no seio familiar da crianccedila A ldquomenorrdquo Rita Cacircndida de Jesus de 16 para 17
anos de idade filha de Pedro Manoel das Chagas e de Rita Cacircndia de Jesus moradores
no distrito de Vargem Grande fugiu da casa de seus pais em dezembro de 1891 em
consequecircncia dos supostos ldquomaus tratos e pelas contiacutenuas ameaccedilas de castigosrdquo
infligidos por seu pai como declarou ao delegado de poliacutecia de Juiz de Fora Rita
Cacircndida ainda assinalou que seus irmatildeos e irmatildes tambeacutem desejavam sair da casa
paterna pelos mesmos motivos e que sua matildee jaacute havia se separado de seu pai por
diversas vezes por essas mesmas razotildees Em uma peticcedilatildeo enviada ao Juiz de Oacuterfatildeos
em dezembro de 1891 o pai da ldquomenorrdquo defendeu-se dizendo que sua filha era ldquotratada
com amor e delicadesa proacuteprios de um bom pairdquo mas que consentia que ela ficasse na
casa em que estava recolhida pois era de ldquofamiacutelia honestardquo e onde estava ganhando
dinheiro e que pelo seu estado de pobreza natildeo poderia ldquoprover melhor do que tem feito
a educaccedilatildeo subsistecircncia e futurordquo da mesma449
Provavelmente na concepccedilatildeo do pai da
ldquomenorrdquo os castigos fiacutesicos fossem uma maneira de educaacute-la e aos demais filhos A
ideia de corrigir os filhos com tapas chicotadas varadas entre outros era tida como a
melhor maneira de educar os filhos e tal pensamento perdurou por longos anos na
sociedade brasileira e ainda pode-se dizer que persiste entre muitas famiacutelias como
447
NAVA Pedro Op cit 1974 p 4 448
AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de
menores Menor Albertina 20-04-1900 cx 04 449
AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de
menores Menor Rita Cacircndida de Jesus 03-12-1891 cx 04
160
atestam os ditados populares que assinalam que ldquoeacute melhor surrar os filhos do que ver a
poliacutecia baterrdquo ou ldquoeacute melhor apanhar em casa do que apanhar na ruardquo450
Outro suposto caso de violecircncia domeacutestica eacute o de Albertina filha de Joatildeo da
Rocha Ferreira de Souza viuacutevo A ldquomenorrdquo havia fugido da casa de seu pai alegando
que havia sido deflorada pelo mesmo e de quem estava graacutevida Por esse motivo ela foi
depositada em dezembro de 1911 na casa de seu cunhado Antonio Gomes da Silva O
pai de Albertina foi descrito pelo genro como um ldquohomem desordeiro becircbado e
turbulentordquo o que os moradores do distrito de Gramma poderiam confirmar Por causa
do receio que tinha do sogro ele solicitou que fosse indicada outra pessoa para ficar
com a ldquomenorrdquo depositada451
As fugas dos ldquomenoresrdquo como jaacute foi discutido neste capiacutetulo geralmente
estavam relacionadas agraves peacutessimas condiccedilotildees de vida e de trabalho das crianccedilas e jovens
Os maus-tratos possivelmente foram uma das causas principais para o abandono do lar
dos paisfamiliares e dos tutores pelos meninos e meninas
Nos processos de apreensatildeo pode-se observar vaacuterias questotildees que estavam
presentes na sociedade brasileira do final do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX como a
problemaacutetica do paacutetrio poder a utilizaccedilatildeo da matildeo de obra infantil a violecircncia contra
essas crianccedilas a preocupaccedilatildeo com o destino a ser dado a esses ldquomenoresrdquo etc Em suma
essa documentaccedilatildeo eacute uma fonte importante para o estudo da infacircncia
450
Sobre os provaacuteveis casos de maus-tratos infligidos aos ldquomenoresrdquo pelos seus pais e parentes ver o
processo de Orozimbo de 12 anos de idade AHCJF Fundo Benjamim Colucci Processos Civis
Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de menores Menor Orozimbo 01-03-1905 cx 04 451
AHCJF Foacuterum Benjamim Colucci Processos Civis Processos relativos agrave accedilatildeo de apreensatildeo de
menores Menor Albertina 03-01-1912 cx 04
161
CAPIacuteTULO 3
POR ENTRE MAacuteQUINAS E ENGRENAGENS
AS CRIANCcedilAS OPERAacuteRIAS DA ldquoMANCHESTER
MINEIRArdquo
Imagem 14 Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas ndash 1928 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processo relativo
agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Pedro Paulo 31-05-1928 cx 006proc 9
162
31 A QUESTAtildeO SOCIAL NA PRIMEIRA REPUacuteBLICA LEI DE
ACIDENTES DE TRABALHO E COacuteDIGO DE MENORES
Foi a vida industrial moderna com suas exigecircncias brutais com suas
inexoraacuteveis injusticcedilas que fez surgir esse corpo de doutrinas sociais-
econocircmicas que datildeo satisfaccedilatildeo a umas tantas aspiraccedilotildees dos trabalhadores e
que devem ser traduzidas em leis (Evaristo de Moraes)452
311 A Lei de Acidentes de Trabalho ndash Brasil 1919
Com o desenvolvimento da industrializaccedilatildeo e da urbanizaccedilatildeo a questatildeo da
regulamentaccedilatildeo do trabalho urbano tornou-se uma necessidade para as sociedades que
estavam vivenciando esse processo As reivindicaccedilotildees operaacuterias e os movimentos de
luta para alcanccedilar melhores condiccedilotildees de trabalho foram paulatinamente pressionando
patrotildees e governos para o encaminhamento da questatildeo social De acordo com Acircngela
Maria de Castro Gomes a ldquoQuestatildeo Socialrdquo surgiu no bojo das transformaccedilotildees sociais
poliacuteticas e econocircmicas ensejadas pela Revoluccedilatildeo Industrial ao longo do seacuteculo XIX e
impocircs para as naccedilotildees europeias a necessidade de se reconhecer ldquoos novos problemas
vinculados agraves modernas condiccedilotildees de trabalho urbano e dos direitos sociaisrdquo gerados
pela sociedade urbana industrial453
As transformaccedilotildees vivenciadas pelas naccedilotildees europeias durante a Revoluccedilatildeo
Industrial contribuiacuteram para que as praacuteticas tradicionais de proteccedilatildeo aos pobres fossem
duramente criticadas pelos teoacutericos liberais durante o processo de constituiccedilatildeo da
sociedade capitalista industrial Eles advogavam que a ajuda a essa parcela da
populaccedilatildeo representava um obstaacuteculo para o desenvolvimento do espiacuterito de iniciativa e
ambiccedilatildeo contribuindo dessa forma para a ociosidade e a vadiagem Entretanto Angela
de Castro Gomes salienta que ao mesmo tempo em que a sociedade capitalista
industrial combatia as antigas praacuteticas de proteccedilatildeo ela abriu caminho para a
ldquoemergecircncia de um novo tipo de problemaacutetica social que acabaria por acarretar o
nascimento de uma nova concepccedilatildeo de proteccedilatildeo socialrdquo454
Segundo a autora a
compreensatildeo da contradiccedilatildeo liberalismo X poliacutetica social eacute de fundamental importacircncia
452
MORAES Evaristo de Apontamentos de Direito operaacuterio 2 ed Satildeo Paulo LTR Editora Ltda SP
Editora da Universidade de Satildeo Paulo 1971 p 24-25 453
GOMES Acircngela Maria de Castro Burguesia e trabalho poliacutetica e legislaccedilatildeo social no Brasil 1917-
1937 Rio de Janeiro Campus 1979 p 31 454
Idem p 33
163
para a anaacutelise da sociedade europeia do seacuteculo XIX sendo que essa questatildeo permeou a
Europa ao longo do oitocentos455
No Brasil como em outras naccedilotildees que passaram pelo processo de urbanizaccedilatildeo e
industrializaccedilatildeo a problemaacutetica da chamada questatildeo social tambeacutem se fez presente O
desenvolvimento industrial e das relaccedilotildees capitalistas de produccedilatildeo tambeacutem foi
perpassado pelo embate entre os princiacutepios liberais expressos na Constituiccedilatildeo
republicana de 1891 e a decretaccedilatildeo de leis sociais de proteccedilatildeo aos trabalhadores A
intervenccedilatildeo do Estado para a regulamentaccedilatildeo do trabalho em uma ordem econocircmica
liberal sofreu criacuteticas por parte de setores poliacuteticos e pelo empresariado brasileiro que
sem negar por completo a participaccedilatildeo do Estado procurou estabelecer os limites dessa
intervenccedilatildeo456
Todavia eacute necessaacuterio ressaltar que apesar de reconhecerem mesmo que em
muitos casos apenas teoricamente a importacircncia das leis sociais o patronato procurou
interferir e influenciar em todas as medidas relacionadas agrave legislaccedilatildeo social
participando ativamente dos debates sobre a questatildeo trabalhista no decorrer dos anos
vinte do seacuteculo passado A participaccedilatildeo da burguesia industrial e comercial nas
discussotildees sobre a legislaccedilatildeo trabalhista contribuiu em muitos casos para o
protelamento da aprovaccedilatildeo de leis e na revisatildeo dos projetos que eram entatildeo
reelaborados com o fito de atenderem aos interesses da classe burguesa457
Durante a chamada Repuacuteblica Velha a discussatildeo mais acirrada sobre uma
legislaccedilatildeo social ocorreu principalmente no decorrer da segunda deacutecada do seacuteculo XX
O periacuteodo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) foi caracterizado pelo
desenvolvimento dos setores industriais e comerciais poreacutem os ganhos obtidos pela
classe burguesa nesse momento natildeo atingiram as camadas subalternas que vivenciaram
um quadro de grande carestia fortemente marcado por uma inflaccedilatildeo elevadiacutessima e por
baixos salaacuterios Esse momento tambeacutem eacute caracterizado pelo emprego intenso da matildeo de
obra infantil e feminina o que contribuiacutea ainda mais para a reduccedilatildeo dos niacuteveis salariais
Eacute nesse cenaacuterio marcado por grandes dificuldades de sobrevivecircncia para os operaacuterios
que vaacuterios movimentos de reivindicaccedilatildeo por melhores condiccedilotildees de vida e de trabalho
explodiram nas cidades que possuiacuteam um razoaacutevel niacutevel de desenvolvimento industrial
455
Ibidem p 33 456
Ibidem p 185-186 457
Ibidem p 158-159 164-165
164
O auge dessas manifestaccedilotildees foi marcado pelas greves de 1917 a 1919 em que a
questatildeo de uma legislaccedilatildeo trabalhista se impocircs para a sociedade brasileira
Em acircmbito internacional a questatildeo social tambeacutem estava sendo colocada uma
vez que o Tratado de Paz de Versalhes estipulava a necessidade de se atentar para as
reivindicaccedilotildees do proletariado pois a miseacuteria dos operaacuterios poderia redundar em graves
problemas para as naccedilotildees Dentro desse contexto deu-se a criaccedilatildeo de um organismo
internacional destinado a discutir as questotildees ligadas ao trabalho agrave Organizaccedilatildeo
Internacional do Trabalho (OIT) do qual o Brasil tornou-se membro458
Os anos finais da deacutecada de 1910 foram marcados pela discussatildeo a respeito da
legislaccedilatildeo social bem como pelos movimentos grevistas e pelas reivindicaccedilotildees
operaacuterias por melhores condiccedilotildees de trabalho pela regulamentaccedilatildeo do trabalho
feminino e infantil pela reduccedilatildeo da jornada entre outras questotildees Dentro desse cenaacuterio
de agitaccedilatildeo social o Estado brasileiro passou a intervir na chamada ldquoquestatildeo socialrdquo
A intervenccedilatildeo estatal nas questotildees trabalhistas chocava-se com o princiacutepio
liberal da Constituiccedilatildeo brasileira de 1891 Poreacutem a conjuntura de intensa mobilizaccedilatildeo
da massa trabalhadora entre os anos de 1917 a 1919 por intermeacutedio das greves
colocou como necessaacuteria a intervenccedilatildeo do governo em tal questatildeo O impacto da greve
de 1917 nas discussotildees sobre a regulamentaccedilatildeo do trabalho pode ser mensurado a
partir da constataccedilatildeo de que a problemaacutetica das leis sociais passou a ser discutida por
candidatos nas campanhas eleitorais para a presidecircncia da repuacuteblica (1919) e para o
governo do estado de Satildeo Paulo (1920)459
A legislaccedilatildeo social suscitou debates que envolveram diversos setores da
sociedade interessados na questatildeo No meio poliacutetico vaacuterias vozes ecoaram para
defenderem ou para criticarem tal proposiccedilatildeo A bancada paulista na Cacircmara dos
Deputados defendeu a intervenccedilatildeo estatal no que diz respeito ao direito social Os
deputados paulistas visualizavam a legislaccedilatildeo social como uma necessidade para a
manutenccedilatildeo dos interesses privados e da ldquopaz socialrdquo concebendo-a como uma
458
Ibidem p 58-60 VIANNA Luiz Jorge Werneck ldquoSistema liberal e direito do trabalhordquo In Estudos
Cebrap 07 Satildeo Paulo Ed Brasileira de Ciecircncias Ltda jan-fev-mar 1974 p 136 Disponiacutevel em
httpwwwcebraporgbrv2filesuploadbiblioteca_virtualsistema_liberal_e_direitopdf Acessado em
19 -11-2013 MUNAKATA Kasumi A legislaccedilatildeo trabalhista no Brasil Satildeo Paulo Brasiliense 1985 p
30 ndash 32 459
BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p 104-105 FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite ldquoAcidentados e
remediados a lei de acidentes no trabalho na Piracicaba da Primeira Repuacuteblica (1919-1930)rdquo In Revista
Mundos do Trabalho v 2 n 3 jan-jul de 2010 p 206-235 PASSETTI Edson ldquoOp cit 2006 p 352
165
estrateacutegia de ldquorefreamento do movimento operaacuteriordquo Entretanto defendiam a aprovaccedilatildeo
de uma ldquolegislaccedilatildeo moderada que impedisse maiores conflitos e prejuiacutezosrdquo460
Os gauacutechos se colocaram firmemente contraacuterios a qualquer medida de
regulamentaccedilatildeo do trabalho proposta durante as deacutecadas de 1910 e 1920 A bancada
gauacutecha considerava inconstitucional a intervenccedilatildeo do Estado nas questotildees trabalhistas
uma vez que o direito civil brasileiro estabelecia o livre contrato entre as partes (patratildeo-
empregado) E assinalavam que os paiacuteses que haviam aprovado leis de proteccedilatildeo social
aos operaacuterios natildeo conseguiram extirpar os conflitos inerentes agrave relaccedilatildeo capital e
trabalho Todavia os deputados gauacutechos cediam em alguns pontos no que se referia agrave
regulamentaccedilatildeo do trabalho como no que tange aos acidentes de trabalho e agrave proteccedilatildeo
agraves mulheres e aos ldquomenoresrdquo A esse respeito Acircngela de Castro Gomes salienta que o
posicionamento dos gauacutechos era bem sugestivo uma vez que essa aceitaccedilatildeo se
destinava aos trabalhadores que natildeo eram considerados cidadatildeos mulheres e crianccedilas
(natildeo votavam) e aos invaacutelidos (temporariamente ou natildeo) para o trabalho ou seja a accedilatildeo
estatal se destinava aos que estavam ldquoagrave margem do sistema poliacutetico e ateacute mesmo
econocircmicordquo461
Posto dessa forma segundo a autora tal medida poderia ser considerada
mais como uma accedilatildeo filantroacutepica do que uma conquista da classe trabalhadora pois natildeo
se constituiacutea em ldquouma intervenccedilatildeo indeacutebita do Estado e natildeo se chocando com a
concepccedilatildeo liberal do mercadordquo462
Para os Deputados gauacutechos a aceitaccedilatildeo desses dois
pontos na legislaccedilatildeo era concebido como um
[] fator de ordem sanitaacuteria e moral justificando-se pela proteccedilatildeo agrave sauacutede
puacuteblica ao futuro da raccedila e da famiacutelia Tratava-se portanto da reproduccedilatildeo e
conservaccedilatildeo da proacutepria forccedila de trabalho e eacute neste sentido que os itens aceitos
satildeo os de acidentes de trabalho e proteccedilatildeo agrave mulher e ao menor 463
Fraccedilotildees da bancada mineira compactuavam com a posiccedilatildeo dos gauacutechos no que
diz respeito ao direito social Entretanto apesar de ser uma das mais numerosas e
importantes da Cacircmara fez ldquopoucos discursos sobre o assunto marcando sua presenccedila
predominantemente com apartes e interpelaccedilotildeesrdquo464
460
GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 81-82 461
Idem p 77 462
Ibidem 463
Ibidem p 77-78 Segundo Acircngela de Castro Gomes os deputados gauacutechos defendiam que as
mulheres fossem afastadas do trabalho fora do acircmbito do lar Para eles a mulher natildeo deveria ser
incorporada como matildeo de obra pelas induacutestrias Ibidem p 78 464
Ibidem p 81
166
O grupo denominado de os ldquotrabalhistasrdquo465
eram mais combativos e na Cacircmara
denunciaram a situaccedilatildeo precaacuteria do proletariado urbano bem como defenderam o
movimento grevista como uma forma de luta dos proletaacuterios Eles propuseram diversos
projetos abordando vaacuterios aspectos da questatildeo operaacuteria como a regulamentaccedilatildeo do
trabalho feminino e infantil reduccedilatildeo da jornada de trabalho a criaccedilatildeo de creches nos
estabelecimentos industriais com nuacutemero superior a dez operaacuterios entre outras
propostas Eles apresentaram vaacuterios projetos entre junho-julho de 1917 quando entatildeo o
movimento operaacuterio estava em sua fase mais acirrada e na Cacircmara estava ocorrendo um
acalorado debate sobre a questatildeo social
Dentro dessa conjuntura a Comissatildeo de Constituiccedilatildeo e Justiccedila da Cacircmara reuniu
todas as indicaccedilotildees e projetos de leis que versavam sobre a questatildeo trabalhista em um
uacutenico projeto o Projeto no 284 do Coacutedigo de Trabalho As propostas desse documento
foram discutidas ao logo dos anos de 1918 e 1919466
No Brasil natildeo houve por parte do movimento operaacuterio reaccedilatildeo ao
intervencionismo estatal na questatildeo social como aconteceu na Alemanha e nos Estados
Unidos467
Na sociedade brasileira o movimento operaacuterio ressaltava a urgecircncia da
elaboraccedilatildeo de uma legislaccedilatildeo social (trabalhista e previdenciaacuteria) e visualizava a
participaccedilatildeo do Estado como um ldquoaacuterbitro nos conflitos sociaisrdquo468
Os anos de 1917 a
1920 satildeo iacutempares no que diz respeito agrave intervenccedilatildeo do Estado nas questotildees trabalhistas
Nesse periacuteodo ocorreu a ldquodiscussatildeo formal de praticamente todas as medidas que
envolvem a regulamentaccedilatildeo do trabalhordquo bem como a implantaccedilatildeo dos ldquoprimeiros
oacutergatildeos governamentais destinados exclusivamente a tratar deste assuntordquo469
Foi nesse
momento que ocorreu um avanccedilo significativo da questatildeo trabalhista na sociedade
brasileira ou seja ela passou a ser visualizada pelo Estado como uma problemaacutetica de
seu interesse e responsabilidade deixando de ser encarada apenas como um ldquocaso de
poliacuteciardquo No bojo dessa nova concepccedilatildeo da questatildeo social como uma responsabilidade
estatal foi votada a primeira lei trabalhista brasileira em acircmbito federal a Lei de
Acidentes no trabalho em janeiro de 1919470
465
Segundo Acircngela de Castro Gomes o grupo ldquotrabalhistardquo assim se autodenominava e era representado
pelos deputados Mauriacutecio de Lacerda Nicanor Nascimento e Deodato Maia GOMES Acircngela Maria de
Castro Op cit 1979 p 64 466
Ibidem p 64-65 467
Kasumi Munakata ressalta que os anarquistas eram contraacuterios agrave participaccedilatildeo do Estado nas questotildees
trabalhistas MUNAKATA Kasumi Op cit 1985 468
GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 44-45 469
Idem p 157 470
Ibidem p157 FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite Op cit 2010 p 207
167
O projeto sobre acidentes de trabalho foi desmembrado do projeto do Coacutedigo de
Trabalho (no 2841917) sendo discutido e aprovado na Cacircmara e no Senado em
dezembro de 1918 tornando-se lei em janeiro de 1919 pelo Decreto no 3724 A dita
Lei inspirada na legislaccedilatildeo trabalhista internacional foi aprovada depois de um longo
processo de abandono A discussatildeo sobre uma lei para proteger os operaacuterios viacutetimas de
acidentes de trabalho esteve por quinze anos no Congresso Desde 1901 projetos
propondo medidas de proteccedilatildeo ao operariado foram apresentados sem que surtissem
efeitos ou fossem regulamentados Segundo destacou Gizlene Neder
Foi soacute em 1915 no Senado que vingou o projeto de Adolpho Gordo que
chegou agrave Cacircmara Laacute teve dois substantivos o de Prudente de Moraes e o de
Andrade Bezerra adotado este pela Comissatildeo de Legislaccedilatildeo Social em 1918
aprovado pela Cacircmara e pelo Senado feito lei sob o nuacutemero 3724 de 15 de
janeiro de 1919 O regulamento de autoria de Arauacutejo Castro baixou com o
decreto nuacutemero 13498 de 12 de marccedilo de 1919471
Apesar da longa demora na aprovaccedilatildeo da Lei de Acidentes quando enfim foi
aprovada apresentou uma seacuterie de limitaccedilotildees Para Neder a enumeraccedilatildeo das ldquoinduacutestrias
sobre as quais recai o favor da lei fez lsquoipso factorsquo exceccedilotildees injustas e indevidasrdquo472
No serviccedilo rural o trabalhador que sofresse um acidente e natildeo estivesse utilizando
equipamentos que possuiacutessem motores inanimados estava excluiacutedo do direito a
indenizaccedilatildeo pelo acidente sofrido Igualmente estavam privados do direito trabalhista
os empregados do comeacutercio e os domeacutesticos as ldquoinduacutestrias mariacutetimas de pesca e de
navegaccedilatildeordquo A Lei de Acidentes no trabalho de 1919 contemplou fundamentalmente os
trabalhadores do setor fabril isto eacute o trabalho mecacircnico473
A lei de acidentes atendeu principalmente os setores do operariado urbano em
que a contradiccedilatildeo entre capital e trabalho se apresentava de maneira mais acirrada As
reivindicaccedilotildees e manifestaccedilotildees do proletariado urbano colocaram para o empresariado e
para o governo a necessidade de dar um encaminhamento agrave ldquoquestatildeo socialrdquo Em suma
o direito social atendeu a parcela dos trabalhadores que apresentavam certo niacutevel de
organizaccedilatildeo e de mobilizaccedilatildeo naquele momento
Outra limitaccedilatildeo observada na lei de acidentes estaacute relacionada com a questatildeo da
indenizaccedilatildeo devida ao operaacuterio acidentado A lei estipulava no artigo 6o da parte
referente agrave indenizaccedilatildeo que o caacutelculo da mesma estaria vinculado ao salaacuterio do
471
NEDER Gizlene Op cit 1995 p 83 472
Idem p 83 473
Ibidem
168
trabalhador e que natildeo poderia ultrapassar a quantia de 2400$000 (dois contos e
quatrocentos mil-reacuteis) anuais mesmo que os proventos do acidentado ultrapassassem
esse valor Nos casos de morte ou de incapacidade total e permanente da viacutetima a lei
previa que a indenizaccedilatildeo consistiria na soma igual ao salaacuterio de trecircs anos do operaacuterio
(art 7o e 8
o)
A fixaccedilatildeo de um teto para as indenizaccedilotildees foi um ganho para a classe patronal
pois independente do salaacuterio do operaacuterio acidentado a indenizaccedilatildeo a ser paga natildeo
poderia ultrapassar 2400$000 (dois contos e quatrocentos mil-reacuteis) anuais Segundo
Ferraz nos casos mais graves como de morte ou invalidez o total maacuteximo que o
operaacuterio ou seus herdeiros poderiam receber de indenizaccedilatildeo seria a quantia de
7200$000 (sete contos e duzentos mil-reacuteis) considerando os trecircs anos que a lei
estipulava474
O pagamento da indenizaccedilatildeo aos operaacuterios acidentados poderia ser realizado
atraveacutes das companhias de seguros As induacutestriasfaacutebricas segurariam seus funcionaacuterios
em firmas autorizadas pelo governo e em casos de acidentes a dita empresa seguradora
se responsabilizaria por todos os procedimentos discriminados no Art 29 do Decreto no
13498 sobre os acidentes de trabalho O citado Decreto foi equipado com uma tabela
anexa (Art 21 sect 1o) que estabelecia a porcentagem do valor da indenizaccedilatildeo que deveria
ser paga ao operaacuterio que tivesse uma lesatildeo que lhe provocasse uma ldquoincapacidade
parcial e permanenterdquo O valor poderia ser de 5 a 60 do que a viacutetima receberia caso
tivesse uma incapacidade classificada como total e permanente Por exemplo o operaacuterio
que tivesse a matildeo direita amputada a sua indenizaccedilatildeo deveria ser de 45 a 60 do que
receberia no caso de uma incapacidade total e permanente O artigo 21 do Decreto
assinalava que deveria ser levado em consideraccedilotildees no
[] calculo aacute natureza e extensatildeo da incapacidade do operaacuterio e tendo-se em
vista os seguintes elementos a) as faculdades de trabalho que subsistem
depois do accidente b) a idade c) intelligencia d) o graacuteo de instrucccedilatildeo e) a
iniciativa e energia moral f) capacidade de adaptaccedilatildeo a uma outra profissatildeo
g) a seguranccedila da accommodaccedilatildeo do operaacuterio aacute mesma profissatildeo que exercia
na occasiatildeo do accidente475
474
FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite Op cit 2010 p 220-221 475
Decreto n 13498 ndash 12 de marccedilo de 1919 ndash Aprova o regulamento para a execuccedilatildeo da lei n 3724 de
15 de janeiro de 1919 sobre as obrigaccedilotildees resultantes dos acidentes no trabalho Disponiacutevel em
httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm
169
A lei de acidentes de 1919 adotou o princiacutepio do ldquorisco profissionalrdquo em que o
patratildeo passou a ter a responsabilidade de indenizar o operaacuterio pelo acidente sofrido Por
esse princiacutepio natildeo estava mais em questatildeo de quem era a responsabilidade pelo
acidente mas sim o risco inerente agrave atividade laboral476
A lei determinava que apenas
os acidentes ocorridos pelo ldquofato do trabalho ou durante esterdquo deveriam ser indenizados
ficando excluiacutedos os que porventura tivessem ocorrido por ldquoforccedila maior ou dolo da
proacutepria vitima ou de estranhosrdquo477
Para a Lei de Acidentes no Trabalho eram considerados operaacuterios passiacuteveis de
indenizaccedilatildeo em caso de acidentes ldquoo indiviacuteduo que sem distincccedilatildeo de sexo ou idade
presta seus serviccedilos a outrem a titulo oneroso gratuito ou de aprendizagem
permanente ou provisoacuterio foacutera de sua habitaccedilatildeo nas industrias e serviccedilos []rdquo478
Com relaccedilatildeo ao trabalho do ldquomenorrdquo que eacute o tema em tela nesse trabalho a Lei
de Acidentes no Trabalho se refere apenas aos casos dos aprendizes Na parte referente
agrave indenizaccedilatildeo no art 17 fica estabelecido que
[] tratando-se de aprendizes entende-se que o seu salaacuterio diaacuterio natildeo eacute
inferior ao menor salaacuterio de um operaacuterio adulto que trabalhe em serviccedilo da
mesma natureza em caso de incapacidade temporaacuteria poreacutem a diaacuteria do
aprendiz natildeo excederaacute aacute que ele effectivamente percebia na occasiatildeo do
accidente479
A regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil era uma questatildeo presente no projeto do
Coacutedigo de Trabalho (no 2841917) do qual se desmembrou a Lei de Acidentes no
Trabalho Entretanto somente em 1927 com a decretaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores essa
problemaacutetica seria enfim estabelecida em lei Segundo Acircngela de Castro Gomes o
empresariado ao longo do periacuteodo republicano colocou-se contra dois pontos
principais no debate acerca do trabalho de crianccedilas o limite de idade estipulado e o
nuacutemero de horas permitido ao trabalhador ldquomenorrdquo480
A lentidatildeo na aprovaccedilatildeo de leis sociais deixou a classe operaacuteria ao longo de
quase todo o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica exposta a vaacuterias arbitrariedades violecircncias
476
A Lei de Acidentes no trabalho brasileira inspirou-se na lei francesa da teoria do ldquofato do trabalhordquo
FERRAZ Eduardo Luiacutes Leite Op cit 2010 p 215 477
Decreto n 13498 - 12-03-1919 Tiacutetulo I art 2o Disponiacutevel em
httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm 478
Decreto n 13498 ndash 12-03-1919 Tiacutetulo II art 5o Disponiacutevel em
httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm 479
Decreto n 13498 ndash 12 de marccedilo de 1919 ndash Aprova o regulamento para a execuccedilatildeo da lei n 3724 de
15 de janeiro de 1919 sobre as obrigaccedilotildees resultantes dos acidentes no trabalho Disponiacutevel em
httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm 480
GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 182
170
e a mercecirc dos interesses da burguesia Os ldquomenoresrdquo e as mulheres foram os mais
afetados por essa problemaacutetica uma vez que foram os principais alvos da extraccedilatildeo da
mais valia por parte do empresariado O Estado com o seu ldquoliberalismordquo compactuou
com os interesses dos setores da burguesia industrial ao natildeo promover uma intervenccedilatildeo
efetiva na questatildeo social ao longo da Primeira Repuacuteblica
Na parte seguinte examinarei o Coacutedigo de Menores de 1927 quanto agrave
regulamentaccedilatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo
312 O Coacutedigo de Menores e a regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil
A regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil se daria apenas em 1927 com a
promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores Ao longo da Primeira Repuacuteblica algumas
iniciativas relacionadas a essa parcela da populaccedilatildeo trabalhadora foram adotadas sendo
que em janeiro de 1891 foi aprovado o Decreto 1313 destinado agrave proteccedilatildeo dos
operaacuterios menores das faacutebricas do Distrito Federal Os estados e municiacutepios tambeacutem
procuraram legislar sobre o emprego de crianccedilas poreacutem na maioria das vezes essas
leis foram desrespeitadas em grande parte por causa da falta de uma fiscalizaccedilatildeo
eficiente dos oacutergatildeos governamentais
A preocupaccedilatildeo com os ldquomenoresrdquo desvalidos pode ser observada desde o iniacutecio
do periacuteodo republicano quando se deu a criaccedilatildeo do cargo de Juiz Municipal e de Oacuterfatildeos
e a aprovaccedilatildeo do Decreto 439 (1890) referente agrave assistecircncia agrave infacircncia desvalida Nos
primeiros atos do regime implantado em novembro de 1889 pode-se observar a
preocupaccedilatildeo que permeou a legislaccedilatildeo destinada a esse setor da sociedade qual seja a
de preparar esse estrato da populaccedilatildeo para futuramente serem bons cidadatildeos
trabalhadores disciplinados e ordeiros As medidas ao longo dos primeiros anos
republicanos destinadas agrave crianccedila desvalidaabandonada tambeacutem se estenderam agrave
infacircncia delinquenteinfratora O Coacutedigo Criminal de 1890 foi extremamente rigoroso
uma vez que rebaixou a idade penal de 14 anos para 9 anos Segundo Irene Rizzini esse
endurecimento do Coacutedigo natildeo se adequava agrave realidade do momento que destacava a
prevalecircncia da educaccedilatildeo sobre a puniccedilatildeo481
481
RIZZINI Irene Op cit 2011 p 116 ndash 120
171
No decorrer dos primeiros anos do seacuteculo XX a preocupaccedilatildeo com a infacircncia
pobre associada com a questatildeo do aumento da criminalidade entre essa parcela da
populaccedilatildeo redundou na elaboraccedilatildeo de vaacuterios projetos e na decretaccedilatildeo de leisdecretos
com o fito de proteger controlar e disciplinar os ldquomenoresrdquo atraveacutes da educaccedilatildeo
elementar e do aprendizado de um ofiacutecio Nesse momento destacou-se a figura do
meacutedico Moncorvo Filho na assistecircncia e proteccedilatildeo agrave infacircncia desvalida Outro
personagem de destaque nesse periacuteodo foi o jurista Antocircnio Evaristo de Moraes que fez
dos jornais sua tribuna de denuacutencia das condiccedilotildees precaacuterias da infacircncia desvalida
abandonada e delinquente
A crianccedila era concebida como a ldquosemente do futurordquo entatildeo o que fazer com a
parcela abandonada e delinquente de nossa sociedade Essa problemaacutetica inquietou
vaacuterios segmentos da sociedade entre estes juristas poliacuteticos e meacutedicos Em 1906 foi
apresentado agrave Cacircmara por Alcindo Guanabara um projeto de lei para a regulamentaccedilatildeo
ldquoda situaccedilatildeo da infacircncia moralmente abandonada e delinquenterdquo Participou da
elaboraccedilatildeo desse projeto de lei o jurista Joseacute Cacircndido de Albuquerque Mello Mattos
que tornou-se em 1923 o primeiro Juiz de Menores do Brasil e da Ameacuterica Latina e
uma das principais figuras do Coacutedigo de Menores instituiacutedo pelo Decreto no 5083 de
1926 e consolidado pelo Decreto no 17943 A de 1927 Inclusive o Coacutedigo de Menores
ficou conhecido pelo nome de Coacutedigo Mello Mattos em sua homenagem Do projeto de
1906 ateacute 1926 foram 20 anos de debates para enfim ser decretada uma legislaccedilatildeo
especificamente destinada a regulamentar a questatildeo da infacircncia desvalida abandonada e
delinquente No decorrer dessas duas deacutecadas projetos foram apresentados e
decretosleis foram consolidados versando sobre a internaccedilatildeo de ldquomenoresrdquo os
patronatos agriacutecolas a assistecircncia entre outras questotildees preparando dessa forma as
bases para a instituiccedilatildeo do Coacutedigo de Menores nos anos 1920482
Irene Rizzini aponta duas possibilidades para a demora na consolidaccedilatildeo de uma
lei para a infacircncia desvalida uma primeira hipoacutetese eacute a de essa natildeo se constituir em uma
ldquoprioridaderdquo do governo e a outra eacute a eclosatildeo da Primeira Guerra Mundial que pode ter
desviado a atenccedilatildeo para outros problemas483
A meu ver a morosidade na aprovaccedilatildeo de
uma lei de proteccedilatildeo agrave infacircncia tambeacutem pode estar associada ao posicionamento do
governo de natildeo intervenccedilatildeo nos interesses da classe empresarial principalmente no que
concernia agrave questatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo
482
Idem p 121-126 483
Ibidem p 126
172
Em meados do conflito mundial a questatildeo ressurge colocando para a sociedade
a necessidade de o Estado assumir ldquoa organizaccedilatildeo geral da assistecircnciardquo Nesse
momento a questatildeo passa a ter um caraacuteter utilitarista e os discursos apontam para os
ganhos que o Estado teria com a regulamentaccedilatildeo da assistecircncia agrave infacircncia484
Outro fator
que contribuiu para uma presenccedila maior do Estado brasileiro na problemaacutetica da
infacircncia desvalida foi o debate internacional que ocorreu apoacutes o teacutermino da Primeira
Guerra Mundial sobre os direitos das crianccedilas e que culminou com a aprovaccedilatildeo da
Declaraccedilatildeo dos Direitos da Crianccedila ndash Declaraccedilatildeo de Genebra em 1923 Essa
Declaraccedilatildeo teve influecircncia na criaccedilatildeo pelo governo brasileiro do Juizado Privativo dos
Menores Abandonados e Delinquentes em 1924485
A intervenccedilatildeo do Estado no que tange agrave regulamentaccedilatildeo da assistecircncia e
proteccedilatildeo agrave infacircncia abandonada pobre e delinquente assistiu a um crescimento no
decorrer da deacutecada de 1920 periacuteodo em que se observa um aumento na aprovaccedilatildeo de
decretos e leis versando sobre a infacircncia e que culminou em 1926 com a instituiccedilatildeo do
Coacutedigo de Menores e em 1927 com a sua consolidaccedilatildeo Todavia eacute necessaacuterio ressaltar
que parcela da intelectualidade juristas meacutedicos entre outros setores tambeacutem se
envolveram no debate sobre o tema em tela Em 1922 na Capital Federal Rio de
Janeiro houve o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteccedilatildeo a Infacircncia promovido por
Moncorvo Filho e o III Congresso Americano sobre a Infacircncia486
O Coacutedigo de Menores foi o resultado de um longo debate sobre as poliacuteticas de
assistecircncia e proteccedilatildeo agrave infacircncia pobre sendo portanto necessaacuterio ressaltar a relevacircncia
que os projetos de leis as leis e os decretos anteriores tiveram em sua elaboraccedilatildeo e
aprovaccedilatildeo487
Irene Rizzini ressalta que o texto do Coacutedigo de Menores aprovado em
1926 quase duplicou se comparado com o documento que consolidou as leis de
assistecircncia agrave infacircncia em 1927 em razatildeo da incorporaccedilatildeo de novos capiacutetulos e artigos
O documento final eacute composto por 231 artigos A autora ainda assinala que ao se
analisar a lei tem-se a sensaccedilatildeo de que
[] atraveacutes da lei em questatildeo procurou-se cobrir um amplo espectro de
situaccedilotildees envolvendo a infacircncia e a adolescecircncia Parece-nos que o
legislador ao propor a regulamentaccedilatildeo de medidas ldquoprotectivasrdquo e tambeacutem
assistenciais enveredou por uma aacuterea social que ultrapassava em muito as
fronteiras do juriacutedico O que o impulsionava era ldquoresolverrdquo o problema dos
484
Ibidem p 126-127 485
MARCIacuteLIO Maria Luiza Op cit 2006 p 221 486
RIZZINI Irene Op cit 2008 p 138-140 487
RIZZINI Irene Op cit 2011 p 132-133
173
menores prevendo todos os possiacuteveis detalhes e exercendo firme controle
sobre os menores atraveacutes de mecanismos de ldquotutelardquo ldquoguardardquo ldquovigilacircnciardquo
ldquoeducaccedilatildeordquo ldquopreservaccedilatildeordquo e ldquoreformardquo488
Com relaccedilatildeo agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho infantil Acircngela de Castro Gomes
assinala que essa era uma preocupaccedilatildeo do Estado uma vez que estava associada agrave
problemaacutetica da sauacutede higiene e proteccedilatildeo da famiacutelia Poreacutem a sua implementaccedilatildeo
sempre esbarrava na oposiccedilatildeo de fraccedilotildees do empresariado e de poliacuteticos que reagiam
contra dois pontos principais quais sejam a idade que o ldquomenorrdquo poderia ser admitido e
o nuacutemero de horas que deveria cumprir489
Essas querelas foram se arrastando ao longo
da Repuacuteblica Velha sendo apenas no final dos anos de 1920 que enfim deu-se a
decretaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores regulamentando o trabalho de crianccedilas
O Coacutedigo de Menores no Capiacutetulo I ndash Do objeto e fim da lei artigo 1o estipulava
que ldquoo menor de um ou outro sexo abandonado ou delinquente que tiver menos de 18
anos de idade seraacute submetido pela autoridade competente agraves medidas de assistecircncia e
proteccedilatildeo contidas neste Coacutedigordquo Do nascimento ateacute a idade de 18 anos a lei procurava
resguardar proteger e controlar a crianccedila desvalida abandonada e delinquente
Para os objetivos desta parte do trabalho interessa mais especificamente o
Capiacutetulo IX intitulado ldquoDo Trabalho dos Menoresrdquo do Coacutedigo de 1927 O citado
capiacutetulo eacute composto por vinte e cinco artigos em que estatildeo discriminadas as condiccedilotildees e
os locais em que os ldquomenoresrdquo operaacuterios e os aprendizes poderiam exercer alguma
atividade profissional quais as funccedilotildees que estavam autorizados a executar o nuacutemero
de horas os intervalos o trabalho noturno as idades em que poderiam ser admitidos as
penas e as multas para quem infringisse as determinaccedilotildees da lei entre outras questotildees
Pelo Coacutedigo de 1927 ficou determinado que a jornada de trabalho dos operaacuterios
e aprendizes menores de 18 anos de idade seria de seis horas diaacuterias com intervalos
para repouso cuja duraccedilatildeo natildeo poderia ser inferior a uma hora (art 108) Uma questatildeo
que chama a atenccedilatildeo no Coacutedigo eacute a preocupaccedilatildeo com a ldquoinstrucccedilatildeo primaacuteriardquo dos
operaacuterios No art 102 estaacute expressa essa questatildeo nos seguintes termos
Igualmente natildeo se poacutede ocupar a maiores dessa idade (12 anos) que contem
menos de 14 annos e que natildeo tenham completando sua instrucccedilatildeo primaria
Todavia a autoridade competente poderaacute autorizar o trabalho destes quando
o considere indispensavel para a subsistencia dos mesmos ou de seus paes ou
irmatildeos comtanto que recebam a instrucccedilatildeo escolar que lhes seja possivel
488
Idem p 133 489
GOMES Acircngela Maria de Castro Op cit 1979 p 182
174
A questatildeo da educaccedilatildeo do aprendiz e do trabalhador infanto-juvenil aparece em
outros artigos do Capiacutetulo IX do Coacutedigo de Menores sempre enfatizando a necessidade
da instruccedilatildeo primaacuteria490
ou da presenccedila do certificado do curso elementar como
condiccedilatildeo para eles serem admitidos em determinadas atividades profissionais (art 103 sect
3o art 107 e art 122)
Com o Coacutedigo de Menores o Estado passou a se responsabilizar pela crianccedila
desvalida abandonada e delinquente ou seja tomou para si o encargo de educar
disciplinar e preparaacute-la para ser integrada ao mercado de trabalho
Na proacutexima parte desse capiacutetulo analisarei os processos de acidentes no trabalho
em que os ldquomenoresrdquo foram viacutetimas agrave luz da legislaccedilatildeo social ndash Lei de acidentes do
trabalho e Coacutedigo de Menores
3 2 DA RUA Agrave FAacuteBRICA O PROLETARIADO INFANTO-JUVENIL
DA ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo
Nas cidades as fabricas alejam as creanccedilas fenecem o vigor da mocidade e
matam as esperanccedilas da velhice E quando um brado da consciencia uma voz
da humanidade parte da canalha da rua dos paacuterias do brahmanismo
brasileiro e echocirca no recinto do nosso parlamento esmolando o desafogo do
proletariado haacute sempre uma voz cujos sons de metal azinhavrado tem a
facilidade de convencer que no Brasil natildeo haacute questatildeo social a resolver (Sadi
Carnot de Miranda Lima)491
490
Conforme Decreto 981 de 8 de novembro de 1890 que regulamentava a Instruccedilatildeo primaacuteria e
secundaacuteria do Distrito Federal a instruccedilatildeo primaacuteria apresentava a seguinte estrutura escolas primaacuterias de
1o grau e de 2
o grau O art 2
o do citado Decreto no sect 1
o especificava que ldquoas escolas do 1
o graacuteo
admittiratildeo alumnoacutes de 7 a 13 annos de idade e as do 2o graacuteo de 13 a 15 annos Umas e outras seratildeo
distinctas para cada sexo poreacutem meninos ateacute 8 annos poderatildeo frequentar as escolas do 1o graacuteo do sexo
femininordquo O art 3o sect 1
o estabelecia que as escolas primaacuterias de 1
o grau abarcariam trecircs cursos o
elementar (para alumnos de 7 a 9 annos) o meacutedio (para os de 9 a 11) e o superior (para os de 11 a 13)
sendo gradualmente feito em cada curso o estudo de todas as mateacuteriasrdquo Disponiacutevel em
httpwww2camaralegbrleginfeddecret1824-1899decreto-981-8-novembro-1890-515376-
publicacaooriginal-1-pehtml Apesar de o Decreto 981 de novembro de 1890 ser destinado ao ensino no
Distrito Federal Ana Luacutecia Fernandes e Luiacutes Grosso Correia ressaltam que provavelmente o mesmo
ldquopudesse ter um caraacuteter de modelo a ser seguido em niacutevel nacionalrdquo uma vez que a cidade do Rio de
Janeiro aleacutem de ser a capital poliacutetica e administrativa tambeacutem tinha um importante papel ldquono processo
de disseminaccedilatildeo de ideias praacuteticas e modelosrdquo Cf FERNANDES Ana Luacutecia CORREIA Luiacutes Grosso
ldquoO ensino primaacuterio nos espaccedilos-tempos da I Repuacuteblica no Brasil (1889-1930) e em Portugal (1910-
1926)rdquo In Revista da Faculdade de Letras ndash Histoacuteria Porto III Seacuterie v 11 2010 p 185 nota 13
Disponiacutevel em httprepositorio-abertoupptbitstream10216560652LuisGrossoensino000128140pdf
Acessado em 03-2-2014 491
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Japyassuacute de
Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8
175
As agressotildees fiacutesicas os abusos sexuais satildeo apenas algumas das dificuldades
enfrentadas por crianccedilas e adolescentes no ambiente fabril nas oficinas no emprego
domeacutestico no comeacutercio no campo entre outros espaccedilos de trabalho As crianccedilas e
adolescentes foram viacutetimas constantes de acidentes no trabalho Suas pequeninas matildeos e
corpos muitas vezes eram esmagados dilacerados queimados eletrocutados cortados
nas maacutequinas nas engrenagens nos tornos nos fornos e em outros tantos instrumentos
de trabalhos improacuteprios para suas idades e capacidade fiacutesica O que pretendo investigar
nesse item satildeo os processos de acidentes no trabalho em que a viacutetima foi o trabalhador
infanto-juvenil
As notiacutecias sobre os acidentes de ldquomenoresrdquo nas unidades fabris nas oficinas e
nos demais estabelecimentos estatildeo presentes nos perioacutedicos desde finais dos oitocentos
Atraveacutes das notiacutecias veiculadas nos perioacutedicos sobre acidentes de trabalhadores nas
faacutebricas oficinas construccedilotildees serviccedilos agriacutecolas setor de transporte e residecircncias
pode-se ter uma dimensatildeo da exploraccedilatildeo e das condiccedilotildees precaacuterias de trabalho dos
operaacuterios entre os seacuteculos XIX e as primeiras deacutecadas do XX De acordo com Luiacutes
Eduardo de Oliveira o nuacutemero de acidentes entre os dececircnios de 1890 e 1910
provavelmente foram bem maiores do que os noticiados nos jornais locais e que as
constantes propagandas de companhia de seguros de vida e contra acidentes satildeo um
indicativo de que as ocorrecircncias eram bem significativas Os acidentes eram tratados
como fatalidade descuido distraccedilatildeo ou ldquoobrardquo de alguma entidade como o diabo e
recaiacutea sobre as viacutetimas e seus familiares os gastos com o tratamento ou sepultamento
Assim nos casos mais graves como de paralisia de amputaccedilotildees de membros
(pernasbraccedilosmatildeos) ou de longos periacuteodos de convalescecircncia os operaacuterios e seus entes
tinham de contar muitas vezes com o auxiacutelio da caridade puacuteblica uma vez que natildeo
havia nenhum tipo de previdecircncia puacuteblica492
Somente em 1919 com a decretaccedilatildeo da
Lei de Acidentes no Trabalho eacute que o trabalhador passou a estar resguardado por uma
legislaccedilatildeo social Por intermeacutedio dessa lei processos foram abertos e constituem hoje
uma importante fonte de investigaccedilatildeo das condiccedilotildees de vida e trabalho da classe
492
OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 240 ndash 246 Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoPor
entre maacutequinas amp engrenagens as crianccedilas operaacuterias nos acidentes de trabalho em Juiz de Fora (1919-
1930) In SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da PINTO Jefferson de Almeida (orgs) Poder e
Poliacutetica pensando a toleracircncia e a cidadania (Coloacutequio InternacionalSeminaacuterio de Histoacuteria Poliacutetica da
UFF) Niteroacutei (RJ) UFF 2012b p 109-127 Disponiacutevel em
wwwhistoriauffbrstrictofilespublic_ppghcap_2012_lcp_PoderPoliticapdf Acessado em 04-07-2015
176
operaacuteria durante os primeiros anos do desenvolvimento industrial e das relaccedilotildees
capitalistas de produccedilatildeo da sociedade brasileira
Os processos de acidentes no trabalho possibilitam que seja levantada uma
multiplicidade de questionamentos sobre as condiccedilotildees de trabalho e de vida do
operariado constituindo-se em uma documentaccedilatildeo riquiacutessima para a anaacutelise da questatildeo
operaacuteria Nessa fonte pode-se observar no caso especiacutefico da infacircncia as idades em
que esses ldquomenoresrdquo eram admitidos nas mais diversas tarefas - muitas extremamente
perigosas para suas idades - o nuacutemero excessivo de horas de trabalho o que
impossibilitava o acesso agrave escola as condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees industriais e de
outros estabelecimentos que expunham os trabalhadores a graves acidentes entre outras
tantas questotildees Atraveacutes dessa fonte tambeacutem eacute possiacutevel observar a presenccedila dos
descendentes de imigrantes compondo a massa de trabalhadores fabris bem como dos
afrodescendentes que pude identificar atraveacutes dos sobrenomes e indicaccedilatildeo da
nacionalidade dos genitores e da indicaccedilatildeo da cor Entretanto nem todos os processos
possuem dados como a cor dos envolvidos a nacionalidade e ou a de seus pais
Pesquisei todos os processos preservados de acidentes no trabalho envolvendo o
trabalhador infanto-juvenil referentes ao periacuteodo de 1919 a 1930 sendo analisados 67
autos Todavia eacute necessaacuterio fazer uma observaccedilatildeo com relaccedilatildeo agraves idades dos ldquomenoresrdquo
nesse periacuteodo Para o recorte de 1919 ateacute 1927 pesquisei processos envolvendo
trabalhadores ateacute a idade de 21 anos E a partir da promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores
em 1927 limitei a consulta ateacute a idade de 18 anos uma vez que o Coacutedigo estabeleceu a
maioridade do operaacuterio na citada idade493
O mais jovem da documentaccedilatildeo compulsada
foi o aprendiz Pedro Paulo de nove anos de idade que trabalhava na Companhia Tecircxtil
Bernardo Mascarenhas na ldquomachina de fiar algodatildeordquo e recebia a quantia de ldquoum mil reis
(1$000) diariosrdquo494
Pedro Paulo era oacuterfatildeo ndash de pai e matildee ndash e residia com seu cunhado e
tutor Joaquim Vidal ldquoagrave Avenida Freirerdquo no bairro Poccedilo Rico No dia 26 de maio de
1928 o aprendiz teve o seu dedo indicador da matildeo esquerda esmagado pela engrenagem
da maacutequina em que trabalhava o que levou agrave perda da falangeta O Juiz de Direito
Custodio de Almeida Lustosa arbitrou a indenizaccedilatildeo em ldquo25 (vinte e cinco por centro)
da indenizaccedilatildeo total que seria de 900 vezes o salario diaacuterio de mil reisrdquo dada a
ldquogravidade da lesatildeo e aacute pouca edade da victima que assim se veraacute privada de um
493
Os processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho encontram-se sob a guarda do Arquivo
Histoacuterico da Cidade de Juiz de Fora e do Arquivo Histoacuterico da Universidade Federal de Juiz de Fora 494
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Pedro Paulo
31-05-1928 cx 006proc 9
177
importante instrumento de trabalho nos melhores anos de sua atividaderdquo495
A pouca
idade do menino Pedro Paulo estava em desacordo com o que o Coacutedigo de Menores
(1927) estipulava em seu Capiacutetulo IX art 101 ldquoeacute prohibido em todo o territoacuterio da
Republica o trabalho nos menores de 12 annosrdquo O aprendiz contava apenas com nove
anos de idade quando do acidente
A questatildeo da instruccedilatildeo primaacuteria para a admissatildeo de ldquomenoresrdquo nos
estabelecimentos industriais e outros foi tratada pelo Coacutedigo de Menores que
estabelecia a sua obrigatoriedade conforme estipulado no art 103 e sect 3o do citado
Coacutedigo
Art 103 Os menores natildeo podem ser admittidos nas usinas manufacturas
estaleiros minas ou qualquer trabalho subterraneo pedreiras officinas e suas
dependencias de qualquer natureza que sejam publicas ou privadas ainda
quando esses estabelecimentos tenham caracter profissional ou de
beneficencia antes da idade de 11 annos sect 3
o Todavia os menores providos de certificados de estudos primarios
pelo menos do curso elementar podem ser empregados a partir da idade de
12 annos
Segundo informaccedilotildees dos ldquoAutosrdquo do processo o aprendiz Pedro Paulo sabia ler
e escrever o que subentende que tivesse recebido instruccedilatildeo elementar mas mesmo
assim sua situaccedilatildeo ainda estava em desacordo com o que a lei estipulava a respeito da
idade miacutenima para a admissatildeo em uma atividade laborativa e ou de aprendizado
profissional
O que se depreende da anaacutelise desse processo e de outros que seratildeo examinados
ao longo desse item eacute que as determinaccedilotildees do Coacutedigo de Menores no que diz respeito
agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho dos ldquomenoresrdquo natildeo foram cumpridas pelos
estabelecimentos industriais e muito menos observadas pelas autoridades
governamentais e judiciais da ldquoManchester Mineirardquo
Analisando as idades dos ldquomenoresrdquo que foram viacutetimas de acidentes no trabalho
percebe-se que a maioria concentrava-se na faixa etaacuteria compreendida entre os 14 e 20
anos de idade Entre as meninas o nuacutemero mais expressivo se dava a partir dos 15 anos
e entre os meninos a partir dos 14 anos de idade No quadro a seguir consta uma visatildeo
mais detalhada das idades dos pequenos operaacuterios que se acidentaram nos
estabelecimentos do municiacutepio de Juiz de Fora
495
Idem
178
QUADRO 6
FAIXA ETAacuteRIA DOS ldquoMENORESrdquo VIacuteTIMAS DE ACIDENTES NO
TRABALHO (1919-1930)
FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de Acidentes no Trabalho (1919-1930)
O nuacutemero mais expressivo de meninos nos acidentes pode estar relacionado com
o fato de que estes eram empregados em outras atividades aleacutem daquelas do serviccedilo nas
faacutebricas tecircxteis Os jovens do sexo masculino tinham um leque mais amplo de utilizaccedilatildeo
de sua forccedila de trabalho Dos 47 operaacuterios envolvidos em acidentes no trabalho 16
(3404) eram do setor tecircxtil e os demais 31 (6596) estavam na abertura de estradas
de rodagem faacutebricas alimentiacutecias de manteiga de ferradura de vassouras e balas em
oficinas mecacircnicas de marcenaria e carpintaria moinho estamparias pedreiras
padarias e companhias de eletricidade Com relaccedilatildeo agraves operaacuterias das 20 meninas
viacutetimas de acidentes com exceccedilatildeo de apenas uma que trabalhava numa faacutebrica de
chinelos496
todas as demais eram empregadas em induacutestrias tecircxteis e malharias
QUADRO 7
Operaacuterios do setor Tecircxtil e de Malharia envolvidos em acidentes no trabalho
(1919-1920)
INDUacuteSTRIA TEcircXTIL E MALHARIAS
OPERAacuteRIAS
ACIDENTADAS
OPERAacuteRIAS
ACIDENTADAS
TEXTIL
MALHARIA
OPERAacuteRIOS
ACIDENTADOS
OPERAacuteRIOS
ACIDENTADOS
TEXTIL
MALHARIA
20 19()
950 47 16 3404
FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de Acidentes no Trabalho (1919-1930) () Faacutebrica de Tecidos de Juta ndash A B Santos amp Companhia 1
Faacutebrica de Tecidos de Malha ndash Benedicto Lacordia 1 Faacutebrica de Malhas ndash Gerhin amp Irmatildeos 1
Companhia Malharia N S da Penha ndash Bichara Calil Estefan 1
Malharia Santa Rosa 1
496
AHCJ Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho Geralda Farini
09-06-1930 cx 107
TOTAL DE
OPERAacuteRIOS
IDADES
(MENINOS
E
MENINAS)
TOTAL MENINAS MENINOS
67
09 - 11 05 746 01 149 04 597
12 -16 31 4627 09 1343 22 3284
17 - 20 31 4627 10 1493 21 3134
179
Malharia Satildeo Miguel 1
Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira 4
Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas 4 Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer amp Irmatildeos 5
Analisando apenas os processos relativos aos trabalhadores das induacutestrias
tecircxteis malharias (conforme quadro 7) observa-se um nuacutemero maior de meninas nesses
estabelecimentos Os estudos que discutem a questatildeo operaacuteria no municiacutepio de Juiz de
Fora tecircm ressaltado a elevada presenccedila de crianccedilas nos estabelecimentos fabris497
Conforme observou Silvia Vilela de Andrade no Censo de 1920 nas faacutebricas tecircxteis de
Juiz de Fora havia uma predominacircncia de trabalhadores do sexo feminino com idade
inferior a 20 anos de idade Dos 1853 operaacuterios empregados nesse setor entre homens
e mulheres 1221(6589) era composto por operaacuterios com menos de 20 anos de idade
Desse total 794 (6503) era constituiacutedo por operaacuterias498
Os graacuteficos a seguir
fornecem uma visatildeo mais detalhada sobre a presenccedila de meninos e meninas nos
acidentes de trabalho
GRAacuteFICO 3
ldquoMENORESrdquo ENVOLVIDOS EM ACIDENTES NO TRABALHO ndash DIVISAtildeO
POR SEXO
FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de
Acidentes no Trabalho (1919-1930)
497
ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe operaacuteria em Juiz de Fora uma histoacuteria de lutas
(1912 ndash 1924) Juiz de Fora EDUFJF 1987 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 NEDER
Carolina Barbosa Memoacuterias que natildeo se apagam o cotidiano de lutas das operaacuterias na Manchester
Mineira (1890-1954) Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Histoacuteria Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)
Juiz de Fora 2010 498
ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 p 38-39
180
GRAacuteFICO 4
ldquoMENORESrdquo ENVOLVIDOS EM ACIDENTES NO TRABALHO ndash DIVISAtildeO
POR SEXO E SETOR
FONTE AHCJFAHUFJF Processos Relativos agrave Accedilatildeo de Acidentes no
Trabalho (1919-1930)
Com relaccedilatildeo agraves meninas considero que uma parcela expressiva estava
empregada nas casas das famiacutelias abastadas do municiacutepio e como a lei de acidentes no
trabalho natildeo contemplava essa categoria de trabalhadores elas natildeo aparecem nos
registros apesar de estarem expostas a vaacuterios tipos de acidentes como queimaduras
ferimentos cortes e amputaccedilotildees Nos perioacutedicos satildeo constantes as notiacutecias sobre essas
trabalhadoras principalmente logo apoacutes a decretaccedilatildeo do fim do trabalho escravo - em
maio de 1888 Muitas mateacuterias dos jornais ressaltavam a falta dessa matildeo de obra para ldquoo
desespero familiarrdquo das donas de casa e atribuiacuteam essa situaccedilatildeo ao fato de as mulheres
principalmente as libertas natildeo desejarem entregar-se ldquoa nenhum emprego licitordquo ou
acusavam as faacutebricas que com ldquomelhores salarios arrastam ateacute as crianccedilas para a vida
das industriasrdquo499
Tambeacutem foram publicadas notiacutecias sobre fugas de meninas das casas
499
Sandra L Graham realizou uma anaacutelise das relaccedilotildees entre as criadas e seus patrotildees no Rio de Janeiro
nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX e nos primeiros anos do XX A autora explorou questotildees como as
semelhanccedilas nas condiccedilotildees de vida e de trabalho entre as empregadas livres e escravas as relaccedilotildees
familiares das camadas populares o emprego domeacutestico infanto-juvenil a questatildeo da habitaccedilatildeo entre
outras problemaacuteticas Cf GRAHAM Sandra Lauderdale Proteccedilatildeo e obediecircncia criadas e seus patrotildees
no Rio de Janeiro 1860 ndash 1910 Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992 SM-BMMM
ldquoCorrespondenciardquo O Pharol 6 jul 1888 p 2 AHCJF ldquoA electricidade no uso domesticordquo Diaacuterio
Mercantil 23 dez 1926 O artigo publicado no jornal Diaacuterio Mercantil com o tiacutetulo ldquoA electricidade no
uso domesticordquo explanava sobre a falta de criadas para o serviccedilo domestico poreacutem ressaltava que as
donas de casas poderiam ficar tranquilas pois a ldquomaior fabrica de material electrico do mundo ndash General
Electric []rdquo estava lanccedilando no ldquomercado apparelhos electricos para todos os misteres caseirosrdquo
181
onde trabalhavam e de abandono pelos patrotildees das pequenas criadas entre outros
assuntos relativos a essas trabalhadoras500
Imagem 15 Nota sobre o abandono de uma ldquomenorrdquo pelos patrotildees
AHCJF ldquoFalta de Conscienciardquo Diaacuterio Mercantil 22 nov 1927 p 1
500
Em 17 de novembro de 1926 foi publicado o desaparecimento da empregada Raymunda Silva de 14
ou 15 anos de idade da casa de seus patrotildees Cf AHCJF ldquoUma menor desaparecidardquo Diaacuterio Mercantil
17 nov 1926 Na ediccedilatildeo de 31 de dezembro do mesmo ano lecirc-se a notiacutecia sobre a fuga da empregada
Raymunda da Conceiccedilatildeo parda de 14 anos da casa de seu patratildeo Cf AHCJF ldquoMenor Desaparecidardquo
Diaacuterio Mercantil 31 dez 1926 Em 22 de novembro de 1927 o jornal Diaacuterio Mercantil publicou uma
notiacutecia sobre o abandono de uma ldquomenorrdquo pelos patrotildees Cf AHCJF ldquoFalta de Consciecircnciardquo Diaacuterio
Mercantil 22 nov 1927 p 1 Cf SILVA Wesleyuml Por uma histoacuteria soacutecio-cultural do abandono e da
delinquecircncia de menores em Belo Horizonte ndash 1921-1941 Doutorado em Educaccedilatildeo Satildeo Paulo
Universidade de Satildeo Paulo 2007 p 204-206
182
Imagem 16 Nota sobre acidente de trabalho de uma ldquomenorrdquo ndash serviccedilo
domeacutestico SM-BMMM ldquoDesastrerdquo Jornal do Commercio 27 jan 1905
p 2
A uacutenica operaacuteria da documentaccedilatildeo por mim compulsada sobre acidentes no
trabalho que natildeo estava empregada na induacutestria tecircxtilmalharia foi a menor Geralda
Farini de 15 anos de idade que sabia apenas ldquoassignar o nomerdquo empregada como
aprendiz na faacutebrica de chinelos de propriedade de Oscar Rodrigues Pereira localizada
na Rua Santo Antocircnio Sua matildee Rachel Farini queixou-se na Delegacia de Poliacutecia que
no dia 31 de maio de 1930 sua filha havia sofrido um acidente quando trabalhava na
183
ldquomachina de ligas do fabrico de chinelosrdquo A ldquomenorrdquo teve o dedo indicador da matildeo
direita atingido pela engrenagem de uma maacutequina que resultou segundo o exame
meacutedico na perda definitiva ldquode um quarto da extremidade da phalangeta do dedo
traumatizado e a perda da unhardquo O que chama a atenccedilatildeo nesse processo eacute a explicaccedilatildeo
dada pela jovem operaacuteria para a ocorrecircncia do acidente Geralda Farini em seu
depoimento declarou que estava trabalhando
[] quando nessa occasiatildeo ao por sua matildeo direita para atraz foi a mesma
apanhada pela engrenagem de uma machina que estava funccionando atraz
das costas da declarenate recebendo no momento ferimento na ponta do dedo
indicador da mesma matildeo501
Pelo depoimento da aprendiz presume-se a precariedade das instalaccedilotildees da
faacutebrica de chinelos A crer na veracidade das declaraccedilotildees de Geralda o que se conclui eacute
que os espaccedilos entre uma maacutequina e outra eram tatildeo exiacuteguos que somente o fato de
colocar a matildeo para traacutes foi o bastante para feri-la
A esse respeito Esmeralda Moura ao analisar a questatildeo operaacuteria em Satildeo Paulo
ressalta
Nos horizontes da cidade o perfil das faacutebricas enquanto liacutedimos
representantes do progresso era motivo de juacutebilo para as autoridades locais
Em seu interior no entanto o improviso era praticamente a nota dominante
maacutequinas e operaacuterios muitas vezes acomodados em espaccedilo exiacuteguo
iluminaccedilatildeo e ventilaccedilatildeo insuficientes ausecircncia de dispositivos de seguranccedila
colocando a matildeo de obra agrave mercecirc das engrenagens502
A classe poliacutetica e econocircmica da cidade de Juiz de Fora tambeacutem se comprazia
em decantar o progresso e a modernidade da cidade do interior mineiro Nos perioacutedicos
satildeo constantes os elogios ao desenvolvimento do municiacutepio Entretanto no interior das
faacutebricas com seus tijolinhos vermelhos com suas chamineacutes e seus apitos o improviso
as gambiarras a falta de espaccedilo e provavelmente de iluminaccedilatildeo e ventilaccedilatildeo adequados
era uma marca503
501
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci Processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho Geralda
Farini 09-06-1930 cx 107 502
MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 264 503
Para mais informaccedilotildees sobre o discurso das classes dominantes de Juiz de Fora sobre a questatildeo do
progresso e da modernidade da cidade ver os trabalhos de MIRANDA Sonia Regina Op cit 1990
CHRISTO Maraliz de Castro Vieira Op cit 1994 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit 2010
GOODWIN JUacuteNIOR James W A ldquoPrincesa de Minasrdquo a construccedilatildeo de uma identidade pelas elites
juiz-foranas (1850-1888) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Belo Horizonte UFMG 1996 GOODWIN JUNIOR
James William Op cit 2007
184
Outro processo de acidente envolvendo uma aprendiz e que acena para as
condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees das faacutebricas de Juiz de Fora eacute o da ldquomenorrdquo Maria
da Gloacuteria Eduardo de 11 anos de idade que ldquonatildeo sabia ler e nem escreverrdquo Ela feriu
trecircs dedos da matildeo direita quando
[] ao passar junto a uma machina de enrolar barbante quando ia a
instalaccedilatildeo sanitaria satisfazer uma necessidade physiologicva por natildeo ter
outro caminho a passar a natildeo ser junto a referida machina que se achava em
movimento e como era muito estreito o corredor teve que por a sua matildeo
direita em uma das peccedilas da mesma occasiatildeo em que esta pegou-lhe treis
dedos da matildeo alludida fazendo todos elles ferimentos504
Os ferimentos sofridos pela operaacuteria Maria da Gloacuteria Eduardo resultaram
segundo o laudo meacutedico em uma ldquolesatildeo definitiva e portanto incapacidade parcial e
permanente no dedo index da matildeo direita que ficaraacute com uma ankylose ao nivel das
articulaccedilatildeo phalange-phalanginha e phalanginha-phalangetardquo505
Antonio Celso Vieira gerente da Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer amp
Irmatildeos onde trabalhava Maria da Gloacuteria declarou em seu depoimento que a ldquomenorrdquo
havia se ferido quando ldquodistrahidamente poz a matildeo direita em uma das engrenagensrdquo
da maacutequina de enrolar barbante Em momento algum ele ressalta a provaacutevel dificuldade
que os operaacuterios tinham de ter acesso agraves instalaccedilotildees sanitaacuterias como relatado pela
aprendiz O acidente no relato do gerente foi fruto da distraccedilatildeo da ldquomenorrdquo506
As condiccedilotildees inadequadas os espaccedilos exiacuteguos entre as maacutequinas natildeo era uma
caracteriacutestica exclusiva das pequenas faacutebricas Faccedilo tal afirmaccedilatildeo com base na
informaccedilatildeo de que a Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Malha Antonio Meurer em 1925 era a
quarta maior induacutestria do ramo tecircxtil do municiacutepio de Juiz de Fora em nuacutemero de
operaacuterios contando 350 funcionaacuterios e a terceira em termos de equipamentos (220
teares) e valor da produccedilatildeo (2451000$000)507
Essa provaacutevel precariedade dos
504
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Maria da
Gloacuteria Eduardo 18-08-1927 cx 005 proc 15 505
Idem 506 Carolina Neder em seu estudo sobre o cotidiano das operaacuterias de Juiz de Fora entre os anos de 1890-
1954 assinalou que algumas ex-operaacuterias relataram em seus depoimentos as dificuldades que tinham para
irem ao banheiro dadas as normas disciplinares e de controle existentes dentro das faacutebricas sendo que o
periacuteodo menstrual mostrava-se ainda mais problemaacutetico para elas NEDER Carolina Barbosa Memoacuterias
que natildeo se apagam o cotidiano de luta das operaacuterias na Manchester Mineira (1890-1954) Dissertaccedilatildeo de
Mestrado Juiz de Fora (MG) UFJF 2010 p 42-43 507
Secretaria da Agricultura Anuaacuterio Estatiacutestico Ano II (1922-1925) Belo Horizonte Imprensa Official
1929 Apud ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Classe Operaria em Juiz de Fora uma histoacuteria
de lutas (1912-1924) Ed da UFJF 1987 p 31
185
estabelecimentos expunham os funcionaacuterios a riscos como se deu no caso da ldquomenorrdquo
Geralda Farini Maria da Gloacuteria Eduardo e tantos outros
Egydio Augusto cunhado da aprendiz Maria da Gloacuteria e com quem ela residia
solicitou que fosse nomeado um tutor ad hoc pois a menor era oacuterfatilde de matildee e ldquopor lhe
faltar pae legitimordquo para cuidar de seus interesses no processo de acidente no trabalho
O advogado Joseacute Ribeiro de Abreu foi nomeado tutor ad hoc da menina508
O advogado Joseacute Ribeiro de Abreu em suas ldquoallegaccedilotildeesrdquo em defesa dos
interesses da jovem operaacuteria assim ponderou
Trata-se de uma menor que alem de deformada ficaraacute privada para sempre de
seu dedo index da matildeo direita - ankylosado nas articulaccedilotildees das phalanges
Essa lesatildeo sem embargo aacutes demais constantes do attestado junto deve ser
considerada de summa gravidade e portanto a victima que inicia agora a
lucta pela existencia sem o amparo paternal natildeo poderaacute regressar ao seu
officio com os mesmos elementos de habilidade pelo accidente
paralysados509
Com base nas alegaccedilotildees o tutor ad hoc solicitou que o caacutelculo da indenizaccedilatildeo
devida agrave ldquomenorrdquo fosse arbitrada no maacuteximo da porcentagem que a Lei de Acidentes no
Trabalho (Decreto 13 4981919) estabelecia em sua tabela anexa que era de ldquo40 para
a indemnizaccedilatildeo da perda do indicador da matildeo direitardquo Ele ainda inferiu que o caacutelculo
deveria ser realizado tendo por base o menor salaacuterio de um operaacuterio adulto que
trabalhasse em ldquoserviccedilo da mesma naturezardquo conforme estipulava o art 17 da citada
Lei510
O Juiz de Direito Custoacutedio de Almeida Lustosa arbitrou a indenizaccedilatildeo em 30
tendo como referecircncia o menor salaacuterio de um trabalhador adulto que exercia a mesma
atividade que era de 4$000 A Companhia de Seguro Lloyd Industrial Sul Americano
pediu vista dos autos do acidente de trabalho por natildeo concordar com a indenizaccedilatildeo
arbitrada de 1080$000 Da anaacutelise do processo observa-se que a indenizaccedilatildeo arbitrada
foi efetivada pois em setembro de 1930 o cunhado da ldquomenorrdquo solicitou o
levantamento dos juros da quantia de 1080$000 que Maria da Gloacuteria tinha ldquoem
deposito da Caixa Economicardquo desde setembro de 1927 fruto da indenizaccedilatildeo que
508
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Maria da
Gloacuteria Eduardo 18-08-1927 cx 005 proc 15 509
Idem 510
Art 17 Tratando-se de aprendizes entende-se que o seu salario diario natildeo eacute inferior ao menor salario
de um operario adulto que trabalhe em serviccedilo da mesma natureza em caso de incapacidade temporaria
poreacutem a diaria do aprendiz natildeo excederaacute aacute que ele effectivamente percebia na occasiatildeo do accidente
Decreto N 13498 de 12 de marccedilo de 1919 Disponiacutevel em
httpwww81dataprevgovbrsislexpaginas23191913498htm
186
recebeu proveniente de um acidente no trabalho O dinheiro solicitado por Egydio
Augusto destinava-se agrave compra de vestuaacuterio Egydio Augusto tambeacutem solicitou em
setembro de 1930 a tutela de Maria da Gloacuteria Apoacutes o Juiz de Direito Andreacute Martins de
Andrade ouvir as declaraccedilotildees da ldquomenorrdquo a respeito de solicitaccedilatildeo de sua tutela por seu
cunhado deferiu o pedido
A ldquolucta pela existenciardquo de Maria da Gloacuteria Djanira Avelino Geraldina
Adolpho Hilda Augusto e tantas outras crianccedilas operaacuterias e aprendizes comeccedilou bem
cedo entre maacutequinas engrenagens apitos e chamineacutes A presenccedila desses pequenos
proletaacuterios nas faacutebricas e em outros estabelecimentos eacute prova da pobreza de uma imensa
maioria da populaccedilatildeo que estava alijada do progresso e da modernidade Em sua ldquolucta
pela existenciardquo essa parcela da populaccedilatildeo ficou longe dos bancos escolares ou recebeu
uma educaccedilatildeo precaacuteria que lhe permitiu quando muito assinar o nome perpetuando
dessa forma a exclusatildeo e a submissatildeo da massa proletaacuteria As dificuldades de
sobrevivecircncia das classes trabalhadoras lhes impuseram a necessidade de empregar suas
mulheres e seus filhos Aleacutem disso a nova eacutetica do trabalho e os mecanismos de
controle social se impunham para as classes pobres pressionando-as a se sujeitarem agraves
precaacuterias condiccedilotildees de trabalho uma vez que natildeo exercer uma atividade laborativa
significava aos olhos da ldquosociedade disciplinarrdquo511
estar contra ou agrave margem dessa
sociedade
Dos 67 processos analisados 35 (5224)512
viacutetimas de acidente declaram que
sabiam ler e escrever 23 (3433) que natildeo sabiam ler nem escrever 7 (1045) que
sabiam assinar o nome e de 2 (298) natildeo haacute informaccedilotildees a esse respeito No processo
de Sebastiatildeo de Carvalho de 13 anos de idade aprendiz de carpinteiro na Companhia
de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Moraes Sarmento haacute a observaccedilatildeo de que ele sabia ldquoler e
escrever malrdquo513
Quantos outros jovens operaacuterios que declararam que sabiam ler e
escrever tambeacutem natildeo estavam nessa mesma condiccedilatildeo Somando o nuacutemero dos
analfabetos com o dos que sabiam assinar apenas o nome o iacutendice dos operaacuterios sem
instruccedilatildeo eleva-se para 4478
511
Cf FOUCAULT Michel Vigiar e Punir nascimento da prisatildeo 33 ed Petroacutepolis Vozes 2007 512
O operaacuterio Faacutebio SantrsquoAnna que declarou que sabia ler e escrever aparece duas vezes nos processos
de acidentes no trabalho ou seja em 25-04-1928 e 06-03-1929 AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci
Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Fabio SantrsquoAnna 25-04-1928 cx 007proc 23
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Fabio
SantrsquoAnna 06-03-1929 cx 107 513
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidente no Trabalho Sebastiatildeo
de Carvalho 13-11-1919 cx001proc 2
187
A educaccedilatildeo era concebida por setores da classe dominante como um meio de o
Brasil atingir a civilizaccedilatildeo a modernidade e o progresso Entretanto apesar de
reconhecerem a importacircncia da educaccedilatildeo para o desenvolvimento da naccedilatildeo essa
questatildeo natildeo constituiu em uma prioridade para os homens que comandaram o processo
de implantaccedilatildeo e consolidaccedilatildeo do regime republicano no paiacutes sobretudo com relaccedilatildeo a
que seria destinada agraves crianccedilas pobres A preocupaccedilatildeo era constituir as massas em matildeo
de obra para nascente induacutestria Por isso os debates sobre disciplina e controle das
massas e a questatildeo da defesa nacional tiveram mais peso nas discussotildees e decisotildees dos
homens puacuteblicos do que a da obrigatoriedade do ensino baacutesico514
A educaccedilatildeo das crianccedilas pobres tambeacutem foi uma problemaacutetica que perpassou as
naccedilotildees europeias durante o processo de industrializaccedilatildeo Segundo George Rusche e Otto
Kirchheimer para muitos teoacutericos europeus a ldquoboa educaccedilatildeordquo significava preparar a
crianccedila pobre para o mercado de trabalho nas induacutestrias sendo essa praacutetica considerada
ldquoo melhor caminho para mantecirc-las longe do mal ao mesmo tempo em que as ensinava
ajudar os pais financeiramenterdquo515
Nos perioacutedicos do municiacutepio de Juiz de Fora foram publicadas vaacuterias mateacuterias
sobre a importacircncia da educaccedilatildeo para a constituiccedilatildeo de uma sociedade civilizada e
moderna A educaccedilatildeo especialmente a profissional era considerada de suma
importacircncia para a formaccedilatildeo da classe trabalhadora Com o fim do trabalho escravo
vaacuterias vozes se levantaram mesmo antes da aboliccedilatildeo para explanar sobre a necessidade
de se instruir os libertos para que os mesmos pudessem ingressar na sociedade
civilizada bem como as classes subalternas Outra questatildeo presente nos artigos
jornaliacutesticos eacute a da abertura de cursos noturnos para o atendimento dos operaacuterios Uma
mateacuteria do jornal O Pharol de 27 de maio de 1888 ressaltava a necessidade da criaccedilatildeo
de cursos noturnos
[] a creaccedilatildeo de cursos nocturnos onde abundam as fabricas e as oficinas
parece-nos um acto de perigosa necessidade E digna da civilizaccedilatildeo desta
cidade e fecundiacutessima em resultados beneacuteficos seraacute a fundaccedilatildeo de um Lyceu
de Artes e Officios []516
No Diaacuterio Mercantil de 23 de dezembro de 1926 na mateacuteria intitulada
ldquoInstrucccedilatildeo Publicardquo foi comunicada a criaccedilatildeo pelo Decreto no 7432 do ldquogrupo escolar
514
A esse respeito ver NEDER Gizlene ldquoAssistecircncia puacuteblica agrave infacircnciardquo In SOUZA Gisele de Op
cit 2010 p 100 515
RUSCHE Georg KIRCHHEIMER Otto Op cit 2004 p 56-57 516
SM-BMMM ldquoLyceu de Artes e Officiosrdquo O Pharol 27 maio 1888 p 1
188
nocturno na cidade de Juiz de Focircra com a denominaccedilatildeo de Estevam de Oliveirardquo A
reportagem ainda informava que na cidade jaacute funcionavam algumas classes
[] em curso nocturno sete classes anexas aos grupos escolares Joseacute Rangel
e Delfim Moreira considerando que nessas classes destinadas principalmente
a filhos de operaacuterios estatildeo matriculados 410 crianccedilas excedendo de 500 os
pedidos de matricula []517
A preocupaccedilatildeo com a instruccedilatildeo das classes subalternas foi uma constante nos
perioacutedicos ao longo de toda a Primeira Repuacuteblica Era necessaacuterio preparar as ldquoflores de
uma geraccedilatildeo futurardquo518
e dentro desse pensamento a escola se afigurava para vaacuterios
setores das classes dominantes como um espaccedilo privilegiado na transmissatildeo de valores
morais e disciplinares natildeo apenas para as crianccedilas como tambeacutem para os seus
familiares Em outras palavras o poder disciplinador e moralizador da escola
extrapolava os seus muros Segundo Michel Foucault ldquoa escola tende a construir
minuacutesculos observatoacuterios sociais para penetrar ateacute nos adultos e exercer sobre eles um
controle regularrdquo519
Dessa maneira era preciso preparar os filhos dos operaacuterios para
substituiacuterem seus pais nas faacutebricas ou como nos dizeres da reportagem assegurar ldquoem
cada crianccedila de hoje um homem uacutetil aacute sociedade de amanhardquo520
O projeto de lei apresentado pelo vereador Pinto de Moura agrave Cacircmara Municipal
de Juiz de Fora em 1912 versando sobre a regulamentaccedilatildeo do horaacuterio de trabalho dos
ldquomenoresrdquo nas faacutebricas foi saudado como algo de suma importacircncia para a sociedade
O artigo do Jornal do Commercio louvando o projeto que previa limitar o horaacuterio de
trabalho dos ldquooperariosinhosrdquo ressaltava a necessidade de se ldquofacilitar a essas crianccedilas a
frequecircncia de escolas nocturnas por duas horas ao menos Para isso a cacircmara crearia
escolas nos bairros mais habitados por operaacuteriosrdquo521
A mateacuteria continuou assinalando
que
517
AHCJF ldquoInstrucccedilatildeo publica ndash Grupo escolar lsquoEstevam de Oliveirarsquordquo Diaacuterio Mercantil 23 dez 1926
p 1 518
SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 02 ago 1912 p 1 519
FOUCAULT Michel Op cit 2007 p 174 520
SM-BMMM ldquoTirasrdquo Jornal do Commercio 2 ago 1912 p 1 No primeiro capiacutetulo da tese examinei
o projeto de Lei do vereador Francisco Augusto Pinto de Moura relativo agrave proibiccedilatildeo do trabalho de
crianccedilas ateacute a idade de 14 anos apoacutes as 17 horas O projeto foi apresentado dentro de uma conjuntura de
greve de alguns setores do operariado da cidade Para mais informaccedilotildees sobre a greve de 1912 em Juiz de
Fora ver o trabalho de ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 521
Idem
189
[] esses meninos trabalham nas fabricas para auxiliarem os pais teremos o
direito de privar estes do auxilio dos filhos sem alguma compensaccedilatildeo Certo
que natildeo
Assim pois si impedirmos que as pobres creanccedilas se cansem no trabalho por
todo o dia alguma medida complementar deve ser tomada e essa creio seraacute
facilitar-se-lhes a escola Prohibindo que o pequeno operaacuterio trabalhe ndash para
ajudar os pais mais do que lhe permittam as forccedilas o poder publico vai
adeante do pai na obrigaccedilatildeo que tem este de zelar pela sauacutede do filho Ao
poder publico portanto compete proporcionar ao lado desse zelo alguma
compensaccedilatildeo que o justifique Deve elle auxiliar o operaacuterio na educaccedilatildeo de
seus filhos522
A educaccedilatildeo segundo a reportagem era uma compensaccedilatildeo que o poder puacuteblico
deveria oferecer ao filho do trabalhador uma vez que a precaacuteria condiccedilatildeo social e
econocircmica do operaacuterio lhe impunha a necessidade de empregar seus filhos nas faacutebricas
A demonstraccedilatildeo de que a educaccedilatildeo que deveria ser oferecida a essas crianccedilas seria para
preparaacute-las para ocuparem os cargos inferiores encontra-se no final da mateacuteria quando
foi destacado que era de se esperar que o ldquohumanitaacuterio vereador se preocupe sempre
com outras medidas em favor da infancia dos futuros artiacutefices inspirando-se nas
praticas generosas de verdadeiro catholicordquo523
(grifos meus) O humanitarismo e o
espiacuterito cristatildeo-catoacutelico das classes dominantes entretanto natildeo se preocupava em
eliminar a miseacuteria das classes trabalhadoras e ou erradicar o trabalho infantil O projeto
apresentado agrave Cacircmara de Vereadores de Juiz de Fora sobre a carga horaacuteria dos
ldquooperariosinhosrdquo natildeo versava sobre a educaccedilatildeo A reportagem do Jornal do Commercio
sugeriu que futuramente fossem elaborados projetos sobre a educaccedilatildeo dos operaacuterios
Todavia era a proposta de uma educaccedilatildeo elementar destinada agrave formaccedilatildeo de futuros
operaacuteriosartiacutefices e natildeo para a sua elevaccedilatildeo e de seus filhos mas para a manutenccedilatildeo do
status quo
Aproveitando a ldquobrechardquo aberta pela reportagem sobre as ldquopraticas generosas de
verdadeiro catholicordquo do vereador Dr Pinto de Moura destaco o papel da Igreja
Catoacutelica na discussatildeo do trabalho na sociedade urbana e industrial Segundo Jessie Jane
V de Sousa o catolicismo social incorporou-se ao mundo do trabalho a partir da
publicaccedilatildeo pelo Papa Leatildeo XIII da Enciacuteclica Rerum Novarum (1891) Os preceitos
dessa Enciacuteclica foram incorporados paulatinamente na sociedade brasileira Para a
autora a ldquoRerum Novarum foi o primeiro lsquoalerta profeacuteticorsquo da Igreja quanto agrave
deterioraccedilatildeo das condiccedilotildees de vida dos trabalhadores submetidos agraves relaccedilotildees de trabalho
522
Ibidem 523
Ibidem
190
capitalistasrdquo524
Entretanto foi somente nos anos 1920 que a alta hierarquia da Igreja
Catoacutelica passou a colocar em accedilatildeo o ldquoalertardquo dado pelo papa Leatildeo XIII no final do
seacuteculo XIX525
Jefferson de Almeida Pinto ressaltou que apesar da Enciclica Rerum
Novarum dedicar-se agrave discussatildeo da questatildeo social apresentava um ldquocaraacuteter estritamente
conservadorrdquo526
O documento papal de 1891 explanou sobre as obrigaccedilotildees e deveres de patrotildees e
empregados bem como da necessidade de se evitar os conflitos entre as classes para
que a paz e a ordem reinassem na sociedade O Papa Leatildeo XIII teceu uma contundente
criacutetica agraves ideias socialistas e uma profiacutecua defesa da propriedade privada da famiacutelia do
trabalho da ldquoconcoacuterdiardquo entre as classes O trabalho infantil tambeacutem foi contemplado
pela Rerum Novarum que ressaltava que natildeo se deveria exigir da crianccedila e da mulher o
mesmo trabalho que era requerido de um homem adulto e no vigor de sua forccedila
Especificamente sobre o trabalho infantil eacute enfatizado que a crianccedila natildeo deveria ldquoentrar
na oficina senatildeo quando a sua idade tenha suficientemente desenvolvido nela as forccedilas
fiacutesicas intelectuais e moraisrdquo527
Entretanto o exame dos processos de acidentes no trabalho de Juiz de Fora
sugere que os patrotildees natildeo estavam preocupados com o pleno desenvolvimento das
forccedilas fiacutesicas intelectuais e morais de seus pequenos operaacuterios uma vez que muitas
crianccedilas com menos de 14 anos foram admitidas nas faacutebricas para executarem
atividades em maacutequinas provavelmente para as quais natildeo tinham tamanho e ou forccedila
fiacutesica Acrescente-se a esse quadro o fato de muitos ldquomenoresrdquo natildeo estarem
intelectualmente preparados pois muitos declararam nos processos de acidente que natildeo
sabiam ler e nem escrever ou que apenas assinavam o nome
O fato de muitos ldquomenoresrdquo natildeo estarem no pleno desenvolvimento das forccedilas
fiacutesicas e natildeo terem idade e maturidade suficiente para executarem determinadas
atividades redundou em muitos graves acidentes sendo alguns fatais Dos 67
ldquooperariosinhosrdquo dos processos de acidentes no trabalho 53 (7910) sofreram
ferimentos queimaduras ou amputaccedilotildees nos membros superiores (dedos matildeos e
braccedilos) e 7 (1045) nos membros inferiores (peacutes e pernas) Em 5 (747) processos
524
SOUSA Jessie Jane Vieira de Os ciacuterculos operaacuterios e a intervenccedilatildeo da Igreja catoacutelica no mundo do
trabalho no Brasil uma discussatildeo historiograacutefica p 4 Disponiacutevel em
httpwwwppghisifcsufrjbrmediajessie_jane_circulospdf Acessado em 17-01-2014 525
Idem p 5 526
PINTO Jefferson de Almeida Op cit 2008 p 98 527
LEAtildeO XIII Papa Enciacuteclica Rerum Novarum - sobre as condiccedilotildees dos operaacuterios Roma 15 de maio de
1891 Disponiacutevel em httpwwwvaticanvaholy_fatherleo_xiiiencyclicalsdocumentshf_l-
xiii_enc_15051891_rerum-novarum_pohtml Acessado em 19-11- 2013
191
os jovens cada um correspondendo a um tipo de lesatildeo feriram-se na colunaabdocircmen
na claviacutecula no olho na fronte e ferimentos pelo corpo 1 (149) foi viacutetima de asfixia
por afogamento e outro (149) de choque eleacutetrico Dos 67 ldquomenoresrdquo acidentados 4
(597) perderam suas vidas todos do sexo masculino Os primeiros socorros como
curativos prestados aos operaacuterios apoacutes os acidentes eram realizados nas farmaacutecias
locais e dependendo das lesotildees sofridas eram atendidos posteriormente por meacutedicos e
os casos mais graves eram levados para a Santa Casa de Misericoacuterdia528
O aprendiz
Germano Taddei da faacutebrica Estamparia Universal529
de propriedade de Lagrota amp
Companhia assim descreveu o acidente que sofreu e a assistecircncia prestada pelos
proprietaacuterios da mesma
PERGUNTADO o que aconteceu com elle hoje quando trabalhava nesta
Estamparia onde heacute empregado respondeo que hoje cerca de uma e meia
hora da tarde quando limpava a pequena machina (Laminoir) descuidando-se
em certo occasiatildeo colocou os dedos medio e annelar da matildeo direita sobre a
ingrennagem occasionando-lhe pequenos ferimentos nesses dois dedos que
logo que foi ferido os proprietaacuterios da fabrica seos patrotildees o mandaram aacute
pharmacia Barros que immediatamente fez o curativo necessario aos
ferimentos que recebeu que eacute empregado como aprendiz desta Estamparia
vencendo a diaria de um mil reis que seo pae jaacute eacute fallecido tendo porem sua
matildee Pret Taddei []530
Imagem 17 Propaganda da Estamparia Universal 1922 SM-
BMMM Revista Luz Composta e impressa nas officinas Graphicas
ldquoLuzrdquo Ano I n V Junho de 1922
528
Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 244-246 529
A ldquoEstamparia Universalrdquo tambeacutem aparece na documentaccedilatildeo com o nome de ldquoEstamparia Mineirardquo
As declaraccedilotildees no inqueacuterito policial foram dadas pelo soacutecio do estabelecimento Joatildeo Tardio AHCJF
Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Germano Taddei 17-
05-1919 cx 106 530 AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Germano
Taddei 17-05-1919 cx 106
192
Doravante passo a anaacutelise dos processos que redundaram na morte dos
operaacuterios Inicio pelo acidente do ldquomenorrdquo Mario Roque de 15 anos de idade pardo
guia de bois na Fazenda Bomba de Fogo situada no distrito da cidade de propriedade
do coronel Alfredo Moreira de Resende Segundo o relato de Anselmo Joseacute dos Santos
lavrador o menino estava ldquotomando conta de uma carroccedila carregada com lixo cujo
vehiculo estava puxado por dois bois []rdquo531
poreacutem o ldquomenorrdquo subiu no
[] cabeccedilalho da carroccedila onde se entretinha a chupar limas que em dado
momento os bocircis espantaram arrastando a carroccedila que foi de encontro a uma
raiz grossa que tem ao lado do caminho provocando com o baque a queda da
victima que se achava como jaacute disse sobre o cabeccedilalho em frente a roda do
vehiculo que foi de encontro ao seu corpo atravessando sobre o peito e perna
esquerda da victima que a morte da victima se deu immediatamente natildeo
sendo por isso possivel dar-lhe qualquer socorro[]532
Os depoimentos das demais testemunhas satildeo semelhantes aos do representante
da fazenda Anselmo Joseacute dos Santos De acordo com as testemunhas o menino era
oacuterfatildeo de pai e vivia na fazenda desde a idade de quatro anos em companhia de seu
padrinho Pedro Ivo funcionaacuterio da mesma propriedade rural pois havia sido
abandonado pela matildee Mario Roque natildeo sabia ler e nem escrever e recebia pela funccedilatildeo
de guia de bois a quantia de oitocentos reis diaacuterios Em consequecircncia do acidente o
ldquomenorrdquo teve ldquofractura da colunna vertebral na regiatildeo dorsal e contusatildeo do abdomem
sendo produzida a morte por choque traumaacuteticordquo533
O responsaacutevel por Mario Roque
natildeo teve direito agrave indenizaccedilatildeo pelo acidente sofrido e que ocasionou a morte do
ldquomenorrdquo uma vez que a Lei de Acidentes no Trabalho natildeo contemplava o trabalhador
rural que natildeo utilizava motores inanimados O processo foi remetido ao Promotor
Puacuteblico Dr Nisio Baptista de Oliveira para dar ldquoVistardquo e que assim justificou o fato da
natildeo indenizaccedilatildeo
[] Natildeo cabe entretanto aos seus herdeiros nenhuma indennizaccedilatildeo porque o
serviccedilo em que trabalhava natildeo foi contemplado na Lei do [risco] profissional
nordm 3724 de 14 de janeiro de 1919 E assim que pelo seu art 3 os operarios
rurais soacute tem direito aacute indennisaccedilatildeo por accidente quando ao serviccedilo de
trabalhos agricolas em que se empreguem motores inanimados
O texto legal eacute bastante claro para se oppor qualquer duvida e o jurista
Andrade Bezerra commentando-o chega a [] conclusatildeo seguinte Escapam
531
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Mario
Roque 12-11-1919 cx 001proc 1 532
Idem 533
Ibidem
193
assim os innumeros casos de accidente na agricultura causados pelo uso de
instrumentos manejados pelo operario ou accionados por forccedila animal
Natildeo fosse a exclusatildeo legal e o patratildeo teria de pagar a indennisaccedilatildeo de
720$000 isto eacute 900 vezes o salario diario da vitima que era de $800 (grifos
no original)534
O processo foi entatildeo arquivado Como foi salientado por Gizlene Neder a lei de
Acidentes no Trabalho ldquoteve a preocupaccedilatildeo lsquomecacircnicarsquo do acidente a ponto de no
trabalho rural proteger o trabalhador que empregue motores inanimados e deixar sem
compensaccedilatildeo os que forem viacutetimas de outros acidentesrdquo535
A partir desse exemplo
histoacuterico concreto destaco as limitaccedilotildees das leis de proteccedilatildeo social especialmente com
relaccedilatildeo ao trabalhador rural e domeacutestico que ao longo do seacuteculo XX foram preteridos
pelo direito social brasileiro
Outro ldquomenorrdquo que teve a sua vida ceifada no exerciacutecio de sua atividade
profissional foi Americo Baresi de 19 anos de idade empregado na Companhia de
Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira durante dez anos ou seja ele comeccedilou a
trabalhar aos 9 anos de idade assim passou toda a sua adolescecircncia no serviccedilo da dita
faacutebrica e estava no momento do acidente como aprendiz de mecacircnico Ele foi viacutetima de
um choque eleacutetrico em fevereiro de 1922 quando conduzia uma barra de ferro que
tocou os fios que conduziam a energia para a dita Companhia De acordo com os
relatos o ldquomenorrdquo foi ldquofulminado pela corrente que possuiacutea seis mil voltsrdquo Segundo o
depoimento de Sebastiatildeo Elias operaacuterio com 20 anos de idade eles trabalhavam ldquona
remoccedilatildeo de umas barras de ferro que se achavam na carpintaria quando ao levantar
uma das barras a victima tocou na corrente electrica que passa pelos fios mais ou menos
baixo no lugar resultando ser fulminado pela corrente []536
As provaacuteveis condiccedilotildees
precaacuterias das instalaccedilotildees da faacutebrica foi o fator que ocasionou a morte de Americo
Baresi Como jaacute salientei nesta pesquisa as gambiarras os improvisos a falta de
espaccedilos e o excesso de trabalho foram preacute-condiccedilotildees para a ocorrecircncia de vaacuterios
acidentes envolvendo os trabalhadores Da leitura das fontes o que se depreende eacute que o
interesse da classe empresarial era manter um ritmo elevado da produccedilatildeo auferindo o
maacuteximo de lucro por meio da exploraccedilatildeo da matildeo de obra sem se preocupar com a
questatildeo da seguranccedila no ambiente de trabalho No caso de Juiz de Fora a presenccedila de
534
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Mario
Roque 12-11-1919 cx 001proc 1 Vista ao processo - Promotor Puacuteblico Nisio Baptista de Oliveira em
30-07-1919 535
NEDER Gizlene Op cit 1995 p 83 536
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Americo
Baresi 23-02-1922 cx 002proc 3
194
um contingente expressivo de matildeo de obra agrave disposiccedilatildeo do setor industrial
provavelmente foi mais um fator que favoreceu a despreocupaccedilatildeo patronal com a sauacutede
e a integridade fiacutesica de seus operaacuterios
A Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira em 1924 foi palco de
mais um acidente com morte de um operaacuterio Jacob Stephan de 17 anos de idade
acidentou-se gravemente quando trabalhava em uma pedreira pertencente agrave dita faacutebrica
Segundo as testemunhas do processo o ldquomenorrdquo encontrava-se sobre um enorme bloco
de pedra que havia sido dinamitado dias antes e que estava ldquoem falsordquo O bloco de
pedra rolou e levou junto o operaacuterio que teve o braccedilo esquerdo decepado em seu terccedilo
meacutedio fratura exposta da perna esquerda ferimentos incisos na cabeccedila (regiatildeo
occipital) na perna direita no antebraccedilo direito e escoriaccedilotildees pelo corpo O acidente
ocorreu no dia 17 de julho de 1924 vindo o trabalhador a falecer de septicemia em
consequecircncia dos ferimentos no dia 31 do mesmo mecircs
No setor da construccedilatildeo tambeacutem foram registrados acidentes fatais envolvendo
jovens operaacuterios Joseacute Finocchio Filho de 15 anos de idade filho de Joseacute Finocchio
italiano e de D Maria Candida Finocchio portuguesa estava a serviccedilo de uma obra da
Inspectoria de Estradas de Rodagem do estado de Minas Gerais (Secretaria da
Agricultura Induacutestria Terras Viaccedilatildeo e Obras Puacuteblicas ndash Directoria de Viaccedilatildeo e Obras
Publicas ndash 4a Residencia de Estradas de Rodagem) sob a administraccedilatildeo do engenheiro
chefe da 4a Residecircncia de Estradas de Rodagem Dr Joseacute da Rocha Lagocirca no ano de
1929 quando se acidentou O ldquomenorrdquo trabalhava na construccedilatildeo da ponte de cimento
armado Carlos Otto quando caiu no rio Paraibuna o que resultou em sua morte por
asfixia por submersatildeo Segundo informaccedilotildees do documento o ldquomenorrdquo trabalhava em
ldquomeacutedia dez horas por diardquo537
A anaacutelise desses processos demonstra as condiccedilotildees precaacuterias e a falta de
seguranccedila a que os operaacuterios estavam expostos em funccedilatildeo da postura do empresariado
de procurar maximizar seus lucros em detrimento das condiccedilotildees de trabalho do
proletariado538
Com relaccedilatildeo agrave regulamentaccedilatildeo do trabalho do ldquomenorrdquo esta soacute ocorreu
537
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Joseacute
Finocchio Filho 04-12-1929 cx 107 Segundo Luiacutes Eduardo de Oliveira a construccedilatildeo civil
(demoliccedilotildees construccedilotildees escavaccedilotildees de terrenos etc) ao que parece era o setor da economia local que
apresentava um iacutendice mais elevado de acidentes de operaacuterios entre o periacuteodo de 1890 a 1910 Cf
OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 243 nota 278 538
As condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees fabris e de trabalho dos operaacuterios podem ser observadas em O
Lynce de 25 de outubro de 1919 em que foi assinalado o fato dos operaacuterios das faacutebricas almoccedilarem ldquoem
plena rua e debaixo as vezes de uma fina garoacirc []rdquo o que favorecia para a comida ficar com aspecto de
ldquolavagemrdquo Nessa nota de O Lynce que se referia a outra publicada em julho do mesmo ano o perioacutedico
195
em 1927 com a decretaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores Por essa razatildeo os jovens operaacuterios
ficaram expostos em praticamente todo o periacuteodo da Primeira Repuacuteblica a diversos
tipos de condiccedilotildees degradantes e de riscos a sua integridade fiacutesica nos estabelecimentos
que utilizavam a sua forccedila de trabalho
Dos quatro operaacuterios que morreram durante o trabalho apenas Joseacute Finocchio
estava respaldado pela lei de proteccedilatildeo ao trabalhador infanto-juvenil uma vez que seu
acidente ocorreu apoacutes a promulgaccedilatildeo do Coacutedigo de 1927 Entretanto as determinaccedilotildees
do Coacutedigo foram desrespeitadas uma vez que em seu art 108 estabelecia que
Art 108 O trabalho dos menores aprendizes ou operarios abaixo de 18 anos
tanto nos estabelecimentos mencionados no art 103 como nos natildeo
mencionados natildeo poacutede exceder de seis horas por dia interrompidas por um
ou varios repouso cuja duraccedilatildeo natildeo poacutede ser inferior a uma hora539
Poreacutem no comunicado feito ao Delegado de Poliacutecia sobre o acidente sofrido por
Joseacute Finocchio Filho e no ldquoAuto de Accidente no Trabalhordquo o representante do
engenheiro responsaacutevel pelas obras Joseacute Teixeira informou que o ldquomenorrdquo trabalhava
ldquodiariamente dez horasrdquo e recebia ldquoum mil reis (1$000) a horardquo sendo portanto o seu
ldquoordenado de dez mil reis (10$000) por diardquo540
A carga horaacuteria de trabalho do jovem
operaacuterio que era funcionaacuterio de uma obra do Estado de Minas Gerais estava em
desacordo com a determinaccedilatildeo do Coacutedigo de Menores que estipulava seis horas diaacuterias
de atividade laborativa para os menores de 18 anos
Outro exemplo de descumprimento do Coacutedigo de Menores pelo governo mineiro
pode ser observado no processo de acidente do menino Albertino de Oliveira de 12
anos de idade que declarou que natildeo ldquosabia ldquoler e nem escreverrdquo O ldquomenorrdquo foi
ldquoapanhado por bloco de terra de uma barreira que estava sendo cortadardquo e esse acidente
resultou na fratura de diversas partes de sua perna direita O acidente ocorreu quando
ele trabalhava no serviccedilo de ldquoreconstrucccedilatildeo da estrada de rodagem lsquoUniatildeo Induacutestriarsquo no
fim da rua Osorio de Almeidardquo uma obra estadual que estava sob a supervisatildeo do
destacou que Jornal do Commercio tambeacutem estava apelando para ldquoos proprietaacuterios das fabricas para que
estes faccedilam cobertas para abrigar tatildeo desprotegidos auxiliares do progressordquo O Lynce 25 out 1919 p 2 539
Coacutedigo de Menores Capiacutetulo IX ndash Do trabalho dos Menores art 108 O art 103 estabelecia que ldquoOs
menores natildeo podem ser admittidos nas usinas manufacturas estaleiros minas ou qualquer trabalho
subterraneo pedreiras officinas e suas dependencias de qualquer natureza que sejam publicas ou
privadas ainda quando esses estabelecimentos tenham caracter profissional ou de beneficencia antes da
idade de 11 annosrdquo Coacutedigo de Menores - Consolida as leis de assistecircncia e proteccedilatildeo a menores Decreto
nordm 17943-a de 12 de outubro de 1927 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1910-
1929d17943ahtm 540
AHCJF Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Joseacute Finocchio Filho 04-12-1929 cx
107
196
engenheiro Dr Joseacute da Rocha Lagocirca541
A viacutetima segundo informaccedilotildees do processo
trabalhava havia mais de um ano no serviccedilo para o Estado de Minas ou seja por volta
dos 10-11 anos de idade contrariando o art 101 que estipulava que ldquoeacute prohibido em
todo o territoacuterio da Republica o trabalho nos menores de 12 annosrdquo Natildeo teria o
engenheiro responsaacutevel pela obra Dr Joseacute Rocha Lagocirca conhecimento de que era
proibido por lei o emprego de crianccedilas menores de 12 anos O Coacutedigo de Menores
(1927) estabelecia as condiccedilotildees em que uma crianccedila poderia ser admitida em uma
atividade profissional a partir dos 12 anos de idade Segundo o capiacutetulo IX art 103 sect 3
ldquotodavia os menores providos de certificados de estudos primaacuterios pelo menos do
curso elementar podem ser empregados a partir da idade de 12 annosrdquo542
Entretanto
Albertino de Oliveira segundo informaccedilotildees do processo trabalhava havia mais de um
ano para os serviccedilos do Estado de Minas Gerais natildeo sabia ldquoler e nem escreverrdquo outro
flagrante desrespeito ao Coacutedigo de Menores
Por esses exemplos concretos de natildeo cumprimento da lei e principalmente por
se tratarem de obras puacuteblicas pode-se concluir que o setor privado tenha mantido o
mesmo comportamento de burlar a lei
Pondero que natildeo apenas o Coacutedigo de Menores tenha sido descumprido em
algumas determinaccedilotildees pelo empresariado de Juiz de Fora mas tambeacutem a Lei de
Acidentes no trabalho de 1919 Do ano de 1919 ateacute 1930 foram preservados 67
processos de acidentes em que o trabalhador infanto-juvenil se envolveu A par dessa
informaccedilatildeo faccedilo a seguinte indagaccedilatildeo quantos acidentes natildeo foram comunicados ao
longo desse periacuteodo Levanto tal questionamento baseando-me nas informaccedilotildees
coligidas nos processos acerca das condiccedilotildees precaacuterias das instalaccedilotildees industriais e de
trabalho desses ldquomenoresrdquo como a falta de espaccedilos os fios eleacutetricos baixos e as longas
jornadas de trabalho e que provavelmente redundaram em um nuacutemero maior de
acidentes Outro dado que me leva a suspeitar da possibilidade de um nuacutemero maior de
acidentes nesse periacuteodo eacute o fato de que em alguns documentos pesquisados o
comunicado do acidente foi feito pelo proacuteprio operaacuterio ou por seu representante legal
pelo motivo de o empregador natildeo ter comunicado agraves autoridades competentes o
541
AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Albertino de
Oliveira 30-11-1929 cx 107 542
Coacutedigo de Menores - Consolida as leis de assistecircncia e proteccedilatildeo a menores Decreto no 17943-a de 12
de outubro de 1927 Disponiacutevel em httpwwwplanaltogovbrccivil_03decreto1910-
1929d17943ahtm
197
ocorrido em seu estabelecimento543
As ldquozonas opacasrdquo dos textos dos processos ou
seja os seus ldquofiosrdquo e ldquorastrosrdquo possibilitaram que tais questotildees fossem tecidas Segundo
Carlo Ginzburg todo texto eacute constituiacutedo de ldquozonas opacasrdquo e que perscrutando essas
partes ldquovozes incontrolaacuteveisrdquo podem emergir mesmo ldquocontra as intenccedilotildeesrdquo de quem
produziu a fonte544
No caso da documentaccedilatildeo em tela provavelmente os advogados
juiacutezes promotores gerentes patrotildees e outros atores natildeo pretendiam revelar esses
aspectos da industrializaccedilatildeo e da relaccedilatildeo empregado-patratildeo da ldquoManchester Mineirardquo
O processo do ldquomenorrdquo Joseacute Pinto Bretatildes de 18 anos de idade operaacuterio do
Moinho Prosperidade de propriedade de Nerval do Nascimento situado agrave Rua Halfeld
ilustra a relaccedilatildeo da classe empresarial de Juiz de Fora com a legislaccedilatildeo operaacuteria O
Comunicado do acidente foi feito pelo proacuteprio operaacuterio uma vez que o ldquopatratildeordquo natildeo
havia tomado as providecircncias necessaacuterias No ldquoAuto de Perguntasrdquo o representante do
proprietaacuterio do Moinho Nicolino Retto justificou o fato de natildeo ter dado ldquosciencia a
policia por ignorar que era necessaacuteriordquo545
Quantos outros proprietaacuterios natildeo
comunicaram os acidentes de seus operaacuterios agraves autoridades por comodamente
ldquoignoraremrdquo ldquoque era necessaacuteriordquo E ainda pode-se indagar quantos operaacuterios por
desconhecerem seus direitos ou por causa dos vaacuterios tipos de cerceamento e ou de
coaccedilatildeo natildeo comunicaram o fato agraves autoridades Com relaccedilatildeo agrave questatildeo do
conhecimento de seus direitos pelos operaacuterios tem-se de ponderar tambeacutem sobre a
facilidade de acesso dos mesmos agrave Justiccedila e os receios que possivelmente muitos
nutriam e ainda nutrem em ldquolevar o patratildeo na Justiccedilardquo fato esse corriqueiro entre as
pessoas mais humildes
Dos acidentes que foram comunicados agraves autoridades a maioria eacute relativa aos
trabalhadores das induacutestrias tecircxteis e malharias de Juiz de Fora Do total de 67
processos 35 se referem aos citados setores As faacutebricas que mais compareceram na
543 No processo de Geralda Farini de 15 anos de idade aprendiz na faacutebrica de chinelos de Oscar
Rodrigues Pereira o comunicado agrave autoridade policial do acidente ocorrido no dia 31 de maio de 1930
foi realizado pela matildee da ldquomenorrdquo no dia 03 de junho de 1930 Cf AHCJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash
Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Geralda Farini 09-06-1930 cx 107 Outro processo
em que o comunicado do acidente sofrido pelo operaacuterio natildeo foi realizado pelo patratildeo eacute o do ldquomenorrdquo
Pedro Jabour de 15 anos de idade e que havia pegado um ldquobiscaterdquo para substituir temporariamente um
funcionaacuterio doente na faacutebrica de balas (firma Alves Junior amp Cia) situada na Rua Marechal Deodoro O
acidente ocorrido em novembro de 1924 foi comunicado ao delegado de poliacutecia em marccedilo de 1925 pelo
proacuteprio Pedro Jabour Cf AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no
trabalho Pedro Jabour 08-04-1925 cx 003proc1 544
GINZBURG Carlo ldquoIntroduccedilatildeordquo In ________ O fio e os rastros verdadeiro falso fictiacutecio Satildeo
Paulo Companhia das Letras 2007 p 11-12 545
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Joseacute Pinto
Bretatildes 04-06-1921 cx 001proc 9
198
documentaccedilatildeo foram a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira
conhecida pelo nome de ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo546
com 11 (1642) registros a Faacutebrica
de Tecidos de Malha Meurer Irmatildeos amp Companhia com 8 (1194) processos e a
Companhia Tecircxtil Bernardo Mascarenhas com 6 (895) casos
A anaacutelise dos processos de acidentes no trabalho demonstra uma presenccedila
significativa de trabalhadores de origem europeia no setor industrial de Juiz de Fora
Essa constataccedilatildeo pode ser feita atraveacutes dos sobrenomes das testemunhas e das viacutetimas
bem como da informaccedilatildeo da nacionalidade dos pais dos ldquomenoresrdquo em muitos
documentos Na fonte compulsada abundam sobrenomes como Peterman Baresi
Gerheim Winther Abramo Farini Stephan Finocchio Rizzo Limp Stehling Jabour
Taddei entre outros Entretanto a presenccedila dos descendentes dos ex-escravos tambeacutem
foi observada na composiccedilatildeo da forccedila de trabalho das induacutestrias e oficinas da
ldquoManchester Mineirardquo atraveacutes da declaraccedilatildeo da cor (preto mulato moreno e pardo)
A principal induacutestria tecircxtil de Juiz de Fora a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem
Industrial Mineira fornece uma imagem bem reveladora da presenccedila do trabalhador
imigrante na composiccedilatildeo do heterogecircneo operariado da ldquoManchester Mineirardquo Em
1897 o trabalhador imigrante e seus descendentes constituiacuteam-se no grosso do
operariado desse estabelecimento fabril correspondendo a 714 dos 241 operaacuterios A
constante chegada de imigrantes na Hospedaria de Imigrantes Horta Barbosa em Juiz
de Fora favoreceu a contrataccedilatildeo de trabalhadores estrangeiros pelas induacutestrias do setor
tecircxtil por modestos salaacuterios e entre eles estavam muitas mulheres e crianccedilas que
tinham ordenados inferiores aos que eram pagos aos homens Na deacutecada de 1890 a matildeo
de obra feminina e infanto-juvenil da ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo correspondia
respectivamente a 469 e 328 do total de 241 empregados547
Sobre a Faacutebrica dos Ingleses o militante e dirigente do Partido Comunista
Italiano (deacutecadas de 1920-1960) Domenico Marchioro (1888-1965) deixou um
546
Segundo Luiacutes Eduardo de Oliveira a Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira fundada
na deacutecada de 1880 ficou popularmente conhecida pelo nome de ldquoFaacutebrica dos Inglesesrdquo Ela era fruto de
um consoacutercio que tinha como principais promotores e acionistas os ingleses Andrew John e Peter Steele
Willian Moreth e Henry Whittaker ndash ldquocomerciantes e industriais estabelecidos na Corte e na vizinha
Petroacutepolisrdquo OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit 2010 p 124 547
Segundo os dados da pesquisa de Luiz Eduardo de Oliveira sobre a formaccedilatildeo da classe operaacuteria
juizforana os italianos correspondiam a 32 dos 241 trabalhadores da Industrial Mineira em 1897 os
germacircnicos e seus descendentes a 386 os brasileiros e lusos a 286 e os ingleses a 08 Na soma que
realizei dos dados sobre os trabalhadores da Industrial Mineira apresentados por Oliveira natildeo estatildeo
inclusos os portugueses e seus descendentes pois eles foram relacionados junto com os brasileiros pelo
autor A porcentagem de 714 de trabalhadores imigrantes corresponde apenas aos italianos alematildees e
britacircnicos Cf OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit 2010 p 206-208
199
importante relato das condiccedilotildees do operariado de Juiz de Fora e das condiccedilotildees de
adaptaccedilatildeo e de sobrevivecircncia dos imigrantes548
Em 1896 Marchioro e sua famiacutelia (pai
matildee irmatildeos e uma tia) vieram para o Brasil Ao chegarem a Juiz de Fora ficaram como
os demais imigrantes no ldquoluacutegubre edifiacutecio destinado a hospedar os emigradosrdquo
(hospedaria de imigrantes Horta Barbosa) indo pouco tempo depois residir em uma
ldquocasinhardquo proacutexima da hospedaria Seu pai encontrou emprego em uma pequena faacutebrica
de cerveja mas apoacutes 15 dias de trabalho adoeceu o que fez com que Machioro e um
irmatildeo mais velho comeccedilassem a trabalhar nesse periacuteodo ele e o irmatildeo tinham pouco
mais de sete e nove anos de idade respectivamente Eles encontraram uma colocaccedilatildeo na
Faacutebrica dos Ingleses (Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira) e segundo
o relato
[] as condiccedilotildees de trabalho eram aquelas existentes na Inglaterra na
primeira metade do seacutec XIX descritas assim cruamente nos nefastos
relatoacuterios dos Inspetores de Faacutebrica do governo inglecircs daquele periacuteodo
horaacuterio de doze horas diaacuterias salaacuterios mensal miseraacutevel 13 liras italianas de
entatildeo e o chicote que tombava frequentemente sobre o tenro corpo dos
meninos tatildeo logo se distraiam sonolentos549
Entretanto Domenico Marchioro ressalta que as condiccedilotildees de trabalho na
induacutestria tecircxtil italiana natildeo diferiam muito das encontradas nos estabelecimentos fabris
brasileiros onde tambeacutem se empregavam crianccedilas de oito e dez anos com uma carga
horaacuteria de doze horas Segundo o autor as crianccedilas operaacuterias do Vecircneto (Itaacutelia)
cresciam ldquomiseraacuteveis e raquiacuteticosrdquo e com
[] os estigmas da inferioridade fiacutesica moral e intelectual sim tambeacutem e
sobretudo intelectual porque a uma notaacutevel porccedilatildeo deles era praticamente
tolhida a primeira instruccedilatildeo elementar sob esse edificante perfil tinham
muito pouco a invejar dos pequenos escravos do cotonifiacutecio inglecircs de
ldquoMariano Procoacutepiordquo550
548 MARCHIORO Domenico ldquoAutobiografia juvenil de um velho militante das lutas operaacuterias
Domenico Marchioro histoacuteria vivida sofrida e descrita por um proletaacuterio revolucionaacuterio corajoso do
final do seacuteculo XIX aos primeiros anos do seacuteculo XX na regiatildeo norte da proviacutencia de Vicenzardquo
Traduccedilatildeo Dr Antonio Folquito Verona Disponiacutevel em
httpwww2assisunespbrfolquitoautobiografia_marchiorohtm Acessado em 04-02-2015 Cf
OLIVEIRA Luiacutes Eduardo de Op cit p 252-253 549
MARCHIORO Domenico Op cit 550
Idem
200
Todavia para Marchioro o que tornava a vida nas faacutebricas brasileiras do periacuteodo
distinta de outras realidades fabris ldquoera o regime quase escravista existente nas relaccedilotildees
de trabalhordquo551
A presenccedila expressiva da matildeo de obra infanto-juvenil nas unidades fabris de
Juiz de Fora tambeacutem pode ser apreendida atraveacutes das ldquofalasrdquo dos personagens dos
documentos judiciais No processo de acidente da jovem operaacuteria da secccedilatildeo de fiaccedilatildeo da
Faacutebrica de Tecidos de Malha Meurer Maria da Conceiccedilatildeo de 15 anos de idade parda
oacuterfatilde de pai e matildee e que natildeo sabia ler nem escrever eacute declarado pelo representante do
dito estabelecimento Antonio Celso Vieira que na seccedilatildeo que a ldquomenorrdquo se acidentou soacute
trabalhavam ldquomenoresrdquo e que o ldquomaacuteximo ordenado percebido pelos mesmos nessa
secccedilatildeo eacute de dois mil reis (2$000)rdquo A jovem recebia quase o salaacuterio maacuteximo pois o seu
ordenado era de 1$800 reis552
A formaccedilatildeo de uma secccedilatildeo composta apenas por trabalhadores ldquomenoresrdquo eacute um
indicativo do interesse que o empresariado tinha na contrataccedilatildeo dessa parcela do
proletariado como um meio de reduzir os custos da produccedilatildeo uma vez que recebiam
proventos inferiores ao do trabalhador adulto do sexo masculino553
Outro operaacuterio da faacutebrica Meurer da seccedilatildeo de fiaccedilatildeo que foi viacutetima de um
acidente no trabalho foi o ldquomenorrdquo Japyassuacute de Abreu554
de 10 anos de idade que
sabia ler e escrever Em junho de 1921 ele teve os dedos anular meacutedio e miacutenimo da
matildeo direita esmagados quando procedia agrave limpeza da maacutequina ldquofilatoriardquo e teve os
dedos apanhados pela engrenagem da mesma Uma das testemunhas disse que ao ouvir
gritos no salatildeo de fiaccedilatildeo correu e encontrou o menino ldquocahido debaixo da machinardquo O
curador agrave lide555
Dr Sadi Carnot de Miranda Lima indicado pelo Juiz para defender os
interesses do operaacuterio fez um retrato no texto em que deu ldquoVistardquo ao processo das
condiccedilotildees de trabalho dos operaacuterios de Juiz de Fora Na ldquoVistardquo ao processo o curador
Sadi Carnot argumentou que apesar da pouca idade e ldquoquiccedila pensando nos brinquedos
que cedo e cruelmente a miseria lhe arrebataacuterardquo o menor jaacute estava empregado em um
551
Idem 552
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidentes no trabalho Maria da
Conceiccedilatildeo 24-01-1928 cx 006proc 15 553
MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 262 OLIVEIRA Luiacutes Eduardo Op cit
2010 p 171 e 254 554
O ldquomenorrdquo Japyassuacute de Abreu ora aparece como tendo nove anos de idade ora com dez anos ou doze
anos de idade AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho
Japyassuacute de Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8 555
Curador agrave lide - Pessoa especialmente nomeada pelo juiz da causa para defender os interesses ou o
direito do menor ou interdito no processo em que qualquer deles eacute parte Disponiacutevel em
httpwwwjusbrasilcombrtopicos408436curador-a-lide
201
estabelecimento fabril onde veio a se ferir Para o curador os acidentes envolvendo
crianccedilas e adolescentes nas faacutebricas e oficinas acenavam para a necessidade ldquode uma lei
federal que prohiba ou quando menos regule o trabalho dos menores de 14 annos nos
estabelecimentos industriais do paizrdquo556
Ele ainda asseverava o seguinte
[] Si possuissemos uma lei inspirada em taes principios possivelmente natildeo
teriamos de assignalar o desastre que motivou a presente acccedilatildeo porque outra
tarefa menos arriscada seria a do menor Japyassuacute
Eacute realmente desoladora a impressatildeo em que ficamos quando assistimos -
principalmente nesta culta cidade - o desfile dos operarios ao deixarem as
fabricas Pode-se affirmar que 40 destes satildeo crianccedilas menores de 12 annos
e muitas ainda com a blesidade infantil Notando-se consideravel numero de
meninas
Obrigados a desenvolver um esforccedilo emulo do operario adulto trabalhando
durante o mesmo espaccedilo de tempo que este - quando natildeo fazem seratildeo -
alimentando-se parca e irregularmente eacute contristador ver-se o aspecto doentio
que apresentam essas crianccedilas
Que cidadatildeos a inconsciencia dos nossos legisladores estaacute pregando para
servir a Patria damanhatilde
No interior do paiz nas povoaccedilotildees agriculas a anchilostomiase a molestia de
Chagas e a morpheacutea ceifam vidas numa voracidade espantosa quando natildeo
estiolam a energia dessas populaccedilotildees Nas cidades as fabricas alejam as
creanccedilas fenecem o vigor da mocidade e matam as esperanccedilas da velhice
E quando um brado da consciencia uma voz da humanidade parte da canalha
da rua dos paacuterias do brahmanismo brasileiro e echocirca no recinto do nosso
parlamento esmolando o desafogo do proletariado haacute sempre uma voz cujos
sons de metal azinhavrado tem a facilidade de convencer que no Brasil natildeo
haacute questatildeo social a resolver[] Sadi Carnot de Miranda Lima557
O curador Sadi Carnot em 1921 ressaltava a necessidade urgente que o paiacutes
tinha de regulamentar o trabalho dessa parcela da populaccedilatildeo Essa problemaacutetica esteve
presente nos perioacutedicos ao longo da Primeira Repuacuteblica e vaacuterios segmentos da
sociedade expuseram a premecircncia de leis de proteccedilatildeo do trabalhador infantil poreacutem
somente em fins da deacutecada de 1920 se deu a regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-
juvenil como discuti anteriormente neste capiacutetulo
Em sua argumentaccedilatildeo Sadi Carnot indagou ldquoque cidadatildeos a inconsciencia dos
nossos legisladores estaacute pregando para servir a Patria damanhatilderdquo Com essa indagaccedilatildeo
o curador sugeriu a meu ver a despreocupaccedilatildeo por parte de setores da classe dominante
com as condiccedilotildees de existecircncia dessa parcela da populaccedilatildeo bem como com a sua
inserccedilatildeo precoce no mercado de trabalho Os cidadatildeos que uma parcela de ldquonossos
legisladoresrdquo esperavam para servir a ldquoPatria drdquoamanhatilderdquo era o ordeiro o submisso o
556
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Japyassuacute de
Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8 557
Idem
202
trabalhador sujeito agraves mais precaacuterias condiccedilotildees e que a (in)consciecircncia dos mesmos
acreditava poder ser alcanccedilada atraveacutes de leis repressivas e natildeo sociais
O curador Sadi Carnot ainda chamou a atenccedilatildeo em seu parecer para a
descaracterizaccedilatildeo por parte dos setores dominantes da sociedade brasileira das
reivindicaccedilotildees operaacuterias ao declararem com ldquosons de metal azinhavradordquo que natildeo havia
ldquoquestatildeo social a resolverrdquo A respeito da negaccedilatildeo por setores da classe dominante
durante a Primeira Repuacuteblica da existecircncia da ldquoquestatildeo socialrdquo Gisaacutelio Cerqueira Filho
exorta que antes de 1930 ela natildeo se constituiacutea ainda ldquocomo questatildeo no pensamento
dominanterdquo figurando ldquosenatildeo como fato excepcional e episoacutedico natildeo porque natildeo
existisse jaacute mas porque natildeo tinha condiccedilotildees de se impor como questatildeo inscrita no
pensamento dominanterdquo natildeo sendo pois uma questatildeo ldquolegalrdquo na concepccedilatildeo de uma
parcela das classes dominantes a ldquoquestatildeo socialrdquo era entatildeo concebida e tratada como
ldquoum caso de poliacuteciardquo558
Retornando agrave argumentaccedilatildeo desenvolvida pelo curador Sadi Carnot no processo
de acidente no trabalho do ldquomenorrdquo Japyassuacute de Abreu sobre as condiccedilotildees do
operariado infanto-juvenil de Juiz de Fora pode-se observar a utilizaccedilatildeo por ele do
discurso construiacutedo pelos setores dominantes locais da cidade como culta moderna e
civilizada para entatildeo apresentar a cidade ldquosilenciadardquo que era ldquoinvisiacutevelrdquo aos olhos da
classe dominante559
Em sua descriccedilatildeo da ldquoManchester Mineirardquo o curador ressaltou
que ldquoo desfile dos operarios ao deixarem as fabricasrdquo era uma cena desoladora onde se
observava a presenccedila elevada de crianccedilas que apresentavam um ldquoaspecto doentiordquo
Ainda destacou a presenccedila ldquoconsideraacutevelrdquo de meninas naquele ldquodesfilerdquo560
A presenccedila feminina nas faacutebricas foi algo constantemente discutido pelos
jornais pelos meacutedicos higienistas pelo movimento operaacuterio e por outros segmentos da
sociedade Na passagem agrave modernidade a construccedilatildeo do tipo ideal de mulher ndash
educada boa esposa e matildee de famiacutelia ndash natildeo se adequava agrave realidade das mulheres dos
558
CERQUEIRA FILHO Gisaacutelio A ldquoquestatildeo socialrdquo no Brasil critica do discurso poliacutetico Rio de
Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1982 p 59 Cf FRENCH John D ldquoProclamando direitos metendo o
pau e lutando pelos direitos a questatildeo social como caso de poliacutecia 1920-1964rdquo In LARA Silvia H e
MENDONCcedilA Joseli Maria N (org) Direitos e Justiccedilas no Brasil ensaios de Histoacuteria social
Campinas Editora da Unicamp 2006 p 379-416 559
Iacutetalo Calvino no romance ldquoAs Cidade Invisiacuteveisrdquo faz a descriccedilatildeo de inuacutemeras cidades fantaacutesticas
atraveacutes do personagem Marco Poacutelo Cada uma eacute descrita com suas extravagacircncias problemas e
curiosidades Entretanto elas natildeo satildeo reais Agrave semelhanccedila das cidades invisiacuteveis do romance as classes
dominantes de Juiz de Fora descreviam uma cidade moderna civilizada e proacutespera que era ldquoinvisiacutevelrdquo
para a maioria da populaccedilatildeo Cf CALVINO Iacutetalo As Cidades Invisiacuteveis Biblioteca Folha [snt] 560
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Japyassuacute de
Abreu 28-06-1921 cx 001proc 8
203
setores empobrecidos que dadas as condiccedilotildees impostas pelas precaacuterias condiccedilotildees de
existecircncia tinham de recorrer ao mercado de trabalho nas faacutebricas nas casas das
famiacutelias abastadas e outras atividades inclusive em seus proacuteprios domiciacutelios como a
lavagem de roupas e as costuras por exemplo Todavia a forccedila de trabalho feminina
enfrentava uma dupla estigmatizaccedilatildeo a de trabalhar fora do lar e da desvalorizaccedilatildeo do
seu trabalho em termos salariais Aleacutem disso a mulher proletaacuteria precisa conviver com
a imposiccedilatildeo pela sociedade burguesa de severas normas morais e de conduta Segundo
Margareth Rago quanto mais as mulheres se afastavam ldquoda esfera privada da vida
domeacutesticardquo mais se viam cercadas por imposiccedilotildees morais e por cobranccedilas sociais para
com o lar o marido e os filhos561
A ideia da mulher como um ser talhado para ocupar o espaccedilo do lar como matildee
boa esposa e do casamento como um meio de garantia e realizaccedilatildeo para a mulher pode
ser percebido no processo da ldquomenorrdquo Augusta Gerheim
Augusta Gerheim de 17 anos de idade que trabalhava na Companhia de Fiaccedilatildeo
e Tecelagem Industrial Mineira declarou em maio de 1925 no processo de acidente no
trabalho em que figurava como viacutetima que natildeo sabia ler e nem escrever Ela acidentou-
se quando trabalhava na maacutequina de fiaccedilatildeo e teve a matildeo direita atingida resultando na
amputaccedilatildeo das falanges e falanginhas dos dedos polegar indicador e meacutedio562
O
promotor de justiccedila Nisio Baptista de Oliveira na ldquoVistardquo ao processo concluiu que a
indenizaccedilatildeo a ser paga pela Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Industrial Mineira agrave
ldquomenorrdquo deveria ser de 40 sobre o salaacuterio de trecircs anos da operaacuteria que era de 2$600
(dois mil e seiscentos reacuteis) diaacuterios ou seja a indenizaccedilatildeo deveria ser de 936$000
(novecentos e trinta e seis mil reacuteis) Entretanto o curador agrave lide Dr Constantino Luiz
Paletta natildeo concordou com o parecer do promotor pois entendeu que a indenizaccedilatildeo
deveria ser de 60 sobre o salaacuterio de trecircs anos da ldquomenorrdquo O Juiz de Direito da
comarca de Juiz de Fora Augusto Cesar Pedreira Franco em seu parecer analisou os
graves prejuiacutezos que o acidente traria para o futuro da operaacuteria Em sua explanaccedilatildeo o
juiz destacou
561
RAGO Margareth Do cabareacute ao lar a utopia da cidade disciplinar Brasil 1890-1930 Rio de
Janeiro Paz e Terra 1985 p 62-63 562
De acordo com o atestado meacutedico assinado pelo Dr Renato de Andrade em maio de 1925 a operaacuteria
teve as seguintes lesotildees ldquoA) amputaccedilatildeo da phalangeta e 12 phalanginha do dedo medio da matildeo direita
b) amputaccedilatildeo da 12 da 2a phalange do pollegar c) amputaccedilatildeo da phalangeta do index com ferimentos
lateral externo de 2 cm que causou perda correspondente de tecido mollerdquo AHUFJF Foacuterum Benjamin
Colucci - Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Augusta Gerheim 23-05-1925 cx
003proc 4
204
Considerando que a accidentada eacute uma moccedila de 17 annos nutrindo
naturalmente esperanccedilas de casar e no casamento encontrar o conforto que
natildeo tem como operaria
Considerando que essas esperanccedilas si natildeo ficaram apagadas estatildeo pelo
menos muito diminuidas por isso que com tal deformidade uma mulher
difficilmente encontraraacute marido563
Considerando que a ldquomenorrdquo tinha adquirido uma incapacidade parcial e
permanente para o trabalho por consequecircncia do acidente e que de acordo com o
entender do juiz poderia ateacute prejudicaacute-la a encontrar um marido o mesmo arbitrou a
indenizaccedilatildeo no valor maacuteximo estipulado pela Lei de Acidentes no Trabalho de 1919
ou seja de 60 sobre o valor do salaacuterio de trecircs anos da viacutetima em conformidade com o
parecer do curador agrave lide A senhora Elisa Gerheim matildee e representante legal da
ldquomenorrdquo recebeu a quantia de 1404$000 (um conto quatrocentos e quatro mil reacuteis)
referente agrave indenizaccedilatildeo pelo acidente sofrido pela sua filha
A anaacutelise cuidadosa do parecer do Juiz de Direito permite que se observe o tipo
de visatildeo que esse representante da justiccedila tinha sobre a mulher e o casamento A meu
ver uma visatildeo burguesa da instituiccedilatildeo familiar em que o homem era o provedor do lar
e a mulher a senhora do espaccedilo domeacutestico e dos cuidados com os filhos Para o Juiz o
acidente poderia prejudicar os sonhos da jovem Augusta Gerheim de se casar e de
encontrar nessa instituiccedilatildeo o ldquoconfortordquo que natildeo tinha enquanto operaacuteria Cabe ressaltar
poreacutem que muitas mulheres pobres precisavam contribuir financeiramente com o
sustento do lar e para isso recorriam agrave venda de sua forccedila de trabalho Provavelmente
muitas jovens das classes subalternas natildeo encontraram o ldquoconfortordquo no casamento que o
magistrado assinalou
As severas condiccedilotildees de trabalho a que as crianccedilas operaacuterias provavelmente
estavam expostas sem descanso e sem poderem brincar contribuiacuteram sobremaneira
para que fossem as ldquoprincipais viacutetimas de acidentes no trabalho e de doenccedilas
relacionadas ao trabalhordquo564
Aleacutem disso elas tambeacutem eram alvos dos castigos fiacutesicos
por parte de seus superiores toda vez que saiacuteam do padratildeo disciplinar imposto ao
trabalhador uma vez que
[] O emprego de castigos fiacutesicos como parte integrante do processo
educacional era aceito tanto na educaccedilatildeo formal como na profissional desde
que natildeo excedesse certos limites Nas escolas afora vaacuterias formas de
563
AHUFJF Foacuterum Benjamin Colucci ndash Processos relativos agrave accedilatildeo de acidente no trabalho Augusta
Gerheim 23-05-1925 cx 003proc 4 564
BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p 100
205
humilhaccedilatildeo dos alunos o uso de instrumentos de puniccedilatildeo como palmatoacuterias
eram de praxe 565
Os operaacuterios principalmente as meninas e as mulheres ainda sofriam outro tipo
de violecircncia ndash a sexual ndash que era praticada por patrotildees mestres e ou por companheiros
de trabalho566
Sobre a questatildeo do asseacutedio e dos abusos sexuais enfrentados pelas
operaacuterias Michelle Perrot assinalou que as jovens das faacutebricas tecircxteis francesas no
decorrer do seacuteculo XIX ldquodadas as relaccedilotildees de idade e de poder [] foram as viacutetimas
preferenciais dos abusos e das exigecircncias luacutebricasrdquo de seus chefes que exigiam com
frequecircncia o ldquodireito a primeira noiterdquo como forma de compensaccedilatildeo pela contrataccedilatildeo567
Essa situaccedilatildeo vivida pelas operaacuterias francesas muitas vezes contava com a
ldquocomplacecircncia das famiacutelias por muito tempo indiferentes agrave sua sujeiccedilatildeo sexualrdquo568
Esses abusos praticados contra as jovens trabalhadoras foi um dos grandes temas dos
jornais operaacuterios do Norte tecircxtil francecircs no final do oitocentos e o ldquodireito da primeira
noiterdquo foi uma questatildeo central da ldquogrande greve das operaacuterias de porcelana de Limoges
em 1905 feita contra o diretor amante de lsquocarne frescarsquordquo569
Em Juiz de Fora muitos casos de abusos contra as operaacuterias foram denunciados
mas eacute provaacutevel que muitos outros natildeo tenham sido levados ao conhecimento da justiccedila
por receio das jovens e ou familiares perderem o emprego por medo da opiniatildeo de
companheiros de trabalho e vizinhos entre outros fatores Poreacutem muitas trabalhadoras
denunciaram seus chefes e ou patrotildees por asseacutedio sexual e por terem sido violentadas
sexualmente pelos mesmos Carolina Neder ressalta que vaacuterias operaacuterias natildeo se
intimidaram com as ameaccedilas e com a humilhaccedilatildeo a que eram submetidas quando do
exame de corpo de delito para comprovar que haviam sido estupradas e denunciaram
os seus agressores Entretanto na maioria dos casos os processos se reverteram contra
as ofendidas que foram tidas como mulheres de moral duvidosa As mulheres
565
Idem apud PENTEADO Jacb Belegravenzinho 1910 (retrato de uma eacutepoca) 2 ed Satildeo Paulo Carrenho
EditorialNarrativa Um 2003 p 53 Na passagem agrave modernidade a praacutetica de castigos fiacutesicos nas
instituiccedilotildees escolares foram paulatinamente sendo abolidas por castigos morais No Brasil desde o iniacutecio
do seacuteculo XIX haacute o registro de leis que proibiam a utilizaccedilatildeo de castigos fiacutesicos nos alunos Entretanto
no decorrer das primeiras deacutecadas do seacuteculo XX tais praacuteticas ainda eram usuais nas escolas brasileiras
Cf ARAGAtildeO Milena FREITAS Anamaria Gonccedilalves Bueno de ldquoPraacuteticas des castigos escolares
enlaces histoacutericos entre normas e cotidianordquo In Conjecturas v 17 n 2 mai-ago 2012 p 17-36
Disponiacutevel em httpwwwucsbretcrevistasindexphpconjecturaarticleviewFile16481024 Acessado
em 01-06-2014 566
Cf NEDER Carolina Barbosa Op cit 2010 p 48 83-88 BATALHA Claacuteudio Op cit 2006a p
101-102 567
PERROT Michelle Op cit 1996 p 120 568
Idem p 120 569
Ibidem p 120-121
206
trabalhadoras eram visualizadas com desconfianccedila por setores das classes dominantes e
pelos membros do judiciaacuterio uma vez que natildeo se encaixavam no modelo burguecircs de
mulher ndash dedicada ao lar boa matildee e esposa e que natildeo saiam agraves ruas sozinhas570
Natildeo
apenas no acircmbito fabril ocorriam esses abusos As meninas que trabalhavam nas casas
das famiacutelias burguesas estavam expostas a todos os tipos de agressotildees e arbitrariedades
Pedro Nava em suas memoacuterias da meninice em Juiz de Fora ressalta que as meninas
que trabalhavam na casa de sua avoacute Inhaacute Luisa eram viacutetimas de asseacutedios Segundo
Nava seu tio Juacutelio aproveitava-se para ldquodeixar a matildeo-boba resvalar para os peitos de
bronze da ama-secardquo toda vez que ia brincar com a crianccedila que ela trazia ao colo571
Geralmente os casos de denuacutencia de abusos sexuais eram referentes a meninas e
mulheres Todavia Renata Lutiene Silva compulsando os processos criminais de rapto
e violecircncia carnal deparou-se com um caso de abuso sexual a um menino Em 1916
Joseacute Theodoro de treze anos de idade foi colocado por sua matildee dona Braudina para
trabalhar como auxiliar de carpinteiro de Francisco Gama casado de 78 anos de idade
para que aprendesse o ofiacutecio O ldquomenorrdquo morava e trabalhava na casa de seu patratildeo
onde se deu o abuso Dona Braudina denunciou o caso e as testemunhas arroladas
declararam que o reacuteu ldquotinha haacutebitos pederastas e que jaacute havia atentado contra Iliacutedio
outro menor que fora seu aprendizrdquo Poreacutem Francisco Gama foi inocentado e a
denuacutencia considerada improcedente dada a sua idade572
Os castigos fiacutesicos os abusos sexuais e psiacutequicos sofridos pelos pequenos
trabalhadores acrescidos de atividades muitas vezes superiores agraves suas forccedilas
interromperam e ainda interrompem a infacircncia de milhares de crianccedilas que bem cedo
aprenderam a enfrentar as adversidades da vida Como os filhos dos escravos durante o
periacuteodo escravista os pequenos proletaacuterios filhos de nacionais afro-brasileiros e de
imigrantes antes de completarem uma deacutecada de vida jaacute estavam familiarizados com a
labuta A literatura sobre o periacuteodo escravista tem destacado que a crianccedila escrava ao
570
NEDER Carolina Barbosa Op cit 2010 p 48 83-89 Em um dos casos de violecircncia sexual
analisados por Carolina Neder a operaacuteria da Companhia de Fiaccedilatildeo e Tecelagem Morais Sarmento Maria
de Assis negra menor de idade acusou o mestre da dita companhia Carlos Keller alematildeo de 46 anos
de tecirc-la violentado sexualmente Inicialmente ele foi inocentado apesar de as testemunhas assinalarem
que a operaacuteria Maria de Assis era moccedila virgem e honesta O parecer da justiccedila soacute foi alterado por causa
de uma carta recebida pela poliacutecia em que a esposa de Carlos Keller declarava que ele ldquose utilizava de
sua autoridade para manter relaccedilotildees sexuais com operaacuterias com quem trabalhavardquo e que Keller jaacute havia
sido condenado pelo defloramento de uma operaacuteria em outra cidade de onde eles fugiram e vieram para
Juiz de Fora Idem p 85-86 Cf SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 p 134 -140 Cf RAGO
Margareth Do Cabareacute ao lar a utopia da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista ndash Brasil 1890-1930
4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 571
NAVA Pedro Op cit 1974 p 4-5 Cf SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 p 78-79 572 SILVA Renata Lutiene da Op cit 2010 p 79
207
atingir a idade de sete anos tida como a ldquoidade da razatildeordquo era considerada apta para o
trabalho e ou para o aprendizado de uma atividade profissional573
Acredito que essa
idade tambeacutem era aplicada para as crianccedilas das camadas subalternas da sociedade para a
sua inserccedilatildeo no mercado de trabalho Isso anteriormente agraves leis que foram promulgadas
ao longo da Primeira Repuacuteblica com o fito de regulamentar o trabalho infantil que
entretanto muitas vezes foram burladas como tive a oportunidade de constatar durante
a anaacutelise dos processos de acidentes no trabalho examinados neste item A crianccedila pobre
aprendia bem cedo a rotina fabril com seu apito com os acidentes que dilaceravam suas
carnes e seus membros com o ar carregado e pesado dos estabelecimentos industriais
Na proacutexima parte analisarei um processo de lesatildeo corporal de um jovem
operaacuterio de uma unidade fabril de Juiz e Fora
33 MICUCCI A MORTE DE UM PEQUENO PROLETAacuteRIO DA
ldquoMANCHESTER MINEIRArdquo
[] Agrave mercecirc dos interesses do empresariado a crianccedila operaacuteria transforma-se
num trabalhador como outro qualquer cuja natureza quando vem agrave tona
como por exemplo ao transgredir a disciplina da faacutebrica eacute penalizada com
repreensotildees que atingem muitas vezes os limites do castigo corporal574
O objeto em tela nessa parte do capiacutetulo eacute analisar o processo de lesatildeo corporal
de um jovem operaacuterio de uma faacutebrica de tecidos de malha de Juiz de Fora que
supostamente foi espancado pelo gerente da unidade fabril e veio a falecer em
consequecircncia do ato de violecircncia de que foi viacutetima Antonio Gervason de 42 anos de
idade italiano gerente da faacutebrica de tecidos de Malha Meurer575
foi acusado de ter
espancado no interior do estabelecimento fabril o operaacuterio Antonio Micucci de 13 anos
de idade brasileiro filho de imigrantes italianos576
573
FRAGA FILHO Walter Op cit 1996 p 121 Cf MATTOSO Kaacutetia de Queiroz Op cit1998 574 MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de ldquoInfacircncia operaacuteria e acidente do trabalho em Satildeo Paulordquo
In DEL PRIORE Mary (org) Histoacuteria da crianccedila no Brasil Satildeo Paulo Contexto 1991 124 575
A Fiaccedilatildeo e Tecelagem de malha meias e camisas de meias do Sr Antonio Meurer foi fundada em
1896 e localizava-se em preacutedio proacuteprio agrave Rua do Espiacuterito Santo ESTEVES Albino LAGE Oscar Vidal
Barbosa (orgs) Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees
2008 p 285 e 317 Na deacutecada de 1920 de acordo com as informaccedilotildees por mim apuradas nos processos
de acidentes no trabalho a faacutebrica denominava-se ldquoFiaccedilatildeo e Tecelagem Meurer Irmatildeos amp Companhiardquo 576
Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima Antonio
Micucci 02-08-1919 cx 138 AHCJF Cf FRANCISCO Raquel Pereira ldquoMicucci a morte de um
pequeno operaacuterio ndash Juiz de Fora (1919)rdquo In NEDER Gizlene SILVA Ana Paula Barcelos Ribeiro da
208
A anaacutelise dos processos judiciais (criminais e ciacuteveis) tem obtido cada vez mais
relevacircncia nos estudos histoacutericos Atraveacutes dessa documentaccedilatildeo podem-se observar as
visotildees dos agentes da justiccedila com relaccedilatildeo agraves camadas menos favorecidas da sociedade
no que diz respeitos a suas relaccedilotildees familiares seus costumes modo de vida entre
outras questotildees As vozes dos excluiacutedos devem ser filtradas atraveacutes dos discursos
produzidos nessas e em outras fontes pela classe letrada uma vez que os textos foram
escritos pelos homens que detinham o poder (poliacutetico e econocircmico) e o saber dentre os
quais os juristas advogados meacutedicos poliacuteticos latifundiaacuterios e industriais
Por intermeacutedio das partiacuteculas filtradas dos textos o historiador pode
compreender diversas particularidades da sociedade em anaacutelise as tensotildees entre os
grupos sociais o posicionamento da Justiccedila e do Estado frente aos embates entre as
classes bem como outras problemaacuteticas
Imagem 18 Fachada da Faacutebrica de Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Tecidos de Malha Meurer ESTEVES Albino LAGE
Vidal Barbosa (org) Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG) Funalfa Ediccedilotildees
2008 p 317
SOUZA Jessie Jane Vieira de (orgs) Intoleracircncia e Cidadania secularizaccedilatildeo poder e cultura poliacutetica
Rio de Janeiro Autografia 2015 p 122-156
209
331 Entre tapas e pontapeacutes o pequeno operaacuterio Micucci
Antonio Micucci de 13 anos de idade brasileiro filho de Maria Micucci577
e de
Joseacute Micucci italianos como muitas outras crianccedilas pertencentes agraves camadas
empobrecidas da sociedade passava os seus dias entre as paredes e as maacutequinas de um
estabelecimento industrial Ele como outros meninos e meninas teve sua inserccedilatildeo no
mundo do trabalho precocemente provavelmente devido as necessidades familiares
Entretanto eacute necessaacuterio ressaltar que aleacutem da pobreza inuacutemeros fatores direcionavam
(e ainda direcionam) as crianccedilas e jovens para o mercado de trabalho sendo uma delas a
concepccedilatildeo de que o trabalho impedia que a crianccedila pobre se enveredasse para o mundo
do oacutecio da vadiagem e dos viacutecios Na passagem agrave modernidade o trabalho se revestiu
de uma aacuteurea passou a ser visualizado como algo que conferia dignidade disciplina e
respeito sendo que o ldquonatildeo-trabalho se identifica com a vadiagem que eacute matildee do crime
da imoralidade dos viacutecios da preguiccedilardquo578
Essa visatildeo positiva do trabalho difundida
por setores dominantes principalmente no periacuteodo de implantaccedilatildeo do regime de
trabalho livre no Brasil foi adotada pelas classes subalternas que entendiam que o
trabalho lhes conferia respeito e honra perante a sociedade
Micucci trabalhava na faacutebrica de tecidos de malha da viuacuteva Antonio Meurer e
Filhos ao lado de vaacuterias outras crianccedilas e jovens como pode ser constatado atraveacutes do
depoimento das testemunhas no processo de lesatildeo corporal A utilizaccedilatildeo e exploraccedilatildeo
da matildeo de obra infantil nas sociedades reguladas pelas relaccedilotildees capitalistas de
produccedilatildeo foi algo que perpassou as naccedilotildees do Velho e do Novo Continente em seus
processos de industrializaccedilatildeo e urbanizaccedilatildeo Segundo Silvia Villela de Andrade as
condiccedilotildees do operariado de Juiz de Fora eram semelhantes agraves dos proletaacuterios da capital
Federal (Rio de Janeiro) e de Satildeo Paulo579
As faacutebricas juiz-foranas utilizavam-se do
trabalho infanto-juvenil e feminino as condiccedilotildees das instalaccedilotildees industriais
577
A matildee de Antonio Micucci aparece no processo ora com o nome de Maria Manccia ora como Maria
Micucci Irei me referir a ela sempre como Maria Micucci Joseacute Miccusi italiano casado pai de Antonio
Micucci constituiu como seu bastante procurador o Sr Aristarcho Paes Leme para representaacute-lo no
processo que estava em andamento na justiccedila sobre o provaacutevel espancamento de seu filho Na
procuraccedilatildeo o sobrenome Micucci aparece escrito da seguinte forma Miccusi AHCJF Foacuterum da Cacircmara
de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima Antonio Micucci 02-08-1919
cx 138 578
LAPA Joseacute Roberto do Amaral Op cit 2008 p 17 Cf Cf RAGO Margareth Do Cabareacute ao lar a
utopia da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista ndash Brasil 1890-1930 4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra
2014 p 180-181 579
ANDRADE Silvia Maria Belfort Vilela de Op cit 1987 p 53
210
geralmente eram precaacuterias e os salaacuterios eram baixos e com longas jornadas de trabalho
Nesse cenaacuterio eacute que se deu o provaacutevel espancamento do operaacuterio Micucci Assim como
nas faacutebricas e oficinas cariocas e paulistas nessa cidade do interior mineiro tambeacutem os
maus-tratos aos trabalhadores eram verificados
Os operaacuterios cumpriam uma jornada de trabalho aacuterdua geralmente de 10 a 12
horas diariamente Segundo Esmeralda Moura ldquoas normas de trabalho impostas e o
ritmo de produccedilatildeo exigido incidiam sobre o conjunto do operariado mas natildeo de forma
indiferenciadardquo Em outras palavras o trabalhador infanto-juvenil estava exposto agraves
mesmas normas disciplinares e obrigaccedilotildees dos adultos580
Todavia esses ldquomenoresrdquo natildeo
tinham a mesma forccedila fiacutesica desenvoltura senso de responsabilidade e agilidade de um
operaacuterio adulto Natildeo dispondo dessas caracteriacutesticas dada a pouca idade muitas
crianccedilas-operaacuterias transformavam o local de trabalho em um espaccedilo para brincadeiras
jaacute que natildeo tinham outro o que muitas vezes poderia resultar em graves acidentes ou
problemas na produccedilatildeo Esses ldquoerrosrdquo eram alvos de medidas disciplinares por parte de
seus superiores581
Mas natildeo apenas as brincadeiras as atitudes improacuteprias para o local
de trabalho resultavam em repreensatildeo violenta por parte dos patrotildees e chefes aos
operaacuterios As ldquofalhasrdquo os ldquoerrosrdquo os ldquodescuidosrdquo com a produccedilatildeo tambeacutem eram
motivos para que os superiores demonstrassem todo o seu poder e os submetessem a
severos castigos fiacutesicos582
Os estabelecimentos fabris eram (satildeo) espaccedilos de disciplinas
coerccedilatildeo e poder Os operaacuterios eram submetidos a normas disciplinares e de conduta
dentro desse universo tendo seus ritmos de trabalho e atitudes constantemente sob a
ldquovigilacircnciardquo de todos que estatildeo inseridos naquela estrutura583
Segundo Michel
Foucault todos os sistemas disciplinares satildeo constituiacutedos de um ldquopequeno mecanismo
penalrdquo e que
[] na oficina na escola no exeacutercito funciona como repressora toda uma
micropenalidade do tempo (atrasos ausecircncias interrupccedilotildees das tarefas) da
atividade (desatenccedilatildeo negligencia falta de zelo) da maneira de ser
(grosseira desobediecircncia) dos discursos (tagarelice insolecircncia) do corpo
(atitudes ldquoincorretasrdquo gestos natildeo conformes sujeira) da sexualidade
(imodeacutestia indececircncia) Ao mesmo tempo eacute utilizada a tiacutetulo de puniccedilatildeo
580
MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 279 581
Para mais informaccedilotildees sobre as brincadeiras dos pequenos operaacuterios nos locais de trabalho ver
MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de 2006 p 268 ndash 270 582
Sobre os castigos fiacutesicos impetrados aos operaacuterios principalmente nos mais jovens ver BATALHA
Claacuteudio Op cit 2006a p 100 - 101 MOURA Esmeralda Blanco Bolsonaro de Op cit 2006 p 268
RAGO Margareth Do Cabareacute ao lar a utopia da cidade disciplinar e a resistecircncia anarquista ndash Brasil
1890-1930 4 ed Satildeo Paulo Paz e Terra 2014 p 182 188-189 583
FOUCAULT Michel Op cit 2007 p 147-148
211
toda uma seacuterie de processos sutis que vatildeo do castigo fiacutesico leve a privaccedilotildees
ligeiras e a pequenas humilhaccedilotildees584
O caso do operaacuterio Micucci ilustra bem a utilizaccedilatildeo dessa ldquomicropenalidaderdquo
dentro de um estabelecimento fabril O ldquomenorrdquo segundo os depoimentos de algumas
testemunhas natildeo estava brincando em seu local de trabalho mas cometeu uma falha
um erro na atividade que estava executando e por isso foi punido pelo gerente da
faacutebrica Antonio Gervason que o espancou Sobre o provaacutevel espancamento sofrido
pelo menino Micucci na faacutebrica Meurer a testemunha Maria Joseacute Sayatildeo de 16 anos
operaacuteria e que sabia ler e escrever relatou
[] quando se achava no seu trabalho que fica na mesma secccedilatildeo em que
trabalhava Micucci viu quando este por um descuido no trabalho deixou
cahir uma peccedila de fazenda no chatildeo que por esse motivo viu Gervason
repreender a Micucci em quem bateu dando-lhe bofetadas puchotildees (sic) de
orelha e ponta-peacutes que Gervason natildeo gosta que as operarias prestem attenccedilatildeo
quando elle estaacute batendo em algum operaacuterio mas apezar disso sem maior
reparaccedilatildeo a depoente observou que os tapas dados por Gervason em Micucci
apanharam a regiatildeo das costas que a despeito de Micucci ter sofrido todo
espancamento sem dar um grito e sem gemer pelo modo como elle foi feito
natildeo podia deixar de lhe proporcionar grandes docircres que Gervason
commumente bate nos operaacuterios menores que trabalham na fabrica e que na
secccedilatildeo da prensa onde trabalhava muitos meninos quase sempre se datildeo
espancamento585
O motivo que resultou no espancamento do proletaacuterio Micucci segundo o relato
de Maria Joseacute Sayatildeo foi fruto de um ldquodescuidordquo que ocasionou que uma ldquopeccedila de
fazendardquo caiacutesse ao chatildeo Dessa forma o gerente da faacutebrica Antonio Gervason aplicou
no jovem operaacuterio a ldquomicropenalidade do tempordquo e da ldquoatividaderdquo pois ao deixar o
tecido cair no chatildeo por um ldquodescuidordquo (desatenccedilatildeo negligencia falta de zelo) segundo
as palavras de uma testemunha Micucci interrompeu as suas atividades mesmo que
brevemente Sob o olhar ldquovigilanterdquo de seus companheiros de trabalho e de seu superior
o ldquodescuidordquo do proletaacuterio foi percebido e sob esses mesmos olhares ele foi punido
Como saber se ao deixar a peccedila de fazenda cair ao chatildeo o ldquomenorrdquo natildeo estivesse
brincando com um companheiro de trabalho Como saber se esse ldquodescuidordquo natildeo foi
resultado do cansaccedilo da fome ou do sono
Maria Joseacute Sayatildeo ainda asseverou que o gerente da faacutebrica era dado a espancar
outros ldquomenoresrdquo e que essa atitude era comum na ldquosecccedilatildeo da prensardquo onde segundo
584
Idem p 148 585
Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima Antonio
Micucci 02-08-1919 cx 138 AHCJF
212
suas palavras trabalhavam muitos pequenos operaacuterios A imagem abaixo eacute de uma das
seccedilotildees da faacutebrica Meurer O exame da fotografia coloca em evidecircncia o pouco espaccedilo
entre as maacutequinas Esse fator provavelmente circunscrevia os operaacuterios a uma pequena
aacuterea de movimentaccedilatildeo A imagem tambeacutem acena para a presenccedila de trabalhadores
mirins nesse setor do estabelecimento fabril
Imagem 19 Interior da Faacutebrica de Fiaccedilatildeo e Tecelagem de Tecidos de Malha Meurer ESTEVES Albino
LAGE Vidal Barbosa (org) Aacutelbum do municiacutepio de Juiz de Fora (1915) 3 ed Juiz de Fora (MG)
Funalfa Ediccedilotildees 2008 p 321
Com relaccedilatildeo agrave praacutetica da violecircncia contra os trabalhadores pelos patrotildees ou
chefes Esmeralda Moura ressalta que o trabalhador infanto-juvenil foi transformado no
ldquoalvo privilegiado de uma disciplina feacuterreardquo e ainda acrescenta que a relaccedilatildeo entre essas
partes ldquotalvez tenha sido aquela na qual as imagens do pai e do patratildeo frequentemente
se confundiamrdquo586
Durante a Primeira Repuacuteblica setores das classes dominantes transmitiam a
imagem de que a relaccedilatildeo patratildeo-empregado se assemelhava agrave existente entre pais e
filhos ou seja uma relaccedilatildeo de poder e obediecircncia Para Sidney Chalhoub a construccedilatildeo
dessa imagem tinha explicitamente o objetivo de controle social ao procurar mitigar o
potencial de conflito inerente agrave relaccedilatildeo capital-trabalho587
Em seu depoimento durante o inqueacuterito policial a matildee de Micucci assinalou
que chamava o menino para o trabalho agraves cinco e meia da manhatilde Supondo que o jovem
operaacuterio entrasse as seis ou sete horas no serviccedilo teria que trabalhar ateacute as dezessete
horas com intervalos para as refeiccedilotildees Essa rotina se dava de segunda-feira a saacutebado e
586
MOURA Esmeralda B Bolsonaro de Op cit 2006 p 268 587
CHALHOUB Sidney Op cit 2001 p 114-115
213
provavelmente os operaacuterios trabalhavam em peacute durante longas horas em atividades
monoacutetonas repetitivas e exaustivas em um ambiente saturado pela poeira e pelo
barulho das maacutequinas pela pouca iluminaccedilatildeo e ventilaccedilatildeo o que natildeo era em hipoacutetese
alguma salutar para o desenvolvimento fiacutesico dos pequenos operaacuterios
A apuraccedilatildeo da causa mortis do operaacuterio Antonio Micucci iniciou-se com as
investigaccedilotildees policiais logo apoacutes o seu falecimento no dia 31 de julho de 1919 No dia
primeiro de agosto o delegado de poliacutecia Sr Joseacute Ribeiro de Abreu tomando
conhecimento da morte do ldquomenorrdquo determinou que fossem intimados os meacutedicos Drs
Alberto Vieira Lima e Renato de Andrade Santos para realizarem naquele mesmo dia
no cemiteacuterio municipal o ldquoexame cadaverico do alludido menorrdquo Jaacute no dia dois de
agosto as testemunhas que foram arroladas comeccedilaram a dar seus depoimentos sobre o
que teria acontecido com o operaacuterio Micucci no dia 23 de julho uma quarta-feira na
faacutebrica de tecidos de malha Meurer onde ele trabalhava Ao todo foram interrogadas
dezesseis testemunhas entre funcionaacuterios da faacutebrica e meacutedicos Atraveacutes do depoimento
das testemunhas tem-se uma pequena imagem do cotidiano dos funcionaacuterios de um
estabelecimento fabril do iniacutecio do seacuteculo XX e da vida de uma famiacutelia de operaacuterios
Podemos tambeacutem captar atraveacutes da anaacutelise do processo o posicionamento dos homens
cultos da sociedade sobre os operaacuterios e suas famiacutelias
Das dezesseis testemunhas intimadas dez eram funcionaacuterias da faacutebrica sendo
sete mulheres e trecircs homens com idades variando entre quinze e vinte e sete anos de
idade Poreacutem os operaacuterios na faixa etaacuteria dos quinze e dezesseis anos perfaziam o total
de seis Com relaccedilatildeo agrave escolaridade desses dez funcionaacuterios a uacutenica informaccedilatildeo que foi
possiacutevel amealhar eacute a de que sabiam ldquoler e escreverrdquo ou ldquonatildeo sabiam ler nem escreverrdquo
sendo que neste item houve uma equivalecircncia
A presenccedila maior do sexo feminino entre as testemunhas corrobora as
informaccedilotildees da eacutepoca de que era imenso o nuacutemero de meninas e mulheres nas faacutebricas
tecircxteis de Juiz de Fora Em um processo de acidente no trabalho de 1921 o curador a
lide Dr Sadi Carnot de Miranda Lima na Vista ao processo de um ldquomenorrdquo que se
acidentou em seu local de trabalho assim descreveu o cenaacuterio fabril dessa cidade do
interior mineiro
[] Eacute realmente desoladora a impressatildeo em que ficamos quando assistimos -
principalmente nesta culta cidade - o desfile dos operarios ao deixarem as
fabricas Pode-se affirmar que 40 destes satildeo crianccedilas menores de 12 annos
214
e muitas ainda com a blesidade infantil Notando-se consideravel numero de
meninas588
Os perioacutedicos tambeacutem ressaltavam a elevada presenccedila de meninas e mulheres
nas induacutestrias de tecidos da cidade O jornal O Pharol de fevereiro de 1911 em um
encarte que estava sendo publicado com o nome Folha de Mariano trouxe uma mateacuteria
sobre a reivindicaccedilatildeo dos caixeiros pela reduccedilatildeo da jornada de trabalho e aproveitou
para chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees precaacuterias do operariado dos estabelecimentos
tecircxteis de Juiz de Fora destacando a situaccedilatildeo dos ldquomenoresrdquo e das mulheres Assim
descrevia a reportagem
Haacute entretanto outros operaacuterios mais sobrecarregados de trabalho e mais mal
remunerados Entre eles os das fabricas de tecidos principalmente mulheres
e crianccedilas
E assim que pobres operaacuterias da faacutebrica de tecidos de Mariano a maioria
composta de menores trabalham das 5 horas da manhatilde as 5 horas da tarde
com os pequenos intervalos das refeiccedilotildees e ainda fazem seratildeo ate as 11 horas
da noite segundo nos informam
A atmosfera que se respira nas faacutebricas de tecidos jaacute contribui para alterar a
sauacutede dos operaacuterios O mal aumenta consideravelmente com o acreacutescimo de
horas de trabalho sobretudo no veratildeo e principalmente quando esses
operaacuterios satildeo moccedilas e crianccedilas
Parece-nos que essa classe proletaacuteria tambeacutem merece a atenccedilatildeo de quem deve
cuidar da sauacutede e da higiene puacuteblicas que estatildeo um pouco acima do interesse
industrial589
A notiacutecia desenha um quadro de grande exploraccedilatildeo da matildeo de obra nas
induacutestrias tecircxteis Conforme salientado pelo Curador Sadi Carnot a reportagem tambeacutem
ressalta a presenccedila elevada de mulheres e crianccedilas nas induacutestrias juiz-foranas
Durante o inqueacuterito policial os depoimentos das testemunhas foram
apresentando contradiccedilotildees Dos dez operaacuterios da Fiaccedilatildeo e Tecelagem Meurer que foram
arrolados como testemunhas no inqueacuterito policial sete disseram que natildeo viram que
ouviram falar que nem viram e nem ouviram dizer que natildeo aconteceu nada que nada
sabiam apenas trecircs testemunhas declararam que viram o ldquomenorrdquo ser espancado com
chutes pontapeacutes puxotildees de orelha ser empurrado contra a parede e a maacutequina Mesmo
entre as declaraccedilotildees das testemunhas que disseram que assistiram ao suposto
espancamento haacute divergecircncias As operaacuterias Sebastiana Pereira Maria Joseacute Sayatildeo e
Virginia Judipina (italiana) de 15 16 e 23 anos de idade respectivamente em seus
588
AHUFJF Processos relativos agrave accedilatildeo de Acidentes no Trabalho Japyassuacute de Abreu 28-06-1921 cx
001proc 8 589
SM-BMMM O Pharol 02 fev 1911 p 2 ldquoFolha de Marianordquo
215
depoimentos apresentaram contradiccedilotildees no que diz respeito ao horaacuterio que teria
acontecido o espancamento - se antes ou depois do meio dia se Micucci continuou no
trabalho ateacute o final do expediente as dezessete horas ou natildeo se ele retornou ao trabalho
no restante da semana ou natildeo
Com relaccedilatildeo ao horaacuterio do suposto espancamento Sebastiana Pereira disse que o
ldquofacto se passou depois do meio dia natildeo podendo poreacutem precizar (sic) a hora exata em
que se deurdquo e Maria Joseacute Sayatildeo disse que foi por volta das ldquotreze horas mais ou menosrdquo
O problema com relaccedilatildeo ao horaacuterio encontra-se realmente no depoimento de Virginia
Judipina ao afirmar que ldquopela manhatilde antes do almoccedilo viu Antonio Gervason espancar
o operaacuterio Micucci dando-lhe com as matildeos e com os peacutesrdquo Por causa da ldquodivergecircncia e
contradiccedilatildeordquo nos depoimentos dos operaacuterios o delegado de poliacutecia Joseacute Ribeiro de
Abreu realizou um ldquoAuto de Acareaccedilatildeordquo entre as testemunhas no dia sete de agosto de
1919 As trecircs operaacuterias que disseram que haviam assistido ao espancamento
confirmaram suas declaraccedilotildees Com relaccedilatildeo ao horaacuterio que teria ocorrido o castigo de
que foi viacutetima o operaacuterio Micucci Sebastiana e Maria Joseacute declararam que o
espancamento havia ocorrido por volta do meio-dia poreacutem Virginia continuou
afirmando que havia se dado ldquoantes do almoccedilo que eacute feito as nove horas da manhatilderdquo
[grifos no original] Outro problema observado nos depoimentos dessas trecircs
funcionaacuterias estaacute na questatildeo se o ldquomenorrdquo permaneceu ateacute o final do expediente ou natildeo
depois do dito espancamento Sebastiana e Virginia disseram que ele permaneceu
trabalhando ateacute as dezessete horas e Maria Joseacute declarou que ele foi embora logo
depois por volta das treze horas Com relaccedilatildeo agrave permanecircncia de Antonio Micucci na
faacutebrica no restante da semana houve tambeacutem divergecircncia sendo que Sebastiana e
Virginia disseram que natildeo o viram mais na faacutebrica depois da suposta surra que ele
recebeu do gerente Gervason As demais testemunhas declararam que viram ou
estiveram com Micucci na faacutebrica depois da quarta-feira 23 de julho em que teria
ocorrido o espancamento O operaacuterio Orlando Meurer declarou que saacutebado 26 de julho
ldquoesteve as quatro e meia horas da tarde com a victima quando se limpavam as
machinasrdquo590
As testemunhas que disseram que assistiram ao espancamento citaram o nome
de outras operaacuterias que acreditavam que haviam presenciado o espancamento do
ldquomenorrdquo As operaacuterias que foram citadas negaram enfaticamente que tivessem
590
AHCJF Foacuterum da Cacircmara de Juiz de Fora Processos Criminais ndash Repuacuteblica Lesatildeo Corporal viacutetima
Antonio Micucci 02-08-1919 cx 138
216
assistido ao espancamento do menino Micucci Carolina Helt de 27 anos cortadeira
que era conhecida na faacutebrica pelo apelido de ldquoSinhaacuterdquo disse que trabalhava na mesma
sala que Micucci ldquosendo que o dito menor trabalhava em logar proacuteximo ao da depoenterdquo
e que natildeo havia acontecido nada com o menino na faacutebrica Ela ainda declarou que
ldquodepotildee sem insinuaccedilatildeo de ningueacutem porque a isso se oporia a quem tentasse fazerrdquo e que
as declaraccedilotildees de Sebastiana Pereira natildeo eram verdadeiras O discurso das outras
testemunhas citadas eacute semelhante ao de Carolina Helt
Observando esses depoimentos algumas indagaccedilotildees satildeo necessaacuterias como por
que apenas trecircs operaacuterias declararam a existecircncia da violecircncia contra o jovem operaacuterio
Antonio Micucci Por que os demais funcionaacuterios da faacutebrica Meurer negaram o
espancamento Nesse caso apenas conjecturas podem ser tecidas Os demais operaacuterios
provavelmente sentiram-se ameaccedilados de perderem o emprego na faacutebrica ou foram
efetivamente ameaccedilados caso confirmassem que havia ocorrido o espancamento
Possivelmente por causa das insinuaccedilotildees de que estava sendo coibida de dizer a
verdade a operaacuteria Carolina Helt tenha declarado que estava depondo ldquosem insinuaccedilatildeo
de ningueacutemrdquo As operaacuterias Sebastiana e Maria Joseacute que depuseram contra o gerente da
faacutebrica Meurer Antonio Gervason natildeo continuaram a trabalhar no dito estabelecimento
industrial Elas declararam que natildeo trabalhavam mais na faacutebrica pois saiacuteram
voluntariamente A testemunha Maria Joseacute Sayatildeo em seu depoimento em juiacutezo disse
[] depois que prestou o seu depoimento na policia ainda voltou ao trabalho
da fabrica e neste esteve durante dous dias natildeo continuando mais porque as
operarias Carolina Helt e Maria Bellote se puzeram a debical-a que esse
debique consistia em as referidas operarias dizerem aacute depoente que esta
quando depoz a verdade na policia eacute porque queria estar no embrulho e que
ellas Helt e Bellote natildeo haviam dito a verdade na policia para se livrarem
de embrulho que tem certeza absoluta que as operarias Helt e Bellote
assistiram ao espancamento e isto porque ellas como a depoente estavam
perto de Micucci quando este foi espancado []591
Os ldquodebiquesrdquo que as operaacuterias Carolina Helt e Maria Bellote comeccedilaram a fazer
a Maria Joseacute seriam a mando do gerente Estariam elas tentando amedrontar a
companheira de trabalho
A operaacuteria Virginia Judipina permaneceu no emprego na faacutebrica Meurer ateacute o
momento em que deu o seu depoimento na justiccedila Uma das suposiccedilotildees para a
permanecircncia de Virginia no emprego eacute o fato de que ela trabalhava na faacutebrica haacute dois
591
Idem
217
anos ou seja tinha domiacutenio do processo de produccedilatildeo e as outras estavam a poucos
meses empregadas Sebastiana ldquodurante quase um mezrdquo e Maria Joseacute ldquoquase tres
mezesrdquo
A perda do emprego a dificuldade de conseguir uma nova contrataccedilatildeo em um
estabelecimento industrial depois de acusar um representante e ou o patratildeo como na
expressatildeo da eacutepoca ldquoentrar no embrulhordquo significava uma possibilidade real para os
operaacuterios A ameaccedila da demissatildeo foi um dos mecanismos de coerccedilatildeo utilizados pelos
patrotildees para manter os operaacuterios submissos Entrar para o rol dos operaacuterios marcados
pelos estigmas de grevista baderneiro ou anarquista em uma cidade em que a classe
patronal se conhecia ou estava ligada por laccedilos familiares de parentesco ou de amizade
representava para a maioria dos operaacuterios um grande temor uma vez que poderia
resultar na possibilidade de o trabalhador natildeo conseguir empregar-se tendo de buscar
emprego em outro municiacutepioestado em muitos casos deixando a famiacutelia em
graviacutessima situaccedilatildeo financeira ateacute conseguir estabelecer-se profissionalmente Aleacutem
disso a falta de uma legislaccedilatildeo trabalhista gerava uma situaccedilatildeo de grande instabilidade
no seio da classe operaacuteria
As lutas dos operaacuterios por melhores condiccedilotildees de trabalho pela reduccedilatildeo da
jornada pela regulamentaccedilatildeo do trabalho infanto-juvenil por melhores salaacuterios soacute
avanccedilaram de uma forma mais significativa poacutes-deacutecada de 1930 No periacuteodo em tela
neste trabalho a classe operaacuteria obteve a sua primeira conquista na luta por direitos em
1919 com a promulgaccedilatildeo da Lei de Acidentes no Trabalho592
Poreacutem essa lei
apresentou limitaccedilotildees graves uma vez que contemplou basicamente os trabalhadores
do setor fabril ou seja trabalho mecacircnico593
Apoacutes essa breve descriccedilatildeo da situaccedilatildeo do operariado durante a Primeira
Repuacuteblica no que tange agraves leis sociais prossegue o exame do caso do ldquomenorrdquo
Micucci Analisando os depoimentos dos meacutedicos594
que examinaram a viacutetima observa-
se tambeacutem contradiccedilotildees no laudo sobre as condiccedilotildees do menino As manchas e
592
A partir de 1919 os operaacuterios ficaram assegurados por lei nos casos de acidentes ocorridos no local de
trabalho atraveacutes da Lei n 3724 de 15 de janeiro de 1919 regulamentada pelo Decreto n 13498 de 12
de marccedilo de 1919 Para mais informaccedilotildees acessar httpwwwacidentedotrabalhoadvbrleisDEC-
003724Integralhtm e
httplegissenadogovbrlegislacaoListaNormasactionnumero=13498amptipo_norma=DECampdata=1919
0312amplink=s 593
Idem p 83 594
Antonio Micucci foi examinado pelos seguintes meacutedicos Joatildeo drsquo Aacutevila Joatildeo Monteiro Cassimiro
Villela de Andrade Filho Antonio Luiz de Almada Horta Alciro Valladatildeo e Augusto Penna Filho
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contusotildees pelo corpo do ldquomenorrdquo natildeo foram relatadas por todos os meacutedicos ou foram
consideradas sem importacircncia por alguns de acordo com o que foi apurado nos relatos
dos doutores Entretanto todos os meacutedicos enfatizaram que o estado do jovem operaacuterio
era muito grave pois apresentava um quadro de febre altiacutessima mais de 40 graus e
estado delirante e que era uma moleacutestia infecciosa
O primeiro meacutedico a examinar Micucci foi o Dr Joatildeo drsquoAvila que disse natildeo ter
encontrado nenhum sinal aparente que induzisse a hipoacutetese de que o ldquomenorrdquo havia sido
espancado e que as insinuaccedilotildees de que o menino havia sofrido alguma agressatildeo natildeo se
confirmavam com os exames que havia realizado Segundo o seu diagnoacutestico era o
seguinte o quadro do menino
[] um exantema diffuso e manifestaccedilotildees para a pleura e pulmotildees que diante
dessa situaccedilatildeo desejaria que o seu juiacutezo fosse assistido pela opiniatildeo de um
collega distincto na sciencia e tambeacutem distincto pela sua probidade de
maneira a sentir-se assim melhor amparado nessa situaccedilatildeo que se
descortinava ao seu espirito como uma [bandeira de exploraccedilatildeo] que de facto
o seu collega que foi o illustre Dr Almada Horta sancionou o seu juiacutezo
aprovou a sua tese [pneutica] e concordou com o prognostico que
estabelecera de fatal595
Em seu depoimento o Dr Antonio Luiz de Almada Horta disse que na ldquovespera
do fallecimento do menor Micuccirdquo esteve na casa de um ldquodoenterdquo do ldquocollega Dr Joatildeo
drsquoAvillardquo na rua Fonseca Hermes para ldquover em conferenciardquo com o mesmo o estado do
menino O exame foi realizado no paciente na presenccedila de algumas pessoas da famiacutelia e
do Dr Joatildeo drsquoAvilla Segundo seu exame tratava-se de um
[] caso grave de moleacutestia infectuoza por isso que o doente em torpor
delirante tendo alta a temperatura dificuldade de respiraccedilatildeo alem de
apresentar na pelle em diversas partes do corpo manchas roacuteseas e algumas
rocheadas todas porem superficiaes denunciadoras em regra de infecccedilotildees
graves596
O Dr Almada Horta disse que examinando mais detidamente o menino
[] constactou lesotildees mal definidas para os pulmotildees e para as pleuras (pleuri
digo pleuro-penemonite) pequeno timpanismo abbdominal coraccedilatildeo abafado
alem de dores diffusas com localizaccedilatildeo pronunciadas para algumas
articulaccedilotildees ndash articulaccedilatildeo do hombro do joelho e do peacute do lado direito
595
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Idem
219
(todos do lado direito) que donde concluio tratar-se de um caso de moleacutestia
infectuosa grave597
Disse o Dr Almada Horta que depois de realizados os exames foi inquirido pelo
Dr Joatildeo drsquoAvilla se havia encontrado algum sinal de traumatismo ao que respondeu
que ldquoabsolutamente natildeordquo
O caso Micucci apresentava um cenaacuterio extremamente sombrio A gravidade do
caso era ressaltada por todos os meacutedicos que o examinavam e o problema jaacute havia
ganhado as paacuteginas dos jornais que denunciavam o caso com grande alarde Dentro
desse contexto o delegado de poliacutecia solicitou que o Dr Joatildeo Monteiro e o Dr Augusto
Penna Filho fossem ateacute a casa do dito operaacuterio para examinaacute-lo Em seu depoimento o
Dr Joatildeo Monteiro disse que encontrou o ldquomenorrdquo em ldquoestado febril delirante pallido
uma contusatildeo no tornosello esquerdo acompanhada de edema uma edema no joelho
tambeacutem esquerdo um exantema na parte anterior do thorax pescoccedilo e rostordquo598
O Dr Augusto Penna Filho descreveu um aspecto das condiccedilotildees da habitaccedilatildeo do
ldquomenorrdquo bem como seu estado Segundo Penna Filho
[] o exame a esse que tornou-se deficiente natildeo soacute devido ao estado do
paciente ser graviacutessimo como pela falta de iluminaccedilatildeo na habitaccedilatildeo do
enfermo que apoacutes o exame procurou o Dr delegado de policia dizendo-lhe
que o menino apresentava uma inflamaccedilatildeo no tornozelo esquerdo e o quadro
tiacutepico de uma grave infecccedilatildeo e uma pleurisia do pulmatildeo direito para a qual
chamou a attenccedilatildeo da famiacutelia do enfermo que aconselhou por essa razatildeo a
mesma famiacutelia que de novo chamasse o medico assistente599
A referecircncia da falta de iluminaccedilatildeo feita pelo Dr Penna Filho eacute um
demonstrativo da precariedade das casas dos operaacuterios e da populaccedilatildeo pobre em geral
A falta de iluminaccedilatildeo poderia estar relacionada agrave ausecircncia de uma janela no cocircmodo em
que se encontrava o moribundo Segundo Esmeralda Moura ldquoas habitaccedilotildees operaacuterias os
corticcedilos particularmente representavam cenas inequiacutevocas de um cotidiano pautado na
pobrezardquo600
O ldquomenorrdquo ainda passou pela avaliaccedilatildeo de outro meacutedico o Dr Alciro Valladatildeo
que esteve na casa do menino no dia 31 de julho
597
Ibidem 598
Ibidem 599
Ibidem 600
MOURA Esmeralda B Bolsonaro de Op cit 2006 p 275
220
[] mais ou menos a meia noite e alli jaacute encontrou o menor em questatildeo em
quase estado de comma que attendendo a essa circunstancia e como lhe
dissessem que o menor enfermo fora espancado sua attenccedilatildeo voltou
principalmente para o exame esterno que nesse exame alias feito em todo o
corpo notou algumas contusotildees na regiatildeo direita do homoplata (sic) e sobre a
matildeo direita que entretanto natildeo pode affirmar se essas contusotildees satildeo
consequencias de algum traumatismo ou se produsidas pela moleacutestia
infecciosa que acredita que o exame pericial esclareceraacute essa duvida que
devido ao estado adiantadiacutessimo da moleacutestia que se apoderara de Micucci
tanto assim que o depoente lhe deu poucas horas de vida o seu exame interior
foi mais ou menos raacutepido pois que o seu estado natildeo lhe permitia fazer maior
exame que quando tocava nas partes contundidas o depoente notava que o
doente natildeo acusava docircr entretanto tocando na regiatildeo abdominal verificava
que o doente gemia concluindo elle dahi que se tratasse de uma peritonite
que podia ser uma consequencia do traumatismo ou do curso natural da
moleacutestia601
Nos depoimentos dos meacutedicos que examinaram Micucci nenhum deles em seus
diagnoacutesticos confirmou que o ldquomenorrdquo poderia ter sido espancado Todos
encaminharam seus pareceres para a existecircncia de uma grave infecccedilatildeomoleacutestia uma
pneumonia As manchas roacuteseas e roxas pelo corpo as contusotildeesinflamaccedilotildees as dores
na regiatildeo abdominal foram consideradas provavelmente como uma consequecircncia da
grave infecccedilatildeo que havia se apoderado do jovem operaacuterio
O primeiro meacutedico a examinar o menino foi o Dr Joatildeo DrsquoAvilla Em seu
depoimento no inqueacuterito policial ele assinalou que natildeo havia dado muita atenccedilatildeo as
ldquoinsinuaccedilotildeesrdquo de que o ldquomenorrdquo havia sido espancado na faacutebrica Meurer Em suas
declaraccedilotildees o Dr Joatildeo drsquoAvilla deu a entender que a famiacutelia estava tentando se
beneficiar da doenccedila do menino Micucci com a histoacuteria de espancamento Em seu
segundo depoimento jaacute no sumaacuterio de culpa ele manteve a tese de que a famiacutelia estava
utilizando a doenccedila do menino e disse novamente que natildeo havia dado atenccedilatildeo agraves
insinuaccedilotildees da matildee do ldquomenorrdquo e acrescentou que tudo aquilo ldquo[] era uma verdadeira
phantasia e de que se desejava tirar partido e vantagemrdquo Para corroborar com o seu
diagnoacutestico de pleuro-pneumonia o doutor drsquoAvilla convidou o doutor Almada Horta
para examinar o ldquomenorrdquo
Pelo depoimento do meacutedico Joatildeo drsquoAvilla pode-se apurar o juiacutezo que setores
dominantes faziam das famiacutelias das camadas subalternas como dissimuladas
interesseiras desprovidas de caraacuteter e dispostas a tudo para tirar proveito de uma
situaccedilatildeo A literatura sobre as relaccedilotildees familiares da populaccedilatildeo pobre destacam que elas
601
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eram visualizadas pelos segmentos dominantes como permeadas pela imoralidade
promiscuidade ociosidade viacutecios e pela incapacidade de cuidar e educar seus rebentos
O Dr Augusto Penna Filho em seu depoimento disse que apoacutes examinar o
operaacuterio relatou ao delegado de poliacutecia que em seu exame
[] natildeo foi possiacutevel fazer um diagnostico de espancamento porquanto a
pleropneumonia pela intoxicaccedilatildeo que produz ao organismo pode fazer o
apparecimento de edema dores cyanose etc que aconselhou o doutor
Delegado de Policia que caso o menor vieacutesse a fallecer mandasse proceder aacute
autopsia porque existem si bem que raras pleuropneumonias thraumaticas602
A sugestatildeo do Dr Penna Filho de se proceder agrave autopsia no caso do falecimento
do ldquomenorrdquo pode ser interpretada como um alerta para a possibilidade de ter ocorrido o
espancamento Pode-se conjecturar que natildeo pretendendo contradizer seus
companheiros de profissatildeo ele tenha declarado que natildeo foi possiacutevel determinar que o
menino foi espancado poreacutem por alguma motivaccedilatildeo eacutetica ou ateacute sentimental ele
sentiu-se impelido a sugerir a autopsia esquivando-se de ser reprovado por seus colegas
e pelos setores dominantes Ele negou que o ldquomenorrdquo tenha lhe confidenciado que havia
sido espancado como a matildee de Micucci declarou em seu depoimento mas que essa
histoacuteria lhe foi contada pelos familiares do doente Em resposta a uma inquiriccedilatildeo do
advogado do reacuteu Dr Constantino Luiz Palleta o Dr Penna Filho assinalou que em
casos de infecccedilatildeo grave acompanhadas de temperaturas elevadas o paciente pode ldquo[]
manifestar terrores mostrando-se presa de phantasias e perseguiccedilotildeesrdquo
O depoimento do Dr Casemiro Villela de Andrade Filho no sumaacuterio de culpa
natildeo trouxe novidades com relaccedilatildeo ao estado do ldquomenorrdquo Esse meacutedico limitou-se a dizer
ldquoque natildeo depotildee sobre os factos que constatou durante o exame referentes ao doente
porque quer guardar o segredo profissionalrdquo Por que motivos o Dr Villela de Andrade
natildeo externou o seu parecer sobre a moleacutestia do menor Por que escolheu ldquoguardar o
segredo profissionalrdquo Seria isso uma confissatildeo velada de que a moleacutestia do jovem
operaacuterio Micucci e que o levou a morte era consequecircncia do espancamento de que
diziam que ele tinha sido viacutetima na Fiaccedilatildeo e Tecelagem da viuacuteva A Meurer e filhos Eacute
viaacutevel supor que o Dr Villela Filho natildeo quisesse se envolver no caso por natildeo concordar
com os rumos que o mesmo estava tomando A testemunha sendo reinquirida pelo
advogado do reacuteu disse ldquoque a ningueacutem externou o seu juiacutezo sobre a causa da moleacutestia
do menor Micucci ficando por essa foacuterma contestado o que se propalou a respeitordquo
602
Idem
222
A matildee do ldquomenorrdquo Maria Micucci contou em seu depoimento no sumaacuterio de
culpa que chamou o Dr Villela Filho para ir a sua casa ver o seu filho pois este natildeo
apresentava melhoras Ela relatou que o meacutedico disse ldquoque o haviam chamado aacute ultima
hora e que nada mais podia fazer que o doutor Villela ao sair disse que em vez de um
simples atestado deviam fazer autopsia em Micuccirdquo
O saber meacutedico foi construindo uma imagem do caso do suposto espancamento
do operaacuterio Micucci como uma ldquophantasiardquo arquitetada pela famiacutelia para obter algum
benefiacutecio e as provaacuteveis declaraccedilotildees do ldquomenorrdquo de que o gerente da faacutebrica Meurer
havia lhe batido seria nada mais nada menos que fruto de deliacuterios febris
A necropsia no cadaacutever do ldquomenorrdquo foi realizada no dia primeiro de agosto e o
resultado do laudo pericial saiu no dia sete do mesmo mecircs De acordo com uma mateacuteria
publicada no O Lynce a Associaccedilatildeo Operaacuteria havia contratado advogados e meacutedicos
para acompanharem o caso pois tinham receio de que a necropsia no corpo do ldquomenorrdquo
ldquofosse burladardquo Em protesto pelo acontecido foi declarada uma ldquogreve paciacutefica por 48
horasrdquo por ldquogrande parte do operariadordquo603
O exame pericial foi realizado em presenccedila do delegado de poliacutecia do promotor
puacuteblico representantes da imprensa e partes interessadas604
Os meacutedicos responsaacuteveis
pela necropsia no cadaacutever de Micucci foram os doutores Alberto Vieira Lima e Renato
de Andrade Santos (doutores pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro) que assim
concluiacuteram os resultados dos exames
[] podemos afirmar em san consciencia e conscios das nossas
responsabilidades de peritos que da necropsia tornou-se manifesta e essa eacute a
nossa firme convicccedilatildeo que a morte do menor Antonio Micucci ocorreu em
consequecircncia de uma ldquophlegmosia pleuro-pulmonarrdquo cujos caracteres
anatomicos digo anatomo-pathologicos podem ser com seguranccedila
emquadrado em sua espeacutecie moacuterbida sob a rubrica nosologica dosldquopleuro
pneumossitesrdquo E essa eacute a nosso ver a ldquocausa mortisrdquo A morte foi
ldquooccasionada por uma infecccedilatildeo especifica pelo ldquoPneumococcus de Tolomon
ndash Fraenkelrdquo [] Em tempo ndash accrecentamos que a inspecccedilatildeo da face interna
do thorax apoacutes a retirada das viacutesceras respectivas nada de anormal nos
apresentou605
O laudo pericial natildeo confirmou o suposto espancamento no ldquomenorrdquo sendo a
moleacutestia e a consequente morte do menino atribuiacutedas a uma ldquophlegmosia pleuro-
pulmonarrdquo
603
SM-BMMM ldquoColumna do Operariadordquo O Lynce 02-08-1919 p 2 604
Assinaram como testemunhas do exame pericial Norberto Madeira e Benjamim Barbosa Braga 605
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O Lynce na mateacuteria intitulada ldquoPezames Operariado de Juiz de Foacuterardquo do dia
nove de agosto anunciando o desfecho do caso assinala que as operaacuterias que haviam
declarado que o ldquomenorrdquo havia sido espancado continuavam a confirmar essa
informaccedilatildeo A reportagem em tom sarcaacutestico assinala que ldquoagora eacute que os
espancamentos em menores operaacuterios continuaratildeo com maior intensificaccedilatildeo agora que
a lsquoboca dos mestres e contra mestres ficaram adoccediladasrsquo com o caso Micuccirdquo Nessa
mesma mateacuteria eacute informado o caso de outro espancamento ocorrido na faacutebrica de
tecidos dos Ingleses dias depois do ocorrido na faacutebrica Meurer606
Os relatos e as denuacutencias de violecircncias e de diversas formas de coerccedilatildeo
impetradas contra os trabalhadores das faacutebricas e oficinas do comeacutercio das unidades
rurais foram e satildeo realidade ainda hoje na vida de vaacuterios operaacuterios O caso do suposto
espancamento de Micucci e de outros que foram noticiados pela imprensa eacute apenas uma
pequena mostra do cotidiano dos trabalhadores
Os casos de violecircncia contra os trabalhadores urbanos ou rurais no poacutes-
aboliccedilatildeo eacute um retrato da sociedade brasileira que conviveu com o trabalho compulsoacuterio
por mais de 300 anos A cultura autoritaacuteria o mandonismo dos patrotildees e dos superiores
encontra suas raiacutezes no passado escravista brasileiro607
O poder poliacutetico e econocircmico
poacutes-aboliccedilatildeo continuou nas matildeos de antigos escravocratas e ou de seus descendentes
grupo esse marcado por uma profunda cultura autoritaacuteria A esse respeito John French
assinala
A cultura autoritaacuteria e paternalista das classes dominantes com seus
impulsos repressivos inatos continuaria a permear a sociedade brasileira
mesmo depois de 1888 moldando as dimensotildees interpessoais juriacutedicas e
ideoloacutegicas do Brasil capitalista e industrial do seacuteculo XX608
Apoacutes o laudo da necropsia a autoridade policial tomou as declaraccedilotildees de Maria
Micucci matildee do jovem operaacuterio e do reacuteu Antonio Gervason No ldquoauto de perguntasrdquo
ocorrido no dia oito de agosto de 1919 Maria Micucci relatou os uacuteltimos dias de seu
filho Segundo ela no dia vinte e trecircs de agosto uma quarta-feira dia do suposto
espancamento o menino retornou para casa no horaacuterio habitual ldquotriste e sem querer
receber alimentaccedilatildeo alguma que nessa noite o menino foacutera de seus haacutebitos se deitou
606
SM-BMMM ldquoPezames Operariado de Juiz de Foacuterardquo O Lynce 9 ago 1919 p 3 No jornal O Pharol
do dia 6 ago 1919 foi publicada nas Notas Policiais mais uma denuacutencia de espancamento de um pequeno
operaacuterio O ldquomenorrdquo Bernardo Lobo denunciou que havia sido espancado pelo ajudante de mestre da
Companhia Industrial Mineira SM-BMMM ldquoNotas Policiaisrdquo O Pharol 6 ago 1919 607
Para uma discussatildeo mais ampla sobre a questatildeo da escravidatildeo e liberdade no mundo do trabalho na
sociedade brasileira ver FRENCH John Op cit 2006 608
Idem p 78
224
vestidordquo A declarante disse que tomou essa atitude do filho como ldquopreguiccedila de voltar
ao trabalho e por isso natildeo se incomodou com o factordquo Nos dias seguintes Micucci
continuou a natildeo se alimentar e na sexta-feira em vez de ir para o trabalho foi para a
casa da irmatilde Ana Coelho que residia na Rua de Santa Rita Ao retornar para casa ele
solicitou para que a matildee pedisse ao gerente da faacutebrica Antonio Gervason para natildeo lhe
bater mais poreacutem
[] que ainda nessa occasiatildeo a declarante suppoz que se tratasse antes de
preguiccedila por parte do menor e natildeo quiz acreditar nas suas informaccedilotildees ou
queixas que no dia seguinte sabbado ainda fez com que seu filho Antonio
Micucci seguisse para a fabrica e como notasse que elle parecia seguir de maacute
vontade foi ateacute a esquina e de longe o observou ateacute a distancia que as cinco
horas tarde digo da tarde de sabbado regressou o menino tristonho e sem
acceitar alimento algum foi se deitar ocasiatildeo em que se pocircz vomitar que
nessa occasiatildeo a declarante indo saber do menor se sentia alguma coisa ficou
sabendo por elle que o sr Antonio Gervason lhe havia batido tambeacutem
naquelle dia (sabbado) e que assim natildeo podia mais suportar acrecentando
(sic) que estava machucado [nas costas] por um socirccco recebido que tinha
tambeacutem maxucada uma das pernas informando o menino que essa lesatildeo
recebeu contra um ferro da machina onde foi atirado por Gervason []
Apesar das insistentes queixas do menino a matildee disse natildeo ter acreditado antes
pensou que fosse apenas ldquopreguiccedilardquo Somente quando o ldquomenorrdquo comeccedilou a demonstrar
fisicamente que estava passando mal que a matildee passou a dar creacutedito a suas palavras A
eacutetica do trabalho provavelmente operou na decisatildeo da Maria Micucci de insistir para
que seu filho retornasse a suas atividades laborais pois aquele comportamento do
menino destoava do que era esperado pelos pais e responsaacuteveis e pela sociedade
dedicar-se ao trabalho As condiccedilotildees sociais das famiacutelias operaacuterias no iniacutecio do seacuteculo
XX muitas beirando a sobrevivecircncia possivelmente levaram muitos pais a fazerem
vistas grossas aos tapas e ldquopetelecosrdquo recebidos por seus filhos nos locais de trabalho ou
de aprendizagem de um ofiacutecio Entretanto eacute necessaacuterio ressaltar que o ato de corrigir
uma crianccedila ou adolescente atraveacutes da utilizaccedilatildeo da forccedila fiacutesica (bater surrar) fazia
parte nessa eacutepoca da concepccedilatildeo de educaccedilatildeo Os pais corrigiam e educavam seus filhos
com as chinelas varas tapas e palmatoacuterias E nas escolas os castigos fiacutesicos bem como
os morais tambeacutem eram empregados para disciplinar os alunos
Maria Micucci disse que mandou uma filha ir agrave casa de Gervason para lhe pedir
que enviasse meacutedico e medicamento e que nessa ocasiatildeo o gerente da faacutebrica Meurer
disse que ldquonatildeo o culpasse porque elle apenas tinha dado um peteleco no meninordquo Ele
enviou entatildeo ldquodois cartotildees sendo um para a pharmacia e outro para o medico Dr
225
Avilardquo Em seguida ela passou a relatar a visita de vaacuterios meacutedicos em sua casa para
examinar o ldquomenorrdquo
O gerente da faacutebrica limitou-se no ldquoauto de perguntasrdquo a dizer que natildeo havia
batido no menino Micucci e que era ldquointeiramente innocente no facto que se lhe
imputardquo Disse tambeacutem que no saacutebado havia mandado o ldquomenor comprar um paiz
para sua leitura que a esse menino dava preferencia para seus [mandaletes] por ser elle
um bom meninordquo
Atraveacutes do depoimento do gerente Gervason observa-se que aleacutem das
atividades exercidas no recinto fabril os ldquomenoresrdquo tambeacutem eram utilizados para
cumprirem outras tarefas os [mandaletes] para seus superiores
O delegado de poliacutecia Joseacute Ribeiro de Abreu em seu relatoacuterio no processo crime
de ldquoque foi theatro a Fabrica de Tecidos de Malha da viuacuteva A Meurer e Filhos e fez
echo em toda a imprensa desta cidade e ateacute fora daquirdquo passou a relatar como tomou
conhecimento do suposto espancamento sofrido pelo operaacuterio na dita faacutebrica Ele disse
que foi procurado em sua residecircncia por duas senhoras na tarde do dia 30 de julho que
lhe relataram o caso Apoacutes esse fato ele
[] mandou na casa do menor o Dr Joatildeo Monteiro meacutedico da poliacutecia e
recomendou aos agentes de policia que sobre o facto procedessem aacute
necessaacuteria investigaccedilatildeo porque no inqueacuterito regular que [tencionava]
instaurar tudo ficaria esclarecido
Em sua explanaccedilatildeo dos fatos disse que foi procurado na delegacia por um
italiano de nome Paschoal Luiz que denunciou ter sido o jovem operaacuterio espancado
pelo gerente da faacutebrica Meurer e que ele ldquomorreria em consequecircncia dos ferimentos
graves que lhe produziu Antonio Gervasonrdquo O delegado disse que alertou o dito
Paschoal da gravidade da denuacutencia e sobre a possibilidade de ele responder um processo
por caluacutenia caso aquela acusaccedilatildeo natildeo fosse confirmada Poreacutem Paschoal natildeo
compreendendo esse alerta da autoridade policial ou de maacute feacute passou a declarar que
Joseacute Ribeiro de Abreu natildeo queria tomar providecircncias sobre o caso e que ateacute o havia
ameaccedilado de prisatildeo O delegado desmente essas informaccedilotildees Apesar de denunciar o
suposto espancamento na delegacia Paschoal Luiz natildeo apareceu entre as testemunhas
do caso Micucci
Ainda em seu relatoacuterio dos fatos o delegado passou a descrever os depoimentos
das testemunhas as contradiccedilotildees e o resultado do laudo do auto de corpo de delito que
226
estabeleceu que natildeo havia evidecircncias do suposto espancamento Com relaccedilatildeo aos
depoimentos das testemunhas onde algumas declararam que ocorreu o espancamento e
outras que o negaram o delegado de poliacutecia ponderou que como natildeo se tratava
na hyppothese de testemunhas versadas na arte de enganar satildeo antes moccedilas
empregadas da mesma fabrica e que naturalmente natildeo alimentam nenhuma
animosidade contra o indiciado animosidade essas que as conduzissem a
uma possiacutevel mentira a sustentaccedilatildeo da invencionice natildeo era faacutecil mormente
no auto de acareaccedilatildeo quando foram inquiridas umas testemunhas em frente
das outras609
(grifos no original)
De acordo com as provas dos autos e provavelmente por natildeo acreditar que as
testemunhas que confirmaram o espancamento estivessem mentindo por completo o
delegado concluiu que o gerente da Faacutebrica de tecidos de Malhas Meurer Antonio
Gervason realmente
offendeu physicamente e levemente ao menor Antonio Micucci incorrendo
por isso na sancccedilatildeo do art 303 do Cod Pen que diz ldquooffender pysicamente
algueacutem produzindo-lhe dor ou alguma lesatildeo no corpo embora sem
derramamento de sangue610
O delegado Joseacute Ribeiro de Abreu natildeo descartou a possibilidade do ldquomenorrdquo ter
sofrido algum tipo de violecircncia fiacutesica por parte do gerente Antonio Gervason Todavia
ele ressaltou que a ofensa fiacutesica foi leve posto isso nenhuma relaccedilatildeo poderia ter com a
causa mortis do jovem operaacuterio Micucci tendo ocorrido pois uma ldquoinfeliz
coincidecircnciardquo e desta forma Gervason natildeo poderia ser responsabilizado pela morte do
ldquomenorrdquo
Com a conclusatildeo do inqueacuterito policial os autos foram remetidos para o Juiz
Municipal da Comarca de Juiz de Fora Hugo de Andrade Santos Apoacutes os mesmos
foram remetidos ao Promotor Puacuteblico para dar ldquoVistardquo No dia sete de outubro de 1919
apoacutes dar ldquoVistardquo aos autos o promotor puacuteblico Dr Nisio Baptista de Oliveira
apresentou denuacutencia contra Antonio Gervason pelo suposto espancamento do ldquomenorrdquo
por ter infringido o art 303 do Coacutedigo Penal
As testemunhas foram arroladas e intimadas para deporem no processo judicial
No interrogatoacuterio foram ouvidas tambeacutem as irmatildes da viacutetima Ana Coelho e Rosa
Micucci No interrogatoacuterio da matildee do ldquomenorrdquo Maria Micucci ela declarou que
609
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Idem
227
inicialmente natildeo acreditou nas queixas de seu filho de que ldquoGervason o espancava e isso
todas as vezes em que se quebrava uma agulha poreacutem a depoente natildeo acreditava e
suppunha ser [faralandice] e mentira de seu filhordquo Relatou ainda que quando seu filho
adoeceu e a depoente o chamava cedo para o trabalho o mesmo se queixava dela e dizia
que por ela ser ldquoitaliana estava esganada pelo seu trabalhordquo611
Na transiccedilatildeo do seacuteculo XIX para o XX o Brasil recebeu uma grande leva de
imigrantes principalmente de origem europeia Muitos imigrantes vieram fugindo de
guerras e conflitos da fome e da miseacuteria Eles traziam em suas trouxas e bagagens o
sonho de uma vida melhor na nova terra poreacutem esse sonho para a grande maioria
rapidamente se desvaneceu Nas aacutereas rurais eles foram submetidos a vaacuterias formas de
exploraccedilatildeo e coerccedilatildeo que se assemelhavam agraves relaccedilotildees escravistas o que contribuiu
para que muitos deles abandonassem as unidades agriacutecolas para viverem nas aacutereas
urbanas engrossando dessa forma o contingente de matildeo de obra disponiacutevel para a
induacutestria bem como de miseraacuteveis Nos centros urbanos os imigrantes empregados no
comeacutercio nas oficinas e nas faacutebricas tambeacutem vivenciaram vaacuterias formas de coerccedilatildeo e
exploraccedilatildeo da sua forccedila de trabalho Eacute viaacutevel supor que as dificuldades enfrentadas
pelas famiacutelias imigrantes desde sua terra natal fizessem com que vislumbrassem no
trabalho uma saiacuteda para melhorar as condiccedilotildees de vida e desse modo era de
fundamental importacircncia a contribuiccedilatildeo de todos os membros da famiacutelia Quando o
jovem operaacuterio Micucci dizia que sua matildee por ser ldquoitaliana estava esganada pelo seu
trabalhordquo talvez fosse pelo fato de ela o obrigar a trabalhar mesmo ele natildeo se sentido
bem ou pela crenccedila ou desejo de seus pais melhorem as condiccedilotildees de vida em uma terra
estrangeira fazendo com que todos os membros trabalhassem Todavia nesse caso
apenas conjecturas podem ser tecidas
No processo judicial as irmatildes do operaacuterio Micucci Ana Coelho 29 anos de
idade italiana casada e do serviccedilo domeacutestico e Rosa Micucci 19 anos de idade
brasileira solteira tecelatilde foram intimadas Em seu depoimento Ana disse que os
remeacutedios e meacutedicos fornecidos a ldquoseu irmatildeo o foram pela Caixa de Beneficencia a que o
mesmo tinha direito como um de seus contribuintesrdquo Rosa assinalou que a pedido de
611
De acordo com o Diccionaacuterio da Liacutengua Portugueza de Antonio de Moraes Silva ldquoEsganarrdquo
significava afogar apertando as fauces estrangular Privar de liacutequidos matar algueacutem com sede
Estrangular-se Se com sede de ouro ou etc desejar muito o ouro ou as cousas que se appetecem com
ardor Flor Diz-se tambeacutem que se esganam os que fallam ou gritam muito BMMM-SM SILVA
Antonio de Moraes Diccionario da Liacutengua Portugueza 6 ed Lisboa Typographia de Antonio Joseacute da
Rocha 1858 (Tomo I ndash A-E)