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7 Ci. Huma. e Soc. em Rev. RJ, EDUR, vol. 36, 1, jul / dez, p.07 - 25, 2014 Percepção e cuidados com as pessoas diagnosticadas com psicopatologia crô- nica nas Comunidades Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul. Antonio Carvalho Silva 1 Esther Jean Langdon 2 Dulce Lopes Ribas 3 RESUMO Este artigo apresenta os resultados da pesquisa sobre as percepções e práticas de autoa- tenção dos índios Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul, no que se refere aos paren- tes de indivíduos envolvidos em um processo clínico e diagnosticados como sofrendo de psicopatologia crônica. Explora como os membros das famílias percebem, reconhecem e explicam as doenças mentais, ou seja, busca entender o modelo explicativo (ME) dos sujeitos para as doenças mentais identificadas e diagnosticadas pelas equipes multidisci- plinares que atendem a população indígena. Num segundo momento, analisa a percepção das causas e sua relação com o itinerário terapêutico. O trabalho demonstra que os indí- genas percebem as aflições de seus parentes como perturbações física-morais, e não como condições médicos biológicas e atribuem as causas aos conflitos sociais, quebra de tabus e a vulnerabilidade do sofredor aos ataques dos espíritos. Palavras chaves: percepções de doença mental, Guarani-Kaiowá, modelo explicativo, análise cultural, perturbação físico-moral; índios sul-americanos. ABSTRACT is article presents the results of research on the perceptions and practices of mental health care among the Guarani and Kaiowá Indians of Mato Grosso do Sul. It explores the 1 Graduado em Medicina pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1995), tendo concluído a residência em Psiquiatria pela Santa Casa de Campo Grande (1998). Atualmente é membro do corpo clínico do Hospital Psiquiátrico Nosso Lar. Tem experiência no atendimento de indígenas com transtornos mentais, atuando principalmente no seguinte tema: expressão da doença mental na população indígena Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul 2 Possui graduação em Departamento de Antropologia e Sociologia - Carleton College (1966), mestrado em Departamento de An- tropologia - University of Washington (1968) e doutorado em Antropologia - Tulane University of Louisiana (1974), Pós-doutorado da Indiana University (1993-4) e University of Massachusetts, Amherst 2009.. Atualmente é professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora do Instituto Nacional de Pesquisa: Brasil Plural. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Cosmologia e Saúde, atuando principalmente nos seguintes temas: antropologia da saúde, saúde indígena, política da saúde indígena, narrativa e performance, xamanismo e cosmologia. 3 Possui graduação em Nutrição pela Universidade Federal de Mato Grosso (1984), mestrado em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1997), doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (2001) e Pós-doutorado em Antropologia da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010). É professora associada I da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Populações Indígenas GEPPI/UFMS, pesquisadora e orien- tadora no Curso de Mestrado em Ciências da Saúde da UFGD. Tem experiência na área de Nutrição e Saúde Coletiva, com ênfase em Epidemiologia Nutricional, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde indígena, consumo alimentar, segurança alimentar, avaliação nutricional e educação alimentar e nutricional. Dossiê saúde mental

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Silva, Antonio Carvalho da, Esther Jean Langdon e Dulce Lopes Ribas. Percepção e cuidados com as pessoas diagnosticadas com psicopatologia crônica nas Comunidades Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul. Dosie Ciencias Sociais e Saúde Mental. Ciências Humanas e Sociais em Revista. 36(1): 7-25. ISSN 21751196 (2177-756X)

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Percepção e cuidados com as pessoas diagnosticadas com psicopatologia crô-nica nas Comunidades Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul. Antonio Carvalho Silva 1

Esther Jean Langdon 2

Dulce Lopes Ribas 3

RESUMOEste artigo apresenta os resultados da pesquisa sobre as percepções e práticas de autoa-tenção dos índios Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul, no que se refere aos paren-tes de indivíduos envolvidos em um processo clínico e diagnosticados como sofrendo de psicopatologia crônica. Explora como os membros das famílias percebem, reconhecem e explicam as doenças mentais, ou seja, busca entender o modelo explicativo (ME) dos sujeitos para as doenças mentais identificadas e diagnosticadas pelas equipes multidisci-plinares que atendem a população indígena. Num segundo momento, analisa a percepção das causas e sua relação com o itinerário terapêutico. O trabalho demonstra que os indí-genas percebem as aflições de seus parentes como perturbações física-morais, e não como condições médicos biológicas e atribuem as causas aos conflitos sociais, quebra de tabus e a vulnerabilidade do sofredor aos ataques dos espíritos.Palavras chaves: percepções de doença mental, Guarani-Kaiowá, modelo explicativo, análise cultural, perturbação físico-moral; índios sul-americanos.

ABSTRACTThis article presents the results of research on the perceptions and practices of mental health care among the Guarani and Kaiowá Indians of Mato Grosso do Sul. It explores the

1 Graduado em Medicina pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1995), tendo concluído a residência em Psiquiatria pela Santa Casa de Campo Grande (1998). Atualmente é membro do corpo clínico do Hospital Psiquiátrico Nosso Lar. Tem experiência no atendimento de indígenas com transtornos mentais, atuando principalmente no seguinte tema: expressão da doença mental na

população indígena Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul 2 Possui graduação em Departamento de Antropologia e Sociologia - Carleton College (1966), mestrado em Departamento de An-tropologia - University of Washington (1968) e doutorado em Antropologia - Tulane University of Louisiana (1974), Pós-doutorado da Indiana University (1993-4) e University of Massachusetts, Amherst 2009.. Atualmente é professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenadora do Instituto Nacional de Pesquisa: Brasil Plural. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Cosmologia e Saúde, atuando principalmente nos seguintes temas: antropologia da saúde, saúde indígena, política da saúde indígena, narrativa e performance, xamanismo e cosmologia. 3 Possui graduação em Nutrição pela Universidade Federal de Mato Grosso (1984), mestrado em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1997), doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (2001) e Pós-doutorado em Antropologia da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010). É professora associada I da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Populações Indígenas GEPPI/UFMS, pesquisadora e orien-tadora no Curso de Mestrado em Ciências da Saúde da UFGD. Tem experiência na área de Nutrição e Saúde Coletiva, com ênfase em Epidemiologia Nutricional, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde indígena, consumo alimentar, segurança alimentar, avaliação nutricional e educação alimentar e nutricional.

Dossiê saúde mental

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perception of relatives of individuals engaged in a clinical process and diagnosed as suffe-ring from chronic psychopathology. It explores how family members perceive, recognize and explain mental illness; that is, it attempts to understand the explanatory model (EM) of the subjects for mental illnesses identified and diagnosed by the Multidisciplinary Me-dical teams that attend the indigenous population. In addition, it analyzes the perception of causes and their relation to the therapeutic itinerary. The article demonstrates that the Indians perceive their relative’s afflictions as a physical-moral perturbation, and not as a medical condition to be treated by the health services. The causes are attributed to social conflict, broken taboos and the vulnerability of the sufferer to spirit attacks. For this re-ason, they do not perceive official medical services as offering a cure for their suffering.Key words: perception of mental illness; Guarani-Kaiowá; explanatory model; cultural analysis; physical-moral perturbation

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta os resultados da pesquisa sobre as percepções e práticas de autoatenção dos índios Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul no que se refere aos parentes de indivíduos en-volvidos em um processo clínico e diagnosticados como sofrendo de psicopatologia crônica. Bus-camos, neste artigo, identificar como os membros das famílias percebem, reconhecem e explicam as doenças mentais, ou seja, buscamos entender o modelo explicativo (ME) dos sujeitos para as doenças mentais identificadas e diagnosticadas pelas equipes multidisciplinares que atendem a po-pulação de suas aldeias. Num segundo momento, procuramos identificar a percepção das causas, e a relação que esta tem com o tratamento procurado para os parentes sofrendo de psicopatologia crônica.

Todos os atores envolvidos em episódios de doenças têm modelos explicativos próprios e estes são relacionados aos seus sistemas de conhecimento e valores (KLEINMAN, 1978, p, 88). Assim, a compreensão dos Guarani-Kaiowá sobre as doenças mentais é diferente da visão biomédica quan-to às categorias diagnósticas, às causas atribuídas e também às práticas vistas como adequadas para resolver o problema. Segundo Kleinman (1978) o modelo explicativo é um conjunto de proposi-ções ou generalizações, explícitas ou tácitas, sobre a doença que “determina o que é considerado como evidência clínica relevante e como esta evidência é organizada e interpretada para abor-dagens racionalizadas de tratamento específico” (KLEINMAN, APUD ALVES, 1993, p. 266). No entanto, os MEs de uma doença são diversos, dependendo dos atores envolvidos no episódio patológico e modificam ao longo do processo da enfermidade.

Do ponto de vista da Psiquiatria, por exemplo, a psicopatologia crônica é entendida como as alte-rações que comprometem a consciência e a conduta de forma prolongada (por mais de seis meses). A consciência compreendida em suas três acepções: nível neurofisiológico (grau de consciência ou vigilância); fenomenológica (consciência do eu, dos objetos e da realidade) e consciência moral (no sentido de Prichard – “moral insanity”) e a conduta em suas várias manifestações; compor-tamento anormal, através do qual o indivíduo sofre, faz sofrer ou participa de ambas as situações (SCHNEIDER, APUD BASTOS, 2004). Tudo isso envolvendo uma perda da liberdade interior

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do indivíduo que o impediria de escolher coerente, deliberada e sensatamente seu modo de agir, sua conduta, auto determinando-se de acordo com o próprio arbítrio e com a sua própria vontade (EY, APUD BASTOS, 2004). Dessa forma, a pessoa é considerada doente quando as manifesta-ções psíquicas nos sugerem um raciocínio sobre alterações neurofisiológicas, tratando-se de uma

abordagem materialista e individualista do problema (EISENBERG, 1977). Essa percepção resul-ta em que o tratamento ou o cuidado esta relacionado à atenção que se dispensa ao doente como indivíduo.

Sendo assim, na maioria das vezes, a definição médica de psicopatologia não coincide com a ma-neira Guarani-Kaiowá de compreender os casos de seus parentes doentes. Diferente da psiquiatria ou biomedicina, a procura da compreensão da doença vai além dos processos biológicos ou psíqui-cos do corpo individual (LANGDON AND MACLENNAN, 1979; LANGDON, 2005). “O fato mais importante a respeito de uma doença (...) é menos o reconhecimento do processo pato-lógico (o como) do que sua causa subjacente” (BUCHILLET, 1991, p. 26), ou seja, o significado da doença é relacionado às causas atribuídas que vinculam o episódio da doença aos processos sociais ou cosmológicos.

Nesta perspectiva abordamos a psicopatologia crônica entre os Guarani-Kaiowá não como um evento primariamente biológico, mas como um processo vivenciado cujo significado e práticas terapêuticas são elaborados por meio de episódios culturais e sociais. A análise cultural demons-tra que a doença não é apenas uma categoria diagnóstica universal, mas também um processo dinâmico que requer interpretação e ação no meio sociocultural cujo processo e significado são negociados através da busca da cura (STAIANO, 1981; LANGDON, 1994). Assim, para explo-rar a dinâmica sócio-cultural no processo de reconhecimento e tratamento de doenças mentais dos Guarani-Kaiowá, substituímos a palavra doença para o conceito de “perturbação” de Luis Fernando Duarte (2003) definido como uma experiência físico-moral que não corresponde às racionalidades biomédica e psicológica.

CONTEXTO SOCIOECONÔMICO ATUAL DOS GUARANI-KAIOWÁ

Atualmente, cabe aos Guarani e Kaiowá de MS o retrato de fragilidade social e política no contex-to indígena nacional. Eles vêm sendo destacados nos noticiários regionais e nacionais, devido às taxas altas de violência, abuso de álcool e drogas, suicídios e desnutrição infantil (RAMOS, 2011). Também sofrem como vítimas de violência interétnica e de violações de direitos humanos.

A constatação de que as comunidades kaiowa e guarani foram expropriadas de seus territórios tra-dicionais para dar lugar à expansão de frentes de ocupação agropastoril, foi amplamente descrita nos estudos realizados por Antonio Brand (1993, 1997).

De acordo com Pereira (2007), a situação de reserva, imposta pelo SPI a partir de 1928, altera profundamente o padrão tradicional de assentamento das parentelas e aldeias. “Antes da ocupação colonial, a população kaiowá se territorializava de acordo com: a) a disponibilidade de locais con-siderados apropriados, por comportarem recursos naturais para o estabelecimento da residência, pois, como disse o líder político de uma reserva, “antigamente o índio sempre procurava o lugar

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bom para morar, onde tinha mato bom, água boa”, ou seja, há um conjunto de fatores ecológicos influenciando tal escolha; b) o local estar livre de ameaças sobrenaturais, como espíritos maus ou mortos ilustres recentes; c) a proximidade de parentelas aliadas, com as quais era possível fazer festas e rituais religiosos, sendo a rivalidade com os vizinhos um acontecimento suficiente para provocar a migração; d) a capacidade do cabeça de parentela e do líder da aldeia de conduzir efi-cazmente a vida comunitária, ou seja, de demonstrar habilidade para unir os parentes e resolver problemas de convivência entre os fogos domésticos; e, ainda, e) a incidência ou não de doenças ou mortes repentinas provocadas por causas consideradas não-naturais” (PEREIRA, 2007, p.6).

A perícia na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, desenvolvida por Eremites de Oliveira e Pereira (OLIVEIRA E PEREIRA, 2009), destaca que a expropriação das terras indígenas na região foi mais intensa em alguns períodos, como entre as décadas de 1930 e 1950, período que coincide com o requerimento e titulação da maior parte das terras por particulares e, entre as décadas de 1960-1980, quando ocorre a ocupação efetiva da maior parte das terras com atividades agropecu-árias.

Segundo Pereira (2010), na ausência da base territorial as comunidades Guarani e Kaiowá passa-ram a conviver com graus variados de fragmentação em seus módulos organizacionais, afetando diretamente as relações situadas no campo da produção das condições materiais de existência, do parentesco, da residência, da política e dos eventos festivos e rituais religiosos que conformam e dão sentido as suas organizações comunitárias. Tal situação compromete a reprodução física e cultural da população kaiowa e guarani, criando impasses para a convivência da população aglo-merada nas reservas, o que se expressa no agravamento de problemas sociais (PEREIRA, 2010).

O início da indústria sucroalcooleira exacerbou esta situação no começo da década de 1980. Com a crescente mecanização das demais atividades agrícolas e a dependência das famílias indígenas do trabalho assalariado devido à baixa produtividade das terras indígenas, grande número de homens Guarani-Kaiowá começaram a se ausentar de suas comunidades para trabalhar nas usinas de pro-dução de açúcar e álcool. Conforme o Ministério Público do Trabalho, mais de 13 mil indígenas trabalham nas usinas (INSTITUTO SÓCIO-AMBIENTAL, 2008).

A migração dos homens para as regiões de canaviais vem provocando mudanças na estrutura e di-nâmica das relações familiares. Os valores e autoridade que estruturam a vida do grupo contavam com a importante presença paterna; hoje são transmitidos quase que exclusivamente pela mãe ou avó (RICARDO, 2009). A falta da presença da autoridade masculina vem acompanhada pelo au-mento de transito dos jovens entre as aldeias e as áreas urbanas, uma migração associada ao abuso de drogas e álcool nas reservas.

Também, há um processo geral de dependência de recursos externos para a sobrevivência das fa-mílias. A diminuição das roças no interior das aldeias tem aumentando a compra de mantimentos (ASSIS & ZUCARELLI, 2007). Nem sempre os recursos adquiridos com o trabalho nas usinas sucroalcooleiras contribuem para a subsistência da família na aldeia, mas permanecem nas mãos dos homens, financiando o consumo de álcool e as violências associadas. Assim, a dependência das famílias das cestas básicas de alimentos e dos benefícios da previdência social, tais como auxílio--doença, auxílio-maternidade, aposentadoria por idade e invalidez, têm se tornado cada vez mais essenciais para a sobrevivência.

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Todo este processo de assalariamento, dependência e empobrecimento também tem provocado uma reestruturação das relações familiares. Tradicionalmente, as aldeias Guarani-Kaiowá foram compostas por famílias extensas relacionados por parentesco, em que as relações de socialidade e reciprocidade resultaram em obrigações e colaborações mútuas entre os membros. A família extensa operava como uma rede de apoio, compartilhando e trocando recursos segundo os valo-res e éticas tradicionais. Hoje, sem a possibilidade de auto sustentabilidade e com o aumento da dependência de recursos externos, as famílias extensas vêm se fragmentando e se reestruturando. Uma das estratégias de reestruturação entre as famílias é a procura dos auxílios governamentais para o maior número de seus integrantes, para garantir a estabilidade econômica (MURA, 2006).

A fragmentação da unidade familiar concomitantemente à alta densidade demográfica nas reser-vas têm resultado em conflitos e violências entre famílias que anteriormente não residiam juntas quanto entre parentelas rivais. Estes são acentuados pelos efeitos do elevado consumo de bebidas alcoólicas, contribuindo para momentos altamente explosivos e acusações recíprocas de feitiçaria. Segundo o ponto de vista indígena, o surgimento de diversos tipos de doenças, incluindo as de ordem psíquica, tem origem em atos de feitiçaria.

Neste contexto, as igrejas (presbiterianas e neo-pentecostais) e seus pastores parecem surgir como uma alternativa, pois entendem o feitiço, o suicídio, os atos de violência, o consumo abusivo de drogas ilícitas e de bebidas alcoólicas e as perturbações mentais (espirituais, diriam os índios), como estados de doença que se manifestam a partir da influência de elementos externos à pessoa. Para elas, seriam manifestações ligadas ao “diabo”, enquanto para os Guarani-Kaiowá, não-crentes, estariam relacionadas à manifestação da alma dos mortos, do dono das doenças, etc. Portanto, em ambos os casos, a orientação e a intervenção do pastor ou rezador tornam-se imprescindíveis. Nesse sentido, Vietta e Brand (2003) afirmam que os problemas ligados à saúde são os maiores motivadores da conversão às igrejas e estas representam, no momento, a única alternativa para conter os aspectos negativos da conduta da pessoa, ocupando, aparentemente, o espaço deixado em aberto pelo falta dos rezadores ou xamãs tradicionais em certos locais.

Desde a implantação do subsistema de saúde indígena e os Distritos Sanitários Indígenas Especiais (DSEI), equipes multidisciplinares (EMSI) vêm oferecendo atenção primária para população das aldeias. Diante da alta taxa de mortalidade infantil em crianças menores de 1 ano, muitas como re-sultado de desnutrição, a atenção à saúde indígena em Mato Grosso do Sul tem como principal ob-jetivo combater o índice de mortalidade infantil através da assistência ao pré-natal e ao Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher Indígena (PAISMI). Os profissionais de saúde associam os índices de desnutrição e mortalidade infantil ao consumo abusivo de bebidas alcoólicas com a percepção que os pais trocam produtos da cesta básica de alimentos por bebidas destiladas, não conseguem trabalhar com regularidade nem cuidar de seus filhos como deveriam. Dessa forma, a atenção primária que é oferecida aos Guarani-Kaiowá está focada nos problemas relacionados ao consumo abusivo de substâncias psicoativas, tais como suicídio, violência e abandono das crianças (COLOMA E VICK, 2010).

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CONTEXTO DA PESQUISA: IDENTIFICAÇÃO E ATENDIMENTO DOS PORTA-DORES DE PROBLEMAS DE SAÚDE MENTAL

O primeiro autor do artigo é psiquiatra e, de 2006 a 2009, fez parte das equipes do Programa da Saúde de Família (PSF) indígena em diversas aldeias do MS, atendendo como clínico geral. Durante este tempo, os enfermeiros identificaram pessoas com problemas de doença mental, par-ticularmente mulheres grávidas, se ofereciam resistência à abordagem da equipe de saúde para realização do pré-natal ou quando não cuidavam bem de seus filhos pequenos, contrariando a ex-pectativa do sistema oficial de saúde porque não conseguiam fazer com que seus filhos saíssem do quadro de desnutrição. Além disso, a justificar o pedido de avaliação psiquiátrica, argumentava-se que essas mães deixavam as crianças sujas, infectados com doenças de pele e nem sempre prepara-vam as refeições como deveriam, além de se embriagarem com frequência.

A partir do segundo semestre de 2007, inicia-se o programa de saúde mental indígena no MS, com prioridade para a redução das altas taxas de suicídio e problemas relacionados ao consumo de álcool e outras drogas (PORTARIA Nº 2.759 DE 25 DE OUTUBRO DE 2007). Foram contratados pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) profissionais das áreas de psicologia e da assistência social para ampliar a capacidade técnica das Equipes Multidisciplinares de Atenção Básica à Saúde Indígena (EMSI). Os novos profissionais se depararam com a tarefa de abordar e encaminhar inúmeros doentes para tratamento psiquiátrico atribuição que, até aquele momento, estava a cargo apenas das enfermeiras e médicos.

Alguns doentes, após consulta psiquiátrica, chegaram a ser encaminhados para tratamento no hos-pital Nosso Lar – o maior hospital psiquiátrico do estado localizado na capital, Campo Grande, devido ao comportamento gravemente disfuncional. Também, outras pessoas com problemas de saúde mental grave têm sido identificadas e internadas pelo sistema judiciário por causa de atos de violência. Em geral, o acesso dos indígenas aos serviços de saúde mental dos respectivos mu-nicípios se depara com vários obstáculos, e assim, a participação do primeiro autor desde 2006 na EMSI facilitava a identificação de pacientes precisando de atenção mais especializada e também de encaminhamento para os serviços de referência. Nem todas as pessoas sofrendo de doenças mentais graves são identificadas por estes programas de intervenção na saúde dos Guarani-Kaiowá. Existem pessoas que perambulam abandonadas pelas aldeias, manifestando desorientações psíquicas e descuidos com a higiene pessoal. Somente quando começam a agredir as pessoas ou causam outros distúrbios comunitários que as autorida-des públicas procuram alguma intervenção. Também, em alguns casos, os familiares destas pessoas sofrendo de perturbações, por mediação dos agentes de saúde indígena (AIS), procuraram aten-dimento psiquiátrico.

METODOLOGIA

É dentro do contexto das solicitações dos membros das equipes de saúde, dos familiares e de pro-cessos judiciais por avaliação e atendimento psiquiátrico, que o projeto foi desenvolvido, visando entender a percepção dos Guarani-Kaiowá sobre a psicopatologia crônica e identificar os fatores que influenciam os cuidados dos parentes com este diagnóstico. A pesquisa foi realizada entre 2009 e 2010.

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No que tange à amostra, do total das avaliações psiquiátricas realizadas entre 2006 e 2009, 19 doentes diagnosticados com psicopatologia crônica foram selecionados para a pesquisa. O critério principal, além do diagnóstico, para a seleção destes pacientes foi o melhor grau de familiaridade do pesquisador com os casos e com seus familiares. Seis destes casos haviam sido internados no hospital. Aos outros pacientes foram receitados medicamentos antipsicóticos no ambulatório dos Postos de Saúde nas aldeias. Além dos pacientes inicialmente selecionados, através do método de “bola de neve” mais cinco casos foram adicionados durante a pesquisa de campo. Três destes foram incluídos por questões comparativas, dado que estes não tinham passado pelo crivo dos serviços de saúde publica, mas foram identificados por AIS ou por familiares durante o decorrer da pesquisa. Estes passam desa-percebidos pelas equipes de saúde porque as famílias cuidam bem deles, sem chamar atenção. Para alguns desses casos, cujo acesso ao núcleo familiar foi facilitado via os agentes indígenas de saúde que atuam na área, entrevistamos os parentes e acompanhamos seus itinerários terapêuticos para observar as respectivas práticas de auto-atenção. A inclusão dos outros dois casos foi em resposta a solicitação da justiça.

No total, a amostra foi constituída por 24 sujeitos, de ambos os sexos (9 mulheres e 15 homens), com idade de 14 a 37 anos que, do ponto de vista da psiquiatria clínica, são diagnosticados como doentes mentais crônicos, cujas doenças apresentam mais de três anos de evolução.

A pesquisa de campo foi realizada entre fevereiro a setembro de 2009 em sete aldeias nas Ter-ras Indígenas: Dourados, Caarapó, Amambai. Jaguapiré, Porto Lindo e Cerrito. A metodologia principal utilizada foi de entrevistas semi-estruturadas com, aproximadamente, 50 parentes dos doentes, principalmente os pais, mas também irmãos, primos e tios. Dois rezadores também fo-ram entrevistados sobre os respectivos casos que estavam tratando. Observação participante fez parte das técnicas de pesquisa, utilizada num caso para acompanhar a procura de tratamento com rezador fora da aldeia.

Através de entrevistas semi-estruturadas, procuramos estimular os diálogos perguntando sobre as causas das doenças, os tratamentos procurados e os cuidados do doente que a família vinha realizando. Para as pessoas mais conhecidas, com as quais conseguimos estabelecer um melhor rapport, obtivemos narrativas mais extensas sobre os casos, contribuindo para um melhor enten-dimento das percepções e práticas destas famílias. As entrevistas e narrativas foram registradas a base de anotações feitas durante os diálogos e foram elaboradas subsequentemente num diário de campo extensivo para subsequente análise de discurso. A gravação das narrativas foi relegada a mo-mentos específicos quando o pesquisador tinha suficiente controle sobre o contexto de pesquisa e a confiança dos sujeitos focados pela investigação.

Também entrevistamos os profissionais das EMSI, mais especificamente alguns médicos, enfer-meiras, assistentes sociais, psicólogos e AIS, para compreendermos sobre o motivo da solicitação da consulta psiquiátrica.

Não houve recusas ao diálogo por parte dos parentes dos índios nem dos membros das equipes. O protocolo do estudo foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (parecer no 0426/2010; registro CONEP no. 15.654).

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RESULTADOS E DISCUSSÃO

Das nove mulheres, quatro foram indicadas pelas enfermeiras como sofredoras de perturbações mentais por causa de resistir ao atendimento do pré-natal ou por ter filhos cronicamente desnu-tridos. O motivo do encaminhamento para a avaliação psiquiátrica foi a possiblidade de doença mental que explicasse porque essas mães “não cuidam bem” dos filhos, deixando-os sujos, infecta-dos com doenças de pele e não alimentando-os adequadamente.

Quadro I: Forma de Encaminhamento dos Pacientes por Ano e Sexo

Ano EMSI/PAIS-MI

indígenas Justiça (C. Tutelar, MPF, FUNAI)

Total

2005 1 homem 12006 4 mulheres;

1 homem*5

2007 1 mulher; 1 homem

5 homens 7

2008** 2 mulheres; 3 homens

1 mulher 6

2009 3 homens 1mulher; 1 homem

5

* O paciente masculino foi contatado pela iniciativa do psiquiatra ** A EMSI contava com psicólogos e assistentes socais

Em relação ao restante das mulheres bem como aos pacientes do sexo masculino, os casos solici-tados para avaliação relacionam-se a tentativas de suicídio, episódios de confusão mental, aluci-nações auditivas e visuais (principalmente se o doente “ouve” voz que lhe ordena matar os outros ou se enforcar), desorientação, dor de cabeça, tristeza, suspeita de depressão, estado de agitação psicomotora e sintomas psíquicos decorrentes do uso excessivo de bebidas alcoólicas e drogas ilí-citas (principalmente maconha). Todos os pacientes encaminhados não tinham sido atendidos por um serviço especializado anteriormente. Para os quatro casos em que o Ministério Público Federal acionou a coordenação do DSEI/MS, os índios estavam perturbando a ordem pública, já que viviam perambulando pelas praças das cidades vizinhas pedindo comida e, na maioria das vezes, embriagados. É comum que alguns Guarani-Kaiowá semi-abandonados morando nas ruas das cidades, acabam passando pelo hospital múltiplas vezes por razões de desordem pública, enca-minhados por residentes das cidades, pela família ou por membros da justiça.

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Para os índios, a manifestação de “alucinações auditivas” não é vista, necessariamente, como in-dicador de uma perturbação. Estados alterados são associados com entidades invisíveis tais como os espíritos de pessoas mortas ou da natureza, e cujos contatos podem ser procurados através dos sonhos ou rituais. De forma geral, os parentes dos Guarani-Kaiowá reconheceram seus familiares sofrendo de perturbações por não cumprirem com as expectativas sociais, principalmente no que se refere às atividades esperadas de seu gênero, e não por terem recebido um diagnóstico de doença mental. Todos foram caracterizados por incapacidade laboral, agressividade contra seus parentes e provocação de medo nas pessoas da comunidade, principalmente crianças. Para ambos os gêneros, a exibição de agressão, particularmente contra os parentes, é visto como comportamento altamen-te desviante e indicativo de um problema maior. O homem saudável é corajoso, valente e trabalha bem (guapo) para “trazer” recursos para a casa, especialmente alimentos. A mulher saudável, que é a articuladora principal da família, demonstra sua capacidade de trabalhar através dos cuidados com a casa e com os seus integrantes. Os adultos que sofrem de perturbações abandonam suas famílias, andam por todos os lados sem rumo. Seus ataques de hiper-agressividade ou inquietações são percebidos como mais frequentes na fase da lua nova.

Quando tava junto com meu filho, essa criançada ficava tudo abandonada lá na casa. Não cuida mais a criança que comeu daquela manga podre. Tá largando já. Porque ela não para mais. Fica só na estrada. De dia, de noite. Ela é muito nervosa. Antes de ficar bobo, ela me machucou tudo assim! (entrevista com uma ex-sogra de uma mulher da aldeia Jaguapiru)

Além de não cumprir com os papéis de gênero, as pessoas sofrendo de perturbações demonstram ser incapazes na interação social implicada nas habilidades de falar e escutar. A capacidade de falar bem na cultura Guarani é altamente valorizada. A fala representa a alma da pessoa (SCHADEN, 1974, p. 112) e a capacidade para falar bem é importante na construção do sujeito social.

No caso dos doentes desta pesquisa, seus parentes lhes caracterizaram com dificuldades na inte-ração social. “Falam coisas que não prestam”; “não escutam” conselhos quando perambulam sem destino; despem-se em lugares públicos; ou provocam medo nas pessoas da comunidade.

Não quer fazer mais nada! Ela não pára nem escuta conselhos. Agora já aprendeu a fumar e a tomar cachaça, quando acha por aí. A sogra pegou as três crianças para cuidar. Nin-guém quer mais ela na casa! Os parentes desprezaram até agora. Eu já falei várias vezes pra ela; “Sandra, você tem que pensar de novo na tua família, nas tuas crianças”. Ela não tá nem aí. (Entrevista com mãe, aldeia de Bororó)

Assim, as pessoas entrevistadas reconheceram que seus parentes sofrem de perturbações físicas--morais, no sentido de Luis Fernando Duarte, e o conceito mais usado para descrever sua condição é itavy. O estado de “itavy” está associado com crises de alteração da consciência, sem corresponder sempre ao conceito biomédico esquizofrenia, uma doença crônica e recorrente sem cura. Para os Guarani-Kaiowá, a pessoa que manifesta o estado de itavy apresenta comportamentos anti-sociais incontroláveis. Para eles, estes ataques não são sempre associados com o consumo de substâncias como o álcool e drogas ilícitas, podendo acontecer em momentos sóbrios. A perambulação sem destino e a agressividade são os principais indicadores de que a pessoa está itavy. Porém, itavy tra-ta-se de um estado de perturbação físico-moral, e não uma doença em si.

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Na percepção dos Guarani-Kaiowá, pode ser curado, e por isto a remissão dos sintomas, por causa do uso dos medicamentos antipsicóticos, resulta na percepção dos familiares que seu parente “está curado!”

Uma categoria de doença utilizada pelos Guarani-Kaiowá para falar de crises convulsivas é sapitu-ca, diagnosticada como transtorno neuropsiquiátrico pelos médicos. Mas nem todos manifestan-do itavy têm necessariamente sapituca.

ITAVY, SAPITUCA E OS MODELOS EXPLICATIVOS

As explicações sobre as causas de itavy variam conforme os contextos e as pessoas envolvidas no caso. Como demonstrado entre outras populações, o estado de itavy pode ter múltiplas etiologias, e a determinação das causas prováveis sempre varia com a interpretação do parente particular e do momento em que se discute o caso.

Por exemplo, no caso de uma mulher da aldeia Jaguapiru, os pais apontam três causas possíveis para justificar a doença da filha. No primeiro momento, o pai indica que suspeita que fora uma colega de trabalho que fez “mal feito” por causa de ciúmes. A filha, antes de adoecer, trabalhava na cidade como secretária de um dentista, um trabalho muito almejado pelas moças que moram na aldeia. Em seguida, a sua mãe acredita que a doença ocorreu porque ela “quebrou dieta”, ou seja, lavou a cabeça quando estava menstruada. Assim o sangue subiu para a cabeça, causando sua perturbação. Por último, o casal suspeita (em comum acordo) que fora um rapaz que fizera “coisa mal” para a filha, visto que ele tinha interesse na moça e foi rejeitado.

Apesar da multiplicidade de explicações, podemos entender a lógica das causas, conforme a fase da vida em que a pessoa foi acometida pela doença:Na infância, por exemplo, transgressões dos pais são geralmente citadas como a causa, por terem quebrado alguma prescrição ou proibição durante a gestação, o período pós-parto e a primeira in-fância. Estas fases, como outras tais como a puberdade, são momentos de transição na construção social do corpo, em que certas prescrições e rituais devem ser observados para fabricar a pessoa (VIVEIROS DE CASTRO, 1987). Se não, a criança está vulnerável aos ataques de espíritos, os quais vão depender do contexto particular.

A causa mais apontada direciona-se ao consumo de carnes em fases da vida que requer rituais espe-ciais. A carne de certos animais é mais perigosa que a de outros. Citam a carne de galinha, porco ou vaca sendo mais perigosas, porque estes animais “pulam e gritam” ao serem mortos, à semelhança dos doentes quando são acometidos por crises convulsivas e outras manifestações epiléticas. As-sim, antes de ser introduzida na dieta de uma criança pela primeira vez, deve-se realizar um ritual para abençoar a carne. Ataques convulsivos iniciando na infância são frequentemente diagnosti-cados como sapituca e podem ser causados por comer carne forte não abençoada.

A criança quando tá mamando, não pode dar carne de bicho do mato. Aí, com a idade de oito meses, o pai dele matou um porco do mato. Quando a gente tava preparando, a criança tava chorando muito pra comer. Aí eu dei a carne! No aperto eu fiz isso e onde ele pegou essa doença e até hoje tá assim, não sara mais! Eu sabia que não era correto porque eu tinha que esperar a criança desmamar primeiro e aí o cacique abençoar essa carne pra

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dar pra criança. Eu dei sem nada disso! (Aldeia Passo Piraju, entrevista com mãe de ho-mem sofrendo de sapituca e problemas de comunicação desde criança)

Quando o início da perturbação ocorre na fase adulta, as causas são geralmente atribuídas aos atos de feitiçaria motivados pelos conflitos resultantes do rompimento das relações sociais, especial-mente em casos amorosos ou traições entre casais. Um feiticeiro indígena pode ser contratado e, em aldeias próximas dos centros urbanos, as pessoas conflitantes também procuram macumbeiros em centros espíritas para fazer o mal. Nestes casos, a perturbação é vista como consequência de uma intrusão oculta, em que objetos ou espíritos maléficos são introduzidos no corpo. Quase que invariavelmente a vítima relaciona um “sonho feio” ao começo da doença. No sonho ela(e) vê quem foi a pessoa que mandou fazer o feitiço e prognostica o futuro.

Quando se trata de solteiros, as acusações de feitiçaria normalmente são motivadas pela pessoa rejeitada, tais como moças seduzidas e depois rejeitadas ou quando o pedido de casamento do rapaz não é aceito pela moça. Em ambos os casos, o rejeitado, frequentemente com o apoio da mãe, encomenda a feitiçaria para que a pessoa sofra e não consiga “desfrutar” com outro parceiro.

“Parece que é uma... tentação que entrou no corpo! Que sempre ela vai sozinha por aí né! Chegou um tempo ia atrás dela aqui um homem e pra ele não vir mais, ela pegou um balde d’água e jogou nele e brigou com ele. Daí pra cá ele... Falou pro meu genro que ele sabe cinqüenta oração, é... macumba, e diz que é pra fazer pros outro. Ele trabalha com espiritista que não presta e que presta! (Mãe de uma moça em estado grave que tira a roupa em público)

Esse aí fumou muita maconha e misturou com pinga também. Aí fez mal pra ele. Então ele fica variado. E aí foi conversar com uma mulher pra amigar com ele, pra ele lograr [ter relações sexuais] a mulher. Então ele logrou e não quis casar. A mulher ficou brava e mandou fazer feitiço pra o anhã deixar ele doente. Quando ele sai sozinho tá ficando bra-vo, porque com o anhã é difícil”. (rezador sobre um rapaz com ataques de agressividade)

Todos os benzedores têm a mesma versão. Falaram que era maetyrõ porque ele não se guardou quando começou a virar homem. A mãe dele falou que, antes de ficar doente, casou um tempinho, mas não gostava da mulher e mandou ela embora. Depois disso que começou.[o comportamento agressivo]...... A mulher falou várias coisas “Outra mulher não vai aproveitar você, não sei o quê”. E fez simpatia pra ele ir atrás dela. Aí ele come-çou a ficar calado, sem contar pra ninguém, sem desabafar. (cunhado do mesmo caso do depoimento anterior)

Comumente, os suicídios dos jovens são associados aos atos de feitiçaria motivados pelo(a) namo-rado(a) rejeitado(a). Se o feitiço não “pegar” forte, a pessoa fica louca. Assim, o pai do rapaz com ataques de agressividade especula porque ele não morreu:

Os rezadores falaram que uma mulher fez o feitiço porque ele não queria se casar com ela”.... [Expressando dúvidas]...Faz 12 anos já e podia morrer, a não ser que foi feito assim, pra ficar judiando da pessoa. (pai)

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É importante ressaltar que o rompimento de namoros não diz respeito apenas às relações amoro-sas malsucedidas entre dois indivíduos, mas que os sujeitos estão intimamente inseridos no tecido social das coletividades familiares. Na maioria dos casos relatados estão envolvidos jovens de fa-mílias rivais, em que os parentes se opõem à relação. Assim, as acusações de feitiçaria, nestes casos, frequentemente se referem também à participação dos membros da família do rejeitado. Se ocorrem traições ou abandono em casamento, as acusações podem incluir a participação do(a) sogro(a). Nos casos examinados aqui, são mais comuns conflitos entre noras e sogras do que entre genros e sogros. O abandono do marido e filhos pela mulher que também agride a sogra, foi uma causa citada como motivo de feitiçaria.

Depois que largou do marido que começou assim. Foi contra a vontade da sogra. Deixou as crianças dela pra lá, com o marido, e os parentes dele ficaram bravos. Falaram que iam fazer macumba pra ela morrer mesmo! (Avó materna, aldeia Bororo)

Em um casal, envolvendo traição da parte da esposa, o suicídio foi invocado como ato cometido pelo traído, após encomendar o feitiço contra a sua mulher. A traição aconteceu enquanto o ma-rido trabalhava na usina.

Ela foi vítima do feitiço que o próprio marido mandou fazer porque ele foi para a cana (usina canavieira) e quando voltou a Rosana estava grávida de outro homem. Ficou bravo e falou que ela ficaria doida, andando por aí descalça. Depois que mandou fazer o saravá com o nome dela ele se enforcou. (Irmão da doente, Aldeia Sassoró).

A mãe dela fala né... quando ela tava com aquele primeiro marido, ele pegou dinheiro adiantado, deixou pra ela e voltou para trabalhar na usina dois meses. Aquele tempo diz que ela não era assim ainda! Era normal! Aí quando o marido retornou, diz que ela já tava com outro! Depois diz que o marido ficou indo pra lá e pra cá, queria voltar com ela. Ela fugia dele e tal. Antes de se enforcar, diz que ele jogou uma praga nela né, pra ela ficar assim. (Cunhada do mesmo caso)

Diferente da separação ou divórcio na família nuclear, a traição, o abandono do parceiro e outras dificuldades nos casamentos tem implicações além do casal, invocando também os sogros e outros que fazem parte da família extensa, pois são eles que, frequentemente, têm a responsabilidade de cuidar dos filhos e da pessoa abandonada, após a separação. A própria condição da doença invia-biliza a relação conjugal, visto que o marido se torna incapaz de prover o sustento da família e a mulher de conduzir a criação dos filhos e de realizar os afazeres do lar, embora haja uma tendência das mulheres serem mais tolerantes com seus maridos doentes. Lembrando que os casais com-partilham a mesma casa ou espaço dos pais de um membro do casal e que as famílias extensas são coletividades unidas por obrigações reciprocas, as separações frequentemente são motivadas por sérios desentendimentos com o sogro ou sogra. A impossibilidade da pessoa para corresponder às expectativas dos sogros, em decorrência das limitações impostas pela doença, contribui para as separações, as vezes acompanhada com manifestações de agressões físicas ao parceiro o aos filhos, quando acometido por surtos psicóticos. Exige-se do genro ou nora toda uma série de obrigações de reciprocidade e de respeito durante o período em que permanecer vivendo no espaço de juris-dição da família na qual foi incorporado, exigências diante das quais um doente psiquiátrico não tem condições de satisfazê-las, resultando os conflitos e as transgressões de normas sociais.

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Neste sentido, as acusações de feitiçaria registradas a partir dos parentes dos doentes nesta pesqui-sa, sejam estes solteiros ou casados, refletem conflitos comunitários que perpassam o casal como dois indivíduos em relação. São manifestações de conflitos existentes nas aldeias contemporâneas resultantes do confinamento do povo Guarani e das condições sócio-econômicas atuais. Viver numa aldeia Guarani-Kaiowá requer a convivência e interação com famílias que no passado ti-nham territórios próprios. O aumento de conflitos devido à elevada densidade populacional em aldeias indígenas como causa de acusações de feitiçaria tem sido documentado por outros grupos indígenas (KROEGER E FREEDMAN, 1984).

A NOÇÃO DE PESSOA E AS CAUSAS MÚLTIPLAS DAS DOENÇAS

A boa saúde dos Guarani-Kaiowá não pode ser separada da vida social e espiritual, ou cosmológi-ca. Como vimos acima, os conflitos sociais, a quebra de normas ou tabus, e os atos de feitiçaria são todos condições atribuídas como etiologias das psicopatologias crônicas. Porém, existem outros níveis de causalidade das doenças que se articulam com as causadas por conflitos sociais e que têm relação com a noção da pessoa e a construção social e espiritual da pessoa.

Para compreender as percepções e as avaliações dos parentes dos doentes sofrendo de psicopato-logias crônicas, é necessário aprofundar a lógica da etiologia nativa. Zempléni (1985, apud BU-CHILLET, 1991) construiu um modelo em que três campos etiológicos ou níveis de causalidade articulam-se para o entendimento da doença: instrumental, eficaz e última. O nível último se refere à reconstituição da origem da doença, visando responder às perguntas “por que eu?” ou “por que agora?”. O nível eficaz diz respeito ao agente responsável pelo processo da doença, seja ele invisível (um espírito ou um estado emocional, como a raiva ou a inveja) ou natural (tal como o vento ou a comida estragada). Finalmente, o nível instrumental envolve reflexões sobre o meio ou o mecanismo de produção da doença, relacionando-se geralmente às teorias do corpo e do ambiente natural. A baixa resistência de uma pessoa é um exemplo de causa instrumental, em que a vulnerabilidade cria a situação propicia para a ação dos outros níveis das causas e resulta em doença. Estes níveis de causalidade representam três maneiras de explicar a doença e guiam os processos de diagnóstico e tratamento.

Nos casos explorados aqui, encontramos que as perturbações iniciam com um estado de debilida-de ou vulnerabilidade em que a alma (ayvu) da pessoa se afastou do corpo. As razões de debilidade dadas pelos parentes foram várias, tais como a quebra de regras em momentos de transição, esta-dos emocionais ou situações que causaram susto. As crianças são por natureza mais vulneráveis por não ter sua pessoa totalmente desenvolvida, e assim se tornam vitimas de ataques de espíritos quando seus pais não observam as prescrições que funcionam como proteção. Outros momentos de vulnerabilidade especial dizem respeito a fases liminais ou de transição no ciclo da vida, tais como puberdade, menstruação, parto ou debilidade física, todos os momentos em que é necessária a observação de práticas protetivas. Finalmente, eventos que assustam a pessoa também criam um estado de vulnerabilidade causado pelo afastamento da alma. Assim, entre as causas instrumentais, foram citadas a quebra de restrições em fases liminais bem como eventos do tipo picada de abelha ou pancada na cabeça.

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O estado de vulnerabilidade, o qual estamos chamando de nível instrumental, deixa a pessoa sem defesa contra um ataque de espírito. Assim, a causa de algumas perturbações foi atribuída ao espí-rito de um parente querido que tinha falecido ou que a pessoa estava particularmente impactada com a morte. Em tal estado, a alma desencarnada apodera-se da pessoa tornando-a itavy. Trata-se do “angue”, ou sombra do indivíduo quando vivo. O “angüe” perturba a pessoa que mais gostava em vida para levá-la com ele, porque não quer ficar sozinho. Em um caso registrado aqui, antes de adoecer a mulher perturbada havia presenciado o suicídio por enforcamento de uma prima que ela gostava muito.

Neste mesmo nível etiológico, estar com a condição itavy pode ser resultado de um ataque de um dos muitos espíritos que circulam no mundo cosmológico: anhã, maetyerõ, ptumbory, ou porá. Cada espirito é associado com sintomas específicos do estado de itavy. Anhã, ao dominar o corpo, torna a vítima agressiva, violenta contra os parentes e capaz de matar pessoas. O maetyerõ vaga pelas árvores e suas vítimas apresentam alterações de comportamento entre as quais “ouvir” vo-zes e conversar sozinhas. Estes seres são caracterizados, particularmente entre os Guarani-Kaiowá evangélicos, como equivalentes ao diabo ou satanás. Invadem o corpo da pessoa debilitada pelo afastamento da alma (ayvu) tornando-a itavy.

Finalmente, as causas últimas explicam o porquê de a doença ter acontecido com aquela pessoa particular no momento específico que iniciou. Para as doenças mentais crônicas, como vimos aci-ma, os parentes procuram nos conflitos sociais os motivos para feitiçaria. A feitiçaria causa o susto e afastamento da alma da vítima, e subsequentemente a intrusão de um espírito malévolo.

TRATAMENTOS DA PERDA DA ALMA

Não foi objetivo da pesquisa analisar os itinerários terapêuticos seguidos pelas famílias nas ten-tativas de curar seus parentes sofrendo das perturbações físicas morais caracterizadas como itavy, porém, vários indivíduos, particularmente os avós, indicaram os tratamentos utilizados no am-biente familiar para afastar o espírito invasora ou para atrair a alma de volta. Entre os tratamentos realizadas em casa, indicaram: (1) remédios caseiros de odor forte para banhar o doente para afastam o espírito do corpo; (2) diversos tipos de rezas para trazer de volta a alma do doente; e (3) remédios da farmácia para fortalecer o corpo e garantir o assentamento da alma.

Se estas práticas de auto atenção realizadas em casa não resolvem o problema, e a pessoa continua desorientada com itavy, as famílias procuram um especialista que pode afastar o espírito malévolo e/ou atrair a alma da vítima de volta. Nas aldeias mais afastadas das cidades, o benzedor-rezador é a opção mais indicada para o tratamento, uma vez que as práticas domiciliares não resolvem o problema.

Nas aldeias mais populosas perto das cidades maiores, também podem ser procurados rezadores não-indígenas ou centros espíritas, mas as igrejas evangélicas pentecostais são as mais procuradas para afastar os “diabos. Na Terra Indígena Dourados, por exemplo, as aldeias Bororó e Jaguapiru tornaram-se praticamente um bairro da cidade e lá predominam as igrejas evangélicas pentecos-tais, principalmente a “Deus é Amor”. Existem apenas duas casas de rezas tradicionais, mas elas vêm perdendo espaço para as igrejas pentecostais. Rezadores e curandeiros ainda existem vários,

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mas são difíceis de localizar e têm o estigma de serem bêbados e fazer os trabalhos apenas para ganhar dinheiro. Atualmente a figura de grande prestígio social é o pastor da igreja evangélica, ou seja, o cacique dos tempos modernos.

A igreja é um recurso muito importante no auxílio à convivência com o doente, por oferecer uma compreensão do sofrimento que dá significado à experiência existencial da doença e como suporte social, através das relações de ajuda que a comunidade de fiéis constrói em volta da pessoa que sofre e de sua família. As igrejas podem ser vistas como uma apropriação do pentecostalismo pela cul-tura Guarani frente à situação extrema de pobreza e desestruturação das relações de reciprocidade que caracteriza muitas aldeias. Hoje os pastores evangélicos desempenham um papel análogo ao do rezador, e são eles que expulsam o espírito mal, neste caso o diabo, que se apossou do corpo. Muda-se o nome para demônio, mas a lógica da causa continua refletindo o pensamento cosmo-lógico dos Guarani-Kaiowá.

Os dados revelam que os Guarani-Kaiowá em geral não procurariam o sistema oficial de saúde para resolver as crises psicóticas de seus parentes. Quase sempre a primeira passagem pelo SUS ocorre por iniciativa dos profissionais da EMSI/FUNASA. Desde a participação do psiquiatra na EMSI, algumas famílias passaram a procurar os serviços oficiais para resolver os problemas de seus parentes com surtos psicóticos, particularmente para os casos que tinham recebido tratamento no Hospital. Embora as motivações que os fazem buscar este novo recurso sejam diferentes das indicações dos profissionais de saúde.

Se por um lado, alguns Guarani-Kaiowá percebem que os medicamentos antipsicóticos “curam” seus parentes dos sintomas, por outro, os parentes procuram a avaliação psiquiátrica pela possibili-dade em conseguir um atestado médico para obter benefícios sociais, particularmente a aposenta-doria. Diante das suas condições limitadas para apoiar um membro da família que não trabalha, a aposentadoria é uma solução que permite que a família continue cuidando do seu doente.

Não pode deixar ele sair porque não é pessoa normal. Será que alguém não vai ajudar nós é... pelo menos dá cesta básica? Porque ele precisa alimentar bem e... não tem como trabalhar. Por isso precisa de ajuda. Nós compramos alguma coisa pra ele, mas não dá pra comprar tudo. Se comprar uma roupinha falta calçado. Por isso que eu queria aposentar ele. Eu não posso sair, porque eu tenho medo de sair e deixar ele sozinho na casa e aconte-cer alguma coisa com ele, porque quem cuida dele sou eu. Eu não posso andar, trabalhar por aí nem procurar outro meio pra ajudar ele. Só o pai dele que trabalha no canavial, também ganha pouquinho. Eu preciso de ajuda. Não é eu, mas é ele, porque ele é doente. Eu não sei como é criar ele mais, sem ajuda. (Mãe de um doente da aldeia Bororó)

CONCLUSÃO

Exploramos neste artigo as percepções dos Guarani-Kaiowá sobre as doenças diagnosticados pela biomedicina como psicopatologias crônicas a luz de conceitos da antropologia da saúde. Os Gua-rani-Kaiowá não compartilham as mesmas categorias diagnósticas ou etiológicas da biomedicina, e percebem as psicopatologias nos seus parentes como perturbações físicas morais que se manifes-tam pela agressividade, pela incapacidade de interagir socialmente e pela quebra de responsabili-dades recíprocas esperadas dos adultos da sociedade. Em vez de procurar a causa deste comporta-

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mento altamente desviante no individuo, os familiares dos pacientes buscam relacionar a doença e suas causas com o mundo social e cosmológico que os rodeia. As percepções das perturbações estão relacionadas, em grande medida, com os conflitos e problemas que caracterizam a situação crítica das terras indígenas desta região: o trabalho dos homens nas usinas sucro-alcooleiras, afas-tando-se de suas famílias; a falta de opções de trabalho nas aldeias; a presença de drogas e álcool; a desestruturação das hierarquias familiares e dos sistemas de reciprocidade; e o aumento de depen-dência das políticas públicas para sobrevivência econômica.

Esta pesquisa, como a experiência de seis anos de trabalho na EMSI oferecendo atendimento psi-quiátrico para os Guaraní-Kaiowá, aponta para a necessidade de fornecer um tratamento cultu-ralmente apropriado para aliviar o sofrimento dos indivíduos com psicopatologias crônicas. Os serviços de psiquiatria do SUS não são preparados para atender a população indígena, faltando recursos humanos e capacitações adequadas para trabalhar com a diversidade cultural. Devido a barreiras culturais, preconceitos, dificuldade de acesso e discriminação, os índios não frequentam os serviços de saúde mental dos respectivos municípios, que se localizam fora das terras indíge-nas. Além de oferecer às populações indígenas atenção à saúde integral, é necessário que as EMSI fiquem atentas em relação aos casos “abandonados” com o objetivo de diminuir a morbimortali-dade e os custos sociais decorrentes destes transtornos. As instituições responsáveis pela atenção à saúde nas comunidades indígenas, ainda necessitam de metodologias de trabalho que permitam apoiar as famílias na superação das dificuldades inerentes aos cuidados com familiares diagnosti-cados com psicopatologia crônica.

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A pesquisa foi financiada pelo Edital MCT/CNPq/CT-Saúde/MS/SCTIE/DECIT nº 33/2008 - Saúde Mental, processo 575224/2008-8 sob a coordenação de Dulce Lopes Barboza Ribas. A colaboração de Esther Jean Langdon foi financiada através da bolsa de Produtividade em Pesqui-sa/CNPq.

Em 2005, a Fundação Nacional de Saúde advertiu que mais de 700 crianças encontravam-se em situação de insegurança alimentar grave em Mato Grosso do Sul, sendo que 360 crianças eram do município de Amambaí (RAMOS, 2011: 74).

Principal indicador preconizado pela Organização Mundial da Saúde na medição do índice de qualidade de vida de uma população.

Este caso foi o primeiro índio Guarani registrado nos arquivos do hospital e foi tratado pelo pesquisador, que trabalhava no Hospital Nosso Lar na época. Foi encaminhado ao hospital pela justiça, por apresentar alterações de comportamento frente aos outros presos após ter sido preso por homicídio de uma criança de 3 anos.

No caso dos homens, alguns chegam a utilizar drogas estimulantes (bebidas alcoólicas, pasta bási-ca de cocaína e crack) com o objetivo de “aumentar” a produtividade no serviço de corte de cana. Nesse processo acabam desenvolvendo um estado de dependência de drogas e outras doenças de-correntes, tais como as psicoses.

A importância da mulher como articuladora da família se evidencia quando ela passa a consumir bebida alcoólica e imediatamente a família se desorganiza, o mesmo acontecendo necessariamente no caso de só o homem fazer o consumo excessivo de bebidas (PEREIRA, 2009). É importante observar que a merenda escolar, utilizando principalmente a carne de galinha, é oferecida nas escolas sem as devidas precauções Esta ideia de ser perturbado por um espírito morto também circula entre os rezadores não-indí-genas da região como encosto, e os Guarani-Kaiowá procuram estes rezadores no seu itinerário terapêutico.