percy lau

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A construção de representações nacionais: os desenhos de Percy Lau na Revista Brasileira de Geografia e outras “visões iconográficas” do Brasil moderno 1 Heliana Angotti-Salgueiro Cátedra Brasileira de Ciências Sociais Sérgio Buarque de Holanda, associada à Maison des Sciences de l’Homme, Paris RESUMO: A emergência disciplinar das ciências humanas, especialmente da geografia e da etnologia, caminhou, desde o início do século, ao lado da formação das coleções fotográficas e de outras séries figurativas inscritas na construção de representações nacionais internacionalmente comparáveis, ancoradas no regionalismo. Neste artigo, os desenhos de Percy Lau para a série “Tipos e aspectos do Brasil”, em seção da Revista Brasileira de Geografia a partir de 1939, são colocados em relação com outras “visões iconográficas” do Brasil moderno – no caso, as fotografias dos franceses Pierre Monbeig e Marcel Gautherot. Na associação de imagens em séries correlatas evidencia-se uma cultura visual que se generaliza, num momento em que tanto a viagem individual como o ato de fotografar se tornam práticas cada vez mais comuns e acessíveis. A convergência de representações de uma mesma geração convida-nos a detectar na mise en serie as convenções visuais e os parâmetros do estilo documentário de uns e de outros, para que se chegue a uma síntese sobre o pensamento imagético da época. As imagens evidenciam itinerários figurativos geograficamente coincidentes resultando em representações que, por extensão e repetição, tornam-se ícones. Os tipos e aspectos da série de Percy Lau e os textos que os acompanham inscrevem-se na geografia vidaliana, uma das matrizes intelectuais da geografia brasileira, em momento de sua institucionalização, em pleno Estado Novo. Se história, viagem e imagem apóiam-se no comparatismo, recuperar os modelos de conhecimento na base das representações, tecendo as persistências, apropriações, transformações e hibridismos das séries iconográficas em todos os níveis, é um vasto programa de pesquisas abertas ao diálogo interdisciplinar. PALAVRAS-CHAVE: Iconografia geográfica. “Tipos e aspectos”. Paisagem humana. Regionalismo. Imagens da nação. Geografia humana. 1. Este artigo faz parte de um projeto mais amplo sobre Marcel Gautherot financiado pela The Getty Foundation.Retomo e am- plio aqui parte do traba- lho apresentado primeira- mente na Jornada do Mu- seu Paulista e depois na Journée d’étude Paysage et territoire, organizada por Marie-Vic Ozouf-Ma- rignier e Alice Ingold em Paris, a 10/1/2005, relati- va ao livro de François Walter (2004). 21 Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.13. n.2. p. 21-72. jul.-dez. 2005.

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Percy Lau

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  • A construo de representaes nacionais:os desenhos de Percy Lau na RevistaBrasileira de Geografia e outras vises iconogrficas do Brasil moderno1

    Heliana Angotti-Salgueiro

    Ctedra Brasileira de Cincias Sociais

    Srgio Buarque de Holanda, associada

    Maison des Sciences de lHomme, Paris

    RESUMO: A emergncia disciplinar das cincias humanas, especialmente da geografia e daetnologia, caminhou, desde o incio do sculo, ao lado da formao das colees fotogrficase de outras sries figurativas inscritas na construo de representaes nacionaisinternacionalmente comparveis, ancoradas no regionalismo. Neste artigo, os desenhos dePercy Lau para a srie Tipos e aspectos do Brasil, em seo da Revista Brasileira deGeografia a partir de 1939, so colocados em relao com outras vises iconogrficasdo Brasil moderno no caso, as fotografias dos franceses Pierre Monbeig e Marcel Gautherot.Na associao de imagens em sries correlatas evidencia-se uma cultura visual que segeneraliza, num momento em que tanto a viagem individual como o ato de fotografar setornam prticas cada vez mais comuns e acessveis. A convergncia de representaes deuma mesma gerao convida-nos a detectar na mise en serie as convenes visuais e osparmetros do estilo documentrio de uns e de outros, para que se chegue a uma sntesesobre o pensamento imagtico da poca. As imagens evidenciam itinerrios figurativosgeograficamente coincidentes resultando em representaes que, por extenso e repetio,tornam-se cones. Os tipos e aspectos da srie de Percy Lau e os textos que os acompanhaminscrevem-se na geografia vidaliana, uma das matrizes intelectuais da geografia brasileira,em momento de sua institucionalizao, em pleno Estado Novo. Se histria, viagem e imagemapiam-se no comparatismo, recuperar os modelos de conhecimento na base dasrepresentaes, tecendo as persistncias, apropriaes, transformaes e hibridismos dassries iconogrficas em todos os nveis, um vasto programa de pesquisas abertas ao dilogointerdisciplinar.PALAVRAS-CHAVE: Iconografia geogrfica. Tipos e aspectos. Paisagem humana. Regionalismo.Imagens da nao. Geografia humana.

    1. Este artigo faz parte deum projeto mais amplosobre Marcel Gautherotfinanciado pela The GettyFoundation.Retomo e am-plio aqui parte do traba-lho apresentado primeira-mente na Jornada do Mu-seu Paulista e depois naJourne dtude Paysageet territoire, organizadapor Marie-Vic Ozouf-Ma-rignier e Alice Ingold emParis, a 10/1/2005, relati-va ao livro de FranoisWalter (2004).

    21Anais do Museu Paulista. So Paulo. N. Sr. v.13. n.2. p. 21-72. jul.- dez. 2005.

  • ABSTRACT: The disciplinary emergence of the human sciences, specially Geography andEthnology, has evolved, from the beginning of the century, alongside the formation ofphotographic collections and other figurative series inscribed in the construction of internationallycomparable national representations, anchored on regionalism. In this article, Percy Lausdrawings for the series Types and Aspects of Brazil, in a section of the Revista Brasileira deGeografia magazine from 1939 onwards, are compared to other iconographic views ofmodern Brazil in this case the photographs by Frenchmen Pierre Monbeig and MarcelGautherot. A visual culture in the process of generalization is highlighted in the association ofimages in correlated series, at a moment when both the solo journey and the act ofphotographing ad become increasingly common and accessible practices. The convergenceof representations by one same generation invites us to detect in the mise-en-serie the visualconventions and the documentary style parameters of one and the other, so that a synthesis ofthe imagistic thought of the era is arrived at. The images evidence geographically coincidentfigurative itineraries, resulting in representations that, by extension and repetition, becomeicons. The types and aspects of Percy Laus series and the texts accompanying it are inscribedwithin the Vidalian geography, one of the intellectual matrices of Brazilian geography, in itsmoment of institutionalization, during the Estado Novo period. If history, travel and imagelean on comparativeness, weaving persistencies, appropriations, transformations and hybridismsof the iconographic in all levels, then it constitutes a vast research program open tointerdisciplinary dialogue.KEYWORDS: Geographic Iconography. Types and Aspects. Human Landscape. Regionalism.Images of Nation. Human Geography.

    Observaes introdutrias sobre o contexto cultural dos tipos easpectos se impem para situar o leitor no cenrio internacional.

    Como as cincias humanas em vias de estruturao desde o inciodo sculo se voltam para o local/rural/regional? A geografia e a etnologiaparecem ter sido convocadas pelas polticas culturais em prol dos movimentosregionalistas. Esses movimentos, diga-se de antemo, so internacionais, maisou menos sincrnicos, no final do sculo XIX e no perodo entre guerras hvrios estudos em outros pases sobre a questo. No caso da Frana, Anne-Marie Thiesse (1995, 1997, 1998, 2001) assina os que nos interessam maisde perto, relativos s representaes de identidades nacionais. Sobre a questodas paisagens, territrio e identidade nacional, o livro de Franois Walter (2004) a referncia mais recente.

    Desde o sculo XIX, os lugares em que se exibe o interesse pela corlocal, especificidades regionais e imagens de cada nao, tipos humanos,habitao, folclore, so as exposies universais e nacionais, cujos estudos arespeito so conhecidos no retomarei a questo, salvo em relao a algunsaspectos do perodo que nos interessa: os eventos de 1937, em Paris.Retrospectivamente, na Frana, a campanha fotogrfica para constituir LesArchives de la Plante resultou numa das mais importantes colees fotogrficasno gnero tipos e aspectos, em que se visava o inventrio das diferenas deum mundo em vias de urbanizao, ou o registro dos costumes locais em vias

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  • de desaparecimento. Assim, so as cenas rurais que vo dominar as temticastpicas da geografia humana dos herdeiros de Vidal de La Blache (observe-se,porm, que na coleo do Museu Albert Kahn, o Brasil figura com panoramasde cidades, em que predominam as paisagens do Rio de Janeiro: as viagensao hinterland no teriam sido feitas). Devemos reter, sobretudo, que a emergnciadas cincias humanas a arqueologia, a geografia, a etnologia caminha aolado da formao das colees fotogrficas.

    No estudo da trajetria de Marcel Gautherot, a contextualizao dassuas experincias vividas nos anos 1930, na Europa, revela-se necessria efecunda. Em 1937, sabamos apenas que ele estava ligado ao Muse delHomme, tendo feito a experimentos fotogrficos e participado como arquiteto-decorador de exposies etnogrficas a informao na cronologia do catlogodo Instituto Moreira Salles de 2001 se restringia a isso. Ao estudarmos o perodo,vimos que neste ano de 1937 acontece em Paris a Exposio Internacional deArtes e Tcnicas, dominada pelo regionalismo, que se desdobra em eventos-chave como o primeiro Congresso Internacional de Folclore, cuja publicaodas atas fica a cargo do Muse des Arts et Traditions Populaires, instituiorecm-criada por Georges-Henri Rivire, que tem sido bem estudado2. Mencione-se ainda a importncia do Muse de lHomme, dirigido por Paul Rivet, queassume um papel de coordenador de pesquisas sobre o local/regional. Napublicao do congresso do folclore de 1937, os temas dos estudos so habitatrural, mobilirio, agricultura, artesanato, prticas agrrias, alimentao, meiosde transporte, civilizao material. Grandes historiadores, gegrafos, etnlogos,folcloristas e outros intelectuais renem-se em torno de projetos como essecongresso e a Encyclopdie Franaise (trabalho de registro fotogrfico muitorepresentativo), organizam eventos e assinam textos. Entre eles: Lucien Febvre,Marc Bloch, Henri Berr, Albert Demangeon, Pierre Deffontaines, Max Sorre,Raoul Blanchard, Roger Dion, Marcel Mauss, Jacques Soustelle, Henri Focillon,Georges Dumzil, Andr Schaeffner, Arnold van Gennep, o arquiteto Louis Bonnier esses so apenas alguns nomes cuja importncia chegou at ns.

    Nesse universo encontramos um clich de Marcel Gautherot abrindoo caderno de fotografias dos Travaux du 1er Congrs International du Folklore;Gautherot, ligado ao Muse de lHomme como arquiteto-decorador3, fotografaento a nova museografia dos projetos de reorganizao das exposies sob adireo de Paul Rivet. Se no pudemos ainda apurar exatamente o tipo detrabalho feito por ele no Muse de lHomme (os arquivos e fototeca da instituioesto lamentavelmente fechados pesquisa por tempo indeterminado), duasevidncias confirmam a atuao de Gautherot como fotgrafo de espaosexpositivos: a mencionada fotografia que capta a entrada de exposio relativa casa rural francesa4, em uma sala do Muse dArt Moderne, e fotografias deesculturas de Picasso na entrada do pavilho da Espanha, na Exposio deParis de 1937 (publicadas na clebre revista da vanguarda parisiense dos anos1930, Cahiers dArt)5. O historiador sabe que as relaes se tecem por essaspequenas evidncias.

    2. Sobre Rivire ver GOR-GUS, 2003 e alguns cap-tulos de LEBOVICS, 1995(cuja edio original emingls de 1992).

    3.Encontrei o registro deMarcel Gautherot fre-qentando os atelis dearquitetura da cole desArts Dcoratives,de 1925a 1927, em documenta-o depositada nos Archi-ves Nationales.Ver a res-peito a apresentao dajornada que coordeneiem Paris a 13/12/2005,em nmero especial doCahiers du Brsil Con-temporain, a ser orga-nizado em 2006.

    4. O contedo da exposi-o estava a cargo do ge-grafo Albert Demangeone a museografia coube aGeorges-Henri Rivire;deve haver outras ima-gens de Gautherot daocasio,pois alm da queest no volume sobre ocongresso de folclore, houtra publicada no livrocitado sobre Rivire, Lemagicien des vitrines(Gorgus 2003), foto dacoleo do Muse desArts et Traditions Popu-laires/RMN,em que o cr-dito lhe tambm atri-budo.

    5.Observe-se que as foto-grafias de Gautherot noCahiers dArt no so as-sinadas como acontececom outras de Dora Maar,na mesma revista, tam-bm referentes a obrasde Picasso.A atribuio aele se deu por uma coin-cidncia da pesquisa: ha-vamos visto as fotos noseu arquivo no IMS, noRio de Janeiro, sem ne-nhuma identificao delugar e data, mais tarde,folheando a revista nosarquivos de Paris,as reco-nhecemos.

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  • Marcel Gautherot vem para o Brasil em 1939, meses depois convocado, serve na frica e volta para c definitivamente depois do primeiroarmistcio, em 1941. Uma vez estabelecido no pas insere-se em redes derelaes, freqentando artistas e intelectuais de vrias tendncias, muitos delesligados ao Partido Comunista (Jorge Amado, Oscar Niemeyer, entre outros); umaateno ser dada no texto da colega Lygia Segala suas relaes com EdisonCarneiro e s particularidades do folclore no Brasil, tema de um bom nmerode sries fotogrficas que Gautherot produzir aqui.

    Na Frana, sob a ocupao alem, o folclore oficial foi impulsionadopela relao regionalismo/propaganda ver a poltica cultural de Vichy quandoso privilegiadas as imagens de uma sociedade rural, na esteira de movimentossociais anteriores e instituies museogrficas, entre eles o Front Populaire e omencionado Muse des Arts et Traditions Populaires, movimentos marcados pelasambigidades gauche/droite do final da Terceira Repblica6.

    Em contraponto, o estudo da era getuliana particularmenteinteressante como cenrio em que se d o mapeamento cultural do pas, acriao do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), os programaseducacionais, a expanso de agncias jornalsticas e estdios fotogrficos comdiferentes projetos de registro e difuso da brasilidade7. Vimos que na Franaas incurses interioranas, viagens de aprendizado para formular as ambientaesou quadros vivos nas exposies8, os museus de etnografia e os museus en pleinair representativos de cada uma das provncias, constituram uma das bases doregistro dos tipos e costumes de cada pays; nesse registro, no raro associavam-se os itinerrios intelectuais de porta-vozes da geografia cultural e etnlogos9 eainda os de outros homens pintores, desenhistas e fotgrafos de uma geraocujas prticas de representar as paisagens humanizadas (a expresso remontaa Vidal de la Blache) nacionais ultrapassava fronteiras.

    Tipos e aspectos do Brasil so pequenos textos, acompanhados,cada um, de uma imagem desenhada, que comeam a circular em 1939, emseo da Revista Brasileira de Geografia criada em 1938 e publicada peloConselho Nacional de Geografia (CNG) e pelo Instituto Brasileiro de Geografiae Estatstica (IBGE), duas instituies que nascem no final da dcada de 1930.Trata-se de uma poca marcada por uma poltica cultural nacionalista que une ahistria e a geografia num lan de conhecimento do pas, inscrito em ummovimento de idias pela formao da conscincia nacional em vrios camposda cultura, educao e cincias sociais, movimento de idias alimentado porum mercado editorial em forte expanso10. Afirma-se que o caminho escolhidopelo poder poltico para criar uma nao era o reforo do esprito nacional,materializado na unidade do territrio, em que os gegrafos e a geografiaassumiram um papel de destaque11.

    A geografia , ento, uma disciplina que se organiza e se renovacom a instalao dos primeiros cursos universitrios, em So Paulo e depois noRio de Janeiro, a edio de manuais escolares destinados rede nacional de

    6. Ver FAURE, 1989 (es-pecialmente o prefciode Pascal Ory).

    7. A pesquisa em anda-mento de Maurcio Lis-sovsky e Beatriz JaguaribeA obra getuliana e a mo-dernizao do olhar noBrasil foi apresentada nasegunda jornada Repre-sentaes do Brasil: s-ries, colees e apropria-es editoriais da fotogra-fia nos anos 1940/1960,organizada na UFF em de-zembro de 2004.

    8. Lygia Segala observaque no Brasil o movimen-to folclrico impulsiona-do pela Comisso Nacio-nal de Folclore,criada em1947, esforou-se pelamobilizao da opiniopblica em torno de te-mas da identidade nacio-nal e cultura popular. Cf.SEGALA, 1999.

    9.Sobre as relaes entrea etnologia e a geografia,indispensveis de se co-nhecer no caso deste es-tudo, ver ROBIC, 2004.

    10. Cf. GARCIA Jr., 1993e PONTES, 1989.

    11. Cf. VLACH, 2000.

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  • escolas pblicas recm-criadas, a fundao de associaes e peridicos, cujoobjetivo no caso especfico da Revista Brasileira de Geografia era contribuirpara um melhor conhecimento do territrio ptrio, difundir no pas o sentidomoderno da metodologia geogrfica [e estimular] a produo geogrfica dequalidade [na via] da geografia explicativa12.

    A observao do meio fsico e de sua relao com a vida humanaestava explcita no texto de apresentao da RBG onde se lia tambm que umade suas misses em nome da cincia geogrfica moderna era a difuso rpidae internacional do estado dos conhecimentos geogrficos no Brasil a revistaafigura-se ento como um instrumento de intercmbio para o pas internacionalizar-se. Essa tendncia internacionalizao tpica do entreguerras, e no s noBrasil, e os veculos so as pessoas, os congressos, as associaes, as revistas,as imagens.

    Entre os momentos fortes que antecedem o CNG, o IBGE e amencionada revista, lembremos a participao do Brasil no CongressoInternacional de Geografia em 1931, em Paris, promovido pela UnionGographique Internationale, e a visita, pouco depois, em 1933, de Emmanuelde Martonne ao Rio, destacando em seu discurso a riqueza e a variedade detemas geogrficos [deste] extenso pas (E. de Martonne, que fez uma carreirainternacional, voltar ao Brasil em 1939); em terceiro lugar, acrescente-se opapel decisivo de jovens professores universitrios franceses, Pierre Deffontainese Pierre Monbeig, que criam a Associao dos Gegrafos Brasileiros e que seunem gerao de intelectuais autctones, gerao plena de projetos, formadapor homens abertos a uma cultura plural e empenhados em uma verdadeiraredescoberta do Brasil, a partir de um conhecimento vivido, baseado nas viagenspelo interior do pas: excurses geogrficas e trabalho de campo passam a sero ponto alto das novas orientaes didticas. Enquanto isso, as viagens comfins de registro fotogrfico se generalizam bem alm da geografia institucional.O significado da viagem moderna, das experincias de deslocamento, denarrativas e visualidades coletadas, temas de literatura e iconografia, so questesa aprofundar, conforme observei na Introduo deste dossi. E maisespecialmente, partindo de corpus de imagens aproximadas por uma mesmahistoricidade para avanar a questo de convenes de representao do Brasilque se forjam neste momento.

    Ainda nesse contexto de aparecimento oficial e disciplinar dos tipose aspectos, em 1933 foi criada uma seo de Estatstica Territorial no Ministrioda Agricultura, cujo objetivo explcito era reunir documentos [cartogrficos]sobre o territrio nacional e estudar as caractersticas fisiogrficas das regies;e em 1937, no decreto de adeso do Brasil Union Gographique Internationale,assinado por Getlio Vargas adeso que deve muito ao papel de PierreDeffontaines e ao de Emmanuel de Martonne , reafirma-se, no art. 1, o objetivode ativar uma cooperao geral de todos por um conhecimento sistematizadodo territrio e da ptria. Ora, o fato de ter comeado meu texto pelo registro

    12. Precede esse peridi-co a revista Geografia,editada em So Paulo,quecircula em 1935 e 1936.Nela que se publica oPequeno guia do viajan-te ativo, assinado por P.Deffontaines e C.A. Bar-bosa de Oliveira (1936),com desenhos deste, su-gestivo artigo que ensinao que deve ser observa-do na paisagem brasilei-ra e o que registrar daao do homem. Deffon-taines como se sabe au-tor de um best seller dosanos 30/40 em francscom o mesmo ttulo Pe-tit guide du voyageur ac-tif (cuja primeira edio de 1938 e a segunda de1943), guia que tambmensina como conhecer ecompreender uma re-gio mediante a prticatpica da escola francesade geografia:as pesquisasde campo para elabora-o das monografias lo-cais. Esse guia, destinadoa associaes da juventu-de e escoteiros, inscreve-se no interesse pelo co-nhecimento e reconstru-o das regies francesasno entreguerras; grafica-mente revela inovaessendo fartamente ilustra-do com fotos e croquis.

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  • dessa preocupao oficial pelo conhecimento do pas, no quer dizer queconsidero tal conhecimento e seus desdobramentos como uma ideologia exclusivado Estado Novo mesmo se este acentua o projeto poltico de construo doEstado-Nao que nasce oficialmente com a Revoluo de 1930 e alimenta umprojeto cultural inigualvel na histria do Brasil. O nacionalismo marca a polticade Estado, verdade, com gestos de proteo cultural e de consolidao defiguras identitrias, mas, em primeiro lugar, sabe-se que a busca desse tipo deconhecimento, o registro e a afirmao de representaes nacionais e osinventrios em geral, bem como a descrio e fixao de etnotipos (que englobatraos fsicos e psicolgicos que tipificam a raa, o caso brasileiro secaracterizando pela insistncia no caldeamento), ocorreram em quase todosos pases ocidentais, cada um no seu tempo prprio h em todo lugar umprocesso comparvel de elaborao de identidade cultural. No Brasil a questoest no ar desde o comeo do sculo13 e conduzida por intelectuais que saemdos mais diversos meios, reforada pelos escritores regionalistas e pelos arautosdo movimento moderno nos anos 1920, sem mencionar gestos precedentes, doromantismo oitocentista, dos circuitos imperiais s expedies etnogrficas docomeo do sculo XX. Em segundo lugar, ao fazer histria cultural no estouconvencida que a interpretao poltica explique por si s a produo econvencionalizao de representaes. Porm, um fato a no negligenciar,que o pas nunca viveu uma poca to marcante de voluntarismo de auto-representao, de poltica cultural e pedaggica consciente e organizada emvrias frentes do conhecimento e de construo de imagens emblemticas.

    Em todas as circunstncias ou conjunturas nacionais, para l doslugares comuns dos discursos, as figuras paisagsticas da nao merecem umenfoque mais conforme s leituras recentes das cincias sociais. Lendo FranoisWalter14, que cita anlises de Marcel Roncayolo sobre a cidade, aprendemosque, melhor do que tomar a srie Tipos e aspectos do Brasil como puro reflexoideolgico do Estado Novo, seria mais fecundo v-la como um sistema de idias,de cultura, cujo sentido est tanto no olhar dos que representam os tipos desenhistas e fotgrafos quanto neles mesmos.

    Aps situar o momento de voluntarismo e entusiasmo pelo conhecimentodo pas, passo s imagens, ligando-as s teorias da escola francesa de geografia,a noes vidalianas convocadas pelos seus herdeiros e citadas nos textos queacompanham os desenhos, encadeando-os com sries de imagens semelhantes,procedentes de outras colees, especialmente fotogrficas (a de Pierre Monbeige a de Marcel Gautherot). Interessa-me mostrar os contextos de vizinhanavisual15 entre representaes procedentes de experincias de viagem deindivduos que produziram imagens-tipo prprias de uma geografia cultural comvocao etnogrfica e entender o percurso da representao ao cone e desseaos textos e vice-versa, a passagem das cenas escolhidas pela objetiva defotgrafos, gegrafos, escritores e desenhistas como Percy Lau ao estatuto deconveno. Desdobrando-se em sries, as representaes de identidadesterritorializadas se transformam em emblemas autorizados ou cones nacionais.

    13. FARIA, 1995. O autorreconhece fases anterio-res a 1930 para o nacio-nalismo como poltica deEstado.

    14. WALTER, 2004.

    15.A expresso de Di-dier Mendibil, especialis-ta em estudos sobre aiconologia geogrfica,que mencionarei maisadiante.

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  • Os desenhos de Percy Lau16 fazem parte de uma viso iconogrficado Brasil (a expresso de Alceu Amoroso Lima no prefcio ao livro de fotosde Antoine Bon, Marcel Gautherot e Pierre Verger, Brsil, citado na Introduodo dossi), de tipos e cenas emblemticas, na linha de uma imagerie regionalistaancorada na paisagem, imagerie que se constitui na longa durao em circuitosque passam pelo Estado, intelectuais, artistas, viajantes.

    Percy Lau, cujo pai era ingls, nasceu no Peru em 1903, mas passoua maior parte de sua vida no Brasil, onde fez carreira como desenhista e ilustrador.Est em Pernambuco desde 1921 e participa do Grupo dos Independentes,organizando em 1932, com Augusto Rodrigues, o Ateli de Artes Plsticas; noRio de Janeiro integra em 1939 a equipe dos funcionrios do IBGE. Malgradosua mobilidade reduzida, viajou pelo Brasil a servio do instituto, mas algunsde seus desenhos a bico-de-pena da srie no so apenas fruto das viagens,tendo trabalhado tambm a partir de fotografias; freqentou pintores comoPortinari, Guinard, Djanira, alm de Augusto Rodrigues, intrpretes como eledos arqutipos brasileiros. Seria interessante aprofundar as relaes entre seusdesenhos e os produtos do meio artstico. E ainda, levantar os nveis da difusode sua srie nos manuais didticos e em outros veculos.

    Anlises recentes vm situando na historiografia a associao deaspectos de uma paisagem especfica a seus tipos, a ligao dos caracteresdos habitantes ao territrio (determinismo ambiental), reconhecendo os momentosdessa retrica passadista que produzia esteretipos (os etnotipos)17. A anlisedos esteretipos nacionais ou do carter das naes, como se dizia na Europaclssica, um dos flores da literatura comparada [...] este enfoque destaca asrelaes dinmicas que unem um carter a um lugar, cruzando-se espacialidadee comportamento, topografia e antropologia18. As formas de construo dasvises iconogrficas do Brasil inscrevem-se em elaborao mental cujos pontoscomuns, repito, podem ser detectados em outros pases.

    As cenas e textos em srie sob o ttulo Tipos e aspectos do Brasilcomeam a circular na Revista Brasileira de Geografia a partir do n. 4, em1939, sem a sistematizao dos tipos por regies que marcar sua disposioquando reunidos em livro. O nmero de exemplares aumentou progressivamente19,as edies respondendo a uma demanda crescente, conforme a nota explicativada traduo francesa, que saiu em 1957. Seu tradutor, Francis Ruellan,geomorflogo que chegou ao Brasil em 1940 para lecionar nos cursos degraduao em geografia, atuou como consultor tcnico do Conselho Nacionalde Geografia, foi um dos principais introdutores do trabalho de campo no pas,chefiando inmeras excurses geogrficas; participou em 1948 da comissode estudos para escolher o stio da futura capital do pas, Braslia, publicando oartigo Quelques problmes de lexpdition charge de trouver des sites pour lanouvelle capitale des tats Unis du Brsil no Bulletin de lAssociation desGographes Franais. Com sua mulher, Anette Ruellan, que se associa a ele natraduo de Tipos e aspectos, publicou o livro Le Brsil (alis, o ttulo se repeteem livro de Pierre Monbeig, em 1954, da clebre coleo Que sais-je? da PUF,traduzido no mesmo ano pela Difuso Europia do Livro, reeditado muitas vezes

    16.Em 1986,o Museu Na-cional de Belas Artes,queguarda parte do arquivode Percy Lau,dedicou-lheuma exposio. Ver XE-XO, 2000.

    17. Cf. WALTER, 2004, ca-ptulo Caractres et st-rotypes: du moral auspatial e p. 465ss.

    18. Id., p. 35-36.

    19. Em 1940, h uma tira-gem reduzida, pequenabrochura contendo oitotipos, por ocasio da XIIIFeira Internacional deAmostras; em 1942, con-tam-se 20 tipos numa edi-o da revista consagra-da ao batismo da novacapital de Gois,Goinia;em 1943, editam-se 26 ti-pos nas comemoraesdo primeiro centenriodo IHG do Uruguai; em1944, 36 tipos circulamna tiragem da SegundaReunio Pan-americanasobre Geografia e Carto-grafia, no Rio de Janeiro.Note-se que so todasedies circunstanciaisvisando a difuso de umaimagem do pas, fixadanos seus tipos e aspectos,predominantemente ru-rais. Quanto circulaoda RBG, ela era conside-rvel para a poca: tri-mestrial, com uma tira-gem de 5 mil exemplarese com resumos dos arti-gos em francs, ingls eesperanto.

    27Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

  • e com traduo at em japons); Le Brsil ainda ttulo de livro de Maurice LeLannou, em 1955, publicado tambm por uma editora francesa de prestgio,Armand Colin (cito esses ttulos para chamar a ateno sobre o boom depublicaes de estrangeiros sobre o pas no perodo). Le Lannou (1906-1992) normalien, figura de destaque da geografia humana francesa voltada para osestudos regionais e bom fotgrafo, interessando-se justamente pelas paisagens eas maneiras como os homens viviam nelas (lhomme-habitant) ele esteve tambmno Brasil como professor, sendo um entre tantos intelectuais viajantes cujastrajetrias se conhece pouco. Alis, sabe-se pouco tambm sobre a maioria dosautores que assinam os textos dos Tipos e aspectos, de formao diversa,alguns sendo responsveis por vrios episdios, como Jos Verissimo da CostaPereira, Elza Coelho de Souza, Lindalvo Bezerra dos Santos e o mais conhecidohoje, Nelson Werneck Sodr.

    Em 1945 e 1946, devido acolhida elogiosa e simptica noexterior, saem trs edies em lnguas estrangeiras ingls, esperanto e espanhol, confirmando o objetivo de difundir as expresses culturais do Brasil, objetivoassumido pela CNG. Na nota explicativa da edio francesa, lemos que atraduo da sexta edio em portugus publicada por ocasio da reunio doXVIII Congresso Internacional de Geografia, no Rio de Janeiro, em agosto de1956: Jamais haver oportunidade comparvel, dizia-se para o encontrodos maiores especialistas seduzidos pelos problemas geogrficos do Brasil, quepretendem estudar (p. VII). As reedies ou edies ampliadas acontecem,ento, quase todas em reunies internacionais e reforam minha hiptese, a doinventrio e difuso de cenas do pas, de seus homens e aspectos, objetivo darevista e das instituies de vocao geogrfica. Estas querem afirmar e exportara cultura e as imagens do Brasil no se trata ento unicamente da construode imagens para circulao interna e afirmao da unidade nacional formulaes da mesma ordem, repito, esto ocorrendo numa dimensointernacional. Resta-nos recuperar a lgica das escolhas dos tipos exemplaresretratados. Nesta anlise utilizei a edio de 1956, que mostra 96 quadros.Uso, no fim deste ensaio, apenas um aspecto da dcima edio brasileira de1975, j com 143: o aumento das cenas/tipos confirma o sucesso dapublicao.

    Ao passar para a forma de livro, os Tipos e aspectos so agrupadospor grandes regies na revista no havia essa sistematizao, eles foramaparecendo salteados: em outubro de 1939, a srie comea com os arpoadoresde jacars da regio Norte; em janeiro de 1940 o tipo o vaqueiro deMaraj e o aspecto a caatinga, que no lhe corresponde; em abril, o gachoe os campos de criao no Rio Grande do Sul, respeitando-se nesse caso aassociao do tipo sua paisagem. bom lembrar que a primeira divisoregional oficial data de 1941. Na lei geogrfica para organizar as regies,observa-se que se o pas no era homogneo, era necessrio estudar antes aspartes para depois chegar a uma sntese final20. Isso nos faz pensar em umaobservao de Anne-Marie Thiesse sobre a Frana: fazer conhecer a petite patriepara melhor apreender a grande Ptria21. A idia de construo analtica das

    20.Paul Vidal de la Blacheteria ido mais longe naanlise das representa-es da metonmia daparte como caracteriza-o do todo territorial noTableau de la gographiede la France, articulandoa escala local e a mundial,o solo e os homens, omeio e a histria. Ele te-ria criticado o localismoexacerbado de muitos pe-dagogos que defendiam oestudo da petit patrie pa-ra conhecer e amar a gran-de [...] Longe de se redu-zir descrio infinita domosaico dos petits paysda Frana, longe de evo-car os gneros de vida cor-respondentes s ativida-des tradicionais de agri-cultor, de criador ou ou-tra,o Tableau se inscrevenos delineamentos deuma geografia geral do po-ltico [...] e traa tambmuma teoria ou pelo menosum esboo da territoriali-dade humana, analisandoprocessos gerais de espa-cializao econmica e derepresentao simblicados lugares.Para Vidal dela Blache h,pelo menos,duas formas de territoria-lidade (expresso que sig-nifica uma apropriaodo espao):uma centradasobre o poder do Estadoe outra sobre a experin-cia da vida cotidiana. Elevaloriza a territorialidadecivil em relao territo-rialidade estritamente po-ltica,da qual ele recusa oarbitrrio. Enfim, ele evo-ca as reas de civilizaocomum.Cf.ROBIC,2000,p.184 e 223.Ao ler textoscomo esse, fica patente anecessidade de uma an-lise mais fina dos emprs-timos aos tericos da es-cola francesa feitos emtextos e sries iconogrfi-cas da geografia humanabrasileira,trabalho que vaimuito alm de uma pes-quisa individual e dos li-mites deste ensaio.

    21. THIESSE, 1997, p. 56.

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  • representaes ao longo do tempo se explicita, como um aprendizado sur levif, no prefcio edio de 1956: depois de dezesseis anos de esforospublicando a srie, o CNG j aprendeu a agrupar e a caracterizar o essencialdas paisagens e dos gneros de vida brasileiros22.

    Na viagem moderna, a fotografia a companheira da liberdade eda mobilidade, no caso dos gegrafos e etnlogos as colees tm em comumo fato de terem resultado de observao participante, fotografias originriasdas excurses e do trabalho de campo que ora se banalizam; a presena dafotografia nas revistas de geografia citadas um fato digno de registro, tambmcarente de estudos23. Fotografia e desenhos entram numa era de reproduo econsumo j conhecidos. Em 1939, quando comeam a circular os Tipos easpectos, h um artigo de Deffontaines (A geografia humana do Brasil),publicado em partes ao longo do ano, que exibe fotografias com a chancelado Departamento de Imprensa e Propaganda, mostrando cenas que seroigualmente representadas na srie de Percy Lau.

    Passo anlise dos desenhos de alguns episdios, s fotografias comrepresentaes semelhantes e aos comentrios dos textos que acompanham osprimeiros.

    22. bom lembrar que oIBGE tem um arquivo fo-togrfico sob a rubrica Ti-pos e aspectos, que ser-viu tambm como outrascolees do rgo (asprovenientes dos traba-lhos de campo) para reu-nir imagens para a Enci-clopdia dos municpiosbrasileiros, editada entre1957 e 1964; as fotos soagrupadas por Estadosdo Brasil,com o predom-nio dos do Norte e Nor-deste e malgrado a classi-ficao deficiente con-tam com indicaes orada expedio, ora do fo-tgrafo, algumas so da-tadas, e os temas cobrempraticamente os mesmosda srie citada. O IBGEqueria fazer um museupaisagstico do Brasil, nalinha dos ecomuseus eu-ropeus como o Museu deArtes e Tradies Popula-res; o Museu Nacional te-ria seguido essa linha.

    23.Entre os artigos da re-vista Geografia, destaco,Impresses de viagem aolongo do Rio Paran, deAntonieta de Paula Sou-za, narrativa de excursofeita com seus professo-res Pierre Monbeig eClaude Lvi-Strauss em1936, que apresenta 12fotografias sem autor, domaior interesse,nos cdi-gos da geografia e da an-tropologia.

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    Figura 1 Capa da edio de 1956 de Tipos e aspectos do Brasil, destacando as miniaturasdas representaes que sugerem regionalizao, porm sem delimitao administrativa. Acervoda biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • Na capa v-se o mapa do Brasil, o contorno do todo: a unidade dopas representada sem as divises dos estados no espao territorial. Na suainterpretao pioneira da srie dos Tipos e aspectos, Ana Daou o situa comoum produto da poltica cultural do Estado Novo, observando que o mapa figuradosem definies regionais impe a unidade fragmentao24. Como exemplosimblico de uma poltica cada vez mais centralizadora aps 1937, ela lembrano seu estudo que se queimam as bandeiras de cada estado e proclama-se abandeira nacional como o nico emblema do pas.

    Quanto questo da caracterizao das regies, ser que se podiafalar disso claramente, se no momento elas esto ainda em vias de se constituir?Para o estado de So Paulo, conhecemos o artigo de Pierre Deffontaines de1936 em que ele tenta fazer o esboo de uma diviso regional, sem sucesso25.Nicanor Miranda, do Departamento da Cultura de So Paulo, havia afirmadono Congresso de Folclore em Paris, em 1937:

    Ns no temos, na verdade, neste momento, uma base objetiva para a delimitao dasregies. As divises regionais comumente admitidas so muito gerais e incompletas [...]histrica e geograficamente, os critrios no aparecem claramente e definitivamenteestabelecidos [...]. O estudo da distribuio geral dos fatos, deve preceder a determinaodas reas, sobretudo em pas como o nosso, onde tais pesquisas so absolutamente novas26.

    Na verdade no s faltam pesquisas naquele momento em vrioscampos, como a ocupao do territrio est se fazendo, razes combinadasda dificuldade de um recorte regional de uma sociedade em movimento(expresso da poca, de Pierre Monbeig). No entanto numa linguagem daantropogeografia ou da geografia cultural, o regionalismo e os caracteresvernaculares so reiterados em cada episdio pela acentuao das diversidadespaisagsticas, embora no se possa reconhecer em todo lugar um pertencimentocomunitrio, sobretudo em regies marcadas por uma mobilidade de ocupao,como a Sudeste e Sul.

    Se tomarmos a poca como de construo das imagens da nao,h nessa srie um gesto de mapear os tipos sociais no trabalho, na sua maneirade viver, trabalhar, se alimentar e transformar as paisagens. O conhecimento doterritrio humanizado, da etnologia, da natureza psicolgica dos tipos, da misturade raas, da ligao tipo e lugar, enfim, da territorializao das identidadesque compem o conjunto de regies da nao, explica a srie, dentro da linhadescritiva vidaliana: solo-cultura-ocupao dos lugares-habitaes-traospsicolgicos27.

    Em geografia regional, estudavam-se tradicionalmente as partes e otodo. Nos mapas que dividem as cinco partes do livro, destaca-se cada regiocom algumas de suas cenas caractersticas, mostrando-a como parte do mapado Brasil, em pequena dimenso no seu lado esquerdo, e assim por diante paraas outras quatro regies (Nordeste, Centro-Oeste, Leste e Sul) ao longo do livro,que tem 443 pginas na edio traduzida para o francs de 1957, usada nestaanlise (Figuras 2 e 3).

    24.Cf.DAOU,2000. A au-tora retomou esse traba-lho na Segunda Jornadasobre Representaes doBrasil realizada na UFF(citada na Introduo)em 2002.Meu texto devemuito ao dela,embora to-me outras direes.Agra-deo-lhe as discusses fe-cundas a respeito.

    25. Pierre Deffontaines,Pays e paysages de ltatde Saint-Paul. Premireesquisse de division r-gionale, Annales de Go-graphie, t. XLV, 1936, pu-blicado em portugus narevista Geografia, n. 2,ano I, 1935 (as imagensdiferem entre as duas edi-es, as da edio france-sa so placas de vidroconservadas em Paris).Discpulo de Jean Bru-nhes, Deffontaines au-tor de um interessantetexto, Les personnages-types du Brsil,Revue deDeux Mondes,de feverei-ro de 1936. Ele explicaque a definio humanade uma regio dada pe-los gneros de vida ex-pressos nos personagens-tipo e nas formas comoeles se associam, explo-ram e vivem no seu terri-trio. E que ocupaes eregime de trabalho soinscritos na paisagem.Po-rm, seus tipos diferemdos da srie que estou tra-tando: ele identifica, aolongo da histria,o fazen-deiro como personagemprincipal, os ndios querestaram da hecatom-be, depois o colono quegravita em torno do fa-zendeiro e os mascates,cuja importncia aumen-ta com a evoluo das ci-dades, enquanto mar-gem delas, no serto, vi-vem os caboclos ou cai-piras mestios, o caiarae em contraste com eles,novos personagens: osoperrios industriais dascidades, na maioria es-trangeiros, e a nova aris-tocracia urbana; observaainda que mesmo entreos pequenos mtiers ur-

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  • Depois do mapa sem fronteiras da capa que rene algumas cenas-miniaturas que compem o pas, as especificidades dos tipos e aspectos decada regio formam o todo do livro. Declara-se querer apresentar em cadaquadro regional [penso na noo do tableau de Vidal de la Blache] as paisagensas mais caractersticas e as atividades dos homens, numa viso de conjunto doBrasil. Na nota explicativa dessa edio l-se ainda sobre o contedo: tratade miniaturas da realidade para os que se interessam por assuntos relacionadoscom a terra brasileira e a gente que a povoa. A idia de miniatura a de umresumo da nao, da histria local como ilustrao da histria nacional28.

    Tudo isso nos remete aos princpios do discurso vidaliano sobre acaracterizao do meio, da vegetao, da unidade entre a regio e o clima,do homem e seu rinco; na descoberta dos lugares-tipo (pays-type), como haviaobservado Vidal de la Blache para a Frana, lemos nos Tipos e aspectos ainsistncia sobre os caracteres fsicos dominantes, com a descrio minuciosado quadro paisagstico desenhado com detalhes. a clebre questo dadiversidade e da variedade que est em jogo, do genius loci, de uma organizaoespacial dos contrastes tpicos ao territrio do Pas (entendido aqui como nao).As figuras paisagsticas de cada regio respondem a uma territorialidade marcadapela alteridade de seus elementos naturais e por seus habitantes que os modificamou se adaptam a eles. Aparece a uma noo de base da escola francesa de

    banos os mendigos soraros no Brasil. Comen-ta paradoxos e contras-tes na relao cida-de/natureza e cidadesmortas/cidades novas, eque um americanismoprogressivo vai se asso-ciando a uma vida de tra-dio. Percebe, a exem-plo de historiadores queestudaram fora e que pu-blicavam ento obras quemarcariam a viso crticado Brasil (penso em Sr-gio Buarque de Holanda)que o pas mudaria embreve dado urbaniza-o rpidae industriali-zao acelerada, expres-ses de GARCIA, 2000.Ver, mais adiante, consi-deraes sobre a ausn-cia da cidade e dos cita-dinos nos Tipos e aspec-tos.

    26. MIRANDA, 1938, p.280.Traduo da autoradeste artigo.

    27. Cf. GUIOMAR, 1986,p. 582.

    28. Cf. THIESSE, 1997, p.59.

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    Figura 2 Mapa da regio Norte, Tipos e aspectos do Brasil. Acervo da biblioteca do Institutode Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • 32 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura 3 Prancha composta livremente pela autora reunindo alguns dos tipos e paisagens da RegioNorte desenhados por Percy Lau, em Tipos e aspectos do Brasil. Acervo da biblioteca do Instituto deEstudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • geografia, citada vrias vezes ao longo dos textos dos episdios, a de gnerode vida (fator de diversificao dos espaos culturais), na afirmao decaracterizar as especificidades do meio e de seus habitantes, de classificar asatividades produtivas e o habitat, e o horizonte do trabalho onde o tipo evolui(fala-se tambm de regime de trabalho); essas noes conforme o texto que asexplica significam formas de civilizao decorrentes da cooperao da naturezae do homem. E, particularmente, so descritas vestimentas e traos psicolgicosexaltando-se a brasilidade dos tipos, a essencialidade da nao. Voltarei comexemplos mais adiante.

    O desenho do vaqueiro do Rio Branco e a fotografia deste por GeorgesHuebner, de 1904 (Figuras 4 e 5), correspondem observao do prefcioindicando que algumas composies tomam fotos e desenhos por base. Umadas intenes deste estudo sobre vises iconogrficas do pas e seus cdigos aproximar as representaes similares, estudar as modalidades de reiteraofigurativa, detectar matrizes ou imagens paradigmticas por isso, na buscadas convenes iconogrficas, introduzo algumas comparaes entre coleesdiferentes , mas neste caso, a sugesto do prprio texto que referencia suafonte, ou seja, o desenho reproduz o modelo apresentado na edio de 1906,de O vale do Amazonas, de Jacques Ourique, que usa foto de Georges Huebner(fotgrafo suo que esteve em Manaus, cujas fotos esto no Museu de Etnografiade Genebra). Estamos diante de uma situao de cpia fiel a um modelo. Noepisdio dos Burros de carga, publicado originalmente em outubro de 1940na RBG, l-se que o desenho reproduz uma fotografia da obra Brasilien, dePeter Fuss.

    Vimos que peculiaridades regionais que caracterizam o geotipo podemse repetir: o vaqueiro do Maraj serve-se do boi para atravessar regies inundadascuja topografia e vegetao so apropriadas criao. Os bois de sela existemtambm no Centro-Oeste, mas a paisagem e as razes da prtica so de outraordem (Figuras 6 e 7). Marcel Gautherot, percorrendo a Ilha Mexiana, fotografanos anos 1940 sries desses pitorescos vaqueiros.

    Outra imagem dos tipos e aspectos da regio Norte a dosarpoadores de jacars (Figura 8) tambm retomada por Gautherot (Figuras 9aa 9f); desconhece-se o uso dessa srie feita por ele, que parece se inscrever nasencomendas prprias ao fotojornalismo, em voga na poca.

    Um ponto que merece ser observado entre as duas edies, a brasileirade 1956 e a francesa que a segue a presena de diferenas na organizaodos tipos e aspectos por regio; se a edio brasileira simplesmente os colocouem ordem alfabtica, na francesa h uma lgica que associa, por exemplo, otipo ao aspecto, no caso o vaqueiro caatinga, a paisagem do Nordeste(Figuras 10 e 11). No texto, lemos que ambos se compreendem, se completame formam, numa associao fantstica, um s corpo impregnado de estoicismoe de brasilidade. Afinal se o meio imprime um trao de indiscutvel personalidade paisagem cultural (conforme l-se no episdio do vaqueiro do Rio Branco),

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  • 34 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura 5 Vaqueiro do Rio Branco, fotografia de George Huebner em Jacques Ourique, O Vale do Amazonas, 1906, republicada em Daniel Schepf et al., George Huebner. Unphotographe Manaus, Genebra, Muse dethnographie, 2000.

    Figura 4 Vaqueiro do Rio Branco, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil.Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • 35Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

    Figura 6 Bois de sela, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil. Acervo dabiblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    Figura 7 Vaqueiro, Ilha Mexiana/PA, c. 1943. Fotografia deMarcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

  • 36 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura 8 Arpoadores de jacar, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil. Acervo da biblioteca doInstituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • 37Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

    Figuras 9a a 9f Srie da caa ao jacar, Ilha Mexiana/PA, c. 1943. As sries do arquivopessoal de Marcel Gautherot, organizadas por ele em pranchas-contato, apresentam oramovimentos de aproximao contnua, ora um travelling documentrio da ao na multiplicidadede pontos de vista e momentos variados em que domina a idia de seqncia ou de encadeamentoinstantneo. Fotografias de Marcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

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  • 40 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura 10 Vaqueiro do Nordeste, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil.Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    Figura 11 Caatinga, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil. Acervoda biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • 41Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

    Figura 12 Vaqueiro na praa de vilarejo, 1944. Fotografia de Pierre Monbeig. CopyrightPRODIG/ CNRS, Paris.

    Figura 13 Vaqueiro, 1971. Fotografia de Pierre Monbeig. Copyright PRODIG/ CNRS, Paris.

  • essa associao que se procura seguir em vrios episdios da edio francesa a melhor forma de organiz-los. Passo sobre os esteretipos presentes nadescrio, para destacar a parte em que o vaqueiro visto como um heri-guerreiro, convocando-se a representao literria do pico de Euclides daCunha:

    As vestes so uma armadura. Envolto no gibo de couro curtido, de bode ou de vaqueta;apertado no colete, tambm de couro; calando as perneiras, de couro curtido ainda, muitojustas, cosidas s pernas e subindo at as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; eresguardados os ps e as mos pelas luvas e guarda-ps de pele de veado como a formagrosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo. Essa armadura, pormde um vermelho pardo, como se fosse de bronze flexvel, no tem cintilaes, no rebrilhaferida pelo sol. fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem vitrias... 29

    Dos diapositivos coloridos de Pierre Monbeig feitos no Brasil, os maisantigos so de 1944, entre os quais encontramos tambm o vaqueiro do Nordestecorrespondendo a essa representao, que 30 anos depois permanecerpraticamente a mesma (Figuras 12 e 13).

    Ao longo da descrio dos tipos h um esforo de legitimao, defixao da realidade viva, de reconhecimento das identidades regionalizadasna dureza do trabalho e precariedade do meio ambiente. Vidal de la Blache citado na referncia ao homem como agente geogrfico e suas invenes, para no dizer inventividades nos meios ingratos (lembremo-nos que no seuTableau de la gographie de la France, lenvironnement plaisant nest quuneillusion; de fato, o meio ambiente raramente aprazvel e agradvel comovimos na descrio da caatinga). Os tipos esto flagrados no raro numcombate, numa confrontao com a natureza, como na coleo que PierreDeffontaines havia feito para a editora Gallimard, Lhomme et la terre. Observe-se que os Tipos e aspectos seguem a linha vidaliana revista por Brunhes eretomada por Deffontaines, prprias geografia cultural francesa o homemna paisagem, sua batalha contra a natureza hostil ou as formas de colaboraoharmoniosa com ela na coleo dirigida por Deffontaines evocam-se gnerosde vida, meio, plantas, animais, produtos, composio tnica30.

    Nas edies dos Tipos e aspectos no h bibliografia no fim da obra,nem notas de rodap, porm, ao longo do texto, em maisculas, encontramosas referncias sejam clssicos da histria do Brasil desde o sculo XVI, sejamobras contemporneas srie (mencionei o desenvolvimento do mercado editorialbrasileiro, a partir dos anos trinta, sobre o qual existem inmeros trabalhos). Socitados desde tratados e obras da historiografia a simples brochuras defitogeografia, mineralogia, biologia, etc. para mencionar apenas os nomesmais conhecidos da escola francesa de geografia: Paul Vidal de la Blache, JeanBrunhes, Albert Demangeon, Pierre Deffontaines; outras referncias renemtestemunhos dos que viveram ou passaram pelo Brasil, como Humboldt, aosbrasileiros romancistas, engenheiros, jornalistas, funcionrios de instituies federais(agrnomos, tcnicos e militares) a esses textos juntam-se ainda contos popularese lendas locais. Nessas referncias vrias correntes se misturam, acadmicas ou

    29. TIPOS E ASPECTOS,1956, p. 169-170. Confe-re com a descrio deCUNHA, 2001, p. 213.

    30. Cf. CLAVAL, 1998, p.201ss. Os livros da cole-o de Deffontaines apre-sentam uma iconografiamuito prxima da dos Ti-pos e aspectos, com de-senhos de ilustradoresprofissionais; na Frana,colees do gnero ti-pos e costumesque voumencionar mais adiantevo at os anos 1950.

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  • no, inscritas na curiosidade e redescoberta narrada do pas, no inventrio dadiversidade de uma populao e seu territrio. Vimos a convocao de pico docomeo do sculo XX, Os sertes, romance regionalista avant la lettre que funcionoupara a gerao dos anos 1930/1940 como um mito de origem para o Brasilrefazer sua razes voltando-se para o interior do pas31.

    Um ponto a observar que as representaes se referem sobretudo realidade rural as cidades e a arquitetura praticamente no aparecem entreos aspectos, salvo de maneira discreta v-se apenas alguns vilarejos quandoso mostradas as habitaes rsticas, os mocambos do Nordeste (Figura 14),lembrando o ensaio de Gilberto Freyre, vistos como um problema tnico-culturalcomplicado pelo pauperismo e pela concentrao urbana. Sabemos daimportncia do habitat rural na geografia cultural francesa e tambm nos textosdo Congresso do Folclore e Exposio de Paris, em 1937, comentados acima.H tambm a representao das aglomeraes populares ou favelas do Riode Janeiro, objeto de um episdio e cenrio para as lavadeiras, tipo comum dageografia humana (trata-se do nico desenho em que aparecem edifcios (Figuras15 e 16). O elemento feminino est presente muitas vezes nos Tipos e aspectos, o caso das negras da Bahia, que, como na imagem das lavadeiras, apresentatambm a cidade como pano de fundo (Figura 17). Notei ainda que na capamodernizada da stima edio, em 1963, aparece entre as miniaturas da capaa representao de Braslia, na arquitetura do Palcio do Congresso e daAlvorada, que no entanto no entraram no corpo do texto.

    Lugares tpicos das cidades tambm so aspectos a inventariarregionalmente. o caso dos mercados, especialmente os das beiras de porto,outro cenrio de eleio da geografia humana e dos fotgrafos da poca, entreos franceses Verger e Gautherot, embalados pela leitura de Jubiab, de JorgeAmado. No episdio do mercado Ver-o-Peso, em Belm, um dos lugares damemria do pas, h referncias sobre a paisagem sonora e diversidade tnicados seus personagens (Figura 18). Se Monbeig enfocou sobretudo o pitorescoda feira artesanal, os pavilhes de ferro e o casario urbano das imediaes,Gautherot ateve-se a seqncias de imagens da trama das velas, mastros ecordas das embarcaes na beira-rio e no porto-mercado, das pedras de geloe das cargas, captando tambm a cidade velha como fundo de algumas tomadas(Figura 19); movimentado-se entre os trabalhadores e pescadores, Gautherotsobe nos mastros para fotografar do alto os barcos, principal protagonista dassries de suas pranchas-contato sobre o Ver-o-Peso.

    De um lado, h o Estado que busca modernizar a sociedade por umasrie de medidas e as cidades que se industrializam, de outro, um Brasil profundo desse Brasil que tratam os tipos e aspectos na descrio da distribuiointerior do habitat, dos utenslios, da rusticidade dos homens do mundo rural;no se tem mais vergonha, como no sculo XIX, de parecer atrasado, de estarlonge da civilizao, ao contrrio. As representaes do pas mudam em relaos do sculo anterior no mais a hagiografia dos grandes homens, os fatospolticos, a busca de traos urbanos de cosmopolitismo que contam. Nonaturalismo que define os tipos nacionais, no se trata de geopoltica, mas de

    31.GARCIA,op.cit.,p.32.O enfoque cultural dobrasilianismo das paisa-gens e dos homens, dabusca de unidade nacio-nal, insere-se nessa chavedo regionalismo literrio,cujas relaes com a ico-nografia seria um temafundamental a aprofun-dar no Brasil. J citamoso livro de Anne MarieThiesse relativo ao casofrancs; entre as anlisesrecentes das representa-es das paisagens nacio-nais europias,ver o livrode WALTER,op.cit. J pa-ra a ligao entre o pol-tico e o vernacular, naFrana, ver FAURE, 1989.

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  • 44 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura15 Favela, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil. Acervo da bibliotecado Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    Figura 14 Mocambos do Nordeste, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil.Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • 45Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

    Figura 16 Lavadeiras, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil. Acervo dabiblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    Figura 17 Negras da Bahia, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil. Acervo dabiblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • 46 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura18 Mercado Ver-o-Peso, Belm, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil.Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    Figura 19 Mercado Ver-o-Peso, Belm/PA, c. 1954-57. Fotografia de Marcel Gautherot.Acervo do Instituto Moreira Salles.

  • geografia humana, uma geografia da vida no seu sentido mais prprio, comenfoques fitogeogrfico, biogeogrfico, econmico, descrevendo-se asparticularidades da relao homem/ambiente/regio. Esse tipo de celebraodo mundo rural no apangio do Brasil tampouco. Franois Walter o analisacomo um fenmeno geral na primeira metade do sculo XX. Nesse particular, bom lembrar que nos regimes totalitrios europeus dos anos trinta, no nacional-socialismo e na poltica de Vichy, as referncias conservadoras ao solo e aoscamponeses freqente.

    Na caracterizao de uma paisagem regional, o papel das plantas outro ponto de destaque na srie. Tomemos um exemplo do Nordeste: o palmeiralde carnabas (Figura 20), rvore da vida, da providncia, como escreveuHumboldt destacando as mltiplas utilidades das palmeiras na economia rural. Aimportncia antropogeogrfica dos carnaubais ressaltada: verdadeiras ilhashumanas em zona devastada pela sca, conforme expresso de Jean Brunhes,citado no texto, pelo seu conhecido trabalho La gographie humaine. Aindividualidade das paisagens culturais acentuada pelas imagens fisionmicasda vegetao. O personagem reaparece nos diapositivos de Monbeig 30anos depois (Figura 21), enquanto nas sries de Marcel Gautherot todo o processode colheita fotografado, as sries desdobrando-se at o enquadramento emgros plan da folha, em fotografia que lembra ainda os preceitos figurativos daNouvelle objectivit e as particularidades do trabalho de um artista-fotgrafomuito alm do simples registro documental (Figuras 22a a 22f e 23).

    A extrao do caro e as imagens das usinas artesanais do sertodo Nordeste (Figura 24) podem tambm ser comparadas a outras imagens queregistram processos de indstria artesanal semelhante, demonstrando o interessepelo registro dessa produo classificada entre as velhas formas de culturacujas etapas so descritas minuciosamente no texto; imagens semelhantes dePierre Verger aparecem no livro de Antoine Bon (Figura 25) e, no acervo fotogrficode Monbeig, a seqncia sobre a colheita e secagem da malva de Santarm(Figura 26) reitera esse tipo de representao at o detalhamento da fibra.

    As salinas (Figura 27) constituem uma outra paisagem tpica doNordeste e do Estado do Rio de Janeiro; no episdio so citados livros que seinscrevem nesse perodo ureo de publicaes que cobrem tambm a culturamaterial e os produtos do pas e que, como em outros episdios, destacam oherosmo dos trabalhadores: indstria genuinamente brasileira, uma ddivagenerosa da natureza. O sol, a terra, as guas, os ventos, os caboclos fortes,resistentes a tudo, de epiderme queimada e ps e mos sangrando ao contatodos cristais so os trabalhadores do sal. Gente rara e indomvel32. MarcelGautherot dedicou s salinas uma de suas mais belas sries fotogrficas em queo contraste de luz no preto-e-branco atinge alto domnio tcnico, as seqnciasnarrativas mostrando as paisagens e seus tipos humanos nas diversas fases daproduo (Figura 28). As salinas so consideradas como um dos aspectosgeogrficos mais importantes do pas, importncia acrescida no texto pela sualigao histrica expanso da criao de gado, desde o perodo colonialquando se destaca o papel dos bandeirantes na integrao das regies distantes.

    32.Texto de um entre tan-tos livros do Servio deInformao Agrcola, Aindstria extrativa dosal, de Dioclcio Duarte,publicado em 1941.

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  • 48 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura 21 Palmeiral de carnabas em igap, Piau,1974. Fotografia de Pierre Monbeig.Copyright PRODIG/ CNRS, Paris.

    Figura 20 Palmeiral de carnabas, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil.Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • 49Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

    Figuras 22a a 22f Plantao de carnaba, Messejana/CE, c. 1950-52. Fotografias deMarcel Gautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

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  • 51Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

  • O boiadeiro (Figura 29) um tipo das pradarias abundantes eextensivas encontradas em vrias regies do pas. O tipo viaja todo o tempo: um espetculo freqente no interior do Brasil, a passagem das tropas nasestradas, no seu passo lento, em direo aos mercados consumidores. A travessiaNorte/Sul e vice-versa pelas tropas descrita por Nelson Werneck Sodr, cujareputao se afirmar como autor de livros de referncia crtica historiogrficadurante geraes, como O que se deve ler para conhecer o Brasil, em 194533.Sobre as tropas em viagem ele escreve que no Brasil, a travessia de rios e valessempre foi um problema dada imensido do territrio e a precariedade dasestradas que caracterizam as paisagens percorridas por estes homens nmades.A cena se repete em diapositivo colorido de Pierre Monbeig, na Belm-Braslia,em 1971 (Figura 30).

    Introduzo aqui uma imagem da srie Types et coutumes de France,

    33. A vontade de reper-toriar,classificar, fazer ba-lanos historiogrficosestava no ar do tempo lembremo-nos do artigode Pierre Monbeig, Ob-servaes sobre o estadoatual dos estudos geogr-ficos no Brasil (publica-do em uma nova revistapluridisciplinar, comomuitas da poca, Rumo,em 1943) e do clebreManual bibliogrfico deseu amigo Rubens Borbade Moraes.

    52 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura 23 Detalhe da folha de carnaba, Messejana/CE, c. 1942. Fotografia de MarcelGautherot. Acervo do Instituto Moreira Salles.

  • Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

    Figura 24 As usinas de caro, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil.Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    Figura 25 Colheita do caro, fotografias de Pierre Verger em Antoine Bon (org.), Brsil, Paris, Paul Hartmann ed.,1950.Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

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    Figuras 26a e 26b Secagem e seixos da malva de Santarm, 1971. Fotografias de PierreMonbeig. Copyright PRODIG/ CNRS, Paris.

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  • pequenos livros que proclamam a unidade de cada regio pelas paisagensmltiplas de um s rosto (Figura 31). O pastor da Provence e seu rebanho tmcomo pano de fundo o conjunto arqueolgico de St. Rmy. Na Frana, identidadee patrimnio so indissociveis o patrimnio da petite patrie constitudoigualmente pelos stios e os panoramas, os monumentos histricos, os produtosregionais, os homens ilustres e o folclore34. Nesse aspecto, uma diferena saltaaos olhos em relao figurao brasileira: por um lado, no se pode falarpropriamente em associao de monumentos histricos s paisagens culturais dageografia dos Tipos e aspectos, salvo pela presena de uma ou outra vinheta; poroutro, nem o mundo urbano, a mecanizao agrcola ou o progresso industrialpresentes nas sries francesas dos Types et coutumes aparecem. Na srie brasileiraesto ausentes referncias patrimoniais edificadas35, que so valorizadas justamentena era getuliana a conscincia patrimonial era recente, a criao do Servio doPatrimnio Histrico e Artstico Nacional (SPHAN) data de 1937, bem como noh imagens dos anos da poltica desenvolvimentista do decnio de 1950, quandoos Tipos e aspectos so muito populares. Eles se mantm, assim, tradicionalmenteancorados ao ruralismo, simplicidade da vida econmica como se o outrolado da nao no existisse. No h contrastes, nem complementaridade entreesses vrios mundos, mas escolhas que respondem opo de registro das figuraspaisagsticas do campo, do litoral, da produo artesanal e das formas de extraode produtos da natureza, hbitos e gneros de vida em torno deles.

    Nos Tipos e aspectos, estaramos prximos da noo vidaliana depersonalidade geogrfica de um pas, como a expressa no Tableau em relao

    34. Cf. THIESSE, 1998,p. 76.

    35. O fato que igrejas deSalvador apaream empequena escala como pa-no de fundo para o epi-sdio das Negras da Ba-hia (Fig. 17), se refeririaantes presena dessaspersonagens nas festasreligiosas, procisses eromarias do Senhor doBonfim, mencionadas notexto.H,porm,duas fra-ses curtas no episdio Aregio central de MinasGerais/serra do Curral-del-Rei, sobre a riquezada arquitetura religiosa ea importncia dos pal-cios construdos no s-culo XVIII, e o ambientefavorvel da riqueza deforas culturais que fezcom que a arte brasileiraproduzisse em 1730 suafigura mais poderosa,An-tonio Francisco Lisboa,chamado o Aleijadinho.Gautherot,como fotgra-fo do SPHAN nos anos1940, far o registro deambos em inmeras s-ries divulgadas em revis-tas e livros internacio-nais, especialmente fran-ceses.

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    Figura 27 Salinas, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil. Acervo da bibliotecado Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

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    Figura 28 Srie de salinas, Macau/RN, c. 1945-1947. Fotografias de Marcel Gautherot.Acervo do Instituto Moreira Salles.

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  • 57Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

  • 58 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura 29 Boiadeiro e tropa, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil. Acervo dabiblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    Figura 30 Boiadeiro e tropa na estrada de Belm-Brasilia, 1971. Fotografia de PierreMonbeig. Copyright PRODIG/ CNRS, Paris.

  • Frana? H em Vidal de la Blache a diviso do pas em Norte e Sul, combase nos tipos de organizao da vida local, de afirmao da unidade territorial,da unidade paradoxal na diversidade, nos contrastes espaciais e suas oposiesque devem resultar na complementaridade. Nos Tipos e aspectos fragmentadosregionalmente, a geopoltica da unidade est em construo.

    Gostaria de voltar a Marie-Claire Robic que interpreta de formaaprofundada a questo da identidade nacional no Tableau de la gographie dela France, de Vidal de la Blache, reconhecendo nele a importncia da biogeografiae da pesquisa de campo, novos mtodos de investigao que estaro mais tardena base da histria dos Annales. Segundo Robic, os princpios da geografiaterritorial e regional esto sempre no mago da construo da nao, e onaturalismo, aos olhos da geografia humana, que define a identidade nacional,questo central nos Tipos e aspectos. A reflexo inspirou-me uma questo-chave:A imagem da nao seria conforme os esteretipos de uma imagerie construdaao longo do tempo e que se convencionaliza em momentos determinados, ou asimagens, afinal, esto todas l, na realidade, esperando para seremcaptadas/escolhidas/recompostas pelo desenho ou a fotografia, em cenas cujadescrio apia-se em monografias locais, na literatura, em outras fontes?

    Para a primeira parte da questo resta reconhecer nveis e momentosdessa construo, como as representaes se constituem e vo se instalando namemria visual, como se cristalizam os esteretipos que correspondem s escolhas

    59Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

    Figura 31 Pastor da Provence, aquarela de Franois de Marialve, no livro Ceux de la Provence.Types et Coutumes, 1939. Coleo particular, Paris.

  • de identidades territorializadas, e quem as percebe; quanto segunda parteda questo, lembremo-nos da importncia do registro documental dos tipos epaisagens, que remonta a sculos anteriores, do registro da realidade, como sel no texto que acompanha a imagem da Provence, tambm de 1939, queassinala justamente a concretude do personagem retratado e no a construoficcional e mtica do tipo:

    [...] o pastor da Provence existe. Intil invent-lo. Porm, se ele no se parece com umfeiticeiro de teatro, no o reconhecemos, o mesmo se d nas fices mais modernas de umlirismo romanceado. A literatura implacvel. Depois do campons falso de La terre, eis ofalso pastor e o falso aldeo. Mas a moda no interessa pois o importante no separar ohomem de sua verdade eterna. Este aqui [referindo-se imagem] simplesmente faz seutrabalho, ele no precisa de uma suposta grandeza36.

    No caso da fotografia, preciso no esquecer que sua funo primeira documentria. Mesmo se em vrios casos, como o de Gautherot, passa-semuitas vezes do contedo forma esttica, ou, em outros casos, como o de JeanManzon37, que trabalhava diretamente junto ao governo Vargas como responsvelpelo Setor de Fotografia do DIP, de onde saam fotos para a divulgao daimagem do Brasil no pas e no exterior, se est diante de composies estudadas,de construes artificiais, no raro sensacionalistas, na linha do fotojornalismo.Para a maioria dos gegrafos-fotgrafos os aspectos materiais da vida dosgrupos sociais na paisagem so objeto de simples registros, embora PierreMonbeig conteste que sejam captados por uma Kodak insensvel38, ou nopassem de croquis dirios de campo, que Pierre Deffontaines recomendava aoviajante ativo.

    No prefcio dos Tipos e aspectos atribui-se o estatuto de documentosgeogrficos s imagens da srie. O artigo Arquivo fotogrfico do gegrafofixa temas e cdigos; a coleo de fotografias, reza o artigo, se faz comdados que se colhem diretamente da realidade, as fotografias funcionam comoregistro, para rememorar e reestabelecer com fidelidade o que foi visto.Para uma cincia que se caracteriza pelo estudo dos fenmenos que se verificamno espao, cincia portanto da observao que exige multiplicidade de vises(do texto do artigo, citando P. Deffontaines, em sua Gographie humaine) e quetem um carter cientfico e filosfico, mas tambm um carter descritivo e realista(o grifo meu), estabelece-se um plano para fotografias geogrficas do Brasil,que parte de duas entradas: Paisagem e O Homem que so justamente asmesmas que direcionam a concepo dos Tipos e aspectos.

    A insistncia em retratar a realidade, praticada pela geografia e aetnologia desde o final do sculo XIX, comprovada nos textos e colees, parece-nos hoje um debate datado, pois sabemos que so os padres culturais queesto na base da percepo dos grupos que registravam as cenas e tipos; nocaso especfico da representao fotogrfica, alm da funo documental earquivstica clssica desse medium a servio das duas disciplinas, sabe-se hojeque o caminho da coisa imagem nunca direto [...] a fotografia no registrajamais sem transformar, construir, criar39.

    36. Cf. ARBAUD, 1939, p.45. Agradeo a Marie-VicOzouf-Marignier por terassinalado essa e outrasreferncias do gneroimportantes para a com-parao.

    37. MANZON, 1950; so-bre esse fotgrafo, quetambm fez sries de fi-guras tpicas regionais,ver COSTA, 1998.

    38. Relembro uma frasede Monbeig (1957, p.236) mesmo se dentrode um outro contexto que afirma a interpreta-o e no o mero regis-tro descritivo:A geogra-fia no pode contentar-seem descrever a paisagemconcreta; ela procuracompreender e reconsti-tuir o mecanismo queconduz formao dapaisagem e provoca suaevoluo. Nem todos oselementos desse meca-nismo so visveis aosnossos olhos, mas seacham disposio danossa curiosidade crtica.J se disse que o gegra-fo um olho e a geogra-fia uma maneira de ver.Jamais se pretendeu fazerdo gegrafo uma Kodakinsensvel.

    39.Expresses de ROUIL-L, 2005, p. 94ss.

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  • A abertura fenomenologia e histria cultural possibilitou ir almda oposio artificial entre a realidade e a representao assim, nos estudosda paisagem, defende-se tambm hoje a presena de uma natureza objetivada,no se acreditando mais na inveno das suas representaes, uma vez quej passamos pela iluso culturalista da paisagem do final dos anos 1980 quenos prendia ao seu discurso e nos isolava do contexto e das prticas sociais trata-se sobretudo de recuperar os regimes de historicidade da paisagem, oscontextos e condies especficas da emergncia de determinadasrepresentaes40 e especialmente de estudar fluxos, itinerrios, trajetrias41 doshomens, atores de sua construo. Assim, em relao s representaes doBrasil, de Percy Lau nos Tipos e aspectos e no acervo de Pierre Monbeig, estoem jogo o olhar da geografia e das instituies a ela relacionadas, assim comoem Gautherot, fotgrafo profissional e estrangeiro, h de se entender suas relaescom os encomendantes nos contextos particulares em que opera, e, num outronvel, como as representaes circulam entre eles.

    As imagens dos Tipos e aspectos so cenas concretas de uma realidademuitas vezes intemporal que apenas se deslocou para mais longe. Estamos diantede paisagens que existem ainda em algum lugar do Brasil, de aspectos materiaisda vida dos homens do campo, de tcnicas pastorais e de formas artesanais deextrao de produtos da natureza, de indstrias regionais tradicionais, de hbitosalimentares, de meios de transporte, dos ciclos econmicos da histria do Brasil(da colheita de cana ao garimpo e ao cafezal)... Basta viajar nos confins dopas para rever ainda muitas dessas cenas. A questo principal no , portanto,a inveno das representaes como se convencionou dizer, mas sim saber oque ficou fora do repertrio de desenhos e fotografias e as razes de escolhas,recusas e reiterao de registro e do carter que assumem ao longo do tempo.Nos anos 1970, observa-se na Apresentao dcima edio, que a publicaoj era um smbolo do IBGE, ou seja, flagrantes caractersticos do homem eda paisagem do Brasil ainda no tocados pelo mecanicismo do progresso e,por conseqncia, constituidores de memrias que o tempo vai esmaecendo.

    Voltando s linhas da geografia presentes ao longo do livro, destacoa inscrio dos tipos na geografia psicolgica, campo de estudo prximo dahistria das mentalidades, em voga na poca. Justamente, La gographiepsychologique de Georges Hardy foi objeto de uma longa resenha na RevistaBrasileira de Geografia, em 193942, quando comeam a circular os Tipos easpectos. Hardy publica na coleo de geografia humana de Deffontaines,inscrevendo-se como ele nos meios intelectuais catlicos. Nessa obra, Hardycria a noo de paisagem psicolgica, colocando a geografia a servio dapsicologia, na medida em que ela uma cincia da anlise da materialidadeconcreta dos fatos, inventariando os hbitos das comunidades. Segundo anlisede Marie-Vic Ozouf-Marignier so estes:

    [...] os hbitos corporais (movimento do corpo, gesto, mmica, modo de vestir-se e de portar-se, expresso do olhar, ritmo da fala); os hbitos materiais (alimentao, vestimenta,habitao, higiene e medicina, transporte, horizontes de trabalho43); os hbitos morais (vidareligiosa, vida moral); os hbitos sociais (famlia, vida social, Estado); os hbitos psquicos

    40. Essa questo foi dis-cutida na Journe dtu-des Paysage et territoire,em torno do livro deWALTER, op. cit. E a ex-presso regimes de his-toricidade explicadapor Franois Hartog, quea toma de emprstimo aantroplogos (2004, p.18-20).

    41. Expresses do ttulode artigo de refernciasobre a microestria deJean-Claude Passeron(1990).

    42. Cf. GIBERT, 1939, p.110-113.

    43.Horizonte de traba-lho expresso empres-tada a Brunhes e a Def-fontaines por Hardy,mui-to presente nas descri-es dos Tipos e aspec-tos do Brasil.

    61Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

  • (linguagem, hbitos intelectuais, afetivos). A descrio desses hbitos o tema principal dolivro. Trata-se de estudo da distribuio geogrfica da diversidade psicolgica. Mas Hardytem conscincia, entretanto, de que esse elo estabelecido entre a psicologia coletiva e ageografia tnue demais. Ento ele constri a noo de paisagem psicolgica: os hbitosdescritos se traduzem antes, segundo ele, nas organizaes do meio fsico, num tipo dehabitat, etc. Essa paisagem percebida de mltiplas maneiras: pela viso, a audio e oolfato. Configura-se aqui uma geografia sensvel que estava presente nos textos de Vidal dela Blache44. Portanto por meio da pesquisa de campo e dos mtodos iconogrficos (mapa,desenho, fotografia, cinema) que aquela paisagem pode ser percebida [e captada]. Oprprio Hardy tem preferncia pela fotografia, como os demais gegrafos (Brunhes,Deffontaines, Monbeig e muitos outros)45.

    bom ressaltar que Georges Hardy fez parte de sua carreira na fricanegra, onde funda instituies de ensino dando um impulso importante vidacultural e instruo nas colnias e territrios do ultramar (ele esteve tambm naArglia), sua reflexo sobre a geografia psicolgica, continua Ozouf-Marignier, obra de maturidade, fruto de experincias de observao vivida em vrioslugares, onde registrou cenas que se repetem na vida cotidiana dos povos (Figuras32 e 33).

    A linha de descrio de caracteres, hbitos e comportamentos quese inscrevia na geografia psicolgica, no ar do tempo, explicita-se em vriosepisdios dos Tipos e aspectos combinado-se a outras, como no episdio deO vaqueiro do Rio Branco: honestos, bons, servis, hospitaleiros, eles continuama realizar na clareira da floresta amaznica o milagre da humanizao de umapaisagem situada bem longe dos grandes centros da civilizao nacional. Ounos Barranqueiros ou ribeirinhos do So Francisco (Figura 34), em que ainfluncia do clima no comportamento leva a descries dos traos fsicos ecomportamentais marcados por esteretipos, mas explicados pela ptica mdicada geografia tropical: atacado pelo impaludismo, pela opilao, pelo bcio,pelo mal de Chagas, seu aspecto exterior se reduz ao de indolente vulgar, semestmulo para a luta pela vida.

    Os meios de transporte tambm so listados no Arquivo fotogrficodo gegrafo e sempre representados em imagens caras geografia humana(Figura 35). Entre as gaiolas e vaticanos da Amaznia (que Mrio de Andrade,Gautherot e Monbeig tambm captaram), a jangada do Nordeste (idnticoradeau tambm aparece nos Types et coutumes de France) e o singular carro deboi, destaco o episdio Carroas coloniais do sul. Lemos aqui que o Brasilpossui uma coleo variada de meios de transporte tpicos (essa palavra torepetida nos anos 1930 -1940 quanto pitoresco nas narrativas de viagem dosculo XIX), e que as carroas

    [....] vm de terras longnquas e bem diferentes, trazidas pelo estrangeiro imigrante daEuropa central para o plateau meridional do Brasil [...] que ela se multiplica rapidamente,graas abundncia do material essencial destinado sua construo, a madeira [...]estima-se em uma centena de milhar o nmero dessas carroas espalhadas pelo Paran,Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

    44. ROBIC, 2000.

    45. Cf. OZOUF-MARIG-NIER, 2006.Do seu textoextremamente elucidati-vo sobre a histria inte-lectual e as redes de rela-es na primeira metadedo sculo XX,depreende-se que as experincias dodeslocamento na carrei-ra de intelectuais comodesses gegrafos pas-seurs de frontires os te-ria predisposto a outrasensibilidade e busca deferramentas cientficasalternativas aos mtodosadquiridos e preestabele-cidos. Monbeig, entreeles basta lembrar seusignificativo artigo Lesmodes de penser dans lagographie humaine, pu-blicado originalmente nacoletnea em homena-gem a seu amigo LucienFebvre, em 1953, e nomesmo ano em portu-gus no Boletim Paulis-ta de Geografia, sendoretomado depois no co-nhecido Novos estudosde geografia humana,que reuniu ensaios deMonbeig em 1957.

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  • 63Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

    Figura 32 Bou Saada, no leito de um riacho, a cada um sua maneira de lavar roupa, emGeorges Hardy, La gographie psychologique, Paris, Gallimard, 1939. Acervo da biblioteca daFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo.

    Figura 33 Lavadeiras, Cear, 1944. Fotografia de Pierre Monbeig. Copyright PRODIG/CNRS, Paris.

  • Descritas em suas variantes, as carroas tornam-se um personagem;no final do episdio observa-se que ligadas intimamente aos hbitos e aoscostumes do homem, elas ocupam lugar de relevo no folclore sulino e que comoo carro de boi noutras regies, a carreta do Sul foi e continua a ser um elementode civilizao e progresso. Em anlises atuais como a de Giralda Seyferth l-se que a retrica nacionalista do Estado Novo volta-se at mesmo contra essesmeios de transporte, pois usados pelos colonos estrangeiros a carroa polaca,estigmatizada como pitoresca e suja, pesada e baixa culpada peladeteriorao das estradas a carroa carrega os estigmas da condio docolono imigrante, cuja assimilao em nome da unidade nacional fazia parteda campanha de nacionalizao, com a poltica de imposio da brasilidade46.

    Mencionamos no incio deste texto o contexto cultural da apariode Tipos e aspectos, a criao das instituies geogrficas e, especialmente, osperidicos da poca, todos fartamente ilustrados, entre os quais a revistaGeografia, j citada, que exibe fotografia da carroa citada acima, carrotpico, em artigo de Caio Prado Jr., Contribuio para o estudo de influnciastnicas no Estado do Paran. Caio Prado Jr. escreve tambm sobre a indstriasalineira comprovando a circulao de um repertrio temtico-imagtico dopas entre os intelectuais, mesmo entre os da vanguarda que buscam interpret-lo de outra maneira47.

    A penltima cena que escolhi para comentar uma das mais comunsda representao do Brasil desde o sculo XVI, presente nas descries e imagens

    46. Cf. SEYFERTH, 1997.Os imigrantes no repre-sentaro jamais o Brasildos Tipos e aspectos,nem mesmo nos epis-dios das regies Leste eSul onde constituemmaioria; os colonos socitados, mas no apare-cem nos desenhos; nemtampouco os ndios (em-bora mencionados notexto como formadoresda raa brasileira); h asnegras da Bahia,mas osmestios predominam,pois ainda vigorava a no-o de caldeamento deraas.Os tipos brasileirosdas sries de Verger eGautherot tambm somulatos ou negros. Nosanos 1920, Oliveira Vian-na havia observado as di-ficuldades da determina-o de um tipo antropo-lgico brasileiro nico,afirmando sua incompa-rvel variedade somato-lgica.Cf.VIANNA,1922p. 277ss.

    47. Datam desse perodoestudos crticos em v-rias reas das cincias so-ciais, hoje bem estuda-dos, como os de SrgioBuarque de Holanda, Gil-berto Freyre, Caio PradoJr., da mesma forma queeditam-se colees comoa Brasiliana (da Cia. Edi-tora Nacional, que domi-nar a indstria do livroat os anos 1970) ou aDocumentos Brasileiros,na trilha de reedies deobras-chave para o co-nhecimento sociolgicoe histrico do Brasil.

    64 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura 34 Ribeirinhos do So Francisco, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil.Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • do pas48, reafirmada nos peridicos dos anos 1930 -1940: a da derrubadadas florestas (Figura 36), objeto de descrio dos gegrafos, entre eles PierreMonbeig, em textos e imagens que vo de 1935 aos anos 1970, do oestepaulista e norte do Paran Amaznia. A mencionada lista do Arquivofotogrfico do gegrafo, que fixa um tema ou um plano para fotografiasgeogrficas do Brasil, inclui a queimada e o transporte de toras. O textoque acompanha a imagem da derrubada nos Tipos e aspectos no deixa deser ecologicamente correto para seu tempo: progressivamente, as florestasforam substitudas por culturas e os solos se esgotaram logo devido a um sistemaagrcola primitivo [...], a floresta vai sendo recuada para o interior, onde ela poupada somente nas vertentes mais ngremes e inacessveis. Monbeig tambmexplicita uma clara conscincia ecolgica em seus livros e artigos, j que aderrubada uma paisagem tpica das zonas pioneiras, seu tema de pesquisa.H correspondncias entre seus textos e fotografias e os desenhos dos episdiosdos Tipos e aspectos; desses, alguns trechos no perderam a atualidade:

    [...] a derrubada reflete muito bem o esprito de nossa agricultura migratria e quaseexclusivamente de especulao. Enquanto as florestas no desaparecerem do Brasil, esteesprito dominar. O estado de So Paulo tem uma porcentagem de florestas inferior a depases altamente povoados da Europa. [...] A derrubada um elemento comum paisagembrasileira onde se superpem o passado, o presente e o futuro: regies desnudas e esgotadas,cobertas de pastagens pobres que mal servem para alimentar algumas cabeas de gadoou para culturas decadentes; outras regies onde ainda h florestas para serem cortadas,

    48. Para lembrar apenasalgumas imagens emble-mticas: no mapa doAtlas Miller, de 1519, v-se as rvores sendo cor-tadas e os troncos leva-dos nas costas dos ind-genas; pouco depois, em1575,numa das estampasgravadas da Cosmogra-phie universelle, de An-dr Thevet, a legenda fa-la por si s:Comme cepeuple coupe et porte leBrsil vers les navires;nacontemporaneidade dosTipos e aspectos, as foto-grafias da Cia. de Terrasdo Norte do Paran, paracitar apenas um exem-plo, exibem as paisagensdos desmatamentos in-tensivos, com os troncosno cho e os restos da flo-resta como pano de fun-do, compondo uma re-presentao tpica dapoca; hoje ainda so co-muns as cenas de desma-tamento da Amaznia e,em documentrios tele-visivos europeus, portos,como o de La Rochelle,continuam recebendocargas de madeiras dasflorestas brasileiras e afri-canas.

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    Figura 35 Carroas coloniais do Sul, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos do Brasil.Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • 66 Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.- dez. 2005.

    Figura 37 Transamaznica, desenho de Percy Lau (em cores) para a dcima edio atualizadae ampliada de Tipos e aspectos do Brasil, em 1975. Acervo da biblioteca do Instituto deEstudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

    Figura 36 Derrubada, na regio Centro-Oeste, desenho de Percy Lau para Tipos e aspectos doBrasil. Acervo da biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo.

  • mas onde as culturas no do mais os lucros dos primeiros tempos e finalmente as zonaspioneiras onde os troncos se elevam solitrios em meio a plantaes ainda recentes.

    A denncia da destruio das florestas ou a louvao de suas formasaparece na potica desolada dos troncos secos ou calcinados, fotografadosem srie por Marcel Gautherot ao longo dos anos 1950; entre essas imagensalgumas esto em ensaio fotogrfico da revista Mdulo, onde os troncos assumemuma expresso artstica na relao arte/natureza/realidade49.

    Para terminar com esta anlise de algumas representaesiconogrficas e textuais da srie dos Tipos e aspectos e antes de complementarminhas reflexes, tomo um dos ltimos desenhos (desta feita em cores) de PercyLau, que morreu logo depois; h apenas dois desenhos coloridos, publicadosna dcima edio em portugus, datada de 1975: o episdio sobre aTransamaznica, que contraponho a uma fotografia de Pierre Monbeig, em1972 (Figuras 37 e 38).

    Ora, o que representa ento a imagem dessa to discutida estradana fortuna crtica da obra em relao aos seus objetivos de 30 anos antes?Estamos em plena ditadura militar e a palavra-chave na poca, que justifica aconstruo de duas rodovias que se cruzam (a Transamaznica com 5 mil km ea Cuiab-Santarm com 1.500), integrao, misso histrica a cumprir,afirma-se, tendo em vista um equilbrio regional mais efetivo, pois a Amaznia,representando 42% do territrio nacional, sempre contou com uma ocupaodescontnua, 3,4% da populao do pas com uma renda de 2% em relaoao total da renda nacional estes dados so do texto de 1975. Adescentralizao regional, o isolamento e a necessidade de absoro da mo-

    49.Cf. AQUINO,1957. Al-guns escultores so cita-dos: Germaine Richier,Giacometti, Mingusi, Ma-ria Martins penso emKrajcberg, que, porm,est ausente da lista.A cir-culao da representaopassa tambm pela pin-tura, em que a referncia Firmino Saldanha. Nasraras legendas de MarcelGautherot ele denominaos troncos secos comopersonnages de la fort.

    67Annals of Museu Paulista. v. 13. n.2. Jul.- Dec. 2005.

    Figura 38 Transamaznica: desmatamento e construo da estrada, 1972. Fotografia dePierre Monbeig. Copyright PRODIG/ CNRS, Paris.

  • de-obra do Nordeste justificavam a epopia da construo dessas estradas,bem como a ocupao do territrio e a colonizao agrcola, objeto ento deprojetos oficiais. As riquezas potenciais da regio so louvadas ao longo dotexto, a articulao estradas/rios em uma malha utpica tantas vezes presentena histria das intervenes no territrio brasileiro vm tona, reafirmando abusca da unidade da comunidade nacional. Se o controle territorial de umpas acompanha sempre a expanso espacial, a Amaznia, que representarasempre um lugar de fascinao no imaginrio da grande nao do futuro,afigurava-se como a ltima etapa do territrio a ser apropriada pelos seushabitantes. Pode-se pensar geograficamente no gesto clssico deterritorializao nacional a cumprir, ou seja, na produo de um espao e suaapropriao simblica50.

    Se a srie dos Tipos e aspectos do Brasil que atravessou geraesserviu a interesses ideolgicos e pedaggicos imediatos do regime que osconstruiu, no penso que ela seja s fruto de uma estratgia do Estado autoritriode 1937 autores j afirmaram que no h forma de governo especfico paraa construo identitria51, no havendo nada mais internacional do que avalorizao de formas etnogrficas das identidades nacionais a partir do finaldo sculo XIX e por ocasio, justamente, do regionalismo folclorista dos anos30, citado acima , os paralelismos entre as afirmaes identitrias confirmam,porm, tanto sua associao a projetos polticos quanto a regimes dehistoricidade, assim como as representaes nacionais seriam sobretudotransnacionais, embora sempre com variantes e especificidades.

    Naquele momento em que a nao est se constituindo so as relaesentre os diferentes grupos do poder central s oligarquias dos estadosdominantes, passando pelos intelectuais do servio pblico, burocratas/funcionrios a servio da cultura52 e pelos construtores das representaes quese relacionam com eles, artistas e estrangeiros trabalhando no pas, com todosos credos confundidos e diferentes nveis de dependncia ou compromisso que definem modelos de tipos exemplares e paisagens representativas. Gautherot,por exemplo, que fotografa para o SPHAN, encontra meios de usufruir de umarelativa independncia nas viagens a servio do rgo, fazendo tambm seustrabalhos pessoais, como explica Lygia Segala.

    Em meio a tantas questes e paradoxos, bom relembrar tambmque a nao est representada de maneira incompleta no repertrio dos Tipose aspectos, pois afinal ramos tambm um pas de imigrao e os imigrantesforam praticamente excludos das sries de Gautherot, fotgrafo imigrante quese destaca em meio a tantos que ficaram no anonimato. Reitero a importnciada noo de gerao, de crculo de afinidades seletivas, de itinerrios comunse trajetrias convergentes, de aproximao entre idias literrias, concepesde histria e de geografia internacionais em circulao, para contextualizarmelhor as formas de representao nacional, mesmo essas que se do emperodos de definio de expresses nacionais organizadas no seio do Estado.

    Na verdade, questes complexas viro certamente tona na leituradeste texto, cujas respostas ainda no me parecem todas possveis dada a falta

    50. Empresto as expres-ses de um outro contex-to finamente analisadopor Marie-Claire Robic,deixando a su