perfeccionismo e depressÃo pÓs-parto · 1 faculdade de medicina da universidade de coimbra...
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FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
PERFECCIONISMO
E
DEPRESSO PS-PARTO
BERTA MARIA MARINHO RODRIGUES MAIA
Dissertao de Doutoramento em Cincias da Sade,
ramo de Cincias Biomdicas, realizada sob a orientao
do Professor Doutor Antnio Ferreira de Macedo
(Professor Auxiliar com Agregao, Faculdade de
Medicina, Universidade de Coimbra) e co-orientao da
Professora Doutora Maria Helena Pinto de Azevedo
(Professora Catedrtica, Faculdade de Medicina,
Universidade de Coimbra), no mbito de uma Bolsa de
Doutoramento atribuda pela Fundao para a Cincia e
a Tecnologia (Referncia SFRH/BD/27288/2006). Co-financiamento POPH/FSE.
2011
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you have to go about with that big smile on your
face and people saying arent you lucky to have a
dear little baby, and you feel utter despair.
Welburn, 1980
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AO PROFESSOR DOUTOR ANTNIO FERREIRA DE MACEDO
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PROFESSORA DOUTORA MARIA HELENA PINTO DE AZEVEDO
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Este trabalho no seria possvel sem a colaborao de pessoas e entidades que com a sua
disponibilidade e apoio permitiram que chegasse a esta pgina.
Ao meu Orientador Professor Doutor Antnio Ferreira de Macedo e Santos e
minha Co-Orientadora Professora Doutora Maria Helena Pinto de Azevedo pela
oportunidade que me concederam de integrar a sua equipa de trabalho em 2004 e por
dedicarem tanto do seu tempo a formar os elementos que recebem no Instituto de
Psicologia Mdica. Pela capacidade de partilharem generosa e humildemente os vastos
conhecimentos em Psiquiatria, Psicologia e investigao cientfica. Pela dedicao na
organizao regular de seminrios ps-graduados, muito pertinentes para este trabalho.
Por reforarem que a cincia no autista, promovendo a partilha fundamental de
ideias e de conhecimentos. Por incentivarem a abertura de horizontes, que se
concretizou num estgio de trs meses na Perinatal Section, do Institute of Psychiatry
da University of London, que em muito contribuiu para o meu crescimento pessoal e
profissional. Pela possibilidade que me deram de integrar projectos de investigao, de
colaborar em aulas, cujos temas se prendiam com o meu objecto de estudo. Pela
oportunidade de seguir em regime de ambulatrio casos clnicos em que, pela
psicopatologia apresentada, me foi possvel aperfeioar a interveno na rea especfica
do meu doutoramento. Pela contribuio imprescindvel na elaborao do meu projecto
de doutoramento. Pela orientao neste trabalho, que tal como no meu mestrado, primou
pela presena, competncia e generosidade na partilha de saberes. Pelo apoio constantes
e pelas reflexes interessantes, sempre construtivas, que enriqueceram este trabalho.
Fundao para a Cincia e a Tecnologia por ter aceite este projecto, concedendo-
me uma bolsa de doutoramento e por ter financiado o meu estgio em Londres.
Aos restantes elementos e colaboradores do Instituto de Psicologia Mdica da
Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra: aos Mestres Maria Joo Soares e
Jos Valente por toda a ajuda no controlo de qualidade das entrevistas. Doutora Ana
Telma Pereira pela dedicao com que acompanhou a elaborao da parte prtica desta
dissertao. Dra. Mariana Marques, Doutora Ana Telma Pereira, Mestre Maria Joo
Soares e Doutora Sandra Bos pela colaborao imprescindvel na recolha da amostra.
Mestre Ana Cabral e Doutora Ana Allen por todo o apoio e incentivo ao longo destes
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anos. Ao Sr. Mrio Rui e Sr. Bruno Craveiro pela colaborao na informatizao dos
dados.
A todos os profissionais pessoal administrativo, enfermeiros, mdicos e directores
dos Centros de Sade de Coimbra e respectivas extenses, bem como das
Maternidades Bissaya Barreto e Daniel de Matos cuja colaborao foi imprescindvel
para a prossecuo deste trabalho.
s centenas de mulheres que to generosa e pacientemente prescindiram do seu tempo
para colaborar neste projecto, aceitando, sem reservas, responder aos instrumentos de
avaliao utilizados.
A um conjunto muito especial de pessoas, cuja importncia na minha vida seria
dificilmente descrita em poucas palavras.
Aos meus pais, Maria Rosa Marinho e Alberto Rodrigues Maia.
Aos meus irmos, Rui e Liliana e, em especial, ao Francisco.
Ao meu marido, Alberto Fragoso.
Aos amigos, Francisco Cristvo, Mariana Marques, Ana Cabral, Sofia Amaral,
Manuela Serra, Rita Oliveira e Cristina Nunes
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NDICE
GUIA DE ABREVIATURAS
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUO
I CAPTULO: PERSONALIDADE
1. Conceitos gerais
2. Teorias da personalidade
3. Dimenses da personalidade
4. Bases biolgicas dos traos
5. Estrutura fenotpica: algumas imprecises
6. Estabilidade da personalidade
7. Perfeccionismo
8. Modelos do desenvolvimento do perfeccionismo
9. Perfeccionismo e o modelo dos cinco factores
10. Estabilidade do perfeccionismo
11. Perfeccionismo, stresse e psicopatologia
II CAPTULO: DEPRESSO PERINATAL
1. Depresso
2. Depresso no perodo perinatal
2.1. Depresso na gravidez
2.2. Alteraes afectivas no ps-parto
2.3. Prevalncia e incidncia
2.4. Sintomatologia
2.5. DPP diagnstico distinto?
2.6. Consequncias da Depresso perinatal
2.7. Etiologia
2.7.1. Factores genticos
2.7.2. Factores hormonais
2.7.3. Regulao do sono
2.7.4. Factores obsttricos e ginecolgicos
2.7.5. Factores clnicos
2.7.6. Factores sociais
2.7.7. Factores psicolgicos
3. Preveno
III CAPTULO: PERSONALIDADE E DEPRESSO PERINATAL
1. Personalidade e depresso
2. Relao entre personalidade e depresso
3. Modelos de relao
3.1. Modelo de vulnerabilidade
3.2. Modelo patoplstico
3.3. Modelo da complicao e sequela
3.4. Modelo do espectro
3.5. Modelo da causa comum
3.6. Modelo da independncia
3.7. Modelo estado dependente
4. Desenho do estudo/mtodos de avaliao
5. Personalidade e depresso
6. Personalidade e depresso perinatal
I
III
IV
V
1
1
4
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86
88
88
89
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93
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IV CAPTULO: ESTUDO EMPRICO
1. mbito geral do projecto
2. Objectivos
3. Metodologia
3.1. Instrumentos e medidas
3.2. Procedimentos
3.3. Anlise estatstica
3.4. Amostra
4. Resultados
4.1. Prevalncia de perturbaes depressivas (DSM-IV e CID-10)
4.2. Prevalncia de sintomatologia depressiva (BDI-II e PDSS)
4.3. Incidncia
4.4. Pontuaes mdias de perfeccionismo e de sintomatologia depressiva
4.5. Correlaes entre o perfeccionismo e variveis scio-demogrficas
4.6. Correlaes entre perfeccionismo e sintomatologia depressiva
4.7. Comparao de mdias entre o perfeccionismo e a sintomatologia
depressiva
4.8. Regresso mltipla hierrquica
4.9. Regresso logstica
V CAPTULO: DISCUSSO E CONCLUSES
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
ANEXOS
109
111
111
112
112
123
128
129
133
134
134
135
136
138
138
143
160
190
217
251
281
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GUIA DE ABREVIATURAS
AA, Assertion of Autonomy
AI, Ansiedade/Insegurana
AN, Afectividade Negativa
AP, Afectividade Positiva
APA, American Psychiatric Association
BDI, Beck Depression Inventory
BDI-II, Beck Depression Inventory-II
CM, Confuso Mental
CID-10, International Classification of Diseases Tenth Edition
CID-9, International Classification of Diseases Ninth Edition
CIDI, Composite International Diagnostic Interview
CV, Culpa/Vergonha
DALY, Disability-Adjusted-Life-Years
DAS, Distrbios do Apetite e do Sono
DEQ, Depression Experiences Questionnaire
DIGS, Diagnostic Interview for Genetic Studies
DPP, Depresso Ps-Parto
DPt, Depresso Perinatal
DSM-III-R, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders 3rd Edition Revised
DSM-IV, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders Fourth Edition
DSM-IV-TR, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders 4th Edition R
DZ, Dizigticos
E, Extroverso
ECA, Epidemiologic Catchment Area
EDI, Eating Disorders Inventory
EMP, Escala Multidimensional do Perfeccionismo
EPDS, Edinburgh Postnatal Depression Scale
EPI, Eysenck Personality Inventory
EPQ, Eysenck Personality Questionnaire
ERA, Emotional Reliance on Another Person
GBDS, Global Burden Disease Study
IDI, Interpersonal Dependency Inventory
IPSM, Interpersonal Sensitivity Measure
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LE, Labilidade Emocional
LKA, Lazare-Klerman Armor Inventory
LOI, Leyton Obsessionality Inventory
LSC, Lack of Social Self-Confidence
MDM, Maternidade Doutor Daniel de Matos
MPS, Multidimensional Perfectionism Scale
MPS-H&F, Multidimensional Perfectionism Scale-Hewitt & Flett
MPT, Munich Personality Test
MZ, Monozigticos
N, Neuroticism
NEO-PI-R, NEO-Personality Inventory-Revised
NSC, National Comorbidity Survey
OPCRIT, OPerational CRITeria Checklist for Psychotic Illness (Lista de Critrios
Operacionais Para Doenas Psicticas)
PAO, Perfeccionismo Auto-Orientado
PCA, Perturbaes do Comportamento Alimentar
PCI, Perfectionism Cognitions Inventory
PDSS, Postpartum Depression Screening Scale
POMS, Profile of Mood States
POO, Perfeccionismo Orientado para os Outros
PP, Psicose Puerperal
PSP, Perfeccionismo Socialmente Prescrito
PSP-Ac, Perfeccionismo Socialmente Prescrito: Aceitao Condicional
PSP-PpO, Perfeccionismo Socialmente Prescrito: Padres Elevados pelos Outros
RDC, Research Diagnostic Criteria
SADS, Schedule for Affective Disorders and Schizophrenia
SNC, Sistema Nervoso Central
Sui, Pensamentos Suicidas
TCI, Temperament and Character Inventory
TPQ, Tridimensional Personality Questionnaire
WHO, World Health Organization
16 PF, 16 Personality Factors
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RESUMO
Introduo: So escassos os estudos que investigam a relao entre a depresso e as
caractersticas de personalidade, nomeadamente o perfeccionismo.
Objectivos: Avaliar o papel do perfeccionismo na depresso ps-parto. A prevalncia
de depresso em toda a vida e a prevalncia e incidncia de depresso perinatal foram
igualmente estimadas.
Mtodos: 386 mulheres no terceiro trimestre de gravidez (idade mdia=30.08 anos;
DP=4.205; variao=19-44) completaram a Multidimensional Perfectionism Scale na
gravidez e o Beck Depression Inventory-II (BDI-II), a Postpartum Depression
Screening Scale (PDSS) e o Profile of Mood States (POMS) e trs questes adicionais
para avaliar a ansiedade trao, o stresse e o apoio social na gravidez e no ps-parto. Os
diagnsticos (CID-10 e DSM-IV) foram produzidos usando a verso portuguesa da
Diagnostic Interview for Genetic Studies na gravidez e no ps-parto e o sistema
OPCRIT. Para as anlises estatsticas recorremos ao SPSS 15.0 e ao STATA.
Resultados: A prevalncia de depresso em toda a vida foi de 39.6%/CID-10 e de
35.0%/DSM-IV. A prevalncia na gravidez foi de 2.3%/CID-10 e de 1.3%/DSM-IV; no
ps-parto foi de 16.6% e de 11.7%, respectivamente. A incidncia na gravidez foi de
0%/CID-10 e de .3%/DSM-IV e no ps-parto foi de 7.5%/CID-10 e de 4.9%/DSM-IV.
A prevalncia pontual na gravidez encontrada usando os pontos de corte do BDI-II
variaram de 13.7% a 19.4% e usando a PDSS variaram de 14.2% a 17.9%. A
prevalncia pontual de depresso ps-parto usando BDI-II variou de .8% a 13.0% e
usando a PDSS variou de 3.9% a 12.7%. O Perfeccionismo Auto-Orientado (PAO)
apresentou correlaes significativas com quase todas as dimenses do BDI-II, da
PDSS e do POMS na gravidez; no ps-parto as correlaes foram quase inexistentes. O
Perfeccionismo Socialmente Prescrito (PSP) apresentou um padro consistente de
correlaes significativas com a maioria das dimenses do BDI-II, POMS e PDSS na
gravidez e no ps-parto. O mesmo padro de correlaes foi encontrado para os
subcomponentes do PSP (Percepo de que os Outros Impem Padres Elevados para o
Self/PSP-PpO e Aceitao Condicional/PSP-Ac). O PSP-PpO apresentou as correlaes
mais elevadas com o BDI-II e o PSP-Ac com a PDSS. As mulheres com nveis mdios e
elevados de PAO e PSP apresentaram na gravidez pontuaes significativamente mais
elevadas no BDI-II, POMS e PDSS comparativamente a mulheres com nveis baixos
nestas dimenses. Este padro manteve-se no ps-parto apenas para o PSP. O PSP e o
PSP-PpO revelaram-se importantes preditores de sintomatologia depressiva (BDI-II e
PDSS) no ps-parto e o PSP-Ac mostrou ser um importante preditor apenas para a
sintomatologia depressiva avaliada pela PDSS. Nenhuma das dimenses do
perfeccionismo se mostrou significativa na predio do diagnstico de perturbao
depressiva (CID-10 e DSM-IV).
Concluses. As prevalncias foram mais elevadas quando a definio de caso se
baseou em instrumentos de auto-resposta; a CID-10 produziu taxas mais elevadas do
que o DSM-IV. O PAO um importante correlato para a sintomatologia depressiva na
gravidez. A associao preferencial encontrada entre o PSP e o BDI-II, POMS e PDSS
refora o seu carcter eminentemente negativo. O PSP, o PSP-PpO e PSP-Ac revelaram
ser factores de risco para a sintomatologia depressiva no ps-parto, mas no para
perturbao depressiva (CID-10 e DSM-IV) no ps-parto. Globalmente, os nossos
resultados permitem-nos suportar o modelo ditese-stresse (para o PAO na gravidez), o
modelo patoplstico (para o PAO na gravidez e para o PSP e subcomponente na
gravidez e ps-parto) e o modelo de vulnerabilidade (para o PSP e seus subcomponentes
no ps-parto).
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ABSTRACT
Context: The studies investigating the relation between personality characteristics and
depression are scarce, including perfectionism.
Aims: To examine the role of perfectionism in postpartum depression development.
Lifetime prevalence of depression and depression prevalence and incidence in perinatal
period were also estimated.
Methods: 386 women in their third trimester of pregnancy (mean age=30.08 years;
SD=4.205; range=19-44) completed the Multidimensional Perfectionism Scale in
pregnancy and Beck Depression Inventory-II (BDI-II), Postpartum Depression
Screening Scale (PDSS), Profile of Mood States (POMS) and three additional questions
evaluating anxiety trait, stress and social support, both in pregnancy and in the
postpartum. Diagnosis (ICD-10 and DSM-IV) were obtained using the Portuguese
version of the Diagnostic Interview for Genetic Studies in pregnancy and postpartum
and the OPCRIT system. SPSS 15.0 and STATA softwares were used.
Results: The lifetime prevalence of depression was of 39.6%/CID-10 and of
35.0%/DSM-IV. One-month prevalence in pregnancy was of 2.3%/ICD-10 and
1.3%/DSM-IV; in postpartum it was of 16.6% and 11.7%. Pregnancy incidence was of
0%/ICD-10 and .3%/DSM-IV and in the postpartum of 7.5%/ICD-10 and 4.9%/DSM-
IV. Depression pregnancy point prevalence found with BDI-II cut-offs ranged from
13.7% to 19.4% and with PDSS cut-offs from 14.2% to 17.9%. Postpartum depression
point prevalence found with BDI-II cut-offs ranged from .8% to 13.0% and with PDSS
from 3.9% to 12.7%. Self-Oriented Perfectionism (SOP) showed significant correlations
with nearly of the BDI-II, PDSS and POMS dimensions in pregnancy; in postpartum
correlations were almost inexistent. Socially Prescribed Perfectionism (SPP) showed a
consistent pattern of significant correlations with almost of the BDI-II, PDSS and
POMS dimensions both in pregnancy and postpartum. With respect to SPP
subcomponents, the same pattern of correlations was found. SPP-Others High Standards
(OHS) showed higher correlations with BDI-II, while SPP-Conditional Acceptance
(CA) presented higher correlations with PDSS. Women with higher SOP and SPP
scores presented in pregnancy higher BDI-II, POMS and PDSS scores comparing with
women with low scores in these dimensions. The same finding was found in postpartum
only for SPP. SPP and SPP-HOS showed to be important predictors of depressive
symptomatology (BDI-II and PDSS) in the postpartum and SPP-CA shown to be an
important predictor only for depressive symptomatology assessed by PDSS. None of the
perfectionism dimensions predicted depression diagnoses (ICD-10 and DSM-IV).
Conclusions: Self-report measures generated higher prevalence estimates; ICD-10
produced higher rates comparing to DSM-IV. SOP was an important correlate for
depressive symptomatology in pregnancy. The preferential association found between
SPP and BDI-II, POMS and PDSS reinforces its negative character. SPP, SPP-HOS and
SPP-CA showed to be important risk factors for depressive symptomatology in
postpartum, but not for postpartum depression (ICD-10 and DSM-IV). In general, our
results gives support to diathesis-stress model (for SOP in pregnancy), the patoplastic
model (for SOP in pregnancy and SPP and its subcomponents in pregnancy and
postpartum) and the vulnerability model (for SPP and its subcomponents in postpartum).
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INTRODUO
As perturbaes que ocorrem no perodo perinatal constituem um problema de
sade pblica substancial, contribuindo para uma elevada mortalidade (especialmente
nos pases em desenvolvimento) e morbilidade das mes e bebs. Vrios aspectos chave
foram j tidos em conta na investigao. No entanto, necessrio delinear e clarificar
outros menos estudados, como o papel de traos de personalidade especficos, para
auxiliar o desenho de estratgias preventivas e intervenes mais efectivas. Da literatura
emerge um ponto-chave: a considerao das caractersticas da personalidade crtica
para a compreenso da depresso e de considervel relevncia para a optimizao do
seu tratamento. Apesar deste reconhecimento, os estudos que privilegiam a investigao
do papel da personalidade so escassos, mais ainda aqueles que se dedicam ao estudo do
perfeccionismo. Nesse sentido, o objectivo deste trabalho consiste em avaliar o papel do
perfeccionismo no desenvolvimento da depresso ps-parto.
No captulo I tecemos breves consideraes sobre a personalidade, definindo os
conceitos centrais. So descritas sucintamente as teorias da personalidade que se
enquadram na teoria dos traos e na perspectiva psicobiolgica, dando relevncia s
dimenses da personalidade do modelo dos cinco factores. So tambm abordados
aspectos como as bases biolgicas dos traos, a estrutura fenotpica e a estabilidade da
personalidade. Finalmente, focamos aspectos centrais do constructo do perfeccionismo,
como a natureza unidimensional/multidimensional, o carcter positivo/negativo, os
modelos de desenvolvimento e a sua relao com o stresse e a psicopatologia.
No captulo II abordamos alguns aspectos epidemiolgicos da depresso, focando
a ateno na depresso perinatal, explicitando aspectos clnicos e de investigao,
epidemiolgicos e etiolgicos e fazemos uma breve aluso preveno deste quadro.
No captulo III descrevemos a relao complexa entre a personalidade e a
depresso, enunciando os modelos de relao existentes. So descritos os estudos que
suportam a relao de vrios traos de personalidade com a depresso geral e, em
particular, os poucos estudos existentes sobre esta relao com a depresso perinatal.
O Captulo IV dedicado ao estudo emprico; definem-se os objectivos do
presente trabalho, descreve-se a metodologia seguida e, finalmente, so apresentados os
resultados.
O Captulo V dedicado discusso dos resultados e concluses.
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I CAPTULO
PERSONALIDADE
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1. CONCEITOS GERAIS
1.1. PERSONALIDADE Depus a mscara e vi-me ao espelho. Depus a mscara, e
tornei a p-la. Assim melhor, assim sem mscara. E volto
personalidade como a um terminus de linha.
lvaro de Campos
A palavra personalidade tem timo latino, derivando de persona, que se reporta
mscara de teatro que os actores usavam na antiguidade, para transmitir emoes e
atitudes distintas.
O estudo da personalidade constitui um domnio que tem suscitado particular
interesse. A definio do conceito no de todo consensual, sendo que existem quase
tantas teorias como o nmero de autores que abordam esta temtica. Como sublinhado
por Heatherton e Nichols (1994, p.4) a personalidade pode ser definida de forma a
englobar praticamente todos os aspectos da vida e experincia humana. Assim, se por
um lado o carcter heurstico desta diversidade1
de abordagens permite explorar
conceptualizaes diversas, por outro, o desacordo terico marcado, acarretando srias
implicaes para a investigao e prtica clnica.
Allport (1937) definiu a personalidade como uma organizao dinmica
(activa/interaco com o meio) de sistemas psico-fsicos (bases biolgicas) do indivduo
que determinam o seu comportamento caracterstico e os seus pensamentos. Trata-se de
uma entidade nica, que traduz a forma como uma pessoa pensa, reflecte, age e se
comporta em diferentes situaes.
Eysenck (1953), um dos mais destacados tericos da personalidade, refere que a
personalidade constitui uma organizao mais ou menos firme e durvel do carcter,
temperamento, inteligncia e da dimenso fsica de um indivduo (bases biolgicas),
que determina a sua adaptao ao meio.
Na perspectiva de Cattell (1965), a personalidade um conjunto de traos que
predispem o indivduo a agir de determinada maneira, num conjunto de situaes.
Assim sendo, a personalidade pode ser definida como o repertrio individual
completo de comportamentos relativamente estveis e duradouros. Nestas ltimas
conceptualizaes est implcita a ideia de que uma avaliao da personalidade fornece
1 Muitas destas teorias esto j, na melhor das hipteses, desactualizadas, sendo que as actuais teorias
beneficiam, sem margem de dvida, do avano dos conhecimentos em Psicologia (Hansenne, 2005).
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a base para a predio do comportamento no futuro.
Importa, ento, esclarecer alguns termos especficos da psicologia da
personalidade, no raras vezes usados na linguagem corrente como se de sinnimos se
tratassem, quando na realidade possuem caractersticas que os tornam distintos, a saber:
temperamento, carcter, traos de personalidade e tipos de personalidade.
1.2 TEMPERAMENTO
Segundo Allport (1966, cit. por Vaz Serra, 1972) por temperamento entendem-se
os fenmenos caractersticos da natureza emocional do indivduo, nos quais se incluem
a sua susceptibilidade estimulao, a intensidade e rapidez usuais de resposta, a
qualidade da sua disposio predominante e todas as peculiaridades de flutuaes dessa
disposio, sendo vistos tais fenmenos como dependentes da organizao
constitucional e, por conseguinte, em grande parte originrios da hereditariedade.
Os temperamentos representam a dimenso afectiva e emocional da personalidade
e possuem uma base biolgica. Estes surgem precocemente na nossa vida e continuam a
desempenhar um papel na vida adulta (Buss & Plomin, 1984), embora possam ser
modificados pela experincia. A ideia de que os temperamentos possuem uma base
biolgica remonta antiguidade, tal como foi exposto por Galeno na sua teoria dos
quatro temperamentos, inspirada nas ideias de Hipcrates. Mais recentemente,
Cloninger (1986, 1987), no seu modelo biossocial da personalidade aponta trs
temperamentos relacionados com neurotransmissores especficos (explicitados no ponto
2.2.). No entanto, segundo alguns peritos em Gentica Comportamental (Loehlin, 1992),
a ideia dos temperamentos serem influenciados por factores genticos, de um modo
mais especfico do que a personalidade no demonstrada com clareza. Apesar de
serem vrios os temperamentos, possvel agrup-los mediante anlise factorial2, num
nmero mais restrito (Hansenne, 2005).
1.3. CARCTER
A palavra carcter foi durante longos anos usada como sinnimo de personalidade.
Trata-se, porm, de um termo que foi sendo suprimido da literatura cientfica, devido s
2 Foi Spearman que deu origem ao mtodo de anlise factorial, marco de grande importncia para o
estudo da personalidade. Resumidamente, perante um grande nmero de itens que descrevem a
personalidade, habitualmente avaliados mediante questionrios de auto-resposta, avalia-se a correlao
entre os itens. Estes so subsequentemente extrados da matriz de correlaes sob a forma de dimenses
que maximizam a similaridade entre os loadings dos itens num factor especfico.
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conotaes morais, tendencialmente negativas, que normalmente lhe so atribudas.
Segundo Allport (1966, cit. por Vaz Serra, 1972) por carcter deve-se entender a
personalidade qual se fez um juzo de valor. Por esta razo, o autor manifestou em
1937 uma notria preferncia pelo termo trao, por ser desprovido de tais conotaes
morais.
Apesar destas crticas, Cloninger mantm este termo e o seu modelo integra trs
caracteres auto-determinao, cooperao e transcendncia (Cloninger et al., 1993),
definidos como dimenses da personalidade determinadas pela aprendizagem social e
cognitiva, no sendo, ao contrrio dos temperamentos, influenciados por factores
hereditrios.
1.4. TRAOS E TIPOS DE PERSONALIDADE
Cada indivduo como todas as outras pessoas, como
algumas outras pessoas e como nenhuma outra pessoa.
Kluckhohn e Murray, 1953
Um trao de personalidade representa uma caracterstica durvel, a disposio
individual que orienta a conduta, em diferentes contextos, de forma particular. Os traos,
tambm designados por subdimenses, so considerados num continuum, que vai de um
extremo ao outro. Em ambas as extremidades da recta encontram-se qualificativos
opostos. Em mdia, os indivduos situam-se no meio dessa mesma recta, sendo as
posies extremas ocupadas apenas por alguns. Exemplos de traos habituais so a
impulsividade, a generosidade, a sensibilidade, a timidez ou a empatia. Por sua vez, um
tipo de personalidade (ou dimenso de personalidade) corresponde a um conjunto de
diferentes traos (ou subdimenses).
A segunda metade do sculo XX pautou-se por uma distanciao relativa s
tipologias, focando-se em modelos estruturais da personalidade, baseados em traos
dimensionais. Pioneiros nesta abordagem foram Hans e Sybil Eysenck (1975), os quais
propuseram que a personalidade podia ser medida ao longo de trs dimenses:
extroverso/introverso, neuroticismo/estabilidade emocional e psicoticismo/fora do eu.
Cattell (1990) props um sistema mais complexo no qual a variao da personalidade
dependia de dezasseis dimenses diferentes. Quer Hans e Sybil Eysenck, quer Cattell
derivaram as suas dimenses-trao usando a abordagem da anlise factorial.
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2. TEORIAS DA PERSONALIDADE
2.1. PERSPECTIVA DOS TRAOS
Allport e Odbert (1936, cit. por Costa & McCrae, 2006) produziram a primeira
lista compreensiva de traos de personalidade, consultando o dicionrio. Esta estratgia
permitiu identificar mais de dezassete mil nomes de traos, sendo que destes, pelo
menos quatro mil pareciam ser descries significativas dos indivduos. Allport referiu
que os traos eram estruturas neuropsicolgicas reais que contribuam para cada aco
individual, sendo organizadores dinmicos do comportamento na transaco com as
circunstncias ambientais. Na distino que fez entre traos comuns e disposies
pessoais, os primeiros dizem respeito s dimenses das diferenas individuais, sendo
relevantes para todas as pessoas (e.g. todos os indivduos podem ser considerados mais
ou menos agressivos), enquanto as disposies pessoais, em contraste, so tendncias
concretas encontradas nos indivduos que podem no ser relevantes para todas as
pessoas.
Na dcada de 70, vrios psiclogos, seguindo a influncia crtica de Mischel,
olharam os traos como meras fices cognitivas. Contudo, na ltima metade do sculo
passado, investigao emprica mais rigorosa clarificou a natureza, estrutura, origens e
consequncias dos traos de personalidade.
Cattell (1965) constituiu uma real viragem no estudo da personalidade, uma vez
que se baseou na observao, definindo a personalidade como o que permite uma
predio do que uma pessoa vai fazer, numa determinada situao, tendo desenvolvido
o questionrio 16 Personality Factors (16 PF) mediante uma abordagem lexical.
Hans Eysenck criou uma taxonomia hierrquica com trs grandes dimenses:
psicoticismo, extroverso e neuroticismo. Cada dimenso neste sistema um conjunto
de comportamentos, hbitos e factores co-variantes hierarquicamente organizados, que
descrevem traos biologicamente baseados. Estas caractersticas so vistas como
constructos dimensionais e as diferenas individuais so assumidas como resultando de
combinaes destes trs super factores, os quais compreendem vrios outros factores de
segunda ordem, derivados do Eysenck Personality Questionnaire (EPQ; Eysenck &
Eysenck, 1975).
De acordo com o Modelo dos Cinco Factores (Five Factor Model) existem cinco
grandes factores para apreender o conjunto dos traos de personalidade,
designadamente: neuroticismo, extroverso, amabilidade, abertura experincia e
conscienciosidade. Este modelo derivou do trabalho de Eysenck, que identificou a
-
19
extroverso e o neuroticismo como dois componentes essenciais da estrutura da
personalidade.
A ideia central da teoria dos traos a de que os traos devem ser distinguidos da
maior parte dos atributos estudados pelos psiclogos, designadamente, atitudes, crenas,
valores, hbitos, papis, relacionamentos, etc. Todos estes atributos podem mudar e de
facto, mudam com o tempo e as circunstncias, enquanto os traos no. Como referido
por Costa e McCrae (1980), os traos fornecem uma estrutura estvel atravs da qual,
com a idade, o indivduo capaz de se adaptar, defender ou ajustar. Quinze anos mais
tarde esta ideia conduziu distino entre tendncias bsicas (incluindo traos de
personalidade) e adaptaes caractersticas (atitudes, crenas, etc.).
2.2. PERSPECTIVA PSICOBIOLGICA
Na teoria de Gray (1970) os determinantes biolgicos ocupam uma posio
importante, assentando primeiramente em dois factores: impulsividade e ansiedade. Um
elevado nvel de ansiedade manifesta-se atravs de uma reaco emocional intensa
diante de acontecimentos novos, de eventos que podem ser sancionados atravs de uma
punio e ainda perante acontecimentos que no so reforados ou que so perigosos.
Por outro lado, um comportamento que traduza impulsividade reflecte uma reaco
mais importante a acontecimentos ligados a uma recompensa. Gray props, igualmente,
um terceiro factor: o sistema luta/fuga. Este autor supe que o nvel de ansiedade
controlado por um sistema de inibio comportamental, constitudo pelo sistema septo-
hipocmpico, pelos aferentes noradrenrgicos e serotoninrgicos do tronco cerebral e
respectivas projeces corticais dos lobos frontais. Uma excitao destes sistemas induz
uma inibio da resposta. Por sua vez, o sistema de facilitao comportamental
compreende os gnglios de base e as respectivas projeces dopaminrgicas no crtex,
o que encaminha os indivduos no sentido de objectos atraentes3. Este sistema
equivalente ao sistema de activao comportamental proposto por Cloninger.
O modelo proposto por Zuckerman (1994) comporta diferentes verses. O
primeiro modelo abrange trs factores: sociabilidade e emocionalidade (bastante
prximos dos factores de extroverso e neuroticismo do modelo de Eysenck e de Costa
e McCrae) e procura impulsiva de sensaes de carcter anti-social. Este ltimo
assemelha-se dimenso de procura de novidade de Cloninger, embora enfatize o seu
3 Este modelo provm, em exclusivo, de investigaes realizadas em animais, sendo que a aplicao aos
comportamentos humanos assenta essencialmente em hipteses.
-
20
lado anti-social. Contudo, o mesmo factor corresponde incapacidade de inibir um
comportamento ao servio de uma adaptao social.
Cloninger (1986, 1987) props uma teoria biossocial4 unificada do temperamento
e da personalidade. Nesta teoria, a personalidade conceptualizada como uma
combinao de traos hereditrios e neurobiolgicos (dimenses do temperamento) e
traos reflectindo a aprendizagem sciocultural (dimenses do carcter). As dimenses
do temperamento parecem estar relacionadas com a actividade em sistemas
neurotransmissores centrais especficos e so designadas: evitamento do perigo (sistema
serotoninrgico), procura de novidade (sistema dopaminrgico) e dependncia de
recompensa (sistema noradrenrgico). Este modelo inicial foi posteriormente
modificado, tendo sido aumentado para sete o nmero de dimenses da personalidade:
quatro temperamentos e trs caracteres. Aos trs temperamentos descritos atrs, foi
acrescentada a persistncia, que descreve a tendncia de um indivduo para prosseguir
um determinado comportamento, sem considerar as respectivas consequncias. Os
caracteres, por seu lado, definem-se como dimenses da personalidade determinadas
pela aprendizagem social e cognitiva.
3. DIMENSES DA PERSONALIDADE
Tendo em conta o vasto nmero de modelos da personalidade, uma das grandes
questes que se coloca a de saber quais so, afinal, as dimenses fundamentais e
suficientes para descrever o conjunto da personalidade. Eysenck referiu serem trs.
Cattell, por seu lado, definiu dezasseis, Cloninger sete, ao passo que Zuckerman props
trs, cinco ou sete dimenses. Nas ltimas dcadas o Modelo dos Cinco Factores o
que tem gerado mais consenso relativamente ao nmero de dimenses, mas no
relativamente denominao das mesmas.
Apresentamos, de seguida, uma breve descrio das cinco dimenses nucleares.
3.1. NEUROTICISMO
O termo neuroticismo descreve um dos domnios bsicos da personalidade (Costa
& Stone, 1997), que avalia a adaptao versus instabilidade emocional, sendo um dos
traos mais estudados em todo o campo da Psicologia. As crianas e os adultos que tm
pontuaes elevadas de neuroticismo ou emocionalidade negativa, so ansiosas,
4 Teoria amplamente influenciada pela gentica comportamental e pela psiquiatria biolgica.
-
21
vulnerveis ao stresse, propensas a sentir culpa, tm falta de confiana, deficiente auto-
imagem, sentem-se facilmente frustradas, possuem relaes inseguras e tm propenso a
pensar irrealistamente. Pontuaes baixas neste domnio correspondem a indivduos
emocionalmente estveis e adaptados, calmos, com humor constante, relaxados, seguros
e resilientes face a situaes de stresse. O aspecto central deste domnio a tendncia
para vivenciar afectos negativos, como a tristeza, medo, embarao, raiva, culpabilidade
e repulsa.
3.2. EXTROVERSO
Os extrovertidos so calorosos, divertidos, expressivos, enrgicos, dominantes e
amigveis. Apreciam a conversao e as relaes pessoais chegadas, bem como a
estimulao social de estranhos. So assertivos e desempenham facilmente papis de
liderana. Temperamentalmente, so caracterizados por uma necessidade de excitao,
nveis elevados de energia e actividade e so muito optimistas. Pelo contrrio, os
introvertidos, embora tenham competncias sociais adequadas, preferem evitar
multides e tendem a ser reservados, sbrios, adoptando um ritmo de vida mais calmo.
So mais orientados para a tarefa e independentes nas suas tomadas de deciso.
Contrariamente ao que se pensa, no so necessariamente introspectivos, nem os
extrovertidos so necessariamente ajustados (McCrae & Stone, 1997).
3.3. ABERTURA EXPERINCIA
A abertura experincia ou intelecto um dos domnios do Modelo dos Cinco
Factores menos debatido e menos compreendido, embora seja, segundo Costa e McCrae
(1992a) o mais relevante para o estudo da imaginao e da cognio. O facto de
formulaes alternativas ao Modelo dos Cinco Factores designarem este domnio por
intelecto, no significa que a abertura experincia seja equivalente inteligncia
(McCrae & Stone, 1997). Segundo os autores, este trao sublinha o interesse pela
experincia sensorial, para alm da experincia intelectual. Globalmente, esta dimenso
traduz a procura produtiva, a apreciao da experincia, a tolerncia e a explorao do
no familiar (Lima, 1997). A abertura experincia (imaginao, criatividade e
sensibilidade esttica) e o intelecto (facilidade em aprender, inteligncia, capacidade de
compreenso) foram propostos como sendo o ncleo deste trao (John & Srivastasa,
1999); cada um destes traos pode ser um subcomponente de traos de ordem elevada.
Os indivduos abertos experincia preferem a novidade, variedade e
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22
ambiguidade em vrios aspectos da vida. So curiosos em relao ao seu mundo
exterior e interior, so imaginativos e criativos e interessam-se pela beleza na arte e na
natureza. Possuem um nvel elevado de curiosidade intelectual, so liberais e no
convencionais nas suas vises polticas e sociais. Por sua vez, indivduos fechados
experincia so conservadores, convencionais e terra a terra, preferem a simetria e
simplicidade e tendem a ter um pensamento a preto-e-branco. So relutantes em mudar
as suas vises e os seus comportamentos.
3.4. AMABILIDADE
Os indivduos amveis so altrustas, cooperativos, empticos, generosos,
educados e simpticos. Os indivduos desagradveis so agressivos, hostis, rudes,
teimosos, cnicos, manipulativos e egocntricos. A amabilidade tambm inclui a
vontade de se acomodar vontade dos outros. Esta dimenso tambm est ligada
conscienciosidade ou constrangimento, na medida em que ambos os traos possuem
aspectos de inibio versus desinibio (Clark & Watson, 1999). Os dois plos da
amabilidade antagonismo e tendncias pr-sociais tm sido avaliados separadamente
como traos distintos em vrios estudos com crianas e adultos. O antagonismo varia
entre a tendncia para ser calmo e gentil e a tendncia para ser agressivo e hostil. Um
terceiro factor de segunda ordem que tem sido identificado nos adultos e que pode estar
relacionado com o neuroticismo ou emocionalidade negativa o cinismo/alienao
(Martin et al., 2000). Este ltimo inclui a tendncia individual para desconfiar dos
outros e para se sentir maltratado.
3.5. CONSCIENCIOSIDADE
Os indivduos conscienciosos so responsveis, atentos, cuidadosos, persistentes,
ordenados e metdicos. Pontuaes elevadas nesta dimenso representam pessoas que
trabalham muito, so persistentes e altamente motivadas; pontuaes baixas
representam pessoas algo desorganizadas, com uma clara falta de direco na vida. No
seu melhor, as pessoas conscienciosas so efectivas, no seu pior, so guiadas pelo
perfeccionismo e negligenciam a sua vida pessoal em funo do seu trabalho (McCrae
& Stone, 1997). Os indivduos que possuem baixas pontuaes de conscienciosidade
so irresponsveis, distrados e pouco cuidadosos. As diferenas individuais no controlo
podem estar relacionadas com diferenas biolgicas nos sistemas de ateno executiva
que se desenvolvem ao longo da infncia e dos primeiros anos escolares (Posner &
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23
Rothbart, 2000). De facto, a capacidade para focar a ateno na infncia prediz o
controlo mais tarde (Kochanska et al., 2000) e a capacidade que um adulto possui para
se esforar em estar atento est associada conscienciosidade (Rothbart et al., 2000).
4. BASES BIOLGICAS DOS TRAOS
Est bem estabelecido que os efeitos genticos so importantes para as diferenas
individuais na personalidade (Bouchard, 1994). A maioria dos trabalhos sobre a
gentica da personalidade recorre a questionrios de avaliao administrados a crianas
e a adultos, sendo que os mais utilizados so o EPQ de Eysenck, o Temperament and
Character Inventory (TCI) de Cloninger, o 16PF de Cattell e o NEO-Personality
Inventory-Revised de Costa e McCrae.
O grau em que dois traos tm influncias genticas e ambientais comuns
evidenciado pelos coeficientes de correlao. Habitualmente comparam-se as
correlaes intra-pares de gmeos monozigticos5
(MZ) e dizigticos (DZ). Uma
correlao elevada entre pares de gmeos MZ, comparada com a de gmeos DZ, sugere
a presena de influncias genticas.
Os estudos de gmeos (um dos mtodos mais utilizados em gentica
comportamental) indicam que as influncias genticas contribuem para
aproximadamente 40 a 60% da varincia para virtualmente todos os traos de
personalidade. Estudos de gmeos usando questionrios de personalidade de auto-
resposta tm sugerido hereditabilidades6 moderadas. H mais de trs dcadas atrs, um
estudo (Loehlin & Nichols, 1976) envolvendo 800 pares de gmeos e dezenas de traos
de personalidade, permitiu concluir que quase todos os traos de personalidade revelam
uma influncia gentica moderada, sendo as correlaes entre gmeos MZ mais
elevadas do que as correlaes entre gmeos DZ.
Eaves et al. (1989) efectuaram uma meta-anlise dos estudos de gmeos que
usaram os trs factores de Eysenck. As correlaes para gmeos DZ foram cerca de
metade das encontradas para MZ, sendo as hereditabilidades de .58 para a extroverso
(n=36 estudos), .44 para o neuroticismo (n=22 estudos) e de .46 para o psicoticismo.
Numa reviso posterior, Loehlin (1992) apresentou os resultados de cinco grandes
estudos que incidiam sobre um total de 24000 pares de gmeos, usando o NEO-PI
5 Constituem um achado da gentica comportamental; uma vez que possuem o mesmo genoma, possvel
afirmar que toda a diferena constatada entre ambos forosamente devida ao meio. 6 Mtodo estatstico que descreve o tamanho do efeito da influncia gentica e que se refere proporo
da varincia observada (fenotpica) que pode ser explicada pela varincia gentica, variando de 0 a 1.
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(Quadro I.1). No domnio da extroverso, os gmeos MZ, tendencialmente,
assemelham-se mais do que os DZ, o que implica uma participao da hereditariedade
nesta dimenso da personalidade. Do mesmo modo, os MZ educados separadamente
assemelham-se quase tanto como os MZ educados juntos, o que constitui uma indicao
adicional da contribuio dos genes. Mais ainda, os MZ assemelham-se muito mais do
que os gmeos DZ educados, quer separadamente, quer juntos. As semelhanas entre os
MZ so tambm muito mais importantes do que as encontradas nas fratrias biolgicas.
Quadro I.1: Correlaes entre gmeos MZ e DZ (Modelo dos Cinco Factores)
Proximidade gentica e do meio Extroverso Neuroticismo
Gmeos MZ que vivem juntos
Gmeos DZ que vivem juntos
Gmeos MZ que vivem separados
Gmeos DZ que vivem separados
Fratrias biolgicas
.51
.18
.38
.05
.20
.46
.20
.38
.23
.09
A amabilidade, a conscienciosidade e a abertura experincia mostraram uma
correlao de cerca de .45 para MZ e de cerca de .20 para DZ, sugerindo estimativas de
hereditabilidade de cerca de 40% (Loehlin, 1992).
Estudos subsequentes de gmeos, usando o NEO-PI-R obtiveram estimativas de
hereditabilidade de 41% para o neuroticismo, 53% para a extroverso, 41% para a
amabilidade e 44% para a conscienciosidade (e.g. Jang et al., 1996). Na abertura
experincia, os efeitos genticos contriburam para cerca de 61% da varincia. Esta
correspondncia entre a estrutura gentica e a estrutura de factores observada no NEO-
PI-R sugere que todas as partes constituintes de cada domnio mais vasto partilham uma
base gentica comum. Os resultados indicam uma correspondncia entre a estrutura
fenotpica da personalidade e a arquitectura gentica subjacente, sendo esta observao
consistente ao longo de vrias medidas. Estes resultados so especialmente interessantes,
dada a grande falha de correspondncia entre o gentipo e o fentipo para a maioria das
perturbaes mentais (Merikangas, 2002). De acordo com Plomin e Caspi (1999) todas
as medidas de auto-resposta da personalidade so hereditrias. Embora a maior parte
dos estudos de hereditabilidade tenha usado medidas de auto-resposta, os poucos
estudos que usaram mtodos de avaliao alternativos chegaram a resultados similares
(Heath et al., 1992; Riemann et al., 1997).
Em suma, quase sem excepo, os estudos convergem em trs resultados: 1) cerca
de metade da varincia nas medidas dos traos de todos os cinco factores parece ser
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25
gentica; 2) o ambiente comum contribui para uma varincia quase nula; e 3) a
varincia restante atribuda ao que se designa por ambiente no-partilhado. Parte da
varincia relativa ao ambiente no partilhado erro de medida, quer aleatrio, quer
sistemtico. Alguns tericos defendem que o resto devido influncia dos pares
(Harris, 1998) ou a eventos biolgicos aleatrios, como o ambiente pr-natal ou doena
(Pinker, 2002). De salientar que os esforos no sentido de identificar as influncias no
partilhadas especficas tm sido mal sucedidos (Riemann et al., 1997).
Perante os slidos resultados suportando a base gentica dos traos de
personalidade, um dos tpicos que tem suscitado particular interesse o de procurar os
genes especficos associados aos traos. Contudo, a procura de genes para a
personalidade difcil uma vez que, ao contrrio do que acontece nas perturbaes
monognicas, nas quais um nico gene necessrio e suficiente para produzir a
perturbao, no h dados para tais efeitos no respeitante personalidade. Para os traos
quantitativos complexos como a personalidade, a influncia gentica provavelmente
resulta do envolvimento de mltiplos genes de pequeno efeito.
Diversos estudos tentaram identificar os genes que participam na expresso de
determinadas dimenses da personalidade, os quais se tm centrado nas dimenses dos
modelos de Cloninger e dos Cinco Factores. Em dois estudos foi demonstrado que um
polimorfismo7 do gene do receptor dopaminrgico D4 se encontra ligado dimenso
procura de novidade (Benjamin et al., 1996; Ebstein et al., 1995). Os indivduos que
possuam alelos8 mais longos obtiveram resultados significativamente mais elevados do
que os que tinham alelos curtos. No entanto, as replicaes subsequentes conduziram a
resultados mistos (e.g. Vandenbergh et al., 1997). Lesch et al. (1996) mostraram uma
relao entre a dimenso de neuroticismo do NEO-PI-R e o gene do transportador de
serotonina. Os indivduos com alelos longos tinham pontuaes mais baixas de
neuroticismo do que os indivduos com alelos curtos. Este resultado tambm se
observou na dimenso evitamento de perigo de Cloninger e na dimenso de segunda
ordem de ansiedade de Cattell.
7 , por definio, uma variao fenotpica que pode ser separada em classes distintas e bem definidas. O
controlo gentico d-se por um ou poucos locus, sendo a caracterstica pouco susceptvel a factores
ambientais. 8 cada uma das vrias formas alternativas do mesmo gene.
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5. ESTRUTURA FENOTPICA: ALGUMAS IMPRECISES
Apesar do acordo entre os tericos dos traos de que a personalidade est
hierarquicamente organizada e do entusiasmo a favor da estrutura dos cinco factores,
existem ainda vrios problemas por resolver. Permanece a confuso em relao ao
nmero de factores no sendo, portanto, possvel afirmar qual o nmero especfico de
dimenses que compem a personalidade. Exemplos destas divergncias so os artigos
trocados entre Eysenck e Costa e McCrae, cujos ttulos so bastante reveladores:
Quatro maneiras de demonstrar que os cinco factores no so fundamentais (Eysenck,
1992) e Quatro maneiras de demonstrar que os cinco factores so fundamentais
(Costa & McCrae, 1992b).
Mais problemtico que a aceitao de uma estrutura universal so os problemas
relativos ao contedo dos domnios de ordem elevada (Zuckerman et al., 1991, 1993),
bem como relativamente natureza da relao entre os traos de ordem elevada e os
traos de segunda ordem. Ao considerarmos como exemplo o cluster de traos
designado de impulsividade-procura de novidade apercebemo-nos de uma srie de
divergncias. Para Zuckerman et al. (1991, 1993) estes traos definem um factor de
ordem elevada separado que se assemelha ao psicoticismo de Eysenck e ao
constrangimento de Tellegen (Hansenne, 2005). Em contraste, o modelo dos cinco
factores de Costa e McCrae (1992a) enquadra a impulsividade e a procura de novidade
em domnios separados. A impulsividade considerada uma faceta do neuroticismo e a
procura de excitao considerada uma faceta da extroverso. Tal significa que as
definies dos constructos major, como o neuroticismo e a extroverso, diferem
consoante os modelos.
Estes problemas de definio revelam incertezas bsicas relativamente
taxonomia dos traos de personalidade e comprometem a assumpo de que o Modelo
dos Cinco Factores fornece a estrutura adequada. A persistncia destes problemas
sugere tambm que as anlises psicomtricas e fenotpicas tpicas usadas para descrever
a estrutura dos traos podem no ser suficientes para resolver as questes relativas
definio (Livesley & Jang, 2005). Tais anlises recaem em constructos que so na sua
natureza imprecisos, como ilustrado pela confuso relativa aos componentes da
extroverso (Depue & Collins, 1999; Watson & Clark, 1997). As concepes de
extroverso incluem sociabilidade ou afiliao, actividade, procura impulsiva de
sensaes, emoes positivas e optimismo. Dada esta grande variedade de contedos,
no pois surpreendente que os estudos relativos estrutura fenotpica gerem resultados
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inconsistentes. Esta impreciso que provavelmente uma consequncia de se usarem
conceitos da linguagem natural para descrever comportamentos complexos, contribui
para a considervel variabilidade dos fentipos de personalidade.
6. ESTABILIDADE DA PERSONALIDADE
Vrios autores questionaram a ideia de estabilidade da personalidade. Por
exemplo, os tericos ambientais, como Dollard e Miller e Skinner defenderam que a
situao ou o conjunto de contingncias comportamentais determinavam o modo como
cada um se comportava numa situao particular e que as estruturas da personalidade
duradouras ou disposies eram, na melhor das hipteses, irrelevantes, sendo mais
provavelmente inexistentes, como defendia Mischel (Maiden et al., 2003). Epstein
(1980), contudo, defendia uma consistncia considervel nos traos de personalidade
quando era realizado um nmero de observaes comportamentais ao longo de um
nmero de situaes e condies.
Alguns estudos fornecem algum suporte para a base temperamental da
personalidade (Caspi & Silva, 1995; Block & Kremen, 1996). Na idade adulta, alguns
autores defendem a imutabilidade da personalidade (McCrae & Costa, 1999), enquanto
outros sustentam que os traos de personalidade continuam a desenvolver-se para l da
meia-idade e na velhice (Field & Millsap, 1991; Helson et al., 2002).
Deste modo, a estabilidade versus mutabilidade da personalidade um dos
problemas centrais do desenvolvimento da personalidade do adulto. De acordo com
Simes (1999) so inmeras as questes relativamente a este ponto, as quais ilustram a
complexidade do problema. Efectivamente, o que que se quer dizer com o termo
estabilidade? estvel a personalidade, no sentido de que se revela imutvel, de uma
situao para a outra ou de que se mostra consistente, de uma circunstncia temporal
para outra? Que quantidade de mudana que considerada mudana? Existe uma
continuidade/mudana, durante todo o perodo da vida adulta, ou ela limita-se a uma
fase da mesma? Considera-se a mudana, ao nvel das caractersticas especficas ou ao
nvel da estrutura factorial global da personalidade? Como que se reconhece a
continuidade subjacente (genotpica) apesar da descontinuidade aparente (fenotpica)?
Quais so os factores explicativos da estabilidade/mudana? H certos aspectos da
personalidade mais mutveis do que outros? A personalidade de certas pessoas revela-se
mais estvel do que a de outras? Assim, de acordo com o autor esta lista (incompleta) de
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28
questes ilustra bem a extrema complexidade do problema e revela tambm a
necessidade de fixar terminologias e de definir conceitos.
7. PERFECCIONISMO
7.1. CONCEITO
O conceito de perfeccionismo9
tem sido objecto de interesse e de ateno
crescente, por parte dos investigadores e clnicos (Hamachek, 1978; Hollender, 1965).
Contudo, e uma vez que este trao tem sido estudado mediante o uso de uma variedade
de instrumentos de avaliao, ainda difcil compreender o seu significado, apesar das
vrias tentativas no sentido da sua definio.
A ttulo de exemplo, Horney em 1950 (Hewitt & Flett, 2002) descreveu o
perfeccionismo como a tirania do dever (the tyranny of the shoulds). Por sua vez,
Hollender (1965) considerou-o como a prtica de exigir a si prprio ou aos outros um
desempenho qualitativamente elevado, maior do que o requerido pela situao. Burns
(1980) postulou que o perfeccionismo como uma rede de cognies que inclui
expectativas, interpretao dos acontecimentos e avaliao de si e dos outros. Segundo
este autor os indivduos perfeccionistas estabelecem padres irrealistamente elevados,
aderem rigidamente a eles, interpretam os acontecimentos de forma distorcida e definem
o seu valor pessoal em funo da sua capacidade para atingir esses mesmos padres.
Patch (1984) definiu o perfeccionismo como o estabelecimento de padres de
desempenho elevados acompanhado de auto-avaliaes crticas. J o Obsessive
Compulsive Cognitions Working Group (1997) definiu o perfeccionismo como a
tendncia para acreditar que existe uma soluo perfeita para todos os problemas e de
que fazer tudo de forma perfeita, no s possvel, como necessrio, sendo que o mais
pequeno erro acarretar srias consequncias.
Outras questes importantes, que sero desenvolvidas mais adiante, relacionam-se
com a natureza uni ou multidimensional do perfeccionismo e com a delimitao dos
aspectos positivos e negativos que integra.
O grande interesse que o perfeccionismo tem motivado relaciona-se com a
hiptese deste trao de personalidade estar relacionado com comportamentos mal-
adaptativos de reaco ao stresse e de poder desempenhar um papel importante na
etiologia, manuteno e curso de vrios quadros clnicos incluindo depresso (Hewitt &
9 O termo perfeccionista provm do latim perfectione, significando vontade obsessiva de atingir a
perfeio, tendncia para exigir a perfeio (Porto Editora, 2008).
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29
Flett, 1991a, Hewitt et al., 1996), comportamentos suicidas (Hamilton & Schweitzer,
2000; Hewitt et al., 1994, 1997), perturbao obsessivo-compulsiva (Frost & Steketee,
1997; Maia et al., 2009), perturbaes do comportamento alimentar (Bardone-Cone,
2007; Maia et al., 2009; Macedo et al., 2007; Soares et al., 2009) e insnia (Azevedo et
al., 2009, 2010).
7.2. DIMENSES
Uma das formas de distino entre as vrias conceptualizaes do perfeccionismo
diz respeito ao seu carcter unidimensional ou multidimensional. Historicamente, o
campo unidimensional enfatizava os aspectos intra-pessoais na forma de factores
cognitivos, como crenas irracionais (Ellis10
, 1962) ou atitudes disfuncionais (Burns,
1980; Weissman & Beck, 1978).
No incio da dcada de 90 do sculo XX, em oposio viso anterior, comea a
desenvolver-se uma perspectiva multidimensional do perfeccionismo. Esta mudana
assentou em dois aspectos: 1) as descries clnicas dos indivduos com perfeccionismo
referiam que se tratavam de indivduos muito preocupados com os erros, que
duvidavam da qualidade do seu desempenho, que atribuam um valor considervel s
expectativas parentais e que enfatizavam a ordem (Frost et al., 1990) e 2) as
observaes clnicas independentes revelaram que o perfeccionismo tambm englobava
aspectos interpessoais e que estes eram importantes nas dificuldades de ajustamento
(Hewitt & Flett, 1991b).
Em resposta insatisfao com as conceptualizaes unidimensionais do
perfeccionismo foram desenvolvidos instrumentos de avaliao como as duas escalas
que partilham a mesma designao: Multidimensional Perfectionism Scale11
de Frost et
al. (MPS-F; 1990) e de Hewitt et al. (MPS-H&F; 1991a), que conceptualizaram o
perfeccionismo como um constructo multidimensional. O aparecimento destas duas
medidas foi significativo, por ter promovido a noo de que, sendo o perfeccionismo
uma entidade complexa e multidimensional, as abordagens unidimensionais podiam
negligenciar alguns aspectos chave desta orientao da personalidade.
Embora as conceptualizaes subjacentes aos dois instrumentos no sejam iguais,
a necessidade de diferenciar as facetas do comportamento perfeccionista um tema
comum. Os autores sugerem que a focalizao exclusiva nos componentes cognitivos
10
Ellis foi o primeiro autor a referir o perfeccionismo como uma crena irracional central. 11
Traduzida para Portugus como Escala Multidimensional do Perfeccionismo (EMP).
-
30
restritiva e que os factores interpessoais e motivacionais devem ser tidos em conta
(Hewitt & Flett, 1990; Hewitt et al., 1991a).
A MPS-F uma medida de seis factores que avalia quatro aspectos do
perfeccionismo direccionados para o self, a saber: Padres Pessoais elevados, Dvidas
acerca da Aco, Preocupao com os Erros e Organizao e dois aspectos do
perfeccionismo que reflectem a percepo de exigncias parentais relativamente ao
prprio (Expectativas Parentais Elevadas e Crtica Parental). Os autores excluram a
subescala da Organizao do score total devido s baixas correlaes que apresentava
com as restantes cinco subescalas. A questo sobre se a Organizao deve ser
considerada como parte do constructo do perfeccionismo permanece por resolver (Flett
& Hewitt, 2002).
A MPS-H&F identifica dimenses intra-pessoais (i.e. perfeccionismo dirigido ao
prprio), como o Perfeccionismo Auto-Orientado (PAO), bem como aspectos
interpessoais, quer na forma de perfeccionismo dirigido aos outros (Perfeccionismo
Orientado para os Outros - POO), quer na forma de perfeccionismo dirigido ao prprio,
que radica nas crenas ou percepes de que os outros impem exigncias irrealistas
face ao self (Perfeccionismo Socialmente Prescrito - PSP).
O PAO uma dimenso intra-individual que envolve comportamentos
perfeccionistas que derivam do self e que para ele so direccionados. O indivduo com
elevado PAO cria as suas prprias expectativas perfeccionistas e exige a perfeio a si
prprio. Esta dimenso inclui uma forte auto-motivao para ser perfeito, a manuteno
de expectativas irrealistas face ao fracasso, auto-avaliaes exigentes que se focam nas
prprias falhas e generalizao das expectativas irrealistas e avaliaes para os diversos
domnios comportamentais. Esta dimenso pode estar relacionada com perturbaes e
sintomas que envolvem o auto-conceito, como a depresso e as perturbaes do
comportamento alimentar (Hewitt & Flett, 2001).
O POO uma dimenso interpessoal do perfeccionismo que tambm surge do self,
mas as exigncias perfeccionistas so direccionadas para os outros. Isto , integra fortes
motivaes para que os outros sejam perfeitos em vrios domnios do funcionamento,
expectativas irrealistas e avaliaes exigentes dos outros. Esta dimenso pode no
produzir necessariamente perturbaes relacionadas com o self ou sintomas para o
indivduo perfeccionista. No entanto, produz insatisfao ou dificuldades para os
indivduos que so alvo destas exigncias. Estes ltimos podem sentir-se criticados e
expressam o seu ressentimento por serem tratados de forma hostil. Assim, o
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perfeccionista com um elevado POO pode vivenciar problemas interpessoais, bem como
a perda de relaes importantes (Hewitt & Flett, 2001).
O PSP outra dimenso interpessoal e envolve exigncias irrealistas que so
percebidas como emanadas dos outros e direccionadas para o self. Por exemplo, envolve
a crena na incapacidade pessoal para conseguir atingir as expectativas e as exigncias
perfeccionistas percebidas. Assim, incorpora a percepo de que os outros impem
exigncias irrealistas para o self e de que os outros s estaro satisfeitos quando aquelas
forem atingidas. Esta dimenso envolve a preocupao com a falta pessoal de perfeio.
Contudo, e talvez mais importante a forte preocupao destes perfeccionistas em obter
e manter a aprovao e a considerao das outras pessoas e um sentido de pertena que
poder ser alcanado se aos olhos dos outros se conseguir ser perfeito (Hewitt & Flett,
2001).
O contedo dos itens da MPS-H&F foi baseado em descries de casos e na
literatura, bem como na experincia clnica dos autores. As trs dimenses do
perfeccionismo actuam como factores de vulnerabilidade nucleares e esto
distintamente associadas a vrios tipos de psicopatologia (Hewitt & Flett, 1991b). As
dimenses podem estar envolvidas, quer no incio das perturbaes psicolgicas, quer
na exacerbao da gravidade dos sintomas, uma vez que reflectem vulnerabilidades
especficas para perturbaes particulares que se manifestam na presena de
acontecimentos ambientais especficos, situaes ou caractersticas da personalidade. As
facetas trao tambm podem funcionar ao manterem nveis elevados de sintomas por
influenciarem os mecanismos de coping. Deste modo, podem desempenhar um papel
mediador12
ou moderador13
no desenvolvimento e manuteno da psicopatologia, ao
influenciar os fracassos stressantes percebidos.
A ampla aplicao em numerosos estudos destes dois instrumentos de avaliao
veio fortalecer a noo de que o perfeccionismo uma entidade complexa e
multidimensional e conduziu alguns investigadores a reexaminar as medidas
unidimensionais, de modo a verificar se era possvel a identificao de subfactores.
Joiner e Schmidt (1995) efectuaram uma anlise factorial dos seis itens da subescala do
perfeccionismo do Eating Disorders Inventory (EDI; Garner et al., 1983) e encontraram
12
Os factores mediadores so factores de risco que ligam o factor de risco de interesse doena;
explicam como e porqu outros factores so predictivos de psicopatologia (Susser & Schwartz, 2006). 13
Um factor moderador afecta a relao entre o factor de risco de interesse e a doena.
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dois factores. O primeiro possua um contedo de itens que explorava o PAO e o
segundo possua um contedo de itens que explorava o PSP.
Porm, relativamente a esta questo da uni ou multidimensionalidade do
constructo do perfeccionismo, ainda no foi alcanado um completo consenso. Shafran
et al. (2003) postularam que se deve voltar a uma abordagem unidimensional para
estudar o perfeccionismo, uma vez que as dimenses interpessoais descritas por Hewitt
et al. (1991b) e por Frost et al. (1990) devem antes ser encaradas como meros
correlatos14
e no como aspectos centrais do perfeccionismo clnico. Defendem,
tambm, que os actuais instrumentos de avaliao do perfeccionismo avaliam uma
grande variedade de caractersticas alm das descritas pelos trabalhos anteriores; no
avaliam o perfeccionismo per se mas, antes, constructos relacionados. Assim, apenas as
subescalas PAO (MPS-H&F), Padres Pessoais (MPS-F) e alguns dos itens da
subescala Preocupao com os Erros (MPS-F) se aproximam da avaliao do constructo
do perfeccionismo tal como este tem sido descrito e mesmo estes possuem alguns itens
que se referem auto-avaliao. O POO e o PSP da MPS-H&F so, ento, encarados
como constructos que podem estar associados ao perfeccionismo, em vez de serem
elementos integrais do mesmo. Esta perspectiva defendida por Shafran et al. (2003) est
em contracorrente e ignora os principais achados da investigao na rea. Desde h mais
de uma dcada que os aspectos interpessoais do perfeccionismo so essenciais
compreenso do constructo. Os padres e exigncias auto-impostos so sem dvida
importantes, impulsionados pela motivao central do perfeccionismo negativo que o
medo de falhar. No entanto, igualmente essencial entender que este medo mrbido de
errar se relaciona com o valor pessoal contingente aceitao pelos outros, com base
num elevado desempenho. aqui que radica a importncia dos aspectos interpessoais.
Em boa parte, o perfeccionista pensa que s vai ser estimado e considerado pelos outros
se for perfeito nos seus padres e desempenhos, o que foi evidenciado por Campbell e
DiPaula (2002). Neste estudo, foi explorada a soluo factorial da MPS-H&F (PAO e
PSP), numa amostra de estudantes universitrios, com o intuito de melhor compreender
os concomitantes das diferentes auto-crenas. Estes autores ao avaliarem o PSP
encontraram dois tipos distintos de auto-crenas representadas nos itens. Uma era a
crena de que ser amado e aceite pelos outros era contingente a um elevado desempenho
e a outra era a crena de que as outras pessoas apresentavam padres ou expectativas
14
Um correlato uma varivel que est associada ao resultado de interesse (outcome). Porm, no um
factor de risco confirmado por no se demonstrar a precedncia em relao a este.
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elevadas para o self. Estes autores encontraram tambm dois tipos distintos de auto-
crenas na subescala PAO: 1) importante ser perfeito e 2) crena de que lutamos
activamente pela perfeio. Para determinar em que medida estas diferenas se
reflectiam na estrutura da MPS, os autores efectuaram uma anlise factorial, aps a
administrao das duas subescalas a uma amostra no clnica de estudantes
universitrios. Desta emergiram dois factores para cada uma das dimenses de
perfeccionismo. O PSP subdividiu-se em Aceitao Condicional (PSP-Ac) e Percepo
de que os Outros impem Padres Elevados para o self (PSP-PpO) e o PAO em
Importncia de ser Perfeito e Procura da Perfeio. De seguida, os autores
correlacionaram estas escalas com uma bateria de outras medidas como o BDI (Beck,
1967), uma verso abreviada do inventrio dos cinco factores (Costa & McCrae, 1989)
e uma escala de afectividade positiva/negativa (Watson et al., 1988). Como esperado, os
autores verificaram que o PSP estava positivamente correlacionado com a depresso,
neuroticismo e afectividade negativa. O PSP-Ac encontrava-se positivamente
correlacionado com a depresso, neuroticismo e afecto negativo e negativamente
correlacionado com a auto-estima, extroverso, amabilidade, conscienciosidade,
abertura experincia e afecto positivo. J o PSP-PpO apresentou correlaes positivas
com a depresso e negativas com a amabilidade. Mais importante, a anlise de
correlaes das duas subescalas construdas mediante os itens do PSP mostrou que os
concomitantes deletrios do PSP pareciam derivar quase exclusivamente da percepo
de que a aceitao por parte dos outros era condicional ao alcance de um desempenho
superior. Por sua vez, o PSP-PpO no parecia em si mesmo ser um factor importante
para a contribuio dos aspectos problemticos do PSP. Por seu lado, as duas subescalas
do PAO no se mostraram correlacionadas com aspectos negativos substanciais.
Recentemente explormos a estrutura factorial da MPS-H&F (PAO e PSP) numa
amostra de mulheres grvidas e encontrmos duas solues factoriais (Macedo et al.,
2009). A primeira engloba o PAO e PSP e a segunda alm de englobar o PAO, integra
tambm uma subdiviso do PSP em Percepo de que os Outros impem Padres
Elevados para o self (PSP-PpO) e Aceitao Condicional (PSP-Ac). Na seco da
Metodologia (Captulo IV: Estudo Emprico) encontram-se descritos, em pormenor,
estes subcomponentes, uma vez que os consideramos na anlise estatstica.
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7.3. PERFECCIONISMO POSITIVO E NEGATIVO
Tem sido sugerido que o campo do perfeccionismo sofre do mesmo enviesamento
que caracteriza a psicologia em geral, isto , uma tendncia para focar a ateno nos
aspectos negativos, sem reconhecer os aspectos positivos do constructo (e.g. Slaney et
al., 1995). Deste modo, emergiram tentativas adicionais de melhor conceptualizar o
perfeccionismo com o intuito de identificar os seus aspectos positivos. J Hamachek,
em 1978, tinha sugerido que o perfeccionismo podia ser normal e neurtico. O
perfeccionismo normal era definido como uma luta por padres razoveis e realistas que
conduziam a um sentido de auto-satisfao e que aumentavam a auto-estima; o
perfeccionismo neurtico era consubstanciado por uma tendncia para lutar por padres
excessivamente elevados, motivado pelo medo de falhar e pela preocupao em no
desiludir os outros. Deste modo, as pessoas com perfeccionismo normal estabeleciam
padres elevados de forma similar s pessoas com perfeccionismo neurtico. No entanto,
sentiam-se satisfeitas quando estes padres eram alcanados e retiravam prazer dos seus
esforos direccionados para atingir os resultados.
Todavia, a ideia de que o perfeccionismo era predominantemente negativo
imperou na dcada seguinte. Burns (1980) defendia uma concepo negativa do mesmo,
realando como caracterstica central dos perfeccionistas, a auto-avaliao realizada em
funo do sucesso nos desempenhos. Pacht (1984) partilhava uma concepo
inteiramente negativa, postulando que a procura da perfeio era um objectivo
indesejvel e debilitante, que reflectia uma motivao que no era saudvel. Segundo
este autor, esta procura por uma perfeio que no existe, que se torna perturbadora e
que est associada a um nmero significativo de problemas psicopatolgicos.
Actualmente, volvidos cerca de 30 anos aps o artigo de Hamachek, tem-se
acumulado um substancial conjunto de dados que confirma existirem facetas positivas e
negativas de perfeccionismo. Esta dicotomia foi retomada a partir da dcada de 90 por
vrios autores, aps o aparecimento das conceptualizaes multidimensionais, sob
diferentes designaes15
. Apesar das aparentes diferenas entre as duas medidas do
perfeccionismo em termos da natureza e nmero de facetas e caractersticas associadas,
estas mostram ter dimenses comuns subjacentes. O trabalho pioneiro de Frost et al.
15
Positive striving e maladaptative concerns (Frost et al., 1993), perfeccionismo activo e passivo (Adkins
& Parker, 1996), perfeccionismo positivo e negativo (Terry-Short et al., 1995), perfeccionismo adaptativo
e mal-adaptativo (Rice et al., 1998), perfeccionismo funcional e disfuncional (Rhaume et al., 2000),
perfeccionismo saudvel e no saudvel (Stumpf & Parker, 2000), personal standards e evaluative
concerns (Blankstein & Dunkley, 2000).
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(1993) relativo anlise factorial das nove subescalas das duas MPSs revelou uma
soluo de dois factores, designados como Maladaptative Evaluative Concerns (MEC)
e Positive Striving (PS). Os autores concluram que o PS representava o aspecto
adaptativo da motivao pessoal. Porm, estudos posteriores seguindo o mesmo mtodo
implementado por Frost et al. (1993) verificaram que o PS estava relacionado tanto com
caractersticas positivas, como negativas (e.g. Bieling et al., 2004). Mais recentemente,
Stoeber e Otto (2006) efectuaram uma reviso sobre o carcter positivo e negativo do
perfeccionismo que mostra que apesar das diferentes concepes e das duas
abordagens bsicas (dimensional ou baseada em grupos) h considervel acordo para
as duas formas de perfeccionismo: Positive Perfectionistic Strivings que inclui as
dimenses Padres Pessoais elevados da MPS-F e PAO da MPS-H&F e Negative
Perfectionistic Concerns que inclui as dimenses Preocupao com os Erros e Dvidas
acerca da Aco da MPS-F, PSP da MPS-H&F e discrepncia percebida entre os
desempenhos actuais e as expectativas elevadas (abordagem dimensional). Esta reviso
revela ainda, tendo em conta uma abordagem baseada em grupos, que os perfeccionistas
saudveis (healthy perfectionists) so indivduos com nveis elevados de perfectionistic
strivings e nveis baixos de perfectionistic concerns e que os perfeccionistas no
saudveis (unhealthy perfectionists) possuem nveis elevados de perfectionists strivings
e nveis elevados de perfectionistic concerns, sendo que os no perfeccionistas
apresentam nveis baixos de perfectionistic strivings. Assim, as concepes seguindo
uma abordagem dimensional e as concepes seguindo uma abordagem baseada em
grupos podem ser combinadas e comparadas de acordo com uma estrutura conceptual
comum.
Apesar destes resultados, a grande maioria da investigao suporta a viso de que
os perfectionistic strivings esto associados a caractersticas positivas, particularmente
quando as preocupaes perfeccionistas so controladas (no caso das concepes
dimensionais: perfectionistic striving e perfectionistic concerns) ou quando estas
apresentam nveis baixos (no caso das concepes baseadas nos grupos).
Existe considervel acordo de que o perfeccionismo no tem de ser apenas
negativo, podendo igualmente ter aspectos positivos. Contudo, h ainda alguns autores
que tm fortes dvidas quanto ao carcter positivo, saudvel ou funcional (j para no
referir adaptativo) do perfeccionismo (e.g. Flett & Hewitt, 2002, 2005). Na distino
entre perfeccionismo adaptativo e mal-adaptativo importante compreender a
motivao subjacente a cada um deles. O perfeccionismo positivo, tal como descrito por
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Terry-Short et al. (1995) um comportamento que funo do reforo positivo e inclui
a disposio para se aproximar do estmulo. Em contraste, o perfeccionismo negativo
funo do reforo negativo e envolve o desejo de evitar resultados indesejveis. Assim
sendo, o perfeccionismo positivo acompanhado de uma baixa preocupao com a
rejeio pelos outros, elevada auto-estima e auto-eficcia percebida, sendo a motivao
primria atingir o sucesso. O perfeccionismo negativo, por sua vez, est associado a
dvidas relativas qualidade do desempenho pessoal, a baixa auto-estima e a
preocupaes excessivas com a possvel rejeio pelos outros, sendo a motivao
primria evitar falhar.
Em suma, a distino entre perfeccionismo adaptativo e mal-adaptativo de
grande relevncia. No entanto, Hewitt e Flett (2002) referem que este aspecto est longe
da resoluo, devido ao facto de no ter sido avaliado um conjunto de aspectos
relacionados, os quais apresentamos em pormenor nos subtpicos seguintes.
7.4. PERFECCIONISMO E O ALCANCE DA PERFEIO
Outro aspecto chave na literatura do perfeccionismo envolve a necessidade de
reconhecer a distino entre o estabelecimento de padres perfeccionistas e o atingir
desses mesmos padres. Tendo em conta este aspecto, Slaney et al. (2001) optaram por
incluir uma medida separada de discrepncia como parte da sua Almost Perfect Scale-
Revised. O conceito de discrepncia envolve a percepo pessoal da forma como os
padres perfeccionistas foram alcanados. Assim, tal como postulado por alguns autores,
as percepes de discrepncia desempenham um papel importante na experincia de
distress (Higgins, 1987).
De acordo com Slaney et al. (2002) a discrepncia um aspecto central no
constructo do perfeccionismo. Flett e Hewitt (2002) referem, a este respeito, que as
definies de perfeccionismo se devem restringir procura da perfeio e que as
diferenas individuais nas discrepncias percebidas devem ser vistas como parte de um
constructo relacionado, embora distinto, que enfatiza a auto-avaliao. Segundo os
autores, as discrepncias e o trao perfeccionista podem diferir a vrios nveis, sendo
que a diferena chave envolve factores temporais. Enquanto o perfeccionismo visto
como um constructo da personalidade relativamente estvel, as discrepncias podem
flutuar substancialmente em funo do feedback do desempenho, experincias de vida,
etc.
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Um estudo realizado por Hankin et al. (1997) avaliando a associao entre as
dimenses do perfeccionismo e as auto-discrepncias numa amostra de estudantes,
encontrou que o PAO no se mostrava correlacionado com as medidas de discrepncia
ideal e actual. Por sua vez, o PSP mostrou-se positiva e significativamente associado
com a avaliao da discrepncia. Assim, os autores sugeriram que as dimenses do
perfeccionismo e as auto-discrepncias podem diferir conceptual e empiricamente, uma
vez que o perfeccionismo, tal como conceptualizado na MPS-H&F, avalia a magnitude
dos padres individuais independentemente da capacidade para os atingir (Flett &
Hewitt, 2002).
A necessidade de distinguir entre perfeccionismo e auto-avaliao tambm
evidente na investigao do perfeccionismo e da auto-eficcia. As investigaes
experimentais no estabelecimento de padres e auto-eficcia so baseadas na premissa
de que desejvel e faz sentido distinguir entre padres e capacidade pessoal percebida
para atingir esses mesmos padres (Wallace & Alden, 1991). A potencial utilidade da
distino entre o perfeccionismo e as tendncias auto-avaliativas ilustrada pelo estudo
do perfeccionismo, auto-estima e depresso. Alguns estudos tm avaliado a
possibilidade da auto-estima mediar a ligao entre o perfeccionismo e a depresso
(Preusser et al., 1994; Rice et al., 1998). Embora os dados relativos aos efeitos da
mediao sejam mistos, uma implicao clara para a investigao de que possvel, e
teoricamente significativo, distinguir o perfeccionismo e a valncia de auto-julgamentos.
8. MODELOS DO DESENVOLVIMENTO DO PERFECCIONISMO
Vrios investigadores tm sugerido que o ambiente familiar e, em particular os
comportamentos dos pais, desempenha um papel crucial no desenvolvimento do
perfeccionismo (e.g. Blatt, 1995; Hamachek, 1978; Pacht, 1984; Shafran & Mansell,
2001).
8.1. MODELO DAS EXPECTATIVAS SOCIAIS
Quer Hamachek (1978), quer Missildine (1963) discutiram o desenvolvimento do
perfeccionismo em resposta contingente aprovao parental, ou seja, as crianas
aprendem que a aprovao parental manifestada se forem perfeitas. Esta ideia deriva
do trabalho de Rogers (1951) sobre as condies do valor. O autor defendia que as
crianas estavam propensas a uma baixa auto-estima quando a aprovao dos pais era
contingente concretizao das expectativas parentais. No caso do perfeccionismo,
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acredita-se que os padres parentais so demasiado elevados; esta nfase reflectida no
contedo dos instrumentos do perfeccionismo (Expectativas Parentais e Crtica Parental
da MPS-F).
Implcito no modelo das expectativas sociais est a noo de que as crianas que
no so capazes de atingir as expectativas parentais iro vivenciar um sentimento
crnico de desesperana como resultado da sua incapacidade para atingir os padres que
lhes so impostos. Um sentido de valor pessoal contingente tambm um aspecto
central do PSP, tal como descrito por Hewitt e Flett (1991). As pessoas que tm nveis
elevados de PSP tm uma maior probabilidade de terem sido expostas a condies de
valorizao contingente, sendo altamente vulnerveis a sentimentos de desnimo
(helplessness) em resposta ao feedback negativo pelos outros.
Enquanto Frost e colaboradores se focaram especificamente nas Expectativas
Parentais, Hewitt e Flett conceptualizaram o PSP de modo a incluir a influncia dos
membros da famlia, mas tambm presses sociais mais abrangentes, incluindo pares e
professores. A um nvel mais amplo, esta viso iria envolver a noo de contingncia da
sociedade como um todo (e.g. o ideal social de ter a aparncia fsica perfeita).
8.2. MODELO DA APRENDIZAGEM SOCIAL
O modelo da aprendizagem social foca a ateno no papel da imitao, isto , a
criana ter tendncia a imitar os comportamentos perfeccionistas que observa nos pais.
O possvel papel da aprendizagem social na aquisio de tendncias perfeccionistas foi
demonstrado na investigao clssica conduzida por Bandura (1986). A sua
investigao demonstrou que as crianas tendem a imitar e a adoptar os padres
avaliativos modelados pelos outros. Por exemplo, no trabalho de Bandura e Kupers
(1964, cit. por Flett et al., 2002), as crianas foram expostas a um modelo adulto que
tinha padres altos e baixos que tinham de ser alcanados de forma a resultar em
recompensa. Os autores verificaram que as crianas expostas a modelos que as
recompensassem s depois de atingir os elevados padres tinham uma menor
probabilidade de se auto-recompensarem a menos que tambm atingissem padres
elevados. Em contraste, crianas expostas a modelos que as recompensavam por
atingirem padres mais baixos, imitavam o padro de auto-recompensa.
Os investigadores do perfeccionismo tm testado indirectamente a perspectiva da
aprendizagem social ao avaliarem os nveis de perfeccionismo nos pais e nos filhos.
Frost et al. (1991) avaliaram a ligao entre duas amostras de estudantes universitrias e
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as suas mes e pais. Os resultados indicaram que o perfeccionismo nas mes, mas no
nos pais, estava associado ao perfeccionismo nas filhas. Vieth e Trull (1999)
conduziram uma investigao semelhante, mas usando a MPS-H&F para avaliar os
nveis de perfeccionismo em estudantes universitrios e nos seus pais. Os autores
verificaram que o PAO nas filhas estava correlacionado com o PAO nas mes, mas no
nos pais. O PAO nos filhos estava positivamente associado com o PAO nos pais e
negativamente com o PAO nas mes. O PSP estava correlacionado nas filhas e nas mes.
Estes dados sugerem que o papel da imitao no perfeccionismo pode estar
especificamente relacionado com o progenitor do mesmo gnero.
8.3. MODELO DA RESPOSTA/REACO SOCIAL
O modelo da reaco social baseia-se na premissa de que a criana se torna
perfeccionista em consequncia de ter sido exposta a um ambiente adverso (e.g. abuso
fsico ou maus tratos psicolgicos, incluindo carncia de amor ou exposio a vergonha
ou ambiente familiar catico). A criana pode reagir ou responder a este ambiente
tornando-se perfeccionista, como um mecanismo de coping.
O perfeccionismo como uma reaco social ou resposta adversidade pode
envolver vrios objectivos inter-relacionados. A criana pode tornar-se perfeccionista
numa tentativa de escapar ou de minimizar o abuso futuro ou de reduzir a exposio
vergonha e humilhao (e.g. se eu for perfeccionista, ningum me ir magoar).
Alternativamente, a criana pode tornar-se perfeccionista como uma forma de tentar
estabelecer um sentido de controlo e de previsibilidade a um ambiente imprevisvel.
Relativamente poucos estudos testaram directamente este modelo. No entanto, a
investigao sobre as perturbaes do comportamento alimentar consistente com a
noo de que algumas pessoas se tornam perfeccionistas de forma a lidarem com
ambientes hostis (Kaner et al., 1993; Kinzl et al., 1994).
8.4. MODELO DA EDUCAO PARENTAL ANSIOSA
O modelo da educao parental ansiosa constitui outra via pela qual se pode
desenvolver o perfeccionismo. Neste modelo a criana exposta a uma preocupao
parental excessiva por no ser perfeita. A sobreproteco pode-se tornar numa forma
especfica dos pais estarem constantemente a lembrar criana sobre a necessidade de
evitar possveis erros. Esta educao ansiosa promove o desenvolvimento de tendncias
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perfeccionistas e a orientao futura que envolve a necessidade de evitar ameaas
associadas com erros antecipados.
A investigao sobre o desenvolvimento das perturbaes de ansiedade comeou
a ter em conta o papel da expo