perrusi, artur. tiranias da identidade: profissão e crise de identidade entre psiquiatras
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
TIRANIAS DA IDENTIDADE: PROFISSÃO E CRISE IDENTITÁRIA ENTRE PSIQUIATRAS
Artur Fragoso de Albuquerque Perruci
João Pessoa 2003
Artur Fragoso de Albuquerque Perruci
TIRANIAS DA IDENTIDADE: PROFISSÃO E CRISE IDENTITÁRIA ENTRE PSIQUIATRAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação do Prof. Dr. Jacob Carlos Lima, como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Sociologia.
João Pessoa 2003
Artur Fragoso de Albuquerque Perruci
TIRANIAS DA IDENTIDADE: PROFISSÃO E CRISE IDENTITÁRIA ENTRE PSIQUIATRAS
BANCA EXAMINADORA
__________________________________
Dr. Jacob Carlos Lima (Orientador / UFPB)
_______________________________
Dra. Maria da Glória Bonelli (UFSCar)
______________________________
Dra. Silke Weber (UFPE)
______________________________
Dr. Leôncio Camino (UFPB)
_______________________________ Dr. Terry Mulhall (UFPB)
A Vininha, minha avó querida (in memoriam ) A Enaide, que tem o toque de Midas da sensibilidade.
Agradecimentos
Inicialmente, quero agradecer ao professor Jacob Carlos Lima pela orientação e pela
paciência infinita em relação ao meu peculiar ritmo de trabalho. Na verdade, isso seria pouco ?
um agradecimento não vale uma dívida eterna ? , pois o que valeu realmente foi sua interlocução
e, sobretudo, sua amizade. Através de atitudes absolutamente racionais, o que pode parecer um
tanto paradoxal, libertou-me de um... Carma.
Ao corpo de professores do Curso de Doutorado em Sociologia.
Aos colegas do Departamento de Ciências Sociais.
Ao CNPq, que me adjudicou uma bolsa de estudos, na França, durante quatro anos e
meio.
Aos médicos entrevistados que, amavelmente, colocaram-se à minha disposição, bem
como aos diretores dos hospitais e dos serviços psiquiátricos que, gentilmente, permitiram-me
fazer as observações necessárias ao meu trabalho.
A Enaide, que demonstrou, com Jó, amor e piedade, que um doutorado não é uma ferida
mortal a uma relação amorosa. Nos momentos mais instigantes, ela ficava olhando... "les nuages
qui passent... là -bas... là-bas... les merveilleux nuages!"
Aos meus pais, que são como a Lua ? caprichosa e sempre olhando pela janela. Não
apenas me apoiaram, mas preencheram a minha morada com uma atmosfera carinhosa e cheia de
afeto.
A Marta, flor incomparável, tulipa re-encontrada, se não existisse, teria de ser re-
inventada. Com um olhar, ela transforma alguém em mármore; mas jamais me olhou dessa
maneira...
À amiga e colega de trabalho Maria de Fátima Araújo, pelo carinho e pelo apoio.
A Lucinha, sonhadora, sempre sonhadora, mais sua alma ambiciosa e delicada, mais seus
sonhos fogem da realidade. Sou grato por isso mesmo...
Ao meu amigo e colega Adriano de León, pelo apoio e pelo incentivo. Se não tivesse feito
meu mapa astral e, talvez mentido, não teria terminado o doutorado.
Ao meu amigo e colega Aécio Amaral, pelo apoio e por me fazer descobrir que a
cervejinha produz conhecimento, e que, por causa disso mesmo, quase me faz não terminar a
tese...
I. Resumo
O objeto deste trabalho é a identidade profissional, examinada a partir de um estudo
qualitativo entre psiquiatras da Cidade do Recife. Como o objeto do estudo está inscrito na
atividade ocupacional da psiquiatria, utilizou-se as contribuições da área da sociologia das
profissões, justamente no intuito de alargar o aporte teórico, isto é, empregou-se o conceito de
profissão para embasar o exame da identidade profissional. Ao se examinar processos de
identificação no campo profissional, houve a necessidade de se entender a relação entre
identidade e prática, no caso a prática profissional. Por isso, a exigência de se utilizar um
conceito mediador que esclarecesse a natureza da relação entre identidade e prática: o conceito de
representação social, utilizado tanto no estudo da representação da doença mental entre os
psiquiatras, como no sentido de representações profissionais.
Dividiu-se a análise empírica em duas partes fundamentais: o campo representativo da
doença mental e o campo profissional. A primeira parte diz respeito às representações da doença
mental entre os entrevistados. O propósito de examiná- las vem do fato de que a doença mental é
o objeto profissional da psiquiatria, tendo assim um papel relevante na construção identitária do
psiquiatra. A segunda parte teve como objetivo o estudo de representações e práticas
profissionais relacionados ao contexto profissional (condições de trabalho, interações
profissionais, regras, normas e dinâmicas institucionais...). O estudo das lógicas de ação que estão
inscritas na prática são importantes porque participam da construção da identidade profissional
dos psiquiatras. As representações, por sua vez, são contextualizadas, isto é, adaptadas ao
contexto onde são elaboradas e formadas. Como estão contextualizadas, as representações são
produzidas por sujeitos implicados nas relações de trabalho profissional, o que acarreta uma
situação criadora de formações identitárias.
A população estudada constituiu-se de 50 psiquiatras, e a metodologia de coleta de dados
envolveu uma combinação de técnicas: entrevistas abertas e entrevistas que seguiram um roteiro
semi-estruturado, além de observação sis temática, através de um protocolo de observações, das
práticas profissionais. Os dados da observação e das entrevistados foram analisados utilizando-se
um método calcado, basicamente, na compreensão e na interpretação.
II. Abstract
The focus of this thesis is the professional identity, studied from a qualitative research
among psychiatrists of Recife. As this object is settled at occupational activity of psychiatry,
some of the main theories of sociology of profession were applied. This choice leaded to a larger
theoretical support; it means that the concept of profession was used to support the thesis of
professional identity. The observation of identity processes conducted to a comprehension of the
relation between identity and practices, the professional practices. The concept of social
representation was taken as mediation between identity and practices, such as the social
representation of mental illness among psychiatrists as social representation of profession.
There were two empirical procedures: the representations of mental illness and the
representation of profession. The first pointed to the social representations of mental illness
among interviewees. As the mental illness is the focus of psychiatry, the study of those
representations revealed a central role on the psychiatrists’ identity. The second procedure
pointed to the representations of professional practices (work conditions, professional
interactions, rules, patterns and institutional dynamics). The investigation of the action logics
enclosed in the practices had a direct relation to the psychiatrics professional identity. Those
social representations are contextualized to their elaboration and formation. As those
representations are connected to the professional context, it means that such representations are
produced by individuals linked to job relations that involve the formation of those identities.
Fifty psychiatrics were analyzed from different methodological paths: open interviews,
elaborated script interviews, guided systematic observation of professional practices. These data
were analyzed by comprehension and interpretation.
III. Résumé
Cette recherche porte sur l’identité professionnelle examinée à
partir d’une étude qualitative chez les psychiatres de la ville de Recife.
Ainsi formulé, l’objet d’étude s’inscrit dans l’activité occupationnelle
de la psychiatrie ; aussi avons-nous eu recours au domaine de la
sociologie des professions, dans le souci d’élargir apport théorique
de cette recherche. Autrement dit, c’est à partir du concept de
profession que nous avons envisagé l’examen de l’identité
professionnelle. Lors de l’analyse de processus d’identification dans
le champ professionnel, le besoin de comprendre le rapport entre
identité et pratique, plus précisément pratique professionnelle, s’est
imposé. C’est pourquoi nous avons eu recours à un concept
médiateur permettant de rendre compte de la nature de ce rapport
entre identité et pratique : le concept de représentation sociale, utilisé
aussi bien dans l’étude de la représentation, chez les psychiatres, de
la maladie mentale que dans le sens de représentations
professionnelles.
Nous avons divisé l’analyse empirique en deux parties principales : le champ représentatif
de la maladie et le champ professionnel. La première partie porte sur les représentations de la
maladie mentale chez les interviewés. Le propos de les étudier résulte du constat que la maladie
mentale constitue l’objet professionnel de la psychiatrie, ayant de ce fait un rôle non négligeable
dans la construction identitaire du psychiatre. La seconde partie concerne l’étude de
représentations et de pratiques professionnelles liées au contexte professionnel (conditions de
travail, interactions professionnelles, règles, normes et dynamiques institutionnelles...).
L’importance de cette étude des logiques de l’action inscrites dans la pratique se doit au fait
qu’elles prennent part à la construction de l’identité professionnelle des psychiatres. Les
représentations, à leur tour, sont mises en contexte, c’est-à-dire, sont adaptées au contexte dans
lequel elles ont été élaborées et formées. Du fait qu’elles sont liées au contexte professionnel, les
représentations sont produites par des sujets impliqués dans les rapports de travail professionnel,
ce qui favorise une situatio n créatrice de formations identitaires.
La population étudiée est formée de 50 psychiatres, et la méthodologie employée pour la
collecte de données relève d’une technique mixte : des entretiens ouverts et des entretiens ayant
suivi un canevas semi-structuré, outre l’observation systématique des pratiques professionnelles à
travers un protocole d’observations. Les données de l’observation et des entretiens ont été
analysées selon une méthode fondée, pour l’essentiel, sur la compréhension et l’interprétation.
IV. Sumário
AGRADECIMENTOS ------------------------------------------------------------------------------------5 RESUMO------------------------------------------------------------------------------------------------------7 ABSTRACT --------------------------------------------------------------------------------------------------8 RÉSUMÉ------------------------------------------------------------------------------------------------------9 SUMÁRIO --------------------------------------------------------------------------------------------------11 APRESENTAÇÃO ---------------------------------------------------------------------------------------14 I. INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------------------17
A. A identidade do psiquiatria como objeto --------------------------------------------17 1. Objeto da identidade e identidade do objeto --------------------------------------19
B. Metodologia -------------------------------------------------------------------------23 1. Entrevistas e "campo representacional" -------------------------------- ----------23 2. Observação e "campo profissional" ----------------------------------------------25 3. Campo de Pesquisa -------------------------------- -------------------------------26
a) Entrevistas----------------------------------------------------------------------27 b) Observações empíricas ---------------------------------------------------------28
C. Análise Conceitual ------------------------------------------------------------------29 II. CAPÍTULO I----------------------------------------------------------------------------------33
A. Introdução à problemática da identidade: uma análise. -----------------------------33 1. O conceito de identidade ---------------------------------------------------------33 2. Psicaná lise, psicologia social e intersubjetividade -------------------------------37 3. Transformações da Identidade -------------------------------- --------------------51 4. A identidade profissional ---------------------------------------------------------56 5. A questão da Vocação ------------------------------------------------------------64
a) Vocação e individualismo------------------------------------------------------64 b) Vocação e profissão ------------------------------------------------------------75
III. CAPÍTULO II ------------------------------------------------------------------------------------83 A. Profissão -----------------------------------------------------------------------------83
1. Discussão sobre o conceito de Profissão -----------------------------------------83 IV. CAPÍTULO III ------------------------------------------------------------------------------------ 123
A. Representação e Psiquiatria --------------------------------------------------------123 1. Representação social e saber médico --------------------------------------------123 2. A estase do modelo psiquiátrico no Brasil: um esboço. -------------------------132
V. CAPÍTULO IV--------------------------------------------------------------------------------- 152 A. Campo representativo da doença mental (DM) entre os psiquiatras ---------------152
1. Introdução ao campo representativo ---------------------------------------------152 2. Representação analítica da psicose e da DM ------------------------------------155
a) Introdução. --------------------------------------------------------------------155 b) A representação e diferenciação profissional. --------------------------------157 c) Representação e formação analítica-------------------------------------------160 d) Representação da DM x noção de neurose x classificações nosológicas -----161 e) Representação e dualismo nosológico ----------------------------------------163 f) Representação e etiologia -----------------------------------------------------165 g) Representação e tratamento -------------------------------- -------------------166 h) Representação e Psiquiatria -------------------------------- -------------------168
i) Representação e Neurologia --------------------------------------------------171 3. Representação biológica da psicose e da DM -------------------------------- ---172
a) Representação e neurose ------------------------------------------------------174 b) Representação e Monismo nosológico ----------------------------------------175 c) Representação e Tratamento --------------------------------------------------177 d) A "volta à medicina"----------------------------------------------------------179
4. Representação clínica da psicose e da DM --------------------------------------181 a) Representação x etiologia -----------------------------------------------------182 b) Representação x neurose ------------------------------------------------------183 c) A bricolagem------------------------------------------------------------------185
VI. CAPÍTULO V ---------------------------------------------------------------------------------- 190 A. O campo representativo profissional-----------------------------------------------190
1. Identidade profissional-----------------------------------------------------------192 a) Representações e senso comum-----------------------------------------------193 b) O papel da psiquiatria na sociedade-------------------------------------------205
(1) Verdade da loucura ------------------------------------------------------206 (2) Despreconceito, esclarecimento e prevenção ----------------------------209 (3) Papel médico-------------------------------------------------------------213
c) O papel da psiquiatria na medicina -------------------------------------------215 (1) Preconceito e "medo da loucura" ----------------------------------------216 (2) Falta de cientificidade -------------------------------- -------------------217 (3) Separação entre a psiquiatria e a medicina ------------------------------218 (4) Especialidade médica ----------------------------------------------------220 (5) Humanização da medicina-----------------------------------------------222
VII. CAPÍTULO VI ------------------------------------------------------------------------------ 227 A. Relações profissionais no trabalho -------------------------------------------------227
1. Interação e prática ---------------------------------------------------------------227 a) Prática, consenso e equipe multiprofissional ---------------------------------237 b) As condições empíricas do trabalho em equipe-------------------------------240
VIII. CAPÍTULO VII ---------------------------------------------------------------------------- 262 A. Trajetória e Vocação ---------------------------------------------------------------262
1. Consultório e Autonomia --------------------------------------------------------275 2. A questão do hospital e da Reforma Psiquiátrica--------------------------------279
IX. CONSIDERAÇÕES FINAIS (À GUISA DE CONCLUS ÃO) -------------------- 286 X. BIBLIOGRAFIA --------------------------------------------------------------------------- 291 XI. ANEXO I ------------------------------------------------------------------------------------- 304 XII. ANEXO II ------------------------------------------------------------------------------------ 306
A663u Perruci, Artur Fragoso de Albuquerque.
Tiranias da identidade: profissão e crise identitária entre psiquiatras/ Artur Fragoso de Albuquerque Perruci. – João Pessoa, 2003. 330 p. : il. Orientador: Jacob Carlos Lima. Tese (doutorado) UFPB / CCHLA / PPGS. 1. Sociologia da saúde. 2. Sociologia das profissões
UFPB/BC CDU 316 (043)
Apresentação
A psiquiatria vive uma crise de identidade. Depois do boom farmacológico, da
"hospitalização" do antigo asilo alienista e da revolução na terapia das doenças mentais
iniciados na década de 60 do século passado, as reformas no campo da saúde mental
sofreram um refluxo a partir da década de 80 e, principalmente, uma longa estagnação no
último decênio do século XX. O refluxo não atingiu apenas a esfera institucional e
organizativa da psiquiatria, mas também o próprio saber psiquiátrico, afetando e colocando
em xeque a identidade profissional do psiquiatra. O otimismo terapêutico, base de
legitimação de toda disciplina médica, tão comum nos anos 70, tornou-se um moderado
ceticismo, quase um lamento de impotência, independentemente dos avanços institucionais
no campo psiquiátrico e no tratamento das doenças mentais.
Os sistemas psiquiátricos de cada país são específicos na sua origem e no seu
desenvolvimento; contudo, embora suas singularidades sejam irredutíveis a outros
contextos históricos, a tendência atual seria a reprodução e a implantação de um modelo na
psiquiatria: a psiquiatria clínica de base biomédica. Seria um modelo baseado num
determinado saber, mas que tem conseqüências práticas e organizativas evidentes. Ora, o
saber médico e, mais ainda, o saber psiquiátrico nunca vêm separados de práticas e métodos
organizativos ? o asilo que o diga... Não se pode separar o saber psiquiátrico das lógicas e
das práticas sociais — de controle social e de atividade médica — que são responsáveis
pelas formas de reprodução e socialização do conhecimento médico, de qualificação e
reprodução de práticas profissionais e, enfim, de organização e de institucionalização do
sistema de saúde mental. Um modelo de nosologia e prática médica, como a psiquiatria
clínica de base biomédica, envolve representações e práticas profissionais que condicionam
o sistema psiquiátrico como um todo. Sua dominância condiciona não apenas o campo das
“representações psiquiátricas” (doença mental, principalmente), mas também sua
implementação prática e institucional numa sociedade determinada.
Mesmo que a psiquiatria clínica de base biomédica se reproduza através de várias
formas de organização e práticas profissionais, a variedade não impede a uniformização dos
15
métodos e das práticas psiquiátricas ? na verdade, a variedade de organizações e de
práticas seria uma expressão de uma mesma estrutura normativa. De fato, a psiquiatria
realizar-se-ia através de várias “psiquiatrias”, mas todas tendo como alicerce o mesmo
paradigma: a psiquiatria clínica de base biomédica. Assim, a uniformização dos contextos
profissionais, no mundo da psiquiatria, permite que o seguinte fenômeno seja, atualmente,
um tanto banal: um psiquiatra brasileiro, por exemplo, não tem dificuldade alguma em se
adaptar ao mundo psiquiátrico profissional de outro país, e vice-versa.
Tal situação, descrita acima, seria explicável pela homogeneização planetária do
saber médico-científico, cuja direção geral acompanhou a padronização do conhecimento
científico, influenciando todas as disciplinas relacionadas à medicina, em particular a
psiquiatria. Um saber que condiciona representações, terapias, deontologias, condutas
profissionais e, no caso específico de nosso objeto, identidades... Um saber inscrito nas
práticas profissionais da medicina. Nesse sentido, as práticas profissionais da medicina
produzem um sistema de representações profissionais dotado de um grau tão elevado de
universalização normativa e axiológica e de um tal poder estrutural que podemos perceber,
nas sociedades modernas, semelhanças estruturais entre os sistemas de representações
profissionais provenientes de organizações profissionais médicas diferentes. A "ordem
médica" teria, por isso, seus "invariantes" menos na sua forma de organização institucional
do que no seu sistema de representação.
Uma crise do saber psiquiátrico, assim, significaria pari passu uma crise no mundo
psiquiátrico como um todo, principalmente, uma "crise" de identidade profissional. Os
sintomas dessa "crise" de identidade seriam visíveis no campo representacional do
psiquiatra: a insegurança do psiquiatra quanto ao futuro da sua profissão e à eficácia do seu
saber; o medo de perder o antigo prestígio que a psiquiatria tinha no seio da medicina; o
pânico diante da ascensão de novas profissões e qualificações no campo da saúde mental, e
a conseqüente sensação de "despossessão" de seu conhecimento especializado, antes
inquestionável, agora "sugado" por outras profissões da saúde mental (psicologia,
enfermagem, terapia ocupacional, serviço social...). Não causa surpresa assim, o
surgimento de discursos exigindo a "volta" da psiquiatria à medicina, a delimitação das
tarefas e das competências nas equipes de saúde mental, o monopólio do diagnóstico e da
16
terapêutica das doenças mentais pelo psiquiatra ou, ainda, o medo de trabalhar num hospital
geral, o complexo de inferioridade diante da neurologia...
Embora esteja dividida em sete capítulos, a tese tem basicamente duas partes. A
primeira parte, que vai da Introdução até o terceiro capítulo, é essencialmente um conjunto
de questões relacionadas ao objeto de pesquisa e aos conceitos utilizados na análise
empírica. A partir do questionamento do objeto, no caso a identidade profissional do
psiquiatra, produzimos uma discussão sobre as escolhas metodológicas (como realizamos a
pesquisa e as técnicas utilizadas) e sobre nossas "escolhas" conceituais — uma análise
teórica dos conceitos utilizados no trabalho. Evidentemente, os diferentes momentos da
discussão são interdependentes, tendo como foco a delimitação do objeto e como
metodologia, a entrevista e a observação. A entrevista, como técnica para extrair
representações e vivências; a observação, para examinar o comportamento dos psiquiatras
em situações de trabalho, bem como para enquadrar as práticas dentro do contexto
profissional no qual estão inseridas. Ao mesmo tempo, a própria construção do objeto
exigiu um trabalho conceitual, utilizando diversas teorizações e conceitos articulados entre
si, que faz parte da própria construção do objeto de estudo.
A segunda parte, que vai do quarto até o sétimo capítulo, é voltada à interpretação
do material empírico, e tem dois momentos: o campo representacional e o campo
profissional. O primeiro discute basicamente a representação do objeto profissional, a
doença mental, e suas articulações com a identidade profissional do psiquiatra; a segunda
discute a identidade profissional propriamente dita: o papel do psiquiatra e da psiquiatria na
medicina e na sociedade, as relações profissionais no trabalho, a trajetória profissional e a
questão da vocação.
V. Introdução
A. A identidade do psiquiatria como objeto
Nosso objeto de trabalho, stricto sensu, é a identidade profissional do psiquiatra,
examinada a partir de um estudo qualitativo entre psiquiatras da cidade do Recife. Como
identificamos o conceito de identidade profissional ao conjunto das representações profissionais
— identidade é um processo de identificação baseada em representações assumidas pelo sujeito
—, o contexto conceitual do objeto precisou ser alargado o suficiente para torná-lo inteligível.
Como consideramos que a noção de ide ntidade constrói-se empiricamente a partir de processos
de identificações encontrados nos sistemas de representações dos sujeitos analisados, o caminho
não seria da identidade ao sistema de representações do sujeito, e sim o contrário: do sistema de
representações do sujeito, inscrito nas práticas sociais, à identidade. Para entendermos como se
constrói o processo identitário, precisamos não só de um estudo das representações, mas também
de um exame da forma pela qual elas são conformadas na situação de trabalho, isto é, uma análise
do modo em que se inscrevem nas práticas profissionais.
O conceito regulador da pesquisa, talvez por ser o mais abrangente, é o de profissão,
aplicado à medicina, entendida como uma atividade profissional por excelência (Freidson, 1984).
Para analisarmos a profissão médica, em particular a psiquiatria, postulamos que este conceito
articula-se a dois campos de análise (Dubar, 1987): o "campo representacional" (representações
do médico-psiquiatra, responsabilidade profissional, status profissional e seus valores, a
construção profissional da DM, trajetória biográfica) e o "campo profissional" propriamente dito
(condições de trabalho cotidiano, modelos de prática profissional, modelos de solidariedade e de
competição, autodeterminação e autonomia profissionais — formação, organização e modos de
negociação). Contudo, para fins de simplificação, reduzimos o alcance de cada campo, até
mesmo para não sairmos da delimitação do objeto: a identidade profissional. Por isso, no "campo
representacional", fizemos apenas a análise da representação do objeto profissional dos
psiquiatras, a DM. Tal análise foi importante porque nos permitiu construir uma série de
articulações entre o objeto profissional e a construção identitária do psiquiatra e, assim, atingir,
sempre em função da identidade, as outras determinações do campo, tais como as representações
18
do psiquiatra, o papel do saber psiquiátrico, a valorização do profissional (status), as relações
com as outras disciplinas médicas. Já em relação ao "campo profissional", examinamos
basicamente a identidade profissional propriamente dita, via uma articulação entre representações
profissionais e práticas profissionais, gerando uma discussão sobre as relações profissionais no
trabalho, equipe profissional, trajetória profissional e vocação.
Acreditamos que as reduções dos campos não prejudicaram a análise, já que tornou
explícita uma intuição, antes um tanto tácita, de que o tema da identidade é vital para os
psiquiatras e a psiquiatria enquanto disciplina médica, justamente por causa das querelas em
torno da DM no seio da medicina e da forma como se organiza a psiquiatria enquanto instituição
médica. Pois a psiquiatria sempre foi problemática na medicina e sempre teve uma dificuldade
em achar seu lugar, seu papel, em suma, sua identidade entre as disciplinas e as instituições
médicas. Por isso, as reduções efetivadas nos dois campos, além das explicações já arroladas,
possuem como pano de fundo um conjunto de hipóteses que tenta explicar a importância do
objeto profissional e das articulações entre representações e práticas profissionais na construção
identitária do psiquiatra:
- a doença mental é um fenômeno sui generis na medicina. Ela jamais conseguiu ser
enquadrada pelo paradigma biomédico da medicina. Sendo o objeto profissional da
psiquiatria, sua instabilidade, enquanto representação médica de doença, condiciona
diversas dificuldades no campo do saber psiquiátrico: falta de consenso, confronto de
diversos paradigmas de doença, desvalorização do conhecimento psiquiátrico. A
psiquiatria, por causa da sua incapacidade de enquadrar cientificamente a DM, possui
uma fragilidade disciplinar no campo da formação profissional da medicina. Tais
problemas estabelecem diversas tensões na identidade profissional do psiquiatra;
- a psiquiatria possui um aparato institucional (hospital psiquiátrico) diferente e
separado do campo organizativo da medicina. Provavelmente, tal diferença e
separação possui uma relação com a percepção social da DM. Independentemente
disso, o fato é que a organização institucional da psiquiatria condiciona o modo como
se realiza o trabalho profissional do psiquiatra ? a psiquiatria é praticamente uma
profissão dentro da profissão médica, tendo uma grande importância institucional no
campo da medicina
19
- por causa da condição sui generis da DM e do singular aparato institucional da
psiquiatria, a prática profissional do psiquiatra possui características diferentes das
práticas profissionais dos outros profissionais da medicina. Tais características
condicionam uma estruturação problemática da identidade profissional do psiquiatra;
Teoricamente, os dois campos de análise são complementares e suas relações estruturais
são fundamentais para atingirmos de forma concreta e profunda o problema da identidade
profissional. Uma análise centrada sobre o sistema de representações não poderá deixar de lado o
"campo profissional", e vice-versa. Um estudo superficial que perceba um dos campos de forma
unilateral fará o sociólogo navegar à deriva por entre as análises pontuais- individuais e globais-
organizativas, perdendo de vista o que é fundamental: a procura das articulações entre os dois
campos, permitindo que o problema da identidade profissional não seja por demais subjetivo, ao
se enfatizar o "campo representacional", nem seja demasiadamente estrutural e objetivo, caso a
análise fique reduzida ao "campo profissional". O estudo da identidade profissional foi, assim,
esclarecido pela análise das representações profissionais do psiquiatra, englobando e tendo como
tema central as representações sobre o objeto profissional, a DM; contudo, tal análise não pôde
reduzir-se aos elementos determinantes do campo representacional (elementos expressivos e
cognitivos + mecanismos internos de elaboração e de funcionamento), incorporando também
alguns elementos determinantes do "campo profissional".
1. Objeto da identidade e identidade do objeto
Ao discutirmos a identidade profissional entre os psiquiatras, situamo- la em relação a um
dos fundamentos centrais da profissão médica e, em particular, da psiquiatria, o seu saber. A
produção do saber faz parte da estrutura geral que amalgama a organização profissional médica e,
por isso, pode ser considerada a variável que se mantém constante e que demarca a sua história,
sendo a luta pela sua legitimidade social, pelo seu controle e pelo seu monopólio o fulcro da sua
formação profissional. Evidentemente, inferir o saber como fazendo parte da estrutura geral da
profissão médica não significa desprezar os estudos de natureza "organizativa" e econômica" da
medicina, os quais centram, geralmente, a sua atenção na gestão do mercado de trabalho, nas
condições cotidianas do trabalho, nos modelos de prática profissional, de solidariedade e
competição, na auto -regulação e na autonomia profissional (formação, organização e modos de
20
negociação). Não subestimamos a "infraestrutura" da profissão médica, pois consideramos o
saber e suas "encarnações" em técnicas, formas de organização, condutas e práticas de expertise
como uma das "base materiais", por excelência, da profissão. O saber, assim, atua tanto no campo
profissional, propriamente dito, como no "campo representacional" da profissão (identidade,
mentalidade, objeto profissional, responsabilidade, vocação, etc.). Acreditamos que a conexão
desses dois campos analíticos seja, também, realizado pelo saber, estando na base da prática e das
representações profissionais, seja direta ou indiretamente.
Na verdade, nossa ênfase no saber tem a seguinte preocupação: o saber médico seria uma
fonte constituinte, seja no modo de crise ou de conformidade, da identidade profissional. O
reconhecimento científico do saber médico teve um papel capital na legitimação social da
medicina, abjurando outras formas de conhecimento de tratamento e cura do campo profissional e
se tornando o único detentor de uma competência reconhecida para o tratamento das doenças
(Freidson, 1984; Foucault, 1987). Tal processo de legitimação social, através de uma forma de
organização profissional, baseou-se evidentemente numa luta e no uso de poder, mas estava
conectado aos imperativos da reprodução e manutenção de um saber. Ora, dissemos acima que o
saber é "base material" e que suas encarnações são objetivamente identificáveis, mas não é só
isso: o saber profissional é o principal meio de produção de serviço utilizado pelo profissional
médico e, provavelmente, por todo profissional, cujo domínio permite- lhe inclusive a
manutenção de sua autonomia e o controle da produção de seu trabalho.
Além de meio de produção do serviço, pode-se aventar que, na medicina, exista uma
relação entre os projetos nosológicos / terapêuticos (base do saber médico) e a evolução das suas
instituições. Na psiquiatria, o caso torna-se ainda mais palpável quando examinamos, por
exemplo, o caminho lógico que vai do tratamento moral ao isolamento do paciente e,
conseqüentemente, da sua contenção ao sistema asilar. Caminho que pode igualmente ser
percebido quando das dificuldades de implantação de certos modelos psiquiátricos: a experiência
italiana, por exemplo, baseou-se numa crítica política do asilo, através de uma concepção
sociocêntrica da doença mental, trazendo embutido no seu próprio projeto terapêutico a abolição,
pura e simples, da hospitalização. Ou ainda: a corrente reformista da psiquiatria francesa, cuja
mistura vai da fenomenologia, passando pela psicanálise, até ao marxismo, propiciou a criação de
uma estrutura institucional, digamos assim, eclética e multiforme como a psiquiatria de setor.
21
Uma psiquiatria, para oferecer outro exemplo, que se baseia num dualismo nosológico, isto é,
num discurso que separa e declara a DM como uma patologia especial e diferente de todas as
outras, geralmente defende um aparato terapêutico correspondente: uma organização terapêutica
e assistencial especial, normalmente separada das outras instituições de tratamento médico —
vide o caso da separação sempiterna entre o hospital geral e o psiquiátrico.
A psiquiatria é uma das poucas disciplinas médicas, senão a única, que nunca teve um
consenso etiológico e nosológico1 estável, sempre sofrendo uma inadequação permanente com a
representação biomédica de doença. Num certo sentido, ela sempre foi "fraca" no aparato de
formação médica e na luta pelo seu reconhecimento disciplinar dentro da própria medicina,
conseguindo tardiamente e de forma mitigada diferenciar-se da neurologia, e "forte" no campo
institucional, com seus aparelhos de tratamento especiais, separados do campo médico em geral.
O dualismo nosológico (separação entre doença orgânica e doença mental), assim, tem uma
relação, em situações históricas determinadas, de reciprocidade com o dualismo institucional
(separação entre instituição médica e instituição psiquiátrica). Tal situação sempre foi fonte de
conflito, seja ideológico, seja institucional, trazendo conseqüências na identidade do profissional,
principalmente na sua imagem atribuída e de referência: "que tipo de médico eu sou?" e "que tipo
de médico eu quero ser?" (Lipiansky, 1990).
Contudo, devemos reconhecer que tal conjunto de problemas não é do campo de
interesses tradicionais da sociologia das profissões. Geralmente, analisa-se menos o saber
profissional, enquanto tal, do que o modo como é controlado, a sua relação com o sistema de
formação profissional e, principalmente, a forma pela qual se organiza a aquisição e o
reconhecimento de uma competência em vastos campos funcionais, a partir de títulos e diplomas
oficiais obtidos pelos indivíduos (Larson, 1988). A profissão seria basicamente formas
historicamente específicas que estabelecem conexões estruturais entre um nível de instrução
formal relativamente elevado e postos ou recompensas relativamente desejadas na divisão social
do trabalho. A instrução formal, isto é, a aquisição de um saber específico, normalmente
adquirida via formação universitária, tem uma relação estrutural com o mercado de trabalho,
1 Etiológico, porque a psiquiatria nunca teve um consenso a respeito das causas da doença mental; nosológico, porque nunca teve um consenso a respeito de quais doenças trata a psiquiatria.
22
permitindo ao profissional não só um monopólio de um determinado saber, como também um
lugar potencial no mercado de trabalho. Nossa preocupação, com efeito, não passou por essa
abordagem: estamos muito mais interessados em entender a estruturação do saber profissional e
suas conseqüências na identidade profissional, bem como, ampliando mais ainda a questão, em
saber por exemplo o motivo da adesão de um profissional a essa ou àquela idéia de doença ou de
vocação profissio nal. Assim, dando um exemplo concreto: por que determinado psiquiatra,
geralmente, apropria-se da doença mental a partir dessa ou daquela teoria e por que tem uma
representação "x" e não "y" de doença? Quais as conseqüências da adesão a essa ou aquela idéia
de doença ou de tratamento na sua identidade profissional? Ou, ainda, da mesma forma: por que
um outro profissional pensa a doença como uma integração de fatores bio-psico-sociais e por que
ele é tão pragmático no tratamento?
Nossa proposta, aqui, foi a de utilizar estudos sobre o saber profissional e sobre as
profissões para tentar entender a adesão social dos psiquiatras a determinadas idéias ou noções,
seja de doença e de tratamento, seja de vocação profissional, e como tais representações estão
inseridas nos processos identitários. Na verdade, a nossa pesquisa está situada nas intersecções da
sociologia das profissões com a sociologia do conhecimento e dos processos de identificações,
embora com uma maior ênfase nestas últimas, ou melhor, subordinaremo s algumas teorizações
da sociologia da profissão à discussão sobre a identidade profissional.
Enfim, ao analisarmos processos de identificação e, portanto, não apenas representações,
mas também ações intersubjetivas, tivemos a necessidade de examinarmos as interações sociais,
percebidas aqui como interações profissionais. Ora, as interações sociais no contexto profissional
produzem e reproduzem, ao mesmo tempo, práticas e representações profissionais; assim, discutir
identidade é também problematizar as relações entre prática e representação profissionais (Dubar,
1991). Tais relações, inclusive, podem ser instáveis e sofrer inadequações ? na verdade, no
nosso estudo, raramente encontramos uma relação adequada e passiva entre as representações e
as práticas profissionais dos psiquiatras. Tal resultado vai de encontro a uma posição que não
deve nada ao culturalismo, na qual a representação é vista quase como um imperativo categórico:
infere-se da representação do indivíduo sua possível conduta ou suas expectativas e antecipações.
Ou, ainda, à posição contrária: da prática do indivíduo ou da sua lógica de ação, infere-se a
23
representação correspondente. Tanto a trajetória do indivíduo pode explicar a inadequação entre
representação e prática, como as circunstâncias em que está submetido 2.
B. Metodologia
1. Entrevistas e "campo representacional"
Inicialmente, nosso objetivo foi interpretar o material empírico (entrevistas e observações
de campo) a partir do sistema de representações e de práticas profissionais dos psiquiatras.
Contudo, "sistema de representações e de práticas profissionais" é excessivamente geral.
Abreviamos este largo espectro de acordo com as limitações metodológicas de nossa pesquisa.
A análise temática dos discursos dos psiquiatras permitiu suas integrações como agentes
coletivos. Com efeito, o discurso pode ser visto como uma construção social, o que permite a
elaboração de "tipologias" nas quais os diversos discursos individuais serão apreendidos como
variações de um "tipo". A concepção de doença mental de um determinado psiquiatra, por
exemplo, pode ser associada a outras esferas de ação, tais como sua formação universitária ou,
ainda, num outro exemplo, ter afinidades ideológicas ou "contra-culturais" com a "anti-
psiquiatria", na qual a doença mental é vista como um produto do meio social. Entretanto, a
integração dos psiquiatras como agentes coletivos, via discurso e representação, somente teve um
sentido a partir do momento em que suas concepções e suas identidades profissionais foram
"esclarecidas" por suas trajetórias. Formação universitária, experiência política da loucura,
concepção neurobiológica da doença mental, tudo isso são lugares, posições e disposições
percorridas por um agente que se move ao longo de seu trajeto existencial e de sua história.
Assim, da trajetória do psiquiatra entrevistado surgiu o contexto no qual sua representação de
doença mental e sua identidade profissional foram formadas e construídas. A análise de trajetória
nos permitiu esclarecer, também, as determinações da representação e da identidade, bem como
2 A adequação da prática e da representação geralmente acontece quando a representação, por exemplo, faz parte de uma cosmovisão ou de uma "ideologia" (vide a psicanálise que funciona, muitas vezes, como tal) ou quando a prática é mediada por normas institucionais que enquadram a ação; nesse sentido, o indivíduo seria "enquadrado" pela "instituição" — tal enquadramento seria, sobretudo, cognitivo.
24
de “situar” — posição + disposição (Boudon, 1986) — o psiquiatra num determinado “campo”,
médico ou da saúde, onde ele “fez” sua história (Bourdieu, 1980).
Na verdade, contextualizar o discurso do entrevistado, vinculando-o à sua trajetória e ao
campo das práticas profissionais, possui como pano de fundo a percepção de que os entrevistados
e os psiquiatras que observamos podem ser percebidos de duas formas: como sujeito que é
acionado pela estrutura e como sujeito que é co-produtor de sentido. Para a análise, é preciso, na
verdade, analisar o sujeito nas três formas de ação: agente, ator, autor. Agente é o sujeito que age,
independentemente do fato de ter consciência ou não sobre o sentido e as motivações da sua
ação; ator, aquele que executa, joga o jogo, interpreta o roteiro de seu papel social, chegando a
influenciar o sentido da ação e deixando algum rastro de originalidade, mas não é, de fato, a
origem da ação; autor, o que cria e produz, aquele que se situa em relação ao contexto e o
influencia através de sua ação. O tríptico agente/ ator/ autor esclarece o nível da implicação do
sujeito no contexto ? explicita a implicação. Dependendo do caso e do contexto, podemos
definir até que ponto o sujeito age segundo alguma modalidade de ação. Desta maneira, a análise
das representações da doença mental e da identidade profissional dos psiquiatras precisou de dois
momentos de enquadramento: o primeiro baseado na trajetória do psiquiatra; o segundo, na
situação do psiquiatra no campo da saúde ou da medicina. Este segundo enquadramento permitiu
compreender a inscrição da estrutura subjetiva do psiquiatra (suas representações e identidades)
na estrutura social objetiva na qual ele está inserido.
Assim, aplicamos um guia de entrevistas bastante flexível, tanto para o entrevistador
quanto para o entrevistado, organizado em temas que foram aprofundados conforme o desenrolar
da entrevista (ver Anexo I). Empregamos o método de entrevista de tipo “focalizada, pois seu
emprego apresentou as seguintes vantagens:
• é uma técnica apropriada para superar a ausência de uma amostra
representativa, permitindo uma apreensão qualitativa do material empírico;
• oferece uma liberdade e uma abertura ao entrevistador, permitindo o
aprofundamento do tema proposto;
• o material colhido por esta técnica facilita e é adequada à interpretação;
25
• a entrevista focalizada facilita a reconstituição de modelos culturais e
simbólicos interiorizados pelo entrevistado;
• o material colhido compreende não apenas proposições e afirmações, mas
também conteúdos normativos e expressivos
2. Observação e "campo profissional"
As representações da doença mental e a identidade profissional foram enquadrados pela
trajetória do psiquiatra e pela sua situação no campo da saúde ou da medicina. Tais
enquadramentos permitem a criação de tipologias ou modelos, possibilitando entender como
ocorre a construção de atores coletivos; entretanto, nós julgamos inadequado deduzir de tais
tipologias ou modelos as práticas dos psiquiatras. Ora, nós podemos recusar a assimilação das
lógicas de ação às lógicas de representação. Um raciocínio similar pode ser feito em relação à
trajetória, menos assimilada a uma "posição objetiva" do que a um "recurso subjetivo" em que o
sujeito pode utilizá- lo como uma capacidade para enfrentar desafios e obstáculos. Se ele, o
sujeito, ganha ou perde, se o balanço de sua trajetória é positivo ou negativo, tudo isso é uma
outra história. O resultado de sua trajetória só pode ser determinado a posteriori. A trajetória
(sistema de ação cristalizado) pode consolidar um processo de identidade e, desta maneira,
reproduzir uma prática social determinada; entretanto, tal situação é apenas uma hipótese, entre
outras, tão pertinente quanto, apesar de sua maior probabilidade. As visões sobre o seu futuro não
reproduzem, necessariamente, a trajetória passada do psiquiatra, sendo assim, tal hipótese precisa
ser verificada de maneira empírica e a posteriori.
A análise de nosso material empírico revelou um papel importante das lógicas
organizacionais; por isso, se ficássemos restringidos às entrevistas, provavelmente não
poderíamos estabelecer, com precisão, a sua importância, daí o apelo às observações, método útil
para discernir as práticas concretas dos psiquiatras. Em tese, as lógicas de ação dos psiquiatras
poderiam ter sido inferidas de uma análise de seu sistema de ação concreto (hospital, consultório,
etc). Nós poderíamos ter deduzido a prática dos psiquiatras estabelecendo as ligações de
causalidade entre saber psiquiátrico, textos legis lativos e disposições regulamentais e, assim,
explicar o que faz a psiquiatria, mas este procedimento poderia ter-nos impedido de ver o que se
26
passa durante a prática cotidiana dos psiquiatras e, ao mesmo tempo, induzir-nos a assimilar as
lógicas de ação aos sistemas de representação cristalizados (documentos, regras normativas, etc).
Preferimos, ao contrário, partir de um processo indutivo, seguindo o psiquiatra através de
suas passagens por mundos ou lógicas de ação diferentes e, depois, confrontar os resultados da
análise indutiva com os resultados do processo dedutivo que foram apreendidos do exame do
saber psiquiátrico, dos textos legislativos e das disposições regulamentais. Assim, seguimos o
psiquiatra nas suas diversas lógicas de ação no tempo presente, tomando notas, observando-o e,
sobretudo, interrogando-o. Nós não o "seguimos" apenas para percebê- lo como um agente
racional, consciente e intencional, mas também com o intuito de analisar as condições de
realização da sua racionalidade e da sua intencionalidade na ação. A atividade conceitual do ator
não será percebida como alguma coisa de imanente à sua consciência e ao seu cérebro, mas como
um raciocínio que pode ser apreendido na exterioridade da ação, enquanto um fenômeno social,
passível assim de ser apreendido empiricamente (Ogien, 1989). A partir da análise da prática
cotidiana do psiquiatra, construímos inferências sobre as lógicas de ação que foram colocadas
num contexto e relacionados a processos identitários.
Em suma, todos as inferências, inclusive aquelas sobre as lógicas de ação, foram
confrontadas entre si, com o objetivo de encontrar seus mecanismos de integração. As entrevistas
foram realizadas nos lugares onde nós fizemos as observações empíricas. Dessa forma,
elaboramos e utilizamos um protocolo de observações empíricas (ver Anexo II).
3. Campo de Pesquisa
A pesquisa centrou-se no Recife por questões operacionais. Embora a psiquiatria exercida
no Recife não seja propriamente paradigmática em relação ao restante do país, pode-se afirmar
que a situação da psiquiatria recifense é bem semelhante ao resto do país, mesmo quando
comparamos com outras cidades brasileiras, como São Paulo, Rio, etc. O problema seria muito
mais a falta de dados em relação à psiquiatria brasileira como um todo, principalmente no que se
refere a uma epidemiologia psiquiátrica e a dados a respeito do sistema organizativo brasileiro de
saúde mental, do que a diferenças regionais e culturais na profissão médica, em particular a
respeito da psiquiatria. Assim, fizemos generalizações nas análises de dados, utilizando a
27
prudência e salientando as lacunas que, necessariamente, existem no exame da psiquiatria
brasileira.
a) Entrevistas
Ao todo, realizamos 50 entrevistas de tipo “focalizada” com psiquiatras, de 60 (sessenta)
minutos de duração média, e uso de gravador, utilizando o Guia de Entrevista apresentado no
Anexo I. Inicialmente, pensamos em fragmentar a população de entrevistados de acordo com o
serviço de atendimento existente: hospital público, universitário, privado, ambulatório,
consultório; contudo, como praticamente todos os entrevistados têm duas ou mais atividades em
serviços diferentes, achamos desnecessário tal procedimento. A escolha dos entrevistados partiu
do seguinte método: cada entrevistado, ao final da entrevista, oferecia-nos o contato de três
colegas e, assim, sucessivamente. Isso nos permitiu construir uma rede de entrevistados mais ou
menos heterogênea que abarcasse diversas formas de discurso, de percepção e de processos de
identificação. Fizemos ainda diversas entrevistas de consulta, principalmente com alguns
profissionais que estão atuando na secretária municipal de saúde, a procura de dados sobre a
psiquiatria pernambucana e recifense.
Fizemos as transcrições de todas as entrevistas. Sistematizamos cada entrevista seguindo a
ordem temática do guia de entrevista. Classificamos as entrevistas, colocando-as em grupos
temáticos, seguindo a ordem do guia de entrevista. A partir desse ponto, pudemos produzir
generalizações baseadas nos cruzamentos entre os grupos temáticos e as interpretações (hipóteses
explicativas) que tentaram explicar as diversas questões surgidas a partir dos cruzamentos e dos
grupos temáticos. Paralelamente à análise interpretativa do material colhido nas entrevistas,
achamos conveniente analisar tematicamente o conteúdo do material empírico. Foi dessa forma
que realizamos uma redução do discurso do entrevistado em unidades de significação, utilizando
um sistema de classificação estabelecido a partir de categorias circunscritas e definidas. Depois
dessa etapa, reunimos tais unidades de uma forma que não fosse nem ambígua, nem contraditória.
Tal método permitiu -nos quantificar e realizar agrupamentos e recortes no conteúdo encontrado
nas entrevistas. Assim, pudemos controlar a presença de certas noções e temas, obtendo desse
modo uma primeira imagem mais unificada do material colhido, bem como das principais linhas
28
de diferenciação de seu conteúdo. Conseguimos também estabelecer relações entre as
significações e organizá- las em unidades temá ticas.
Apesar disso, no nosso trabalho, a análise temática possui apenas um valor indicativo e
secundário em relação ao papel da interpretação. A análise temática, na verdade, possui alguma
limitações que restringe o processo interpretativo:
Ø a composição de temas em unidades de significação isola-os e dificulta a
passagem do conteúdo manifesto ao latente;
Ø os resultados encontrados na análise temática não indicam que o mais
freqüente seja o mais determinante, já que os diversos conteúdos latentes e determinantes de um
material simbólicos, como o encontrado numa entrevista focalizada, podem aparecer mitigados,
mascarados e com uma freqüência pouco significativa;
Ø a análise temática pode significar no máximo uma representação
sistematizada e organizada do material colhido nas entrevistas; assim, sua superestimação pode
significar uma identificação entre a linguagem interpretativa e a interpretada ou, em outras
palavras, entre as noções do entrevistador e as dos entrevistados (Michelat, 1980: 201)
A análise interpretativa e temática contribuiu para a construção de modelos e
interpretações baseados no discurso concreto dos entrevistados. Tais modelos e interpretações
não revelam de forma alguma a "verdade" dos discursos analisados e nem alguma "estrutura"
oculta; na realidade, sua validade depende de seu valor estratégico em esclarecer o dado, facilitar
a comparação e levar a novos conhecimentos. A construção de modelos depende, também, do
"interesse" do pesquisador em enfatizar essa ou aquela área de conhecimento, revelando facetas
diferentes da realidade estudada segundo o modo pelo qual o material foi colhido e ao tipo de
entendimento que o pesquisador está procurando — o modelo, para nós, seria um auxiliar
transitório, um momento "técnico", uma "figuração ideal".
b) Observações empíricas
Passamos quatro meses fazendo observações e anotações empíricas nos seguintes
hospitais: Hospital Ulisses Pernambucano (HUP ? p úblico) e Clínica de Saúde São José
(hospital privado). Participamos do dia-a-dia dos médicos psiquiatras, bem como acompanhamos
29
dois médicos do HUP e um da Clínica São José. Fizemos várias visitas ao Ambulatório Albert
Sabin e ao Hospital das Clínicas (hospital universitário que possui um importante setor
psiquiátrico), bem como a um hospital-dia, ligado ao HUP.
Para efetuar a coleta de dados utilizamos a seguinte técnica: a observação etnográfica
participante, que pressupõe uma imersão total no terreno estudado (Caiafa, 1985). Desse modo,
pude observar os comportamentos individuais, interindividuais e coletivos, inscritos num sistema
de ação concreto. A observação voltou-se para a elucidação da relação entre o discurso e a
prática, bem como para a construção de modelos de “prática”. Tal técnica exigiu-nos uma maior
proximidade empática com os indivíduos do serviço em questão. Nesse sentido, o trabalho
empírico foi dividido em duas etapas fundamentais: 1) uma “rápida” e inserida na segunda,
baseada na familiarização e conhecimento do serviço; 2) a outra “lenta”, baseada no seguimento
dos psiquiatras do serviço em questão, utilizando um protocolo de observação.
Tivemos a necessidade de inserir a primeira etapa na feitura do trabalho empírico, porque
a nossa familiarização, mesmo sendo também um psiquiatra, num serviço psiquiátrico, como
observador vindo das ciências sociais, não é e nunca foi evidente. No fundo, nunca deixamos de
ser um psiquiatra que, por algum modo curioso e bizarro tinha se tornado pesquisador social,
acolhido com polidez, é certo, mas nunca aceito de forma completa. Além do mais, ficar
observando e anotando as ações dos psiquiatras, isto é, atuar como um espectador, pode ser
considerado como um obstáculo, por exemplo, ao andamento do trabalho numa enfermaria e
causar para o observador e observado um certo constrangimento. De todo modo, observamos e
registramos, na medida do possível, todas as situações sugeridas pelo nosso “protocolo de
observação”. Cada período de observação, em média, durava uma hora, dependendo da situação e
da importância do contexto. As anotações e os registros eram feitos depois da observação, de
forma cursiva e contínua, numa espécie de “diário de bordo”.
C. Análise Conceitual
Apesar de termos utilizado neste trabalho diversas categorias analíticas, baseamo-lo num
tripé formado por três conceituações: identidade (profissional), profissão e representação. A partir
desse núcleo, utilizamos diversos conceitos que achamos pertinente no esclarecimento de nosso
30
objeto. Cada conceituação do tripé funciona como um atrator para as outras categorias utilizadas
na pesquisa. Por isso, podemos dividir em três partes a discussão conceitual, segundo cada
conceituação do tripé:
Ø identidade profissional: ao conceituarmos identidade profissional,
utilizamo- la conectada à noção de socialização profissional — na verdade, a identidade
profissional seria resultado da socialização. Assim, utilizamos diversos autores que abordam a
socialização, de Durkheim (1977) a Claude Dubar (1991), por exemplo. Da mesma forma, a
identidade profissional foi melhor compreendida a partir da apreensão da articulação dos dois
campos já examinados, o campo profissional e o campo representacional. Uma articulação que
poderia também ser traduzida em termos de práticas profissionais e representação do objeto
profissional. A identidade profissional seria construída enquanto um processo de identificação no
qual o sujeito implementaria "estratégias de identificação" (Lipiansky, 1990) num determinado
contexto profissional e de vida. A identidade profissional estaria relacionada à vivência e à
trajetória do sujeito num determinado contexto e à sua apropriação de uma determinada
experiência social. Tal visão enfatiza a identidade como um produto de um processo que integra
as diversas experiências pelas quais o indivíduo passou ao longo de sua biografia. Como
corolário da identidade vista como um processo, valorizamos a noção de interação, cujo papel
fundamental seria esclarecer a gênese e a dinâmica dos processos de identificação: interação entre
o sujeito e o mundo, isto é, interação com outras pessoas, grupos sociais e estruturas soc iais. O
profissional vive num mundo profissional, determinado por normas, valores e práticas, onde
existe um cotidiano. Ao mesmo tempo, sentimos a necessidade de utilizar a noção de trajetória
biográfica, examinada do ponto de vista do conceito de trajetória social (Bourdieu, 1980).
Utilizamo- lo a partir do conceito de habitus, embora este tenha sofrido algumas modificações,
pois o achamos muito centrado nos mecanismos de reprodução social. Os profissionais estão
"situados" e inscritos em determinados espaços sociais que adquiriram uma autonomia relativa,
transformando-se em "instâncias" especializadas dotadas de suas próprias regras de
funcionamento. Acreditamos, inclusive, que o "campo" da saúde mental, no Brasil, está sendo
ainda construído, embora o campo da saúde em geral tenha um nível de institucionalização até
certo ponto acentuado. Contudo, através dos aportes interacionistas, tentamos diminuir a
"dependência" do conceito de "campo" com a esfera da economia, dando ênfase, digamos assim,
às lógicas de interação, isto é, às lógicas de ação que não são necessariamente assimiláveis às
31
lógicas econômicas das estratégias de optimização das condutas (Dubar, 1991). Com isso, o
habitus foi entendido como um processo aberto, no qual a trajetória não é reduzida a uma posição
objetiva, e sim entendida, fundamentalmente, como um "recurso subjetivo" — as competências
do sujeito serão "instrumentos" utilizáveis ou não dentro de um sistema dado de escolhas. Assim,
numa situação dada, o sujeito "retirará" do habitus recursos que lhe darão uma oportunidade
estratégica de realizar seus objetivos;
Ø profissão: tal teorização é o pano de fundo conceitual de todo o conjunto
de questões relativas à pesquisa, principalmente quando da discussão sobre o saber profissional,
em particular o da psiquiatria, e suas relações com a identidade, a representação profissional, o
objeto profissional e a prática profissional. Fundamentalmente, utilizamos os aportes da
sociologia da profissão, desde Parsons (1968) até Freidson (1984) e Anselm Strauss (1992). A
discussão sobre a profissão deu-nos subsídios para a utilização da noção de prática profissional.
Noção necessária para problematizar a relação entre representação e prática, como também para
demonstrar algumas especificidades do trabalho profissional na psiquiatria. Aqui, aplicamos o
conceito de ação comunicativa, de Habermas (1987), para tentar definir a prática profissional na
psiquiatria. Tal conceito foi útil para a análise do trabalho em equipe profissional, juntamente
com a teorização de Willem Doise e Serge Moscovici (1992) e seus estudos sobre trabalho em
grupo (teoria da decisão e da implicação). Mas, na própria análise da profissão e da prática
profissional, sentimos a necessidade de uma categoria que fizesse a ponte entre profissão e
identidade, donde a justificativa do uso do conceito de vocação. Percebemo- la como o alicerce da
identidade profissional. É o seu núcleo ideativo e simbólico. Um dos nossos objetivos foi mostrar
que o surgimento da profissão e do individualismo moderno possui uma afinidade eletiva.
Através dessa análise, demonstramos que a vocação pode ser vinculada a dois tipos de
individualismo, um relacionado à autonomia (defesa da autonomia profissional) e o outro à
independência (defesa da independência profissional), cuja repercussão pode ser verificada nas
diversas posições críticas ou de apoio ao profissionalismo (Freidson, 1998). Além disso, no bojo
da discussão sobre profissão, acoplamos uma análise sócio-histórica da profissão médica
brasileira, em particular da psiquiatria nacional;
Ø representação: a hipótese de que o objeto profissional, a doença mental,
possui um papel importante na construção identitária do psiquiatra levou-nos a examinar a
representação social, enquanto representação profissional, da doença mental entre os psiquiatras.
32
Contudo, o conceito de representação profissional não se reduz a uma representação social da
doença mental, apresentando outros condicionantes como o papel da psiquiatria e do psiquiatra, a
relação com outras disciplinas médicas e com o senso comum, a concepção de tratamento e de
trabalho, a ética profissional. A discussão geral sobre a representação profissional, portanto,
condiciona e complementa a análise da identidade profissional. Nesse sentido, utilizamos como
referência a teoria da representação social de Moscovici (1978; 1986) para construir o conceito
de representação profissional;
33
VI. Capítulo I
A. Introdução à problemática da identidade: uma análise.
1. O conceito de identidade
Pode-se especular que, talvez, a história do problema da noção de identidade seja o
problema de sua história. Ela é uma típica questão moderna — inclusive, muitas aporias do
pensamento moderno, cartesianas ou não, são suas diletas devedoras. Foi problematizada desde o
início pela filosofia moderna quando as questões da subjetividade e da individualidade tornaram-
se cruciais para o pensamento ocidental. A identidade tornou-se uma questão porque surgiu no
cerne de uma nova forma histórica de subjetividade (defesa da autonomia do sujeito), cujo
alicerce é a valorização da individualidade (defesa da independência do indivíduo) e cujo etos
não é mais dado pela Tradição, e sim percebido como "construído" por um sujeito. O surgimento
da identidade, enquanto problema, teria uma inscrição fundamental na própria base da
Modernidade, no seu tesouro mais caro: o indivíduo autônomo. Se a identidade pode ser vista
como uma "construção" e se implica a performance individual de um sujeito, pensá-la é uma
reflexão moderna, pois está inscrita num modelo cultural que confo rma práticas de auto-avaliação
—supõe a existência, ilusória ou não, de uma intimidade e de uma privacidade interior, isoladas
como uma mônada e, supostamente, alcançadas pela reflexão. Seriam práticas de auto-avaliação
calcadas num indivíduo — ou, pelo me nos, em uma representação histórica e determinada de
indivíduo — auto-suficiente e "proprietário de si mesmo".
É improvável que, em sociedades nas quais os pensamentos e as emoções pessoais não
são valorizados enquanto tais, desenvolvam-se "instrumentos" lingüísticos que favoreçam o
pensamento reflexivo e auto-avaliativo3. Não se nega que numa sociedade onde a individualidade
não é vista como um valor importante não ocorra auto-avaliação ou pensamento reflexivo.
Afirma-se apenas que numa formação social onde a "pessoa", independentemente do fato de ser
publicamente identificável e individualizada, é responsabilizada moralmente apenas na qualidade
3 Seguimos, aqui, o estudo de Harré (1993: 116 a 131).
34
de membro de uma comunidade, isto é, onde sua responsabilidade moral somente é percebida de
forma comunitária, neste caso, provavelmente, haveria um domínio do "eu digo" em detrimento
do "eu penso" (Harré, 1993: 138).... Já numa sociedade na qual as práticas morais tradicionais
foram substituídas por etos seculares, sendo o individualismo um dos valores balizadores, não é
surpreendente surgir uma noção de si portadora de uma "unidade interior", isto é, uma noção de
si que problematiza uma identidade — uma cultura onde há o sentimento de uma inconcebível
solitude interior, para utilizar a fórmula de Weber (1987) a respeito do homem protestante. Em tal
cultura, a "sensibilidade" e a personalidade foram afetadas radicalmente, ocorrendo a substituição
de uma "sensibilidade hierárquica", baseada numa visão "holista" e "vertical" da sociedade, por
uma "sensibilidade igualitária", baseada numa visão "individualista" e "horizontal" da sociedade
(Dumont, 1983). Enfim, e concluindo: a identidade, como problema, requer historicamente o
surgimento de um indivíduo socializado através de um modelo cultural, no qual a subjetividade é
construída socialmente, tendo como referência axiológica o individualismo.
Provavelmente, por causa de tal derivação — o isolamento da noção de indivíduo em
relação a toda determinação externa, inclusive social —, a consciência moderna de si estrutura e é
estruturada por uma das aporias do pensamento moderno: a dicotomia entre indivíduo e
sociedade. Tal dicotomia vai refletir-se na sociologia, criando duas tendências gerais: a primeira
colocará a ênfase nas condições gerais, nos hábitos coletivos, nas leis e na causalidade; a segunda
insistirá na ação social, nas significações, nas motivações, na interação social e na compreensão.
Uma imaginará a sociedade sem os indivíduos, o discurso sem o sujeito, acentuando a
exterioridade e a coerção dos fatos sociais; a outra explicitará a ação conjunta dos indivíduos, a
compreensão da ação social e o reconhecimento do sentido subjetivo dos atos. Por um lado,
corre-se o perigo de se produzir uma metafísica do social; por outro, pode-se cair numa ontologia
do indivíduo.
Já no plano da formação social da personalidade, a deriva individualista produzirá a
dominação de uma noção de "pessoa" separada e oposta a outras, as quais são percebidas como
objetos isolados. A representação dominante de indivíduo na Modernidade, assim, aparece no
imaginário social segundo uma forma individualista. Tal situação condiciona, provavelmente, a
percepção generalizada de que a "sociedade" possui uma exterioridade em relação à
individualidade — uma percepção social que está inscrita em práticas lingüísticas e modos de
35
pensar bem particulares: tudo que está fora do indivíduo parece adquirir um caráter de objeto
(Elias, 1991: 07). Nossos modos lingüísticos e de pensamento induzem-nos a reificar tudo aquilo
que está "externo" ao indivíduo — por exe mplo: noções como família, sociedade, estado são
percebidas, geralmente, como objetos separados do indivíduo e não como uma rede articulada de
"pessoas" (1991: 08).
A formação da identidade moderna não poderia escapar a essa situação descrita acima,
apresentando assim uma dualidade constituída de dois momentos: 1) um momento individual
geralmente apreendido pela noção de ego, cujas características são individuais e baseadas numa
auto-atribuição de valor e sentido; 2) um momento social comumente definido pelo sistema de
papéis que conformam as expectativas do indivíduo em relação a outros, a um grupo ou a uma
situação determinada. Os dois momentos são reaproveitados e problematizados pela ciência
social, e a identidade é percebida do ponto de vista de dois eixos centrais:
• aquele relacionado aos aspectos psicológicos e psicossociais da identidade,
em que a constituição do "eu" é entendida como uma interiorização (trazer o mundo para si) e
uma internalização (incorporar o mundo a si) do social pelo indivíduo — a utilização de
conceitos como o de superego seria um exemplo desse tipo de entendimento. A identidade, assim,
seria fruto da socialização experimentada pelo indivíduo no meio social (família, escola...) e,
geralmente, apreendida de forma positiva, cumpr indo uma função de integração psicológica na
personalidade do indivíduo;
• o eixo que enfatiza os aspectos coletivos e propriamente "sociológicos" da
identidade. O que importa aqui são as modalidades de "pertença" do indivíduo a um grupo,
categoria social, etnia, classe e os processos de identificações estruturados pelas interações
sociais. A identidade é vista como "coletiva", "social", "cultural", de "classe", sendo formada por
um processo de incorporação — geralmente de valores dominantes ou consensuais —, cumprindo
um papel, muitas vezes funcional, de integração social ou de resistência coletiva ao sistema
social.
Os dois momentos ou os dois eixos criam, no processo de formação
histórica da identidade moderna, um paradoxo — um confronto perpétuo entre a
similitude e a diferença: o "eu" não se vincula inteiramente ao "nós", como se
36
existisse uma clivagem entre uma determinação singular, representada pelo
"eu", e uma determinação geral da identidade, representada pelo nós. Nesse
sentido, na identidade moderna haveria uma relativa assimetria entre a
constituição do sujeito e sua socialização no meio social ou cultural. O indivíduo
estaria inserido nas formas de socialização, mas sem nunca ser por elas
completamente determinado. O ego não se reconhece completamente nos
papéis sociais, tornando a dinâmica identitária ora um processo no qual a
identidade é percebida pelo seu sentido, ora pela sua funcionalidade.
Acreditamos que tais contradições sejam típicas da identidade moderna,
ocasionadas pela infindável marcha da individuação e exacerbadas pela sua
expressão dominante na Modernidade — o individualismo. Durkheim, inclusive,
percebeu de forma aguda o problema quando notou que a individuação foi
impulsionada pela diferenciação social, agora não mais hierárquica e sim
funcional, criando e misturando, sem jamais se fundir, uma diversidade de papéis
sociais e uma pluralidade de identidades individuais. Apesar da apologia do
indivíduo soberano, seu constante descentramento, via solidariedade orgânica,
foi deteriorando sua substância. Formou-se, desse modo, um mundo desprovido
de um sentido unívoco, agora coisa do passado, bem como desenvolveu-se um
universo movediço onde pululam crises de identidade e se "esvazia" de sentido o
indivíduo. Se, no início, a individualidade era a essência da subjetividade,
posteriormente, através de um processo contraditório e paradoxal, a
subjetividade começou, com a radicalização do individualismo, seu lento
distanciamento do indivíduo. Desencantamento do sujeito que alguns escritores
perceberão de uma maneira intensa: Musil (1989), por exemplo, interpretará o
enfraquecimento subjetivo da individualidade como uma perda de qualidade.
Enfim, a consciência dos dois eixos será importante quando analisarmos a forma pela qual
algumas linhas teóricas abordam a identidade. Mais útil ainda será essa conscientização quando
37
tentarmos discutir a possibilidade de um conceito de identidade que amenize a polarização entre
indivíduo e sociedade.
2. Psicanálise, psicologia social e intersubjetividade
A partir desse ponto, faremos un petit tour na psicologia, em particular na psicanálise e na
psicologia social. A crítica à psicanálise e a discussão sobre a psicologia social servirão para
resgatar uma visão de subjetividade cujo fundamento encontre-se na intersubjetividade, isto é,
uma identidade fundada na intersubjetividade poderá escapar às diversas aporias nas quais se
meteu quando de sua identificação com uma concepção de sujeito soberano.
Em relação à psicanálise, consideramos que Freud tentou introduzir na cultura moderna
uma nova forma de relação humana, fundada na abertura e na comunicação, isto é, na
intersubjetividade — se a tentativa obteve ou não sucesso é outra discussão. Curiosamente,
apesar disso, a psicanálise não utiliza a noção de identidade e sim o conceito de identificação,
talvez por uma desconfiança de uma assimilação da noção de identidade a uma essência fixa e
imutável. Embora a identidade possa ser vista como o resultado do processo de identificação,
sem que tenha um caráter definitivo ou alguma transcendência, a desconfiança permaneceu ao
ponto de no famoso dicionário de psicanálise de Laplanche e Pontalis (1980) não aparecer o
verbete identidade. Assim, a identificação é um processo que constitui:
primeiro, a forma mais original do vínculo afetivo a um objeto; segundo, pela
via regressiva, ela torna-se o substituto de um vínculo objetal libidinal, por
alguma forma de introjeção do objeto no ego; terceiro, ela pode nascer cada
vez que se percebe novamente uma certa comunidade com uma pessoa que não
é objeto de pulsões sexuais (tradução nossa.- Freud, 1987: 170).
Dessa definição, podemos retirar algumas interpretações:
• a identificação seria um processo que envolveria a possibilidade de uma
pluralidade de identidades. As identidades vão-se sucedendo de acordo com a evolução de
algumas fases, é certo, mas o processo não garante uma estabilidade ou uma finalidade última.
Em Freud, acreditamos que haja alguma unidade no processo de identificação; contudo, não há
38
realmente certeza disso, e, se radicalizamos o processo e retiramos qualquer tipo de unidade,
mesmo diacrônica, a identidade torna-se um vazio eternamente a ser preenchido. Um processo
que não é processo, mas pura diferença e sucessão. A "dessubstanciação" da identidade seria
total, transformando-a em puro acidente de uma trajetória aleatória;
• o componente afetivo e objetal joga um papel fundamental na formação da
identificação; em suma, a racionalidade tem um papel limitado, inversamente proporcional ao
papel do inconsciente. A psicanálise pode oferecer alguns subsídios interessantes à análise do
aporte emocional e afetivo na formatação da identidade e, mesmo, da ação social;
• Freud, ao falar de "uma certa comunidade com uma pessoa ", admite a
possibilidade do papel do outro no processo de id entificação. O outro não apareceria apenas
numa situação de interação com a "pessoa", mas também, e principalmente, fazendo parte da
própria formação da identificação. Tal abertura ao outro libera a possibilidade de transformar
uma psicologia individual numa psicologia social. Apesar de a teoria psicanalítica não ter
conseguido, no todo, levar adiante essa abertura, Freud já tinha alertado para essa possibilidade,
quando enfatizou o papel do outro na vida psíquica do indivíduo: o outro teria um
papel de um modelo, de um objeto, de um associado ou de um adversário... de
tal forma que a psicologia individual apresenta-se, desde o início, como sendo
ao mesmo tempo, de uma certa forma, uma psicologia social no sentido largo e
plenamente justificado da palavra (tradução nossa.- 1987: 83).
A psicanálise fundando uma psicologia social? Nem tanto, nem tão pouco. As elaborações
psicanalíticas percebem o psiquismo do indivíduo como uma mônada isolada, embora em
constante relação com o "ambiente". Por causa do isolamento da psique, a identidade faria parte
de um "eu" estruturado em torno de elementos invariáveis e a-históricos. Contudo, tal "eu"
praticamente não existe, pois a consciência possui um papel um tanto secundário na dinâmica da
psique. Provavelmente, isso acontece devido ao peso de uma visão sui generis de inconsciente na
teoria psicanalítica. Ele também é isolado e impermeável ao ambiente — o ego nasce e é uma
projeção do id. É um sistema. O "social" ou a "cultura" só entrariam, embora só cheguem
realmente ao inconsciente de uma forma eufemística ou "traduzida", através de estruturas
mediadoras, tipo o superego, conceito da segunda tópica freudiana. O inconsciente é a única
transcendência da individualidade; afinal, embora determinante da consciência individual, pelo
39
que entendemos, ele "está" além do indivíduo. Na realidade, o inconsciente freudiano é quase um
anti-consciente: determina, engana, manipula, ilude, frustra, em suma, faz gato-sapato da
consciência. Não tem uma intenção, mas parece ser fundado no modelo da intencionalidade.
Parece um sujeito dentro do sujeito — um homunculus habitando e guiando nossa alma
(Edelman, 1992). Assemelha-se à camara obscura da famosa metáfora marxiana para explicar a
falsa consciência.
Criticando justamente o uso do inconsciente como panacéia de toda explicação, Boudon
alerta para o perigo de se fazer do inconsciente uma
caixa de Pandora e um pivô lógico que permite deduzir não importa qual
conclusão de toda e qualquer premissa. Pois, quando admitimos, sem maiores
explicações, que um indivíduo pode não perceber o que percebe e perceber o
que não percebe, não acreditar no que acredita e acreditar no que não
acredita, a relação entre o comportamento do agente e sua interpretação
torna-se necessariamente arbitrária. Tudo permanece, então, como uma
questão de retórica. E a porta fica escancarada ao egocentrismo e ao
sociocentrismo do observador (tradução nossa.- Boudon, 1986: 304).
A visão sui generis de inconsciente vai levar Freud a uma verdadeira batalha contra a
consciência e o ego. A consciência será vista como um sintoma, uma simples qualidade do
psiquismo, uma ilha rodeada pelo oceano do inconsciente.O indivíduo não dispõe de si mesmo,
agindo sob o impulso de forças obscuras e impessoais. Nas suas análises do instinto e do
princípio do prazer, Freud prescindiu completamente do uso de categorias subjetivas e
intencionais. O "eu" é um outro, dividido e nunca unitário. Surge a partir do Id, com o qual tem
uma relação neurótica de submissão. Ocorre uma radical desvalorização de nossa experiência
psicológica que, no entanto, talvez seja a única fonte de conhecimento de nossos estados mentais
interiores — nossa verdade residiria bem longe de qualquer contato com nós mesmos. Nesse
sentido, a psicanálise pode ser entendida como uma concepção que afirma a dissolução do ego.
Freud, aqui, não segue apenas os aportes filosóficos, principalmente de Schoppenhauer e
Nietzsche, para realizar a dissolução do ego; na verdade, nutre-se também do desenvolvimento da
teoria da evolução e, principalmente, da neurofisiologia (Gauchet, 1992). Desde 1830, quando foi
40
descoberta a atividade reflexa da medula espinhal, o seu modelo de funcionamento foi estendido
ao conjunto do cérebro. A partir dos estudos sobre o sistema nervoso, vai-se contestar a
supremacia da consciência e o caráter central do ego. Pois, com efeito, caso se admita a
existência de condutas reflexas, o consciente pode ser considerado uma qualidade secundária,
eventualmente acessória, de mecanismos independentes e involuntários que prescindem da
presença ou da ausência da consciência. Em 1870, a mudança já está dada, e o final do século
XIX será dominado por uma psicofisiologia embebida de neurologia. O tema da consciência
como um "satélite do espírito", a percepção de múltiplas consciências locais espalhadas no nosso
corpo e a inferência do caráter impessoal da vida psíquica terão uma influência duradoura em
Freud e mesmo em Nietzsche; inclusive, inspirará a ciência cognitiva atual. Freud, assim, retoma
e radicaliza, através da construção de uma metapsicologia, o tema do inconsciente cerebral.
De todo modo, se o inconsciente sui generis freudiano tivesse apenas uma existência
independente da consciência, sendo capaz de produzir estados psíquicos conscientes, isso não
seria tão grave. Pode-se, no limite, imaginar que as representações conscientes possuem causas
clandestinas provenientes do inconsciente. Mas acreditamos que Freud vai mais longe: sua teoria
considera que os fenômenos do nosso cotidiano cognitivo — boa parte daquilo que consideramos
como expressão de motivações conscientes, justamente aquelas razões habituais e conscientes
que nos fazem agir, que definem nossos objetivos e nossos projetos de vida — tais fatos, em
suma, são epifenômenos de uma realidade escondida ou, ainda, conteúdos manifestos de
determinações latentes. Enquanto tais, não têm importância ou mesmo são ilusões, porque sua
verdade reside numa outra realidade que os determina e os torna presentes. Assim, se há
identidade, ela existe somente enquanto manifestação de um processo de identificação
inconsciente, completamente independente da vontade do sujeito.
A denegação do ego continuará sendo um tema essencial da psicanálise, principalmente a
partir dos estudos de Lacan. Agora, via as influências da lingüística, é a separação entre o sujeito
do enunciado e o sujeito da enunciação que é postulada. O que se produz, aqui, é uma cisão entre
o sujeito que se representa no discurso e o sujeito do desejo ou, em outras palavras, do
inconsciente. Nessa obscura concepção, a subjetividade é deslocada para o campo da
inconsciência. Assim, o único sujeito autêntico é o do inconsciente, enquanto o ego, ou o que
sobrou dele, é visto como um objeto — o ego estaria eternamente dependente das identificações
41
com o outro (contexto, situação...). A subjetividade é dissociada completamente das
manifestações concretas do sujeito do enunciado. Ela é, na realidade, um nada. Mas o sujeito, em
Lacan, não é um efeito da linguagem e, portanto, determinado de alguma forma? Sim, todavia
esse rasgo de esperança é esfacelado, pois o sujeito aparece no discurso apenas enquanto
significante; logo, enquanto ausência — para se representar, a subjetividade deve desaparecer. A
linguagem, assim, assinala ao mesmo tempo o nascimento e a morte do sujeito. Colocado dessa
forma, o sujeito não sabe o que diz, até porque não sabe o que é (Lacan, 1978: 286) 4. Sim, como
saber, se é inconsciente? É um nada.
Com todos os riscos que uma transposição comporta, acreditamos que tal cisão seja
comparável a uma separação, por exemplo, entre o ego e o "eu-aqui-agora"5. O problema está na
condição intransponível da cisão, pois, se a ênfase permanece na separação e não na integração,
ficamos impossibilitados de conceber uma noção tão trivial quanto a de pessoa. Talvez o ego e o
"eu-aqui-agora" sejam produtos de mecanismos cerebrais diferentes e separados, mas esquecer
que são integrados pode levar a uma completa fragmentação da personalidade. Assim, muitas
vezes, o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação podem ser o mesmo — não há dois
sujeitos, mas apenas um —, ainda que lingüisticamente os momentos estejam separados. Sem o
ego, o "eu-aqui-agora" seria pura sucessão, pura diferença; sem o "eu-aqui-agora", o ego não teria
estória nem estaria situado, encontrando-se dissolvido nas determinações do Id. Logo, sem a
integração, não há pessoa, não há identidade alguma.
A separação entre o ego e o "eu-aqui-agora" pode ser ilustrada pelo famoso personagem
sartriano da Náusea (2002), Roquentin, o qual, para alguns (MacIntyre, 1997), seria o protótipo
do indivíduo moderno. Para Roquentin, a existência reduziu-se a uma série de episódios sem
saída e sem unidade perceptível. Só tem o seu corpo, não podendo reter as lembranças, sendo
apenas um destroço sem memória. Existe na contingência, na gratuidade perfeita, em que nada
parece mais verdadeiro. É pura sucessão e pura efemeridade. Pode-se traduzir a separação
psíquica que acomete o protagonista numa linguagem psicossocial: Roquentin sofre porque nele
4 A frase, na verdade, é esta: "le sujet ne sait pas ce qu' il dit, et pour les meilleures raisons, parce qu' il ne sait pas ce qu' il est". 5 Como o ato individual de utilização da língua envolve a ação e o contexto comunicativo em que o falante está inserido, o "eu" que está envolvido no ato encontra-se fincado no espaço e no tempo do contexto, no aqui e no agora.
42
se instaurou uma separação entre o ego e os papéis sociais. Não consegue situar-se ou fixar-se na
ordem estável de um mundo ordenado e normativo. Seu destino é ser tratado por um lacaniano.
Enfim, se a psicanálise deu passos importantes no estudo dos processos de identificação,
por outro lado brecou o seu entendimento quando patrocinou a dissolução do ego. Contudo,
acreditamos que psicanalistas, como Erikson (1966), deram uma contribuição ao estudo da
identidade quando abrandaram o peso analítico do conceito freudiano de inconsciente. Tal fato
ocorreu, por exemplo, quando construiu a noção de "crise de identidade cultural" a partir do
exame das peripécias identitárias de Jim, um jovem Sioux, cujos problemas de identificação eram
produto de uma socialização secundária num meio cultural diferente do seu de origem. Erikson
elabora uma noção de identificação com um mínimo de continuidade e unidade, bem como
ameniza o papel do inconsciente do tipo freudiano. Assim, a identificação
surge da rejeição seletiva e da assimilação mútua das identificações da
infância, assim como de sua absorção numa nova configuração que, por sua
vez, depende do processo graças ao qual uma sociedade (freqüentemente por
intermédio de segmentos sociais) identifica o jovem indivíduo, reconhecendo-o
como alguém que se tornou o que ele é e que, sendo o que é, seria considerado
como aceito (tradução nossa.- Erikson, 1966: 167).
Haveria, pelo que interpretamos, uma consciência do indivíduo de sua singularidade
enquanto pessoa, mesmo entrando em diversos processos de identificação. O papel do
inconsciente seria inscrito, principalmente, na necessidade do indivíduo de estabelecer uma
unidade na sua trajetória de vida, apesar dos diversos papéis sociais assumidos e da
descontinuidade temporal. Haveria, também, um movimento consciente e inconsciente, por parte
do indivíduo, de aceitar os valores culturais e, conseqüentemente, os modelos de conduta do
grupo ou da sociedade. Assim, permanece uma continuidade no processo de identificação que
conecta o indivíduo ao grupo na formação da identidade.
Parece-nos que a identidade é percebida como um produto do processo de identificação.
Porém, Erikson aparenta defender uma identidade ideal ajustada aos valores do grupo ou da
sociedade, já que se refere a processos de identificação negativos e pos itivos: os negativos seriam
do tipo que o jovem Sioux sofreu, e geram uma "crise de identidade cultural"; já os positivos
43
ocorreriam quando a assimilação do indivíduo pela sociedade ou pelo grupo acontecesse de
forma plena. O resultado saudável da assimilação seria uma identidade sem crise. Ora, parece
que, depois da aceitação do indivíduo pelo grupo, o processo de identificação ter-se- ia, enfim,
consolidado. No fundo, a identidade sem crise seria uma identificação baseada na aceitação e na
assimilação dos valores consensuais do grupo ou da sociedade. Seria uma identidade baseada no
conformismo cultural — não havendo conformismo... crise!
Embora respeitemos o aporte psicanalítico, acreditamos que a psicologia social de
tendência interacionista avança mais na discussão sobre a identidade. Estamos convencidos de
que a passagem de uma psicologia individual para uma psicologia social, na questão da
identidade, necessita do conceito de socialização. Seria através desse conceito que o abismo entre
a esfera individual e a social poderia ser diminuído. Um conceito-ponte, então? Sim, mas que
pode ir mais além: o conceito de socialização pode implicar que não há indivíduo isolado na
sociedade, existindo apenas indivíduos socializados — toda identidade seria "social", embora o
sujeito não se esgotasse no contexto. Neste caso, não haveria uma separação, apenas uma
distinção entre a esfera individual e a social, entre o "interno" e o "externo". A socialização
implicaria, assim, dois momentos: 1) uma interiorização nem sempre estável, contínua e pacífica
de valores e representações dados pela cultura; 2) uma exteriorização produzida pelo indivíduo,
muitas vezes idiossincrática, da interiorização durante sua trajetória de vida. Tais momentos, que
implicam necessariamente uma teoria das interações sociais e do aprendizado, resguardariam
numa mesma unidade tanto o "indivíduo" como a "sociedade". Socialização implicaria, enfim,
intersubjetividade.
Teria sido George Herbert Mead (1963) o primeiro a afirmar teoricamente o papel da
socialização na construção da identidade. De certa forma, Mead seria um dos responsáveis pela
reviravolta pragmática do pensamento sobre a identidade. Podemos deduzir de suas posições as
seguintes premissas:
Ø a linguagem precede o pensamento 6 e implica interação;
6 Discussão ainda controversa se levarmos em conta alguns aportes teóricos de Piaget, quando do seu estudo, por exemplo, sobre o pensamento e a linguagem do ponto de vista genético, a saber: "a linguagem só é uma forma particular da função simbólica, e como o símbolo individual é, certamente,
44
Ø logo, a relação com o outro precede a relação a si mesmo e a relação entre
o sujeito e o objeto;
Ø assim, intersubjetividade, mediada pela linguagem, precede a
subjetividade, isto é, a consciência de si e a consciência objetal;
Ø a dimensão interativa é mais fundamental do que a cognitiva.
Dessa forma, a identidade seria necessariamente social e "construída". Apesar de
"construída", a formação da identidade não é calcada num modelo intencional, embora exista um
papel para a escolha na teoria de Mead. E, existindo escolha, há alguma margem para a liberdade
da pessoa. A identidade é "construída" no sentido de que o processo de identificação não é apenas
um desdobramento mecânico da gênese da identidade. Há fases, mas que não são garantidas a
priori, e a cons trução depende das vicissitudes da trajetória do indivíduo durante sua existência
socializada numa determinada sociedade. Tal construção seria balizada pela interação e pela
comunicação sociais — Mead, desse ponto de vista, é o pai do interacionismo simbólico.
Para entender-se melhor a posição de Mead, sugerimos fazer uma aproximação deste com
Weber7. Todos os dois, por exemplo, consideram a ação social como fundamental para entender
os sistemas de interação e comunicação sociais. E todos os dois consideram a ação social uma
ação que "orienta-se pelo comportamento de outros" (Weber, 2000: 13). Além disso, podemos
perceber ainda outros elementos "weberianos" em Mead. Expliquemos: pode-se deduzir do
aporte weberiano duas formas de socialização, a societária e a comunitária. A societária,
predominante no capitalismo e característica da formação de classes sociais, implica uma
interação social baseada numa ação racional, normalmente do tipo instrumental, que envolve a
defesa de "interesses", principalmente econômicos, na esfera do trabalho ou do mercado. Tal
socialização é de base voluntária, abrangendo um sistema de escolhas dentro do qual pode
movimentar-se o agente racional. A socialização comunitária ou estatutária, predominante nas
sociedades tradicionais e característica da formação dos grupos de status, seria muito mais
impositiva e "inconsciente", exigindo a mobilização de "modelos culturais". O agente não
mais simples que o signo coletivo, conclui-se que o pensamento precede a linguagem e que esta se limita a transformá-lo, profundamente, ajudando-o a atingir suas formas de equilíbrio através de uma esquematização mais desenvolvida e de uma abstração mais móvel" (1982: 86). 7 Seguimos, aqui, o estudo de Dubar (1991).
45
"escolhe" o modelo cultural, mesmo que, na sua ação com outros agentes, estruture e reproduza o
modelo — a ênfase recai na construção da identidade do agente via a socialização comunitária.
Mead coloca a "ação comunicativa", para usar uma expressão de Habermas, como
fundamento da socialização, isto é, coloca a socialização comunitária como leitmotiv da sua
teoria da socialização. Estamos, aqui, na esfera do sentido, logo da identidade (Castells. 2000: 23)
Como o resultado do processo de identificação, para Mead, depende de formas institucionais e
funções sociais, estamos diante de papéis sociais; portanto, de uma socialização societária.
Segundo Castells:
papéis (por exemplo, ser trabalhador, mãe, vizinho, militante socialista,
jogador de basquete, freqüentador de uma determinada igreja e fumante, ao
mesmo tempo) são definidos por normas estruturadas pelas instituições e
organizações da sociedade. A importância relativa desses papéis no ato de
influenciar o comportamento das pessoas depende de negociações e acordos
entre os indivíduos e essas instituições e organizações(2000: 23).
Ora, os papéis sociais implicam uma racionalidade, negociações entre atores individuais e
coletivos, um sistema de escolhas e, por fim, "interesses".
Não é à toa que o processo de identificação em Mead enfatiza "fases" sucessivas de
individuação, da criança ao adulto, em que cada vez mais a socialização societária é importante,
isto é, no final do processo o indivíduo estará apto a cumprir ou "representar" um ou vários
papéis sociais na sociedade. Contudo, mesmo havendo um momento societário na socialização,
seria a socialização comunitária que dominaria todo o processo. Haveria os dois momentos, sem
dúvida, mas o agir comunicativo teria a última palavra. O sentido sobredeterminaria a função,
mesmo que esta, numa determinada sociedade, fosse mais valorizada. Podemos aplicar, assim,
esse modelo de socialização para os processos de identificação na Modernidade, afirmando que,
mesmo se a socialização comunitária continua fundamental, o caminho da identidade moderna
iria do sentido à função, da predominância comunitária à societária, da "cultura" à razão
instrumental, do inconsciente ao consciente, do desejo ao interesse. Daí, provavelmente, a reação
identitária à crise de sentido no mundo moderno, onde o societário predomina e a identidade está
subsumida nos papéis sociais.
46
Mead, ao pensar a ação social em relação ao outro, enfatizando na formação da
identificação uma socialização baseada em processos de interação social, implementa uma
reconciliação
da sociologia weberiana com a psicologia comportamentalista na condição de
definir o comportamento (social) como uma reação significativa ao gesto de
um outro. Ela permite a Mead de desenvolver uma análise minuciosa da
socialização como construção progressiva da comunicação de Si enquanto
membro de uma comunidade, participando ativamente na sua existência e,
portanto, na sua mudança (Dubar, 1991: 96, tradução nossa).
Ou ainda, utilizando um paradigma que se funda na dualidade entre sociedade e
comunidade: a sociedade não pode formar-se sem respeitar as fontes de sentido enraizadas na
comunidade. Tais sentidos são utilizados na ação coordenada de indivíduos racionais e
socializados na produção de suas vidas. No processo de socialização, os indivíduos reproduzem a
comunidade criando a sociedade (1991: 98).
Contudo, Mead não percebe completamente que a socialização societária, através do
processo de individuação, criou uma assimetria entre o ego e os papéis sociais. Ele parece
perceber apenas o momento de correspondência e não o de separação. O movimento de
socialização, principalmente na Contemp oraneidade, não esgota o processo de identificação, pois
o sujeito não se exaure na sua identidade. No limite, poder-se-ia imaginar comunidades de forte
solidariedade mecânica onde a socialização se confundisse com os processos de identificação.
Não haveria, nesse caso, uma assimetria entre identidade e papel social ou entre sentido e função.
Bem diferente, no entanto, seria imaginar a mesma situação na sociedade moderna. A
solidariedade orgânica e a individuação levaram a uma relativa separação entre os dois momentos
da constituição do indivíduo: a pessoa e o self, o ser social e o "eu" que toma consciência de sua
existência enquanto indivíduo, o ego e o super-ego e, enfim, entre o I e o Me da divisão clássica
de Mead.
Novamente, repetimos: há assimetria, mas também integração. Há correspondência, sem
dúvida, entre a formação do self — esta unidade interior, entendida como nossa individualidade,
e com a qual nos identificamos — e a pessoa — subjetividade concreta e social, publicamente
47
visível e atuante. Mas deve-se alertar que, na estruturação moderna da personalidade, a
correspondência sempre é problemática e nunca evidente. Os psicanalistas, assim, têm razão ao
ressaltar a separação entre a socialização e a formação do ego; mas Mead e Ron Harré (1993)
também têm razão quando afirmam o contrário, isto é, a integração entre os dois momentos. É
provável que a constituição da personalidade moderna seja um processo que aproxima o ego da
socialização sem jamais integrá-los completamente, produzindo uma assimetria que é a base
objetiva ora para a dissociação entre a individualidade e a subjetividade, ora para a relativa
autonomia do sujeito. Por isso, a formação da personalidade moderna é frágil e sujeita, mais do
nunca, a processos dissociativos, podendo apresentar como resultado tanto um Roquentin — um
ente fragmentado diante do fluxo ininterrupto das coisas —, como um indivíduo socializado, um
ser com um mínimo de autonomia diante do contexto em que está situado.
Pode-se especular que, no indivíduo moderno, a interiorização não seja mais sinônimo de
internalização. O indivíduo interioriza os papéis sociais, mas, muitas vezes, não os internaliza,
isto é, não os torna parte integrante de seu mundo interior. Através da interiorização, a pessoa
incorpora seus papéis no mundo, mas seria apenas por intermédio da internalização que haveria a
transformação do papel em vivência ou sentido — as relações inter-subjetivas que caracterizam o
papel social não se tornariam completamente relações intra-subjetivas. Quando se diz "eu sou
médico", o papel social torna -se vocação; a função, sentido. O papel profissional integra-se,
assim, ao núcleo identitário da pessoa. Contudo, quando o fato de ser médico não representa uma
propensão e sim, apenas, uma habilitação para exercer uma at ividade, o papel social é
interiorizado, mas a internalização não se realiza integralmente. Neste caso, o papel é confundido
com mise-en-scène e representação, e a função domina o sentido8.
Não é de estranhar, desse modo, que diversos autores tenham colocado todo o peso da
formação dos papéis sociais na construção de identidades. A inspiração é americana, e não causa
surpresa; afinal, a sociedade ianque seria a cultura mais "societária" do planeta. O papel social foi
apropriado, via funcionalismo, pelo seu aspecto funcional, gerando inclusive uma sociologia das
profissões. Já Goffman (1973), por exemplo, tentou "des- funcionalizar" o papel social. O
8 A crise vocacional no mundo profissional e no do trabalho possui alguma relação com o problema descrito acima.
48
funcionalismo fez do papel social uma camisa-de-força para o indivíduo. A capacidade de ação
do sujeito estava subsumida à função e à formação do consenso social. A ênfase recaiu
totalmente no aspecto normativo e institucional do papel. A identidade seria uma derivação
funcional do papel social. Goffman, ao contrário, recuperou a agência do sujeito, mostrando que
há uma negociação entre o indivíduo e o papel social. Tal negociação expressa-se numa clivagem
entre uma identidade real e uma virtual — novamente, percebemos a repetição do velho tema,
apenas apropriado de forma diferente, da separação entre o ego e a socialização. O papel social é
dado, mas estaria inscrito, principalmente numa sociedade democrática e pluralista como a
americana, numa estrutura social de escolhas e preferências, permitindo uma margem de
liberdade ao indivíduo. Há, desse modo, várias modalidades de adesão a um papel, desde aquela
na qual o agente define-se pelo papel ("eu sou médico", por exemplo) até aquela situação em que
o agente percebe o papel social como uma atividade ou um status entre outros.
Nesse sentido, Goffman produziu uma espécie de fenomenologia da adesão, realçando a
sua visibilidade social, o que chamou de "face". O indivíduo adere a um papel social e evita,
mantendo a "face", desviar-se da conduta esperada pela sociedade. Tais expectativas tendem,
caso haja um consenso social a respeito, a se institucionalizar, normatizando o papel social em
termos de conduta ideal. Aderir a normas adequando o comportamento às expectativas públicas
implica uma conduta parecida com a de um ator de teatro: conformar-se a um roteiro exige uma
representação, isto é, uma mise-en-scène respeitando a liturgia e os rituais da performance teatral.
O mundo seria, assim, um teatro. Como um ator, o indivíduo tem a capacidade de se ver atuando
quando assume um papel social, o que acarreta uma clivagem ent re a identidade real do indivíduo
— ponto de partida pelo qual o ator percebe-se atuando — e sua identidade virtual — conjunto de
comportamentos que moldam o papel do ator. Mas, aqui, cria -se um problema curioso: se a
identidade virtual foi estudada com profundidade por Goffman, o que dizer da identidade real? O
que é ela, afinal? Um núcleo profundo ocultado pela conduta teatral do indivíduo? A parte
autêntica da personalidade? Postular uma identidade virtual implica logicamente uma realidade
essencial guardada nas entranhas da alma do sujeito? Embora não aprofunde a natureza da
identidade real, talvez Goffman defenda uma dualidade estrutural nos processos de identificação
proveniente da própria disposição das interações sociais.
49
Pode-se criticar Goffman por ter concebido atores sem sistema, enquanto a posição
funcionalista, qual um espelho invertido, teria imaginado um sistema sem atores. Um pensador
que talvez supere esse problema seja Simmel (1999). Seu conceito de "forma" é muito parecido
com o de "esquema" ou de "modelo" de Goffman. Para entender uma forma de socialização, por
exemplo, é necessário compreendê- la como um forma enquadrada, submetida a determinados
padrões, normativos ou não, de comportamento, colocando em movimento orientações recíprocas
particulares. Simmel vai enfatizar tanto o papel das competências ou das capacidades cognitivas
dos indivíduos, quanto a função de disposições e de sentimentos psicossociais na viabilização da
vida social. Vai insistir muito, inclusive, justamente nessas últimas categorias (vistas como
categorias afetivas) e na forma pela qual a afetividade e as emoções tornam as relações sociais
possíveis.
Podemos inferir que, nas formas de socialização, os momentos do pensar, do agir e do
sentir devem ser abordados de uma maneira processual e unificada, rompendo com um tipo de
pensamento que os separa. Os três momentos não seriam, no caso, instâncias separadas e
independentes correlacionadas apenas do ponto de vista de suas articulações — a relação entre
esferas separadas ocorre apenas através das articulações entre suas fronteiras. Haveria, assim, a
possibilidade de compreender melhor as relações entre ação-emoção-cognição e os processos de
identificação. A socialização não seria mais baseada na separação e na articulação de instâncias
(pensar, agir e sentir), e sim no postulado de que tais instâncias estão intimamente imbricadas.
Estaria implícita aqui uma relação de consubstancialidade entre o pensar, o agir e o sentir, isto é,
os três fenômenos seriam vistos como momentos de uma unidade: a identidade (Barbier e
Galatanu: 1998).
Contudo, ao contrário de Goffman, Simmel pôde perceber mais nitidamente, através da
teoria das formas, a atuação dos agentes na formação do sistema social. As formas de
socialização são o resultado das ações entre indivíduos, mas têm a característica de poderem
desenvolver-se independentemente dos objetivos dos indivíduos; há, portanto, uma autonomia da
forma, resultado da atividade socializante das pessoas, sendo assim uma espécie de unidade
objetiva de subjetividades que está a meio caminho entre as individualidades e as formas mais
objetivas do tecido social.
50
Assim, como podemos perceber ao longo da análise, a identidade parece sofrer de uma
dualidade justamente porque o processo de identificação ocorre num mundo onde a individuação
possui uma dissimetria em relação à subjetivação. Se o indivíduo constrói sua identidade a partir
da socialização, o processo de identificação que formata sua "consciência de si" teria
necessariamente dois momentos: a primeira em relação a si mesmo e segunda em relação ao
outro. Os dois momentos seriam inseparáveis, mas seriam diacrônicos e... problemáticos: só
posso saber quem sou a partir do olhar e do reconhecimento do Outro, mas como obter seu
reconhecimento, fundamental para a consciência de mim mesmo, se sua experiência do mundo e
de mim mesmo não pode ser vivida por mim, e sim apenas a mim comunicada numa interação
social? Como garantir de vez a coincidência dos dois momentos? A resposta mais plausível seria
que jamais será garantida a coincidência entre a identidade atribuída ou real (para si) e a
identidade recebida ou virtual (para o outro). Se a identidade é socializada, isso significa que o
mundo interior de uma pessoa ou sua intimidade é também social; mas, o inverso também pode
ser verdadeiro: o valor mais social e público pode tornar-se parte ou um fantasma do mundo
interior de uma pessoa. O privado torna-se público, e o público, privado; o subjetivo torna -se
objetivo, o objetivo, subjetivo ou ainda, numa outra linguagem:
"essa inversão fazendo o ' mais íntimo' o 'mais social' não suprime a divisão de
si como realidade originária da identidade: ela o instala no próprio social,
abordando-o através da expressão individual dos "mundos subjetivos" que são
ao mesmo tempo "mundos vividos" e "mundos expressados", logo passível de
serem apreendidos empiricamente" (Dubar, 1991: 112, tradução nossa).
A dualidade, principalmente aquela fundada na distinção entre indivíduo e sociedade,
pode ser um bom ponto de partida; mas, se a identidade é socializada, parte-se do princípio de
que a dualidade é fundada numa semelhança de origem e estrutura — uma homologia — entre o
indivíduo e a sociedade. A homologia pode até ser um fato indiscutível, mas não impede o risco
de se transformar a dualidade em dualismo, isto é, numa separação intransponível entre
indivíduo e sociedade. O esforço de uma visão interdisciplinar da identidade seria no sentido de
impedir justamente a transformação da dualidade num dualismo — a eterna tentativa de se fundar
uma Psicologia Social é também uma forma de se resolver o mal-estar causado pela separação
entre indivíduo e sociedade.
51
Podemos, enfim, chegar a uma definição sociológica da identidade: seria uma articulação
que engloba uma transação interna ao indivíduo ele mesmo e uma transação externa entre o
indivíduo, os agregados sociais (grupo, classe, grupos de status, profissões...) e o meio cultural
(valores, representações sociais, ideologia, imaginário...). A identidade, sendo socializada,
organiza componentes sociais e psicológicos no "interior" de uma estrutura afetiva e cognitiva
("pessoa") que permite ao indivíduo interpelar a si próprio e o mundo. Assim,
a identidade é o resultado ao mesmo tempo estável e provisório, individual e
coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural dos diversos processos de
socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as
instituições (Dubar, 1991: 111, tradução nossa).
A identidade possui, assim, o seu fundamento na intersubjetividade. Seria o resultado de
um processo dinâmico, cujo leitmotiv são as interações sociais, sendo multidimensional, mas
estruturada, e possuindo uma unidade diacrônica, justamente porque se baseia numa dualidade
constitutiva.
3. Transformações da Identidade
Mas por que então nós continuamos a sentir, apesar de a identidade ser uma "construção
social", uma unidade interior, irredutível ao Outro?
A resposta não é fácil. Numa hipótese "forte", a dualidade da identidade perpassaria toda
a história da humanidade, fazendo parte de nossa ontologia; contudo, iremos apostar, aqui, numa
hipótese "fraca", cuja defesa inclusive já esboçamos durante a argumentação, a saber: a dualidade
seria característica de nosso mundo, isto é, da Modernidade, em particular da
Contemporaneidade. Seria nossa ontologia de homens e mulheres modernos e contemporâneos. A
identidade seria socializada em qualquer época da história humana, é certo, mas sua expressão
dual seria histórica. A sensação de termos uma unidade interior ou algo transcendental anterior à
experiência — do tipo proposto por Kant ou mesmo uma essência que poderíamos chamar de
"Eu" — e de sermos, ao mesmo tempo, indivíduos separados da sociedade, isto é, de sermos
indivíduos-mônadas seria uma modalidade histórica de identidade.
52
Ora, se toda a discussão acima está correta, vale a pena insistir ainda em algumas
conseqüências para o nosso fórum íntimo. Assim, se a identidade é baseada na intersubjetividade,
a "pessoa" é necessariamente "pública", até porque uma suposta essência interior, irredutível ao
mundo "externo", não poderia ser apreendida empiricamente. Nós aparecemos, em toda e
qualquer época, sempre de forma pública. Não há "substância mental", "unidade interior" ou do
"espírito", o que existe definitivamente são "pessoas". Nossa unidade não ocorre porque existe
alguma entidade interna, cujos conteúdos seriam suas únicas propriedades. O que temos "dentro"
de nós seria uma síntese de fragmentos de pensamentos, de sensações e percepções. Se existe
alguma unidade, ela seria menos uma coisa do que uma narrativa, isto é, uma história. Somos
uma estória na qual somos nós mesmos o sujeito. O pronome "eu" é a marca da trajetória do
indivíduo, o martelar constante das suas narrações de sujeito comunicativo e falante. O
pensamento reflexivo parece ser o aprofundamento de uma necessidade adaptativa primordial de
contar e recontar histórias. A identidade estaria, aqui, completamente dessubstanciada,
socializada e historizada.
O self — ou esse tipo de autoconsciência que é, ao mesmo tempo, uma intuição de que
nós temos uma unidade interior irredutível às interações sociais — foi um produto histórico que
surgiu em determinadas condições e não em outras. A individuação, amálgama de todos esses
eventos que conduziram ao self, surgiu a partir de condições bem determinadas, não sendo um
fato natural da antropologia humana. O eu puro
constitui a expressão de uma singular conformação histórica do indivíduo pela
rede de relações, por uma forma de convívio dotada de uma estrutura muito
específica (Elias, 1994: 32).
O eu puro é uma fabricação do individualismo, enquanto expressão histórica do processo
de individuação9. Nesse sentido, o tipo de autoconsciência sentida pelo homem moderno
9 Não se deve confundir o processo de individuação, explicado parcialmente pela divisão do trabalho social, com o surgimento do individualismo, que seria uma expressão histórica e particular do processo de individuação característico das sociedade ocidentais e européias. Individuação é a condição necessária, mas não suficiente, do individualismo. Pode-se imaginar sociedades nas quais o processo de individuação — influenciado, inclusive, pelo aprofundamento da divisão social do trabalho — seja bastante acentuado, mas que não ocasionou o surgimento de um individualismo moral, como o existente nas sociedades ocidentais (pensamos na China, na Índia e, de uma certa maneira, no Japão).
53
"corresponde à estrutura psicológica estabelecida em certos estágios de um processo
civilizador" (32). O self surgiu no bojo de privatizações de determinadas interações sociais, antes
públicas, agora reservadas ao fórum íntimo — a confissão seria um bom exemplo de privatização
de uma esfera agora tornada íntima. Tal privatização significou a necessidade histórica de se
organizar e de se valorizar a privacidade, gerando um modo singular de se organizar a
afetividade. Tal situação criou a condição moderna por excelência: a sensação de que temos uma
unidade interior apartada da "sociedade" e de que somos indivíduos isolados e independentes,
refletindo a radicalização de um processo de individuação.
A separação entre o indivíduo e a sociedade seria uma projeção histórica dessa especial
conformação psíquica. A necessidade funcional dos termos "indivíduo" e "sociedade" provém de
tal estruturação psicológica. E tal terminologia, digamos assim, está inscrita nas práticas
lingüísticas da sociedade moderna. Tanto "indivíduo" como "sociedade" são noções que surgem
historicamente e, portanto, não existiam enquanto tal em outras épocas e sociedades. Seu
surgimento possui uma afinidade eletiva com um determinado modo de vida, uma determinada
forma de socialização, uma determinada forma de produzir identificação... Estão relacionadas a
práticas que possuem uma história "gramatical" e que se materializam no uso dos pronomes
pessoais; práticas que incorporam sistemas de identidade. Tais práticas, juntas com outras,
conformam um "habitus":
esse habitus, a composição social dos indivíduos, como que constitui o solo de
que brotam as características pessoais mediante as quais um indivíduo difere
dos outros membros de sua sociedade (150).
Tal habitus varia, para Elias, segundo o balanço histórico entre a identidade-nós e a
identidade-eu.
A identidade-nós seria, do ponto de vista ontogenético, mais primeva e baseada numa
socialização que acontece em um meio social onde predominam a família, a aldeia e a tribo
(147). A identidade-eu, e seu crescente predomínio, estaria relacionada ao desenvolvimento e à
modernização social das sociedades modernas. Ao nosso ver, o domínio da identidade-eu seria
um evento histórico de grandes proporções e completamente singular do ponto de vista da
história da humanidade. Seria uma série de privatizações de ordem lingüística, afetiva e
54
axiológica ocorridas na identidade-nós, cujo processo esteve umbilicalmente relacionado ao
surgimento da noção de individualidade, isto é, do demiurgo das representações modernas: o
indivíduo autônomo.
Assim, na nossa civilização secular, o conceito de "pessoa" é identificado a um conceito
de si que seria portador de uma "unidade interior" ou "alma". Funcionamos por dentro de práticas
lingüísticas em que os outros nos situam e nós os situamos. Aprendemos a utilizar o pronome
"eu" dessa forma. Aprendemos a apreender a "pessoa" pública de forma privada. Aprendemos a
interiorizar e a internalizar uma representação da "pessoa" enquanto "unidade interior". A
dualidade de si, desse ponto de vista, seria um "reflexo" de uma exigência gramatical inscrita
historicamente em práticas lingüísticas e morais. O que aprendemos é uma representação
histórica de uma representação de si. Através da memória guardamos traços mnemônicos,
crenças, valores, sentimentos, etc., e tal memorização seria a base para exprimirmos e criarmos
uma unidade pessoal, colocando em prática uma representação de si.
Ora, tal representação não é algo que está oculto nas nossas entranhas, e sim uma
representação social. Ela é parte constitutiva da identidade moderna, isto é, da forma particular
e histórica pela qual os processos de identificação ocorrem na nossa civilização. Ela está inscrita
na linguagem, na história e na moralidade. O campo moral seria fundamental na formação da
identidade, em particular da representação moderna de si, pois as práticas morais, através das
representações sociais que as veiculam, estão inscritas em práticas lingüísticas que são
fundamentais para a formação da identidade. Os valores morais são traduzidos e internalizados
enquanto noções encharcadas de afeto, por isso são facilmente memorizáveis, aprendidos,
reproduzidos e tão impregnantes. Seria no campo moral, principalmente através da linguagem e
da comunicação social, que aconteceria a formatação de nosso particular e histórico “conceito de
si”. Tal representação (social) de si é o modo pelo qual percebemos este ser real: a pessoa
pública. Seria, assim, absolutamente moderno percebermos essa pessoa de forma privada, isto é,
como um indivíduo portador de uma "alma" irredutível ao mundo.
A representação (social) moderna de si é real, porque existe e tem uma eficácia na
formação de nossa realidade social, embora embace justamente a percepção da realidade da
pessoa pública. Mas, por causa disso, ela é produtora de uma gigantesca ilusão, isto é, da crença
55
de uma essência individual? Sinceramente, não sabemos. O que sabemos, isto sim, é que tal
representação (social) de si é o produto histórico de um novo tipo de subjetividade, calcada na
individualidade. Ela é a base de nossa autonomia enquanto sujeitos e de nossa independência
enquanto indivíduos. Talvez ela seja uma ficção realista, uma crença mobilizadora essencial à
nossa identidade, isto é, à nossa busca compulsiva de sentido — busca que "inventa" e "constrói"
as próprias premissas da... busca. Sendo uma ilusão ou não, boa parte do esforço do pensamento
moderno foi o de desconstruir e desmistificar a idéia de uma essência individual, descentrando a
identidade e o sujeito na modernidade.
O universo moral dos (pós) modernos e seus processos de identificação difer em
significativamente daqueles das civilizações anteriores. Talvez, a diferença maior resida nesse
conflito instransponível entre o indivíduo e a sociedade. O conflito existe pelo fato de a sociedade
"morar" no indivíduo; mas não apenas por isso: o problema é que, na Modernidade e,
principalmente, na Contemporaneidade, a moradia não é bem quista, principalmente quando entra
em contradição com o desejo individual de unidade e totalidade; um desejo que leva a perceber a
identidade não mais como dada e sim como "construída"; um desejo que implica uma rotina
menos traçada por um destino pré-determinado do que condicionada pelo sucesso.
A identidade tornou-se, na verdade, um artefato e implica uma completa humanização da
natureza humana. O que era dado pela vida, agora se está exigindo que seja construído —
situação muito mais estressante e produtora de psicopatologias. Uma construção sem tradição e
sem pontos de referência, na qual quem oferece sentido à vida seria o indivíduo solitário, sempre
em busca do sentid o perdido, para parodiar uma fórmula famosa. Contexto, sem dúvida, de
intensa liberdade, mas uma liberdade perigosa, como percebeu Nietzsche, até mesmo liberticida...
O indivíduo pós-moderno libertou-se do "nós", parecendo ter uma capacidade ilimitada de
escolhas e possuindo um imenso poder; contudo, apesar disso, vive num eterno pêndulo entre a
embriaguez e o terror. Ele parece estar "condenado à liberdade", bem mais do que pensava Sartre.
Tal condenação é, ao mesmo tempo, seu privilégio e seu exílio (Guillebaud, 1995). Sua política é
a da ambivalência: de liberdade em liberdade, de fundamentalismo em fundamentalismo. Não há
política de identidade que dê jeito. A base do sofrimento pós-moderno (sofrimento
essencialmente baseado no fracasso e na depressão) está na sua liberdade. Sofrimento e liberdade
são provenientes da mesma condição, e isso é o grande paradoxo. Parece que Marx estava sendo
56
intensamente pós-moderno quando diagnosticou: "o apelo para que abandonem as ilusões a
respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões"
(Marx: 46, 2001).
4. A identidade profissional
Reconhecer a pertinência da noção de identidade profissional significa admitir que o
campo profissional é capaz de produzir processos de identificação específicos de grupo durante a
socialização, principalmente aquela relacionada à formação profissional e à experiência
profissional (entrada no mercado de trabalho). Enquanto tal, a identidade profissional seria o
resultado das interações entre os indivíduos, os grupos e os contextos profissionais, realizando os
dois movimentos que percebemos na discussão geral sobre o conceito de identidade: uma
necessidade de se fazer reconhecer e outra de se reconhecer. A primeira necessidade tem um peso
todo especial, pois a identidade profissional não é pessoal e sim coletiva, inscrevendo-se em
representações e práticas que dependem, por sua vez, do contexto no qual estão inseridas e do
modo pelo qual são exercidas. Como toda identidade, teria cinco dimensões:
Ø é subjetivamente vivida e percebida pelos membros do grupo;
Ø é resultado da consciência de pertença ao grupo ? como tal, é a interiorização da
atribuição do grupo;
Ø define-se, inicialmente, através de um movimento em que a oposição e a diferença
em relação ao outro delimita o processo de identificação;
Ø pode ser apreendida via um conjunto de representações no qual se opõem traços
negativos e positivos;
Ø as atitudes e imagens exprimem-se de forma discursiva, revelando implícita ou
explicitamente um sistema de idéias ou visões de mundo.
A partir do que foi dito acima, acreditamos que todo processo de identificação possui uma
estrutura cognitiva vinculada ao pensamento representacional. Seria através deste último que o
indivíduo designa as modalidades de organização das representações que tem de si mesmo e das
que tem do grupo ao qual pertence. No caso da identidade profissional, o peso da representação é
considerável, pois todo processo de identificação exige um conhecimento, nem que seja um de si
mesmo; nesse sentido, o processo de identificação profissional é um ato cognitivo por excelência,
57
utilizando o saber prático e o saber formalizado, adquirido na formação profissional, para a sua
consolidação. Para que isso aconteça, é necessário que os indivíduos sintam-se reconhe cidos e
valorizados. O reconhecimento identitário é um processo cuja formação estrutura-se num espaço
de identificação, o qual está inseparável de outros espaços, incluindo os de legitimação dos
saberes e das competências associadas às identidades profissionais. Portanto, o espaço da
atividade profissional é o espaço de reconhecimento das identidades profissionais.
Diferentemente de outros espaços identitários, o profissional não pode impor um habitus
permanente, nem mesmo uma homogeneização das identidades. O que ocorre é o surgimento de
uma pluralidade de identidades, condicionada pelo pluralismo de papéis sociais (aqui, papéis
ocupacionais). A vinculação da identidade ao papel social é um imperativo categórico no espaço
identitário profissional. Diante de cada contexto e das mudanças constantes na situação de
trabalho, o indivíduo pode fazer uma escolha identitária, mudando de registro, adaptando o perfil,
configurando atitudes e motivações, segundo as transformações do campo profissional. Claro, a
velocidade de modificação dos processos de identificação é lenta, se compararmos à rapidez na
qual se processa as mudanças de papéis sociais, mas, o que queremos enfatizar aqui, seria
justamente que, no espaços identitário profissional, o papel social sobredetermina a identidade.
Para entender melhor essa questão, precisamos trazer à tona o pano de fundo de todo esse
debate: o crescimento exponencial da individuação na modernidade. Como já tocamos no assunto
anteriormente, podemos resumir o raciocínio:
Ø a divisão social do trabalho é a "base material" da individuação. Quanto mais
desenvolvida, mais singularizada será a individualidade. A singularidade do
sujeito vem acompanhada da explosão na quantidade de papéis sociais;
Ø com o desenvolvimento da individuação, ocorre um descentramento do sujeito em
relação às suas objetivações materiais e simbólicas;
Ø a identidade sofre um desmembramento na sua constituição: não há mais uma
homologia entre o campo do sentido ? a identidade propriamente dita ? e o
campo funcional ? a identidade enquanto papel social. O que eu sou não é mais
necessariamente o que eu faço;
58
Ø surge uma assimetria entre a socialização comunitária (campo da pertença) e entre
a socialização societária (campo da técnica, da racionalidade instrumental e dos
papéis sociais);
Ø o processo de constituição do ego não está mais conectado diretamente ao
processo de socialização;
Ø a identidade para si desconecta-se da identidade para o outro ? donde a profusão
de dualidades, dualismos e antinomias do pensamento moderno a respeito:
identidade virtual x identidade real (Goffman), sociedade x comunidade (Tönnies),
socialização comunitária x socialização societária (Weber), o I x o Me (Mead),
pessoa x identidade cultural (Erikson), mundo vivido x mundo sistêmico
(Habermas)...
numa sociedade baseada na solidariedade mecânica, o que existe é uma fusão (ou
pelo menos algo que se aproxima disso) entre comunidade e sociedade, entre
identidade e papel social, entre sentido e função, entre destino pessoal e trajetória
social ? a solidariedade orgânica desconecta o que antes era unificado: se antes
existia uma dualidade constitutiva na identidade humana, agora, o que existe é um
dualismo;
Ø a conexão entre o sentido e a função, entre a identidade para si e para o outro,
entre o íntimo e o manifesto, entre o privado e o público, entre a identidade
propriamente dita e o papel social torna -se menos um atributo dado pela
socialização do que uma "construção" socialmente encampada pelo sujeito. A
construção é um risco, pois pode acontecer ou não. A função pode ficar sem
sentido, e o sentido sem função. Pode acontecer o fracasso.
Num ambiente especializado como o espaço identitário profissional, é o papel social
(função) que subordina as interpelações simbólicas e de significação. Há um grande esforço de se
re-encantar a função, tornando-a significativa, ou seja, identitária. No mundo profissional, quem
garante o sentido do papel social da profissão é justamente a vocação. Ela faz a mediação entre a
identidade e o papel social no mundo profissional ? mediação de significação, principalmente.
Por isso, crise vocacional significa crise de sentido na profissão. No mundo moderno, há de
existir, entre o que sou e o que faço, uma solda, algo que amalgame tais esferas cada vez mais
dissimétricas. Contudo, aparentemente, as interpelações axiológicas do mundo vivido, para
59
utilizar uma linguagem habermasiana, não conseguem acompanhar a profusão de papéis sociais
do mundo sistêmico ? a comunidade não acompanha a sociedade. As interpelações societárias
não só esvaziam de sentido a socialização comunitária, mas também, e isso talvez seja o
fundamental, fazem transbordar a produção axiológica do mundo social. O pluralismo de valor
não dá conta da exuberância do pluralismo de funções sociais. A oferta de significânc ia não
corresponde à demanda funcional do sistema. Há pouco sentido para muita função.
Claro, tudo isso não se resume a uma diferença de quantidade entre o sentido e a função
? tal fato é apenas um dos seus aspectos, além disso pode-se questionar o porque desse
desnivelamento na modernidade capitalista. Provavelmente, o problema tenha uma relação com a
forma pela qual o trabalho é organizado pela economia no capitalismo: perda do controle da
produção por parte dos produtores; fragmentação ocupacional no mundo do trabalho;
relativização do poder de alocação do mercado, principalmente do mercado de trabalho, e outros
fatores estudados principalmente pela sociologia neomarxista. Ou ainda: talvez o problema não
tenha uma determinação tão direta da "infra-estrutura"; pode ser que o modo como se constitui o
sentido do trabalho ? no nosso caso, a vocação ? na modernidade tardia tenha se esgotado;
talvez a deriva individualista da vocação tenha criado contradições que a impedem de suprir de
sentido a esfera do trabalho 10.
De todo modo, o fato é que o espaço identitário profissional possui uma decalagem entre
identidade e papel social. Diante do pluralismo das funções, temos o pluralismo das formas
identitárias (Dubar, 1992), cujo desenvolvimento é transitório e relacionado ao contexto do
trabalho profissional. A permanência da forma identitária vai depender da estabilidade normativa
e funcional do espaço de identificação profissional ? vai depender também da vocação, que
"prende" e "segura" a forma identitária. Mas, mudando o contexto, mudam os papéis sociais e as
formas identitárias (ou o modo pelo qual o profissional interioriza ou representa o que faz com o
que julga ser). Dependendo das mudanças que porventura ocorram no espaço identitário
profissional, logo, no contexto no qual as formas estão inseridas, é inevitável que a estabilidade
das formas identitárias dependa também das dimensões significativas da atividade profissional,
10 Podemos notar em Freidson (1998) uma preocupação em revitalizar o profissionalismo não só em relação às críticas produzidas por uma sociologia desconstrucionista da profissão, mas também em relação a um fato bem real: a crise vocacional das profissões.
60
pois todo contexto profissional é um contexto de ação. Nesse sentido, podemos discriminar, ao
menos, três dimensões:
Ø a relação do profissional com a organização, as interações de trabalho, o sistema
de poder (normas e regras de conduta profissional ditadas pelo controle gerencial);
Ø a relação com o devir: balanço entre a situação concreta e atual vivenciadas no
presente pelo profissional e o seu projeto profissional ? entre a carreira real e a
carreira virtual ou desejada;
Ø a relação com as representações que o profissional utiliza para descrever seu
mundo na situação de trabalho, implicando a articulação entre os limites e os
desejos, obrigações e projetos pessoais.
Tais dimensões são sociais, logo, partilhadas pelo grupo. E, se o contexto de trabalho e as
dimensões da atividade profissional influenciam o espaço identitário, o mesmo podemos dizer da
conformação do grupo, pois este pode apresentar uma diferenciação sub stancial em vários níveis:
Ø nível institucional: as finalidades políticas que subentendem as práticas e as
representações profissionais;
Ø nível posicional: status, papéis e hierarquia funcional;
Ø nível interativo: os efeitos de grupo, as interações e os processos de comunicação e
de decisão;
Ø nível individual: os interesses, as motivações, as estratégias e as interpretações do
contexto.
Dada a transitoriedade das formas identitárias, além da sua dependência em relação à
estabilidade do espaço identitário profissional, consideramos que o conceito de habitus de
Bourdieu (1980) apresenta uma dificuldade em apreender as formas identitárias, embora seja
extremamente fecundo quando aplicado na discussão sobre identidade. Nesse sentido, para que
sua fecundidade permaneça e seja operacional, achamos necessário fazer algumas modificações,
61
seja no seu alcance conceitual, seja na sua relação com outro importante conceito de Bourdieu, o
de trajetória social11.
Bourdieu define habitus como
sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas
predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, enquanto
princípios geradores e organizadores de práticas e de representações (tradução
nossa - 1980: 88).
Embora possa-se perceber alguma dialética numa estrutura que estrutura, mas que pode
ser também estruturada, o peso todo recai no sistema de disposições, logo, nas estruturas
herdadas do passado. Pois as práticas são comandadas "pelas condições passadas de produção e
adaptadas de forma antecipada a suas exigências objetivas", assegurando com isso "a
correspondência entre a probabilidade a priori e a probabilidade ex post" (105). Mas não
devemos nos iludir com a "abertura" trazida pelas noções de correspondência (mais "leve", por
exemplo, do que a de determinação) e de probabilidade (logo, com alguma possibilidade
randômica), pois isso não impede que ocorra uma "correlação muito estreita entre as
probabilidades objetivas (por exemplo, as chances de acesso a esse ou aquele bem ou serviço) e
as esperanças subjetivas (as 'motivações' e as 'necessidades')" (90). De certa maneira, "correlação
muito estreita" é quase um eufemismo de uma "determinação de última instância". Não que essa
correspondência entre destino e esperança não exista; ao contrário, ela pode ser aplicada a
diversas situações sociais ? o que criticamos, na verdade, é o seu alcance heurístico,
principalmente em campos sociais com um mínimo de espaço de manobra como o profissional.
Sem dúvida, o habitus assegura "essa espécie de submissão imediata à ordem que leva a fazer da
necessidade uma virtude" (90)... ma non troppo. Por isso, acreditamos que o conceito de habitus
pode e deve ser aplicado em situações de alto enquadramento normativo, em situações sociais e
sociedades que envolvam algum tipo de solidariedade mecânica (comunidades não-modernas) ou
baseadas na tradição (fundamentalismo); pode e deve ser aplicado na procura de invariantes
culturais ou de modelos cognitivos de longo alcance (analisar o racismo, o anti-semitismo, as
11 Seguiremos aqui as posições de Dubar (1991).
62
relações de gênero...); contudo, em situações sociais onde há alguma liberdade de ação, onde a
estrutura de escolha é ampla, onde o enquadramento normativo é flexível, enfim, em diversas
condições sociais encontradas nas modernas democracias liberais, a aplicação do conceito de
habitus pode tornar-se uma camisa-de-força conceitual.
A noção de habitus tem uma história antiga (desde Aristóteles, passando por Santo
Agostinho), mas a base da conceituação de Bourdieu procede da tradição sociológica francesa,
em particular a inaugurada por Durkheim. O fundador da sociologia, ao falar de habitus, já dizia
que
há em cada um de nós um estado profundo no qual os outros derivam e
encontram sua unidade: é nele que o educador deve exercer uma ação
duradoura... é uma disposição geral do espírito e da vontade que faz perceber
as coisas sob uma luz determinada... em que o cristianismo consiste numa certa
atitude da alma, num certo habitus de nosso ser moral (In: Dubar, 1991: 65)12.
Entendemos que, nessa conceituação, a noção confunde-se a um processo de transmissão
cultural e de costumes. Apesar do conceito de Bourdieu ser herdeiro dessa visão, possui uma
vantagem: o habitus é uma interiorização ativa, redefinindo as relações entre formas sociais e
predisposições individuais. É o que Bourdieu vai chamar de "ativação do passivo". É uma
teorização mais dialética, embora fique ainda excessivamente presa à reprodução social. Mas há
ainda um espaço para um jogo entre vontade e determinação, afinal o habitus é o produto de uma
trajetória, e não de uma condição social. E, por causa disso, pode-se encontrar dois lados na sua
constituição: um objetivo, produto das condições objetivas (filho de camponês terá um habitus
camponês); um subjetivo, impregnação de outras interpelações (filho de camponês que foi pra
cidade grande virou operário e, depois, adquiriu habitus de classe média).
Embora o conceito de habitus tenha essa flexibilidade, integra num mesmo movimento
homogêneo duas lógicas que são diferentes e, como vimos na nossa discussão anterior,
assimétricas: não há uma integração dada e pacífica entre a identidade para si e a para o outro. O
habitus produz uma articulação problemática entre uma orientação estratégica (papel social e
12 Ver Durkheim (1969: 37)
63
mundo sistêmico) e uma posição relacional (situação num mundo de interações sociais),
resultante da conexão entre uma trajetória social e um sistema de ação. No espaço identitário
moderno há duas lógicas que discriminam a identidade social: a lógica estratégica e a relacional.
Posição e disposição não são homólogas. Isso significa que a trajetória social possui uma dupla
articulação: a primeira aparece na relação entre trajetória e sistema, pois o encontro entre uma
trajetória social e um dado sistema não significa necessariamente que o resultado será o
prolongamento da primeira (consolidação da identidade) e a reprodução do segundo ? o
resultado estará no campo da probabilidade e dependerá fundamentalmente do contexto. Nesse
esquema, trajetória não se subsume a uma posição objetiva, podendo ser considerada como um
recurso subjetivo ? o indivíduo, ao acionar sua trajetória para resolver um problema, faz um
balanço subjetivo de suas capacidades para enfrentar os desafios de um dado sistema de relações
sociais. A segunda articulação surge quando examinamos trajetória e estratégia de ação do
sujeito. Não há necessariamente uma harmonia entre o projeto (futuro da trajetória) e a trajetória
(passado cristalizado). O passado não determina mecanicamente o futuro. Mesmo o passado não
pode ser percebido objetivamente, dada as condições subjetivas do presente. Assim, uma
trajetória passada não corresponde necessariamente a uma estratégia presente (ou projeto13), cuja
direção aponta para um futuro ou para uma expectativa subjetivamente construída. Nesse sentido,
a identidade pode ser entendida como o encontro entre trajetórias socialmente condicionadas e
sistemas de ação socialmente estruturados ? ou numa linguagem menos estrutural: a identidade
social é o produto da história do sujeito e produtora de sua história futura.
O que criticamos, portanto, no conceito de habitus é a possibilidade de articular, na
modernidade, trajetória x sistema e trajetória x estratégia num mecanismo único e homogêneo.
Na verdade, criticamos a possibilidade de articular função e sentido, papel social e identidade,
sem que tal articulação não revele uma dissimetria no processo de identificação. Primeiro, não
podemos pensar a identidade sem imaginar o indivíduo inserido em algum sistema de ação. A
identidade social, nesse caso, sofre interpelações das instituições e das interações entre os
indivíduos. Tais interpelações criam o que Goffman (1975) chamou de etiquetagem. Segundo, há
o momento da interiorização ativa, por parte do indivíduo, dos valores e das normas. Não há
como pensar esse processo sem conhecer a trajetória social utilizada pelo indivíduo como recurso
13 Ver outra abordagem sobre projeto: Velho (1999: 13-39).
64
para construir sua identidade para si. Em suma, acreditamos que a interiorização dos modelos
normativos e a exteriorização das práticas não podem ser colocados num mecanismo único; ou
ainda: a dimensão biográfica, temporal e subjetiva (continuidade do sentimento de pertença e os
sentidos das trajetórias individuais) possui uma relação assimétrica e contraditória com a
dimensão interativa, espacial e objetiva (reconhecimento das posições estruturantes)14.
Assim, o habitus, re-configurado através do reconhecimento da dupla articulação da
trajetória social, pode ser aplicado no estudo da vocação, cujo núcleo identitário é mais estável e
permanente do que o das formas identitárias. Por exemplo: a vocação moderna, alicerçada no
individualismo democrático e liberal, é de fato um habitus. A vocação necessita de um conceito
que privilegie o eixo temporal, por isso a utilidade da noção de habitus ? como tal, envolve
representações que são independentes do contexto. Já as formas identitárias priorizam o eixo
espacial, estando sempre situadas, e envolvem representações dependentes do contexto. São
formas transitórias de identificação. Não são identidades estabelecidas; são produtos instáveis.
5. A questão da Vocação
a) Vocação e individualismo
No tópico anterior, já abordamos, ainda de forma inicial, a noção de vocação.
Argumentamos que a vocação faz uma mediação entre a identidade e o papel social no mundo
profissional. Aceitamos a hipótese de que sentido e função separam-se no desenvolvimento da
divisão social do trabalho e no processo de individuação e que, assim, a vocação teria a função de
recompor a unidade perdida. Recomposição esta que significaria a reconstituição constante do
sentido do trabalho, daí a sua importância identitária. Mas, essa argumentação ainda privilegia
demasiadamente o aspecto, digamos assim, funcional da vocação ? será que o exame de sua
história mostrará outras características que não sua suposta função no âmbito da esfera do
trabalho? Achamos que sim, principalmente ao analisarmos a conexão, pelo menos na
modernidade, entre vocação, igualitarismo e individualismo. Seria justamente a estruturação
histórica desse trio que está em crise no mundo contemporâneo, tornando a escolha vocacional
14 Giddens (1987) propõe, na sua teoria da estruturação, que esses dois momentos constituem uma dualidade fundadora do campo social.
65
um problema. Estruturação esta que possui uma raiz religiosa que definiu inicialmente o alcance
da vocação. Nesse sentido, a vocação estava relacionada, na origem, à ordem do sagrado, sendo
um apelo (beruf, em alemão; calling, em inglês) de uma transcendência. Aqui, o apelo divino é
igualitário e individual; igualitário, porque é uma inspiração que não respeita hierarquia social ?
o eleito pode ser qualquer um; individual, já que o apelo interpela a pessoa, sua singularidade e
seu fórum íntimo. Não é socialmente elitista, sendo uma espécie de eleição espiritual.
Randômica, pois não se sabe bem quais foram os desígnios divinos para a eleição ?
simplesmente cai, feito um relâmpago em dias de chuva. A eleição, todavia, não é lotérica, pois o
eleito não é um feliz sorteado, e sim um escolhido. A escolha vem do alto e de longe. É
transcendente e heteronômica, afinal, quando surge o apelo, chega sem avisar, impondo
mensagem e conduta. Não é uma escolha livre, muito pelo contrário, pois o apelo aporta de fora
pra dentro, transformando a pessoa à sua revelia, que muda sem desejar, sem mesmo saber...
(Schlanger, 1997: 18)
Mas, como ocorre a conexão entre vocação, igualitarismo e individualismo? O amalgama
do trio é a própria lógica religiosa, o cristianismo. A igualdade funda-se na relação igualitária que
todos têm diante de Deus ? embora extra-mundana, visto que a igualdade só será realmente
garantida no além, já se sinaliza a sua valorização. A valorização da individualidade funda-se na
crença de uma alma individual, trazendo inevitavelmente uma va lorização do indivíduo, já que
este possui no seu âmago o sagrado, a epifania do sopro divino. Por isso, a salvação não
acontecerá mais através da mediação de um "povo eleito", e sim de forma individual, por
intermédio da relação entre o indivíduo e Deus 15. As Confissões de Santo Agostinho seria a
síntese e a conseqüência dessa concepção. O Cristianismo seria, em tese, a raiz ? ou, pelo
menos, uma das raízes ? do igualitarismo e do individualismo hodiernos. Seria, assim, um tanto
inevitável que a vocação moderna bebesse desse manancial, embora a economia vocacional tenha
mudado bastante a partir do momento em que a vocação tornou-se laica e intra-mundana. Então,
a autonomia substituiu a heteronomia, fundando-se agora numa escolha livre, e o que se tornou
vital foi a própria vida, encarnada no trabalho e no papel social. Pode-se dizer que, a partir desse
momento, ocorreu uma democratização geral da vocação. Agora, não há mais propriamente
eleição, pois a vocação é uma questão de todos e para todos. É, literalmente, uma afirmação
15 Ver essa discussão de uma forma mais aprofundada em Dumont (1985).
66
individual: ? para me afirmar de maneira ativa, escolherei uma ocupação produtiva, uma
atividade pela qual nela me reconheço; escolherei por afinidade, por gosto, por vontade, por
conveniência íntima. Ora, em comparação com a vocação cristã, estamos diante de outra vocação,
de outro etos vocacional, não mais baseado numa eleição divina e sim numa realização de si.
A realização de si, isto é, a afirmação de um ego no mundo, impõe a questão da
felicidade. Não que o tema da felicidade não existisse; ao contrário, a felicidade existia, mas não
aqui, e sim lá na terra de Deus. A felicidade está agora aqui e ao alcance de todos ? essa é a
maior promessa do sujeito iluminista. A vocação é um caminho para a felicidade terrena, única
que verdadeiramente importa, já que o mundo não é mais perpassado pelo sagrado ? o mundo é
do próprio mundo, é laico. Ser feliz é, assim, um sintoma da realização egóica. A vocação torna-
se a busca pela felicidade, já que é o reencontro do indivíduo consigo mesmo. O que se
reencontra? A atividade e a potência que existem em todo sujeito. Ao realizá-las, o sujeito torna
concreta suas disposições inatas, exercitando suas aptidões. Garante-se a autenticidade, um valor
que será doravante procurado com obsessão. Realizando sua potência, o indivíduo patrocina a
realização dos possíveis através da suprema liberdade do sujeito: a escolha. Escolhendo, doma-se
o destino ? a vocação moderna é a vontade de controle do destino. Seria uma das respostas
possíveis para uma questão tipicamente identitária: o que fazer de mim e como viver? A resposta
é individual, embora não seja, pelo menos por enquanto, completamente intimista e privada ? o
romantismo tentará esse movimento de privatização da vocação, causando uma explosão de
angústia diante de tal responsabilidade e do medo do fracasso.
O ego torna-se o grande valor ? seu fundamento é a igualdade. A lógica igualitária
apenas se realiza completamente se e somente se o indivíduo é tomado como fundamento. Pode-
se imaginar a igualdade entre grupos (etnia, classe...), mas nada garante que, dentro do grupo,
exista igualdade. Se o ponto de partida é o indivíduo e se todos são iguais, garante-se não só a
igualdade entre grupos, mas também entre os indivíduos do grupo. Igualdade, assim, só pode ser
igualdade entre indivíduos. Sua garantia é a independência individual16. O desejo de se realizar,
desse modo, inscreve-se num novo sistema de permissões e de exigências, afirmado
16 Por isso, pensar absolutamente a igualdade torna-se logicamente um pensamento monadológico. Num regime de absoluta igualdade, a absoluta independência do indivíduo corresponde à absoluta independência das mônadas, como pensou Leibniz.
67
politicamente pelo individualismo liberal, que eclode no final do século XVIII. A projeção moral
dessas transformações aparece na idéia de que cada um tem o direito de levar sua vida como bem
lhe aprouver; o direito de cada um em ter uma existência que não seja estranha ao seu desejo e ao
seu gosto. Ora, para isso, a realização de si não pode fundar-se apenas na igualdade, mas precisa
também de valor caro para a modernidade, a liberdade. Na interpretação liberal (Schlanger,
1997), a vocação torna-se a liberdade de ser tudo o que podemos ser, desenvolvendo nossa
potencialidade. Volta-se o tema grego e aristotélico da enteléquia ? vocação torna-se a forma
que determina a transformação de um sujeito: realização de si, perfeição de si. A partir desse
momento, vocação toma o sentido de papel e projeto de vida: a necessidade de desenvolver uma
essência, guardada enquanto potência no coração da individualidade, que se realizará na trajetória
do sujeito ? a prova do sucesso dessa missão não será a eleição do indivíduo e sim a
manifestação concreta de sua felicidade.
A realização de si não pode ser consumada passivamente, por isso seu lugar por
excelência é a atividade. A vocação realiza-se no trabalho ? na atividade produtiva. Assim,
ocorre o seguinte fato moral: conecta-se, através da vocação, a ética ao trabalho ? a felicidade,
enquanto realização de si, conquista-se na atividade do trabalho. A produção de bens é conectada
à intimidade do indivíduo ? a vocação tem uma dupla face, relacionando o privado, esfera do
sentimento e do ego, à esfera pública do trabalho. Contudo, esse tipo de conexão moral dada pela
vocação não é monopólio da modernidade, possuindo sua origem no cristianismo (Weber, 1987),
pois quem a relacionou ao trabalho foi justamente Lutero e a Reforma Protestante. A noção de
vocação permite a Lutero transpor os valores ascéticos religiosos da esfera monástica à vida
mundana, passando-se da vida contemplativa à produtiva. Assim,
ao contrário da ascese monástica medieval, que significa uma fuga do mundo,
temos aqui uma ascese intramundana que direciona toda a força psicológica
dos prêmios religiosos para o estímulo do trabalho, segundo critérios de maior
desempenho e eficiência possíveis. O elemento ascético age como inibidor do
gozo dos frutos do trabalho, sendo o desempenho compreendido como atributo
da graça divina e um fim em si (Souza, 1999: 28)
68
Mas a visão luterana ainda é estática, pois vocação não significa transformação, e sim
conformação ao apelo, à situação determinada. Foi o calvinismo que dinamizou a vocação,
através da doutrina da predestinação, fixando no imaginário do protestante o imperativo de
realização, de sucesso, de procurar compulsivamente de algum sinal de eleição. Por causa do
ascetismo transposto ao mundo mundano, a procura do sucesso é distanciada ? não há bazófia
? e ditada pela responsabilidade. O risco é calculado, gerenciado e controlado. Sendo o êxito um
sinal divino, não há por que gozar e consumir o que foi realizado, muito menos transformar o
sucesso em fruição simbólica. A vocação não relaciona, aqui, o trabalho ao desejo pelo trabalho,
entre o que se é e o que se faz. Não é importante gostar da atividade, pois o investimento pessoal
no trabalho é um imperativo categórico que vem de cima, de uma conformação religiosa, e não
de dentro, de uma determinação egóica. Quando, enfim, soltou-se as amarras religiosas, não
havendo mais a necessidade de se separar o espiritual do psicológico, o investimento pessoal do
desejo, a procura pelo sucesso ficará incontida, sem o encanto do religioso. A partir de agora o
espiritual é a psique e as interpelações morais/religiosas têm conotações psicológicas. Mas essa
vocação que surge do desencantamento do mundo é uma degradação da vocação calvinista? Ao
contrário de Weber, pensamos que a vocação moderna não seja um empobrecimento da
calvinista, e sim uma re-configuração, uma renovação laica. A novidade estaria inscrita na junção
estabelecida entre pólos antes inconciliáveis: escolha e desejo, vontade e projeto, consciência e
natureza. Embora tenha sua origem na religião, a vocação moderna, enquanto longo processo
histórico de desenvolvimento, não se reduz à sua gênese. Ela é, de fato, uma inovação. A vocação
tornou-se, enfim, uma questão de identidade.
Na ética calvinista, o que importava era a aceitação do traba lho e não a transformação
deste em objeto de desejo. A vida era uma tarefa e não um empreendimento. Era o trabalho pelo
trabalho; agora, o conteúdo do labor é fundamental. A responsabilidade colocava o indivíduo
diante do Criador; agora, a pessoa é responsável de si mesma. Ela comanda seu destino, sendo
assim juiz de si própria. Agir, fazer, criar tornar-se-ão fundamentais. Não é mais o equilíbrio ?
fruir a experiência de um estado de ser ? e sim a dinâmica que conta e vale a pena. Se a raiz da
vocação moderna está inscrita na religião, seu modelo é a virtú renascentista. Modelo,
convenhamos, exigente e que produz o seguinte paradoxo: se a vocação moderna é democrática e
universal, ao mesmo tempo ela singulariza, pois, se o leitmotiv é a criação, pode-se imaginar que
muita gente não terá condições e mesmo aptidão a criar. Uma vocação baseada no modelo
69
renascentista, isto é, na atividade artística ou do cientista não contrariaria a sua pretensão
democrática? Afinal, seria apenas uma minoria que teria condições de realizar esse objetivo.
Parece que, curiosamente, a idéia igualitária e universalista da realização de si possui como
determinação uma vocação singular e restritiva, pelo menos no caso da ciência e da arte.
Tal paradoxo levará diversos autores a criticarem a vocação moderna, entre os quais,
Rousseau que será um dos críticos mais ferinos da escolha vocacional (Schlanger, 1997: 42).
Denunciará, assim, a ilusão de uma vocação universalista e democrática e, ao mesmo tempo,
excludente e elitista. Mostrará que o pano de fundo da escolha vocacional não é tão nobre como
alardeiam ? não é o talento, o dom que determina a escolha, e sim o desejo de ascensão social.
Rousseau possui simpatias pronunciadas pela tradição ética do estoicismo; por isso, pensa a
felicidade como um equilíbrio e um estado de ser, uma plenitude desconectada da ação e do
desejo. Ora, o imaginário da vocação vai de encontro a essa moral pela qual a anulação de si ou a
abolição do ser é que leva à felicidade. Como, dessa forma, não ser contra a vocação moderna? O
mito vocacional está alicerçado no desejo, cujo estatuto mudou consideravelmente na
modernidade. A realização plena de si é uma realização plural e constante de si ? mais
felicidade, mais gozo, mais tudo. No cerne da vocação moderna está embutida o desdobramento
"pós-moderno" do hedonismo. Rousseau desmistifica a ilusão de que a vocação consegue, através
da realização do talento ou do dom, resolver a contradição entre o sujeito e sua biografia, entre
sentido e função, entre identidade e papel, para utilizar nossa terminologia. Seguir um suposto
dom, geralmente, leva ao fracasso. Como evitar de se enganar a si mesmo? Como saber
realmente que esse suposto talento não é uma coisa passageira? Pensar que é possível escolher
livremente suas disposições e aptidões é um mito que pode levar à infelicidade e à desgraça, dirá
Rousseau.
Se Rousseau foi um crítico mordaz da vocação, existiram autores que fizeram dela uma
verdadeira apologia, a tal ponto, que a defesa radical da vocação moderna produziu uma crítica
da profissão. Para Fourier (Schlanger, 1997: 64), por exemplo, a profissão interrompe o contínuo
desabrochar das potencialidades humanas. Não há uma vocação, mas vocações, pois o espírito
humano é plural e diverso. A profissão fixa o que é flexível e rotativo, estabilizando justamente o
desejo e a realização de si. A partir da fixação profissional, não se pode mais experimentar tudo,
70
mudar tudo, pular de uma atividade para a outra17. O que está implícita nessa posição é a
passagem da defesa da igualdade social à igualdade cognitiva. Todos são iguais socialmente, mas
também cognitivamente ? todos podem contribuir para o desenvolvimento do conhecimento
humano. A sociedade precisa realizar esse dado natural da espécie humana. Por isso, Fourier será
contra a especialização e a divisão social do trabalho, pois limitadores da potencialidade humana.
De todo modo, a crítica ou a apologia da vocação são sintomas da consciência de um fato:
a questão de ser e a de fazer estavam, desde então, separadas e dissimétricas. A vocação seria
uma resposta eficaz a esse problema? Talvez não seja a única, mas foi e é a predominante. Ela
tenta juntar identidade (aqui, entendido como conjunto psicológico de traços, aptidão, gosto e
talento) e papel social (conjunto de interpelações sócio -econômicas); natureza e cultura: dom +
aprendizado; escolha e disposição: escolhi a medicina ou isso não podia ser de outra forma, já
que sou o que sou? A vocação junta duas formas de liberdade: a de escolha e da decisão
voluntária, e a de ser um ser e de realizar sua ontologia. Tenta respeitar, ao mesmo tempo, a
autonomia do sujeito e a independência do indivíduo. Enfim, amalgama preferência e talento,
envolvendo num equilíbrio geralmente frágil, democracia e elitismo. Tais junções, pelo menos
atualmente, são problemáticas. Pode-se argumentar, via economia política liberal, que a junção
entre preferência e talento será assegurada pelo mercado e não necessariamente pela vocação. Ou
ainda se fazer uma crítica dos sintomas: a vocação moderna fracassou, não oferecendo mais
sentido ao trabalho. A alienação do trabalho dos de baixo continua e se perpetua; o enfado dos de
cima aumenta e continua. A vocação não evitaria a reificação do talento: aptidão sem desejo,
competência sem prazer ? o mundo moderno descobriu estarrecido que satisfação pessoal pode
estar desvinculada do sucesso profissional (1997: 86). Nesse sentido, pode-se dizer que a
representação histórica moderna da vocação está virtualmente desaparecida. Desemprego,
miséria, flexibilidade no trabalho, reestruturação produtiva, tudo isso coloca em questão o sentido
vocacional. Contudo, a referência imaginária da vocação continua e sobrevive e, pelo menos
enquanto representação, guia as condutas das pessoas. Talvez, a profissão seja o único
depositário da vocação, embora o tema da crise vocacional na profissão seja recorrente, inclusive
com grande repercussão na mídia.
17 Vemos esse tema da polivalência humana, isto é, da capacidade de se "pular de uma atividade para a outroa" na utopia comunista do jovem Marx (2001).
71
Mas, vivenciamos realmente uma crise geral da vocação moderna? Como isso aconteceu?
Sem esgotar a questão, tentaremos discutir alguns lados do problema, principalmente esboçando
uma hipótese de que a vocação está em crise porque não consegue dar conta dos desafios que um
novo tipo de individualismo vem impondo ao mundo contemporâneo. O sistema vocacional
moderno esteve sempre imbricada a um tipo de individualismo que chamamos de "moderno" ?
o novo tipo de individualismo, referido acima, chamamos de "contemporâneo". Há um valor,
também formador do individualismo, que ilumina a formação da vocação moderna: a disciplina.
O seu nascimento representou o nascimento de um mundo onde o controle do corpo passa pelo
controle da "alma". Um mundo onde a tradição vai aos poucos perdendo sua força normativa,
dissolvendo-se no "desencanto do mundo". Um mundo comandado pela expansão de uma ética
baseada no individualismo. A Reforma trará o paradigma emocional da disciplina : conflito e
culpabilidade; o Espírito do Capitalismo, o indivíduo-empreendedor, a busca da felicidade na
competição e nos mercados. A moralidade vai afastando-se da emoção. A luta pela acumulação
de riquezas não entra mais em contradição com a ascese e o comportamento repressivo. A
economia liberta-se da moral. A rotina, ao perder de vista a tradição, torna-se vazia – o
hedonismo, aos poucos, vem preenchê- la. Mas a disciplina ainda guarda uma relação de
dependência com o mundo tradicional, pois ainda impõe limites à plena soberania do sujeito. A
repressão sexual e a obediência disciplinar respeitam a tradição ? como a tradição, a disciplina
vem de fora. A culpabilidade lembra sempre o vínculo com o passado, mesmo que já seja cada
vez mais por um processo neurótico; o conflito reflete um sintoma de ruptura com o passado, mas
apenas para reafirmá- lo de forma repe titiva. E, apesar do crescente hedonismo, o indivíduo-
soberano possui claros limites, navegando apenas entre o permitido e o proibido. A vocação
moderna, através da disciplina, ainda tem um pé na tradição...
Contudo, o crepúsculo da tradição vai-se anunciando ao longo da história da
modernidade. Já no final do séc. XIX, Nietzsche, com estardalhaço e algum desespero, anuncia a
vitória do indivíduo-soberano. Anuncia o individualismo contemporâneo. Um ser sem guia, cada
vez mais sem referências externas, julgando o mundo por si e de si mesmo. Um indivíduo , avant
la lettre, que não tem destino, faz o seu destino; que não percebe sentido no mundo, projeta seu
sentido. Uma pessoa sem Deus e sem Absoluto guiando sua vida; nada de Fora para lhe dizer o
que se deve ser e como deve se conduzir. Sua forma de estar-no-mundo passa pela exteriorização
da sua interioridade. Ele não é mais um ser, é um ente. O indivíduo-soberano encontra seu
72
momento de realização histórica na dita "Revolução de 68". A partir dessa explosão, a
individualidade transformar-se-á continuamente. A interioridade do indivíduo será menos regrada
pelo duo permissão-proibição do que pelo abismo entre o possível e o impossível ("é proibido
proibir" – lembrar sempre dessa palavra-chave da radicalização do individualismo). Os
comportamentos passam a ser balizados menos por uma obediência disciplinar do que pela
decisão e pela iniciativa pessoais. Tal radicalização da liberdade individual corre pari passu com
a instauração da sociedade de consumo. A pessoa não acumula tanto, não mais se reprime; ela
consome, exterioriza-se. Não age mais conformada a uma ordem externa; age utilizando seus
próprios recursos, suas competências e aptidões cognitivas. Ela está só, mas está "livre". Fabrica
projetos, procura motivações, pede comunicação. Não vai ter mais medo da culpa, pois ficará
apavorada com o fracasso. "68" significará o deslocamento normativo da culpa para a
responsabilidade. O indivíduo começará a sentir o peso da liberdade e da soberania da
individualidade. Estamos em plena radicalização da modernidade; estamos na "pós-
modernidade".
Pode-se resumir, enfatizando apenas alguns aspectos, tais transformações no imaginário
ocidental da seguinte forma:
Ø boa parte do imaginário identitário "pós-moderno" formou-se na educação de
massas. Educação voltada para o mercado de trabalho, a competição, a
qualificação profissional. A profissão é a aspiração de mobilidade social. Seria,
também, uma aspiração à autonomia e à independência individual. Encarna uma
sensibilidade igualitária baseada no mérito individual ? mas não existe aqui
contenção ética, pois estamos diante de uma vocação sem deontologia;
Ø a pedagogia formatou a radicalização do individualismo através principalmente da
valorização da concorrência.. Houve no imaginário social uma supervalorização
da competição. Um culto à performance (Ehrenberg, 1991). Torna-se uma
"obrigação" a visibilidade da subjetividade. Produz-se uma ode à visibilidade:
desde o acting-out até a visibilidade dos excluídos através da violência (torcidas
organizadas, gangues de bairro, tribos urbanas...). Num sistema competitivo
democrático, o indivíduo precisa mostrar-se, pois somente tornando transparente a
sua performance pode ser julgado. Na competição, o indivíduo encontra a justa
73
avaliação. Assim, a pedagogia da concorrência reverteu um antigo tabu: a
concorrência não é mais vista como antagônica à justiça. Os "velhos" sistemas de
solidariedade precisavam proteger o indivíduo dos efeitos perversos da
concorrência, pois pensava-se que era fonte de desigualdade; agora, a justiça é
produto da concorrência. Ocorre então um deslocamento da sensibilidade
igualitária: da solidariedade social para o egoísmo da justa concorrência, da
preocupação com o acesso dos mais fracos a uma vida digna para o modelo
esportivo do "vença o melhor". Paradoxalmente, mesmo num mundo cheio de
incertezas, o risco é valorizado e colocado como o preço da liberdade;
Ø o pano de fundo de toda essa nova situação: a fragmentação da existência. O
indivíduo depende apenas de si mesmo para vencer na vida. Sozinho, produz a
construção solitária de sua performance. Tenta a todo momento construir a si
mesmo. Agora, a identidade é uma construção individual, isto é, uma
responsabilidade do indivíduo. O destino é uma construção idiossincrát ica: não
tem raiz no passado, nem aponta para o futuro, firma-se no presente, no aqui e
agora. Estranha situação: a identidade é social, mas sua expressão histórica
aparece firmemente ancorada na crença de que sua formação depende apenas do
desdobrar da individualidade. Ocorre, assim, a desvalorização dos atores coletivos.
A busca da felicidade e de uma vida digna é uma tarefa que prescinde de ações
coletivas;
Ø valorização do sucesso. Novamente, outra quebra de tabu: o sucesso não é mais
visto com desconfiança. Não é mais percebido como uma ilusão, virou norma de
conduta. O sucesso é individual e prova de reconhecimento não mais de Deus,
como na Reforma Protestante, mas da sociedade. Seria o sinal mais evidente de
que a competição produziu justiça. Cria-se a ideologia do empreendedor, base
volitiva do sucesso. A busca da felicidade é um empreendimento. O acesso ao
empreendimento é universal. Só é preciso vontade. O "empreendedorismo" é a
mais nova forma de voluntarismo na contemporaneidade. Seria a filosofia de vida
de uma determinada classe média. A ênfase recai completamente na defesa da
independência do indivíduo;
74
Ø O indivíduo é responsável. Antigamente, admitia-se a responsabilidade, agora
exige-se. Todos devem-se comportar como indivíduos responsáveis. A
responsabilidade é um componente essencial da vocação profissional. Crise de
responsabilidade equivale a crise de sentido vocacional. Mas o fracasso, também,
é individual. Aos poucos, vai tornando-se um handicap, principalmente o fracasso
escolar e o profissional. De handicap a neurose, um pulo: a pedagogia transforma-
se também numa terapêutica do fracasso. A doença do fracasso é a doença da
responsabilidade. Ocorre o declínio do conflito no espaço da identidade
(Ehrenberg, 1998). A histeria, doença do conflito, desaparece de cena e quem
domina é a depressão, doença do fracasso;
Ø o consumismo torna-se uma moral da felicidade. Seria também uma forma de
exercitar a liberdade individual. A poupança deixa seu trono e o Espírito do
Capitalismo passa por uma reforma hedonista. Consumir significa também
exteriorizar-se, valorizar-se e tornar-se visível. O hedonismo é o novo princípio de
realidade. Vai modelar principalmente as expressões artísticas e de vanguarda. As
identidades não serão mais construídas obrigatoriamente via a repressão sexual. A
liberalidade sexual e as descobertas de novas formas identitárias sexuais estão
cada vez mais condicionando os processos de identificação. O que está havendo é
uma transformação da intimidade (Giddens, 1992);
Se a vocação moderna possui uma relação intrínseca com o individualismo moderno, qual
tipo de vocação corresponderá ao individualismo contemporâneo? Ou, simplesmente, estamos
assistindo ao fim da vocação tout court? Estaríamos, por outro lado, imersos numa fase de
transição na qual a vocação vem sofrendo transformações ainda um tanto imperceptíveis? Se a
disciplina esclarecia vários aspectos do individualismo e da vocação modernas, o hedonismo,
como um dos valores constituintes da "pós-modernidade", teria uma afinidade com que tipo de
vocação? O movimento de sentido na vocação é de dentro pra fora, da identidade para o papel
social, mas, se o que existe agora é o domínio cada vez maior do papel social, seja na sua
pluralidade, seja na sua funcionalidade, qual seria a repercussão disso tudo na vocação?
Esboçaremos algumas hipóteses, admitindo que seu lado especulativo não responde, de fato, as
questões formuladas:
75
• a vocação moderna está desaparecendo, inclusive enquanto representação
dominante da escolha profissional. Rousseau venceu: a escolha vocacional
é baseada menos numa ética do trabalho do que num desejo de ascensão
social;
• por enquanto, não há substituto concreto, daí a sensação de crise
vocacional, de crise de sentido;
• enquanto não estiver clara a redefinição dos sentidos do trabalho, não
haverá re-configuração dos sentidos da vocação;
não há ainda na conjuntura mediações entre individualismo contemporâneo, redefinição
dos sentidos do trabalho e a vocação. Nossa impressão, é a de que, independentemente de
qualquer juízo de valor, o novo individualismo prescinde de mecanismos vocacionais. Com isso,
a mediação entre identidade e papel social, na esfera do trabalho, precisa de outra modalidade
identitária, diferente daquela embutida na vocação moderna (o mercado?);
sem vocação, vemos se esvaziar, na profissão, a importância da deontologia. O bom
profissional será aquele que obteve algum sucesso que, enquanto tal, terá como critério o acesso
ao mercado de serviços ? não escolho, por exemplo, oftalmologia por algum critério vocacional,
mas sim porque esta disciplina tem uma resposta de mercado;
b) Vocação e profissão
Neste tópico, continuaremos a discussão sobre a vocação, tentando abordar as
características da vocação e suas relações com a profissão. Diversos autores enfatizaram o
aspecto vocacional da profissão. Desde Durkheim a Parsons, passando por Weber, a vocação
profissional tem uma importância capital. Diante de um mundo "desencantado", no qual a esfera
do sacro se subsome cada vez mais ao cálculo (Weber, 1959), a profissão é percebida como uma
fonte de valores moralizantes, civilizadores e restauradores de uma ética perdida. Dessa forma,
para Durkheim, "a profissão seria justamente um melhor cimento que a religião" (Paicheler,
1992:42). A vocação profissional absorve e integra os melhores elementos do "compromisso
religioso", entre os quais um aspecto fundamental: o seu caráter de missão. Tal palavra aparece,
76
inclusive, várias vezes nos escritos de Durkheim sobre a pedagogia, como quando, por exemplo,
refere-se ao poder de convicção do professor acadêmico:
o que reveste a autoridade da palavra do sacerdote é a alta idéia que ele possui
de sua missão; pois ele fala em nome de um deus no qual ele crê, em relação
ao qual ele se sente mais próximo do que a multidão dos profanos. O mestre
leigo pode e deve ter alguma coisa deste sentimento. Da mesma forma que o
sacerdote é o intérprete do seu deus, ele é o intérprete das grandes idéias
morais de seu tempo e de seu país (Durkheim, 1977: 68).
Parsons irá mais longe, tornando-se um verdadeiro advogado da profissão; assim,
afirmará a "ênfase sobre o caráter desinteressado e ético das profissões, e seu fundamento sobre
um saber técnico que lhes confere autoridade e responsabilidade sociais" (Paicheler, 1992:43).
Se bem que "desinteressado", o profissional não se furta a ter um relacionamento estreito com a
estrutura de poder. Consciente deste fato, Parsons utilizará, no verbete "profissões", escrito como
artigo para a "International Encyclopedia of the Social Sciences" (1968), a metáfora do
casamento para explicar as origens da profissão: "a origem básica do sistema profissional
moderno está no casamento do profissional acadêmico com certas categorias de homens
práticos". Ora, os "homens práticos" sofrem, nas suas "funções operacionais" — políticas e
econômicas, fundamentalmente —, a falta crônica de uma legitimidade ideológica difusa, do tipo
que assegurava a religião. A vocação profissional poderia, neste caso, fornecer legitimidade às
suas ações a partir de valores, inclusive mais eficientes do que aqueles representados pela
ideologia religiosa. Eliminando esse lado apologético, a vocação profissional pode ser vista como
um dos elementos mais gerais de um sistema ideológico que sustenta, principalmente, o
imaginário das classes médias no capitalismo desenvolvido. A vocação profissional poderia ser
entendida como um tipo novo de vocação — sem a antiga carga "sacra" — alicerçado na
necessidade do saber especializado na divisão social do trabalho, e legitimado por sua relação
com o conhecimento científico.
Desse modo, para os setores médios da sociedade e, principalmente, para a classe média
americana:
77
a cultura profissional serviu como contexto ao aparecimento de certos valores
que, depois, impregnaram a sociedade inteira: sucesso, determinação, auto-
estima, ambição. Enquanto atitude profissional, o apoio na ciência se fundaria
no controle de si, no respeito à universalidade das regras, na prova pela
experiência e na tradução de preceitos morais em verdades estabelecidas
(Paicheler, 1992:39)
Pode-se considerar a vocação como uma série de predisposições básicas, construídas
socialmente, relacionadas a uma profissão determinada, representando um conjunto de valores
que interpelariam e legitimariam a finalidade e a ação de tipo profissional. A vocação constitui,
via socialização profissional, um medium pelo qual o indivíduo interioriza os valores, as regras e
as normas da profissão, incorporando-os ao seu mundo interior e tornando-os "pessoais".
Mas, o que isso realmente significa para o indivíduo?
Ora, o modelo vocacional de matriz religiosa, ao ter como base a eleição, possuía uma
natureza carismática. Um indivíduo eleito, inspirado pela mensagem e pela missão divina, precisa
basear sua eleição no carisma. A vocação moderna já significa uma racionalização da matriz
religiosa, deslocando o encanto carismático para a função ou o cargo profissional. O profissional
perde, durante a formação histórica do modelo vocacional moderno, o carisma. O eleito é o herói
carismático weberiano que, aos poucos, vai sendo substituído pelo herói cultural (Myertoff
&Larson, 1965) ? conceito interessante, pois está relacionado à transferência do carisma do
indivíduo para a posição ou função. O herói cultural significa a completa racionalização do herói
carismático. Implica um comportamento já padronizado, em que o papel social do indivíduo tem
um peso relevante ? há uma forte modelação social do sentido da atividade do profissional. O
herói cultural, nesse sentido, seria um agente de integração social por excelência. O eleito é um
indivíduo idiossincrático, pois é excepcional, e participa, através do seu carisma, da mudança
social. Tem uma missão, geralmente transformadora. O herói cultural possui também uma
missão, embora esta seja fortemente padronizada pela profissão. Weber (2000: 161-162) chama
essa transformação do carisma de rotinização do carisma.
Com o desencantamento do mundo, a religião perde a sua referência para a ciência ? por
isso, pode-se dizer que o poder do carisma é deslocado para o mundo científico, e o modelo
78
vocacional predominante passa a se basear no personagem do cientista. No caso da medicina, por
exemplo, o dom da graça é transferido para a ciência. Essa erosão do carisma médico, que tem
um evidente fundo religioso, pode ser um dos motivos, entre outros, da decadência do médico de
família. Talvez, uma das expectativas de algumas políticas públicas na área de saúde seja a de
recuperar a aura do médico, a aura sagrada da medicina, através de uma política de aproximação
e de restabelecimento do contato direto do cliente com o médico (medicina de bairro, médico de
família...). Se o carisma deslocou-se para a posição e para a ciência, pode-se inferir que a
formação universitária, baseada na medicina científica, é um dos fatores de desencantamento do
carisma do médico e, conseqüentemente, da própria vocação médica (Jamous, 1969). A formação
científica do médico retiraria a singularidade da experiência idiossincrática de cada médico,
tornando-a banalizada e comum. Haveria uma produção "fordista" de médicos, através do
credenciamento e do diploma, que homogeneizaria a experiência médica. Tal fato pode retirar do
imaginário médico a representação da medicina enquanto arte, embora isso não seja ainda
dominante nas representações profissionais dos médicos.
Mas, a vocação médica possui ainda muitos resíduos da sua antiga aura de herói
carismático. Assim como os políticos, por exemplo, os médicos têm uma tendência ou mania de
justificar a escolha da sua profissão. São narrativas muitas vezes sacras ou mesmo solenes,
baseada em eventos catárticos e, invariavelmente, racionalizadas. Provavelmente, toda profissão,
que tenha um caráter social ou relacionada à saúde, possua tal necessidade de justificação
carismática. O mito do sacerdócio médico é, por exemplo, um mito baseado ainda na vocação do
eleito, daí inclusive a importância da noção de missão na vocação médica. Contudo, a formação
médica impõe um modelo de prática que faz uma delimitação precisa entre o doente e a doença,
exigindo dos médicos a neutralidade afetiva diante dos sofrimentos dos pacientes. Ora, tal
exigência entra em flagrante contradição com as narrativas vocacionais, quando os médicos
rememoram o evento catártico que ocasionou sua escolha profissional. Muitas vezes, a relação
com a doença ou o fato de ter estado doente ou mesmo o contato com doentes são interpretados
como fatores de caráter "afetivo" que teriam induzido a escolha profissional
Embora tenha seus resíduos mágicos, a vocação profissional, médica ou não, é
identificada geralmente à noção de profissionalismo. No senso comum, inclusive, vocação e
profissionalismo são algumas vezes colocados como termos não cambiáveis e, até mesmo,
79
antagônicos. O profissionalismo teria destruído o aspecto vocacional dos métiers, impondo um
conjunto de valores tais como competência técnica, universalismo, especificidade funcional e
neutralidade afetiva18, que teriam esvaziado o conteúdo "existencial" de uma atividade como, por
exemplo, a medicina. A vocação seria uma "escolha de vida", um projeto pessoal, um
engajamento subjetivo que levaria o médico adiante na sua carreira, apesar dos percalços vividos
ao longo do exercício de sua atividade. Ela realizaria o vínculo entre a motivação para a carreira e
a realização pessoal que esperamos da vida profissional19. O profissionalismo, ao contrário,
significaria o trabalho desocupado de valores existenciais e de engajamento pessoal, no qual a
utilização de um saber, visto somente a partir de sua finalidade funcional, depauperaria o
conteúdo axiológico do métier. Tal visão de profissionalismo o relaciona estreitamente ao
trabalho burocrático e, de fato:
administração burocrática significa: dominação em virtude de conhecimento;
este é seu caráter fundamental especificamente racional. Além da posição de
formidável poder devida ao conhecimento profissional... (Weber, 2000:147).
A burocracia está, nesse sentido, impregnada de profissionalismo, e a profissão,
impregnada de burocratismo, estando ambas subsumidas ao inexorável processo de
racionalização social; um processo cujo ranço instrumental aprisiona a ação social, seja
burocrática ou profissional, nos ditames da coerência da relação entre meios e fins20. Contudo, se
identificarmos a atividade profissional à atividade burocrática, provavelmente teremos
dificuldade em encontrar um aspecto vocacional nas profissões. O saber burocrático não
necessita, por princípio, de um sistema de valores como a vocação. Num ambiente
completamente burocratizado, o funcionário efetua o seu trabalho sem que nele precise investir
ou realizar a sua identidade pessoal ? não há efetivamente realização de si. Toda a ação é
coordenada por normas rígidas e fixas, externas à sua vontade ou à sua autonomia de trabalho.
Ele não tem controle sobre a produção do seu serviço e nem "tem" propriamente um saber; na
18 Ver discussão de Herzlich (1970:158) sobre os valores do profissionalismo, na qual critica Parsons por tê-los identificado apenas à prática médica e não às profissões em geral. 19 Assim, "uma das funções da vocação é orientar a conduta atual no interesse de um objetivo a ser atingido" (Hall, 1970:210). 20 Contudo, a racionalização social e a burocracia moderna não se esgotam na racionalidade em relação a fins. Ver crítica a Weber e sua concepção de racionalização em Habermas (1987). Ver discussão sobre as diversas "lógicas de ação" possíveis numa empresa capitalista em Karpik (1972).
80
verdade, ele "utiliza" um, que não é dele, nem feito por ele, e sim "usado" por ele para realizar o
seu trabalho21. Nesse sentido, o despotismo burocrático se identifica com o de fábrica 22.
A "posse" do saber e a respectiva autonomia profissional permitem a cada profissiona l um
autocontrole do seu trabalho e engendram, na nossa opinião, uma responsabilidade prática que
aparece, quando normatizada e institucionalizada, como um dos fundamentos dos códigos de
deontologia profissional. O indivíduo responde assim não somente pelo s resultados da sua ação,
mas também pela sua atuação no processo de trabalho, configurando toda uma série de
comportamentos e posturas individuais. A responsabilidade profissional é reforçada mais ainda
quando a sociedade outorga à profissão um "mandato social", principalmente nas atividades,
como a medicina, cuja intervenção no seio de uma população é evidente. A responsabilidade
vincula o profissional ao objeto de seu trabalho, mesmo se o produto final de sua atividade não
lhe pertence. Ela gera uma disposição na qual a vocação pode se sedimentar e crescer em valor,
ocorrendo entre as duas uma retroalimentação que impulsiona a fusão ou união da identidade
com o papel social Desse modo, quanto mais vocação e responsabilidade o indivíduo atribuir ao
seu trabalho, mais a sua identidade e a seu papel profissional estarão isentas de contradições,
unindo-se na sua prática individual, e mais ele se aproximará da "fusão ideal" citada acima.
A responsabilidade pode ser considerada uma interseção entre os esquemas de
interpretação dos agentes e as normas estabelecidas. Não queremos afirmar, com isso, uma
simetria entre os códigos formais de conduta e as ações dos agentes. Um agente responsável tem
o poder de explicar as razões de sua conduta e de assinalar os fundamentos normativos que
justificam a sua ação. Ele possui uma "competência" e uma capacidade reflexiva para ajustar ou
não sua conduta de acordo com os códigos formalizados existentes. No entanto, quando os
códigos formalizados são interpelações de um sistema burocratizado, vemos a responsabilidade
do médico diluir-se. Aparentemente, a burocratização diminui a responsabilidade do profissional
de medicina. Seria como se ocorresse uma transferência da aura carismática do médico —
21 Evidentemente, se nós subirmos na hierarquia burocrática ou se examinarmos algumas áreas onde a divisão técnica do trabalho necessite de um saber especializado, encontraremos um saber do tipo profissional. Vale dizer que um administrador, atualmente, é um profissional, possuindo um saber que produz regras de gestão e de consecução de serviços que são "utilizadas" e não "apropriadas" pelo funcionário na realização de suas tarefas. 22 Ver discussão geral sobre o processo de trabalho na fábrica em Marglin (1989) e Gorz (1989).
81
vinculada à responsabilidade profissional e à vocação do profissional — à sua posição no sistema
burocrático e à técnica utilizada na gestão administrativa de doenças e doentes. Se a
responsabilidade do médico não está diretamente dirigida ao paciente, se diversas mediações
começam a surgir entre o profissional e seu cliente, a começar pela mediação técnico-
administrativa, as decisões passam ao largo dos interesses dos pacientes, tomando como
referência principal os interesses da organização — participar e ser agente de um sistema
burocratizado dilui a responsabilidade médica e, ao mesmo tempo, sacrifica os interesses do
indivíduo doente às necessidades e exigências do sistema. No caso de uma estrutura burocrática,
como um hospital, por exemplo, a responsabilidade do médico vai-se diluindo a partir do
momento em que o paciente vai atravessando os segmentos burocráticos da divisão do trabalho
especializado da medicina, passando de especialista em especialista, até que uma tomografia
computadorizada defina enfim o diagnóstico.
De todo modo, independentemente da reificação burocrática, existe um relativo consenso
de que o aspecto vocacional na medicina é bastante acentuado. Ele, no entanto, sofreu grandes
transformações nos últimos 40 a 50 anos, e sua identificação a uma "missão" ou a um
"sacerdócio" — termos impregnados de simbologia religiosa — não seria tão presente no
imaginário profissional ou, pelo menos, passou por um filtro mundano, mantendo-se com uma
significação, digamos assim, mais "técnica". Apesar disso, pode-se encontrar, por exemplo, o
sentido de missão ? mesmo que já laicizado ? nas reivindicações de especialidades médicas
que estão barganhando reconhecimento institucional. Assim, a reivindicação de uma missão está
inscrita no processo de legitimação de uma profissão:
desde o início de seu desenvolvimento, as especialidades definem e proclamam
suas missões específicas. Tais missões atestam a contribuição que a
especialidade, e somente esta, pode trazer num contexto referente a um
conjunto de valores, e freqüentemente desenvolvem uma argumentação
determinando por qual forma são particularmente apropriadas para essa
tarefa. A reivindicação de uma missão tende a tomar uma forma retórica,
provavelmente porque a missão ocupa um papel no contexto de uma luta pelo
reconhecimento e pela obtenção de um status institucional (Strauss, 1992:70)
82
O interessante do exposto acima é a idéia de que o sentido de missão pode corresponder à
segmentação da medicina em especialidades e disciplinas, desmistificando um campo médico
homogêneo e sem contradições. Dessa forma:
as identidades, como também os valores e os interesses, são múltiplas, e não se
reduzem a uma simples diferenciação ou variação. Elas tendem a ser
estruturadas e partilhadas; coalizões desenvolvem-se e prosperam em oposição
a outras. (1992:68)
A segmentação da medicina "fixaria" o médico numa determinada posição no campo da
medicina, influenciando a formação da sua identidade profissional. Num sentido amplo, ela teria
várias "direções", seja no sentido de um campo médico com várias disciplinas (psiquiatria e
medicina interna, por exemplo) e, dentro delas, diversas especialidades (psiquiatra infantil e de
adulto), seja no sentido ocupacional (medicina privada e pública). Os "efeitos de segmentação",
porém, não seriam exclusivos na determinação da identidade profiss ional, estando combinados
aos chamados "efeitos de disposição", principalmente do saber médico (concepção terapêutica e
nosológica, por exemplo). A combinação dos "efeitos de segmentação" com os "efeitos de
disposição" situaria o médico no campo geral da medicina23, condicionando sua identidade
profissional. A vocação e a responsabilidade profissional, assim, seriam vistas de maneiras
diferentes segundo o segmento ao qual pertence o médico, e conforme a sua disposição em
relação ao saber médico. A responsabilidade profissional, por exemplo, é percebida pelo médico
geralmente como uma construção individual surgida da sua interação com o paciente. Tal
percepção é facilitada nas situações onde domina uma concepção liberal da profissão ou uma
concepção nosológica centrada na interação médico/paciente, como as de cunho psicanalítico.
Nas situações nas quais a medicina faz parte de uma política pública e onde predomina uma
concepção nosológica de cunho sociológico, a responsabilidade tem uma índole social.
23 Ver discussão geral sobre posição, disposição e situação no capítulo 6 do livro de Boudon (1986).
83
VII. Capítulo II
A. Profissão
1. Discussão sobre o conceito de Profissão
Pode-se dizer que a noção de profissão já possui uma legitimidade acadêmica enquanto
área de conhecimento, sendo inclusive a categoria central de todo um campo da sociologia, a
chamada sociologia das profissões. Contudo, o seu espaço conceitual não é uniforme, nem
mesmo coerente, e, muitas vezes, fica difícil até conceber que exista, realmente, uma sociologia
das profissões, dada a variedade extrema de definições, produzida pelos mais diversos autores,
cuja série de posições diferentes impossibilita mais ainda a unificação de sentido do termo
"profissão". Abbott (1988), por exemplo, vai afirmar que a dificuldade ou mesmo a
impossibilidade de se definir profissão tem como causa o fato de que as fronteiras entre as
competências são flutuantes e estão em eterno questionamento. Se as delimitações das
competências flutuam e dependem da época e da sociedade em questão, as definições de
profissão tornam-se relativas, podendo sofrer mudanças consideráveis no tempo e no espaço. Na
realidade, talvez fosse mais interessante afirmar que há uma multiplicidade de abordagens
sociológicas dos grupos profissionais, em relação às quais não seria complicado perceber
coerências teóricas e políticas entre certos modelos, certas teorizações e programas de pesquisa.
Não haveria, dessa forma, uma definição universal de profissão, mas sim determinadas
teorizações que examinariam o fenômeno profissional, a partir de um dado ponto de partida, por
esse ou aquele ângulo, por essa ou aquela determinação. Não acreditamos que isso seja
verdadeiramente um problema, afinal, a sociologia não é popperiana, procedendo por invalidação
de proposições que foram demonstradas como falsas, e sim um conhecimento parecido com o
histórico, isto é, apresenta eternos conflitos de interpretação e permanentes confrontações de
pontos de vistas.
Por isso, em relação às teorizações sobre a profissão, não há uma posição superior ou
alguma visão ultrapassada que resida apenas datada no passado. As proposições do
funcionalismo, por exemplo, não estão completamente enterradas, pois volta e meia reaparecem,
84
algumas vezes até um tanto dissimuladas ou não assumidas24; ou ainda: as posições do
interacionismo simbólico sobre as profissões não foram superadas pelas análises neoweberianas e
nem estas pelas críticas neomarxistas ? não, na verdade, o que ocorre na dita sociologia das
profissões é menos a partilha de um paradigma comum do que vários em choque ou em
complementaridade. A polissemia das noções impera no meio, sendo uma fonte de riqueza
inesgotável (ou mesmo de confusão eterna!) para a interpretação — mas, é um fato inevitável:
estamos obrigados a conviver, permanentemente, com modelos teóricos convergentes e
divergentes entre si, cujo trato diário pode representar, dependendo do humor de cada um, o
inferno ou o paraíso. O próprio Freidson, um dos expoentes da área, reconheceu que a noção de
profissão é um folk concept, isto é, uma categoria social inscrita nas práticas e atividades do
cotidiano de comunidades diferentes, não adiantando muito defini- la rigorosamente, pois, sendo
de intenso uso social, os problemas de polissemia e de constantes mudanças de sentido ainda
continuariam25. Assim, é preferível analisar como as pessoas de cada sociedade diferente definem
o que é ou não um "profissional", como os profissionais 'fazem' ou 'realizam'
sua profissão através de atividades particulares e quais as conseqüências disso
sobre a forma em que vêem a si mesmos e sobre o seu desempenho (Diniz,
2001: 18).
Em suma, isso requer uma postura fenomenológica, mantendo um controlado relativismo
de fundo e definindo a posição a ser utilizada mais pelas necessidades do objeto e pela escolha do
ângulo de abordagem do que por um pré-julgamento epistemológico.
Embora reconheçamos a polissemia do termo, isso não significa que não se possa
reagrupar algumas inferências, resultado da história e dos diversos estudos sobre as profissões ?
inclusive, tais inferências teriam sido necessárias pela própria prudência diante dos vários
sentidos da noção de profissão 26:
24 Quando Freidson (1998: 213-229), por exemplo, vai defender o profissionalismo, ou seja, um modelo normativo de profissão, acreditamos que ocorra uma re-apropriação de algumas proposições sustentadas por Parsons, caracterizando nesse sentido uma posição, digamos assim, neo-funcionalista. 25 Um outro exemplo evidente de categoria social é a noção de doença. 26 Seguimos aqui as posições de Dubar e Tripier (1998).
85
Ø não há como estudar uma profissão isolada do contexto em que está inserida. Ou
ainda: uma profissão geralmente faz parte de um sistema profissional e analisá-la é
perceber suas conexões com outras profissões num determinado contexto histórico
? logo, o estudo comparativo é imprescindível à análise sociológica das
profissões;
Ø dificilmente encontramos uma profissão unificada e homogênea. O sistema
profissional é multifacetado e, no seio mesmo do mundo profissional, há vários
segmentos profissionais muitas vezes competindo entre si, objetos profissionais
diferentes, interações profissionais apresentando polarizações antagônicas,
processos identitários diversos. Uma profissão é um mundo formado de mundos;
Ø não há profissão estabelecida definitivamente. Se existe uma lição proveniente da
história das profissões, seria a de que os grupos profissionais sofrem processos de
estruturação e desestruturação constantes ? as delimitações de competências são
flutuantes, a base cognitiva pode mudar, a modalidade de regulação pode sofrer
modificações...
Ø não há profissões "objetivas". Existe, isto sim, relações dinâmicas entre estruturas
e lógicas de ação, entre instituições e trajetórias, entre formação profissional e
vocações, entre saber e poder, entre papel profissional e formas identitárias. O fato
profissional é abarrotado de sentido, pois constitui e é constituído por processos
identitários. O determinismo das estruturas27 não pode sobreviver sem as
subjetividades socialmente construídas28... e vice-versa.
Tais inferências não são comuns a todas as teorizações sobre as profissões, pois cada uma,
de certa maneira, vai priorizar esse ou aquele aspecto, tudo dependendo do modelo proposto para
analisar as formações profissionais. Inclusive, acreditamos que seja importante investigar os
modelos de profissão, pois assim seria possível remontar historicamente as origens comuns das
teorizações sobre as profissões. Podemos assim começar pela etimologia do termo "profissão",
inferindo algumas pistas para posterior desenvolvimento. Ora, profissão era, na cristandade
medieval, a ação de declarar abertamente suas opiniões e crenças. São os votos que são
27 A análise estrutural é característica das abordagens funcionalistas e neomarxistas. 28 A análise das interações e subjetividades é característica das abordagens interacionistas e neoweberianas.
86
declarados, logo, tornados público. Não é propriamente uma confissão pública, e sim uma
declaração de sua relação com Deus. Seria da ordem da linguagem e do discurso, mas que traduz
algo que vem de dentro pra fora, exterioriza-se na direção do transcendente. Profissão, aqui,
confunde-se com vocação ? calling, em inglês, e beruf, em alemão. Depois, o termo evoluiu
para o sentido de um conjunto de pessoas que trabalham na mesma ocupação, embora profissão,
no mundo anglo-saxão, seja usado como oposto à ocupação (professions x occupations). Na
França, o termo aproxima-se da noção de corporação ou de grupo profissional; inclusive, não se
opõe ao de sindicato. Na verdade, dependendo do lugar e da época, a noção de profissão pode
apresentar quatro sentidos (Dubar e Tripier, 1998: 12):
• como declaração, a profissão é um processo identitário (vocação);
• como ocupação, é uma atividade especializada;
• como função, é uma posição na divisão social do trabalho;
• como emprego, é uma classificação ocupacional.
Pode-se a partir desses sentidos inferir que a noção de profissão apresenta uma tripla
partição: a cognitiva, quando pensada do ponto de vista do saber e da sua aplicação na divisão
social do trabalho; a axiológica/afetiva, quando envolve valores e processos identitários; a
conativa, quando apresenta ações e estratégias balizadas por interesses. As três partições podem
ser relacionadas, de uma forma geral, a três abordagens teóricas sobre as profissões:
Ø profissão como forma histórica de organização social e, ao mesmo
tempo, de categorização das atividades no trabalho, em que o
monopólio de um saber joga um papel fundamental na relação entre
o Estado e os profissionais. A base cognitiva da profissão serve
como recurso estratégico para a legitimação das atividades
profissionais ? perfaz uma luta pelo reconhecimento da expertise.
O objeto dessa abordagem sociológica seria a organização social
das atividades do trabalho;
Ø profissão como forma de realização de si, realizando modelos de
identidade na atividade ocupacional. O fato profissional teria uma
relação profunda com os processos de identificação, sendo um
87
campo privilegiado, na modernidade, de expressão de valores éticos
e de significações culturais. A raiz axiológica da cultura
profissional seria religiosa, sendo a vocação a palavra-chave. A
profissão produziria uma série de significações que dariam sentido
ao trabalho. Por ser um processo de identificação, a esfera
profissional pode ser interpretada como produtora de modos e
estilos de vida. A profissão seria entendida como "mundo
profissional", no qual se inscreveriam várias lógicas culturais,
especificamente a do individualismo liberal ? o objeto aqui teria
como foco a significação social do trabalho;
Ø profissão como formas históricas de ações e estratégias para a
defesa de interesses ocupacionais, procurando estabelecer mercados
fechados e, ao mesmo tempo, conectando o monopólio à aquisição
de status. Tais estratégias seriam fundamentalmente de natureza
política e teriam como objetivo a conquista, seja através do Estado,
seja por intermédio de associações profissionais, da autonomia e do
monopólio ocupacional. Tal abordagem teria como objeto as
modalidades de estruturação dos mercados de trabalho e de
serviços.
Porém, apesar de termos reduzido o leque de temas sobre a profissão, ainda sobrou a
questão de se saber a respeito da existência ou não de modelos que baseariam historicamente as
abordagens referidas acima. E qual seria a natureza de tais modelos? Segundo Dubar e Tripier
(1998), a premissa que subjaz os modelos seria a hipótese de que existem configurações de
crenças e instituições, de categorias e formas sociais, de valores e organizações que persistem
durante um longo período de tempo e que estão nas raízes de fenômenos posteriores, no caso
específico daqui, as profissões. São, no fundo, modelos cognitivos de longo alcance ou
orientações culturais de longo prazo29 (Goldhagen, 1997) que, evidentemente, têm efeitos
práticos, estruturando as condutas e as atividades das pessoas, isto é, formatando a ordem moral e
29 Pode-se, na nossa opinião, fazer uma aproximação do conceito de habitus com o de "modelo cognitivo de longo alcance".
88
prática da sociedade. Os modelos de profissão, por estruturarem práticas e atividades, produzem
categorias orientadoras de valor que tem uma validade consensual no cotidiano, isto é, estão
subjacentes à diferenciação e à estratificação social, daí sua permanência ao longo do tempo e a
invariância relativa de seus elementos constituintes. Não causa surpresa, assim, que os dois
modelos de profissão propostos tenham raízes religiosas e mesmo teológicas: o modelo católico
ou corporativista e o da reforma protestante ou colegial. O primeiro enraizou-se na França e em
alguns países latinos (o Brasil seria um caso com diversas particularidades); o segundo, na
Alemanha, embora tenha sido uma versão particular desse modelo que, através do calvinismo,
influenciou a história das profissões no mundo anglo -saxão.
O primeiro modelo 30 é proveniente de uma noção profundamente cristã: o corpo místico
de Cristo. A partir do século XII, a significação mística do corpo de Cristo passou a ser
eminentemente política. O corpo místico assimilo u o corpo político da igreja, e este tornou-se o
"corpo estruturado da sociedade cristã" (Kantorowicz, 1989: 147-8). O próximo passo foi
transferir ao Estado o modelo da Igreja, tornando-o sagrado ? os magistrados foram
considerados "padres" e a Lei tão santa quanto o texto da Bíblia. São Tomás de Aquino fecha o
ciclo, produzindo uma união entre a teologia cristã e a filosofia política de Aristóteles. Resultado:
há a legitimação da eqüidistância entre o corpo místico da Igreja, definindo a natureza da
comunidade religiosa, e corpo natural do Estado, definindo a comunidade temporal dos homens.
A realeza torna-se sagrada, com um mandato divino, justamente porque o Estado é sacro. A
corporação católica torna-se, aos poucos, uma entidade legal e jurídica que congrega indivíduos
em torno de um mesmo corpo ? comunidades eclesiásticas, municipalidades, tribunais e guildas.
Assim, formam-se os corpos de Estado 31, cuja constituição implica uma divisão religiosa, no
sentido de Durkheim (1994), isto é, uma divisão entre o sagrado e o profano, entre o de dentro e o
de fora. Inclusive, a própria identidade do corpo é sagrada, apresentando toda a liturgia ligada ao
sacro: ritos, símbolos, festas, santo padroeiro, dia de comemoração.
Pode-se perceber, por exemplo, o efeito profundo desse modelo no pensamento de
Durkheim (1998), cujo interesse pelos corpos de Estado foi pronunciado, principalmente na sua
30 Seguimos livremente as posições de Dubar e Tripier (1998: 21-37). 31 Ver o importante estudo de Bourdieu (1989) sobre a "nobreza" de Estado e seu espírito de corpo.
89
análise sobre os grupos profissionais. Assim, tais grupos são vistos como verdadeiras
comunidades, apresentando características parecidas com os corpos de Estado, principalmente
num ponto central: são corpos intermediários entre o Estado e os indivíduos. Durkheim,
inclusive, vai deplorar o fim dos corpos de Estado e vai perceber no surgimento dos grupos
profissionais uma renovação das corporações. Renovação diferencial, na realidade, pois não é
uma reedição das antigas corporações, e sim o surgimento de um fenômeno novo que tem raízes
antigas. O pensador francês enaltece os novos "corpos profissionais", apresentando praticamente
uma defesa moral e normativa da profissão, que irá influenciar bastante as teorias funcionalistas
americanas. As profissões são ordens morais que asseguram aos indivíduos uma socialização,
uma educação moral e uma interiorização de um corpo de crenças e de sentimentos comuns,
cumprindo assim um papel que o corpo social deixou de realizar ou que está simplesmente
incapacitado de objetivar.
De tal problemática, podemos intuir três temas que se tornaram vitais para algumas
teorizações sobre as profissões (Dubar e Tripier, 1998: 68): 1) o desenvolvimento, a restauração e
a organização das profissões são fundamentais para se entender a sociedade moderna; 2) as
profissões estão encarregadas de um função social essencial: a coesão social e moral do sistema
social; 3) as profissões representam uma alternativa ao mundo dos negócios, ao trabalho
burocrático e, podemos dizer assim, à luta de classes. Tais temas foram abordados por Durkheim
e são, digamos ass im, seu legado; entretanto, sua transposição em solo anglo -saxão sofreu
modificações aparentemente em resposta ao incômodo causado pelo modelo corporativista. Da
visão de Durkheim, sobrou o funcionalismo e a concepção normativa da profissão, ocorrendo a
censura do corporativismo e da presença estatal na regulação profissional. Um novo olhar
funcionalista e normativo surgia, agora adaptado às necessidades ideológicas do segundo modelo
de profissão: o modelo profissão-confraria ou colegial.
O modelo colegial ou da profissão-confraria é filho da Reforma Protestante e, portanto, de
procedência alemã. Combina um ideal aristocrático ou elitista enquadrado numa forma religiosa
igualitária (monástica ou comunitária). Remete, de uma certa maneira, às análise históricas de
Weber do modelo colegial como modo específico de dominação, embora tal modelo tenha
apresentado uma forma intermitente e instável na história. A confraria é uma comunidade de
iguais e auto-regulada, completamente contrária a qualquer tipo de intervenção estatal. Sua raiz
90
religiosa é evidente: o modelo é a ordem monástica. As ordens eram fraternidades cristãs, mas, ao
contrário do modelo católico e romano, não faziam parte do corpo político centralizado da igreja.
Tinham o reconhecimento da Igreja, mas sua regulação era autônoma. Cada membro,
individualmente, buscava o contato com Deus através da leitura da Bíblia, embora diversos
procedimentos fossem comuns a todos, havendo o respeito às regras coletivas. A entrada na
ordem era voluntária e baseada na vocação, isto é, no sentimento profundo de que o contato com
o divino fazia parte de uma missão ou de um chamamento. De certo modo, Lutero, na Reforma,
transferiu esse modelo da ordem monástica para o campo inteiro da cristandade. Com isso, a
vocação deslocou-se do extra-mundano, enclausurado nos muros da ordem, para o intra-
mundano32, democratizando-se e se tornando acessível a qualquer um, onde a implicação pessoal
no trabalho torna-se fundamental, inclusive como sinal e meio da eleição divina.
A conexão entre auto-regulação coletiva e autonomia individual é o principal atributo que
o modelo colegial ou da profissão-confraria herda das suas raízes religiosas. Pode-se resumi- lo da
seguinte forma33:
• auto-regulação profissional, excluindo o apelo à interferênc ia externa,
principalmente do Estado;
• comunidade de iguais trabalhando na mesma ocupação;
• acesso voluntário e aceitação livre de regras coletivas, reconhecidas juridicamente;
• existência de um código de ética (deontologia);
• concepção da profissão como vocação individual.
Uma versão calvinista do modelo colegial tomará conta do mundo anglo -saxão, viajando
para os EUA nos corações e mentes dos colonos puritanos. Esse igualitarismo de base individual,
esse individualismo de base igualitária, essa desconfiança com qualquer poder externo, esse
nivelamento horizontal da hierarquia, essa vocação ao trabalho inspirada por Deus, tudo isso
servirá de modelo à constituição das profissões na América. Não causa surpresa que, na
32 Ver essa discussão, dessa vez relacionada ao surgimento do individualismo, em Louis Dumont (1991) 33 Partimos aqui do estudo de Karpik (1995) sobre a formação histórica da advocacia francesa que, curiosamente, por diversos motivos políticos e históricos, seguiu o modelo colegial e não o dos "corpos profissionais", como foi habitual entre as profissões na França.
91
sociedade americana, os magistrados, os chefes de polícia, os juízes, os mestres-escolas sejam
eleitos e responsáveis perante sua comunidade. Porém, haverá uma diferença no sentido da
vocação entre o modelo original e o calvinista: neste último, a vocação direcionada ao bem
público, logo, desinteressada, será considerada diferente de um investimento pessoal apenas
reservado ou para si mesmo ou para os membros da confraria. É essa diferença de implicação e
de valor na vocação que distinguirá no imaginário profissional americano a profissão da simples
ocupação34.
Em suma, julgamos que, desses dois modelos, pode-se inferir diferenças históricas
discretas entre os diferentes modos de organização profissional que se desenvolveram em vários
países. Principalmente, esclarece um pouco as diferenças profissiona is entre os países anglo -
saxões e alguns países do continente europeu, em particular a França. E, partindo do fato de que o
Brasil foi colonizado por Portugal, país da Contra-Reforma e do Estado Patrimonial, podemos
deduzir que o modelo católico teve, antes de mais nada, uma influência bem maior do que o
colegial nas organizações profissionais nacionais, ainda mais que, historicamente, o Estado
brasileiro permaneceu, na maioria das vezes, como o demiurgo da regulação profissional.
No fundo, a diferença básica configura-se entre um modelo em que a autonomia política
da profissão é regulada direta ou indiretamente pelo Estado e um no qual a autonomia política
alicerça-se na independência associativa dos profissionais. Por isso, não causa surpresa que a
autonomia da profissão perante o Estado seja o ponto central da análise histórico- funcionalista de
Carr-Saunders e Wilson35 ? um dos primeiros trabalhos sobre profissão ? sobre a formação
histórica das profissões na Inglaterra. Inclusive, a defesa da autonomia das profissões segue
paralela à reivindicação da independência do indivíduo ? esta seria resguardada justamente pela
autonomia profissional, preservada coletivamente. Ao separar profissão e Estado, julga-se apartar
saber e poder; por intermédio dessa separação, esvazia-se politicamente o saber e, ao mesmo
tempo, concilia-o com valores que têm como base o desinteresse. O profissional precisa atuar em
função do bem público e de sua comunidade ? sua ação precisa ser desinteressada ou neutra.
34 Portanto, a ênfase de Parsons (1970) na vocação profissional como desinteressada e relacionada ao bem público, isto é, à prosperidade da comunidade, provavelmente, não é à toa... 35 Ver discussão a respeito das teses de Carr-Saunders e Wilson em Chapoulie (1970), Dubar e Tripier (1998) e em Freidson (1998).
92
Não pode deixar que sua vocação seja carcomida pelo seu interesse próprio ou por interpelações
externas, como o poder político. A defesa da autonomia, assim, tem um fundamento ético, pois
seria a única forma de preservar a união entre saber e desinteresse. Em vista disso, a justificação
do profissionalismo, como modelo normativo para as profissões e, inclusive, para o campo
ocupacional em geral, é a legitimação de valores profissionais baseados no desinteresse
(neutralidade axiológica). Nesse sentido, haveria uma diferença moral entre o profissional e o
simples assalariado, reduzido ao campo estreito da ocupação: a autonomia, perfazendo a
diferença entre liberdade e opressão patronal; a responsabilidade, instituindo a diferença entre
dignidade e subordinação e, enfim, a liberdade no mercado de trabalho e de serviços, consolidada
pela diferença entre a independência econômica e a dependência salarial.
Boa parte dessas questões, se não todas, está presente nos estudos do mais importante
teórico funcionalista: Talcott Parsons. Autores, inclusive, afirmaram que Parsons radicalizou a
defesa do profissionalismo, tornando-o um modelo "angelical"36, além de afirmá-lo como uma
defesa profissional da própria profissão de sociólogo. A profissionalização da sociologia faria
parte, num jogo de espelhos um tanto enviesado e irônico, da própria "sociologia das profissões",
e a defesa da sociologia, enquanto profissão, envolveria, além da legitimação de um saber
científico, o recurso a uma prática corriqueira de poder no mundo moderno: o poder profissional.
Seria essa, também, a crítica de Hughes (1996) ao funcionalismo em geral: acreditar piamente no
que os profissionais dizem de si mesmo, tomando o discurso profissional como um dado
inquestionável, até porque os sociólogos são igualmente, afinal de contas, profissionais.
Relevando os exageros de um certo sectarismo político e teórico, realmente Parsons foi um
apologético da profissão; mas é impossível não deixar de reconhecer suas contribuições para a
"sociologia das profissões" e para a sociologia em geral. Sua dissecação dos valores da profissão,
mesmo que num estudo concreto sobre a medicina (Parsons, 1970: 169-191), continua pertinente,
principalmente se fizermos, a partir de suas análises sobre a profissão, analogias com o saber
burocrático e com a ideologia tecnocrática37. Contudo, seu funcionalismo e sua preocupação
36 Ver discussão sobre essa questão, principalmente na relação crítica entre o interacionismo e o funcionalismo, Paicheler (1992). 37 Ao mesmo tempo, Parsons constatou uma dupla competência no saber profissional, em particular no do médico: um saber prático aliado a um saber teórico proveniente da formação médico-universitária e de uma socialização "secundária".
93
unilateral com a ordem social foram bastante criticados, como o seu modelo de profissão, ao
mesmo tempo, adaptou-se mal às situações não liberais do exercício profissional (Dubar,
1991:138).
De todo modo, o caminho tomado por Parsons foi o de demonstrar a importância crucial
da ciência e da educação liberal na legitimação e na definição das profissões. Nesse sentido,
aceitou como dado incontornável a expertise (monopólio cognitivo de uma determinada área de
conhecimento) e o credenciamento (monopólio de acesso a determinado posto ocupacional), pois
a profissão, no modelo parsoniano, não se legitima pela tradição e sim por intermédio da ciência,
vista como o mais poderoso instrumento de legitimação do mundo moderno. A ciência é tão
relevante que pode ser considerada como o equivalente funcional da religião, e o profissional, do
padre. Inclusive, as separações que Parsons patrocina entre médicos e não médicos, racional e
irracional, normal e patológico parecem mutatis mutandis uma retomada da separação entre o
sagrado e o profano de Durkheim (1994)38. Assim, a profissão faria as pontes necessárias entre os
indivíduos e os papéis socais, garantindo a coesão social ? o profissional colocaria em contato,
na sociedade moderna, o profano com o sagrado39.
Por isso, do papel fundamental da ciência na sociedade moderna, Parsons defenderá que a
medicina, por exemplo, somente adquiriu uma legitimidade superior, que não fosse apenas
baseada no prestígio e no poder, a partir dos avanços científicos na biologia ? as descobertas de
Pasteur seriam um exemplo. Desse momento em diante, a medicina adquiriu uma base cognitiva
insuperável, deslegitimando as outras formas de medicina, principalmente as populares e as
alternativas40. A medicina como profissão tem, para Parsons, uma importância tão considerável
que o seu modelo terapêutico é o paradigma da profissão41. Da atividade médica e terapêutica,
ele retira o quadro geral que vai aplicar dedutivamente a todas as outras profissões. A relação
38 Ver a defesa completa dessa aproximação entre Parsons e Durkheim em Dubar e Tripier (1998: 85-86). 39 Afirmação forte, sem dúvida, mas implicaria dizer, se correta, que tal contato é bem menos orgânico e bem mais sujeito a crises de sentido do que o patrocinado antigamente pelo padre e pela religião. 40 Tal posição é retomada por Freidson (1984) quando argumenta que a última revolução na biologia (principalmente o surgimento da bacteriologia) foi um divisor de águas entre duas medicinas: a primeira mais antiga e com parcos recursos cognitivos, conceituada como uma profissão de saber, e a segunda, mais recente, de base científica, vista como uma profissão de consulta (expertise). 41 No famoso texto em que Parsons (1970) analisa a medicina, ele vai além do funcionalismo, pois, tudo indica que, pelo menos aqui, há uma forte influência da psicoterapia e da psicanálise no desenvolvimento da posição teórica assumida.
94
médico-paciente revelaria a estrutura relacional das profissões, fundada na institucionalização dos
papéis sociais e, com isso, garantindo as funções primordiais dos profissionais: o controle social e
a reprodução da estruturação social. Dissecando o papel do médico e do paciente, Parsons deduz
a estruturação funcional das profissões, ressaltando mais ainda a medicina, pois esta condensa
uma estrutura de mediação que conecta todos os campos da ação: biológico, psíquico, campo
social das normas e cultural dos valores.
Mas qual seria a função social da medicina que a torna tão importante entre as profissões?
Seria o controle do desvio social. A medicina estrutura esquemas de orientação (patterns of
value-orientation) tanto para o médico como para o paciente. Neste último caso, o controle do
desvio é fundamental, pois "orienta" o paciente a adotar o papel social do doente, ao invés do
problemático papel do desviante. É um enquadramento que sublima a subversão do desvio. Mas o
que estimula o profissional a ser o equivalente funcional do padre? É a vocação, no sentido de um
investimento pessoal na esfera ocupacional? Sim e... não. Ao que parece, é uma vocação
diferente e bem... profana. O que estimularia o profissional seria o sucesso e o reconhecimento de
si. Ora, se o motor do profissionalismo é o sucesso e o reconhecimento, temos assim a homologia
entre o profissional e o homem de negócios. Tudo indicava, aparentemente, que o mundo
profissional estaria numa posição diametralmente oposta ao mundo do business. O businessman
não é a personificação do interesse por excelência e a atividade profissional não seria calcada no
desinteresse? Parsons, pelo que interpretamos, faz uma disjunção entre o interesse,
estruturalmente igual ao do homem de negócios, e a atividade desinteressada. O profissional é tão
interessado quanto o businessman, porque todos os dois estão situados numa estrutura social na
qual a procura do sucesso é o valor fundamental. O sucesso traz reconhecimento, essa motivação
tão moderna, constituída por diversos elementos, tais como: o respeito de si mesmo, o
reconhecimento social, o dinheiro, o prazer no trabalho, o prestígio... (Dubar e Tripier, 1998: 87).
Se a fonte do sucesso é a aquisição do prestígio para o profissional e a riqueza, para o homem de
negócios, a diferença não importa, pois o mais importante é que o mesmo valor condiciona as
duas condutas. Parsons, aqui, aproxima-se das posições liberais de Adam Smith, justamente
aquela em que o escocês defende o self-love como motor do empreendimento capitalista. Mais
95
ainda: ao separar interesse e atividade desinteressada, Parsons retoma a velha tese liberal42 de que
o interesse individual ou egoísta leva necessariamente ao bem comum. Assim, Parsons e,
provavelmente, boa parte do funcionalismo americano, vão defender uma vertente liberal do
modelo colegial de profissão. Uma vertente moderada, pois o liberalismo radical, inclusive o
smithiano, foi sempre contra as profissões, instituição vista como necessariamente corporativa,
independentemente de ser regulada pelo Estado ou não, e que impede a livre circulação das
pessoas no mercado de trabalho e de serviços.
O aporte do funcionalismo americano, na nossa opinião, foi fecundo, apesar de todas as
limitações e das críticas. Porém, embora tenha sido dominante na sociologia das profissões,
nunca foi consensual. Há muito, já se tinha formado uma corrente multiforme, originária da
Escola de Chicago, chamada posteriormente de interacionismo simbólico, que criticava
explicitamente as posições funcionalistas, em particular as suas posições sobre as profissões.
Embora muitos neguem que o interacionismo tenha sido uma corrente teórica43, pode-se pelo
menos afirmar que a origem da sua perspectiva tem como fonte Simmel ? trazido da Europa por
William Thomas e traduzido por Robert Park, o primeiro, fundador e o segundo, continuador da
Escola de Chicago ? e a filosofia pragmática americana 44. De Simmel (1999), pode-se derivar
várias noções do interacionismo do conceito de formas de socialização (vergesellschaftung).
Inclusive, para o próprio Simmel, as profissões representavam novas formas de socialização em
que a interação, o acesso voluntário, baseado na vocação, e a autonomia são suas características
principais. A ordem profissional surge das interações dos indivíduos e não de uma imposição
externa ? a influência do modelo colegial não pode ser desprezada nessa visão de profissão. Da
filosofia pragmática, pode-se perceber a influência de uma postura metodológica que priorizava
fenômenos como a experiência, as práticas, o cotidiano, as interações entre indivíduos, as
representações inseridas nos contextos de ação...
42 Para uma discussão aprofundada sobre o tema, ver Giannetti (2003). 43 Ver a apresentação de Bonelli do livro de Freidson (1998), na qual há vários comentários do autor americano retirados de uma série de entrevistas realizadas pela própria apresentadora. Nesse texto, Freidson comenta suas relações com o interacionismo e questiona sua validade enquanto uma corrente homogênea e discreta. Pelo que interpretamos das intervenções de Freidson, o interacionismo foi muito mais uma questão de postura diante dos fenômenos sociais do que um paradigma ou uma corrente epistemológica. 44 Ver a apresentação de Isabelle Baszanger ao livro de Anselm Strauss (1992) em que faz uma discussão sobre a formação do interacionismo, em particular sua relação com o autor do livro.
96
A crítica ao funcionalismo e a postura principalmente metodológica do interacionismo
propiciou a cr iação de conceitos extremamente originais, tais como: licença (autorização de
exercer a profissão), mandato (missão), carreira (ciclo de vida profissional) 45, segmentos
profissionais, ordem negociada 46, mundos sociais 47... A base desses conceitos deriva da intuição
fundamental de que é preciso, para entender as profissões, conectar interação e biografia ? por
isso, uma problemática que enfatiza tanto os valores e sua interiorização, a socialização, a
identidade e a vocação como realização egóica, e a trajetória do profissional. São questões que o
funcionalismo tinha abordado apenas en passant.
Enfim, pode-se resumir a crítica ao funcionalismo da seguinte maneira:
Ø o funcionalismo analisa a profissão em si, sem perceber que, internamente, a
profissão é formada de segmentos profissionais, muitas vezes em conflito entre si,
e que, externamente, só pode ser apreendida através de uma perspectiva
comparativa, pois forma sistema com outras profissões;
Ø os atributos pelos quais o funcionalismo define as profissões são construções ad
hoc participante do próprio trabalho de legitimação produzido pelos profissionais.
A lista de atributos constitutivos do ideal-tipo funcionalista confundia-se, de fato,
com aquela 48 dos juízes encarregados, nos EUA, de autenticar juridicamente a
transformação de uma ocupação em uma profissão;
Ø o funcionalismo transforma um modelo particular de profissão, existente no
mundo anglo-saxão, num modelo universal. Os atributos desse modelo são
concebidos como um dado de realidade, e não como um objeto de análise, cujas
fundações históricas e sociais precisam ser reveladas e investigadas;
Ø a posição funcionalista concede um valor demasiado às qualidades inerentes do
conhecimento técnico. Na verdade, o que ocorre é uma apologia da técnica, a qual
45 Hughes (1992). 46 Anselm Strauss (1992). 47 Strauss (1992) e Becker (1988; 1985). 48 Em linhas gerais, os atributos seriam os seguintes: competência técnica e científica comprovada, formação educacional longa, atividade profissional exclusiva, controle dos profissionais e de suas atividades pelos pares, aquisição e uso de um saber esotérico que respeite um código de ética, serviço desinteressado voltado ao bem público, status social elevado justificado pelo nível de competência e importância social do serviço prestado (Paradeise, 1988: 11).
97
condicionaria as formas institucionais de controle, de organização e da prática da
profissão. A apologia da técnica oculta os fatos de poder e o prestígio profissional
torna-se merecido e não um favorecimento baseado no status, pois a técnica é
neutra e adquirida através da competência;
Ø o profissionalismo não é um dado funcional e sim um conjunto de crenças
construído socialmente, não sendo neutro nem desinteressado.
A partir dessa crítica, a profissão foi percebida pelo interacionismo da seguinte forma:
Ø a formação dos grupos profissionais acontece por intermédio das interações entre
os indivíduos, conduzindo os membros de uma mesma atividade ou ocupação a se
organizarem e buscarem uma autonomia, logo, um controle do processo de
trabalho;
Ø a vida profissional é um processo biográfico no qual a identidade é construída ao
longo de um ciclo de vida, perfazendo uma trajetória profissional;
Ø interação e biografia estão numa relação de interdependência. A biografia vai, ao
longo da trajetória do indivíduo, qualificando as interações com outros indivíduos
e com os contextos de ação, enquanto as interações vão reformulando os processos
de identificação. O conjunto de conexões entre interação e biografia perfaz uma
carreira. Tais conexões são estáveis e relativamente permanentes nas profissões ?
a profissão garante a carreira, enquanto a ocupação, não;
Ø os profissionais procuram o reconhecimento social, seja através da persuasão
pública da necessidade de seu trabalho, seja por intermédio da proteção legal. A
luta pelo reconhecimento é pari passu uma luta pela valorização moral da
profissão. Existiria uma divisão moral do trabalho e uma espécie de hierarquia
moral entre as profissões. Tal valorização é construída, isto é, processa-se através
de uma luta política de reconhecimento social junto ao público e ao Estado; em
suma, a diferença moral entre profissão e ocupação não é dada, como pensavam os
funcionalistas, e sim arbitrária.
98
Do ponto de vista do nosso objeto de estudo, tal problemática é de suma importância, pois
é necessária uma verdadeira conversão identitária para adentrar o mundo profissional e aderir aos
valores que a profissão exige para a conduta profissional (Hughes, 1996). O indivíduo precisa
interiorizar o sentido do seu trabalho, exteriorizar seu papel ocupacional, planejar uma estratégia
de carreira e se definir enquanto profissional. Muda-se o mundo, pelo menos o pequeno mundo
embutido nas redes de interações que envolvem a atividade profissional; muda-se o olhar que se
tinha em relação ao outro e também o olhar do outro em relação a si mesmo 49; muda-se, enfim, a
identidade. A mudança, no fundo, é originada da separação entre o mundo profissional e o
profano 50. As representações profissionais criam-se em virtude de sua diferença com as
representações profanas. Numa bela imagem, Hughes afirma que, após a conversão identitária, o
médico olha o mundo profano através do espelho da profissão ? a profissão seria uma espécie de
caverna de Platão. Entretanto, coexiste na personalidade do profissional uma tensão interior
produzida pela co-habitação na mesma pessoa de duas culturas, a profissional e a profana. Por
isso, a formação profissional é um aprendizado identitário que, comumente, gera crises, pois a
construção da identidade profissional implica construir uma nova que irá substituir ou sublimar a
antiga 51. Além do mais, segundo Hughes, algumas profissões, como a medicina, possui um
"saber culpado" (guilty know-ledge), exigindo um alto grau de responsabilidade por parte do
profissional, já que este lida com a doença, a saúde, a morte, o nascimento, a sexualidade, a
sanidade, em suma, categorias sociais altamente impregnantes e de difícil manejo ético e afetivo.
Na modernidade, a sociedade transfere as funções sociais responsáveis pela resolução e manejo
de tais problemas para os profissionais. O preço cobrado ao profissional é a conversão identitária,
como condição sine qua non para exercer o papel social exigido pela profissão e pelo público; em
troca, o profissional garante prestígio e reconhecimento.
Contudo, a conversão identitária é problemática, a começar que o ambiente profissional
não é homogêneo, possuindo diversos segmentos profissionais (Strauss, 1992). Tudo depende da
49 Esse "acontecimento" é catártico na medicina. O olhar médico distingue-se e separa -se do olhar empático dos "profanos". 50 Novamente, aparece o tema durkheimiano da separação entre o sagrado e o profano. 51 Retomando nossa discussão anterior sobre identidade, a tensão interior sentida pelo indivíduo é causada também pela incapacidade de se conectar total e pacificamente o processo de identificação com o papel social exigido pela socialização profissional. Com a crise do sentido do trabalho, acreditamos que a relação entre uma cultura profissional e uma profana, interiorizada pelo profissional, está bem mais problemática e complexa do que pensou Hughes.
99
capacidade do profissional em definir a situação na qual se encontra: qual é a situação objetiva de
trabalho, qual é o sentido do trabalho, qual é o papel a ser exercido. Tal definição é produzida em
função da trajetória do profissional e da sua carreira, isto é, do conjunto de experiências
acumuladas durante a vida profissional. Por isso, tanto Strauss, como Becker (1988) perceberam
as profissões como mundos sociais em eterna mudança e conflito. Os profissionais constroem
coletivamente o mundo social da profissão, definindo individualmente a todo momento a sua
situação. O conjunto de definições, que são também processos de identificação, perfaria um
mundo social. Esse encontro de definições de situação não é sem conflito e, assim, necessita de
uma negociação constante, em que se procura a equilibração52, regulando os conflitos e
compensando os possíveis desgastes. Por esse motivo, todo mundo social deve ser estudado
enquanto uma ordem negociada ? Strauss vai estudar, por exemplo, um caso de ordem
negociada justamente num hospital psiquiátrico, visto como um mundo social, no qual se negocia
o tempo, o espaço das competências, o modo de interação entre cada especialidade, a relação com
os pacientes, as representações de prática profissional e as concepções relativas ao diagnóstico,
prognóstico e tratamento (Strauss, 1992: 87-113). E, para se entender o mundo social como
ordem negociada, necessita-se analisar os nexos existentes entre representações sociais ou
crenças partilhadas (concepção de medicina, visão de doença mental ou de saúde, por exemplo),
práticas profissionais (lógicas de ação dos profissionais) e instituições (lugares, normas e regras,
a coordenação de indivíduos numa ocupação).
A ordem é negociada porque as regras gerais da instituição não conseguem regular toda e
qualquer conduta. O campo de ação coberto pelas normas do serviço é restrito e várias situações
ficam a descoberto. O espaço relacional continua, por isso, razoavelmente aberto, já que a
generalidade das normas assim o permite, e propicia uma série de comportamentos ambíguos por
parte do profissional, o qual procura a equilibração e, portanto, adaptar-se às ações dos outros
membros da ordem, sejam profissionais ou não. Há, através do processo de negociação, uma
permanente produção de regras informais ou, no caso em que a equilibração fracasse, a provável
imposição de uma liderança. Nesse sentido, o conceito de ordem negociada permite conectar as
52 Inspiramo-nos aqui do conceito de equilibração de Piaget (1982: 93-107). Assim, inferimos que o equilíbrio dos processos cognitivos e identitários pode ser entendido como uma compensação realizada por intermédio das ações do sujeito, o qual procura adequar-se às perturbações trazidas pela situação.
100
lógicas de ação profissionais aos mecanismos da divisão social do trabalho e às dinâmicas
gerenciais da instituição (no caso estudado, um hospital psiquiátrico).
Seguindo o mesmo procedimento, Strauss analisou alguns valores que, por exemplo, não
seriam consensuais na profissão médica, sendo apropriados de forma diferente em cada segmento
profissional53 e causadores de conflitos, tais como: a missão, as diferentes atividades de trabalho
e os interesses e associações de cada segmento; a clientela diferenciada, e outros. Criou, assim,
uma teoria importante sobre a segmentação profissional, na qual demonstra que, no caso da
"medicina organizada", diversos interesses, valores e modos de organização existem segundo a
forma de estruturação do segmento analisado. Tal teorização tem uma importância evidente no
nosso trabalho, pois a psiquiatria, como toda disciplina médica, possui diversas segmentações
profissionais, seja do ponto de vista institucional, tipo hospital x ambulatório, por exemplo, seja
do ponto de vista da formação profissional, tipo psicanalista x neuropsiquiatra.
Mas a heterogeneidade da profissão médica não aparece apenas na profusão de segmentos
profissionais. Na história de sua formação e de sua legitimação, vemos ainda uma flutuação na
delimitação das fronteiras entre as competências e mudanças nos seus respectivos objetos. Abbott
(1988), por exemplo, vai mostrar que houve historicamente uma competição pela jurisdição dos
problemas pessoais, ocorrendo diversas formas de apropriação e maneiras de abordá-los.
Inicialmente, houve um monopólio da religião sobre os problemas ditos pessoais, visto então
como basicamente produtos de desordens morais. A medicina entrou em cena e começou a
ocupar o espaço antes reservado à religião. As desordens morais passaram do espaço da confissão
para o terapêutico, ocorrendo assim não apenas uma nova delimitação nas competências, mas
também um deslocamento no próprio conteúdo do objeto: os problemas pessoais tornaram-se
"perturbações nervosas", sendo então tratadas e não mais abluídas, principalmente pelos
neurologistas ? estamos no final do século XIX, começando o reino da histeria. A partir desse
momento, os problemas pessoais deixaram de ser "pessoais", tornando-se questões relacionadas
ao campo da saúde e, portanto, transformando-se em objetos médicos. As mudanças não pararam
53 Vale dizer que Merton, numa abordagem bem diferente, ao estudar a importância da universidade na formação profissional médica, sustentou que a mesma possui uma função manifesta, que seria a de selecionar os indivíduos aptos a exercer a medicina, e uma função latente, que seria a condução tácita dos futuros médicos à escolha da especialidade ? orientação na carreira. Nesse sentido, a função latente seria produtora de segmentos profissionais.
101
por aí, sucedendo deslocamentos e lutas por jurisdição no próprio campo médico; assim, várias
perturbações nervosas foram percebidas como doenças mentais, sendo apropriadas por outra
competência, a psiquiátrica. Mais recentemente, houve um novo deslocamento e várias doenças
mentais tornaram-se perturbações da personalidade, entrando em cena então a competência dos
psicanalistas. Atualmente, padecemos de um novo deslocamento, uma espécie de volta
diferenciada ao início do século XX, após as diversas descobertas nas neurociências, e as
perturbações da personalidade estão sendo entendidas como disfunções nos neurotransmissores,
sendo agora, cada vez mais, de competência dos neuropsiquiatras. Em suma, o que vemos em tais
deslocamentos, além de um conflito de jurisdição, seria uma "competição pela propriedade do
problema e pela responsabilidade por sua solução " (Coelho, 1999: 65).
O que explica tais deslocamentos, em particular toda essa flutuação de competências na
própria medicina? O que permite a um grupo conquistar o reconhecimento social em detrimento
de outro? Seria uma mera questão de poder ou envolveria também uma base cognitiva? Segundo
Abbott (1988), muitos grupos profissionais, na competição pelo reconhecimento, tentam
desqualificar tecnicamente os competidores. Como ocorre a desqualificação? Tentando mostrar
basicamente que o outro grupo não realiza eficazmente a sua função, ou melhor, que o grupo
concorrente apenas realiza parcialmente o que se deveria fazer e o que o grupo, pretendente ao
monopólio, faz normalmente. Contudo, o reconhecimento nunca é definitivo, justamente porque a
base cognitiva do trabalho está sempre mudando. Por isso, Abbott prega que, no estudos das
profissões, precisa-se analisar os procedimentos sociais e cognitivos de cada trabalho. Embora
não ocorra um desprezo pelas questões de poder e de status, o interessante nessa posição é o
papel atribuído às operações cognitivas no trabalho profissional. Desse modo, na base cognitiva
da prática profissional, haveria três operações básicas que facilitariam a compreensão da
dinâmica das competências: o diagnóstico, a inferência e o tratamento. A segunda operação seria
essencial, pois é o espaço de luta e de controvérsias, já que não pode ser monopolizada
definitivamente por alguma competência, apresentando uma vulnerabilidade jurídica e, por isso,
podendo ser contestada constantemente. A inferência é a caixa preta do expert. É o espaço de
resolução de problemas, sendo o lugar de articulação entre o saber formal e a eficácia prática,
entre o conhecimento abstrato e os procedimentos concretos, entre as classificações legítimas e as
ações profissionais. Quem conquistá- la adquire a jurisdição sobre o objeto das competências.
102
Pode-se perceber pelo que foi examinado acima que os estudos interacionistas sobre as
profissões, a partir da crítica ao funcionalismo, não foram uma desconstrução radical da
profissão, como a que foi realizada pelas análises neomarxistas e, de certa forma, pelas posições
neoweberianas. As análises interacionistas ainda revelam uma visão que tem como pano de fundo
o modelo colegial de profissão ? lembrar a biografia do próprio Hughes: um filho de pastor que
sempre apresentou um penchant pelo igualitarismo de base cognitiva e moral, não sendo
inconcebível, portanto, perceber uma influência indireta do modelo colegial na sua análise das
profissões. No entanto, tomando como ponto de partida a crítica ao funcionalismo, surgiram
outras teorizações do fenômeno profissional que deram um novo alento à sociologia das
profissões. O enfoque fugiu do minimalismo do interacionismo, deslocando-se para dois aspectos
mais amplos que foram cada vez mais ressaltados: a autonomia profissional no mercado de
trabalho e a utilização do saber. Nesse campo, estariam autores como Freidson (1984) e Larson
(1988) que relacionaram o controle e o monopólio do saber profissional ao poder de tipo
profissional. A profissão conectaria de forma orgânica, seja através das condutas e dos valores
profissionais, seja de forma institucional, o saber com o poder. Ao mesmo tempo, com a
ampliação do interesse pelas profissões, surgiram outras teorizações parecidas e complementares
às analisadas acima, vindas das sociologias da organização e do trabalho. A primeira,
influenciada pelos trabalho de Weber sobre a burocracia e o processo de racionalização social,
apreendeu a profissão como uma forma de organização especial, paralela à organização
burocrática. A segunda deu ênfase ao problema da qualificação nas sociedades modernas e à
inserção no mercado de trabalho, numa posição mais inspirada pela economia política marxista
(Braverman, 1976; Derber, Shwartz, 1988).
O que mais transparece na maioria dessas teorizações sobre a profissão seria que o poder
profissional estaria relacionado ao monopólio de um saber especializado e à posição particular do
profissional no mercado de trabalho, seja numa escala individual ou coletiva. Acreditamos que
um tal "enquadramento" da profissão permita uma melhor apreensão histórica do surgimento do
fenômeno profissional, já que, apesar de suas origens remontarem às antigas corporações da
Idade Média, ele se constituiu como um fato moderno nascido do processo de racionalização
social — da posição historicamente determinante da ciência nas sociedades modernas— e da
103
solução institucional ao problema essencial da alocação de recursos e de mão-de-obra: o mercado
de trabalho 54 — ou, pelo menos, historicamente a profissão desenvolveu-se enquanto tal, a partir
desses dois pólos constituintes da modernidade. De um lado, a revolução liberal, pela qual passou
a Europa no século XIX55, inaugurou um novo regime jurídico que conectava a livre disposição
da mão-de-obra às "forças naturais do mercado". A tradução jurídica dessa conexão expressava
um mercado de trabalho regido fundamentalmente pelo preço dos produtos (bens e serviços) e/ou
dos salários ? preço surgido justamente do encontro, garantido por uma liberdade formal e pelo
direito, entre compradores e vendedores de força de trabalho, vistos como empreendedores
(assalariados e donos de capital) supostamente independentes e racionais. De outro, a
racionalização social, inclusive a burocrática estatal, inaugurou um processo simultâneo de
padronização e especialização, de uniformização e expertise nos campos do conhecimento
aplicado que foi a base do esforço dos grupos profiss ionais ? a luta pela organização
profissional perpassa todo o século XIX e XX ? para criar um mercado de trabalho fechado ou
protegido e, também, para tentar estabilizar institucionalmente uma mão-de-obra rara e
qualificada, mantendo ou aumentando a sua posição social e seu prestígio. São duas lógicas que,
se não são incompatíveis por princípio, apresentarão dificuldades de harmonização entre si
durante todo o processo histórico de formação e desenvolvimento da democracia liberal. Não
causa surpresa, assim, que o paradigma liberal perceberá as organizações do mercado de trabalho
(quaisquer que sejam, inclusive e em particular as profissões) ou como exceções ? por isso,
necessitando de uma justificação funcional no campo macro-social ou macro-econômico ? ou
como produtos de monopolizações de fatias de mercado, incompatíveis com a livre circulação do
trabalho ? por isso, tendo a necessidade de serem criticadas ou abolidas.
As novas teorizações sobre as profissões, portanto, priorizam as análises sobre a
institucionalização do poder (status e privilégio) e a organização da economia (mercado de
54 Todas as sociedades devem encontrar uma solução ao problema da alocação de recursos e de mão-de-obra: "de um lado, o sistema de produção deve ser alimentado com os inputs de trabalho por ele requeridos; por outro lado, a força de trabalho deve ser abastecida com meios de subsistência monetários (renda) e sociais (status). O mercado de trabalho resolve os dois problemas de alocação simultaneamente, enquanto nas sociedades não-capitalistas ou pré-capitalistas encontramos predominantemente formas institucionais em que o tipo e o nível dos meios de subsistência fornecidos aos indivíduos dependem de outros fatores, e não das contribuições dos indivíduos para a produção social". (Offe, 1989:24). 55 Ver discussão sobre as transformações econômicas ocorridas na Europa do século XIX em Polanyi (1983).
104
trabalho e de serviços), colocando os grupos profissionais como entidades econômicas e
estatutárias. Desse ponto de vista, o profissionalismo seria visto mais como uma estratégia
política do que como uma exigência funcional do sistema ou o resultado de configurações
relacionais. Weber é o ponto de convergência de todas essas teorizações, mesmo para aquelas de
cunho neomarxistas, provavelmente porque a teorização weberiana abordou direta ou
indiretamente questões relacionadas às profissões, além de ter criado categorias analíticas
extremamente úteis ao exame do fenômeno profissional. Um autor como Freidson, por exemplo,
embora seu trabalho sobre a profissão médica (1984) tenha um quê interacionista, produziu textos
sobre as profissões que têm um sentido weberiano.
Ilustrando melhor essa questão, acreditamos que, em relação à medicina, Freidson tentou
mostrar que, após as revoluções científicas na biologia, a profissão médica incorporou uma base
cognitiva apreciável que foi utilizada para deslegitimar outros conhecimentos concorrentes. Na
competição pelo reconhecimento social e pela legitimação, principalmente aquela auferida
através do Estado, a medicina moderna levou uma grande vantagem, a tal ponto que essa nova
competência médica tornou-se perigosamente invasiva, ocupando e dominando todo o campo
institucional da saúde ? inclusive, subordinando as outras profissões da saúde ao ditame médico
e conseguindo até impor políticas públicas56. Com isso, deixou de existir, segundo Freidson, a
distinção entre o conhecimento científico sobre a doença e a terapia ? elementos completamente
restritos à base cognitiva do saber médico ? e as modalidades sociais de sua aplicação, o que
significa dizer que o saber transformou-se em poder. Em termo weberianos, a medicina tornou-se
uma expertise ao anexar o político (controle das formas sociais de aplicação do saber),
amalgamando saber e poder. O monopólio da racionalidade científica aplicada ao campo
profissional criou peritos que fundam seu poder na aplicação de um dado saber numa área
importante do campo social.
56 Atualmente, estamos presenciando, no Brasil, toda uma série de controvérsias em torno do Ato Médico (Projeto de Lei 025/2002), que define que todo procedimento técnico-profissional de promoção, prevenção, diagnóstico e de tratamento de enfermidades são atos privativos do profissional médico. Ele é acusado, por outras profissões da saúde, em particular pelos psicólogos, de monopolizar as atribuições profissionais sanitárias na medida em que centraliza a organização das atividades de saúde na figura do profissional médico. Temos aqui um belíssimo exemplo de conflito interprofissional e de luta por espaços de saber e de competência.
105
Na nossa opinião, toda essa seqüência de estados e mudanças possui como base o
processo de racionalização social, embora vários autores57 tenham colocado justamente o
contrário: o sintoma da racionalização social é a desprofissionalização, isto é, a padronização e a
rotinização das tarefas, dissolvendo a especialização, logo, a expertise. Embora concordemos que
a racionalização padronize a especialidade e torne rotina o que antes era um saber esotérico,
acreditamos que isso é apenas um lado do processo, pois acontece também e ao mesmo tempo o
inverso: a crescente especialização e complexidade das tarefas burocráticas e do serviço público,
necessitando da expertise e de formas aplicadas de conhecimento especializado. Inclusive,
examinando o desenvolvimento histórico do Estado Contemporâneo, percebe-se que o aparato
estatal e público tornou-se cada mais complexo e especializado, causando até mesmo um grande
problema de representatividade e de legitimidade democráticas. Talvez o processo de
racionalização não tenha como destino inquestionável o fim das profissões e sim aconteça o
contrário, isto é, a formação da expertise seja justamente sua conseqüência, ou seja, a
racionalidade legal-racional envolve também a criação de espaços cognitivos nos quais se exige a
aplicação de conhecimentos especializados impossíveis de serem padronizados. Se a
padronização determina a banalização de um campo de aplicação de conhecimento, logo, a perda
da autonomia técnica e do saber, seria fundamental, em tais espaços cognitivos, justamente por
razões práticas e de eficiência, o controle individual, por parte do especialista, da aplicação do
conhecimento no processo de trabalho.
Subtende-se aqui que nem sempre é possível reduzir um trabalho profissional a um
trabalho burocrático. Certo, a decomposição de trabalhos complexos em simples, permitindo a
padronização e rotinização das tarefas, é um dos fundamentos da burocratização, mas é preciso
que existam "disposições" técnicas e sociais para a "desprofissionalização". Assim, podem
ocorrer, por exemplo:
• situações nas quais um trabalho complexo tem a possibilidade técnica de ser
decomposto, mas é monopolizado por um grupo social que pode impedir a sua
decomposição;
57 Ver tal discussão em Diniz (2001: 39-42), quando analisa diversas posições sobre a desprofissionalização, conseqüência justamente da racionalização social. O tema da desprofissionalização é a contrapartida neoweberiana ao tema da proletarização dos neomarxistas.
106
• situações em que o trabalho complexo não é formalmente monopolizado, mas não
existem condições técnicas para reduzi-lo;
• situações em que o trabalho complexo não é monopolizado e existem condições
técnicas para reduzi- lo;
• e, enfim, situações nas quais o trabalho complexo é monopolizado e não existem
condições técnicas para o decompor 58.
Acreditamos que o trabalho médico encarne esta última situação: um trabalho complexo
monopolizado por um grupo social específico e valorizado socialmente e que é, pelo menos por
enquanto, irreduzível tecnicamente 59. Por isso, a administração burocrática consegue menos se
apropriar do que impor limites de competências e um controle externo sobre o resultado do
trabalho profissional médico. A burocratização completa da atividade médica, abstraindo as
questões relacionadas ao poder e à legitimidade social, exigiria a red ução de um trabalho
complexo em vários trabalhos simples, o que reclamaria uma transformação qualitativa na
divisão social e técnica do trabalho60 ? esta situação hipotética eliminaria, a nosso ver, a
natureza profissional do saber médico enquanto tal. Contudo, essa hipótese não é a mais
provável, pois o que geralmente acontece é o desenvolvimento tecnológico criando a necessidade
de outras especializações médicas e, com isso, surgindo outros segmentos profissionais. Ainda
que novas técnicas possam substituir trabalho médico, geralmente os novos procedimentos não se
desenvolvem sem o trabalho de outros médicos. Provavelmente, o que se desqualifica é a tarefa
que a tecnologia e/ou a burocratização simplificaram e banalizaram, e não o profissional
propriamente dito. O profissional não perderia necessariamente a autonomia técnica por causa da
58 Evidentemente, não falamos, aqui, daquelas situações onde uma atividade perde o seu status profissional diante de uma inovação tecnológica. Nesse caso, o problema não é a decomposição do trabalho em trabalho simples, nem a perda do controle do saber, mas sim a substituição, pura e simples, de um saber por outro. 59 Contudo, em tese, a psiquiatria pode ser enquadrada na primeira situação. O trabalho em equipe na saúde mental pode decompor o trabalho psiquiátrico, retirando o monopólio do psiquiatra. Em algumas equipes, o psiquiatra só possui uma exclusividade: o tratamento medicamentoso. Daí a sensação de alguns entrevistados de estarem sendo "despossuídos"... 60 A transição histórica do artesão independente para o operário necessitou, é certo, de uma transformação na organização econômica e social, em suma, na divisão social do trabalho, mas também de uma série de invenções tecnológicas concomitantes, inclusive de natureza administrativa e de controle produtivo, como a manufatura. As mudanças na relação tecnologia/divisão social do trabalho permitiram paulatinamente a redução de um trabalho complexo, como o de um artesão, em vários trabalhos simples, como o de um operário. Ver posição contrária a esta acima defendida em Marglin (1989) e, para uma discussão mais geral sobre tecnologia e desenvolvimento capitalista, ver Elster (1989).
107
desqualificação da tarefa ? geralmente, migra para outra área ou atualiza sua competência para
novos procedimentos.
A racionalização social, assim, não seria um processo unívoco de padronização e de
burocratização, bem como envolveria mais de um tipo de controle do trabalho. Freid son (1986),
ao analisar o mecanismo que conecta a institucionalização do saber e a monopolização do
mercado de trabalho, defende que exista, pelo menos idealmente, três tipos de controle do
trabalho: a) controle dos empresários, via a burocracia, principalmente da empresa privada; b)
controle dos consumidores, através do mercado ? visão liberal do mercado; c) controle dos
trabalhadores, correspondendo ao profissionalismo. Na nossa opinião, Freidson (1998: 191-263)
confere um lugar privilegiado, para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do profissionalismo, ao
modelo colegial – vocacional, ao mesmo tempo em que põe um peso importante, no estudo dos
grupos profissionais, no papel da ética e dos valores ? assim, para bloquear a razão instrumental
(racionalização legal-racional), nada como a razão substantiva; ou seja, uma operação que,
certamente, nutre-se do aporte weberiano. E, ao valorizar a racionalidade axiológica, Freidson
compartilha, nesse sentido, uma posição semelhante com a defendida pelo paradigma
funcionalista.
No fundo, há toda uma preocupação, não só de Freidson, mas também das novas
teorizações sobre as profissões, em criticar a crescente aproximação ou mistura entre o saber e o
poder ? o funcionalismo parece não perceber o problema, como se o profissionalismo fosse, por
definição, vacinado contra as interpelações do poder. Inclusive, podemos inferir que a análise
deveria ultrapassar a mera percepção de que o saber está fundindo-se ao poder no campo
profissional, pois, talvez, o pano de fundo da questão seja a crescente inscrição do conhecimento
científico no próprio mundo econômico. A ciência, desse ponto de vista, não pode ser mais
examinada como um processo exterior ao mundo produtivo, mas sim como um elemento
constituinte da própria produção econômica, a tal ponto de ser um fator incontornável da criação
do setor de produção de bens e de serviços no capitalismo. Marx (1980) faz, até mesmo,
referência a uma situação na qual a produção de valor através do trabalho seria substituída pela
produção de valor por intermédio do conhecimento ou da ciência. Numa sociedade onde a
produção dependeria cada vez mais do conhecimento científico, na produção do valor, a ciência
(conhecimento e informação) e o trabalho teriam papéis complementares.
108
Os grupos profissionais, nesse sentido, manteriam uma relação particular com o setor de
serviços e com o saber em geral, a tal ponto que alguns autores colocaram essa relação especial
como fazendo parte fundamental da constituição de uma "nova classe média"61. Desse ponto de
vista, pode-se dizer que a profissão representaria, historicamente, uma forma de organização
privilegiada dessa "nova classe média". Um profissional assalariado, assim, não faria parte da
"classe dos trabalhadores", pois não estaria completamente "despossuído" ou "livre" no mercado
de trabalho, isto é, ele teria o controle coletivo, através da profissão, da formação e da utilização
de seu principal meio de produção: o saber profissional ? sendo este considerado como um meio
de produção, pois na sua ausência não há produção de serviço. Seria o monopólio de tal meio de
produção que produziria uma "reserva de mercado" — um dos fundamentos de uma profissão —,
e não o contrário: a "reserva de mercado" produzindo o monopólio. A profissão assalariada, dessa
forma, distinguir-se- ia da profissão liberal pelo fato de esta última deter, ao mesmo tempo, o
saber e os outros meios de produção necessários para exercer sua atividade.
Um médico liberal, por exemplo, possui uma "reserva de mercado" no setor de serviços e
não no mercado de trabalho, porque sua condição de profissional independente, detentor de todos
seus meios de produção e de sua força de trabalho, libera-o da necessidade de vender esta última,
oferecendo justamente o resultado de tal combinação (força de trabalho + meios de produção) no
mercado de bens e serviços. No entanto, a profissão liberal ainda é uma modalidade da
organização profissional, pois a diferença entre o liberal e o assalariado estaria no fato de que
possuem uma relação diferente com os dois tipos de mercados complementares ao capitalismo: o
mercado de bens e serviço e o mercado de trabalho. A unidade conceitual das duas modalidades
de exercício da profissão residiria no controle do processo de trabalho ? a autonomia técnica ?
e numa "possessão" coletiva de seu principal meio de produção, o saber, via organização
profissional. De todo modo, torna-se cada vez mais raro o exercício liberal na medicina,
principalmente o tipo "puro", que possui todos os meios para a produção do serviço médico, já
que o desenvolvimento tecnológico na profissão médica está impossibilitando o manuseio e a
posse individuais da alta tecnologia empregada.
61 As análises de Poulantzas (1978; 1985) seriam um exemplo de conceituação dos grupos profissionais como constituintes dessa "nova classe média". Para uma problematização do problema da noção de "classe média" no marxismo, Wright (1978;1985). Para uma crítica de matiz weberiana a essa conceituação, Diniz (2001).
109
Já um médico assalariado, trabalhando num hospital privado, não dispõe dos meios de
produção necessários ao exercício de sua profissão, pois tais meios pertenceriam ao(s)
proprietário(s) do estabelecimento (sala de consulta, aparelhos de exames complementares, etc.)
— o médico assalariado estaria assim, de certa forma, "despossuído" de seus instrumentos de
trabalho. No entanto, visto que "possui" o controle coletivo da produção e da utilização do saber
médico por intermédio da organização profissional, ele estaria um "degrau" acima do que se
chama comumente de "trabalhador". Nesse sentido, a profissão assalariada representaria um caso
limite de desenvolvimento da forma profissional de trabalho, não implicando, mesmo que o
profissional fique sujeito à racionalização formal da burocracia e ao controle gerencial, a perda da
sua autonomia, isto é, o médico continua podendo propor solução, sem qualquer interferência
externa, a problemas no âmbito de sua exclusiva competência técnica.
Pelo que entendemos, a proletarização do profissional significaria a perda da autonomia
técnica, último reduto da independência do profissional. Pode acontecer até mesmo que o
profissional assalariado, pelas circunstâncias já arroladas, perca de vista a finalidade ou o sentido
do trabalho, mas, enquanto mantiver a sua autonomia técnica, conservará a sua condição de
profissional. A garantia coletiva do monopólio do saber faz com que as estruturas colegiadas,
típicas da profissão, protejam-na das estruturas burocráticas. Ora, quem julga o trabalho de um
profissional é outro profissional, mesmo que o primeiro esteja submetido a uma hierarquia típica
do modelo gerencial. Haveria, para o profissional, uma dupla proteção: de um lado, a autonomia
propriamente dita, propriedade de grupos ocupacionais organizados coletivamente, apresentando
uma mínima capacidade de regular, independentemente do fato de que a regulação seja delegada
pelo Estado, a formação profissional, a aplicação do saber e a delimitação das competências; de
outro, a autonomia enquanto expertise, ou seja, a ação técnica e cognitiva individualizada que
permite o mínimo controle sobre o processo de trabalho 62.
Indubitavelmente, o assalariamento implica alguma perda para o profissional, embora não
implique uma proletarização. Inclusive, muitas profissões recentes já surgiram assalariadas ? a
62 De todo modo, essa dupla proteção deve ser relativizada, pois existem profissões que não têm necessariamente auto-regulação, nem exclusividade cognitiva (enfermagem, serviço social e turismo), mas, apesar disso, mantêm um status profissional. Ver a propósito disso a discussão sobre o conceito de emulação de status ? profissões que copiam outros modelos profissionais para adquirirem status profissionais ? em Diniz (2001: 89-90).
110
engenharia é um caso exemplar no Brasil: surgiu e continua predominantemente sendo
assalariada (Diniz: 2001). Mas qual seria a perda para a profissão no assalariamento?
Possivelmente, a condição assalariada implicaria a ausência de controle sobre os termos e as
condições do trabalho, cuja determinação passaria pelo âmbito da hierarquia gerencial. Como já
dissemos, o profissional assalariado não mais dominaria as circunstâncias de sua atividade,
principalmente no que concerne os fins e sentido do seu trabalho. Resgatando uma noção do
interacionismo, a carreira profissional não é eliminada sob a condição assalariada. A tarefa e a
posição no processo produtivo podem até ser desqualificados; contudo, enquanto a autonomia
técnica for preservada, enquanto existir um monopólio de mercado, a estrutura de oportunidades
criada por essas duas condições permite ao profissional a preservação de uma carreira normal ?
um dos benefícios do fechamento é uma estabilidade ocupacional que torna possível a construção
de uma carreira.
Os problemas analisados acima, justamente o crescimento do assalariamento e o declínio
da modalidade liberal da profissão, são interpretados, por alguns neomarxistas, em particular
Johnson (1972), como a transição de uma forma profissiona l baseada na auto-regulação para uma
nova forma fundamentada na "proteção corporativa" (corporate patronage). O ator principal
dessa passagem é o Estado, quando passa a implementar mecanismos de controle nos setores de
serviço. A exigência de controle acontece quando o capitalismo torna -se monopolista, e o Estado
assume de vez a responsabilidade de assegurar a reprodução da força de trabalho necessária ao
funcionamento e à valorização do capital. Sendo a profissão uma produção de serviços, a relação
entre profissão e Estado torna -se uma articulação, muitas vezes problemática, entre a regulação
do mercado, realizada por várias organizações econômicas, e o controle estatal dos setores de
serviço. O Estado passa a delegar, principalmente no capitalismo monopolista, autonomia a
alguns grupos profissionais para gerir uma fatia do mercado de serviços. Por causa dessa
delegação, o Estado e as profissões partilham, digamos assim, o controle e a reprodução ampliada
da força de trabalho. Como toda regulação de interesses tem sua contrapartida, a partilha obriga
as profissões a prescindir da auto-regulação, trocando-a pela "proteção corporativa", ao mesmo
tempo que força o Estado a renunciar ao controle e à gestão de setores do mercado de serviço.
Seria justamente o fechamento de um mercado, para uma autora como Larson (1977), o
objetivo supremo das profissões. Ela chama esse objetivo de "projeto profissional", cuja natureza
111
não é subjetiva ou construída individualmente, sendo sim um processo histórico e objetivo no
qual um grupo profissional adquire o monopólio do mercado. O "projeto profissional" é, assim,
uma estratégia histórica e coletiva de constituição de um mercado profissional. E, como a
constituição de um mercado profissional não significa apenas um processo puramente
econômico, pois necessita de legitimação e reconhecimento sociais, o fechamento ou a clausura
social (social closure) representa o resultado da junção entre o monopólio de um mercado e o
reconhecimento social de um saber. Nesse sentido, o fechamento é um processo ao mesmo tempo
econômico e cultural, envolvendo a gestão de uma fatia do mercado, um saber reconhecido e
transformado em expertise e, conseqüentemente, produtor de poder. É um saber operacional e
capaz de ser transposto para o mercado. Sua operacionalização é adquirida através da formação
profissional e, por isso, a universidade ocupa um papel central, inclusive como fomentadora de
valores e crenças. E seria na universidade que se realizaria de forma concreta uma das
conseqüências do igualitarismo moderno: a diferenciação individual baseada no mérito. Larson,
aqui, faz uma crítica à ideologia meritocrática, justamente à crença numa desigualdade natural
das inteligências individuais, cuja legitimação permite a seleção entre indivíduos com os mesmos
direitos e as mesmas chances. Seria o Estado quem garantiria e, até mesmo, reproduziria a crença
meritocrática ao manter um sistema de educação nacional, validando a idéia da igualdade de
chances entre indivíduos competindo por posições e disposições sociais ? são sujeitos
juridicamente individualizados, pois a igualdade de chances é um direito individual e não
coletivo. Assim, através do mérito, potencializado pela formação educacional, legitima-se o
monopólio da competência ou das habilidades (Diniz: 2001). O mérito é o sinal do sucesso do
indivíduo no sistema e sua visibilidade mais fidedigna passa pela aquisição de um diploma ?
adquiri- lo passa a ser um sinal de competência e, em torno de sua posse, acontece uma
competição acirrada.
Desse ponto de vista, a igualdade de chances é uma ilusão, já que não pode realmente
existir numa sociedade ainda baseada na desigualdade social. O mérito não se constitui pela
aquisição de uma competência, consumada a partir de uma condição igualitária, e sim por
disposições sociais alicerçadas na exclusão social. O diploma seria menos um sinal de sucesso do
que um instrumento de exclusão, tornando ideológica a ficção da igualdade de chances. Sendo
assim, o profissionalismo torna-se naturalmente o principal suporte da ideologia meritocrática,
identificada à ou mesmo afirmada como suporte importante da ideologia dominante. Estamos
112
aqui diante de teses weberianas prontas para se transformarem em proposições neomarxistas?
Ora, colocar o profissionalismo como fazendo parte da ideologia dominante é um passo para
julgar o profissionalismo como instrumento ideológico do capital. O profissionalismo, assim,
deixaria de ser apenas um processo social de conquista de uma legitimidade, tornando-se uma
ideologia funcional à dominação no capitalismo. O próximo passo é considerar, tal qual Wrigth
(1980), o controle sobre as competências ou as habilidades como uma exploração de classe. A
partir do momento em que se impede o acesso ao mercado de trabalho através de
credenciamentos educacionais, criando uma escassez artificial de pessoas habilitadas e
impossibilitando indivíduos não qualificados a exercer o trabalho, estaríamos diante de uma
exploração de classe. Mas por que exploração? Ora, os profissionais receberiam uma
remuneração maior do que o custo da produção de suas habilidades, justamente por causa do
fechamento que cria uma escassez de oferta de profissionais no mercado de trabalho. A diferença
entre remuneração e custo de produção perfaria uma espécie de mais-valia, a renda credencial!
Entretanto, essa renda não seria suficiente para equiparar os profissionais a novos burgueses ?
afinal, a mais-valia tradicional ainda é o mote supremo da exploração de classe ? , mas sim de
situá- los numa posição contraditória de classe.
Mas, para se produzir uma desconstrução radical da profissão, não há necessidade de se
passar para uma posição neomarxista. Ficar em Weber, basta. Inclusive, como afirmou Parkin
(1979: 25), "dentro de cada neomarxista parece haver um weberiano lutando para sair" e ?
acrescentaríamos ? vice-versa. A própria concepção da profissão como fechamento de um
mercado pode levar à percepção dos grupos profissionais como grupos de status, logo, enquanto
tais, legalmente privilegiados. O fechamento, objetivo do projeto profissional, já seria a
realização de uma estratégia de exclusão. Como escreve Diniz (2001: 128), baseando-se em
Weber, fechamento social é
o processo pelo qual coletividades sociais restringem, ou procuram restringir,
o acesso a recursos e oportunidades, geralmente de natureza material, a um
estrito círculo de elegíveis como forma de eliminar a competição; forma-se,
assim, um grupo de interesse que, persistindo o interesse monopolístico, pode
conseguir apoio legal para estabelecer um monopólio formal transformando-se
num grupo legalmente privilegiado.
113
Fechamento significa, em suma, exclusão e monopólio. Ele se realizaria através do
credenciamento, base de uma estratégia legalista de exclusão. As credenciais acadêmicas seriam
vistas como critérios excludentes de qualificação no mercado de trabalho. Pode-se indagar,
todavia, se até que ponto o critério meritocrático relativizaria a noção de grupo profissional como
grupo de status. Mas, como já vimos, a indagação sequer consegue se esboçar, já que, por
definição, o critério meritocrático é ideológico, sendo uma crença que mascara justamente a
exclusão perpetrada pelo credenciamento. Neutralizando assim o argumento meritocrático,
afirma-se o da exclusão e a definição dos grupos profissionais como grupos de status. O
monopólio profissional torna-se um fenômeno de poder, uma luta política pela realização de
interesses e privilégios. O projeto profissional, mesmo no sentido de Larson (1977), é assim um
projeto ideológico e de poder.
Porém, mesmo sendo de poder, o projeto profissional seria também um de saber? Sim,
embora seja um saber completamente acoplado aos ditames do poder, a ponto de se questionar a
própria base cognitiva da expertise profissional. O questionamento é amplo e, de uma forma
geral, critica a expertise de duas formas: a) a expertise ou a base cognitiva de uma profissão é
irrelevante do ponto de vista de sua gênese histórica; b) a expertise não é fundamental para se
definir a natureza de uma profissão. Na primeira forma, os estudos históricos prevalecem,
mostrando que a medicina, por exemplo, tornou-se uma profissão antes que qualquer forma de
superioridade técnica pudesse fazer alguma diferença, isto é, a expertise médica só aparece
depois da consolidação política da profissão e do fechamento de mercado63. Na competição com
outras terapias alternativas, a base cognitiva da medicina foi irrelevante e, o que pesou de fato, foi
uma luta política baseada numa construção ideológica cujo ideário era a defesa da medicina como
a única forma possível de se tratar as doenças. Através dessa estratégia político-ideológica, a
medicina conquistou o mandato exclusivo de tratamento das patologias, "descredenciando" todas
as outras terapias concorrentes. Não sendo mais eficaz do que outra terapia alternativa, o seu
mandato exclusivo foi construído através de uma estratégia que não passaria necessariamente
pela legitimidade cognitiva do saber ? a capacidade de um saber de produzir conhecimentos e
63 Essa tese é defendida por um amplo leque de autores: Larson (1977), Collins (1990), Campos (1999), Goldstein (1997), Sournia (1992), Foucault (1987).
114
intervenções práticas em relação ao objeto de disputa (no caso da medicina, a produção de
conhecimento e tratamento eficaz das doenças).
A radicalização dessa tese acontece quando o papel diminuto da expertise na gênese da
profissão é transferido à totalidade da história profissional. Todavia, uma coisa é afirmar que a
expertise teve um papel secundário no surgimento da profissão, uma outra é, a partir desse fato
histórico, extrapolar a irrelevância da base cognitiva profissional para todas as fases do
desenvolvimento da profissão. O processo (diga-se: o desdobramento histórico da profissão) não
se esgota na gênese (leia-se: o surgimento histórico da profissão). O papel secundário atribuído à
expertise na formação histórica da profissão não é "carregado", como um destino, pela história
profissional ou, para utilizar outros termos, não há uma imanência na história profissional que
relegue eternamente a expertise a um papel secundário. A medicina, por exemplo, até as últimas
revoluções científicas da biologia, em particular a patrocinada por Pasteur, possuía uma relativa
legitimidade social, sofrendo a concorrência de terapias alternativas, simplesmente porque sua
base cognitiva ? leia-se: seu difuso e confuso conhecimento patológico e sua ineficácia
terapêutica ? era frágil e tão ineficiente quanto à dos seus concorrentes. Entre um médico e um
curandeiro, a diferença era, do ponto de vista da eficácia do tratamento, muito relativa. O que as
ciências biológicas trouxeram à medicina foi, primeiro, a legitimidade científica de sua base
cognitiva ? a etiologia científica das doenças ? e, segundo e mais posteriormente, uma eficácia
inigualável. Das diversas práticas e saberes terapêuticos existentes, a medicina foi a única que
conseguiu legitimar-se através da ciência. Sendo o conhecimento científico a base de legitimação
da maioria dos discursos e das práticas profissionais na atualidade, fica fácil perceber o imenso
aporte simbólico que acarretou a transformação da medicina numa medicina científica. Sua
relação com a ciência trouxe ainda mais um adendo ao tornar-se tecnológica e compulsiva pelo
resultado, essa obsessão proveniente de um mundo dominado pela técnica. Em suma, embora a
expertise possa ter tido um papel irrelevante na gênese da profissão médica, a partir das
revoluções biológicas, a base cognitiva da medicina ampliou-se e se tornou fundamental para a
sua legitimação e para sua realização enquanto prática profissional.
A segunda crítica à expertise procura mostrar que a base cognitiva de uma profissão não é
fundamental para a sua definição. Com exceção das posições funcionalistas e neofuncionalistas,
praticamente todas as outras posições colocam a expertise profissional numa posição secundária a
115
outros atributos, os quais são vistos como fundamentais para a caracterização da profissão. Como
já vimos acima vários exemplos dessas posições, o que analisaremos agora é a radicalização da
crítica à expertise, quando não só sua importância é negada, mas também sua existência enquanto
tal. Collins (1990)64, por exemplo, identifica expertise com educação formal, especificamente
aquela que é adquirida em uma formação universitária. Como para este autor as habilidades
técnicas do médico são adquiridas na prática, portanto, depois da formação profissional, e como,
por definição, a aquisição da expertise somente ocorre através da educação formal, logo, não
haveria expertise na medicina. O conhecimento médico seria adquirido in job65, isto é, no
trabalho, já que a formação universitária transmite habilidades que não são requeridas na
atividade profissional. Há aqui uma clara desqualificação do ensino médico na transmissão do
conhecimento técnico e profissional, porque, para Collins, o ensino médico é constituído por
materiais secundários que não terão influência na prática profissional, esta sim formadora da
experiência e do conhecimento médico. A importância da formação universitária teria menos
relação com a formação da base cognitiva da profissão do que com a interiorização de valores e
condutas da profissão ? o ensino médico enquadra o estudante para se adequar à vida
profissional. A formação universitária seria, assim, uma formação mais axiológica e normativa do
que técnica e profissional. A educação formal seria funcionalmente relacionada à criação de
vocação ou, digamos assim, de honra ocupacional, produzindo recursos simbólicos que serão
traduzidos em status e posições ocupacionais privilegiadas66.
Quando alguns médicos afirmam que sua profissão é uma "arte" e não uma ciência
(Freidson: 1984; Strauss: 1992; Perrusi: 1995), querem dizer muitas vezes com isso que a
formação universitária não é tão fundamental quanto a experiência profissional. Assim,
concordariam com a observação de Collins de que o saber médico é adquirid o in job, embora
talvez não admitissem que esse conhecimento adquirido na prática não seja, de fato, uma
expertise. Além do mais, Collins define a expertise como uma competência técnica efetiva que
produz resultados demonstráveis e que pode ser transmitida através do ensino; ora, é bem
64 Seguimos aqui a discussão de Diniz (2001) sobre Collins. 65 Sem necessariamente criticar a educação formal e a expertise, Freidson (1984) faz a mesma observação. 66 Pode-se fazer, aqui, uma aproximação com as posições de Bourdieu (1970;1980), quando da sua discussão sobre o capital social e o simbólico e sua transformação em posições e disposições sociais privilegiadas.
116
provável que os médicos julguem seu conhecimento como efetivo, eficaz e perfeitamente
transmissível por intermédio da educação, discordando, portanto, da afirmação de que o saber
médico não é uma expertise. Nesse sentido, pode-se intuir que, se a medicina não é uma
expertise, a crença de que seja uma de fato é um produto ideológico derivado principalmente da
formação universitária ? ocorre nela a reprodução de uma ficção (a medicina como expertise)
que tem efeitos reais, principalmente no imaginário social e nas representações sociais, já que são
as próprias instituições profissionais da medicina, incluindo os médicos, que legitimam a ilusão.
E, se a expertise médica não tem importância ou é uma ilusão, a psiquiatria, então, cujos
resultados são tão controvertidos, passaria longe de um conhecimento que produz resultados
demonstráveis e efetivos. Nesse caso, considerar o saber psiquiátrico como uma expertise seria
uma completa fantasia, a começar que os benefícios do tratamento psiquiátrico ainda concorrem,
segundo essa posição, com os acasos e os efeitos placebos de outras terapias alternativas. Por
causa disso, inclusive, a psiquiatria seria considerada uma pseudoprofissão ou, na melhor das
hipóteses, uma ocupação com status profissional problemático.
Tais posições contra a expertise são, geralmente, acompanhadas por uma subestimação do
papel da ciência na formação do saber profissional. Inclusive, é isso o que faz Diniz (2001: 170)
quando afirma: "a prática cotidiana dos médicos apóia-se muito pouco nas ciências
biológicas...". O raciocínio, nos desdobramentos produzidos pela autora, não inclui apenas a
prática médica, mas também todas as profissões: o conhecimento posto em prática pela
engenharia teria, igualmente, uma relação um tanto distanciada das ciências físicas, assim como,
oferecendo outro exemplo, o direito não teria, segundo Diniz, uma base científica. Examinando
melhor a argumentação, percebe-se que, ao se atacar a base científica das profissões, fica
logicamente mais fácil a crítica ao credenciamento enquanto tal:
as credenciais acadêmicas dos profissionais, antes de serem a expressão de
algum critério meritocrático para acesso a vantagens e privilégios
ocupacionais constituem, independentemente do conteúdo do conhecimento
que elas possam atestar, uma regra de exclusão social e de monopolização de
posições privilegiadas no mercado de trabalho e de status na hierarquia
ocupacional (171 – no texto original, o negrito aparece em itálico).
117
O argumento, como se percebe, é enfático: ainda que houvesse uma demonstração de que
o saber profissional tem uma base científica, o credenciamento não teria sua legitimidade
auferida da ciência, nem do mérito, já que as credenciais acadêmicas são, por definição, uma
regra de exclusão social e de monopólio de status. Como a expertise e a base científica da
profissão são desconsideradas, o que resta é uma definição de profissão totalmente identificada às
injunções do poder e da busca de privilégio. Por isso, a legitimação do fechamento profissional
pelo mérito (credenciais acadêmicas) e pela expertise (base cognitiva) é vista como uma
construção ideológica, ou melhor, como um efeito do exercício do poder profissional, o qual
mascararia, através de uma prática discursiva baseada no merecimento e na ciência, a verdadeira
natureza excludente e monopolista da profissão. Todo o discurso meritocrático e
(conseqüentemente) igualitário sobre a profissão é desconstruído e posto em questão; inclusive, o
suposto igualitarismo profissional, baseado na meritocracia, é uma construção aparente, pois o
que o profissionalismo perpetua realmente no meio social é um tipo de hierarquização social: a
hierarquia ocupacional.
Posto isto e finalizando a discussão, podemos fazer agora algumas observações críticas às
posições descritas acima:
Ø ao identificar educação formal e expertise, mas deduzindo que o conhecimento
profissional é adquirido in job, Collins diminui a importância cognitiva da
expertise. Com essa estratégia, vai-se além da inferência de que conhecimento
profissional e organização social do trabalho não podem ser analisados
separadamente, pois se deduz também que a organização social do trabalho produz
o conhecimento profissional. As conseqüências desse raciocínio são várias: a) o
conhecimento profissional, subsumido na experiência de trabalho, não tem
verdadeiramente uma base científica; b) a base cognitiva da profissão não é
universalizável, pois local e restrita à multiplicidade das situações de trabalho ? o
saber é artesanal; c) o conhecimento produzido possui uma dependência relevante
dos processos de negociação entre os diversos atores envolvidos na situação de
trabalho. O saber fica dependente da posição social do profissional, de sua
experiência e formação acadêmica, da hierarquia profissional e da instituição onde
os profissionais trabalham e foram treinados ? em suma, o resultado é produto do
118
encontro de diferentes "mundos sociais" institucionalmente fixados,
personificados por cada profissional; d) tal base cognitiva não é alicerçada em
proposições objetivas, advindas da ciência, e sim em interpretações subjetivas
condicionadas pelas circunstâncias nas quais se encontram os atores envolvidos;
Ø como o conhecimento profissional adquire-se in job, a ciência, que seria, em tese,
a base da educação formal universitária, ficaria preterida do processo de aquisição
do saber profissional. A educação formal é, praticamente, identificada ao
enquadramento normativo do futuro profissional ? a base cognitiva seria somente
adquirida durante a experiência de trabalho. Há, aqui, uma clara subestimação do
papel atual da ciência na formação profissional, mais ainda em se tratando da
formação médica. Embora possamos concordar com a crítica do papel normativo
da educação universitária, achamos um claro exagero, por exemplo, a afirmação
de que "a prática cotidiana dos médicos apóia -se muito pouco nas ciências
biológicas...". ? talvez não se apóie de forma exclusiva, mas certamente há
alguma base científica. O médico não é um cientista, mas aplica, como
profissional, diversos conhecimentos e saberes advindos, sem dúvida, de sua
prática, mas também de sua formação profissional, a qual não pode ser reduzida a
um mero papel normativo ou, em outros termos, a um aprendizado de como se
exerce uma forma de poder que cria status e posição social. Reduzir ou eliminar o
papel da ciência na formação profissional faz com que a análise perca de vista
justamente o que, de fato, legitima atualmente, para o bem ou para o mal, a base
cognitiva da medicina: a ciência;
Ø geralmente, expertise é identificada a um conhecimento adquirido na prática ?
um saber facilmente operacional. Como parece que, nessa posição, a expertise
confunde-se com o exercício do poder profissional e a educação formal com o
enquadramento normativo, ela findou sofrendo um deslocamento conceitual,
tomando o caráter de um conhecimento adquirido formalmente e distante da
experiência de trabalho; com isso, provavelmente, preserva -se melhor uma
posição teórica que a considera como um meio de transmissão e afirmação do
poder profissional ? a base cognitiva, assim, é nitidamente desconsiderada.
Discordando dessa abordagem, consideramos que a expertise médica, por
119
exemplo, possui uma inegável base cognitiva, tanto proveniente da medicina
científica, como da experiência no trabalho, ao mesmo em que é uma forma de
exercício de poder. Do nosso ponto de vista, reconhecer a expertise implica em
percebê- la como uma atividade cognitiva que envolve desdobramentos práticos no
qual estão inscritos, de um modo um tanto indissociável, saber e poder;
Ø temos a impressão de que o pano de fundo ou a priori da discussão sobre a
expertise, nunca verdadeiramente explicitado ou problematizado, repousa na
crença da igualdade cognitiva, cujo alicerce provável encontra-se num dos valores
principais da modernidade: a igualdade. Podemos resumir tal crença da seguinte
forma: "... todas as pessoas têm a mesma capacidade potencial e (...) são todas
capazes, portanto, de aprender todas as habilidades especiais que constituem o
universo do trabalho em nossa sociedade" (Freidson: 1998, 200). Algo semelhante
a essa visão já se encontrava no jovem Marx (2001) quando de suas invectivas
contra a especialização trazida pela divisão social do trabalho; assim, a
especialização é percebida como redutora do potencial humano, justame nte por
impedir o indivíduo de realizar a sua polivalência intrínseca, já que estaria
limitado a apenas uma tarefa (especialização) no trabalho. Mesmo assumindo
como verdadeira a hipótese da igualdade cognitiva, um mundo sem especialização
é possível? Certamente, porém seria um mundo onde a divisão social do trabalho
fosse bastante simples, permitindo ao indivíduo assumir, ao mesmo tempo,
diversos papéis e funções no trabalho, ou ainda, seria um mundo onde a escassez,
relativa ou absoluta, tivesse desaparecido e onde não existisse mais a necessidade
do trabalho, como na utopia comunista. Contudo, na sociedade atual, é impossível
que uma pessoa consiga abarcar todo o leque de atividades e saberes ?
simplesmente, não há tempo e recurso para isso. A especialização é uma
necessidade objetiva que preenche a lacuna deixada pelas nossas limitações de
tempo, espaço e cognição na divisão social do trabalho de uma sociedade
complexa;
Ø a crítica total à expertise pode levar ao seguinte paradoxo, caso se admita que um
cientista social, por exemplo, é um profissional: se a ciência tem pouca
importância na constituição do saber profissional, logo, a inferência do cientista
120
social de que a profissão possui uma diminuta ou mesmo nenhuma base científica
torna-se contraditória. Continuando o raciocínio, digamos que essa paródia da
afirmação de Diniz, "a prática cotidiana dos cientistas sociais apóia-se muito
pouco nas ciências sociais...", tenha alguma validade, já que, por definição, o
saber profissional fundamenta-se muito pouco no conhecimento científico; ora,
estamos aqui diante de uma contradição performativa ? como um cientista social
pode afirmar cientificamente que a expertise não tem uma base científica, se seu
saber profissional, justamente a sua expertise, na prática cotidiana, apóia-se muito
pouco nas ciências sociais? Pode-se argumentar contra esse raciocínio que o
cientista social não é um profissional e sim um cientista, ainda que na aparência
sua atividade tenha as características de uma ocupação profissional; assim, o
conhecimento sociológico produzido sobre as profissões, que nega ou diminui sua
fundamentação científica, seria científico. Pode-se argumentar ainda que cientista
social é uma profissão que garantiria, por algum motivo especial, intrínseco à sua
prática profissional, a cientificidade da sua expertise. Nesse caso, a expertise dos
cientistas sociais estaria imune às injunções do poder profissional, como acontece
nas outras profissões. A profissão de cientista social seria, assim, uma profissão
habilitada a dizer que as outras profissões têm uma base científica nula ou pouco
pronunciada;
Ø se a crítica à expertise possui uma relação com a defesa do igualitarismo
cognitivo, a condenação do credenciamento tem uma vinculação com a defesa do
igualitarismo tout court. 67 Há uma conexão entre as duas críticas e os dois tipos
de igualitarismo ? a defesa da igualdade cognitiva pode ser considerada como
uma conseqüência da defesa da igualdade social e econômica. Até mesmo porque
o credenciamento é o resultado da institucionalização da expertise. A sua
necessidade surge a partir do momento em que é preciso "...haver algum modo
convencional pelo qual as pessoas possam identificar um especialista sem
67 No século XIX, nos EUA, tivemos um exemplo eloqüente de defesa de igualitarismo radical: "uma advocacia sem advogados e uma medicina sem médicos, a prática de uma e outra aberta a todo e qualquer cidadão, tal era o princípio do igualitarismo radical que os republicanos jacksonianos opunham tanto ao monopólio da 'arte de curar' quanto aos privilégios de status reivindicados por médicos e advogados " (Coelho, 1999: 37).
121
depender de testemunhos verbais, de experiência pessoal anterior ou do emprego
de teste, arriscado e consumidor de tempo e de recursos" (Freidson: 1998, 202). O
credenciamento é uma forma de controle social da expertise que tenta garantir a
qualidade do serviço, ao impor critérios meritocráticos na produção social da
expertise. É um controle da formação de competências. Claro, como já vimos,
pode ser visto também como uma forma de fechamento de mercado e, por isso, de
exclusão social. É por isso que, do ponto de vista de uma economia política
liberal, o credenciamento é percebido como uma cartelização do mercado de
trabalho. Uma posição que defende o mercado de trabalho livre de restrições à
competição pensará o credenciamento como um "cercado social". Sem
credenciamento, o mercado seria encarregado do controle social da expertise na
sociedade. Controlaria a qualidade dos serviços simplesmente através da demanda
e da oferta de serviços. Todos, em tese, poderiam oferecer serviços médicos, por
exemplo, mas a demanda, através do movimento de consumidores, selecionaria a
qualidade dos produtos oferecidos e a competência dos prestadores de serviço.
Aqui, não se coloca propriamente em questão a necessidade da especialização ou
da expertise, e sim a forma de controle que impõe o credenciamento. Pode-se
imaginar que o mercado poderia, em princípio, controlar a distribuição das
competências e a qualidade dos serviços ? mas, e a produção da expertise? O
controle da distribuição implica o controle da produção? O controle da produção
da expertise não implicaria outra forma de controle diferente daquele do mercado?
Uma forma mínima de credenciamento? De todo modo, um controle
mercadológico das competências, para ser eficaz e justo, implicaria uma situação
um tanto utópica na qual as informações sobre competências ? logo, também
sobre seus produtos ? fossem acessíveis a todos. Como isso não parece fac tível, a
conseqüência mais plausível seria vermos os consumidores ficarem aprisionados
numa lógica interminável de escolha na base da tentativa e erro. Num certo
sentido, seria transpor a lógica do supermercado, onde o consumidor pode
escolher livremente os produtos, para o campo da oferta de serviços ? um
supermercado ocupacional?!
122
Ø por selecionar, ainda que seja através de critérios meritocráticos, o credenciamento
é excludente ? mas, toda seleção, quer queira quer não, é excludente, inclusive,
por exemplo, a lógica do mercado. O problema, na verdade, é saber se as bases
dessa seleção são justas ou não. Numa sociedade na qual um dos valores
fundamentais é a igualdade, o critério meritocrático permite, não só a realização
desse valor, mas também o acesso a um sistema de oportunidades. Contudo, ainda
que o credenciamento tenha como base o critério meritocrático, em várias
situações pode não ser justo (1998: 204). Talvez a solução seja a construção de um
consenso em torno de quais ocupações necessitam ou não de credenciamento, ao
invés de se negar completamente o credenciamento ou, ao contrário, de
simplesmente absolutizá- lo;
Ø um argumento positivo a respeito do credenciamento procura demonstrar que este
cria um "abrigo", isto é, uma proteção para o profissional. Sem essa proteção, o
profissional não teria estímulo suficiente para investir numa carreira ocupacional,
num treinamento longo para adquirir uma expertise. Nesse sentido, "o
credencialismo é um artifício institucional fundamental para motivar as pessoas a
investir tempo, esforço e a perder ganhos no período de treinamento necessário
para a aquisição de tipos específicos de expertise" (1998: 204). O credenciamento
cria uma relação de compromisso com o trabalho que alicerça a identidade
profissional e, conseqüentemente, reproduz a vocação. Nessa argumentação, a
ausência do credenciamento dificultaria o compromisso e o investimento de si no
trabalho profissional;
123
VIII. Capítulo III
A. Representação e Psiquiatria
1. Representação social e saber médico
Não fizemos aqui uma análise aprofundada 68 do conceito de representação social, pois, na
verdade, nosso interesse foi apenas o de situar o campo de aplicação do conceito em relação aos
objetivos de nossa pesquisa. Fizemos, assim, um uso pragmático do mesmo, adaptando-o à nossa
problemática. Claro, isso tem um preço, começando pelo fato de que não fomos fidedignos ao
uso canônico do conceito. Podemos até justificar isso, já que a noção de representação social é
um tanto polissêmica, apresentando vários tipos de apreensão teórica. Nesse sentido, depe ndendo
do contexto, flexionamos o conceito a ponto de, muitas vezes, identificá- lo a noções como visões
de mundo, ideologia, imagens, opiniões... Freqüentemente, usamos o conceito no sentido geral de
representação ou de idéia, como um conteúdo concreto apreendido pelos sentidos, pela
imaginação, pela memória ou pelo pensamento. De todo modo, sua utilidade vem da premissa de
que, para o estudo de processos identitários, há de se inferir elaborações representacionais. A
identidade envolve algum tipo de representação, seja de si mesmo, seja de grupo. Como a
identidade profissional é uma "construção social", pode-se perfeitamente imaginar que se
constitui através de representações partilhadas por várias pessoas que fazem parte de um
determinado grupo e, sendo partilhadas, são coletivas ou sociais ? mas, essa premissa não é
propriamente definidora do conceito de representação social... embora tivesse bastado aos nossos
intentos. Outra razão para o uso do conceito foi a sua importância na elaboração da noção de
representação profissional, se bem que, para isso, a premissa referida acima tivesse sido
suficiente. Porém, o trabalho de Blin (1997) convenceu-nos da necessidade e da utilidade de se
partir da noção de representação social para construir a de representação profissional. Enquanto
tal, mesmo tendo algumas especificidades, teria as características típicas que os diversos teóricos
afirmam ter a representação social. Enfim, como para nós a discussão sobre representações
profissionais tinha um valor empírico pronunciado, por comodidade espalhamos sua análise
conceitual na parte empírica de nosso trabalho.
68 Para isso, remetemos ao nosso próprio trabalho (Perrusi, 1995).
124
O conceito de representação social possui um parentesco pronunciado com o de
representação coletiva, elaborado por Durkheim. Pode-se dizer que o primeiro é o segundo... sem
holismo. Além do que, com o uso e a operacionalização, o conceito de representação social teve
um aprofundamento teórico sistemático. A noção durkheimiana implica, por causa de sua
natureza holística, postular que a sociedade é um sujeito sui generis que produz pensamentos
coletivos, cuja substância não é redutível ao pensamento individual. Exceto numa forma
estenográfica, não é plausível imaginar uma sociedade que pensa ? definitivamente, quem pensa
são os indivíduos, o que não impede que os conteúdos do seu pensamento sejam sociais.
Portanto, irredutível ao individual seria a representação coletiva, justamente por ser social. Por
que social? Ora, porque a representação significa um tipo de conhecimento do real partilhado por
uma comunidade de indivíduos ? conhecimento que se constrói, assim, de forma coletiva.
Contudo, parece-nos que o conceito de representação coletiva procura apreender formas sociais
de representação semelhantes ao mito, isto é, procura discernir a formação de um imaginário, de
formações ideativas mais estruturais, mais inseridas na constituição simbólica de uma sociedade.
Não que a representação social não possa ser concebida desse modo69, mas geralmente
encontram-se, no seu estudo, conteúdos mais superficiais e transitórios, muitas vezes esgotados
no próprio contexto de sua formação e existência. O objetivo de Durkheim (1994) parece ter sido
o de estudar modelos cognitivos de longo alcance (Goldhagen, 1997), enquanto o de Moscovici
(1978), ao menos inicialmente, foi o de apreender determinadas formações ideativas, muito
parecidas com a noção de "universo de opiniões" (Moliner, 1996), num determinado contexto
social. Por isso, talvez, a preocupação deste último na formação de consenso em torno de
determinados objetos sociais (psicanálise, doença...).
Ao extirpar o holismo da noção durkheimiana, a teoria da representação social permitiu a
entrada em cena dos indivíduos socializados, portadores de experiências baseadas nas interações
sociais. O foco passa a ser o indivíduo em interação com outros indivíduos a partir da rede de
significações construída em torno de objetos sociais relevantes. Constrói-se, assim, um
conhecimento que é eminentemente social, pois construído e partilhado através das interações
sociais entre indivíduos. Através da representação, o indivíduo toma posição em relação a um
objeto social. A tomada de posição regula, de alguma maneira, as interações que o objeto suscita
69 O estudo de Shurmans (1990) parece seguir essa direção.
125
? por isso, a representação pode ser considerada como um princípio gerador de tomada de
posição e, conseqüentemente, como reguladora e organizadora de interações sociais. Percebemos,
aqui, que o controle do objeto por parte dos indivíduos é essencial à constituição da representação
? controlar a representação do objeto tem como conseqüência o controle do próprio objeto.
Sendo relevante, o objeto faz parte do dia-a-dia dos indivíduos (experiência comum) e, por isso,
fator importante para a formação do grupo. Ele é, desse modo, um problema identitário que
precisa ser resolvido para o bem da comunidade. Daí a necessidade do controle, pois há sempre o
perigo de que a inadequação do objeto em relação às crenças dos indivíduos torne-se uma querela
identitária e uma causa de desestabilização do grupo.
Controlar o objeto significa classificá- lo, ordenando-o num sistema de categorias
cognitivas estável e seguro. Os psicólogos sociais chamam essa ordenação simbólica de processo
de categorização. A categorização não é processo fácil, pois os objetos sociais são polimorfos,
podendo ser apreendidos por várias maneiras diferentes. Há a necessidade para a comunicação
social de um controle da indeterminação inerente aos sentidos do objeto. Assim, re-conhece-se o
objeto, dando-lhe um valor que o torne pertinente à comunidade de indivíduos. Categorizar tem o
sentido, com efeito, de valorizar. O objeto é uma categoria de valor e, enquanto tal, precisa ser re-
conhecido, através da representação, pelo grupo.. Com isso, reduz-se e se controla a
complexidade do objeto, permitindo o seu re-conhecimento. E, como reconhecer produz
conhecimento, ocorre uma integração do aprendizado no qual o objeto é inserido numa cadeia
associativa com outros objetos. O conhecimento pode assim ser estendido a todos os outros
objetos sociais que são manipulados pelos indivíduos do grupo, tornando-se uma orientação de
conduta. Conseqüentemente, seguindo o fio da meada, pode-se argumentar que a representação
induz a criação de regras e normas de comportamento social ? ela ordena o mundo.
Mas, sendo social o objeto, ele pode ser partilhado por vários grupos diferentes, tomando
sentidos diferentes e mesmo antagônicos. A formação de representações sociais tornar-se-ia,
dessa forma, um conflito simbólico entre vários grupos sociais, seja na luta pelo monopólio
representacional do objeto, seja na procura de uma legitimidade social para a apropriação
simbólica do mesmo. Em vista disso, no estudo das representações sociais, é importante a
percepção do que está em jogo na emergência da representação ou, deslocando a discussão para o
nosso tema, é necessário sempre revelar os problemas identitários que estão embutidos na
126
formação representacional. Subentende-se aqui que o grupo organiza-se em função de objetivos
individuais ? afinal, o grupo é formado por indivíduos ? diretamente relacionados ao objeto da
representação, justamente por possuir com este uma relação umbilical. Ao relacionar objetivos
individuais com objetos sociais, a representação social faz a ponte psicossocial entre a esfera
individual e a social. A centralidade do objeto em relação à formação da representação social é
estrutural a tal ponto que, se um determinado grupo possui uma relação apenas conjuntural com
um determinado objeto, provavelmente não será capaz de produzir representações sociais a
respeito do mesmo. Não tendo importância identitária, o objeto não sofrerá interpelações
simbólicas por parte dos indivíduos que possam estruturar representações sociais. Por isso, a
representação social cumpre uma função na construção identitária e na reprodução da coesão
social ? fato este, inclusive, bastante enfatizado por Durkheim, quando pensava a representação
coletiva como uma espécie de "cimento social". Cada indivíduo, portanto, define sua identidade
em função das representações do grupo, reforçando a afirmação desse grupo enquanto entidade
social. Contribuindo na formação de identidades individuais, as representações sociais
contribuem para a coesão dos grupos sociais.
Por tudo isso, a representação social recobre três campos: a) campo do conhecimento,
pois produz um saber prático que tem, lembrando Durkheim, um caráter necessário, portanto,
nessa acepção, "verdadeiro"; b) campo do valor, pois as representações ordenam moralmente o
mundo, estando seu lado moral indissociável do seu lado cognitivo; c) campo da ação, pois a
representação orienta a conduta, podendo ser percebida como um instrumento de ação.
Recobrindo assim a cognição, a valoração e a ação, até por causa do caráter amplo que possui
esse recobrimento, a representação social apresenta cinco características principais: a) objetal,
porque sempre representação de um objeto; b) imagética e ideativa, possuindo a propriedade de
tornar permutável o sensível e a idéia, a percepção e o conceito; c) um caráter simbólico e
significante; d) um caráter construtivo; e) um caráter autônomo e criativo e, enfim, f) um caráter
social (Jodelet, 1986: 478). Pode-se deduzir dessas cinco características uma dupla articulação
lógica: uma lógica cognitiva (as três primeiras características) e uma social (as três últimas). Nem
sempre há simetria entre as duas lógicas, pois isso requereria uma estabilidade permanente entre
o indivíduo e o grupo, entre a identidade individual e as crenças partilhadas pelo grupo, o que
muitas vezes não acontece.
127
Diante dessa complexidade, geralmente o pesquisador toma dois caminhos: ou analisa o
processo de formação das representações ou estuda o resultado desse mesmo processo: as
representações já estabelecidas. Inclusive, essas duas posturas levam a duas atitudes de pesquisa:
ou se tenta apreender os processos pelos quais as representações foram produzidas ou se faz uma
cartografia de representações já estabelecidas num determinado grupo. Tais posturas e atitudes
precisam, outrossim, respeitar a seguinte intuição: existe uma pluralidade de processos e de
mecanismos que aparecem na tomada de posição de um indivíduo. Inclusive, sua inserção num
determinado campo social pode determinar a natureza da sua tomada de posição, isto é, seus
princíp ios organizadores diferem segundo o contexto social ? nesse sentido, percebemos a
afinidade conceitual entre representação social e formas identitárias.
Resumindo:
haverá formação de representações quando, por razões estruturais ou
conjunturais, um grupo de indivíduos confrontar-se com um objeto polimorfo,
cuja necessidade de controlá-lo torna-se uma questão de identidade e de
coesão social. Quando o controle desse objeto constitui um desafio para
diversos grupos sociais ou segmentos de um grupo mais amplo. Quando um
grupo não está submetido a uma instância de regulação e de controle definindo
um sistema ortodoxo em relação ao objeto (Moliner, 1996: 48) .
Contudo, a última condição ("quando um grupo não está submetido a uma instância de
regulação e de controle definindo um sistema ortodoxo em relação ao objeto" ) é um problema.
Pois, como estudar representações de doença mental, por exemplo, entre psiquiatras, já que estes,
aparentemente, têm instâncias de regulação e controle definindo um sistema ortodoxo? Pensamos
em responder essa questão através das seguintes hipóteses:
Ø não há consenso etiológico na psiquiatria. A doença mental é apropriada de várias
formas, dependendo da corrente nosológica do psiquiatra. Portanto, não há um
sistema ortodoxo que dite qual é a definição verdadeira do objeto da psiquiatria,
embora ocorra uma luta pela transformação da corrente nosológica ora
predominante numa ortodoxia;
Ø a doença mental é um típico objeto social polimorfo;
128
Ø a psiquiatria procura controlar as representações a respeito da doença mental e
esse controle é uma questão de identidade e de coesão social;
Ø o saber profissional psiquiátrico possui duas ancoragens: uma na ciência, nutrindo-
se da medicina científica e outra no senso comum, alimentando-se da percepção
social da doença mental. No cotidiano, o saber profissional é um conhecimento
prático que soluciona problemas concretos e funciona através de vários registros
diferentes. É um saber baseado na bricolagem;
Ø há um cotidiano profissional, acumulando uma série de experiências intuitivas e
tácitas que "formatam" uma série de representações construídas e partilhadas pelos
profissionais; existe uma vivência e, assim, uma produção de representações
relacionadas com o mundo vivido do psiquiatra — tais representações formariam
uma espécie de senso comum;
Ø os psiquiatras, diante de uma pergunta cortante como "o que é doença mental?",
responderiam menos de acordo com a sua formação universitária do que com a sua
experiência profissional, adquirida na aplicação cotidiana do seu saber. O
psiquiatra não "recitaria" a resposta, trazida pelo seu aprendizado universitário,
mas, sim, elaborá- la- ia, também, a partir do imediatismo de seu cotidiano
profissional, ou seja, produzir-se-ia uma construção profissional da doença
mental, que seria nada mais nada menos do que uma representação social
específica que inscreveria, no seu âmago, determinações provenientes seja do
"senso comum" (contato com as diversas representações existentes na sociedade),
seja do contexto profissional (Perrusi, 1995);
Ø seria menos importante, na qualificação da representação social, definir o seu
agente ou a sua fonte do que a sua função (Moscovici, 1978: 76-77). A
representação social teria como função específica a contribuição "para os
processos de formação de condutas e de orientação das comunicações sociais"
(1978: 77). A representação da doença, assim, inscrever-se-ia profundamente no
processo de formação da identidade profissional do médico. Ela estaria ancorada,
enquanto conduta básica, no tratamento, o qual não deixa de ser a representação da
doença em ação. Logo, não existe motivo para procurar a representação social
num "locus" externo à profissão, desde que o próprio cotidiano profissional do
129
médico produz as suas representações sociais sobre o objeto de sua prática: a
doença.
Olhando mais de perto as hipóteses, percebemos uma ênfase pronunciada na percepção do
saber psiquiátrico como um saber prático ou, como pano de fundo, a vontade de mostrar que o
dito saber é não só, mas também, um senso comum. Assim, vale a pena fazer algumas ressalvas,
espécies de "alertas" para o pesquisador no intuito de impedi- lo de ser seduzido por alguns
perigos:
Ø ao defender que as visões de doença mental dos psiquiatras são representações
sociais, o pesquisador cai, geralmente, na tentação de contestar a reivindicação de
objetividade dos psiquiatras em relação à doença mental, mostrando que o
discurso psiquiátrico não se depurou das interpelações do senso comum. Mas é o
pesquisador que subentende, na verdade, que a psiquiatria produz um julgamento
autônomo e depurado sobre a doença mental! Seria o pesquisador que está
procurando os elementos alienígenas, isto é, as determinações sociais da doença
mental no discurso psiquiátrico, subentendendo que exista um a priori: um
julgamento autônomo psiquiátrico. Seria justamente o cientista social que está se
colocando do ponto de vista de um discurso especializado e purificado das
interpelações do senso comum. Por isso, essa preocupação — principalmente entre
as teorizações que privilegiam o cotidiano (uma sociologia de matiz
fenomenológica, por exemplo) — em procurar determinações externas ao discurso
psiquiátrico; determinações provenientes do "senso comum". Ao subentender que
existe um discurso autônomo depurado das significações sociais e ao tentar
encontrar os parasitas de tal discurso, o pesquisador produz uma apreensão
dualista do discurso psiquiátrico — no discurso existiriam dois componentes: o
puramente médico, que precisa ser desmistificado, e o determinado socialmente,
que precisa ser justificado sociologicamente. Assim, os atos médicos são vistos
como práticas de etiquetagem — os psiquiatras julgam, de forma ilusória, que suas
ações têm como objeto realidades biológicas, embora sejam, na verdade,
realidades sociais. Assim, tais objetos são produtos de uma "construção social",
cujos procedimentos são encontrados ou na maneira de etiquetar "desvios sociais"
130
(os loucos) ou na própria decisão médica, determinada mais por interesses
profissionais ou mesmo de classe do que unicamente médicos. Porém, fica difícil
saber o que é "social" e o que é "biológico" na doença; tudo porque há a
compulsão de se provar que a atividade médica é guiada por determinações sociais
(classe social, etnia, profissão, interesses institucionais); tudo para mostrar que o
julgamento do médico não é autônomo, e sim "construído socialmente". Mas, se o
pesquisador pretende saber o que é "construído socialmente", o que seria afinal o
julgamento propriamente médico? Mesmo que se prove que a visão de doença do
médico é uma representação social, em que isso invalidaria o julgamento médico
enquanto tal? Não haveria, nesse caso, um a priori comandando o raciocínio: um
dualismo entre fatores sociais versus saber especializado? A compulsão em
encontrar "referências sociais" ou fatores sociais no discurso do psiquiatra não
implica que o pesquisador percebe, como premissa não discutida, o discurso
psiquiátrico como uma expertise? Afinal, os fatores sociais traíram que tipo de
discurso médico? O pesquisador não estaria, enfim, dominado justamente pelo que
deseja ardentemente desmascarar, isto é, pelo discurso do especialista? O cientista
social parece supor que o psiquiatra pense dessa maneira: "olha, eu tenho um saber
especializado; logo, tenho uma autonomia de julgamento sobre o objeto da minha
prática profissional, porque posso me apropriar dele de forma eficiente, sem
impurezas, sem parasitas e, graças a essa purificação, posso aceder a uma
objetividade". Assim, o pesquisador fica tentado a examinar, por diversas
maneiras, se essa reivindicação de autonomia de julgamento é legítima, se os
parasitas estão ocultos deliberadamente ou de forma inconsciente;
Ø o pesquisador pode cair, além do dualismo sociológico comentado acima (fatores
sociais x saber especializado), num dualismo cognitivo — raciocínio ordinário
versus saber formalizado. Desta vez, o pesquisador vai achar que os psiquiatras
pensam ter um discurso científico e formalizado e que, por isso, rompeu com o
senso comum. A análise, assim, será a demonstração de que o julgamento médico
ou psiquiátrico é permeado de representações sociais e que os médicos e os
psiquiatras recorrem a operações cognitivas completamente ordinárias, típicas do
senso comum. Logo, o raciocínio médico é ordinário e não calcado num saber
131
formalizado e guiado por regras estritas — qual é a natureza, então, do raciocínio
clínico? Ora, esse também é ordinário e não se distingue do senso comum. O
pesquisador, sem muitos questionamentos, procurará competências ordinárias no
uso da linguagem médica. Os médicos dizem-se livres da linguagem do senso
comum!, mostra-se então que, na verdade, confeccionam seus julgamentos através
de competências que não se distinguem das competências ordinárias, relacionadas
ao uso da linguagem em situações de interação social. O saber especializado do
médico é desmistificado em relação a sua imagem usual: a aplicação de regras de
um saber formal. Cria-se um abismo entre as regras e os julgamentos reais. O
veredicto, de novo, é negativo: nada distingue os julgamentos de especialistas de
julgamentos profanos. Desse modo, o cientista social vai provar que o raciocínio
médico não é puramente médico! Nada distingue um julgamento de um
especialista de um julgamento profano, pois são formados pelo mesmo tipo de
competência ordinária, alicerçada nas representações sociais! Ou seja, parte-se da
premissa tácita de que o discurso médico é baseado num saber formal e em regras
estritas, e finda-se encontrando o contrário, isto é, um saber ordinário como
qualquer outro, perdendo de vista justamente o seu ponto de partida: o saber
formal médico. E ficamos sem saber, afinal, qual é a especificidade do saber
médico... qual é a especificidade da representação médica da doença mental! Na
verdade, nada nos permite dizer que, necessariamente, o saber de um médico, o
saber de uma expertise é a aplicação de regras formais. A prática de aplicação de
um saber, numa determinada situação institucional, é bem mais complexa do que
sonha um vão dualismo entre uma competência ordinária e uma especializada;
Ø enfim, a tentação torna-se dualista, a partir do momento em que o pesquisador
tenta separar ou fazer uma triagem entre o que é autônomo e o que é parasita. O
observador dualista tenta, também, só que de outra maneira, "purificar" o discurso
especializado. Os fatores "internos" ou imanentes do julgamento são aqueles que
correspondem à imagem de expertise pura intuída pelo observador. Os fatores
"externos" ou transcendentes do discurso especializado seria tudo aquilo que não é
englobado pelo modelo de expertise do observador.
132
2. A estase do modelo psiquiátrico no Brasil: um
esboço.
Nosso intuito, neste tópico, não é fazer uma análise histórica da psiquiatria brasileira ?
inclusive não a fizemos em relação à profissão médica no Brasil. O ideal, com efeito, teria sido a
produção de uma ampla contextualização histórica; contudo, por comodidade prescindimos do
exame histórico, preferindo uma discussão sincrônica e conceitua l, tentando perceber quais são
os fatores estruturantes da formação psiquiátrica brasileira. Nesse sentido, o asilo é o alfa e o
ômega da psiquiatria no Brasil. História secular e contínua, apresentando apenas alguns
sobressaltos humanistas, os quais não mudaram muito a situação. As primeiras estruturas asilares
foram criadas em 1852 no Rio e em São Paulo. A realidade do país mudava de forma acelerada,
porém a saúde mental padecia de uma imobilidade absoluta. Se, antes dessa data, os "loucos" ou
circulavam livremente ou viviam trancafiados, agora são excluídos através da tutela ao mesmo
tempo pública, caridosa e, posteriormente, médica. Portanto, no apogeu do Segundo Império e
em plena escravidão, os asilos psiquiátricos começaram a ocupar o cenário instituc ional, antes
completamente vazio, da "loucura", tornando-se logo imediatamente em verdadeiros depósitos de
"dejetos sociais".
Um século depois, a situação continuou no mesmo estado, reproduzindo-se a mesma
forma asilar de exclusão do "louco". Como ilustração, nos meados dos anos 50, o inferno insistia
na sua eternidade: somente o célebre Hospício Juqueri de São Paulo enclausurava entre 14 e 15
mil pacientes; o Hospital São Pedro de Porto Alegre, três mil, numa estrutura que tinha a
capacidade para apenas 1700 leitos. Até 1964, outra data simbólica, os serviços psiquiátricos
atendiam essencialmente aos pacientes indigentes, mas, com a instauração da ditadura militar,
pode-se dizer que a psiquiatria conseguiu enfim adquirir um status de serviço público ou
assistência de massa (Medeiros, 1977). Serviço público mitigado, vale dizer, pois dirigido apenas
às pessoas economicamente ativas, já que perto de 80% do resto da população não tinha o
benefício de nenhuma assistência médica. Assim, as pessoas que não estava m cobertas pelo
sistema ficavam ao deus-dará e, caso isso não fosse suficiente, recorriam a algum hospital
público, muito raramente a um privado, e muitas vezes a instituições de beneficência ou de
caridade (Ribeiro, 1993).
133
Em 1966, foi criada uma instituição previdenciária única e centralizada, o INPS (instituto
nacional de previdência social). Tal unificação teve como resultado, para a psiquiatria, a
associação catastrófica entre uma rede pública precária e uma ideologia de privatização do
hospital psiquiátrico que perdura até hoje. Apesar disso, até 1975, os serviços psiquiátricos
tiveram alguma melhora, quando comparados à assistência médica em geral, embora a crise
econômica dos finais dos anos 70 voltasse a agravar novamente a situação. Em 1984, ano que
marca o fim da ditadura, um certo número de questões afloraram, tornando-se objeto de um
debate coletivo sobre a saúde e a cidadania, cujo desdobramento foi a organização, em 1986, da
VIII° Conferência Nacional de Saúde em Brasília sob a direção do Ministério da Saúde. Foi
proposto, assim, a criação de um Sistema Unificado de Saúde (SUS), cuja ratificação aconteceu
na constituição de 1988. O SUS, inegavelmente, representou um avanço considerável em relação
ao passado, pois foi reconhecido o direito universal à saúde, pondo abaixo a velha distinção entre
segurados e não segurados e entre população rural e urbana, além de confirmar a competência
dos poderes públicos nas ações e nos serviços de saúde, confiando à iniciativa pública a
regulamentação, a supervisão e o controle do sistema.
Os serviços do SUS são descentralizados, mas constituídos por uma rede hierarquizada
que os integra por região. O setor privado, assim como toda e qualquer coletividade, pode e deve
participar de forma complementar através de um contrato de direito público. Apesar disso, foi e
ainda está sendo extremamente difícil colocar em prática o SUS, principalmente na área da saúde
mental, pois a predominância do setor privado — no caso de Pernambuco, podemos falar de
monopólio — inverte a lógica proposta: o privado complementando o público. A saúde mental
brasileira é estruturada economicamente de tal forma que o setor privado, inclusive como modo
de sobreviver financeiramente, precisa sufocar o desenvolvimento do setor público. A
manutenção arraigada do hospitalocentrismo, além das controvérsias ideológicas, possui um
fundamento econômico e privado: dado o desenvolvimento das instituições psiquiátricas,
calcadas no setor privado, o hospital psiquiátrico (em muitos casos, asilos disfarçados de
hospital) é a melhor forma de sustentação econômica, já que a rentabilidade privada é
proveniente da exploração da internação, logo, do leito ocupado. O investimento privado em
estruturas extra-hospitalares não tem contrapartidas financeiras, isto é, não é rentável. Juntando
isso ao fato de que o serviço público em saúde mental jamais abandonou a lógica
hospitalocêntrica, até mesmo por causa da falta de recurso em investir em estruturas extra-
134
hospitalares, pode-se entender por que o hospitalocentrismo pode reinar de forma absoluta na
psiquiatria brasileira.
Atualmente, a estrutura do sistema psiquiátrico brasileiro organiza-se da seguinte forma:
ü hospital psiquiátrico público;
ü clínica psiquiátrica privada (sua atividade está regida por contrato com o SUS e,
ao todo, as clínicas exploram perto de 85% dos leitos psiquiátricos do sistema);
ü hospital universitário (mais de um terço dispõe de um serviço psiquiátrico geral. A
formação do psiquiatra brasileiro é realizada nessas instituições, onde domina o
paradigma biomédico, inclusive no ensino da psiquiatria;
ü serviço público extra-hospitalar (ambulatório, hospital-dia, centro de
acolhimento...)
Saindo do campo meramente descritivo, o que está em jogo, atualmente, é a própria
definição do hospital psiquiátrico. Seria saber se, apesar da lentidão da reforma psiquiátrica, o
hospital psiquiátrico superou o asilo. Ele é ainda asilar ou já se pode dizer que é uma estrutura
hospitalar? Talvez, o problema não possa ser colocado dessa maneira, principalmente diante de
posições que afirmam que o norte do sistema psiquiátrico é a tutela, o controle social e a exclusão
social do paciente. A contraposição entre hospital e asilo, assim, seria uma falsa questão,
simplesmente porque tais instituições envolvem a mesma modalidade de intervenção. O velho
asilo pode, de fato, ter acabado, mas o paradigma (tutela, controle e exclusão) que sempre
norteou a intervenção psiquiátrica continua a ser reproduzido pelo hospital. O asilo, enquanto
entidade empiricamente detectável, desapareceu, porém a estrutura asilar, enquanto lógica que
baliza a intervenção psiquiátrica, continua determinando as atividades do hospital. Em suma, o
hospital reproduz a lógica asilar ? tutela, controle e exclusão70. Contudo, para o discurso
profissional da psiquiatria, o hospital psiquiátrico começa a superar, assim que inserido na
reforma psiquiátrica, o asilo e sua lógica institucional. O hospital torna-se uma estrutura médico-
hospitalar, uma organização especializada no tratamento das doenças mentais. A determinação
terapêutica abole ou subsome a tutela, o controle e a exclusão. Pelo visto, portanto, percebe-se
70 Chamamos essa posição, que possui várias teorizações diferentes entre si, de teoria crítica da psiquiatria.
135
acima dois discursos antagônicos que re-configuram o debate sobre a passagem do asilo ao
hospital psiquiátrico. Para examinar melhor esse problema, analisaremos primeiro o asilo e,
depois, discutiremos tanto a pertinência de perceber o hospital psiquiátrico como reprodutor da
lógica asilar, como o de entendê- lo como uma organização médica tout court.
Analisar o asilo é perfazer um caminho teórico que revele o núcleo causal formador da
exclusão do paciente psiquiátrico, a sua determinação última: a função repressiva institucional.
Se o lado dominante da estrutura asilar é a sua ação repressiva institucionalizada,
conseqüentemente, para realizar a repressão, é necessário, inclusive como forma de legitimá- la,
de um conjunto articulado de normas que realize uma determinada ordem, acoplada a uma
disciplina e a uma hierarquia. Por isso, a prática repressiva sempre está sobre-determinada por
algum fundamento ideológico, principalmente o reconhecimento social da necessidade de recluir
o paciente. O efeito de legitimação da reclusão, por sua vez, está ancorado e organizado por um
tipo de tutela ? entendida aqui, especificamente, como uma estratégia de poder. Inserido no
processo de legitimação da reclusão, estaria o saber psiquiátrico que produz uma ação normativa
legitimadora da internação de determinados indivíduos cujas manifestações não podem ser
toleradas socialmente. Cada internação de paciente nessas condições de clausura,
independentemente do fato de o psiquiatra, autor da ação tutelar, ser contra a situação existente,
reproduz à sua revelia o processo de enclausuramento. O asilo, nesse enfoque, seria uma
instituição que, na sua ação repressiva, articularia representações e práticas (intervenções
normativas). Assim, a sua análise não ficaria reduzida a um estudo de um conjunto de normas
controladas por um sistema de valores, bem como não se resumiria a uma análise dos papéis
institucionais, isto é, de suas práticas. Nesse sentido, segundo sugestão de Luz, deve-se no estudo
das instituições em geral perceber
o aspecto estrutural (conjunto de normas de conduta, de regras de organização
dos comportamentos) e o aspecto da prática institucional (conjunto de relações
sociais institucionais) como dois aspectos de um mesmo núcleo de poder,
mediados por um discurso institucional (1986: 33).
As representações não se esgotariam, assim, nas normas (do asilo, por exemplo); elas
seriam, isto sim, "(...) o elo entre relações institucionais de poder e os regulamentos que
136
asseguram a continuidade da dominação institucionalizada " (1986: 33). Por isso, as
representações suportariam as normas. A necessidade de articular o campo repressivo ao das
representações serve para se captar a conexão de duas formas de institucionalização que
estruturam o asilo. Na primeira forma, enquanto espaço que organiza comportamentos
individuais e sociais, portanto, enquanto mundo social, a estrutura asilar demarca, reconhece e
sanciona o que lhe é de direito, ou seja, em relação a tudo que remete à sua competência ? o
falso, o bem e o mal, o justo e o injusto. Na segunda forma de institucionalização, o asilo
estrutura-se em torno de relações sociais que ali ocorrem, e, por conseguinte, as definições entre
o certo e o errado são baseadas nessas relações socais; logo, deve dotar-se de uma instância
burocrático-administrativa para impor a soberania, isto é, deve existir um aparelho repressivo não
autônomo (Guilhon Albuquerque, 1986).
No asilo, o seu reconhecimento enquanto ordem não é assegurado pela parte fundamental
de seus membros: os pacientes. O reconhecimento vem do exterior. Mas, ao mesmo tempo, ele
está "separado" da sociedade e é um lugar de soberania, inclusive com todo o seu aparato
cerimonial e ritualístico. Na verdade, para existir como ordem soberana, o asilo precisa ser
reconhecido pelos sujeitos cuja soberania é, por sua vez, reconhecida por sua filiação à ordem;
mas, no caso, isso não ocorre porque o efeito de reconhecimento não é produzido pelos pacientes.
Portanto, é necessário um aparato repressivo, inscrito na organização terapêutico-administrativo
do asilo, para regular e controlar a coletividade dos pacientes.
Porém, como garantir o "cimento" dessa repressão institucionalizada?
Segundo Guilhon de Albuquerque, baseado nos estudos de Goffman, a reprodução
ideológica da ação repressiva passa pela constituição da imagem cindida do Outro (1986: 142).
Assim, a auto- image m que o paciente tem de si mesmo é fragmentada feito um espelho que cai
no chão e se estilhaça. Qualquer unificação dessa imagem, num ou noutro sentido, revolveria
irreversivelmente a dominação institucional. Mas esse tipo de efeito ideológico não é original do
asilo e das chamadas "instituições totalitárias" (E. Goffman, 1984) — na realidade, a
originalidade do asilo e seus congêneres não é a ocultação da fragmentação da imagem, e sim
justamente a transparência e a legitimação dessa clivagem. Dessa forma, o paciente é submetido a
137
uma despersonalização que nunca retira, entretanto, a sua capacidade de sujeito — é necessário
que ele
seja absolutamente Outro para que possa submetê-lo a certas práticas e
esquivar-se às suas demandas, mas é preciso que ele seja o mesmo para que se
possa até conceber certas exigências a que deve curvar-se, e ao mesmo tempo
justificá-las e esperar que tais exigências sejam satisfeitas (Guilhon
Albuquerque, 1986: 142)
O asilo, então, possui o seu ponto nodal na repressão institucionalizada, sobre-
determinada por uma pratica ideológica que legitima a reclusão dos pacientes psiquiátricos ?
seja no asilo (imagem cindida), seja socialmente ? através do poder de um saber psiquiátrico
sancionado por um mandato social.
A ênfase no aspecto repressivo do asilo induz a análise, de certa forma, a esquecer que ele
é uma organização terapêutica. Talvez um dos maiores paradoxos do asilo psiquiátrico seja a
combinação de uma "instituição totalitária" com uma organização terapêutica. O asilo, de fato,
surgiu primeiramente como uma instituição de reclusão e de repressão, e depois foi apropriado
pelo saber psiquiátrico como um espaço terapêutico por excelência da psiquiatria. Combinar
repressão com terapia seria uma forma institucional de se tratar uma rejeição social ? os loucos
? considerada como uma patologia mental, passível de ser, portanto, apropriada pelo discurso
psiquiátrico. Mas como uma concepção de terapia pode ser acoplada à repressão sem que não
ocorra uma evidente contradição? Ora, muitas terapias modernas e antigas conjugaram esse duo.
O tratamento moral, por exemplo, seria um exemplo no qual repressão e pretensão terapêutica
andaram juntas. Se a "loucura" é um desvio moral, seu tratamento passa necessariamente pelo
enquadramento moral do comportamento desviante do "louco" — enquadramento este impossível
de não ser repressivo. Se a "loucura" passa a ser vista, porém, como uma patologia, seu
tratamento passa necessariamente por um enquadramento médico do comportamento doente do
"louco". Assim, olhar um paciente como uma objetividade natural ? uma doença orgânica ?
evita o contato comunicativo com o paciente; evita tomar consciência de que, apesar da doença,
ele é um sujeito comunicativo. A neutralidade do psiquiatra, causada pela naturalização do
paciente, evita seu envolvimento com o intenso sofrimento psíquico do paciente, seja pela sua
138
doença, seja pela sua reclusão numa instituição asilar. A função desse tipo de discurso seria
silenciadora, estabilizando a instabilidade estrutural da relação psiquiatra – paciente, mas
estabilizando em detrimento do segundo. Qualquer outra visão de doença mental que considere o
doente como um sujeito pode implodir em mil pedaços a relação psiquiatra-paciente e a estrutura
que a sustenta: o asilo.
Não acreditamos que se possa negar a validade de tal análise sobre o asilo. O problema,
talvez, seja torná- la um modelo geral de exame das instituições, em particular das psiquiátricas,
independentemente do período histórico. Novamente, estamos diante da pergunta: o hospital
psiquiátrico reproduz a lógica asilar? A resposta, caso se aceite as premissas dessa análise
institucional, é francamente positiva. Pois a psiquiatria combina necessariamente, no seu modo de
intervenção, uma medicina mental a uma forma de exclusão. Seria ilusão pensar que a
hospitalização do asilo tenha gerado uma exclusividade da prática terapêutica, pois continua-se a
se fazer o que sempre se fez na psiquiatria: controle social do comportamento desviante ? a ação
terapêutica está inscrita nessa lógica de controle. Lógica de poder, portanto, que se realiza desde
que o psiquiatra aciona o fundamento do seu mandato social: o seu saber.
Todavia, tal posição vai totalmente de encontro à percepção médica - profissional (Ogien,
1989) do hospital psiquiátrico: a hospitalização do asilo significa sua normalização institucional
no sentido da prática médica. O modelo aqui para se analisar o hospital psiquiátrico é o do
discurso oficial da medicina: a estrutura hospitalar psiquiátrica reproduz o modelo médico:
diagnóstico / hospitalização / tratamento / remissão ? modelo claramente baseado na atividade
terapêutica. Ora, esse modelo é justamente o oposto daquele construído pela teoria crítica da
psiquiatria: o diagnóstico vira designação (etiquetagem); a hospit alização, internamento ou
reclusão; tratamento, repressão; remissão, ressocialização. Inclusive, no modelo profissional, a
hospitalização psiquiátrica seria uma típica hospitalização médica: faz-se o possível para evitá- la,
logo, implementá-la somente no caso necessário; recusar seu prolongamento; proibir sua
eternização ou sua cronicidade ? em suma, a hospitalização é um programa de normalização.
Assim sendo, a hospitalização do asilo significa sua desalienação ? a transformação do alienado
em paciente psiquiátrico ? e sua desinstitucionalização ? transformação do asilo num hospital.
Tudo isso resume um modelo de prática profissional ? um tipo- ideal. As disfunções e as
139
distâncias que a realidade efetiva apresentará em relação ao modelo serão entendidas como erros
práticos e não questionarão a veracidade das normas profissionais.
Curiosamente, do ponto de vista analítico, estamos diante de duas visões que têm a
mesma démarche: a prática realiza o modelo teórico que, por sua vez, a idealizou. O modelo
profissional diz que a atividade psiquiátrica aplica diretamente as normas, as regras e as condutas
da medicina. Em relação ao antigo asilo, o progresso médico induziu modificações no modo de
intervenção e na organização institucional, transformando-o numa instituição que realiza o
modelo médico. A teoria crítica, além de colocar que o discurso profissional é ideológico e,
portanto, oculta o que se passa verdadeiramente na realidade, afirma que a atividade psiquiátrica
realiza seu mandato de controle social. A prática não seria, no caso das duas posições, a soma das
atividades manifestadas na intervenção psiquiátrica, e sim a realização de um modelo proposto.
Nos dois casos, o saber psiquiátrico tem um papel central: no modelo profissional, a efetuação da
conduta profissional adequada ao ambiente hospitalar é guiada pelo saber profissional que fixa
referenciais claros: diagnóstico, prognóstico, nosografia, medicação...; na teoria crítica, o
mandato social é assumido somente através do domínio de um saber legitimado socialmente. É a
utilização do saber que confirma as duas posições e que permite pensar a prática. Contudo, ela é
pensada de forma negativa, pois a verdade da atividade psiquiátrica encontra-se além do seu
âmbito, em outro lugar que não ela mesma, ou no modelo profissional ou no mandato social
(Ogien, 1989: 13).
Chegando nesse ponto da discussão, achamos mais interessante focarmos a análise na
teoria crítica da psiquiatria, e isso por dois motivos: primeiro, a própria teoria crítica desconstrói
o discurso profissional de forma pertinente71; segundo, é bem mais difícil descons trui- la do que o
discurso profissional, posição normativa por excelência, já que a teoria crítica é calcada em
modelos acadêmicos e científicos de teorização. De certo modo, o modelo profissional é explícito
e transparente, até mesmo porque serve também na orientação das condutas; a teoria crítica é
mais sinuosa, envolvendo argumentos bem mais complexos ? evidentemente, estamos
criticando-as desde um denominador comum, ou seja, reduzindo de forma significativa sua
71 Ver, assim, Foucault (1978; 1984; 1987), Castel (1976; 1983), Swain (1994), Szasz (1979), Machado (1978), Costa (1976; 1979), Basaglia (1985), Cooper (1971; 1976), Laing (1971), entre outros...
140
complexidade e sua variedade. Estamos analisando-as do ponto de vista de uma teoria crítica da
psiquiatria...
Para a teoria crítica, a razão da psiquiatria não estaria nela mesma, e sim situada em outro
lugar, apresentando uma função latente ocultada pela sua função manifesta. E qual seria essa
função latente? Dependendo do autor, a verdadeira função da psiquiatria pode ser expressada,
entre outros exemplos, por vários procedimentos: exclusão social do louco (Foucault), tutela do
desviante (Castel), socialização do doente mental (Gauchet e Swain)... Nesse tipo de análise, o
essencial não é os agentes e sim a instituição, pois a determinação desta prescinde da ação e da
consciência daqueles. A abordagem, assim, terá como objetivo revelar, por detrás da legitimidade
social da psiquiatria e de seu saber, sua verdadeira essência, geralmente entendida sob um único
aspecto: a instituição psiquiátrica é um aparelho de poder.
Por isso, metodologicamente, tais análises centraram seu foco nos discursos oficiais,
vistos como de poder, de determinados agentes, psiquiatras e legisladores, sobretudo. Procura-se
através dos discursos uma função social realizada pela instituição. O mecanismo é conhecido e,
independentemente das diferenças entre os autores, a procura é praticamente a mesma: busca-se o
momento originário e fundador donde surgiu a função institucional e se demonstra que, mais do
que uma função, o que surgiu foi uma lógica imanente ao processo de constituição da instituição,
mas que a vem acompanhando, feito um grude, por toda a sua história. O processo é marcado
pela lógica... para sempre. Portanto, se na origem da instituição a função primordial era a
exclusão dos loucos ou a tutela do desviante ou o poder de um saber, a lógica revelada
permanecerá determinando a função institucional ad eternum .
O exemplo mais explícito dessa abordagem é o método genealógico que, na nossa
opinião, não escapa de uma ilusão retrospectiva ao dotar a psiquiatria de uma razão objetiva, cuja
imanência sempre é a mesma (exclusão dos loucos, controle social do desviante, aparelho de
poder...), embora sua manifestação concreta mude no decorrer da história. Dá-se um peso
fenomenal aos discursos oficiais, produzindo uma causalidade direta entre os discursos e suas
representações públicas e a atividade prática que acontece no cotidiano da psiquiatria. O discurso
oficial torna-se a realidade. Como afirma Coelho (1999: 66), ao criticar Roberto Machado
141
(1978), um foucaultiano inconteste, e suas interpretações sobre a medicina e a psiquiatria no
Brasil:
... é suficiente que um grupo enuncie com estridência um determinado projeto
de poder para que o poder se faça tão real a ponto de dispensar o pesquisador
de qualquer posterior averiguação. É o que chamo de Efeito Foucault
Não exageremos. É importante analisar os diversos projetos de poder, inclusive os
embutidos nos discursos oficiais. Na verdade, nossa crítica não passa apenas pelo "efeito
Foucault", mas também pela tese, implícita na teoria crítica, de que a gênese esgota o processo ?
a postulação de uma lógica ou de uma razão objetiva que permanece determinante até os confins
da história. Produzir essa relação necessária entre poder, saber e instituição possui, como pano de
fundo, algumas premissas ou, na verdade, algumas desconfianças profundas. Toda intervenção
prática sobre o outro é, por definição, uma relação de poder. Assim, toda forma de reabilitação
social, moral ou física institui por definição uma relação de poder em que o profissional impõe ao
seu cliente uma condição de inferioridade. As chamadas práticas de controle social (psiquiatria,
assistência social, justiça, polícia, medicina) sempre são vistas do ponto de vista de relações de
dominação. Em conseqüência, temos sempre a reprodução dessa eterna tipologia: paciente,
delinqüente e assistido. A tutela é a conclusão lógica dos processos de controle social. É o efeito
mecânico da manifestação antecipada do controle social ? efeito mecânico da razão objetiva,
manifestada por vários modos: mandato social, relações de dominação, saber profissional, poder
legítimo.
Toda intervenção prática sobre o outro implica um saber que possui uma relação
necessária com o poder. Há um trio nefasto na psiquiatria: saber - (poder) - intervenção. Por isso,
as críticas à psiquiatria e ao seu saber são críticas ao poder do psiquiatra. É também crítica
institucional, pois a instituição possibilita e viabiliza a intervenção prática sobre o outro. Com
efeito,
"todos os grandes abalos que sacudiram a Psiquiatria desde o fim do século
XIX, essencialmente colocaram em questão o poder do médico. Seu poder e o
efeito que produzia sobre o doente, mais ainda que seu saber e a verdade
daquilo que dizia sobre a doença" (Foucault, 1979: 123).
142
É esse poder e o posicionamento perante ele que discriminam as diversas teorizações
existentes sobre a instituição psiquiátrica. Assim,
(...) o que foi questionado é a maneira pela qual o poder médico estava
implicado na verdade daquilo que dizia, e inversamente, a maneira pela qual a
verdade podia ser fabricada e comprometida pelo seu poder (1979: 124).
Dessa forma, pode-se dizer que existem várias antipsiquiatrias atravessando a história da
psiquiatria moderna. Temos um Szasz (1979) que transforma o psiquiatra num verdadeiro agente
manipulador, afirmando a doença mental como um mito da modernidade. Ou David Cooper
(1971) e Ronald Laing (1971) que, além de denunciarem o asilo como um absurdo terapêutico,
centraram as suas análises no questionamento da sociedade e da família, vistas como lugar da
gênese da loucura ? a doença, para Laing, seria uma "viagem" introspectiva para escapar da
ação alienante da sociedade. Por fim, desembocamos em Basaglia (1985) que, na nossa opinião,
não seria exatamente um "antipsiquiatra", como os citados acima, justamente por não negar a
existência de doenças mentais. A crítica basagliana centrou-se num questionamento político-
institucional da psiquiatria, mostrando as vinculações necessárias entre saber, poder e instituição.
Como pode-se notar, a antipsiquiatria é a versão radical da teoria crítica da psiquiatria. É
contundente e produz um impasse: não há possibilidade de se construir qualquer alternativa
institucional ao tratamento das doenças mentais. A hospitalização do asilo, por exemplo, é vista
apenas como a fundação de uma nova forma asilar de reclusão do paciente. Nega-se a doença
mental e se repudia qualquer tipo de estabelecimento de normas, percebido como imposição de
um poder despótico sobre o outro. Há, com efeito, uma coerência nesse niilismo: se não existe
doença mental, pode-se descartar logicamente a necessidade de instituições terapêuticas, pois
enquadrar, mesmo terapeuticamente, algo que não está no campo da patologia é uma intervenção
totalitária. Igualmente, a partir do momento em que se relaciona toda no rma a um poder, tomando
este último como alienado em si mesmo, pode-se logicamente afirmar que toda instituição
envolve intervenções "normativas" — logo, produzindo e reproduzindo estratégias de poder.
Assim, pode-se dizer que todo processo de instituciona lização é alienado. Sendo uma instituição
— portanto, envolvendo normas e poderes —, o hospital psiquiátrico seria tão alienado quanto o
asilo.
143
Aparentemente, a última proposição é também patrimônio dos basaglianos ? no mínimo,
são ambíguos quanto ao tema. Agostino Pirela (1985: 181), por exemplo, chega a afirmar, em
relação ao asilo, que é necessária "a negação global da instituição ", mas escreve, ao mesmo
tempo, que "a negação não pode tornar-se uma norma". Ora, negar uma instituição sem que se
constitua outra (do asilo ao hospital, por exemplo), já que se quer negar também toda norma,
implica ou negar toda e qualquer forma de organização, pois todas possuem normas, ou implica,
como defendem os basaglianos, um processo ininterrupto de mudanças institucionais num eterno
movimento de auto-negação. A primeira opção seria paralisante e completamente niilista, e a
segunda, digamos assim, asfixiante por falta absoluta de fôlego. No fundo, as duas implicações
envolvem o mesmo postulado ? a primeira de forma direta e a segunda de modo velado: existe
uma alienação imanente a qualquer processo de objetivação institucional. Em suma, infere-se
dessas posições ou que toda objetivação institucional é alienada ontologicamente ou, de forma
mais sutil, que as objetivações em geral no capitalismo são alienadas; logo, a alienação é histórica
? entre um imanentismo ontológico e um histórico, a diferença política é apenas de grau. No
primeiro caso, o essencialismo é tão óbvio que pode ser descartado rapidamente; no segundo
caso, o termo "histórico" elimina o erro de identificar toda objetivação institucional como
alienada por natureza. Mas, se no capitalismo o processo institucional é alienado em si, mesmo
que o capitalismo seja uma etapa histórica de desenvolvimento da humanidade e, portanto, por
ser histórico, passível de ser superado, o resultado político dessa visão seria o niilismo completo
contra qualquer instituição "burguesa", isto é, qualquer alternativa institucional ao asilo, por
exemplo, inclusive o hospital, está fadada ao fracasso ou, pelo menos, adiada para o futuro.
O imanentismo absoluto de Laing gerou o fracasso da experiência em Kingsley Hall
(instituição onde trabalhava). Já a experiência basagliana teve resultados bem mais complexos e
interessantes. Primeiro, porque os basaglianos nunca negaram a doença mental enquanto tal;
segundo, eles têm razão em criticar a redução da desinstitucionalização a apenas uma
desospitalização. Pois assim
"os hospitais psiquiátricos permanecem como centro e paradigma; a criação
de novos serviços psiquiátricos na comunidade, de estruturas extra-
hospitalares, médicas e sociais, não se constituem como alternativa eficaz à
internação" (Nicácio, 1989: 97)
144
Na verdade, a desospitalização não interrompe a lógica asilar, isto é, não interrompe o
processo de reificação do doente na internação. Manter, mesmo sob o tratamento psiquiátrico, a
cidadania e a autonomia do doente liquida o cerne da lógica asilar: o internamento. Embora
concordemos com esta última questão, não achamos, porém, que isso signifique uma
"desinstitucionalização", mas sim a institucionalização de uma organização terapêutica que não
implica internamento. Inclusive, a transformação do asilo em hospital psiquiátrico condiciona a
transformação do internamento em hospitalização. Uma rede de serviços, incluindo hospital e
estruturas extra-hospitalares, já implica um desmantelamento de uma estrutura de internação
compulsória. O internamento psiquiátrico — reclusão de um paciente numa estrutura asilar —
precisa ser diferenciado da hospitalização psiquiátrica — tratamento médico de um paciente
numa estrutura hospitalar. O primeiro procedimento exclui e tutela o paciente, ignorando seus
direitos de cidadania; o segundo implementa um tratamento, resguardando seus direitos enquanto
cidadão. Logo, a passagem de um modo ao outro é também política. O problema da palavra de
ordem de "desinstitucionalização" é atropelar os avanços da hospitalização em relação à situação
asilar e não perceber que combater o hospitalocentrismo é diferente politicamente da luta contra a
estrutura manicomial.
Talvez, esse ranço contra os processos de institucionalização dos autores acima citado
seja produto de sua conceituação de poder. De forma geral, ele é visto de um modo anistórico e
imanente. O que existe, assim, é um "senhor-poder" anterior à própria história e alienado por
natureza — sua alienação é imanente à sua própria ontologia. Por isso, provavelmente, o poder
seja praticamente identificado à violência e, como as regras e as normas são por ele garantidas,
podemos chegar à conclusão de que a violência funda e condiciona a ordem sócio -cultural. Tais
posições, no fundo, parecem ser uma espécie de atualização do jusnaturalismo, aplicado às
instituições no capitalismo. A alienação que é denunciada em toda instituição no capitalismo é a
alienação do poder, ou seja, é a imposição de uma violência que retira do sujeito sua autonomia e
soberania. A alienação das instituições é a alienação do poder enquanto violência institucional. O
poder funda, na realidade, a alienação da instituição.
Já em Foucault (1979), o poder não é imanente e sim relacional. Contudo, para o filósofo
francês,
145
"a relação de poder não tem outro fundamento que não ela mesma, tornando-se
simples 'situação' na qual o poder é sempre imanente e a questão qual poder e
para que lhe é absolutamente perfunctória " (Poulantzas, 1985: 170)
No entanto, não podemos de maneira simples identificar o conceito foucaultiano de poder
ao de violência. Na verdade, Foucault critica uma visão negativa de poder que o identifica à
repressão e à violência; portanto, tal conceito não possui apenas um lado negativo, mas também
um positivo, transformador e produtor do real. O poder interpelaria o indivíduo como sujeito,
para usar uma linguagem althusseriana (Althusser, 2001). Mas não devemos iludir-nos com isso,
já que o poder continua "negativo", pois ainda alienado. Ele é uma correlação de forças, em
Foucault, completamente pífia, porque as resistências só existem como afirmação de princípio.
Assim, como escreveu Poulantzas (1985: 172) sobre a visão foucaultiana de poder:
"(...) esse termo designa ora uma relação, a relação de poder, ora, e muitas
vezes simultaneamente, um dos pólos da relação poder-resistências. É que, na
ausência de fundamento das resistências, o poder acaba por tornar -se
essencializado e absolutizado, transformando-se num pólo "frente" às
resistências, uma substância que contamina-as por propagação, um pólo
principal e determinante frente às resistências".
Em suma, o poder, em Foucault, é positivo em relação à negatividade da repressão, mas
negativo porquanto alienado. Não negamos a pertinência da conceituação foucaultiana, mas sim o
seu alcance. Para muitas situações, provavelmente, será necessário — nos estudos sobre a relação
poder e democracia, por exemplo — distinguir conceitualmente poder de violência, bem como
poder de alienação. Nesse sentido, concordamos com Basaglia (1985: 99) quando afirma que o
asilo é uma "instituição da violência". Mas não concordamos com a ampliação do conceito para
praticamente todas as instituições da sociedade, bem como com o caráter a priori do poder como
negativo e alienado.
Por fim, há uma crítica, em algumas passagens da "antipsiquiatria" (Laing, 1971; Cooper,
1976), da relação saber-poder no capitalismo, como se esta fosse eterna e absoluta, e tivesse
sempre existido, isto é, critica-se uma particularidade histórica pensando-se que é universal.
Certo, pode-se concordar com a afirmação de que o saber sempre sofreu uma interpelação
146
político- ideológica do poder, não existindo, portanto, um saber, qualquer que seja, desvinculado
do poder. Sim, tal asserção acarretou uma profícua desconstrução de uma visão inocente do
saber, visto como desvinculado das estratégias de dominação. Mas o problema, nessa posição, é
que, se o poder é por definição violento ou alienado, o saber, por sempre ter existido
umbilicalmente conectado ao poder, é visto da mesma forma que o seu par: violento e alienado.
Em determinadas situações empíricas, isso lá tem a sua lógica, mas a questão é se isso possui
uma aplicação universal, em todas as situações. O saber ? em Foucault e na maioria dos
"antipsiquiatras" ? já é em si uma estratégia de poder. É uma estratégia de dominação, por
definição. Desse modo, o saber psiquiátrico, enquanto estratégia de poder, produziu o famigerado
asilo; nesse sentido, faz parte dessa estratégia de dominação universal, personificado pela Razão
Ocidental ou Iluminista — o saber psiquiátrico seria um filho dileto desse grande Poder.
Sendo o saber psiquiátrico uma forma de poder, seu objeto, a doença mental, é um
produto de uma estratégia de dominação. A transformação da loucura em doença mental foi o
resultado dessa estratégia. Em outras palavras, a doença mental não teria relação alguma com
determinações patológicas, sejam biológicas ou psíquicas — a doença mental não teria uma
objetividade que perpassaria a história com conteúdos culturais diferentes, mas com uma forma
patológica invariante. Cada sociedade teria a doença que merece: sociedade x, logo, doença y. Ou
seja, o conceito de doença mental ficaria esfumaçado pelo relativismo e sem efeito, pois seria,
digamos assim, um "produto cultural". Em suma, Foucault destrói todo e qualquer alicerce do
saber psiquiátrico, principalmente aquele que possui um alicerce na clínica médica. Por um lado,
esvazia o conceito de doença mental; por outro, afirma o saber psiquiátrico enquanto estratégia de
poder (produtor positivo de alienação), colocando em xeque toda a possibilidade de organização
terapêutica que envolva uma clínica psiquiátrica.
Do ponto de vista empírico, tais análises em geral perdem de vista as transformações
institucionais ocorridas concretamente, pois são sempre vistas como manifestação de uma
estrutura latente de dominação. Assim, por exemplo, algumas transformações que vêm ocorrendo
na psiquiatria foram menosprezadas, embora sejam mencionadas, pela teoria crítica, já que
estariam enquadradas pela lógica asilar (Ogien, 1989: 21-24):
147
Ø a diferenciação da clientela fora e dentro do hospital. A população psiquiátrica
diversificou-se de maneira extraordinária a partir da década de 50. Houve, e
continua acontecendo, uma explosão de novas enfermidades mentais e,
conseqüentemente, novos tratamentos e acessos diferentes às terapias, novos tipos
de intervenção, novos papéis sociais assumidos pelos pacientes. Tal diferenciação
é conseqüência de novos controles sociais? São produtos patológicos da vida pós-
moderna?
Ø a diversidade profissional no campo profissional. O campo profissional da saúde
mental tornou-se campo, isto é, possui lógicas de ação relativamente autônoma
que lhe permitiram, inclusive, um consistente reconhecimento social enquanto
organização especializada de intervenção. Um dos resultados mais óbvios é a
proliferação e a necessidade de novas especializações e, conseqüentemente, de
novos profissionais na cada vez mais desenvolvida divisão de trabalho da saúde
mental. Colocar tudo isso no vale comum do controle social não é negar a
importância dessas novas formas sociais de intervenção e desses novos atores
sociais que as reproduzem? Será que internar perturbadores da ordem estabelecida
precisaria de toda essa estrutura material, de todo esse aparato profissional e de
toda essa produção simbólica, em suma, de toda essa maciça ilusão de que tudo
isso é apenas atividade terapêutica e qualificação profissional em saúde mental?
Ø heterogeneidade das intervenções de controle e de re-inserção social: medicina,
psiquiatria, profissionais da saúde mental, polícia, justiça, assistência social e
instituições... Será que é possível que ocorra uma coincidência entre as regras e as
normas postuladas pelos agentes formadores de políticas públicas e o que
realmente acontece na atividade psiquiátrica? Não seria ingenuidade pensar que a
gestão do dispositivo de controle da loucura acontece sem múltiplos conflitos de
competência entre os diversos agentes sociais envolvidos? Não seria mais
interessante reconhecer as diversas lógicas de ação que perpassam a prática
psiquiátrica? Os diversos registros acionados pelos diversos atores envolvidos?
Registros ad hoc, in loco, espontâneos e formais, proveniente do senso comum ou
do saber especializado?
148
Ø boa parte da população utiliza o serviço psiq uiátrico como um serviço público e
não como um aparato de repressão. Como isso acontece, já que o campo
psiquiátrico é um espaço de reclusão, um aparelho de poder, um aparato de
controle social ou uma estrutura de acolhimento dos renegados sociais? Que tip o
de ilusão espetacular faz com que milhares de pessoas utilizem a psiquiatria sem
se dar conta que estão sendo alienadas? Qual é o mecanismo ideológico que
produz tudo isso? O que vemos são diversas interpretações a respeito da
psiquiatria que vão desde a percepção de que é um controle social até sua
consideração como lugar da clínica psiquiátrica ou uma instância de cuidados
especializados. Talvez seja interessante tomar essa polissemia como ponto de
partida e estudá-la concretamente, isto é, produzir uma análise concreta da
situação concreta, examinado os diversos interesses, os diverso atores sociais
envolvidos, os vários registros cognitivos que guiam a ação ? em suma, tomar
como ponto de partida a própria prática psiquiátrica.
Tais transformações acima, na nossa opinião, questionam ou, pelo menos, diminuem o
peso analítico da psiquiatria vista como aparato de repressão. Além do mais, houve mais uma
mudança importante, embora a reforma psiquiátrica seja lenta e não tenha trazido as
transformações esperadas, justamente na representação pública da psiquiatria 72. Existe
atualmente, de forma difusa, uma representação da curabilidade da doença mental, bem como
uma "desestigmatização" ou, no mínimo, uma diminuição da carga de preconceitos contra o
paciente psiquiátrico. Como afirma Ogien (1989: 21):
da mesma maneira que seria raro, atualmente, alguém ter preconceito contra aquele que consulta um médico ou freqüenta um hospital, pode-se estimar que, cada vez mais, o atendimento psiquiátrico é um procedimento usual, ao ponto de se poder questionar se ele
72 Pode-se dizer que, em países como a França e a Itália, houve de fato uma transformação qualitativa na representação pública da psiquiatria.
149
causa realmente um transtorno na identidade social do paciente
Acreditamos que a mudança na representação pública da psiquiatria tenha sido um dos
resultados da transformação na carreira moral do paciente psiquiátrico (Goffman, 1974). O
resultado da carreira moral é a cronicidade do paciente. Ocorre uma degradação do status e uma
mudança de identidade e de destino. Há uma transformação na linha biográfica do interno. Isso
tudo ocorre porque o paciente não assume o papel de doente, prescindindo dos recursos sociais à
disposição. A subversão do paciente possui um preço altíssimo: a despersonalização na máquina
de moer almas do asilo. Contudo, com a banalização do tratamento psiquiátrico, o acesso à
terapia, a criação de instituições extra-hospitalares, a duração limitada da hospitalização, enfim,
com todas essas mudanças, o paciente psiquiátrico não precisa mais ser identificado com o
recluso do asilo. E tal transformação pode ser creditada aos efeitos conjuntos da reforma
institucional (hospitalização do asilo + instituições extra-hospitalares) da psiquiatria e do uso dos
psicotrópicos no tratamento da doença mental (Ogien, 1989). O paciente pôde deixar de ocupar a
linha biográfica, renunciando a uma carreira moral, e se transformar num... cliente.
O uso dos neurolépticos engendrou um processo de diferenciação na clientela psiquiátrica,
produzindo internamentos intermitentes e levando boa parte dos pacientes, devido a uma
compensação clínica, a se servirem do aparelho extra-hospitalar. Atualmente, boa parte dos
pacientes utiliza o serviço psiquiátrico voluntariamente no papel de doentes, isto é, num papel
reconhecido e sancionado socialmente, como qualquer outro serviço de saúde pública ou
privada73. Tal ação terapêutica aliada a uma normalização e a uma otimização do internamento
hospitalar, patrocinada a duras penas pela reforma, contribuiu para desestigmatizar a intervenção
psiquiátrica. Assim, os estados psicóticos cronificados estão deixando de povoar os hospitais
psiquiátricos e um bom número de pacientes reencontrou o meio social, embora muitos sejam
dependentes de uma assistência extra-hospitalar e sofram de uma socialização precária. Talvez, a
dependência dos serviços extra-hospitalares e da ajuda social seja a grande contrapartida da
reforma psiquiátrica. Uma "clínica socializada" socializa também suas dificuldades: a difícil re-
inserção social dos pacientes psiquiátricos, principalmente em tempo de crise econômica. O
73 Evidentemente, ainda existe o internamento psiquiátrico que se caracteriza como uma carreira moral, no sentido de Goffman, isto é, como um ato de exclusão e isolamento social.
150
doente mental, ao sair da hospitalização, encontra-se diante de um caminho bifurcado: de um
lado, a reintegração social, fundamentalmente profissional74; de outro, o risco de perseverar num
estado de invalidez permanente75. Ao mesmo tempo, se a reclusão no asilo era e ainda é, em
vários casos, uma forma de exclusão social, o paciente psiquiátrico, mesmo escapando de uma
hospitalização de longa duração, pode sucumbir a uma forma de exclusão social "aberta" ou a
outras formas de reclusão (familiar, notadamente) e até sofrer um processo de mendigação.
74 As formas variam: o indivíduo pode permanecer ou não usando uma medicação e se submetendo a consultas de avaliação, ou mesmo utilizar um aparelho extra-hospitalar. O que importa, aqui, é a sua reintegração profissional e afetiva. 75 Que, também, pode variar, segundo uma quantificação percentual.
151
152
IX. Capítulo IV
A. Campo representativo da doença mental (DM) entre os psiquiatras
1. Introdução ao campo representativo
Nosso objetivo, aqui, é apreender o papel da representação da doença mental entre os psiquiatras, isto é, se a representação guia a conduta do psiquiatra e se participa na construção de sua identidade profissional. Acontecendo tal fato, pudemos averiguar sua coerência interna e deduzir logicamente o comportamento diretamente derivado da adesão do entrevistado à representação. Para deixar mais claro essa proposição, examinemos o seguinte exemplo: de um entrevistado que assume uma representação psicanalítica de DM, pode-se inferir logicamente diversas conseqüências:
• o entrevistado é, provavelmente, um psicanalista;
• defende um dualismo nosológico (separação ontológica entre a DM e a doença
enquanto tal — como é paradigmático na teoria psicanalista);
• critica o paradigma biomédico da medicina e, conseqüentemente, defende uma
separação nítida entre a neurologia e a psiquiatria;
• defende uma independência profissional da psicanálise em relação à psiquiatria;
Como discutido na problemática, mostramos empiricamente que, embora muitas vezes encontrássemos uma adequação entre representação e prática, a conformidade é muito mais nuançada do que sonham as nossas vãs premissas. E, quando tal ajustamento não ocorre na prática, temos que não só oferecer uma explicação plausível para o fenômeno, bem como inferir que a hipótese de partida — a representação guia a conduta do sujeito — possui uma validade heurística restrita. Tal ressalva é polêmica, pois vai de encontro a algumas teorizações sobre o conceito de representação social, principalmente análise provenientes de correntes mais cognitivistas (Doise, Clemence, Lorenzi-Cioldi, 1992; Moliner, 1996) que percebem, muitas vezes, da relação entre representação e prática uma adequação já dada, sem necessitar de questionamentos — a conduta do sujeito parecendo, nesse caso, um vetor da representação. Por isso, diante do material empírico, tivemos que restringir o aporte explicativo da representação em relação à conduta do entrevistado e, assim, conectar a discussão da representação a uma elaboração sobre as práticas profissionais, principalmente na segunda parte da "Empiria" ("o campo profissional do psiquiatra").
Na interpretação do material empírico, tomamos como premissa que a DM é o objeto
profissional da psiquiatria. Enquanto tal, seria fonte de produção de representações profissionais.
Com efeito, para agir e se comunicar, quando num contexto profissional, os indivíduos precisam
de "objetos" ou de "referentes". Os objetos profissionais, no fundo, são responsáveis pela trama
de relações, práticas e representações que determina a finalidade da atividade profissional. Sendo
153
referentes do mundo profissional, os objetos possuem uma relação genética com as condições
específicas do contexto, no caso o contexto profissional. Por isso, sofrem um processo de seleção
no qual algumas características são marcadas e adaptadas aos imperativos da atividade
profissional. Os objetos, assim, tornam-se específicos, e sua especificidade depende das
significações que os indivíduos lhes imputam. Portanto, são específicos porque são marcados
pelo grupo profissional. E seria através dessa especificidade, enquanto objetos profissionais, que
são valorizados socialmente.
Embora a DM seja um objeto profissional, não se esgota no contexto profissional. Sua
relação com o contexto seria menos genética do que baseada numa adequação, já que sofre fortes
interpelações do imaginário social, do qual os entrevistados retiram, inclusive, vários elementos
para a construção de sua representação de doença mental. Assim, como objeto profissional, a DM
é de difícil conformação. Seria fonte de representações exatamente por ser polimorfa e de difícil
apreensão. Como tal, está numa situação diferente da doença somática, cuja "normalização" é
muito mais profunda e antiga, sendo um objeto profissional de muito mais fácil apreensão e
controle. Devido ao seu caráter um tanto inapreensível, a necessidade de controle do seu objeto
profissional, para os psiquiatras, tornou-se uma questão de identidade e de coesão social (coesão
de grupo). Sua apreensão, enquanto objeto, constitui um desafio que coloca em xeque a
legitimidade profissional da psiquiatria. Ao contrário dos objetos profissionais da profissão
médica, a DM não possui um consenso etiológico, isto é, uma representação única e estável
guiando a conduta dos psiquiatras, permitindo assim a concorrência de diversas representações
psiquiátricas (formas de apreensão) do objeto profissional, criando uma confusão de nosologias e
práticas terapêuticas. Sem consenso, os psiquiatras não estariam, como os neurologistas, por
exemplo, submetidos a uma instância de regulação que definiria um sistema ortodoxo (conjunto
de regras e práticas relacionadas, no caso da medicina, ao diagnóstico e, principalmente, ao
tratamento) de controle do objeto profissional. Talvez, por isso, a psiquiatra tenha compensado a
falta de um sistema ortodoxo de controle do objeto profissional por um espetacular sistema, não
menos ortodoxo, de controle organizacional e administrativo da prática profissional, cujo corpo
normativo está fundamentado no hospital psiquiátrico.
Em vista disso, a forma de apreensão do objeto profissional foi mudando segundo a
representação de cada entrevistado, ocorrendo uma dispersão de informações — aliás, uma das
154
característica fundamentais da representação social segundo Moscovici (1978). A DM é, por
definição, um objeto polimorfo, assumindo diferentes formas no mundo profissional. Para cada
grupo de entrevistados, a apreensão diferenciada do objeto profissional revestiu-se de uma
importância identitária. Inclusive, para alguns grupos, cuja representação do objeto possui uma
função ideológica de combate a outras representações, o objeto participa da própria gênese do
grupo profissional, isto é, do que chamamos de formatação genética do grupo; portanto, não teria
uma participação apenas eventual ou pragmática na dinâmica identitária do grupo (formatação
conjuntural do grupo). Assim, na maioria dos casos examinados, o objeto profissional é uma
fonte de criação identitária, logo, de representações que facilitam a coesão social e mantêm a
identidade do grupo, mais ainda na situação dos entrevistados, desde que estão o tempo todo
confrontados a um objeto difícil e problemático. Talvez pela falta de uma instância reguladora
que fixe o conteúdo da representação de DM e, muito provavelmente, pela profusão de
representações de DM que perpassam o campo psiquiátrico, vários entrevistados adotaram uma
conduta pragmática em relação ao objeto profissional: sua representação de DM tem menos uma
relação com a verdade do que com a utilidade; portanto, ao contrário daqueles entrevistados, já
citados, para os quais a representação, sendo usada no combate a outras representações, teria uma
função de veracidade. De qualquer forma, independente do papel atribuído à representação, a
apreensão do objeto profissional precisa relacionar cognições úteis ao trabalho profissional; em
suma, estar de acordo com a razão prática do sujeito e adequado aos limites normativos do
contexto profissional.
Enfim, foi-nos impossível evitar o uso do jargão médico. Impossibilidade dada por um
fato absolutamente banal: tivemos que discutir a respeito das representações do objeto
profissional da psiquiatria. E não foi possível evitar tal discussão, já que partimos da premissa de
que sem a análise do objeto profissional, dificilmente conseguiríamos apreender a identidade
profissional. Além do mais, analisamos entrevistas de profissionais que utilizam uma linguagem
específica, pois lidam com o objeto específico de sua área profissional. Tal linguagem faz parte,
inclusive, do aporte identitário dos entrevistados. Embora não discutamos o conteúdo
propriamente médico das representações, visto que estamos interessados no papel que tais
conteúdos têm na construção identitária — em suma, nosso foco seria na função (forma de
utilização) das representações na construção da identidade profissional —, seria incômodo não
reconhecer que esse mesmo conteúdo faz parte constitutiva da identidade profissional.
155
2. Representação analítica da psicose e da DM a) Introdução.
Para não abusar do jargão médico, utilizaremos uma conceituação ordinária de psicose e
de neurose — em suma, utilizaremos o dicionário. Acreditamos que o recurso a definições
ordinárias de psicose e neurose facilitará o nosso entendimento da discussão.Tais definições estão
perfeitamente adaptadas aos nossos propósitos e, convenhamos, não se distanciaram tanto das
próprias definições dos entrevistados. As definições encontradas no dicionário aproximam-nos,
nesse sentido, das representações dos entrevistados, as quais, vale dizer, não são nem científicas,
nem senso comum, fazendo parte, isto sim, de um saber especializado e profissional.
Assim, psicose, segundo o Houaiss, é definida como um "transtorno mental caracterizado
por desintegração da personalidade, conflito com a realidade, alucinações, ilusões etc". Tal
definição é geral, um tanto vaga e de cunho psicológico. Diferencia-se, sem entrar em muitas
delongas, da definição psicanalítica de psicose pelo fato de se centrar na sintomatologia e não na
etiologia, como é o caso da teoria psicanalítica. Uma é descritiva, centrando a noção nos
sintomas, e a outra, etiológica, colocando a psicose como uma perturbação de uma fase primária
da formação da personalidade humana. Ainda no Houaiss, a neurose é definida do seguinte
modo: "conjunto de problemas de origem psíquica que, diferentemente da psicose, conservam a
referência à realidade, ligam-se a situações circunscritas e geram perturbações sensoriais,
motoras, emocionais e/ou vegetativas". Novamente, tal definição é geral e de cunho psicológico.
E não precisamos ir muito longe para encontrarmos uma definição analítica de neurose — basta o
Houaiss: "afecção de origem psíquica em que os sintomas expressam simbolicamente um conflito
originado na infância do indivíduo, e que cria soluções de compromisso entre o desejo e as
defesas". Vemos, de novo, as diferenças de ênfase na descrição sintomatológica e na procura de
uma causalidade.
Ao mesmo tempo, para fins de classificação, criamos duas noções básicas: dualismo e
monismo. São noções que reduzem de forma draconiana a complexidade da discussão, embora tal
redução, na nossa opinião, não tenha prejudicado nossa análise. São formais, já que não
interpelam os conteúdos médicos das representações de DM. Elas produzem um corte
paradigmático, pois dividem em dois modelos extremamente gerais todas as diferenças entre as
156
representações de DM. Seriam navalhas de Ockham com pontas um tanto grossas, mas que
permitem uma simplificação da discussão.
Assim, definimos como dualista toda representação de DM, independentemente de seu
conteúdo, que separa o espírito da matéria, a mente do corpo, o psicológico do somático. De
forma abstrata, o dualismo contrapõe dois princípios em pólos opostos, irreconciliáveis; de forma
concreta, aplicando ao nosso contexto, a posição dualista impõe uma separação entre a DM e a
doença orgânica ou clínica. Uma representação dualista, conseqüentemente, torna a DM uma
doença especial (ou, até mesmo, torna possível a negação do fato psiquiátrico como um fato
patológico), divergente de todas as outras, instituindo-lhe uma diferença ontológica. A
psicanálise é um exemplo de teoria dualista, pelo menos nas versões que se distanciam de uma
rigorosa exegese freudiana, pois institui uma separação entre o psiquismo e o corpo.
Já monista é toda representação de DM, independentemente de seu conteúdo, que une o
espírito e o corpo, a mente e o soma, o psicológico e o somático. No monismo, os princípios
aparentemente separados são atributos de uma mesma substância. Espírito e matéria são, por
assim dizer, faces da mesma moeda. A DM perde sua especialidade, tornando-se apenas
específica, como qualquer outra doença na medicina. Não prefigura uma diferença absoluta,
apenas uma diferenciação. Torna-se uma doença como outra qualquer — torna-se banal. Entre
uma pneumonia e uma esquizofrenia não há mais uma diferença de natureza. A teoria biológica
da DM é um exemplo de teoria monista, afirmando que, embora a DM tenha efeitos ditos
psicológicos, seu fundamento é neuroquímico; logo, a sintomatologia de cunho psicológico é
apenas uma expressão direta e indireta de princípios neurobiológicos.
Enfim, a utilidade das duas noções seria basicamente esta: formam dois modelos que,
aplicado às representações dos entrevistados, permitem-nos visualizar "p osições", dualistas ou
monistas, cuja dedução leva-nos a inferir diferenciações profissionais que implicam condutas e
procedimentos diferentes em relação ao objeto profissional — no caso, a DM. Ora, analisar
diferenciação profissional, condutas e procedimentos é, de fato, analisar identidade profissional.
As duas noções ainda permitem variações e extrapolações, como por exemplo: dualismo ou
monismo institucionais (quanto à separação ou não entre serviço psiquiátrico e serviço clínico;
Hospital Geral x Hospital Psiquiátrico...); dualismo e monismo vocacionais (quanto à separação
157
ou não entre vocação médica e vocação psiquiátrica). Pudemos fazer isso por causa da condição
heurística da representação de DM. Um exemplo mais concreto: defender uma separação
ontológica entre a DM e as outras doenças pode levar o entrevistado a afirmar a necessidade de
uma aparato institucional especial para o tratamento de uma doença diferente, perfazendo assim a
defesa de um dualismo institucional (defesa da necessidade do hospital psiquiátrico em
detrimento do hospital geral). Ou ainda: o dualismo pode levar o entrevistado a defender uma
separação entre a vocação médica e a psiquiátrica, já que a DM, sendo ontologicamente diferente
das outras patologias, necessita de um profissional que utiliza deontologias e procedimentos
diferentes dos que existem na medicina; assim, defende-se a partir do dualismo um dualismo
vocacional. Haveria, assim, o seguinte caminho lógico que não necessariamente acontece na
realidade:
? dualismo institucional (hospital psiquiátrico)
Dualismo nosológico
? dualismo vocacional (vocação psiquiátrica)
? monismo institucional (hospital geral)
Monismo nosológico
? monismo vocacional (vocação médica)
b) A representação e diferenciação profissional.
Dos 50 entrevistados, 11 assumiram uma representação psicanalítica da psicose e da DM.
Nomeamos a representação de psicose de "analítica" pela clara referência à teoria psicanalítica.
Os entrevistados utilizaram todo o jargão psicanalítico para definiram o termo "psicose", sempre
fazendo referências à psicanálise, a Freud e a Lacan. Não vamos discutir até que ponto tais
definições são realmente psicanalíticas, pois não é o nosso objetivo. Notamos apenas que as
respostas foram homogêneas do ponto de vista da representação e com claras referências à
psicanálise, o que nos permitiu de classificá-las num mesmo grupo, chamado de "representação
analítica". Contudo, a representação foi utilizada para fins diferentes de identificação. Além da
158
resposta propriamente dita, alguns entrevistados utilizaram a representação para se definirem
"profissionalmente". Tal definição, vale dizer, sempre teve como contraponto a medicina.
Dos onze entrevistados, cinco utilizaram a representação de psicose para se diferenciarem
dos médicos, do discurso médico e da medicina — todos os entrevistados que fizeram tal
diferenciação, a partir da representação da psicose, são lacanianos76. Podemos citar,
exemplificando, uma resposta típica de um entrevistado lacaniano: "psicose é uma falha que
produziu a interdição do Nome-do-Pai. A psicose seria uma estrutura de personalidade"
Os outros entrevistados não fizeram tal diferenciação a partir da sua representação
analítica de psicose. Além disso, os cinco entrevistados tiveram a preocupação de demonstrar que
sua representação de psicose não faz parte do "campo da medicina", concatenando tal afirmação
com o seguinte postulado: o psicanalista é diferente do psiquiatra. Tal diferenciação profissional,
realizada através da representação de psicose, reivindica uma diferença no próprio "trabalho
terapêutico"; isto é, uma representação analítica da psicose (ou de toda DM) implica uma postura
profissional diferente da psiquiátrica, seja na visão de psicose (ou de DM), seja na concepção de
tratamento. Em suma, as duas esferas profissionais (psicanálise e psiquiatria) não se misturariam:
não se pode ser psiquiatra e psicanalista ao mesmo tempo — inclusive alguns lacanianos
afirmaram que, se não houvesse problemas de ordem financeira, trabalhariam apenas como
psicanalistas.
Tal raciocínio é alicerçado numa visão da psicanálise enquanto um paradigma oposto ou
antagônico ao da medicina — para a maioria dos lacanianos, a DM não seria propriamente uma
doença, mas fundamentalmente um "sofrimento". Assim, no caso desses entrevistados, assumir
uma representação analítica da DM significa também assumir uma identidade de psicanalista,
mas não de psiquiatra. A representação analítica, para os entrevistados, entraria num conflito
irremediável com a representação dita "médica" da psicose e da DM, fazendo parte fundamental
na diferenciação profissional entre a psicanálise e o psiquiatria.
76 Lacan, psicanalista francês, re-fundou, digamos assim, a psicanálise. Embora considerem-se continuadores da obra psicanalítica, os lacanianos formam uma escola separada da ortodoxia freudiana. Lacanianos, nesse sentido, são psicanalista que possuem como referência profissional, e mesmo ideológica, Lacan e sua obra. Por uma especificidade histórica, que nã o iremos discutir aqui, Recife possui uma presença marcante de psicanalistas de orientação lacaniana.
159
Mas como se "equilibra" tal clivagem entre psiquiatria e psicanálise?
Através da construção de uma "dupla personalidade". Assim, a dualidade entre a
psiquiatria e a psicanálise é construída de dois modos: primeiro, trabalhando em espaços
profissionais e organizativos diferentes — no Hospital Psiquiátrico (HP), os entrevistados são
psiquiatras; no consultório, psicanalistas. Segundo, a psiquiatria é identificada ao tratamento
medicamentoso: no espaço analítico, os entrevistados recusam-se a administrar medicamentos,
principalmente psicotrópicos — a medicação somente seria administrada enquanto "psiquiatras".
Pode-se dizer que a psicanálise é colocada como o objeto da vocação, enquanto a psiquiatria é
quase um mal necessário, justificado discursivamente pela necessidade econômica. Tal solução é
nitidamente pragmática, e vários entrevistados reconheceram a contradição. Como afirmou um
entrevistado:
não posso fazer nada. Se pudesse ficaria apenas trabalhando no consultório.
No hospital, a lógica é de lascar. É impossível não passar medicação.
Por outro lado, os entrevistados que são psicanalistas77, mas evitaram a "dupla
personalidade", são justamente aqueles que não utilizaram sua representação de psicose e de DM
para uma diferenciação profissional. Possuem uma representação analítica da DM e a consideram
como uma doença, ao contrário dos lacanianos. Nesse sentido, ao considerarem a psicose como
uma patologia, aproximam a psicanálise da medicina, concebendo aquela como uma
"psicoterapia", isto é, como um "tratamento". A psicanálise desencantar-se- ia ao perder sua aura
de "profissão", tornando-se uma psicoterapia, embora hierarquicamente superior a todas as
outras. Há a defesa de um vínculo entre a psicanálise e a psiquiatria — na verdade, para estes
entrevistados, a psiquiatria seria uma "profissão da saúde mental" na qual várias correntes de
pensamento e de prática conviveriam no mesmo "espaço\tempo" profissional, incluindo o aporte
lacaniano; em suma, existiria uma psiquiatria de base analítica convivendo, não sem
antagonismos, com uma psiquiatria clínica, entre outras.
Como disse um entrevistado:
77 A maioria desses entrevistados não repudia o aporte lacaniano, tendo até alguma simpatia por algumas posições lacanianas; contudo, não se consideram lacanianos e sim psicanalistas, colocando o psicanalista francês no panteão analítico, mas ao lado de outros "deuses" da teoria psicanalítica.
160
sou psicanalista, mas não sou fundamentalista. Acho que a minha formação
analítica é complementar à minha formação psiquiátrica. A psiquiatria me deu
todo um referencial do ponto de vista do diagnóstico e de prognóstico... E a
questão dos limites: um psicanalista que não tem essa experiência com a
psiquiatria, ele pode se encontrar em determinadas situações em que não
consegue reconhecer determinados limites. O limite da depressão, o limite de
um sofrimento que exigiria uma medicação. Seria extremamente sádico, o
profissional de não desse a medicação a um paciente que com esse nível de
sofrimento...
Por isso, ao contrário dos lacanianos, não causa surpresa que tais psicanalistas defendam
uma complementaridade hierárquica entre o tratamento medicamentoso e a psicoterapia, sendo
esta última a prioritária e colocada no topo da hierarquia terapêutica. Ao mesmo tempo, tais
psicanalistas são profissionais que trabalham no serviço público, boa parte em coordenações de
saúde pública, geralmente com cargos de chefia. Estão, desse modo, acostumados a trabalharem
no HP e não privilegiam o trabalho em consultório; inclusive, mesmo que no espaço privado do
consultório a abordagem seja fundamentalmente de cunho analítico, não se consideram menos
psiquiatras por causa disso.
Pode-se resumir essa discussão acima com o seguinte quadro:
Representação analítica
Unidade profissional Tratamento
Defesa da separação "Dupla personalidade" Psicoterapia x medicação
Defesa do vínculo "Unidade" Complementaridade
c) Representação e formação analítica
Como vemos, a relação entre representação e prática não é direta nem unívoca. A
tradução lógica da representação em conduta ou comportamento nem sempre se verifica na
prática. Pode-se construir logicamente uma conduta adequada à representação, mas apenas como
indicativo para se examinar a relação entre a prática e a representação. O que pode ocorrer na
realidade é uma inadequação ou se perceber uma série de mediações entre a representação e a
prática — a relação não é direta e imediata, e sim indireta e mediada. Assim, como mais um
161
exemplo dessa discussão, embora onze entrevistados tenham assumido uma representação
analítica de psicose, a maioria dos entrevistados que teve uma formação analítica (20
entrevistados) não avocou tal representação. Dos que a tiveram, 09 entrevistados assumiram uma
representação analítica da DM. Ao mesmo tempo, apenas 02, dos que assumiram essa
representação, não têm uma formação analítica.
O que explicaria isso?
Podemos inferir que a formação analítica condiciona, de forma apenas parcial, a
representação da DM. Parece-nos que o resultado maior (e um tanto evidente) da formação
analítica foi o de tornar o psiquiatra capaz de realizar uma psicoterapia de base analítica. Assim,
todos os entrevistados que têm uma formação analítica reconhecem que utilizam o método
psicoterápico, principalmente no ambiente privado do consultório. Para o entrevistado, possuir a
competência de realizar um tratamento psicoterápico não implica, necessariamente, possuir uma
representação analítica da DM. Como disse um entrevistado: "a formação analítica me deu um
conhecimento que posso aplicar na minha prática". Pelo que pudemos entender, a maior parte
dos entrevistados considera a formação analítica uma formação "técnica" ou uma
"especialização" como outra qualquer. Os únicos entrevistados, para os quais a formação
analítica foi bem mais do que uma "especialização, foram os entrevistados que fizeram uma
diferenciação profissional entre a psicanálise e a psiquiatria. A formação analítica, nesse caso, foi
do tipo "lacaniana", reconhecida pelos entrevistados como mais "formativa", isto é, modelando
práticas e representações do profissional.
d) Representação da DM x noção de neurose x
classificações nosológicas
Indagar sobre a importância da noção de "neurose" entre os entrevistados foi fundamental,
pois tal noção sempre jogou um papel importante na representação da DM. Além do mais, seria
atualmente uma noção polêmica, cuja antiga hegemonia está sendo desafiada pelas novas
classificações nosológicas, principalmente as americanas, que prescindem do uso do termo. A
"neurose", além de implicar uma concepção de DM, implica também, na atual conjuntura, uma
diferenciação na identidade profissional. Para julgarmos o verdadeiro papel da noção de neurose,
162
fizemos uma diferenciação entre a representação (no caso, "analítica") de psicose e a de neurose,
cuja utilidade, inclusive, será vista daqui por diante.
Todos os entrevistados que possuem uma representação analítica da psicose utilizam o
conceito de neurose na prática terapêutica. Consideram tal conceito importante e o definem do
ponto de vista da teoria psicanalítica. Ao definirem a neurose analiticamente, os entrevistados
colocaram, no mesmo campo representativo, as representações de neurose e psicose. Os
entrevistados são "coerentes", utilizando a mesma teoria para ambas as representações.
Mas nem todos os entrevistados que possuem uma representação analítica da neurose têm,
por sua vez, uma representação analítica da psicose. Se o movimento é coerente da representação
de psicose para a de neurose, o inverso não é verdadeiro: há entrevistados que possuem uma
representação analítica da neurose, mas que não repetem o mesmo raciocínio para a psicose. Sem
examinar, por enquanto, outras variáveis, podemos inferir que a representação analítica de
psicose condiciona a de neurose, mas não o contrário — não haveria entre as duas representações
um feedback.
Podemos considerar que é "adequado" a utilização do conceito de neurose pelos
entrevistados do grupo analítico, já que tal conceito tem uma tradição importante na história da
psicanálise. Sua definição rigorosa em termos psicanalíticos seria também uma maneira de se
contrapor às novas tendências, principalmente da psiquiatria clínica, em que o conceito de
neurose praticamente desapareceu do diagnóstico. Assim, pode-se postular um investimento de
"identificação" no conceito de neurose, diferente da sua utilização "pragmática" feita por outros
entrevistados, principalmente psiquiatras clínicos, em que "neurose" foi apenas utilizada para o
diagnóstico diferencial da psicose. Acreditamos que essa defesa enfática do conceito de neurose é
uma demarcação de campo "profissional"; portanto, não causa surpresa que a maioria dos
psicanalistas recusam e criticam duramente o uso das classificações nosológicas, principalmente
as novas classificações que omitem ou desnaturam o conceito de neurose — tais classificações
repousam em visões de doença diferentes e, algumas vezes, antagônicas à psicanálise. Como as
classificações são sintomáticas, necessariamente omitem qualquer visão "qualitativa" ou causal
de uma DM. Podemos concluir que a defesa do conceito de neurose e a recusa de utilizar as
163
classificações fazem parte do mesmo movimento de defesa de uma identidade disciplinar e, por
que não, profissional.
Como disse um entrevistado:
Acho importante. É útil do ponto de vista operacional. Mas prefiro as classificações antigas. As novas só se preocupam com os sintomas ? pra quem gosta de medicação, as novas classificações são úteis. Faz perder de vista a totalidade do paciente. Neurose é bem mais do que transtorno, do que sintoma
Ou ainda:
A neurose deveria ser abordada por outra forma que não a psiquiátrica... A neurose desapareceu dessas novas classificações. Agora tudo é disfunção...
Não foi por mera coincidência, assim, o fato de que todos os entrevistados do grupo da
representação analítica de psicose, exceto um, não utilizam as novas classificações nosológicas.
A exceção confirma a regra, pois tal entrevistado justifica a utilização das classificações de uma
forma pragmática: utiliza esse procedimento apenas para a "comunicação científica". A utilização
não o impede de fazer críticas às classificações, consideradas como de base "comportamental" e
apenas sintomatológicas. As novas classificações não fazem uso do conceito de neurose e,
praticamente, prescindem do emprego de noções psicanalíticas; talvez por isso a resistência à
utilização de tais procedimentos por parte de entrevistados que possuem representações analíticas
tanto da psicose como da neurose. Nesse sentido, as novas classificações são comumente vistas
de forma negativa e, algumas vezes, francamente antipsicanalíticas.
e) Representação e dualismo nosológico
Todos os entrevistados do grupo da representação analítica de DM são dualistas
nosológicos, isto é, admitem que a doença mental é essencialmente diferente da doença tout
court. Como disse um entrevistado:
164
O problema da doença mental é a linguagem e o simbólico. Há diferença entre corpo e psiquismo. Há uma diferença de objeto entre a medicina e a psiquiatria...
Nem todo dualista possui, contudo, uma representação analítica da DM; assim, o
movimento vai da representação ao dualismo nosológico, e não o contrário. Stricto sensu não
podemos considerar os entrevistados que não concebem a psicose como uma doença ,
principalmente os lacanianos mais radicais, como dualistas. São, na verdade, dualistas bem mais
radicais, ultrapassando o próprio alcance do dualismo. São defensores de um de tipo ontológico
que separa corpo e psiquismo, de forma rígida, e que considera a DM completamente fora do
paradigma médico. O dualismo de tipo nosológico ainda se enquadraria no paradigma médico,
pois considera a psicose como uma doença, mesmo que substancialmente diferente da doença
propriamente dita; além do mais, ele pode ser amenizado ou mesmo reduzido a uma mera
dualidade através de um visão psicossomática da doença. Para o dualismo radical a DM não seria
propriamente uma doença e sim, como disse vários entrevistados, um "sofrimento". O fenômeno
"psicose" estaria completamente fora do âmbito psiquiátrico, sendo incompatível com sua
apropriação pelo saber psiquiátrico — incompatível, mais especificamente, com uma apropriação
biomédica de doença.
Um resumo dessa discussão pode ser visualizado da seguinte maneira:
Dualismo nosológico DM x Doença orgânica Paradigma médico Dualismo ontológico "Sofrimento" x Doença Fora do paradigma médico
A psicose ou a DM em geral — já que os entrevistados defenderam a neurose da mesma
forma — seria uma doença especial dentro da medicina, envolvendo justamente uma
representação especial de doença: a representação analítica. O dualismo seria a reafirmação dessa
diferença. Há as doenças tout court e as doenças de qualidade diversa que quase escapam da
medicina: são as doenças psiquiátricas. Com o dualismo, ocorre uma demarcação de território
disciplinar e mesmo profissional de grandes conseqüências. Ele é uma característica marcante da
representação analítica da psicose, fazendo parte do seu núcleo de formação. Para os
entrevistados, possuir uma tal representação significa ser dualista; significa defender uma
especialidade para a psicose e a DM; uma especialidade que as fazem diferentes na nosologia
165
médica. O dualismo nosológico sintetiza a diferença protagonizada pela representação analítica
da psicose.
f) Representação e etiologia
Em relação à etiologia da psicose e da DM, todos os entrevistados que possuem uma
representação analítica da psicose sustentaram uma determinação psíquica para a patologia
mental. Para tal, demonstraram a coerência entre a defesa de uma etiologia psíquica da psicose e
uma representação analítica da mesma — a comprovação da dita coerência se verifica quando
confirmamos que somente tais entrevistados defenderam uma etiologia psíquica da psicose e da
DM. A causalidade psíquica da psicose foi defendida também a partir de críticas às visões
"organicistas" da psicose e da DM, consideradas redutoras e contraditórias com a clínica.
Assim, temos algumas afirmações bem características, inclusive provenientes do jargão
psicanalítico:
Seria uma questão de herança, mas não genética. Uma herança simbólica e de constituição das relações. Pai e mãe...
Ou ainda:
Existe uma questão orgânica, mas do po nto de vista constitutivo: algo que aconteceu durante a constituição do indivíduo. Principalmente nas relações primárias. E pode explodir quando de situações estressante .
Podemos inferir de tal necessidade de "coerência" uma pregnância da representação
analítica da psicose; isto é, da representação deriva algumas conseqüências: umas doutrinárias,
ligadas à teoria psicanalítica, como a etiologia psíquica e a representação de neurose; outras mais
amplas, como a defesa do dualismo. Ora, nem todos os entrevistados que possuem uma
representação analítica de neurose ou que defendem o dualismo nosológico assumem uma
representação analítica da psicose. Nesse sentido, o caminho só tem uma direção: da
representação para tais variáveis. Visão analítica da neurose, dualismo e etiologia psíquica estão
juntos a partir da representação analítica de psicose. Ela seria o determinante da "família"; o
ponto pelo qual convergiria elementos dispersos para formar o campo representativo do
entrevistado — este utiliza a representação para colocar sob sua órbita argumentativa outros
elementos que não estão umbilicalmente ligados à representação.
166
Evidentemente, o "cimento", o "amálgama" dessa "família" é a teoria psicanalítica. Como
tal, pode ser utilizada de várias maneiras, seja como doutrina, como parece ser o caso desse grupo
de entrevistados, seja como um "instrumento", como parece ser o caso dos outros entrevistados
que têm uma relação pragmática com as teorias do campo psiquiátrico. No caso agora
examinado, seria a teoria psicanalítica que subsidiaria a representação da psicose, conectando-a
aos outros elementos, como a neurose e a causalidade psíquica. A teoria psicanalítica seria o pano
de fundo pelo qual os entrevistados fazem a conexão de vários elementos com a representação de
psicose.
g) Representação e tratamento
Podemos afirmar que os entrevistados examinados foram "coerentes": seguiram um
caminho lógico que vai da representação analítica até à causalidade psíquica da psicose e da DM.
Podemos dizer o mesmo quanto ao tratamento da psicose: 08 dos entrevistados indicaram que o
tratamento é "fundamentalmente psicoterápico"; o restante defendeu a complementaridade entre
medicação e psicoterapia. "Fundamentalmente psicoterápico" não significa que não ocorra o
emprego de medicação por parte dos entrevistados. Significa, na verdade, uma defesa de
princípios, pois todos os entrevistados desse grupo trabalham no serviço público, onde é
extremamente difícil — por motivos que, por enquanto, não discutiremos aqui —, senão
impossível, a aplicação de psicoterapias; assim, são obrigados pelas circunstâncias a administrar
corriqueiramente a medicação, principalmente aquela à base de psicotrópicos. Deste modo,
"fundamentalmente psicoterápico" reflete o trabalho no consultório, onde o tratamento é baseado
na psicoterapia. Tal fato se repete mesmo para aqueles entrevistados que fazem uma
diferenciação profissional entre a psiquiatria e a psicanálise, embora possamos fazer aqui uma
nuança: "fundamentalmente" seria trocado pelo "exclusivamente".
Como afirmou, paradigmaticamente, um entrevistado:
na prática analítica, não utilizo medicação. No serviço público, infelizmente,
sou obrigada...
Ou ainda:
167
sou contra a utilização de medicação na psicanálise. Não vejo pra quê.
Sinceramente, não gosto de medicar...
O restante dos entrevistados defende uma complementaridade entre a medicação e a
psicoterapia no tratamento da psicose e da DM. De novo, precisamos fazer uma nuança: os
entrevistados reconhecem que, no consultório, o tratamento é "fundamentalmente psicoterápico",
aceitando o fato de que, no serviço público, o tratamento é inteiramente medicamentoso. A defesa
da complementaridade não é apenas um fato de consciência — os entrevistados acham,
realmente, que o melhor tratamento para o paciente psiquiátrico é a complementaridade entre a
medicação e a psicoterapia —, mas também o reconhecimento de outro fato: há uma "divisão"
entre o serviço público (principalmente o hospital psiquiátrico — HP) e o consultório privado, e
tal divisão é "terapêutica".
A complementaridade entre medicação e psicoterapia também serve aos entrevistados
para reconhecer uma outra divisão terapêutica, dessa vez entre a neurose e a psicose: o tratamento
da neurose é baseado na psicoterapia, sendo a utilização dos medicamentos intermitente; ao
contrário da psicose, para a qual os medicamentos são imprescindíveis. Tal divisão, por
coincidência, corresponde à divisão assinalada entre consultório e serviço público
(principalmente o HP). Ora, como no HP, geralmente, estão internados pacientes psicóticos, o
tratamento é medicamentoso; como no consultório, os clientes, comumente, são aqueles que
sofrem de distúrbios neuróticos ou que já estão compensados do surto psicótico, o tratamento é
psicoterápico. Talvez, por isso, os entrevistados assinalam que o trabalho no consultório favorece
o tratamento "fundamentalmente psicoterápico", pois a maioria da clientela é composta de
pacientes não psicóticos que procuram o profissional explicitamente para uma psicoterapia. Ao
mesmo tempo, os clientes que sofrem de psicose procuram o profissional já "compensados"; ou
seja, clientes que já passaram por outros psiquiatras, seja no HP, seja num outro consultório, não
estando em "crise" e podendo ser submetidos imediatamente a uma psicoterapia. Assim, o
discurso da complementaridade não se realiza totalmente na prática, pois o consultório representa
para tais entrevistados um tratamento "fundamentalmente psicoterápico".
168
h) Representação e Psiquiatria
A posição do grupo de entrevistados sobre a natureza do conhecimento psiquiátrico foi
bastante nuançada. Mesmo assim, podemos dizer que ocorreu uma homogeneidade nas respostas.
Todos os entrevistados consideraram a psiquiatria como um conhecimento científico; contudo, tal
consideração não significou necessariamente uma va lorização da mesma. Por exemplo: os
entrevistados que fizeram uma diferenciação profissional entre psicanálise e psiquiatria
colocaram a primeira fora da medicina ? inclusive, no dizer de um entrevistado, "a psicanálise
não é uma ciência ". Tal fato se justificaria da seguinte maneira: a medicina é baseada na biologia
que, uma vez projetada para o campo psiquiátrico, dificultaria a compreensão do psiquismo
humano; assim, a psiquiatria seria fundamentalmente biológica e organicista. Como os
entrevistados afirmaram que a etiologia da DM é essencialmente psíquica, e sendo a psiquiatria
considerada como organicista, podemos compreender por que a psiquiatria não teria condições de
"entender" a patologia mental.
Assim, ao retirar a psicanálise do campo médico, os entrevistados utilizaram as seguintes
premissas: todo conhecimento médico tem como fundamento científico a biologia; como a
psiquiatria faz parte da medicina, possui um fundamento biológico ou orgânico; como a
psicanálise não é biológica, nem organicista, logo está fora do campo médico. No entanto, apesar
de os entrevistados terem-na retirado do campo médico, não a colocaram fora da ciência: a
psicanálise seria uma ciência que teria um parentesco com as ciências sociais ou com uma
psicologia "especial" — uma "ciência do inconsciente", no dizer de um dos entrevistados. A
psicanálise seria vista como um conhecimento tão rigoroso quanto o conhecimento médico,
porém diferente na natureza e nos objetivos ? "a psicanálise trabalha com o inconsciente e a
psiquiatria com a sintomatologia e a psicopatologia. São diferentes", disse de forma peremptória
um entrevistado. Reafirma-se, portanto, a diferenciação profissional entre a psicanálise e a
psiquiatria — diferença profissional, logo diferença de saber.
Mas os entrevistados não se contentaram apenas em detectar uma diferença
epistemológica entre a psicanálise e a psiquiatria; na verdade, a crítica foi mais longe: a medicina
científica implementou um uso abusivo da tecnologia na prática médica. Tal crítica, vale adiantar,
não foi monopólio desse grupo de entrevistados, sendo usada por outros entrevistados para
169
defender o papel humanista da psiquiatria na medicina. No caso examinado, a crítica ao
tecnicismo médico foi, ao contrário, utilizado justamente para realçar a diferença da psicanálise e
denunciar a psiquiatria; pois, segundo os entrevistados, o abuso da técnica na atividade médica
tornou o paciente um mero "objeto" e degradou, com isso, a relação médico-paciente. Dessa
forma, por ser médica e, conseqüentemente, abusar da técnica — no caso aqui, o uso da
medicação —, a psiquiatria reificaria o paciente, ao contrário da psicanálise que o reintegraria
enquanto sujeito.
Ao se diferenciarem profissionalmente, os entrevistados levaram a psicanálise para fora
do campo médico. Tal postura, evidentemente, também se enraíza numa velha polêmica interna à
psicanálise: qual é a relação da psicanálise com a medicina? Os entrevistados foram categóricos
na resposta: a psicanálise é um saber diferente do psiquiátrico e da medicina em geral. Mais
ainda: é um "trabalho" (o termo "profissão", vale assinalar, nunca foi empregado pelos
entrevistados) diferente do da psiquiatria. Podemos aventar que tal postura provém do lacanismo
dos entrevistados — pelo que pesquisamos, as correntes lacanianas do Recife defendem, de
forma velada, uma separação entre a prática médica e a psicanalítica. Podemos então inferir que a
defesa da diferenciação profissional entre a psicanálise e a psiquiatria tem origem nessa visão
particular, o lacanismo? Inferimos que o lacanismo, quando este é assumido enquanto uma
"ideologia", seria justamente um dos fatores que alicerçam tal diferenciação profissional. Ora,
pelo que sabemos, confirmado inclusive por um entrevistado, para os lacanianos qualquer pessoa
pode tornar-se psicanalista independentemente de sua formação profissional de origem
(engenharia, direito, etc.), traduzindo uma posição não partilhada por outras correntes analíticas,
principalmente as mais ortodoxas, que colocam como condição para o exercício da psicanálise a
obtenção do diploma médico ou de psicologia. Assim, a única condição sine qua non para se
tornar um psicanalista é a formação analítica obrigatória, a qual seria uma formação profissional
tout court , normatizando a profissão de psicanalista e oferecendo o conhecimento especializado
para o profissional da psicanálise.
Por trás da polarização entre psicanálise e psiquiatria, podemos notar uma outra
polarização, dessa vez entre humanismo e cientificismo. Tal polarização aconteceu várias vezes
na história da medicina moderna, sendo aguda atualmente; porém, tal polarização acontecia e
acontece por dentro da medicina, isto é, o humanismo e o cientificismo eram e são considerados
170
como tendências internas à medicina. No caso examinado, a medicina representa apenas uma face
da polarização, o cientificismo, enquanto a psicanálise a outra, o humanismo; ou seja, um dos
pólos deslocou-se para fora do campo médico. A medicina não teria outra opção senão continuar
sendo cientificista, e o psiquiatra, para ser humanista, teria de ser psicanalista, afastando-se
progressivamente da medicina. Os entrevistados que não fizeram a supracitada diferenciação
profissional entre a psicanálise e a psiquiatria retomaram a polarização humanismo x
cientificismo por dentro da medicina, embora com algumas especificidades. A psiquiatria é vista
como uma disciplina científica, fazendo parte das "ciências médicas". Porém, ao se tornar ciência
e, por isso, cada vez mais "medicina", a psiquiatria vem se tornando demasiadamente "técnica" e,
com isso, desumanizando-se79. Para esse grupo de entrevistados, a psicanálise seria uma espécie
de "deontologia" da psiquiatria, sendo uma referência contra a sua desumanização. Faria parte do
espaço do saber psiquiátrico, embora tenha um status especial — alguns entrevistados a
definiram como um "saber específico". E, ao se aproximar do humanismo ou se afirmando como
humanista, a psicanálise se tornaria também ética. Segundo um entrevistado, a psicanálise
oferece ao psiquiatra uma postura diante do paciente, ao mesmo tempo que faz deste um sujeito,
e não um "objeto de técnicas". Tal valorização da psicanálise vem acompanhada sempre de um
recuo: apesar de todo o seu valor, a psicanálise seria apenas uma psicoterapia entre tantas outras
que fazem parte do arsenal psiquiátrico, embora seja, na opinião dos entrevistados, a mais
importante. Na verdade, sua importância viria do fato de que a psicanálise não se reduz a uma
psicoterapia, sendo também um "saber" que concorre, inclusive, com o saber psiquiátrico em
geral — ao contrário de outras psicoterapias que estão alicerçadas em teorias apenas locais,
diretamente relacionadas ao tratamento psicoterápico.
A psicanálise, nesse sentido, teria a capacidade de assumir a função de um
weltanschauung profissional para o psiquiatra, isto é, um sistema de valores e idéias que
modelam a identidade e a prática de um sujeito. No caso dos entrevistados que fazem uma
diferenciação profissional entre a psicanálise e a psiquiatria podemos dizer que a psicanálise
parece realmente assumir a função de uma "cosmovisão" profissional; mas, no que se refere aos
outros entrevistados, a questão é mais matizada: a psicanálise possui um papel de amálgama da
79 A acusação de que a medicina está se tornando cada vez mais desumanizada não foi monopólio desse grupo de entrevistados, pois a maioria dos entrevistados brasileiros da pesquisa fizeram tal observação, embora a maioria tenha colocado a psiquiatria como um fator de humanização da medicina.
171
vocação ou da identidade profissional, embora tenha apenas um efeito "local", estando restrita
aos embates no campo psiquiátrico. Se ela reforça a identidade de um tipo de psiquiatra na
psiquiatria, tal identidade não deixa de estar subordinada a uma hierarquia axiológica mais
ampla: ser médico.
i) Representação e Neurologia
A neurologia é a "madrasta" da psiquiatria. E a relação da psiquiatria com essa disciplina
médica sempre foi recheada de ambigüidades. A história da psiquiatria parece um pênd ulo em
relação à neurologia, seja através de um movimento de adesão, seja através de um afastamento
declarado do "paradigma" neurológico. Por isso, julgamos fundamental "testar" a representação a
partir de sua relação com a neurologia. Assim, a posição do grupo de entrevistados foi consensual
a respeito da relação entre a psiquiatria e a neurologia: todos defenderam a separação entre estas
duas disciplinas. Para os entrevistados, seria lógico a manutenção da separação entre a psiquiatria
e a neurologia, vis to que a etiologia da DM é psíquica, diferenciando-a completamente da
patologia neurológica. Apesar do consenso, ocorreram diferenças significativas na defesa da
separação; diferenças de ênfase, principalmente.
Os entrevistados que fizeram uma diferenciação profissional entre a psicanálise e a
psiquiatria, embora defendam a separação disciplinar, acham que, atualmente, com o domínio da
psiquiatria biológica, a tendência é o retorno da psiquiatria à neurologia. Segundo um
entrevistado, a psiquiatria "se quiser entender alguma coisa sobre a psique humana vai ter que se
distanciar da medicina e da biologia ". Nesse sentido, ainda que desejável a separação disciplinar,
os entrevistados encaram tal discussão com certa distância, pois consideram que a psiquiatria está
inserida numa insolúvel ambigüidade: se assume a "complexidade da psique", torna-se menos
"médica"; se assume suas bases biológicas, retorna à neurologia e se elimina enquanto disciplina
autônoma.
Já os entrevistados que não fazem a diferenciação profissional entre a psicanálise e a
psiquiatria concebem a separação disciplinar entre a neurologia e a psiquiatria como uma questão
fundamental: segundo um entrevistado, "o retorno da psiquiatria à neurologia seria uma
tragédia para o tratamento da DM ". A neurologização da psiquiatria é vista como um perigo
172
mortal para a identidade do psiquiatra: "um neuropsiquiatra é apenas um neurologista
especializado", diz um entrevistado. A psiquiatria, portanto, precisa manter-se autônoma,
enquanto disciplina, para justamente dar conta da especificidade da DM na medicina. Sendo
específica, a DM necessita de um profissional especial: o psiquiatra.
Para os entrevistados da diferenciação profissional, o problema da separação entre a
psiquiatria e a neurologia não é fundamental para sua identidade profissional, pois tal questão
passa fundamentalmente pelo reconhecimento da autonomia profissional da psicanálise. Já para
os outros entrevistados, o reconhecimento da autonomia disciplinar da psiquiatria é fundamental
para o seu reconhecimento profissional. Seria a autonomia disciplinar da psiquiatria que
permitiria a manutenção de um espaço no campo psiquiátrico de profissionais que fazem da
psicanálise uma referência de prática profissional.
3. Representação biológica da psicose e da DM
Esse grupo foi formado para dar conta de uma representação clínica enfaticamente
biológica, baseada numa etiologia precisa. Ele representa um grupo de 12 entrevistados — maior
até que o grupo da representação analítica da DM. Apresenta uma coerência e uma
homogeneidade parecida com as do grupo da representação analítica, envolvendo também
"princípios de pensamento e de conduta". São entrevistados que têm em alto valor a ciência,
afirmando que sua representação da DM é, antes de tudo, "científica", sendo refratários a todo e
qualquer "ecletismo". O domínio dessa representação tem como causa, segundo Laplantine:
o pensamento médico oficial de nossa sociedade, aquele que possui a maior
legitimidade social, não seria compreensível sem seu modelo epistemoló gico de
referência que é proveniente das ciências exatas. Mais precisamente, ele se
constitui como um intermediário da biologia. Seu discurso, coextensivo ao seu
objeto, é biomédico, não conhecendo e não reconhecendo nenhum outro. E
tudo aquilo que não entra no seu campo de saber ou é abandonado às
elucubrações do pensamento não científico ou é solicitado a se submeter (1992:
266)
173
Acreditamos que a representação biomédica da doença tenha as seguintes características gerais (1992):
• etiologização da doença;
• etiologia de forma predominante exógena;
• monismo nosológico;
• medicalização da doença (alopatia);
• quantificação da saúde e da doença;
• conceito de normalidade proveniente da fisiologia (média comportamental).
A passagem, na ciência médica, do modelo biomédico de doença ao de doença mental não
é realizado de maneira passiva e sem algumas transformações. Inferimos que a maioria dos
psiquiatras do aparelho formador médico tenham, como representação dominante, o modelo
biomédico de doença; contudo, ele sofreria algumas modificações que, acreditamos, não
ultrapassam as fronteiras do paradigma. Assim, a representação biomédica de doença mental teria
as seguintes características gerais:
• etiologização da doença mental;
• etiologia endógena (orgânica, genética ou funciona l) e relacionada à singularidade
do indivíduo;
• isomorfismo entre doença mental e doença (monismo médico);
• medicalização básica da doença mental + hierarquia terapêutica (primeiro, o
tratamento medicamentoso; depois, a psicoterapia);
• classificação nosográfica e sintomatológica da doença mental;
• redução dos sintomas como objetivo da terapia;
• ambivalência do conceito de normalidade entre um pólo qualitativo e quantitativo.
Na verdade, a representação biomédica da doença mental sofre de uma instabilidade
crônica, principalmente porque ela não tem um consenso etiológico. Ela não pode se adequar
completamente ao modelo biomédico de doença, enquanto não existir tal consenso. A "volta" da
psiquiatria, desse modo, ao monismo nosológico sempre estancará no meio do caminho. A
174
psiquiatria, com isso, não pode assumir, em última instância, uma "clínica causal" e substitui a
ausência de um fundamento etiológico por um recurso velho e conhecido: a compulsão
taxionômica.
a) Representação e neurose
A maioria dos entrevistados (07) do grupo utilizam o conceito de neurose, enquanto o
restante não o utiliza. No entanto, a utilização do conceito de neurose seria "pragmática", pois
totalmente desligada do seu contexto teórico. "Neurose" é um instrumento para o diagnóstico
diferencial da psicose. Na verdade, os entrevistados não "acreditam" no conceito de neurose: o
conceito estaria superado ou seria demasiadamente psicanalítico, segundo os mesmos.
Como disse um entrevistado:
Eu concordo com as novas classificações. Neurose é um conceito basicamente
psicanalítico. Mas, a cada dia que se passa, a psicanálise vai sendo
destronada, o que é muito bom, convenhamos
"Neurose" seria um termo amplo em demasia e difícil de manipulação, além de
incompatível com as novas classificações nosológicas. Mesmo assim, não consideram
contraditório utilizá- lo para a discriminação da psicose. Seria como se empregassem dois
registros diferentes para o conceito de neurose: um, para criticá-lo; o outro, para utilizá- lo,
mesmo que de forma "pragmática". Contudo, tal contradição seria ressentida de alguma forma,
pois vários entrevistados "justificaram" o uso de um conceito que criticam: utilizam-no por força
do hábito ou, então, porque no serviço no qual trabalham ainda se utiliza antigas classificações
nosológicas. De qualquer forma, a "utilidade" do conceito é reconhecida, embora de maneira
mitigada: "neurose" não seria empregado para o diagnóstico da "neurose", e sim indiretamente
para o de psicose. Os entrevistados prescindem do confronto dos dois antigos mundos da
psiquiatria, o da neurose e o da psicose, embora mantenham o segundo e um resquício do
primeiro.
Já os cinco entrevistados que não utilizam o conceito de neurose foram peremptórios: o
conceito de neurose está caduco e não tem utilidade alguma na psiquia tria. O alvo é velado: a
175
psicanálise. Pois o conceito de neurose, segundo os entrevistados, se não é originariamente
psicanalítico, foi "reinventado" pela psicanálise — praticamente todos os entrevistados desse
grupo possuem uma visão um tanto negativa do papel da psicanálise na psiquiatria.
Vale ressaltar que todos os entrevistados desse grupo, sem exceção, defenderam o uso das
novas classificações nosológicas, embora uma minoria não as utilize porque em vários serviços
predominam ainda outras classificações mais antigas que, inclusive, utilizam a noção de neurose.
Por isso, defenderam com ardor a rápida disseminação das novas classificações, pois o seu uso
eliminará o hábito de utilizar conceitos desatualizados como o de neurose, unificará a psiquiatria
e todos poderão falar a mesma "língua". As novas classificações, assim, reaproximariam a
psiquiatria da medicina e da "ciência".
b) Representação e Monismo nosológico
Todos os entrevistados desse grupo, seguindo a coerência da sua representação, são
monistas convictos. A frase chave, repetida em uníssono, é a seguinte: "a DM é uma doença
como qualquer outra " — tal afirmação será, inclusive, repetida por vários entrevistados do grupo
da representação clínica. Ou seja: não há diferenças ontológicas entre as doenças, mas sim
especificidades, embora possa existir hiperbolismo: "doença mental? Tem o mesmo valor que um
cálculo biliar" – disse um entrevistado . Ao colocar a DM como uma "doença como outra
qualquer", os entrevistados fazem um movimento fundamental: banalizam a DM e, ao banalizá-
la, diminuem a carga de preconceitos que existe em relação à patologia mental. Portanto, segundo
os entrevistados, banalizar significa também lutar contra os preconceitos.
O movimento vai da definição da doença, sempre procurando o substrato biológico, passa
pela necessária identidade da DM com as outras doenças, implementa uma banalização da
patologia mental, conectada a uma prevenção dos preconceitos contra a DM, e termina numa...
política de saúde mental, pois prevenir, em psiquiatria, significa fazer política. O monismo não
teria apenas uma importância epistemológica, relativa à conceituação da doença, mas também
política, pois a banalização só pode acontecer, como disse um entrevistado, "a partir do
esclarecimento público de que a DM é um doença como outra qualquer", ou seja, a partir de uma
política de saúde mental.
176
Mas, provavelmente, a defesa do monismo é menos uma questão epistemológica ou
política do que de identidade profissional. A afirmação "a DM é uma doença como outra
qualquer" parece significar, no fundo, "eu sou médico". Recolocar a DM como uma doença,
tornando-a ontologicamente igual a qualquer tipo de patologia na medicina, equivale a afirmar a
vocação médica da psiquiatria. Tal grupo de entrevistados possuem, realmente, uma preocupação
quase compulsiva com o tema "a volta da psiquiatria à medicina". Por isso, consideram que,
quanto mais biológica a visão psiquiátrica da DM, mais médica seria a psiquiatria, mais médicos
os psiquiatras. Acreditamos, assim, que a representação biológica possui uma função parecida
com a da representação analítica da psicose, em particular a dos lacanianos, embora o conteúdo
seja inversamente oposto: serve fundamentalmente, além da afirmação de uma visão de DM, para
aglutinar uma defesa da psiquiatria enquanto disciplina médica. Os "psiquiatras de orientação
biológica" utilizam sua visão de DM também para valorizar profissionalmente a sua atividade,
identificando tal valorização à autenticação médica da psiquiatria. Por isso uma leitura negativa
da psicanálise, concebida como um conhecimento que não se enquadra no paradigma biomédico;
curiosamente, neste caso específico, os entrevistados teriam a mesma visão dos lacanianos a
respeito da psicanálise: uma prática terapêutica diferente e separada da psiquiatria.
Assim como os lacanianos advogam um dualismo radical, os "psiquiatras de orientação
biológica" defendem um monismo radical. A DM é, de fato e de direito, uma doença como
qualquer outra. A clínica que aborda uma pneumonia é a mesma que trata uma esquizofrenia, no
dizer de um entrevistado. A segmentação profissional, distinguindo o trabalho de um
pneumologista de um psiquiatra, seria proveniente de uma divisão de trabalho entre os
profissionais médicos, e não de uma diferença ontológica entre a patologia mental e a orgânica,
pois não há mais condições de um médico individualmente abarcar profissionalmente todo o
reino da medicina. Dessa forma, o monismo radical abraça o dualismo radical quando infere a
mesma conclusão: a psicanálise não é uma prática médica, distinguindo-se radicalmente da
psiquiatria. O ponto de partida das duas posições são indubitavelmente diferentes, afinal a
representação analítica e a biológica são, com efeito, diametralmente opostas; contudo, enquanto
extremos, tocam-se, quando apresentam a mesma conclusão a respeito da psicanálise.
177
c) Representação e Tratamento
Apenas três entrevistados do grupo dos "psiquiatras de orientação biológica" defenderam
que o tratamento da psicose e da DM em geral é "fundamentalmente medicamentoso", incluindo
os casos de neurose. Em algumas situações clínicas, principalmente nos quadros agudos de
psicose, o tratamento deveria ser "exclusivamente medicamentoso". Segundo um entrevistado:
"basta a medicação para termos um resultado positivo". Em tom jocoso, alguns entrevistados
disseram que fazem psicoterapia, chamada ironicamente de "papoterapia" (sic). A psicoterapia,
nesta visão ultra-biologista, seria completamente acessória e restrita a determinadas situações,
principalmente para os casos de neurose. Aparentemente, repete-se aqui uma velha divisão na
história da psiquiatria: o mundo da neurose x o mundo da psicose. Como a psicoterapia é bem
menos valorizada do que o tratamento medicamentoso e como é indicada comumente para a
neurose — uma indicação bem mais aceita do que uma puramente medicamentosa —, faz-se uma
conexão entre psicoterapia e neurose, ao mesmo tempo em que se produz uma dupla
desvalorização que afeta tanto a primeira como a segunda. Um entrevistado chegou a afirmar que
"trato de doença, doença grave. Só trato de disfunções neuróticas graves" — vale a pena reparar
no termo disfunção, cujo uso aparece em classificações que não apresentam a noção psicanalítica
de neurose. Fica-nos a impressão de que, no fundo, para os psiquiatras de orientação (ultra)
biológica, além de ser descartável, enquanto nosologia psiquiátrica, a neurose não teria uma
autenticidade enquanto morbidade na prática médica. Tal impressão pode ser resumida de forma
exemplar na frase de um entrevistado: "neurose é para psicólogo". Frase que implica, além de
uma conexão entre neurose e psicologia, uma desvalorização de ambas em relação à psiquiatria e
à terapêutica psiquiátrica. Inclusive, a psicanálise é confundida como o apanágio da psicologia,
reforçando a desvalorização — como disse um psiquiatra biológico: "a psicanálise é um fracasso
no tratamento da psicose!"
Contudo, nove dos "psiquiatras de orientação biológica" defenderam explicitamente, para
o tratamento, uma complementaridade entre medicação e psicoterapia. Seguem, aqui, a posição
amplamente majoritária do grupo dos entrevistados que defendem uma "representação clínica da
psicose". No geral, a defesa da complementaridade é a mesma do grupo citado, não havendo uma
diferença significativa; no detalhe, porém, apresenta algumas nuances interessantes. Haveria, por
exemplo, uma hierarquia nítida entre a medicação e a psicoterapia, com a prioridade focalizada
178
no tratamento medicamentoso. A psicoterapia não seria propriamente acessória, é certo,
apresentando alguma valorização, embora seja secundária à medicação, considerada como
prioritária. Na verdade, pelo que interpretamos das afirmações dos entrevistados, o tratamento
medicamentoso seria a condição necessária para a psicoterapia. Usando um jargão psiquiátrico,
primeiro deve-se "compensar" o paciente (retirá- lo do surto) para depois implementar uma
psicoterapia. E, geralmente, a psicoterapia não é realizada pelo próprio psiquiatra, sendo o
paciente encaminhado a um outro profissional (seja um psiquiatra ou um psicólogo) para o
tratamento psicoterápico. Tal démarche acontece normalmente, é verdade, nos hospitais
psiquiátricos, independentemente da visão de doença do psiquiatra, já que isso ocorre por causa
da peculiar divisão de trabalho existente nos hospitais psiquiátricos entre a psiquiatria e a
psicologia — o paciente, após sua "compensação" induzida pelos medicamentos, é enviado ao
setor de psicologia, responsável pela psicoterapia. Contudo, tal procedimento é realizado
regularmente pelos psiquiatras de orientação biológica nos seus consultórios privados.
Novamente, pode-se perceber um paralelismo inverso ao posicionamento dos lacanianos: nesse
caso, não se administra medicação e, geralmente, o paciente aparece no consultório já
"compensado" ou, quando o psicanalista acha necessária a medicação, o paciente é encaminhado
a um outro profissional para ser medicado.
Vale frisar ainda que a psicoterapia assinalada pelos entrevistados é de base cognitiva ou
comportamentalista, nunca em tempo algum de base analítica. Embora alguns entrevistados
reconheçam que a psicanálise é uma forma legítima de psicoterapia, normalmente preferem
outros tipos de tratamento psicoterápico. Na verdade, algumas abordagens psicoterápicas não são
incompatíveis com uma representação biológica da DM, nem mesmo com as ultra-biológicas. A
psicologia moderna, por exemplo, reciclou o comportamentalismo, e este pode substituir a
psicanálise, enquanto psicoterapia preferencial dos psiquiatras. Inclusive, talvez a psicologia
comportamental seja a "nova dinâmica" da psiquiatria de base biológica e mesmo da clínica —
lembrar que a psiquiatria clínica é o paradigma dominante no âmbito psiquiátrico. Ela é objetiva,
com uma metodologia de mensuração apreciável; empirista, afirmando como postulado que "o
que é real é observável"; alopática, pois o seu objetivo não é propriamente a origem do sintoma
ou o seu sentido, e sim a eliminação do mesmo; em suma, completamente adequada ao
paradigma da psiquiatria biológica, e mesmo da clínica — aqui, haveria uma afinidade eletiva
179
entre a psiquiatria clínica e a de base biológica com as psicoterapias de base cognitiva e
comportamental.
d) A "volta à medicina"
Como assinalado mais acima, o tema da "volta da psiquiatria à medicina" é unânime entre
os psiquiatras de orientação biológica. Parece claro aos entrevistados que, atualmente, a
psiquiatria está afastada da medicina, embora muitos reconheçam que a "volta" esteja iminente
ou ao ponto de se completar. Independentemente do fato de o discurso ser, provavelmente,
baseado numa ficção — não é provável que a psiquiatria esteja afastada da medicina —,
interpretamos o "discurso da volta" como uma afirmação explícita de identidade profissional.
Grupo pequeno mais coeso, sempre presente em congressos e encontros psiquiátricos,
embora não tão presente no ensino universitário, os psiquiatras de orientação biológica, com o
declínio relativo da psicanálise, as conquistas medicamentosas e as descobertas das
"neurociências", estão em pleno processo de legitimação. Querem ocupar um espaço profissional
ainda ocupado pelos psicanalistas e pelos psiquiatras clínicos. Os primeiros seriam seus mais
diletos inimigos "ideológicos"; logo, a tática é a do confronto e "da guerra de movimento", até
porque a psicanálise vivencia um eclipse histórico; os segundos têm a possibilidade concreta de
serem seus aliados ou, simplesmente, podem ser facilmente "convertidos"; logo, a tática é a da
cooptação, até porque a psiquiatria clínica possuiu sempre uma afinidade com o paradigma
biomédico. Assim, a volta à medicina significa, no fundo, a naturalização da psiquiatria (a
biologia como referência única para o conhecimento psiquiátrico) ou, mutatis mutandis, a
hegemonia progressiva da psiquiatria biológica no mundo psiquiátrico. A "volta" implica, enfim,
a valorização profissional dos psiquiatras de orientação biológica. Não causa surpresa, assim, a
defesa explícita e enfática da psiquiatria enquanto disciplina médica.
Contudo, no exame das relações da psiquiatria com a neurologia e a medicina, ocorreu
uma divisão até certo ponto esperada no grupo. O tema da "volta da psiquiatria à medicina" é
dominante, embora tenha algumas nuances. Os ultra-biológicos afirmaram, por exemplo, a
necessidade de uma volta da psiquiatria à medicina, mas condicionada a uma união com a
neurologia. Além do "discurso da volta", houve o "discurso da junção": a volta à medicina
180
significa a transformação da psiquiatria numa neuropsiquiatria. Haveria assim dois tipos de
"volta", uma moderada e outra radical, uma mantendo a especificidade da psiquiatria enquanto
disciplina médica e a outra, subsumindo a psiquiatria na neurologia.
Vale lembrar que a neurologia sempre fascinou os psiquiatras, seja negativamente ou
positivamente. Já foi inimiga ou aliada, tudo dependendo da conjuntura pela qual atravessava a
psiquiatria. Na época da "anti-psiquiatria", a neurologia era vista como uma madrasta, uma mãe
ilegítima que tolhia a liberdade da prática psiquiátrica, impondo um saber e um poder que
castravam a diferença e a loucura ; atualmente, quando há um domínio relativo do paradigma
biomédico, a neurologia volta ser bajulada, recuperando alguma legitimidade ou, pelo menos, não
sendo alvo de tanta rejeição. A relação da psiquiatria com a neurologia faz parte de um jogo de
claro-escuro e de verdade-engano que tanto pode participar de uma estratégia de valorização da
psiquiatria, como gerar uma crise de identidade profissional. Admitir ou rejeitar a neurologia, por
exemplo, pode ser o ponto de partida para uma afirmação profissional da psiquiatria. No caso da
psiquiatria (ultra) biológica, a admissão é identificada a uma unificação com a neurologia — a
volta à medicina só pode acontecer com a volta à neurologia! Uma psiquiatria distante da
medicina, segundo o discurso da junção, significou sempre uma psiquiatria distante da
neurologia.
No entanto, a maioria dos psiquiatras de orientação biológica não aderiram ao discurso da
junção; certo, defenderam a volta à medicina, mas mantendo a separação da psiquiatria com a
neurologia. Nesse sentido, não se distinguem da maioria dos entrevistados (41) que afirmaram
também a separação entre as duas respectivas disciplinas médicas. Distinguem-se por causa do
discurso da volta, uma necessidade discursiva não encontrada nos outros entrevistados, embora
não façam da volta à medicina uma volta à neurologia.
O monismo nosológico dos psiquiatras de orientação biológica casa-se perfeitamente com
o discurso da volta à medicina e o da separação disciplinar com a neurologia80. O conhecimento
psiquiátrico seria visto como um saber médico especializado distinto do neurológico. A DM seria
uma doença como qualquer outra, embora precise de uma aparato especializado para sua cura e
80 O discurso da separação não foi monopólio do monismo, pois todos os entrevistados, exceto os ultra-biológicos, defenderam a separação disciplinar com a neurologia.
181
tratamento: a psiquiatria — já os ultra-biológicos defendem a psiquiatria enquanto
neuropsiquiatria, isto é, como uma especialização da neurologia. Na verdade, tal discurso não se
diferencia daquele habitual na medicina: seria simplesmente o discurso da especialização que
toda disciplina, incluindo a neurologia, defende e pratica. A medicina é constituída por um
"campo" repleto de "doenças" ontologicamente iguais, porém precisando de abordagens
diferenciadas. A banalização da DM não impede, no campo disciplinar da medicina, a
reivindicação do saber psiquiátrico como saber especializado; justamente o contrário: a
banalização aparece conectada de forma indissociável à defesa da especialização por dentro da
medicina.
4. Representação clínica da psicose e da DM
Dos 50 entrevistados, 27 assumiram o que chamamos de "representação clínica da
psicose". Tal representação apresenta as seguintes características: ênfase no aspecto patológico da
psicose; visão sintomatológica da morbidade; definição da psicose como perda da percepção da
realidade. Ela possui uma peculiaridade: não demonstrou a mesma força de coesão lógica e de
indução de condutas que manifestaram a representação analítica e a biológica. Não parece ser um
ponto de referência no qual se aglutinam atitudes e opiniões dos entrevistados. Sendo assim, não
seria um ponto de partida pela qual se afirmam valorizações profissio nais; ao contrário: parece
ser justamente um ponto de chegada.
Mas ponto de chegada de quê?
Provavelmente, de uma postura que poderíamos denominar de "pragmática". A
representação não teria, digamos assim, uma função ideológica do tipo "visão de mundo", um
papel aglutinador de crenças e condutas; parece mais o "resultado" de uma postura eclética dos
entrevistados, na qual se combinam diversos registros etiológicos; parece mais uma
"bricolagem": diante da pluralidade de aspectos da DM (etiologia, diagnóstico e tratamento),
diante de um fenômeno tão multifacetado, prefere-se uma representação de DM multifacetada e
plural do que uma unívoca, juntando-se numa mesma representação vários registros diferentes.
Se a representação não aglutina, devemos procurar alhures outros fatores que consolidam
a identidade profissional. O fato é que a maioria dos entrevistados do grupo examinado acima são
182
"pragmáticos", misturando diversas representações e práticas segundo as circunstâncias e de
acordo com seus interesses. De antemão, excluímos a hipótese de que tal questão seja explicada
pela geração dos entrevistados, pois o "pragmatismo" aparece em todas as gerações de
entrevistados. A "mistura" faz com que a adequação entre prática e representação seja
problemática — nesse caso específico, entre representação de doença e outras representações e
práticas. Devemos confessar que a adequação é "problemática" para nós, enquanto pesquisador,
pois os entrevistados não vivenciam essa "inadequação" como tal. Talvez a "situação" dos
entrevistados permita a convivência de várias lógicas de ação e representações aparentemente
contraditórias — quer dizer: contraditória do ponto de vista de uma construção lógica das
relações entre representações e práticas. A descrição da "situação" (a articulação entre as
condições trabalho e suas representações) do entrevistado permitiu compreender melhor a
possibilidade do "pragmatismo" — de novo, excluímos a hipótese da "geração", embora a
geração mais nova de psiquiatras seja bem mais "pragmática" do que as mais antigas.
a) Representação x etiologia
Um exemplo do pragmatismo examinado acima: do ponto de vista da etiologia, todos os
entrevistados foram unânimes em afirmar a DM como multifatorial ? "uma doença grave.
Multifatorial", como disse um entrevistado. Ou ainda, outro: "tem várias causas, psíquica e
orgânica, até social...". Os fatores que "causam" a DM são fatores biopsicossociais, isto é, cabe
praticamente tudo na etiologia da DM. Porém, o ecletismo assinalado seria muito mais fruto de
um "realismo" do que de uma ausência de posicionamento, pois a resposta dos entrevistados
segue pari passu um problema clássico de sua profissão: não há consenso etiológico na
psiquiatria. O que há, na verdade, é um verdadeiro dissenso, no qual coexiste uma profusão de
teorias etiológicas antagônicas entre si. Os entrevistados admitem o dissenso e, diante dele,
assumem uma posição que "junta" todas as "causalidades" da DM, evitando, de certa forma, o
confronto com alguma posição etiológica na psiquiatria.
Nesse sentido, essa representação da DM pode abarcar todo tipo de psiquiatra e de
psiquiatria: do psicanalista à psiquiatria de orientação biológica. A nuance recai na
predominância dos "fatores" na etiologia. A representação seria um "múltiplo com
predominante"; assim, os psiquiatras mais próximos da psicanálise afirmam a predominância do
183
fator psíquico em relação aos outros fatores (biológico e social); os psiquiatras mais próximo da
biologia defendem a predominância do fator biológico e, enfim, os psiquiatras mais
"epidemiologistas" ou "comunitários" enfatizam o fator social ou familiar. A representação é
vaga o suficiente para permitir tais predominâncias sem causar transtornos, sendo centrada em
noções como "sofrimento" e "perda de contato com a realidade", isto é, noções que podem
coexistir com predominâncias do tipo "psíquico" ou "biológico", sem maiores contradições.
b) Representação x neurose
A utilização da noção de neurose pode ser um exemplo demonstrativo de como a
representação clínica de psicose e de DM é eclética. Dezoito dos entrevistados utilizam a noção
contra nove daqueles que não a utilizam. Do contingente que utiliza a noção, nove a usam como
um instrumento para o diagnóstico diferencial da psicose. Assim como os entrevistados de
orientação biológica, embora menos radicais, tais entrevistados utilizam a noção de forma
indireta, tendo em vista apenas o diagnóstico da psicose. Além do uso instrumental para o
diagnóstico diferencial da psicose, o uso da noção de neurose estaria menos relacionado a um
diagnóstico direto de algum distúrbio neurótico do que a uma adaptação às classificações
empregadas nos serviços psiquiátricos, sejam privados ou públicos. Provavelmente, caso tais
classificações não utilizassem a noção de neurose— como as novas classificações de influência
americana —, os entrevistados continuariam a utilizar a noção apenas como um guia útil para o
diagnóstico da psicose.
Juntando os entrevistados que não utilizam a noção de neurose com aqueles que a utilizam
apenas de forma instrumental, teremos uma maioria que tem, digamos assim, uma relação
"negativa" com a noção. Podemos repetir o mesmo raciocínio ao se examinar a aceitação das
classificações nosológicas: 23 dos entrevistados desse grupo defendem a utilização das
classificações81 contra 04 apenas dos que não as utilizam ou discordam do seu uso na clínica 82;
81 Lembrar que o uso das classificações é mal-vista pelos psicanalistas e por todos os psiquiatras que são contra o uso de medições e estatísticas em psiquiatria. 82 Alguns entrevistados, embora não tenham sustentado o uso das classificações, fizeram a seguinte distinção: as classificações podem ser úteis na pesquisa, mas não o são na prática clínica. Curiosamente, tais entrevistados são professores universitários, têm formação analítica, embora não se considerem psicanalistas, e sim... médicos.
184
ora, as novas classificações, como já foi dito, não empregam mais a noção de neurose, nem os
critérios de diagnóstico provenientes da psicanálise.
Podemos avaliar melhor essa questão examinando os subgrupos de entrevistados. Do
contingente que utiliza a noção de neurose, 14 advogam uma visão psicopatológica da neurose.
Tal visão possui as seguintes características: a neurose é uma psicopatologia, precisa ser tratada e
diferencia-se da psicose quanto à sintomatologia. Desse contingente, 04 defenderam uma visão
psicanalítica da neurose e dez, uma visão "clássica" (mais centrada na sintomatologia da
repetição, da ansiedade e da angústia). Ora, do contingente da visão psicanalítica da neurose,
todos são contra a utilização de classificações, coincidindo com as posições declaradas pelo
grupo de entrevistados da representação analítica de psicose e DM — já todos da visão "clássica"
afirmaram, ao contrário, a necessidade do uso de classificações nosológicas na clínica
psiquiátrica.
Aparentemente, há uma tendência entre os entrevistados do grupo da representação clínica
da psicose e da DM em reproduzir a velha separação da psiquiatria entre o mundo da neurose e o
da psicose. Tal separação pode ocorrer em vários níveis: o primeiro, o mundo da psicose estaria
relacionado umbilicalmente ao tratamento medicamentoso, e o mundo da neurose, ao campo da
psicoterapia — esse nível seria o mais representativo dos entrevistados agora examinados; o
segundo nível, mais radical, a separação estaria relacionada à separação entre a psiquiatria e a
psicologia e/ou a psicanálise: psicose = psiquiatria, neurose = psicologia (psicanálise) — esse
seria o nível mais representativo dos psiquiatras de orientação biológica. De todo modo, parece
existir um consenso difuso de que o tratamento mais eficaz para a neurose é a psicoterapia —
nesse caso, psicoterapia é identificada à psicologia e à psicanálise — e que o mais eficiente para a
psicose é o medicamentoso.
Inferimos também que esse grupo de entrevistados possui uma afinidade mais acentuada
para o lado da representação biológica do que para o da representação analítica. Seria uma
afinidade que o puxa em direção ao paradigma biomédico. Embora os entrevistados não tenham o
discurso da "volta à medicina", como os entrevistados de orientação biológica, a tendência das
suas posições seria uma reafirmação da psiquiatria enquanto disciplina médica. A começar por
uma defesa enfática do monismo nosológico, isto é, do velho mote de que "a DM é uma doença
185
como outra qualquer", um dos passaportes do psiquiatra para sua identidade de médico. Nesse
sentido, a defesa do monismo foi eloqüente: 22 entrevistados contra apenas cinco que foram a
favor do dualismo. Contudo, ainda um reforço: três entrevistados do contingente do dualismo
sustentou uma concepção psicossomática da DM, ou seja, um dualismo mitigado que pode muito
bem ser entendido como uma defesa de uma dualidade nosológica83, bem como todos os cinco
têm formação analítica, embora não se considerem psicanalistas e sim médicos-psiquiatras — os
entrevistados identificam a formação analítica a uma especialização como outra qualquer.
c) A bricolagem
Não causa surpresa que 25 entrevistados do grupo ratifiquem um tratamento baseado na
complementaridade entre a psicoterapia e a medicação. Ao contrário dos entrevistados de
orientação biológica, os entrevistados de orientação clínica colocam no mesmo plano os dois
tipos de tratamento. Talvez seja no tratamento que percebemos melhor a conduta pragmática
desse grupo de paciente — justamente no tratamento, fulcro central da vida do médico, o alfa
ômega da carreira médica. Como disse um entrevistado, de forma paradigmática: "qualquer
forma de tratamento vale a pena, até mesmo umbanda, contanto que funcione...". Mesmo que o
dito seja espirituoso, reflete bem o espírito dos entrevistados. Aqui, a prática clínica vira
bricolagem. O psiquiatra, dependendo do caso, utiliza várias lógicas de ação e vários registros no
tratamento, seja na mistura medicamentosa, na dosagem ou nos tipos de tratamento. Mas a
bricolagem possui um referencial empírico, pois depende umbilicalmente de sua eficácia.
Funcionou, continua o tratamento; do contrário, muda e se tenta outra coisa. Evidentemente, a
bricolagem possui seu limite, princ ipalmente um limite institucional. O psiquiatra segue as
normas do serviço, normas que enquadram os tipos de tratamento, e a liberdade do consultório
não permite todo e qualquer experimento. Contudo, o psiquiatra possui uma relativa margem de
manobra, principalmente se o serviço lhe permite alguma autonomia profissional. Assim, no
serviço público o psiquiatra possui uma maior autonomia profissional, embora sua liberdade seja
bastante coagida pelas péssimas condições de trabalho, do que nas instituições privadas.
83 Isto é, haveria a defesa de que as doenças do corpo e da mente são faces diferentes da mesma moeda. A ênfase recai, assim, na distinção entre as doenças clínicas e as psiquiátricas, e não na sua separação.
186
A bricolagem possui um discurso que a legitima: o discurso da "experiência". Os
entrevistados, várias vezes, assinalaram a importância da "experiência clínica" que é, na verdade,
uma experiência pessoal conquistada durante a sua trajetória profissional. "Sigo minha
experiência", repete um entrevistado. O que isso significa? Fundamentalmente que a experiência
clínica não se esgota na formação universitária — "universidade é só teoria; a prática a gente
aprende na vida". O discurso da "experiência" seria menos alicerçado na profissão do que no
métier: uma experiência adquirida menos numa aprendizagem formal, como a formação
universitária, por exemplo, do que numa série de aprendizados práticos, obtidos via tentativa e
erro através da vivência individual de cada um; vivência geralmente adquirida, ainda estudante
mesmo, nos estágios hospitalares, comumente "seguindo" o cotidiano profissional de um médico
mais experiente.
Parece existir, aqui, uma crítica implícita à formação universitária, cujo defeito maior
seria a homogeneização da prática médica, não respeitando a complexidade e a pluralidade da
clínica. Uma complexidade que, para ser verdadeiramente respeitada, precisa da improvisação, da
bricolagem e da "experiência". Não se nega a necessidade da formação universitária, mas se
afirma, isto sim, que o momento principal da formação do profissional ocorre fora da
universidade, isto é, a partir da experiência profissional. No fundo, faz-se uma diferença entre o
mundo da formação, entendido também como o espaço da ciência, e o mundo da profissão, lugar
da experiência profissional. Seria no cotidiano profissional, e não apenas na formação
universitária e no ensino científico da medicina, o lugar pelo qual o médico aprenderia sua
profissão. Por isso, talvez, a preocupação de um entrevistado em atestar, numa frase típica: "eu
não sou cientista, eu sou médico", criticando a aplicação de fórmulas clínicas aprendidas na
universidade que na prática profissional do dia-a-dia, segundo o entrevistado, não funcionam de
forma alguma. Vemos aqui a divisão entre a medicina científica, lugar da formação universitária,
e a medicina profissional, espaço de atuação do médico. Curiosamente, tal visão crítica da falta
de praticidade do ensino universitário é proveniente de um grupo em que onze entrevistados são...
professores universitários.
O que vemos, provavelmente, e isso não seria contraditório mesmo entre professores
universitários, seja uma resistência a uma medicina ultra-tecnológica e cientificista. O apoio ao
velho empirismo tenha talvez uma relação com um tipo de prática que não pode, segundo os
187
entrevistados, ser esgotada pela tecnologia e mesmo pela "ciência". "O psiquiatra se vira", diz
um entrevistado. E "se virar" significa um trabalho cujas condições exigem necessariamente
muita improvisação. O médico precisa lidar com situações que não foram "simuladas" ou
"testadas" na formação universitária; precisa enfrentar diversas situações que não foram previstas
de antemão. A valorização da improvisação faz parte importante da "bricolagem". A
improvisação torna -se, no discurso dos entrevistados, uma capacidade, a capacidade de
improvisar, vital para o aprendizado. A bricolagem, a improvisação e a experiência constituem a
concepção da medicina enquanto arte.
A medicina enquanto arte é uma concepção relativamente comum entre os médicos,
portanto, não seria de estranhar encontrá- la entre os psiquiatras. Mas as características da
psiquiatria e de sua clínica, talvez, reforcem-na. A clínica psiquiátrica caracteriza-se por ser um
processo relacional que exige muito da intuição e da subjetividade do profissional. "Não podemos
ser objetivos — como um neurologista — diante dos sintomas de DM", diz um entrevistado. A
pouca objetividade, o grande espaço dado à intuição e a importância do aspecto relacional
propiciam uma prática clínica que utiliza diversas lógicas de ação diferentes, isto é, propiciam a
arte. Além do mais, a psiquiatria não possui uma etiologia já consensual, como a neurologia, por
exemplo. A falta de um consenso etiológico permite também a mistura de várias explicações a
respeito da DM. Diante de um paciente, o psiquiatra pode manejar diversos registros, inclusive
alguns antagônicos entre si, provenientes das várias correntes existentes no mundo psiquiátrico.
A arte seria também a arte de misturar diversos registros teóricos e práticos sem perder de vista a
eficiência do tratamento. De uma forma exemplar, um entrevistado resumiu o ecletismo da
psiquiatria da seguinte forma: "a psiquiatria é uma feijoada, pode misturar tudo, contanto que
fique gostoso".
A falta de um consenso etiológico é ressentindo como um "déficit científico", o que
dificultaria, segundo alguns entrevistados, o reconhecimento pleno da psiquiatria no meio
médico. Aqui, tocamos num ponto sensível da identidade, não só desse grupo de entrevistados,
mas também do psiquiatra como um todo; ponto que volta e meia reaparece no discurso dos
entrevistados, justamente aquele a respeito da relação entre a psiquiatria e a medicina. Não é o
discurso da "volta" dos psiquiatras de orientação biológica, mas aproxima-se do seu conteúdo.
188
Podemos chamá- lo de "discurso do reconhecimento"84, isto é, um discurso que reclama o
reconhecimento da psiquiatria enquanto disciplina médica. Seria um discurso interno ao campo
psiquiátrico, sendo uma forma dos psiquiatras combaterem a suposta desvalorização da
psiquiatria no meio médico. Uma desvalorização que é ressentida principalmente em relação à
neurologia. Ilusória ou não, a sensação de desvalorização é real, calcada fundamentalmente num
sentimento de que a psiquiatria não conseguiu adequar-se ao paradigma médico. Tal sentimento
pode expressar-se de duas formas básicas:
a responsabilidade da desvalorização é dos próprios médicos que não aceitam a
especificidade da psiquiatria. Não entendem que essa especificidade significa apenas que a
psiquiatria é uma especialidade como outra qualquer da medicina. Muitos entrevistados afirmam
que a desvalorização da psiquiatria é fruto do preconceito do médico em relação à DM, vista
como "loucura";
a responsabilidade da desvalorização é dos próprios psiquiatras, quando se isolam da
medicina, insistindo que a psiquiatria precisa de um aparato institucional independente (vide o
hospital psiquiátrico) das instituições médicas. Ou quando insistem que o conhec imento
psiquiátrico diferencia-se do conhecimento médico, isolando-se do ponto de vista do saber.
Assim, seria bastante evidente a preocupação dos entrevistados em referendar a
psiquiatria enquanto disciplina médica, considerando o conhecimento psiquiátrico tão científico
quanto o médico, simplesmente porque a psiquiatria é uma forma de medicina. Inclusive, vários
entrevistados afirmaram que a conjuntura está melhorando, pois o preconceito contra a psiquiatria
está diminuindo e os psiquiatras estão adquirindo cada vez mais respeito profissional. O discurso
é esperançoso, revertendo até as expectativas:
"a psiquiatria pode ajudar muito a medicina, pois a maioria das doenças
necessita de uma abordagem relacional que somente a psiquiatria, na
medicina, pode oferecer" — como disse um entrevistado.
84 Na verdade, o discurso da volta parece ser a radicalização do discurso do reconhecimento.
189
O psiquiatra precisa acabar com seu complexo de inferioridade. Precisa demonstrar sua
legitimidade; afinal, como disse um entrevistado, "a psiquiatria, atualmente, é bem mais eficiente
do que a neurologia, essa medicin a dos sequelados". No fim das contas, a mensagem é clara e
pode ser resumida de forma sucinta: "sou psiquiatra, sou médico".
Não causa surpresa, assim, que todos os entrevistados do grupo tenham defendido a
separação entre a psiquiatria e a neurologia. Nesse sentido, são radicalmente contra a
transformação da psiquiatria numa neuropsiquiatria, como foi defendido pelos entrevistados de
orientação biológica. Não chegam, repetimos, a radicalizar o discurso do reconhecimento,
transformando-o numa defesa da volta à medicina, pois já consideram a psiquiatria uma
disciplina que atua normalmente no campo médico. Em suma, a psiquiatria e, conseqüentemente,
o psiquiatra necessitam de um maior reconhecimento.
Enfim, fazendo um pequeno resumo de toda discussão, em relação aos três grupos de entrevistados pode-se perceber que há três tipos de vínculo entre a representação e o interesse do psiquiatra:
• a representação vinculada ao campo do conhecimento — a representação traduz
um saber que se diz verdadeiro. Os analistas e os biomédicos fariam tal
vinculação;
• a representação vinculada ao campo do valor — saber que se diz útil. Os clínicos
fariam tal vinculação;
• a representação vinculada ao campo da ação — saber como meio de conhecimento
e instrumento de ação. Acreditamos que todos os entrevistados façam essa
vinculação.
190
X. Capítulo V
A. O campo representativo profissional
A discussão acima teve uma utilidade específica: demonstrar a importância do "objeto
profissional", no caso aqui examinado: a DM, na construção identitária profissional. Sendo a
identidade profissional uma identidade coletiva, portanto, construída a partir de referências
sociais, sejam representacionais e/ou axiológicas, achamos necessário analisar o objeto
profissional enquanto representação social85. Sendo sociais, as representações são vivenciadas a
partir de sua socialização num grupo — logo, não são idiossincráticas, vividas única e
exclusivamente do ponto de vista individual — e, desse modo, compartilhadas pelos psiquiatras.
Inclusive, são representações que, embora circulem preferencialmente no meio médico-
psiquiátrico, possuem provavelmente raízes que ultrapassam o mundo profissional dos
entrevistados. São, nesse sentido, formadas também por elementos provenientes do senso comum
e de outros mundos vividos e, enquanto tais, não se esgotam nas vivências e nas interações
sociais do universo profissional dos psiquiatras. Tudo parece indicar que a psiquiatria, por
diversos motivos (Perrusi, 1995), precisa integrar as representações profanas da DM na sua
prática86.
Desse modo, como as representações ultrapassam a mera esfera profissional, não seriam
propriamente profissionais — pelo menos, convencionalmente, não precisariam ser chamadas
assim. Se o fossem, seriam formadas somente a partir do mundo e do contexto profissional dos
entrevistados. O objeto profissional da psiquiatria, sendo um objeto societário por excelência,
possui determinações exteriores ao próprio contexto profissional. Certo, as representações são
"clínicas", "analíticas" e "biológicas", tendo por isso um vínculo expressivo com a formação
profissional dos psiquiatras; no entanto, elas apenas perpassariam o universo profissional dos
entrevistados, possuindo um alcance bem mais amplo que vai desde o mundo científico até o
85 A começar que nosso interesse sempre centrou-se nos discursos definidores do "objeto profissional", e não no objeto propriamente dito. 86 O saber psiquiátrico não possui um consenso etiológico em torno da DM que lhe permita combater, neutralizar ou se proteger das interpelações do senso comum. As representações psiquiátricas da DM nunca são produzidas totalmente pelo conhecimento psiquiátrico; na verdade, elas são formadas também a partir das representações profanas da DM.
191
senso comum — do ponto de vista genealógico, tais representações retêm apenas um momento
profissional, sem dúvida importante, mas que não explica sua socialização entre mundos
diferentes do profissional.
A partir desse momento, contudo, diferentemente do que foi feito até então, analisaremos
representações que podem ser conceituadas de "profissionais", porque são formadas no contexto
profissional (ex: condições de trabalho, interações profissionais, regras, normas e dinâmicas
institucionais...), além de participarem na construção da identidade profissional dos psiquiatras.
São representações contextualizadas, isto é, adaptadas ao contexto onde são elaboradas e
formadas. Estando relacionadas ao contexto profissional, isso significa que tais representações
são produzidas por sujeitos implicados nas relações de trabalho profissional. Por isso, o contexto
profissional é fundamental para a compreensão das representações profissionais, visto que a
profissão é uma modalidade de trabalho bastante padronizada, geralmente condicionada por
dinâmicas institucionais específicas. Ainda mais que, no caso da psiquiatria, as lógicas
institucionais ou organizacionais são impregnantes ao ponto de delimitarem de forma
pronunciada a identidade profissional — talvez porque a evolução da psiquiatria tenha tido
menos relação com as transformações na clínica e no conteúdo das representações de DM do que
com as transformações das condições técnicas e organizacionais no meio psiquiátrico.
O contexto profissional é perpassado por atividades coletivas que necessitam de
representações e de saberes partilhados, constituindo um referencial comum. Precisa de uma
linguagem específica, concreta e prática, que ultrapasse as normas gerais da situação de trabalho.
O referencial comum — conjunto de lógicas de ação inseridas na prática — tem uma relação com
representações funcionais, representações de como é feito a atividade, fundamentalmente
diferentes das representações valorativas, representações de porque é feito o trabalho,
relacionadas aos sistemas vocacionais. As representações valorativas, no entanto, não podem ser
completamente subsumidas na sua contextualização. Embora o contexto profissional seja
fundamental na produção das representações profissionais, as diversas representações dos
entrevistados a respeito, por exemplo, da vocação não podem ser reduzidas ao contexto
profissional.
192
A vocação pode ser apreendida, é certo, enquanto representação profissional, podendo
inclusive ser considerada como um dos fatores fundamentais na formação da identidade
profissional, porém seu alcance ultrapassa o mero contexto profissional, incluindo a origem da
escolha da profissão, a trajetória profissional e as projeções futuras sobe o devir profissional do
entrevistado. A vocação possui menos uma relação com o contexto do que com o mundo
profissional (ou cultura profissional). Interpelando o mundo profissional do entrevistado, a
vocação estrutura, enquanto representação profissional, as conexões entre a memória (passado) e
o futuro no contexto atual. Conecta rememoração — re-elaboração da origem da escolha — com
projeção — desejo de realização pessoal que, enquanto projeção, permanece como objetivo
presente, mas apontando o tempo todo para o futuro.
1. Identidade profissional
Considerando que nosso objeto é, afinal de contas, a identidade profissional, julgamos
pertinente colocar o tópico "identidade profissional" do guia de entrevistas como o norteador de
todos os outros do "campo profissional". Ele funcionará tal qual um critério de comparação ou de
cruzamento e, por isso, de referência para o trabalho de classificação, juntando questões,
formando grupos e ajudando a interpretação. Assim como produzimos três classificações
(analíticas, biológicas e clínicas) a partir das representações de DM, dividindo os entrevistados
em três grupos e, igualmente, utilizando-os como critério de comparação e de referência para o
trabalho de interpretação do "campo representativo da DM", faremos o mesmo com o tópico de
"identidade profissional", isto é, as classificações geradas a partir da análise servirão como
mediações para o exame dos outros tópicos, ajudando o trabalho interpretativo.
Por razões operacionais e, mesmo, por comodidade, achamos conveniente utilizar um
esquema simplificado de perguntas, priorizando questões que envolvessem o duplo movimento
da identidade: basicamente, polarizações em torno da diferença da psiquiatria em relação às
outras disciplinas médicas e às outras profissões da saúde mental. As questões em torno da
diferença criam, na verdade, o duplo movimento, pois a construção de uma identidade envolve
uma delimitação de valor com um Outro (ou outros), principalmente um outro próximo (ou
outros), seja realçando os aspectos distintivos, seja reafirmando o que tem de específico na
psiquiatria. O movimento, assim, possui uma direção e dois sentidos: do interno para o externo,
193
de dentro para fora, e vice-versa. Uma direção e dois sentidos, justamente porque o movimento
envolve, ao mesmo tempo, tanto o que é comum, como o que é diferente (no caso aqui, em
relação à psiquiatria) 87.
O jogo de polarizações inscreve-se na própria resposta do entrevistado, pois há uma
necessidade de delimitar a identidade: ser psiquiatra (ou mesmo o que é a psiquiatria) e a
espinhosa questão da fronteira entre o que é e o que não é ser psiquiatra. Mesmo que seja possível
encontrar delimitações identitárias claras e nítidas, no caso de entrevistados implicados no campo
profissional da psiquiatria, cuja inserção no mundo médico é problemática e, para dizer o
mínimo, ambígua, definir fronteiras é cair numa zona de transição onde se movem elementos
opostos e mesmo antagônicos, contendo o ser e o não ser da psiquiatria 88. Por isso, interrogar os
entrevistados a respeito da relação entre o saber psiquiátrico e o senso comum, do papel da
psiquiatria na sociedade e na medicina, sobre vocação e o trabalho em equipe, entre outras
questões, produziu tantos, digamos assim, questionamentos, tantas respostas que nos dificultou
sobremaneira as classificações e o enquadramento dos entrevistados em grupos.
a) Representações e senso comum
Nesse tópico, analisaremos as relações, assinaladas nas entrevistas, entre o saber
profissional e o "saber profano" da DM. Julgamos tal ponto relativamente importante porque
permite vislumbrar, pelo menos indiretamente, a autonomia do saber psiquiátrico e profissional
em relação a outras formas de saber, principalmente os que se formam fora do ambiente
profissional e universitário. A delimitação de fronteiras é fundamental na construção identitária,
daí a importância deste tópico; afinal, a delimitação será feita em relação ao supremo "outro", o
senso comum. A questão é essencial, pois a psiquiatria lutou sempre pela transformação da
loucura em doença mental, portanto, pela ratificação da DM como seu objeto de conhecimento e
profissional. A luta foi e é também por um monopólio discursivo — a logorréia da psiquiatria
sobre o seu objeto corresponde ao silêncio das outras produções ideativas sobre a DM. Por isso,
tal questão é sensível para os entrevistados, até porque o seu objeto profissional não está
87 O comum pode ser visualizado como o interno, o de dentro, e o diferente como o de fora, o externo. 88 Por exemplo: refletir sobre o papel da psiquiatria na medicina levou os entrevistados à necessidade de distingui-la da neurologia, produzindo uma distinção não tão nítida, principalmente no caso dos psiquiatras que defenderam a exigência de uma neuropsiquiatria.
194
estabilizado por um consenso no meio psiquiátrico, sofrendo interpelações de várias fontes
provenientes do imaginário social. A psiquiatria, enfim, ainda não teve uma completa sanção
social sobre o objeto de seu discurso, a DM — falta honoris saber na psiquiatria.
Dessa forma, pudemos observar que todos os entrevistados delimitaram nitidamente o
saber profissional, separando-o do "saber profano", embora 20 entrevistados sustentaram a
possibilidade de um "diálogo" entre as visões profissionais e as profanas sobre a DM. Os
entrevistados delimitaram, assim, seu saber profissional, seja em relação a outras representações
no campo médico-psiquiátrico, seja em relação aos saberes profanos existentes no meio social. A
delimitação da representação parece ser fundamental na busca de alguma identidade profissional.
Muitas vezes, nas entrevistas, percebemos uma defesa do saber psiquiátrico em geral e não,
propriamente, da representação de DM em particular (a representação do entrevistado), como se o
seguinte raciocínio estivesse subjacente: contra uma outra representação proveniente da
psiquiatria, enfatiza-se uma representação em particular, justamente aquela defendida pelo
entrevistado; em relação às representações profanas, sublinha-se o saber psiquiátrico em geral,
isto é, as diversas representações psiquiátricas da DM. Aparentemente, os entrevistados
consideram sua representação e as outras representações do campo psiquiátrico, pois todas são
provenientes da psiquiatria e defendidas, em última instância, por psiquiatras como...
psiquiátricas. Ao delimitá-las como psiquiátricas, independentemente das divergências,
delimitam-na em relação às representações profanas da DM.
Embora 20 entrevistados defendessem o "diálogo", pode-se afirmar que adotaram uma
postura paternalista, misturada a um certo pragmatismo. O "diálogo", aqui, é funcional à
construção do vínculo terapêutico. Deve-se adotar, assim, uma conduta compreensiva para
convencer o paciente do seu tratamento. Se, para obter o apoio do paciente à terapia, por
exemplo, necessita-se do "reconhecimento" das suas concepções de DM, "respeita-se" as visões
do dito-cujo sem muita delonga. O que acontece, então, seria uma adaptação pragmática ao
contexto cultural do paciente (pragmatismo paternalista), não existindo, na verdade, uma defesa
da continuidade entre os dois tipos de saberes. O "diálogo" não seria baseado no reconhecimento
da veracidade do outro saber, e sim na "tolerância" a uma visão diferente da DM. A função da
"tolerância" não seria a de permitir uma troca de conhecimentos a respeito do objeto comum, a
195
DM, e sim a de ajudar o paciente a aceitar o tratamento 89. Como disse um entrevistado: "pouco
me importa se o paciente é espírita e acredita que está possuído, contanto que tome a medicação.
O importante é que ele aceite o tratamento". Outro entrevistado lembrou de um caso no qual teve
que "dividir" a terapia com um terreiro de umbanda: "o paciente fez o seguinte acordo comigo:
vai no terreiro e tira o encosto, mas toma haldol"90.
Vale ressaltar que as afirmações acima dos entrevistados possuem uma peculiaridade: são
provenientes de profissionais que trabalham no SUS, isto é, estão em contato direto com
pacientes originados dos setores populares da população do Recife. Tais pacientes, pelo menos
uma boa parte, possuem representações que, aparentemente, são diferentes das concepções de
DM dominantes na psiquiatria — embora diferentes, são representações que se misturam, muitas
vezes de forma contraditória, com as representações psiquiátricas da DM. Tal diferença não
impede que o paciente (ou sua família), mesmo aquele que acredita que seu estado mental seja
efeito de uma possessão, procure a umbanda ou uma sessão espírita e, concomitantemente ou
depois, principalmente no caso de não ocorrer melhora alguma, a psiquiatria.
Na verdade, a argumentação acima é baseada na seguinte hipótese: as representações de
DM da psiquiatria não são hegemônicas (ou não são ainda) nas classes ditas "populares" do
Recife. Não haveria ainda, desse modo, uma difusão91 suficiente das representações psiquiátricas
no meio popular que substituísse ou determinasse as representações "populares" da DM; não
haveria ainda, por exemplo, uma crença bem estabelecida de que a loucura possui uma
causalidade tipicamente psiquiátrica (psicanalítica, biológica ou clínica). O psiquiatra trava,
assim, um "combate" cotidiano contra representações de DM bem diferentes daquelas que julga
serem as mais "verdadeiras" (sic). O "diálogo", nesse caso, torna-se necessário, pois, do
contrário, há o risco de se "perder" o paciente. A manutenção do "diálogo" teria um papel
importante, convencendo e persuadindo o paciente, enfim, de que a psiquiatria possui a
legitimidade e a verdade sobre a DM.
89 Lembrar que, na psiquiatria, a aceitação do tratamento pelos pacientes é, muitas vezes, mais difícil do que em outras áreas da medicina. 90 Medicação utilizada principalmente para tratamento de surtos psicóticos 91 Talvez o termo correto seja o de "vulgarização". Geralmente, quando as representações médicas das doenças tornam-se dominante na sociedade, ocorre um processo de amálgama entre as diversas representações de doença, mas que mantém como núcleo irradiador justamente as representações dominantes, no caso as provenientes da medicina.
196
Pelas entrevistas, pode-se deduzir que a maioria das representações dos pacientes sobre a
DM— especificamente daqueles oriundos dos meios populares —, encontradas pelos
entrevistados, possui um forte componente religioso ou místico. Invariavelmente, a DM é vista
como um "encosto" ou possessão. Representações, portanto, bem distintas das psiquiátric as que
seriam, digamos assim, "desencantadas", já que exorcizadas de qualquer vestígio, pelo menos
explicitamente, de explicações sobrenaturais ou mágicas. Pode-se, desse modo, deduzir que o
"diálogo" proposto pelos entrevistados envolve um processo de negociação bastante complexo.
Como o ambiente institucional, no caso desses entrevistados, ou é um ambulatório do SUS ou um
hospital psiquiátrico, ambiente onde a psicoterapia é realizada pelos psicólogos ou simplesmente
nunca acontece, o ponto fundamental de negociação para os psiquiatras, principalmente os
clínicos e os biológicos, recai na medicação. Pelo que entendemos, o importante seria o
tratamento, no caso o tratamento medicamentoso — "tenho que garantir o mínimo necessário ",
disse um entrevistado. Como já foi comentado anteriormente, o paciente pode até fazer uma
"psicoterapia espírita", no dizer de um entrevistado, mas contanto que tome a medicação. O
"mínimo necessário" é a tomada do remédio, a justa compensação do "diálogo". Seria como se a
medicação garantisse o controle do tratamento, mesmo com o paciente continuando a freqüentar
sessões espíritas ou terreiros de umbanda92. O paciente e a família, por exemplo, não precisam
estar convencidos de que o quadro delirante não é, decididamente, produzido por um "encosto"
— no caso, podem continuar com suas crenças sem problema algum —; o fundamental seria
estarem convencidos, isto sim, da necessidade do tratamento medicamentoso.
A negociação gira assim muito mais em torno do tratamento; em suma, das técnicas, das
práticas e não propriamente em torno das crenças e das representações. Parece que defender a
necessidade da medicação seria uma imposição "neutra" que respeitaria as representações
diferentes do paciente. A neutralidade da medicação não seria vista como uma injunção de uma
representação; ao contrário, o paciente pode tomar a medicação, manter sua representação de DM
e, ainda, participar de rituais exorcistas. O tratamento medicamentoso é visto como uma "técnica"
e, como tal, "neutra" em relação às crenças dos pacientes. Ele não competiria com a crença da
possessão, por exemplo. O uso da medicação não seria contraditório com as representações, estas
92 Esse raciocínio parece ser mais comum nos casos de psicose do que nos de neurose, pelo simples fato de que a medicação tem uma importância fundamental no tratamento do surto psicótico.
197
sim contraditórias com as representações psiquiátricas. A demonstração explícita ou implícita da
"neutralidade" da medicação seria essencial para a manutenção do "diálogo". Como não há um
veto nas crenças dos paciente em relação à tomada da medicação, a administração
medicamentosa pode acontecer sem muita resistência93.
Pode-se aqui ventilar a hipótese de que uma psicoterapia sofreria mais resistências por
parte dos pacientes, já que, por analogia, competiria com os rituais de "exorcismos". A
"psicoterapia selvagem" de tais rituais competiria, de alguma forma, com a "psicoterapia
civilizada" e padronizada do "setting" psicoterápico. De algum modo, a medicação pode ser vista
como neutra, desde que interpela o corpo do paciente, enquanto o que realmente está em jogo é a
sua alma — a psicoterapia, por analogia, interpelando o psiquismo do paciente, interpelaria sua
"alma". Para um paciente convicto de sua possessão, talvez a psicoterapia pareça-lhe não muito
eficiente94 — para aplacar seus demônios, haveria a necessidade de processos de transferências e
de sugestão "selvagens". No fundo, o ato de tomar um medicamento passa ao largo de uma
questão provavelmente importante: o reconhecimento da veracidade da possessão do paciente. A
psicoterapia só pode reconhecer a verdade da possessão de uma maneira, no máximo, metafórica,
o que não é o bastante95. Abordando apenas o "corpo", a medicação simplesmente não
problematiza a possessão, tornando-se "neutra" em relação às crenças do paciente96.
A medicação é representada como técnica e, num segundo movimento, como sendo
"neutra". Pode, evidentemente, ter outra significação e, nesse sentido, mudar conforme o grupo
de entrevistados. Os entrevistados "biomédicos", por exemplo, possuem a convicção de que a
93 Totalmente diferente, por exemplo, da situação de uma crença, como a advogada pelos adeptos da seita "Testemunha de Jeová", que veta explicitamente a técnica de transfusão sanguínea. 94 Um entrevistado clínico chegou a afirmar de forma irônica: "não tem psicanálise que suplante um ritual de exorcismo, ela (a psicanálise) é delicada demais, demorada demais" 95 Na França, a fusão da psicanálise com a antropologia, gerando um etnopsicanálise (base da etnopsiquiatria), parece ter superado esse problema (Devereaux, 1970). 96 A situação torna-se ainda mais complexa quando o entrevistado é espírita, como aconteceu com quatro entrevistados, três clínicos e um psicanalista, todos psiquiatras do SUS. Diante de um paciente e de uma família que acreditam na possessão, o entrevistado utiliza a seguinte estratégia: primeiro, procura diferenciar se o caso é psiquiátrico ou "espírita". Tal diferenciação, um verdadeiro "diagnóstico diferencial", se interpretamos bem, seria baseado completamente na "experiência" do profissional, apresentando um forte componente intuitivo. O entrevistado utilizaria dois "registros" diferentes, o espírita e o psiquiátrico, e, diante do quadro apresentado pelo paciente, decidiria pelo mais conveniente. Segundo, assim que comprovada a natureza psiquiátrica do caso, começaria a negociação em torno da medicação, repetindo os procedimentos já discutidos.
198
medicação é uma técnica, mas não a percebem, por outro lado, como "neutra"; na verdade, neste
caso, a medicação possui uma importância fundamental: seria a prova da verdade da
representação biomédica de DM. E a verdade da representação estaria relacionada ao sucesso da
terapia medicamentosa. E verdade, aqui, confunde-se com sucesso, eficiência e resultado do
tratamento. A medicação, assim, não é "neutra"... Seria "técnica", sem dúvida, mas possuindo um
valor e, enquanto tal, relacionado a uma prática ou a procedimentos terapêuticos que são um
sucesso. Ela é a prova da verdade.
Já para os analistas, a medicação não seria "neutra" e sim um símbolo de uma
representação de DM. O diagnóstico é o mesmo dos entrevistados " biomédicos", só que num
sentido inverso: a valoração seria, aqui, negativa. O sucesso do tratamento medicamentoso
esconderia a face oculta da psiquiatria biológica, isto é, dissimularia a vitória de uma prática que
desumaniza o paciente e elimina a relação médico-paciente. Aparentemente, a técnica seria vista
como uma prática de poder e de exclusão do paciente, e o exclusivismo medicamentoso como sua
expressão na psiquiatria. Ela seria a prova da realidade de um poder. Decerto, diferente da
psicoterapia, vista menos como uma técnica do que como um processo relacional. Parece-nos —
pelo que interpretamos das respostas dos entrevistados — que a técnica envolveria um conjunto
de procedimentos "materiais", enquanto a psicoterapia, sendo relacional e, digamos assim,
"espiritual", não poderia ser enquadrada como um procedimento técnico97.
Pode-se fazer a hipótese de que, ao contrapor a psicoterapia à técnica, os entrevistados
afastam-se da espinhosa questão de relacionar a psicoterapia a uma prática de poder. A
psicoterapia, desse modo, ao contrário da medicação, é que seria... "neutra". Mas neutra em
relação ao poder — a neutralidade de uma prática terapêutica seria definida, aqui, a partir da sua
relação com o poder98. Quanto mais afastada do poder, mais neutra — talvez assim mais
terapêutica; quanto mais próxima, mais imbricada com técnicas de dominação. Os entrevistados
têm nitidamente a preocupação de grudar a crítica tradicional de que a psiquiatria é uma prática
de poder sobre o paciente à psiquiatria biológica. Nesse sentido, a crítica à estratégia
97 Lembrar que muitos entrevistados clínicos, principalmente os mais "pragmáticos", colocaram a psicoterapia como uma técnica entre outras. 98 Os entrevistados não empregaram o termo "neutro", sendo, portanto, de nossa inteira responsabilidade. E repetimos, novamente, que "neutralidade" aqui está contraposta ao poder.
199
medicamentosa dos entrevistados biomédicos seria bem mais contundente do que a realizada
contra a psicoterapia, colocada no máximo como inútil 99.
Assim, de um lado, a técnica — a medicação como técnica — é vista como comprovação
do sucesso do tratamento. O valor da medicação é sua utilidade, e sua utilidade é o seu sucesso. E
o resultado garante a verdade da representação da DM. De outro lado, a terapia exclusivamente
medicamentosa é percebida como a face visível de uma prática de poder. E a técnica é vista com
reservas, pois o fundamental no tratamento, segundo tais entrevistados, é o relacional e não os
procedimentos "materiais" ou tecnológicos. Seria o "relacional", e não a técnica (ou a
medicação), que diminuiria ou eliminaria o poder que o psiquiatra possui sobre o paciente.
Acreditamos que essas duas posições são coerentes com as representações de DM defendidas
pelos entrevistados. Os biomédicos, como vimos, assumem a defesa de uma neuropsiquiatria, das
conquistas das neurociências e do uso intensivo da tecnologia — não causa surpresa a valoração
da técnica e, claro, do tratamento medicamentoso, último reduto da cura psiquiátrica. Já os
analistas, principalmente os lacanianos, assumem, no discurso, uma crítica dura à tecnologização
da psiquiatria, à primazia da medicação no tratamento psiquiátrico, ao poder do psiquiatra sobre o
paciente, contrapondo a tudo isso uma apologia da psicoterapia, na qual está embutida uma
crítica política à psiquiatria tradicional.
Contudo, mesmo que tais posições sejam antagônicas entre si, há algo em comum: a
delimitação nítida entre o saber psiquiátrico e o saber profano da DM. Mesma coisa em relação
aos "clínicos": a maioria separa e distingue o saber psiquiátrico do saber profano, embora,
diferentemente dos biomédicos e analistas, representem a medicação como uma técnica "neutra".
A posição dos "clínicos" aproxima-se da dos biomédicos, seja por uma afinidade entre as
representações de DM (já examinada anteriormente), seja porque a identificação entre técnica e
utilidade (no fundo, a verdade da técnica vem da sua utilidade) pode ser percebida como
neutralidade. O útil pode ser "neutro", se o útil, a priori, não interfere diretamente na crença de
um paciente. A medicação é útil, porque funciona, traz resultado e não questiona as visões de DM
do paciente, em suma: mantém-se "neutra" em relação a essa questão.
99 Alguns entrevistados biomédicos colocaram ironicamente a psicoterapia como "papoterapia".
200
Podemos tentar explicar e resumir essa diferença dos "clínicos" pelas seguintes
inferências:
• como vimos, nas discussões anteriores, os clínicos são "pragmáticos, e o seu
pragmatismo não possui uma relação direta com sua representação de DM, e sim,
provavelmente, com um conjunto de fatores mais amplo, incluindo sua inserção
num dado serviço psiquiátrico;
• ora, dos entrevistados, são os clínicos os que trabalham, na sua maioria absoluta,
nos hospitais psiquiátricos e nos ambulatórios do SUS, ambiente institucional que
induz, praticamente "empurra", o psiquiatra à improvisação e a ações suscetíveis
de aplicações práticas que envolvem diversos registros ou lógicas de ação
diferentes, isto é, que prescindem de uma articulação necessária com uma
representação de DM ou com normas profissionais;
• seria no SUS onde se encontram os pacientes que possuem uma representação de
possessão da DM — logo, seria nesse local onde se colocaria o imperativo do
diálogo;
• dadas as condições de trabalho nos hospitais psiquiátricos e nos ambulatórios do
SUS, o ato médico restringe-se praticamente à administração de medicação;
• a administração da medicação não interfere nas crenças do paciente;
• a medicação é vista, assim, como uma técnica neutra.
Já os entrevistados do "sem diálogo" admitem que, caso a concepção psiquiátrica torne-se
hegemônica na população, o diálogo será possível — mas assim, convenhamos, não existirá
propriamente diálogo, pois não haveria representações diferentes das psiquiátricas com que
dialogar. Os entrevistados julgam as representações profanas da DM falsas e, sobretudo,
preconceituosas. Por serem falsas, são preconceituosas, e vice-versa. Nas respostas dos
entrevistados, o falso parece possuir uma relação necessária com o preconceituoso. Como disse
um entrevistado: "pensar que a loucura é uma possessão é um preconceito muito sério. Os
psiquiatras precisam combater esse preconceito com muito zelo ". Está implícito nessa frase a
necessidade de que o psiquiatra assuma um papel de conscientização. Uma das suas funções
profissionais seria o esclarecimento público sobre a natureza da DM. Um esclarecimento que
201
significaria projetar uma luz sobre a loucura, sobre a sua verdade. E seria a psiquiatria que teria a
legitimidade de cumprir esse papel.
A estratégia não é mais da persuasão, como a dos "com diálogo", e sim a do combate. E
envolve um processo de conscientização do paciente; logo um papel pedagógico assumido pelo
psiquiatra. Um papel pedagógico que implica também um forte componente político, pois o
"combate" exige a ocupação do imaginário profano da DM pela representação psiquiátrica.
Político porque implica a utilização de recursos, principalmente o uso de "políticas públicas", em
suma do Estado, na difusão da representação psiquiátrica da DM. Político porque implica
modificar uma correlação de forças, de natureza simbólica, favorecendo a representação
psiquiátrica em detrimento das representações profanas da DM. Enfim, político porque envolve
poder, isto é, o poder inscrito e engendrado por um confronto entre saberes ou representações
diferentes — político, ainda, pois implica o poder de inscrever, num determinado saber , o
monopólio da verdade; em suma, implica a luta pela verdade.
A luta pela verdade seria igualmente um combate semântico. Com efeito, boa parte dos
entrevistados, para enfatizar a distância existente entre o saber psiquiátrico e o do senso comum,
fizeram uma interessante discriminação entre o termo "loucura" e o de DM. O primeiro foi usado
como a contrapartida pejorativa do segundo. A "loucura" condensa a carga de preconceitos que
sofre a DM. É uma noção do senso comum, logo falsa e preconceituosa. Incontrolável, extrapola
o campo médico, misturando-se com outros sentidos, outros registros, outros significados. O
combate, assim, atravessa também as palavras, exigindo a vitória de uma noção médica, única
realmente verdadeira e neutra de implicações estigmatizantes.
Evidentemente, a vantagem da psiquiatria em relação às representações profanas da DM é
imensa. Mesmo que essa vantagem não garanta a eliminação completa das representações
profanas, com certeza assegura a sua total "neutralização". Como ocorre fundamentalmente isso?
O exemplo mais banal seria o do paciente que acredita na possessão e aceita passivamente as
abordagens e os tratamentos da psiquiatria. Sua representação de DM não mais seria uma crença
mobilizadora que induz comportamentos e condutas. O paciente pode até interpelar um outro
delirante como uma possessão, por exemplo, mas não mais a si mesmo. Não tem mais convicção
na sua crença. Apenas desconfia de que esteja possuído. Submete-se ao tratamento psiquiátrico,
202
até mesmo porque a família assim o deseja, porque afinal todo mundo faz isso... Um belo dia, a
maioria absoluta dos pacientes, senão a totalidade, acreditará nas representações psiquiátricas.
Seria esse consenso em torno da terapia psiquiátrica que aspira a psiquiatria — consenso,
enquanto tal, produto da conscientização, cujos protagonistas são os próprios psiquiatras.
Os "sem diálogo" perfazem 60% dos entrevistados (30); logo, são a maioria absoluta. Dos
clínicos, apenas nove são a favor do "diálogo"; dos biomédicos, cinco e dos analistas, seis (os
"sem diálogo" são todos lacanianos). Percentualmente (33%, 43%, 50%, respectivamente), há
mais analistas e biomédicos que defendem o "diálogo" do que clínicos. Em relação aos analistas,
não causa surpresa a percentagem alta dos que defenderam o "diálogo", já que tais entrevistados
colocaram como fundamental para o tratamento psiquiátrico a interação entre o psiquiatra e o
paciente — o "relacional", como dizem os entrevistados. Enfatizar a interação significa, no
mínimo, uma conversação e mesmo um reconhecimento da palavra do paciente. Significa, no
mínimo, uma situação de entendimento entre o psiquiatra e o paciente — tal entendimento pode
representar o reconhecimento de alguma veracidade no discurso do paciente. O entendimento
seria uma das bases para a interação — o dito "contrato terapêutico" (sic). Estariam, em tese,
propensos ao diálogo.
Por que então 50% dos analistas são contra o diálogo?
Podemos fazer algumas hipóteses: os "sem diálogo" são todos lacanianos; assim, talvez
tenham alguma especificidade que explique essa diferença. Como 100% dos analistas trabalham
no serviço público (além dos consultórios), a organização do trabalho no SUS não seria um fator
explicativo. Pode ser que a explicação resida na própria condição de ser lacaniano, isto é, na sua
maneira específica de perceber a interação do paciente com o analista. Infelizmente, estamos em
terreno movediço pela falta de dados e, deste modo, só poderemos especular. Uma entrevistada
lacaniana, por exemplo, colocou que não existe diálogo propriamente dito entre o analista e o
paciente, porque um diálogo implicaria o colóquio entre duas consciências e, segundo a
entrevistada, o setting analítico baseia-se num "diálogo entre dois inconscientes" (sic). Pelo que
compreendemos, existe sim uma conversação entre o analista e o paciente; mas, no que se refere
ao tratamento, sendo este baseado numa interação conformada pelo setting analítico, haveria
apenas um diálogo entre dois inconscientes, baseado no processo de transferência, este também
203
inconsciente. Se tal percepção corresponde ao que pensam os outros entrevistados lacanianos, o
impedimento do diálogo não seria por uma questão, digamos assim, epistemológica — um
conhecimento verdadeiro versus um falso, por exemplo —, e sim por um obstáculo imanente à
própria relação terapêutica entre o analista e o paciente. Mesmo que baseada numa entrevista, tal
interpretação não nos parece verossímil. Na falta de outra, colocaremos mais uma ainda que, pelo
menos, possui a vantagem de ser prosaica: ora o lacanismo já foi acusado várias vezes de ser
hermético, um sistema fechado compreensível apenas para os neófitos. Caso isso tenha alguma
pertinência, pode-se supor que seja extremamente difícil a compreensão da teoria lacaniana por
parte dos não-iniciados, incluindo os pacientes e os outros profissionais em saúde mental. Como
então entabular um diálogo, uma troca de perspectivas entre saberes diferentes? O diálogo não
seria vetado porque o lacanismo seria uma forma de positivismo defendendo uma ruptura
epistemológica entre o senso comum e a ciência, e sim em razão de ser um sistema hermético,
logo avesso a qualquer tipo de diálogo com outras posições diferentes. Os entrevistados
seguiriam, assim, a lógica de sua dogmática.
Quanto aos entrevistados biomédicos, não causa surpresa que doze (57%) tenham sido
contra o diálogo. Dos entrevistados, foram os que afirmaram mais o caráter científico da
psiquiatria. O saber psiquiátrico, enquanto conhecimento científico, seria uma ruptura com o
senso comum; logo, com as representações profanas da DM. O senso comum seria falso e
perigoso, pois fonte de preconceitos — a única forma de combatê- lo seria através do
esclarecimento público via política pública de saúde mental. Embora tenham sido cinco
entrevistados defendendo o diálogo, quando examinamos mais atentamente o conteúdo das
entrevistas, percebemos que foi bastante tímida a defesa. Inclusive, o diálogo serviria
primordialmente para entabular uma conscientização do papel do psiquiatra e da natureza da DM.
Curiosamente, os clínicos foram os que menos defenderam o diálogo, mas, se atentarmos
bem para o conteúdo das entrevistas, notaremos que sua defesa foi muito mais enfática do que a
dos biomédicos e, até mesmo, do que a dos analistas. De qualquer forma, dezoito clínicos foram
contra o diálogo; em suma, uma maioria absoluta e contundente. Os clínicos não enfatizaram
tanto a cientificidade do saber psiquiátrico como fizeram os biomédicos; no entanto, deram
extrema importância a conscientização da população a respeito da DM. O discurso do
204
"esclarecimento público" sobre a DM seria consenso entre os clínicos, não importando aqui a
defesa ou a oposição ao diálogo.
De qualquer forma, queremos lembrar novamente que a diferença, no plano discursivo,
entre os do "diálogo" e os "sem diálogo" não foi substancial; ao contrário, muitas vezes os
discursos misturaram-se e não foram necessariamente incompatíveis entre si, principalmente
entre aqueles entrevistados que trabalham no serviço público (86% dos entrevistados: 100% dos
analistas, 86% dos biomédicos e dos clínicos). E, se no plano do discurso a diferença não é de
monta, na prática a situação é ainda mais confusa. Nas nossas observações, pareceu-nos que o
ambiente do SUS prescinde de consenso ou dissenso entre psiquiatra e paciente, já que as
precárias condições de trabalho inibem o estabelecimento do diálogo. O entrevistado pode até de
bom grado ter uma concepção favorável e buscar o diálogo, mas a forma como se organiza, na
prática, as interações entre os psiquiatras e os pacientes inibe a comunicação. Expliquemo-nos:
Ø a base do diálogo é uma comunicação coordenada pela linguagem e voltada
para o entendimento; porém, para o paciente psiquiátrico, a comunicação
está comprometida, pois distorcida patologicamente. Por causa da sua
enfermidade, o paciente não consegue fazer-se compreender pelo outro;
isola-se e seus laços de sociabilidade são fragmentados, ocorrendo um
processo de deterioração na sua identidade, tanto em relação a si mesmo
como em relação à sua vida intersubjetiva. As grandes psicoses, nesse
sentido aqui discutido, seriam doenças da comunicação; logo, as
organizações psiquiátricas deveriam, em tese, resgatar a palavra e a
capacidade de comunicação (a ação comunicativa) dos pacientes;
Ø ora, pode-se imaginar a dificuldade de diálogo num contexto asilar, ainda
típico dos hospitais psiquiátricos públicos (e os privados conveniados com o
SUS) no Brasil. Nossas observações levaram-nos a crer que a ação
comunicativa é incompatível ou francamente vã num ambiente tipicamente
asilo-hospitalar. A forma de organização do hospital psiquiátrico configura
um sistema anti-comunicativo por excelência. Ao invés de tentar restaurar a
competência comunicativa de sujeitos que a perderam, o hospital produz o
205
efeito contrário de diminuir ao máximo a ação comunicativa no ambiente
hospitalar, principalmente entre os pacientes;
Ø o problema não muda muito, mesmo no ambulatório. Filas imensas,
anamneses rapidíssimas e precárias condições de trabalho estruturam uma
situação de parca comunicação entre o psiquiatra e o paciente — uma
situação na qual o paciente queixa-se, o psiquiatra anota a sintomatologia e
administra a medicação, o paciente vai embora, tudo isso durando poucos
minutos, e o diálogo passa a ser uma questão esotérica. Em suma, na
prática, a posição e a representação de DM do paciente dificilmente pode
ser levada em conta.
b) O papel da psiquiatria na sociedade
Se, no tópico anterior, o que estava em questão era a posição do psiquiatra em relação às
representações de doença provenientes do senso comum e a repercussão disso na sua identidade,
agora, o problema está mais diretamente relacionado à própria atribuição do psiquiatra a respeito
de si mesmo, ou seja, ao papel de sua profissão na sociedade. Discussão identitária por excelência
entre os entrevistados, pois, de fato, ao analisarmos as entrevistas, ficou-nos a impressão de que
definir papel seria, no fundo, definir uma identidade. Nada de muito original, é certo, pois papel e
identidade podem ser noções intercambiáveis 100. Mas a noção de papel, na nossa opinião, pode
ser inferida como o aspecto funcional da identidade. Quando se discute, por exemplo, sobre o
papel da psiquiatria, no fundo analisa-se a função de uma profissão — a identidade enquanto
função101. Refletindo sobre a função de sua profissão, o entrevistado insere-a no mundo,
sublinhando sua imprescindibilidade. Inserindo a profissão, o entrevistado situa-se
profissionalmente a si mesmo no mundo. Tendo a profissão uma determinada função, o
profissional assume-a como guia de sua conduta. E, ao se definir o papel da psiquiatria na
100 Goffman, em suas obras (1973; 1974; 1974b;1975), faz isso... 101 Ver a discussão de Castels (2000) sobre o conceito de identidade, quando a noção de identidade é relacionada ao sentido, e a de papel à função. Inspiramo-nos dessa discussão, sem dúvida, embora com uma diferença: compreendemos o papel como o aspecto funcional da identidade, aspecto este criado e fomentado pela divisão social do trabalho na Modernidade. Acreditamos que, sem o conceito de papel social, o conceito de identidade profissional perde em heurística.
206
sociedade, determina-se uma função coletiva que é realizada individualmente por cada
profissional. Seria justamente por isso, isto é, pelo fato de se rea lizar individualmente uma
atividade que cumpre uma função coletiva, conectando à esfera social a experiência individual,
que podemos afirmar que a reflexão sobre a função da profissão problematiza a identidade 102.
O entrevistado, desse modo, projeta sentido à função. Um sentido que tem, ao mesmo
tempo, um caráter pessoal e coletivo, pois, ao explicitar o lugar de sua profissão, o entrevistado,
com isso, igualmente se determina103. No caso aqui examinado, a palavra chave seria justamente
"projeção". Boa parte do movimento identitário é projetivo, envolvendo mecanismos que
procuram normalizar o objeto identitário (aqui, a psiquiatria) a partir de sua inserção no meio
social. O movimento é de dentro pra fora, e sua finalização, o caminho inverso. O entrevistado,
por exemplo, ao refletir sobre o papel da psiquiatria na sociedade, projeta o sentido da função da
sua profissão a partir do seu próprio julgamento, embora considere sua avaliação como um fato
proveniente do mundo exterior, isto é, da sociedade.
Vamos, agora, examinar os diversos papéis que os entrevistados imputaram à psiquiatria.
Mas, antes, seria proveitoso um esclarecimento: encontramos, a partir da análise empírica, três
definições básicas sobre o papel da psiquiatria: a) busca da verdade da loucura, b) papel de
despreconceito, esclarecimento e prevenção e c) atribuição médica. As definições possuem a
função de distinguir diferenças no universo das respostas dos entrevistados; contudo, isso não
impediu que onze respostas encaixassem-se em mais de uma definição — em suma, as definições
não são excludentes entre si.
(1) Verdade da loucura
102 Problematizar a identidade tem como pano de fundo a questão de se perceber no mundo. Ora, se tomarmos o individualismo, no qual ocorre a distinção ou mesmo a separação entre a individualidade e a sociedade, como um fato ontológico da modernidade, ter uma identidade (ou a busca de, já que toda identidade é uma construção) significa (tentar) resolver a tensão, constitutiva do individualismo, entre a esfera individual e a social. 103 A atribuição do papel de sua profissão é dada pela vocação. Seria justamente a vocação que conseguiria realizar a junção entre a esfera da individualidade, produto da independência do indivíduo, e a subjetividade, produto da autonomia do sujeito. Entre a identidade, enquanto sentido, e o papel social, enquanto função.
207
Para quatro entrevistados, todos psicanalistas, o papel da psiquiatria na sociedade seria a
busca da verdade da loucura. Embora o tema da "verdade da loucura" (em alguns casos, a
"verdade da DM") tenha perpassado muitas outras entrevistas, a argumentação completa apareceu
apenas para esse pequeno contingente — por isso, como as respostas foram "completas" e
paradigmáticas, condensando o significado que estava espalhado difusamente nas outras
entrevistas, centramos nossa atenção nesses quatro entrevistados. Todavia, mesmo entre eles, a
argumentação foi mais nuançada, não esgotando o papel da psiquiatria na "busca da verdade da
loucura". Na verdade, a ênfase na busca foi colocada por dois entrevistados; já os outros dois,
pelo que interpretamos, insinuaram que o conhecimento psiquiátrico, em particular a abordagem
psicanalítica, tinha já descoberto a "verdade da loucura". No primeiro argumento, assim, a dita
verdade ainda não foi encontrada, embora estejamos, de certa forma, perto disso; já no segundo
argumento, a descoberta já teria ocorrido, e seu demiurgo teria sido a "revolução psicanalítica",
segundo um dos entrevistados. Mesmo se, em princípio, o argumento da busca e da descoberta
sejam relativamente diferentes, podemos encontrar algumas premissas em comum, tais como:
Ø aparentemente, tanto o argumento da busca como o da descoberta apresentam o
mesmo princípio: a responsabilidade da busca e/ou da descoberta seria monopólio
da psiq uiatria (ou da psicanálise, enquanto conhecimento psiquiátrico) ou, em
outros termos, a "licença" (Hughes, 1996) para a busca ou a "patente" da
descoberta da verdade da loucura teriam um único protagonista: a psiquiatria.
Todavia, os entrevistados não tomaram o mandato social da psiquiatria, concedido
pela sociedade, como ponto de partida para a argumentação sobre o papel da
psiquiatria na sociedade. Não seria a "licença" que autorizaria a busca pela
verdade da loucura ou que teria dado as condições necessárias para sua descoberta;
na verdade, a legitimidade da busca e/ou da descoberta viriam menos do mandato
social do que do... saber. Seria este que legitimaria a busca ou que legitimou a
descoberta da verdade da loucura; seria este que legitimaria o mandato social da
profissão e não o contrário, isto é, a "licença" legitimando o exercício do saber.
Enfim, seria o saber psiquiátrico — no caso, aqui, a teoria psicanalítica enquanto
saber psiquiátrico — que seria o único em condições de buscar ou de descobrir a
verdade da loucura. Desse modo, se nossa interpretação está correta, os
entrevistados repetem o argumento que fundamenta boa parte da legitimidade
208
social das profissões: a possessão de um conhecimento especializado, único capaz
de apreender de forma eficaz o objeto profissional, no caso aqui examinado, a
loucura;
Ø as expressões "busca", "descoberta" e mesmo "verdade da loucura" possuem
implicitamente a premissa de que a loucura contem uma essência a ser revelada ou
desvendada. A aparência da loucura (ou sua manifestação na realidade) não
poderia ser apreendia enquanto verdade; ao contrário, muitas vezes pode ocultar a
sua real natureza. Pelo que interpretamos, os entrevistados ficam num frouxo
movimento pendular entre duas versões básicas sobre a essência da loucura: a
primeira, apenas introduzida de maneira especulativa, talvez pelo seu radicalismo
(como reconheceu um dos entrevistados), admite que a verdade da loucura,
enquanto tal, exista apenas como um impossível mistério. A verdade da loucura
existe e é sua essência, mas seria incognoscível, estando além do conhecimento
humano. A irracionalidade da loucura que habita a sua superfície ocultaria uma
outra bem mais radical, uma irracionalidade intransponível. Situando-se aquém e
além do humano, a loucura personificaria o limite da linguagem e do
conhecimento da humanidade. Indizível e incognoscível, a loucura delimitaria o
confim da razão e o abismo do inconsciente104. A verdade da loucura é o seu
mistério, e tal mistério seria, no fundo, o mistério do próprio devir humano. A
segunda versão, que poderíamos chamar de "platônica"105, admitiria que a
essência da loucura é a sua verdade, mas uma cognoscível. A irracionalidade da
loucura, sua realidade enquanto um desarrazoado impossível de apreensão,
ocultaria uma racionalidade que seria a própria dinâmica de sua incongruência. Se
tal racionalidade revela uma possessão demoníaca, um distúrbio neuroquímico ou,
ainda, uma perturbação primária da relação libidinal, não importa, pois o que
interessa é que a essência da loucura pode ser conhecida, por isso apreendida e,
muitas vezes, como conseqüência, controlada;
104 Uma última versão da loucura enquanto fenômeno indizível e incognoscível encontra-se na importante obra de Foucault (1972): "História da Loucura". Há, nessa obra, notórios rasgos provenientes do romantismo, quando aborda a natureza inenarrável da Loucura. 105 Alguns autores colocam a psicanálise como uma teoria psicológica sofisticada e assombrada de platonismo (Raikovic, 1994; Webster, 1999). O inconsciente seria a caverna de Platão pela qual os psicanalistas desvendariam indiretamente os mistérios da superfície e da aparência da consciência.
209
Ø vale a pena assinalar que o termo "loucura" é posto e problematizado somente
agora pelos entrevistados. Revisando suas entrevistas, principalmente no momento
da discussão sobre a representação de DM, justamente no instante aparentemente
mais propício para ser colocada a questão da loucura, não encontramos referência
alguma ao termo. Por que um termo tão polêmico e tão polissêmico somente
aparece nas entrevistas quando da discussão sobre o papel da psiquiatria?
Infelizmente, podemos apenas especular. A resposta, talvez mais óbvia, embora
um tanto banal, seria que identificar o papel da psiquiatria à busca da verdade da
loucura valoriza-a muito mais do que meramente reservá-la, por exemplo, à busca
da verdade da doença mental. Em tese, "loucura" é uma noção que ultrapassa, e
muito, a de doença mental. Ultrapassa os limites da psiquiatria e da medicina.
Requer uma disciplina eleita, possuidora de um conhecimento extraordinário — a
valorização que isso implica e o reconhecimento que isso traz são gigantescos.
Pode envolver a apreensão e, dependendo da perspectiva, o controle de
comportamentos que tangenciam a moral e que não são necessariamente
patológicos. Representa, no fundo, a expansão do campo psiquiátrico a esferas que
não são, pelo menos em princípio, de sua alçada. A busca da verdade da loucura,
quando monopolizada pela psiquiatria, pode traduzir a vontade de poder de uma
disciplina que transbordou o patológico, tomou conta da anormalidade e, quem
sabe, já está sitiando a normalidade.
(2) Despreconceito, esclarecimento e prevenção
Para 30 entrevistados, a psiquiatria teria três funções básicas, todas correlacionadas:
• combate ao preconceito contra a DM;
• necessidade de esclarecer a sociedade a respeito da natureza das doenças mentais;
• prevenção contra o surgimento e o desenvolvimento das patologias psiquiátricas.
No discurso dos entrevistados, os três termos vêem normalmente juntos, como se um
implicasse o outro, numa espécie de cadeia associativa. O peso maior, sem dúvida, pelos menos
na quase totalidade das entrevistas, recai no papel da psiquiatria em lutar pelo despreconceito da
210
DM, sendo esse o ponto de partida para justificar o esclarecimento e a prevenção — estes últimos
aparecem acoplados à luta pelo despreconceito da DM, embora a necessidade da prevenção tenha
uma relação mais independente e indireta com tal combate. Pode-se perceber a conexão lógica,
quase imediata, entre despreconceito e esclarecimento; no entanto, a prevenção é justificada de
um modo mais sinuoso. Como ocorre concretamente, nesse caso, a justificação?
Para responder a essa questão, será mais interessante, primeiro, continuar a interpretação
das entrevistas e, depois, compreender melhor a significação da prevenção psiquiátrica entre os
entrevistados. Assim sendo, basicamente o raciocínio que amalgama os três termos seria o
seguinte: os entrevistados enfatizaram que a DM sofre um grande preconceito social — a maioria
absoluta considerou que tal fato, talvez, seja o maior problema da psiquiatria. A psiquiatria deve,
inclusive no sentido de uma obrigação moral, combater esse preconceito. Segundo os
entrevistados, a melhor forma de combate seria o esclarecimento da população, seja através da
atuação individual do psiquiatra, seja via campanhas patrocinadas pelas associações profissionais
médicas e psiquiátricas ou, ainda e principalmente, através de políticas públicas em saúde mental.
Ora, onde entraria a prevenção no combate contra o preconceito?
Os entrevistados reconhecem, praticamente de forma unânime, que a prevenção é
extremamente problemática na psiquiatria. Reconhecem inclusive duas dificuldades típicas do
campo psiquiátrico:
• prevenir o que, na verdade, se não há consenso sobre a etiologia da DM? Sabendo
a causa, pode-se implementar práticas que impeçam o surgimento e o
desenvolvimento da doença. Ora, cada posição na psiquiatria vai defender, pelo
menos em princípio, uma forma de prevenção segundo o modo pelo qual é
definida a DM. Se não há consenso sobre a causa, provavelmente não haverá sobre
a prevenção;
• a sintomatologia da DM expressa-se pelo comportamento. Seria através dele que
se percebe a patologia. Mas, como tal, não pode ser evitado, pois ele é apenas
expressão e não causa da doença. Além de não ser causa, não pode ser considerado
um risco para o desencadear ou o desenvolvimento da enfermidade. Não sendo
uma causa nem um risco e, por isso, não podendo ser evitado, o comportamento
211
pode ser, todavia, detectado de forma precoce. A prevenção psiq uiátrica, assim,
passaria por uma vigilância, logo uma catalogação de comportamentos ditos
patológicos?
Os entrevistados admitem a dificuldade dessa última posição, principalmente na definição
de um comportamento patológico, já que não há consenso a respeito. Admitem ainda que uma
prevenção dessa natureza pode levar a um controle social perigoso, podendo descambar para um
autoritarismo e um imperialismo moral da psiquiatria106. A detecção de comportamentos que
expressam uma sintomatologia psiquiátrica ordenaria a função de uma higiene mental — seu
papel e seu limite. Além dessa fronteira, estaríamos no campo da política e do abuso de poder.
Contudo, se existissem controle e fiscalização da prevenção, se as regras fossem claras, se
houvesse a participação de todos os setores da saúde mental, poder-se-ia pensar a prevenção.
Vários entrevistados afirmaram que isso seria factível, principalmente, por exemplo, no
acompanhamento psicológico e escolar da criança e do adolescente. O ambiente escolar pode ser
esquadrinhado de tal forma que os abusos podem ser evitados, favorecendo a detecção de
problemas mentais e comportamentais entre as crianças e os adolescentes. A prevenção
psiquiátrica teria, nesse sentido, dois alvos específicos: a escola e, através desta, a família.
Segundo os entrevistados, seria impossível a prevenção sem que o próprio ato de prevenir
não envolvessem o esclarecimento e, conseqüentemente, a luta pelo despreconceito da DM.
Como prevenir sem esclarecer? Esclarecer, por exemplo, que determinados comportamentos, no
caso do ambiente escolar, principalmente aqueles que envolvam alguma inadaptação, podem
significar o início de uma patologia passível de ser tratada pela psiquiatria. Tal aclaração, assim,
representaria já uma prevenção. E, implicando esta também uma ação de esclarecimento,
significaria igualmente um ato de despreconceito.
Além de relacionada ao despreconceito e ao esclarecimento, a prevenção, para alguns
entrevistados, possui um colorido político-social evidente: prevenir em psiquiatria seria também
combater a exclusão. Embora não fique claro de qual exclusão está-se referindo, parece razoável
supor que o alvo da questão seja as condições de vida da população brasileira. Aparentemente,
106 Segundo expressão de um dos entrevistados.
212
faz-se uma relação causal entre miséria e doença mental; assim, combatendo-se a exclusão social,
previne-se também o surgimento e o desenvolvimento de enfermidades psiquiátricas — o
combate à exclusão social teria assim efeitos terapêuticos. Uma política de higiene mental ou de
saúde mental, nesse caso, tornar-se- ia ipsis litteris uma política lato sensu, pois se confundiria
com um registro político que ultrapassa, e muito, o campo restrito da saúde pública107.
Pode-se propor também outra interpretação dessa relação entre prevenção e exclusão,
sendo inclusive complementar à descrita acima, embora mais restrita, tomando como referência
as condições de vida dos pacientes psiquiátricos. Aparentemente, a DM seria vista aqui como
excludente por natureza, independentemente da situação social da pessoa — as condições sociais
apenas agravariam uma exclusão já dada. A prevenção, assim, estaria relacionada, pelo que
interpretamos, à melhoria substancial da assistência social ao paciente. O ato de reinserção social
seria compreendido como uma ação preventiva, e também terapêutica, diminuindo o efeito
patogênico da exclusão. A prevenção, como combate à exclusão, evitaria assim o agravamento da
DM.
Enfim, a prevenção, por um lado, implicaria uma terapia social, quando conectada ao
combate da exclusão social; por outro, transformaria a reintegração social num ato preventivo e
terapêutico por excelência.
Outrossim, boa parte dos entrevistados colocou que, para se conseguir uma prevenção
eficiente, seria necessário um esclarecimento anterior mesmo ao próprio ato de prevenir; em
suma, seria preciso uma elucidação fundamental: a DM é uma doença como qualquer outra! Isso
não seria apenas um ato de esclarecimento, pois implicaria uma transformação nas representações
do senso comum sobre o papel da psiquiatria. Implicaria uma verdadeira reforma cultural, no
dizer de um dos entrevistados. Igualar a DM às outras doenças da medicina representa banalizá-
la, isto é, significa desencantá- la de significados preconceituosos do senso comum. Ela torna-se
trivial, igual a todas as outras, logo liberada do seu eterno estigma. A sua banalização significaria
um passo gigantesco para o despreconceito, pois, nivelando-a e recolocando-a no campo da
107 Tal posição nada mais é do que a velha posição higienista do século XIX, reciclada via uma pronunciada sensibilidade social, mas sem os componentes étnicos e de discriminação racial. Combatendo-se a pobreza ou a degeneração racial, o resultado é o mesmo: evita-se o surgimento de doenças psiquiátricas.
213
normalidade médica, retirar-se- ia, conseqüentemente, a carga de supertições que orbita em torno
da DM. Segundo a fórmula feliz de um dos entrevistados, "a loucura viraria DM". Ora, como o
mesmo reitera, seria "muito mais fácil prevenir uma doença do que uma loucura ", pois, sem
preconceitos, a prevenção ficaria, evidentemente, mais fácil. Curiosamente, aparece aqui,
novamente, a distinção entre loucura e DM, entre falso e verdadeiro, entre estigma e neutralidade.
A banalização, desse modo, passaria pelo ostracismo da loucura e pela ocupação do imaginário
social das noções da psiquiatria, em particular da de doença mental.
A prevenção implica, em suma, esclarecimento, luta contra o preconceito e, pari passu,
um combate por significados e por representações. Embora a prevenção seja um tanto polêmica
na psiquiatria, tal fato não impede a sua defesa. Mas, assim que é posta como necessidade,
mesmo que exista uma consciência de seus perigos, parece ser inevitável que suas contradições
faça-a extrapolar, pelo menos potencialmente, do campo da saúde pública e a torne um problema
social, pois é impossível liberar a detecção de comportamentos patológicos de uma ambigüidade
intrínseca. Talvez porque toda tentativa de enquadrar o comportamento humano, qualquer que
seja sua natureza, implique um sacrifício moral. Pode-se diminuir o preço a pagar, sem dúvida,
mas não se pode eliminá- lo.
(3) Papel médico
Em várias entrevistas estava implícito, como um dos papéis da psiquiatria, sua função
estritamente médica. O papel médico da psiquiatria aparecia de forma apenas tácita, talvez
porque o entrevistado inferisse-o como óbvio, priorizando e realçando outras funções, quem sabe,
julgadas mais importantes ou menos evidentes. Em contrapartida, nove entrevistados, enfatizaram
explicitamente tanto a prática médica da psiquiatria como o papel discutido no tópico anterior,
embora o discurso do despreconceito, do esclarecimento e da prevenção tenha tido um peso
relativamente maior.
Todavia, várias outras entrevistas (17 entrevistados) restringiram completamente o papel
da psiquiatria à sua função médica e, mesmo assim, a uma função bem restrita: tratamento e cura.
214
Há por parte desses entrevistados uma desconfiança visceral com qualquer papel preventivo 108 da
psiquiatria. O discurso higiênico ou de saúde pública é visto como uma politização extremamente
indesejável da prática psiquiátrica. Por isso, circunscrever a função da psiquiatria, limitando-a ao
ato médico, protegê- la-ia de derrapagens. Assim, a ênfase no tratamento e na cura é tão
importante que, de certa forma, a prevenção e o esclarecimento esgotar-se- iam na prática
psiquiátrica. O ato de tratar por si só já combateria o preconceito, além de diminui- lo com o
gradativo reconhecimento social da eficiência do tratamento psiquiátrico. Curiosamente, o
estigma da DM teria uma relação inversamente proporcional à valorização da psiquiatria.
Aumentando a importância da psiquiatria, reconhecendo seu papel médico, o preconceito tende
ao desaparecimento. Alguns entrevistados, inclusive, separaram a saúde mental, enquanto saúde
pública, de qualquer relação imediata com a psiquiatria109. Tal gesto afastaria, pelo menos em
princípio, toda e qualquer política de saúde do campo psiquiátrico, sendo este, digamos assim,
considerado como "privado" e estando restrito à área médica e ao mundo profissional do
psiquiatra. Pelo que verificamos, essa posição não significa necessariamente uma defesa de uma
prática profissional privada ou alguma coisa do gênero, mas sim uma redução e uma limitação
das funções da psiquiatria. No fundo, a função não ultrapassaria o campo profissional. O papel
médico da psiquiatria confundir-se-ia, na verdade, com o próprio papel profissional, o que
repetiria; portanto, uma velha preocupação dos entrevistados: a defesa da psiquiatria enquanto
profissão médica e a sua valorização profissional. O que se parece defender aqui, em suma, é a
universalização do papel médico da psiquiatria.
Mas o papel de despreconceito, prevenção e de esclarecimento público sobre a DM
representa também uma função especial: a do especialista. Para os entrevistados, o psiquiatra é
um profissional especializado, detentor de um conhecimento singular sobre a DM. A sua
especialização implica inevitavelmente um monopólio discursivo sobre o seu objeto profissional.
Qualquer discurso, atividade ou intervenção a respeito necessita do especialista na matéria.
Esclarecer, combater o preconceito e prevenir são atividades que necessitam do psiquiatra,
enquanto profissional médico, pois são especializadas, relacionadas ao mundo profissional do
especialista. Assim, a defesa do papel médico da psiquiatria é a defesa da sua expertise.
108 "Prevenção é medicina preventiva, e não psiquiatria", como disse um entrevistado. 109 "Uma coisa é o papel da psiquiatria; outra coisa é o papel do Estado na saúde", no dizer de um entrevistado.
215
c) O papel da psiquiatria na medicina
Se a discussão sobre o papel da psiquiatria na sociedade gerou algum debate e, com
certeza, alguns problemas para a interpretação, podemos afirmar igualmente que o tópico
discutido agora foi muito mais problemático. Talvez porque te nha ocorrido um curioso
fenômeno: para os entrevistados, a pergunta motivou a necessidade de se questionar outro
problema, aparentemente implícito e correlacionado: a suposta desvalorização da psiquiatria na
medicina. Provavelmente, diante do assunto, houve a necessidade de se produzir uma avaliação,
como premissa à própria questão, acerca do valor da psiquiatria na medicina.
Percebemos, no tópico anterior, que a discussão sobre o papel ou a função trazia implícita
uma atribuição quanto ao valor da psiquiatria na sociedade. Definir seu papel implicava, no caso,
determinar tacitamente também sua importância. No caso agora examinado, porém, ocorreu uma
dupla atribuição de valor: na primeira, a psiquiatria é julgada desvalorizada; na segunda, o seu
papel é valorizado na medicina. Por que isso? Ou ainda: como posso afirmar positivamente a
função da psiquiatria no meio médico, se admito que, antes de tudo, ela é desvalorizada? Na
verdade, haveria dois registros diferentes ou duas situações desiguais para os entrevistados: uma
ressentida enquanto desvalorização, e uma desejada enquanto valorização. A dupla atribuição de
valor produz uma modificação importante no sentido da função: a primeira atribuição, enquanto
desvalorização, é condição real e presente da psiquiatria, tornando seu papel, enquanto
valorização, uma condição ideal, projetada para o futuro. Ao atribuir-se um valor negativo (uma
desvalorização) à psiquiatria, e considerando tal atribuição um fato, a função torna-se um devir,
um valor ainda a ser conquistado. Outrossim, cabe enfatizar que a desvalorização ocorreu em
relação à medicina e não à sociedade. Aparentemente, a psiquiatria não sofreria, pelo menos não
sofreria de uma forma tão importante, uma desvalorização social, e sim uma disciplinar, isto é, no
próprio seio da medicina. Tudo isso indica que exista um desconforto dos psiquiatras no meio
profissional médico, confirmado pelo fato importante e um tanto problemático de que todos os
entrevistados, sem exceção, afirmaram incontinenti que a psiquiatria é desvalorizada na
medicina!
Por que essa unanimidade? Aparentemente, estamos diante de uma percepção de crise.
Mas, de qual crise? Certamente, não é o caso de uma crise econômica — os entrevistados, em
216
tempo algum, referiram-se, por exemplo, a dificuldades financeiras; na realidade, foi justamente
o contrário: pelo que averiguamos, os entrevistados avaliam que ganham bem, afirmando
inclusive que a sua renda média está acima da maioria dos profissionais médicos. A
desvalorização da psiquiatria na medicina, assim, não passaria pela renda ou pelo salário,
apresentando outras razões muito mais relacionadas, na verdade, à percepção do lugar da
psiquiatria na medicina do que a fatores meramente econômicos.
(1) Preconceito e "medo da loucura"
Senão vejamos: a maioria dos entrevistados (30) afirmou que a desvalorização da
psiquiatria era causada pelo preconceito, existente no meio médico, contra a loucura e,
conseqüentemente, contra o paciente psiquiátrico. No limite, o argumento sustenta a interessante
tese de que os psiquiatras pagam um preço pelo preconceito. São vítimas indiretas, digamos
assim, mas que sofrem um efeito imediato: a desvalorização da disciplina psiquiátrica, logo de
sua atividade profissional. Os maiores vilões dessa discriminação são os clínicos e os
neurologistas. Aqueles têm "medo da loucura" (sic) e, com isso, medo da psiquiatria; os outros
negam o "fato psicopatológico", no dizer de um entrevistado, e acham que a psiquiatria é inútil,
porque trata de uma doença inexistente. Neste último caso, segundo alguns entrevistados
analistas, a negação da loucura pode ser aproximada do "medo", sendo vista como o seu recalque
— negar esconderia o medo da loucura.
Acreditamos que estamos, até mesmo pela exuberância das expressões argumentativas,
diante de um ponto sensível: o preconceito, na maioria das vezes, é explicado como medo.
Assim, um disseminado "medo da loucura" empurra a psiquiatria para um ostracismo disciplinar.
O psiquiatra seria vítima desse processo, tornando-o um estranho na família médica. Estranho, no
sentido de não se conseguir enturmar, na curiosa imagem de um entrevistado, mas também na
acepção de bizarro e esquisito. E, aqui, dá-se um pulo na argumentação, passando-se do tema da
estranheza psiquiátrica ao medo do próprio psiquiatra110. O famoso clichê que diz que "todo
psiquiatra é louco" corrobora mais ainda o argumento. Decididamente, o medo da loucura
contamina todo o ambiente psiquiátrico, das instituições aos profissionais.
110 Segundo vários entrevistados, os clínicos, principalmente, têm medo dos psiquiatras...
217
Curiosamente, o psiquiatra é vítima do seu próprio objeto profissional, a DM. Mesmo que
a culpa não seja propriamente da DM, mas sim do fato de a mesma ser alvo de preconceitos, fica-
nos a impressão, em algumas entrevistas, que o medo da loucura é inevitável. E o destino do
psiquiatra seria escolher entre ser uma vítima ou um dos protagonistas que tentarão amenizar a
situação. Para os psiquiatras que têm uma visão dualista da DM, principalmente os analistas, o
medo subsistirá no meio médico enquanto não for reconhecida a ineludível diferença da
psiquiatria em relação às outras disciplinas médicas — reconhecimento que significa pari passu o
reconhecimento da diferença nosológica da DM em relação às demais. Contudo, fica a dúvida se
o reconhecimento da diferença psiquiátrica, por si só, evitaria necessariamente o medo da loucura
por parte dos médicos. Parece, pelo visto, que o discurso do reconhecimento da diferença
enfrentaria menos o preconceito do que a desvalorização da psiquiatria.
De todo modo, a maioria dos entrevistados pensa que a maneira mais fácil de enfrentar o
preconceito ou o "medo da loucura" no meio médico é a conscientização dos profissionais,
principalmente durante a formação universitária. O esclarecimento, quase uma política
pedagógica preventiva, permitirá aos futuros profissionais uma visão mais simpática da
psiquiatria e uma menor dificuldade no trato com os pacientes psiquiátricos. Com isso, a
psiquiatria seria inevitavelmente valorizada.
(2) Falta de cientificidade
Mas nem tudo é culpa do "medo da loucura", pois alguns entrevistados afirmaram que a
desvalorização tinha como causa a pouca cientificidade da psiquiatria. Admite-se até que,
realmente, existe um preconceito, mas não aquele devido à DM, e sim o produzido pelas
insuficiências científicas da psiquiatria. Na verdade, para alguns, a única forma de a psiquiatria
inserir-se no meio médico seria tornar-se científica. Tornando-se científica, adviria naturalmente
o reconhecimento disciplinar e profissional. No entanto, há dúvidas a respeito do que significa
"cientificidade". Inicialmente, poder-se- ia pensar que o termo refere-se, por exemplo, a uma
cientificidade como a da neurologia, isto é, a defesa de uma psiquiatria biológica 111. Na
realidade, os entrevistados parecem referir-se a uma cientificidade ainda a ser encontrada, própria
111 Nesse grupo de entrevistados, apenas um afirmou a necessidade de uma psiquiatria biológica para suprir a falta de cientificidade da psiquiatria.
218
ao campo psiquiátrico. O que seria isso realmente, eis a questão. "Cientificidade", aqui, é um
termo vago e um tanto normativo — encontrá- la seria descobrir o lugar da psiquiatria na
medicina. Descobrir a cientificidade da psiquiatria implicaria descobrir o seu devido lugar na
medicina. Como muitos dos entrevistados consideram que as disciplinas médicas são científicas,
a descoberta da cientificidade da psiquiatria iria recolocá- la no campo disciplinar médico.
Situação um tanto angustiante, pois estamos falando de uma cientificidade que não existe, que
deveria existir, que deve ser encontrada ou descoberta, sendo absolutamente necessária para
"encaixar" a psiquiatria na medicina. Situação estranha, porque os entrevistados consideram a
psiquiatria como uma disciplina científica, mas reconhecem, paradoxalmente, que sua
desvalorização no meio médico seria justamente ocasionada pela falta de... cientificidade.
Estamos, de novo, diante da contradição entre o que é ressentido e o que é desejado, entre o que
acontece na realidade e o que deveria acontecer.
Com efeito, o psiquiatra parece o tempo todo esperar alguma coisa. Nas entrevistas passa-
se sempre uma impressão de incômodo em relação à situação presente da psiquiatria. Os
entrevistados perseveram num discurso que, podemos assim dizer, baseia-se na esperança. Ora, a
esperança, pelo menos no sentido que estamos definindo a partir do discurso dos entrevistados,
parece ser um desejo que se reporta ao que não se tem (a psiquiatria valorizada na medicina) —
por isso, um discurso carente de reconhecimento —, ao que não se sabe se será realizado, ao que
se ignora (afinal, qual seria a cientificidade da psiquiatria?!), e, enfim, a um momento ou
contexto que não depende da vontade dos psiquiatras (a transformação da psiquiatria numa
disciplina científica). Em suma, é um discurso baseado num desejo sem satisfação (carência),
sem saber e sem poder (Comte-Sponville, 1999: 312).
(3) Separação entre a psiquiatria e a medicina
Já em relação ao terceiro motivo arrolado pelos entrevistados para explicar a
desvalorização da psiquiatria, o discurso tornou-se menos emotivo e mais propositivo. Agora, o
problema não seria o preconceito ou a falta de cientificidade, e sim a separação entre a psiquiatria
e a medicina. Tema já visto e discutido na análise do campo representacional, porém que retorna
219
de forma natural, já que o tema da separação possui uma relação umbilical com a questão da
desvalorização da psiquiatria112.
Assim, a culpa da desvalorização recai na própria instituição psiquiátrica, com seu aparato
terapêutico (hospitais, clínicas...) completamente à parte das instituições médicas, bem como na
visão dualista da DM que a separa das outras doenças — a psicanálise foi bastante criticada e
responsabilizada pela separação entre psiquiatria e medicina. Culpa, então, de um modelo
institucional e de uma concepção de doença. O tom, aqui, torna-se político, pois a volta da
psiquiatria à medicina necessitaria de uma grande reforma: mudança institucional, com a
hospitalização dos asilos psiquiátricos e a complementaridade com os serviços médicos; mudança
pedagógica e profissional, com a formação psiquiátrica universitária sendo dominada pela clínica
e pela neurologia, e, enfim, mudança profissional, com a profissionalização médica do psiquiatra,
usando uma expressão dita por um entrevistado. Assim, há uma defesa arraigada de uma ampla
reforma psiquiátrica, mas de uma forma específica, cuja palavra-de-ordem é a "volta à medicina".
O discurso da volta é holístico, explicando tudo, inclusive o preconceito contra a DM: o
isolacionismo do campo psiquiátrico é que condiciona e estimula o "medo da loucura". O asilo
seria uma aberração institucional que seria tudo menos uma instituição médica. Como não ter
medo da loucura, se o asilo é um ambiente de terror? Mas, destruindo o asilo (ou transformando-
o num hospital) e eliminando a separação entre a psiquiatria e a medicina, banaliza-se a DM,
tornando-a uma doença como qualquer outra, et pour cause convertendo o psiquiatra num
verdadeiro médico. E, colocada no mesmo plano de uma gripe ou de uma pneumonia, destrói-se
o preconceito. Pois como não identificar o psiquiatra com outra coisa, senão com o louco, se ele
recusa em ser médico e a própria DM é considerada loucura? E como tornar a psiquiatria uma
disciplina científica, como encontrar sua cientificidade, se ela resiste em ser uma disciplina
médica?
O discurso agora é propositivo, tendo um alvo concreto. Não se baseia no medo, nem na
esperança, embora a argumentação da volta tenha, em alguns momentos, um tom nostálgico. De
qualq uer forma, o resultado da volta é taxativa: assim que a psiquiatria tornar-se, de fato e de
112 Inclusive, todos os entrevistados desse grupo ou são "clínicos" ou "biomédico".
220
direito, uma disciplina médica, será reconhecida no seu devido valor. O psiquiatra quer ser
médico, quer ser reconhecido como tal, e não o pode por causa do modo como se organiza sua
profissão e do modo como se percebe a DM. Novamente, vemos aqui o psiquiatra como vítima
da psiquiatria — antes era o "medo da loucura", agora é o modo como se estrutura a psiquiatria.
O psiquiatra não se sente bem no seu lugar, pois seu lugar é outro, que ainda não existe, não é de
fato, mas um dia virá a sê- lo. A sombra da esperança continua presente, embora amenizada, e o
ressentido persiste, entrando em contradição com o desejado. Pois a profecia promete: um dia a
psiquiatria acabará com o medo da loucura, encontrará sua cientificidade e voltará, enfim, à
medicina.
Enquadrando mais adequadamente as três razões arroladas pelos entrevistados
(preconceito, cientificidade e separação), enquanto discurso sobre uma possível crise de
valorização ou de reconhecimento disciplinar da psiquiatria, poderíamos perguntar-nos o quanto
elas seriam estruturais na construção da identidade profissional do psiquiatra. Como forma de
esquematizarmos melhor a análise, discutiremos três hipóteses gerais:
Ø o discurso dos entrevistados seria expressão, muitas vezes manifestado na forma
de um queixume exagerado, de um incômodo fundamental que periodicamente
surge e ressurge na história da psiquiatria. O conteúdo do discurso mudaria
segundo as circunstâncias e a época, mas manteria a mesma forma ou a mesma
necessidade: a exigência de valorização ou de reconhecimento da psiquiatria —
sendo assim, o discurso dos entrevistados poderia ser relativizado através de uma
contextualização que percebesse a evolução e a repetição recorrente desse
fenômeno ao longo da história da psiquiatria;
Ø o discurso teria uma relação com diversas especificidades do campo psiquiátrico,
sendo assim analisado a partir de algumas transformações que vêm ocorrendo na
psiquiatria;
Ø o discurso seria um sintoma de mudanças mais profundas acontecendo na
sociedade, necessitando de uma análise sociológica mais global.
(4) Especialidade médica
221
Sim, talvez um dia isso tudo venha a acontecer, mas, enquanto não acontece, qual seria
afinal o papel da psiquiatria na medicina?
A maioria absoluta dos entrevistados (32), seguindo aparentemente a lógica do discurso
da volta, afirmou que a psiquiatria tem um papel estritamente médico na medicina, isto é, seu
papel não sairia dos limites de uma especialidade médica. E qual seria o papel da psiquiatria,
enquanto especialidade médica? Ora, o tratamento e a cura de uma doença específica: a DM. A
psiquiatria seria, nesse sentido, uma "especialidade como qualquer outra", reproduzindo num
outro nível o velho modelo do "uma doença como qualquer outra". Existe aqui coerência e
reciprocidade, haja visto que, se a DM é uma doença banal, conseqüentemente, a psiquiatria é
também uma especialidade médica como qualquer outra na medicina. A natureza do objeto
profissional, a DM, pressupõe o conteúdo da atividade profissional da psiquiatria. Sendo o objeto
estritamente médico, logo a atividade sê- lo- ia igualmente. Banalizando-se a DM, banaliza-se,
num mesmo movimento, a psiquiatria. E, tal banalização, para os entrevistados, possui uma
importância fundamental, visto que valoriza profissionalmente a atividade psiquiátrica. Pois,
banalizada, realizaria um velho sonho: tornar-se uma medicina como qualquer outra.
Para a metade dos entrevistados desse grupo, o papel da psiquiatria na medicina co incidiu
com o da na sociedade. Internamente como externamente, a psiquiatria teria um papel
estritamente médico. A outra metade fez uma distinção de papéis: papel médico na medicina;
papel de despreconceito, esclarecimento e prevenção na sociedade. A distinção não é
contraditória, e sim complementar. Em relação à primeira metade dos entrevistados, a distinção
refletiria apenas um papel mais ambicioso. Tal ambição realçaria, inclusive, outra grande
conseqüência, comum aos dois grupos de entrevistados, da noção de psiquiatria enquanto
especialidade médica: o papel de especialista do psiquiatra. O argumento já foi destacado no
tópico anterior, sendo que, agora, ele é aplicado ao campo profissional médico. Sendo a
psiquiatria uma especialidade médica, o psiquiatra torna-se, conseqüentemente, um especialista.
E, sendo um especialista, monopoliza um determinado saber no próprio campo médico.
Fundamentalmente, os entrevistados querem que seu saber seja reconhecido pelos seus pares, isto
é, pelos médicos, concedendo um peso estratégico bem maior ao reconhecimento disciplinar da
sua atividade profissional do que a uma valorização social, cujo reconhecimento seria conferido
pela sociedade.
222
Assim, no seio da medicina, o psiquiatra teria a prerrogativa de assumir toda e qualquer
intervenção que diga respeito ao seu objeto profissional, a DM. Os entrevistados reivindicam, por
exemplo, o mesmo status profissional dos neurologistas: diagnosticado a doença como
neurológica, encaminha-se o paciente ao especialista da matéria, o neurologista. Os entrevistados
lamentam que, na maioria das vezes, essa situação não é respeitada, queixando-se dos clínicos e
dos neurologistas que continuam tratando um paciente com problemas psiquiátricos mesmo após
o devido diagnóstico. O paciente psiquiátrico, nesse sentido, requer um médico especial, o
psiquiatra. O discurso parece ambíguo, pois os entrevistados, no mesmo registro, desejam que o
saber psiquiátrico seja mais disseminado entre os médicos, permitindo- lhes inclusive a sua
manipulação no atendimento de casos simples, principalmente no serviço público. Ou seja:
desejam ao mesmo tempo o seu monopólio, enquanto especialistas, e sua socialização. Além do
que, raramente, um clínico ou um neurologista tratam, por exemplo, uma psicose; na realidade, os
casos tratados, principalmente pelos clínicos, são pequenos distúrbios, fundamentalmente
psicossomáticos — assim, a queixa é um tanto exagerada. De todo modo, monopolizado ou
socializado, o que importa aqui é a valorização e o reconhecimento do saber psiquiátrico.
Valorizado, quando utilizado por todos; reconhecido, quando monopolizado. No fundo, a
ambigüidade termina justamente neste ponto, quando começa a valorização e o reconhecimento
da psiquiatria.
(5) Humanização da medicina
Ocorreu uma concentração importante de entrevistados analistas na defesa da psiquiatria
como humanização da medicina. Como vimos anteriormente, no tópico "Representação e
Psiquiatria", a afirmação da psiquiatria como uma forma de humanismo na medicina foi,
basicamente, um argume nto em prol da valorização da psicanálise no campo psiquiátrico.
Contudo, no tópico que examinaremos agora, a discussão ficou mais nuançada, inclusive porque
entrevistados não-analistas concordaram com a necessidade de uma humanização da medicina.
A argumentação dos entrevistados apresentou as seguintes considerações:
• a relação psiquiatra e cliente é necessariamente relacional;
223
• o psiquiatra precisa, por isso, levar em conta a interação, a comunicação, a relação
com o paciente, percebendo-o como uma pessoa;
• a psiquiatria, com isso, realça a dimensão humana do paciente;
• realçando a dimensão humana, a psiquiatria percebe globalmente o paciente;
• a percepção global leva a um conhecimento e um modelo de atendimento
interdisciplinar e multidisciplinar.
O argumento repousa na consideração e no respeito da condição psicológica do paciente.
A palavra-chave aqui seria o termo "relacional". E seria a própria natureza da DM que
determinaria o componente relacional na psiquiatria. Sendo uma doença que compromete a
interação e a comunicação, seu tratamento passa necessariamente pelo resgate da capacidade de
interagir e de se comunicar do paciente. Como os entrevistados consideram que a medicina está
cada vez mais tecnológica e "fria", a psiquiatria poderia recuperar o lado "humano" da atividade
médica. A frieza da medicina estaria relacionada à sua incapacidade atual de levar em conta a
dimensão humana do paciente, justamente porque a medicina vem esquecendo dos fundamentos
da relação médico-paciente.
Tal esquecimento, pelo que interpretamos do discurso dos entrevistados, tem duas causas
fundamentais: o domínio da tecnologia e a formação universitária centrada no uso, justamente,
dessa mesma tecnologia. "O paciente é visto como um carro, uma máquina que precisa de novas
peças. Não se fala com um carro..." — alega um entrevistado. Apenas se olha o corpo, e este
como uma máquina, esquecendo-se do psicológico, do paciente como pessoa. O que importa para
a medicina é o avanço tecnológico, confundido completamente com o avanço científico. O uso
abusivo da tecnologia faz com que se priorize a doença e não o doente. Seria como se a utilização
maciça da tecnologia fizesse o médico esquecer-se do paciente. A tecnologia substituiria o doente
pela doença, a pessoa pelo corpo, o contato pelo exame, a relação pela frieza.
Toda essa situação, claro, prejudica a psiquiatria, desvalorizando-a de sobremaneira. Qual
é a tecnologia da psiquiatria, além das novas medicações?! Insuficiente, segundo os
entrevistados. Além do mais, seus resultados não são uma panacéia. A única "tecnologia" eficaz
da psiquiatria é o uso terapêutico da palavra e da interação com o paciente. Procedimentos que
não são usualmente vistos como técnicos e que são subordinados à improvisação e à intuição do
224
profissional. A psiquiatria, para os entrevistados, não pode ser tecnológica, fato este
intrinsecamente relacionado à sua natureza relacional. Não podendo ser assim, a psiquiatria
torna-se uma estranha no ninho num ambiente onde se valoriza a tecnologia.
Para os entrevistados, a priorização da tecnologia separa e divide a medicina. Não só
separa e divide, mas também ocorre uma especialização da prática médica. Sendo assim, pode-se
entender a crítica à tecnologia como também um juízo negativo sobre a especialização.
Tecnologia e especialização vêm juntos, inseparáveis. O papel da psiquiatria, através da sua
natureza relacional, seria a de re-integrar a medicina, re-dimensionando a função da tecnologia,
agora a serviço de uma visão humana da prática médica. Com isso, contorna-se a especialização,
tornando-a "multidisciplinar" — as especialidades não se tornariam áreas de práticas e saberes
isolados e sem comunicação entre si.
Os entrevistados fazem um contraponto entre integração e fragmentação. A psiquiatria
integraria o Homem Doente, fragmentado pela Doença, e a medicina tecnológica e especializada
intensificaria sua divisão. A reintegração do Homem seria sinônimo de saúde, enquanto a
fragmentação, sinal de enfermidade. A prática médica especializada falaria, assim, a mesma
linguagem da doença113. Já a linguagem da psiquiatria, ao contrapor o Homem integrado ao
Homem fragmentado, assumiria realmente uma concepção humanista do ser humano: inteiro,
autônomo e soberano. No entanto, a concepção humanista clássica não possui esse ranço contra a
tecnologia, afirmando-a, ao contrário, de forma apologética. O dito "humanismo" dos
entrevistados, na verdade, parece nutrir-se da suspeita contemporânea114 a respeito da tecnologia,
cujos efeitos podem ser pode ser menos libertários do que alienantes. Entretanto, como a
psiquiatria e sua natureza "relacional" evitariam, na prática profissional, a especialização médica
e a fragmentação do doente, eis uma questão em aberto. Parece-nos que a noção de "relacional"
guarda um pronunciado sentido moral. Desde que "relacional" envolve um tipo de relação
médico-paciente, caracterizada como mais humana, logo mais compreensiva e interativa, seria
preciso uma prática médica que afirmasse o paciente como pessoa. Para tal, haveria a exigência
113 Crítica simbólica que, embora não sendo compartilhada pela maioria dos psiquiatras, possui um alto valor de mobilização na dita medicina alternativa e, inclusive, na mídia. 114 Não que na Contemporaneidade não exista uma apologia da tecnologia — justamente ao contrário, pois a glorificação até aumentou —, mas sim que, na atualidade, já se encontram vários discursos críticos, relativamente organizados, sobre a tecnologia, alguns inclusive explicitamente anti-tecnológicos.
225
de mudanças prementes; nesse sentido, os entrevistados insistiram na necessidade de uma
transformação na cultura profissional e na mentalidade dos médicos, e que, a partir daí, poder-se-
iam obter modificações práticas. Tais transformações seriam dependentes de uma nova
deonto logia profissional que afirmasse o predomínio de uma medicina humanística; em suma, de
uma nova moral no meio médico profissional.
Talvez, por isso, os entrevistados insistissem tanto na (transformação) formação
universitária. Seria nela que se jogaria o futuro de uma concepção humanista da medicina, bem
como onde o "relacional" poderia afirmar-se como ética profissional. O exemplo da prática
psiquiátrica poderia oferecer ao médico um complemento fundamental para a sua formação
profissional, ao trazer a necessidade de se perceber o paciente a partir de sua condição de pessoa
— um complemento que daria ao médico uma visão global do paciente e uma conduta mais
apropriada do ponto de vista da relação. "Tudo que é 'psicológico' é desprezado no ensino
médico" — diz um entrevistado. A formação universitária despreza a deontologia e a abordagem
psicológica do paciente, fazendo a apologia da especialização e da tecnologia. A vocação do
médico torna-se técnica e sem paixão. Pior: torna -se fragmentada, caindo nas rédeas da
especialização. Médico integrado é médico síntese que aglutina saberes e vocação. Encontramos
aqui ecos do modelo de médico de família, inserido na comunidade, compreensivo e respeitoso
com o paciente e, acima de tudo, possuindo um saber médico geral e eficiente.
O ensino universitário precisa, além da ética profissional humanista, incutir nos
estudantes uma visão de doença que necessite, justamente, de um saber geral: uma visão holista
de doença e de medicina. O termo "holismo", sem dúvida, está na moda, repetido
incansavelmente pelas medicinas alternativas. Vários entrevistados, inclusive, mostraram-se
simpáticos às visões de doença da homeopatia e outras visões ditas alternativas. Afirmaram que a
medicina precisa de uma renovação conceitual e que as práticas alternativas poderiam trazer
algum frescor no ensino médico. O que seria exatamente essa visão holista? Os entrevistados
apresentaram várias sinonímias, tipo visão cibernética, visão global, integrada, total...
Aparentemente, holismo implicaria uma visão na qual a doença, qualquer doença, seria vista de
uma forma articulada, sendo um fenômeno que aglutinaria fatores psicossomáticos — alguns
colocaram também a necessidade de se perceber, na doença, fatores sociais e mesmo...
espirituais. Doenças somáticas seriam também psicológicas, e vice-versa. Tendo uma visão
226
global ou holista da doença, o médico teria a capacidade de perceber o doente como pessoa, já
que, ao incorporar os fatores psicológicos na etiologia, haveria a exigência de examiná-los,
acarretando uma interação com o paciente.
Curiosamente, a visão holista entra em contradição com a visão dualista de boa parte dos
entrevistados, em particular os analistas. Ora, o dualismo separa as doenças físicas ou somáticas
das funcionais ou psicogênicas; o holismo une-as, num todo articulado. O holismo é, na
realidade, um monismo ampliado. Por isso, talvez, os entrevistados dualistas aplicassem o termo
holismo muito mais na formação médica do que na visão de doença. A ênfase recai, assim, na
necessidade de o ensino universitário formar médicos com uma nova visão da doença. Vaga
visão, na verdade, que teria como único objetivo visível o reconhecimento do próprio dualismo,
isto é, a admissão de que existem doenças... psiquiátricas! Assim, entre os entrevis tados dualistas,
o holismo na visão de doença é desconsiderado em relação ao holismo na medicina. O que seria
uma visão holista da medicina? Ora, basicamente uma medicina que superasse o problema da
especialização. O médico teria uma formação integrada e multidisciplinar, independentemente do
fato de existirem doenças especiais e diferentes. Não só isso: a medicina precisaria de uma
organização institucional que realizasse a interdisciplinaridade entre as várias especialidades.
Como a psiquiatria induziria todas essas transformações? Pelo exemplo do seu modelo de
relação médico-paciente, no qual o relacional é, novamente, realçado. A interação, a
comunicação, a compreensão, a visão integrada doença-doente fazem parte desse modelo,
segundo os entrevistados. O utrossim, a psiquiatria, enquanto disciplina, é necessariamente
interdisciplinar, precisando de uma abordagem global, psíquica e somática, do processo
patológico. Ou ainda: o sistema psiquiátrico de atendimento deveria, em tese, ser constituído em
forma de rede — alguns entrevistados defenderam a setorização — juntando várias abordagens
clínicas e tendo uma relação de complementaridade com o resto do sistema médico.
227
XI. Capítulo VI
A. Relações profissionais no trabalho
1. Interação e prática
A partir deste capítulo, a discussão ficará menos restrita ao campo representacional
propriamente dito, deslocando seu foco de análise para o campo das interações profissionais.
Evidentemente, o exame das representações profissionais permanecerá como uma preocupação
constante, até porque interações e representações estão correlacionadas. Mas, nos tópicos
anteriores, as relações profissionais eram tangenciadas pela análise das representações e, quando
muito, diziam respeito predominantemente às interações entre os próprios psiquiatras. Agora,
focaremos a atenção nas relações entre os psiquiatras e os outros profissionais do campo de saúde
mental, o que levantou a necessidade de uma análise mais detalhada das, aqui chamadas, práticas
profissionais. Tal necessidade adveio igualmente do próprio momento da pesquisa, pois, ao
examinarmos as relações profissionais, a metodologia exigiu uma complementação entre as
entrevistas e as observações no terreno empírico — a observação propiciou um instrumento de
investigação mais adequado à perscrutação do modo pelo qual ocorrem e se estruturam as
interações profissionais no local de trabalho. Ora, observar as interações entre profissionais
implicou ainda compreendê- las enquanto práticas. E, chegando a tal ponto, tornou-se
indispensável perceber as inserções das práticas no seu contexto de ação, o que significou
analisar também a sua delimitação pelas normas e regras do espaço profissional.
Não tivemos, contudo, interesse em examinar todo o espectro de práticas e interações
profissionais, até mesmo porque isso seria impossível; por isso, focamos nossa atenção no
trabalho envolvido nas equipes multiprofissionais, cuja concepção e modo de funcionamento
produziram exacerbadas polêmicas entre os entrevistados, denotando provavelmente desafios
identitários. Ora, o trabalho em equipe necessita de interações multiprofissionais e práticas
específicas que, para produzir algum resultado, exigem competências cognitivas singulares e todo
um jogo de negociação em torno do status e da pertinência de cada saber profissional. Além do
mais, as discussões e as decisões realizadas em grupo geram disputas e conflitos, de cuja
observação pode-se trazer à tona os diversos momentos de afirmação e de insegurança dos
entrevistados quanto à legitimidade do saber psiquiátrico.
228
Mas como tais interações podem ser compreendidas enquanto práticas? Ora, não
queremos examinar apenas o tipo convencional de prática que visa sobretudo objetos materiais,
correspondendo a um modelo de atividade que podemos chamar de ação material — não
queremos examinar o que alguns marxismos chamam de práxis (Vasquez, 1977). Na verdade,
temos em vista um exemplo de prática que possui como alvo a comunicação social115. Não seria
uma atividade que produziria um objeto alheio aos agentes da ação ou à própria atividade, mas
sim que teria seu fim em si mesma — a ação moral seria um exemplo desse tipo de prática. Seria
uma atividade criadora e reprodutora, mas produtora e reprodutora de símbolos, de significados e,
no caso que nos interessa, de interação social. Certo, ela não cria nem reproduz toda forma de
interação social, mas sim uma específica, embora bem abrangente no mundo social, relacionada à
comunicação — seria o que Habermas (1987) denomina de ação comunicativa, um tipo de ação
que produz mediações criativas a partir das interações sociais.
O leitmotiv dessa prática é a linguagem, sendo uma atividade, portanto, relacionada ao
uso da palavra — o uso prático da linguagem visa a comunicação no meio social. E, dependendo
tão intrinsecamente da comunicação, pode-se dizer que é uma ação bem mais imprevisível do que
a atividade material, pois dependeria das vicissitudes das interações sociais. Como está inscrita
nas interações sociais, não é dominada pelo modelo da prática material ou instrumental, baseada
na relação sujeito/objeto (tipo agente/paciente ou meios/fins), e sim fundada na relação
sujeito/sujeito. Seria, assim, fundamentalmente intersubjetiva, envolvendo necessariamente a
intencionalidade. E, sendo intencional, podemos deduzir que o sujeito da ação, inclusive por
apresentar uma capacidade reflexiva, pensa sobre a sua prática, possuindo uma reflexividade
pragmática (Habermas, 1987; Giddens, 1987).
Na realidade, toda prática é uma ação mais ou menos intencional. A ação comunicativa,
contudo, centra seu foco na interação, razão de sua intensa intersubjetividade, enquanto a ação
material fixa sua atuação nas relações entre o sujeito e o objeto, através de meios que perseguem
a maximização do resultado. Todas as duas modalidades de ação depende do contexto da ação e
da situação do sujeito. E, dependendo de um sujeito socialmente situado, toda prática estrutura-se
115 Afinal, vamos focar o trabalho em equipe, caracterizado pela discussão e tomada de decisões em grupo.
229
a partir de papéis sociais, produzindo assim limites para a ação, principalmente em situações
institucionalizadas. Tais limites também impõem restrições no alcance da racionalidade do
sujeito e variações nos graus de intencionalidade. O desenvolvimento da ação possui uma relação
imediata com o modo pelo qual se vincula as capacidades de escolha e de decisão das pessoas às
condições estruturais do contexto, principalmente no que diz respeito a recursos e a relações de
poder que podem favorecer ou não a ativação das competências dos indivíduos.
Interessa-nos particularmente esse jogo entre a estruturação do contexto e a liberdade do
sujeito, pois acreditamos que isso seja fundamental para entender as práticas profissionais, em
particular numa situação de trabalho em equipe. A começar que, dependendo da
institucionalização do espaço de trabalho, as práticas profissionais diferenciam-se de
sobremaneira, seja numa situação em que exista uma forte pressão normativa (prática fechada ou
normativa), enquadrando os indivíduos no seguimento e no respeito às regras, seja numa situação
onde há uma maior flexibilidade nas normas (prática aberta ou significativa), permitindo aos
indivíduos uma maior espontaneidade e uma negociação mais livre com as "regras do jogo". O
que queremos dizer é que a iniciativa cognitiva do indivíduo, num determinado contexto de ação,
é reduzida quando o sistema, no qual está inserido, é fortemente normatizado e quando os
recursos116 são escassos. Por isso, dependendo das pressões do contexto, a prática profissional
pode variar sua configuração de várias maneiras:
• as interações entre os indivíduos, já incertas por definição, podem tornar-se mais
ou menos previsíveis — quanto mais funcionais, mais normatizadas, mais
previsíveis;
• a comunicação social pode fluir mais ou menos simetricamente;
• as tomadas de decisão podem ser mais ou menos negociadas.
Pode-se inferir que tais mudanças na configuração vão interferir nas relações entre as
práticas e as representações profissionais. Geralmente, as representações são instrumentalizadas
pelas práticas ou podem surgir como expressões do exercício profissional e de sua inserção no
116 Estamos usando a noção de recurso num sentido bem largo: pode ser desde uma relação de poder, passando pelas condições de trabalho, até um quadro de referências sociais (pertença a um grupo, por exemplo) que pode fornecer um apoio afetivo -cognitivo ao indivíduo.
230
contexto do trabalho. As representações, embora não interpelem imediatamente as ações, são
referências que, muitas vezes, podem estruturar as ações e guiar a prática. Como contrapartida, as
representações podem ser transformadas pelo resultado das ações, principalmente no caso em que
tais atividades mudam ou relativizam as normas ordenadoras do contexto profissional. Além
disso, as representações são também sensíveis às transformações ocorridas nas interações entre os
indivíduos, a começar se tais mudanças re-arranjarem as posições de valor (concepção do objeto
profissional, deontologia, campo do saber...) inscritas no espaço profissional.
Concomitantemente, as representações profissionais seguem os condicionamentos
discutidos acima, a saber: quando as práticas são fechadas, isso significa que há uma forte
pressão normativa e, conseqüentemente, as influências das regras básicas do contexto profissional
predominam em relação às representações do indivíduo — uma prática fechada vem
acompanhada de um sistema de influência poderoso. Quando as práticas são abertas, o contrário
acontece, e as interações sofrem uma influência das representações; logo, as influências são mais
flexíveis, não se esgotando nas normas do contexto profissional, deixando um maior espaço para
a ação das representações.
Embora possamos logicamente examinar as duas modalidades de práticas de modo
separado, as práticas profissionais, na verdade, nunca são completamente fechadas ou abertas,
apresentando ao contrário uma combinação — onde pode predominar um dos pólos — ou uma
complementaridade entre as duas formas. Podemos explicar melhor essa afirmação utilizando os
aportes teóricos de Habermas (1987). Segundo esta posição, não se pode dissociar o mundo
sistêmico (reino da razão instrumental, do trabalho e da relação homem / natureza) do mundo
vivido (reino da razão comunicativa e da interação social) — o agir comunicativo faria a ponte
entre os dois mundos. Sendo assim, toda prática inscreveria no seu movimento tanto sistemas de
ação racional visando a um fim, como processos interativos e comunicativos, relacionados a
sistemas de poder e de legitimidade, como também de liberdade e reciprocidade. A base da
socialização estaria, pelo que se infere, localizada na dinâmica perpétua entre a esfera do trabalho
e os processos de interação social. Assim, voltando à nossa discussão, quanto mais fechada a
prática, mais semelhante à ação instrumental, isto é, mais os meios técnicos e organizativos são
fundamentais no contexto profissional; quanto mais aberta a prática, mais parecida com a ação
comunicativa, isto é, mais as interações entre os indivíduos e as representações são importantes.
231
As práticas profissionais, dessa forma, devem ser consideradas a partir dessa dupla
modalidade de ação. No entanto, pode-se ainda nuançar tal afirmação: muitas profissões se
alicerçam na interação com o cliente e/ou necessitam, na realização do serviço, de uma forte
integração com outros profissionais — ora, pode-se inferir desses casos que a prática
comunicativa é a ação predominante ou que, pelo menos, deveria ter logicamente a
predominância. E, em relação ao produto do trabalho, já que a prática instrumental diz respeito ao
mundo dos objetos, indagamos até que ponto a realização de alguns serviços profissionais
significa a criação de um objeto alheio ao sujeito ou a sua atividade. Tais serviços, muitas vezes,
dependem de mediações técnicas que utilizam objetos, mas empregam fundamentalmente a
interação e a comunicação sociais como forma de realização da ação. Um serviço como o
médico, por exemplo, utiliza um saber especializado que produz, durante a interação com o
cliente, um conhecimento que, além de poder ser utilizado para produzir novas ações e novas
interações, possui a finalidade de resolver problemas. Aplica-se, nesse caso, um saber a partir da
disposição de uma interação social específica (médico/paciente), com o resultado do serviço
dependendo da manutenção da interação. O resultado não significa a criação de um objeto, e sim
a mudança na disposição da interação e a solução ou não de um problema.
Contudo, se estamos corretos em dizer que a psiquiatria, por exemplo, envolve uma
prática profissional que não produz um objeto como tal, até que ponto, então, pode-se inferir que
possa ser modulada pela ação instrumental, já que esta é, por definição, objetal? Obtém-se a
resposta para esta pergunta discriminando as práticas baseadas na interação. Além da
comunicativa, consideramos a ação regulada por normas — os membros de um grupo social, por
exemplo, agindo conforme a orientação de normas e regras — como uma prática baseada na
interação, embora também tenha uma relação pronunciada com o mundo dos objetos. Nesse caso,
o que determinaria a ação seria a obediência à norma estabelecida. A norma, aqui, seria o
equivalente da linguagem na ação comunicativa, sendo assim uma mediação entre dois pólos de
uma relação. Mas não seria o medium, como no caso do agir comunicativo, entre um sujeito e um
outro respectivo, e sim, mais exatamente, entre o indivíduo e o mundo social. Não seria
propriamente a mediação de uma relação intersubjetiva, orientada apenas para a compreensão, e
sim, mais exatamente, a de uma relação objetiva, orientada para fins. Sendo assim, a relação entre
o indivíduo e o mundo social, mediada por normas, teria um caráter objetivo. Tal relação possui
um caráter instrumental porque é finalizada por um plano de ação, além de supor uma
232
racionalidade que pode ser objetivada pelo julgamento de um terceiro através de critérios
normativos. Enfim, por comodidade, chamaremos a ação regulada por normas, daqui por diante,
de ação estratégica.
A ação estratégica é uma prática baseada na interação que possui um caráter instrumental.
Entretanto, a ação propriamente instrumental é fundada na relação entre o sujeito e o mundo da
natureza, em que a criação de objetos seria evidente. O mundo da ação estratégica, porém, não é
o da Natureza e sim o Social. Ora, o mundo social é composto de objetos sociais, que não são
naturais nem técnicos, mas também por indivíduos socializados. Na ação estratégica, tais objetos,
através das normas, podem ser fundamentais nas interações entre os indivíduos; entretanto, ao
contrário da ação comunicativa, a ação estratégica visa a maximização do resultado, através do
agenciamento dos sujeitos enquanto objetos. O agenciamento dos sujeitos seria realizado através
do controle normativo da ação. Ao visar um objetivo, ao maximizar o resultado, a ação
estratégica precisa direcionar e controlar a atividade do sujeito, tornando-o um meio para a
realização de um fim.
Se nosso raciocínio tem pertinê ncia, as atividades profissionais baseadas na interação
podem ser definidas pelo jogo entre a ação estratégica e a comunicativa. A instrumentalidade e a
intercompreensibilidade da ação vão depender do contexto profissional e de que modo a atividade
profissional articula suas práticas, seus objetos e seus objetivos. Assim, tanto a ação estratégica e
a comunicativa podem interpelar fortemente o trabalho em equipe como influenciar a atividade
propriamente técnica ou organizativa dos profissionais. Para explicitar melhor tais afirmações,
iremos discutir duas situações concretas, utilizando-as como forma de ilustração do problema.
Nas nossas observações, reparamos que o trabalho em equipe, numa situação com forte pressão
normativa, seguia uma rotina na qual as regras do serviço estavam automatizadas, como se o
objetivo fosse uma economia de esforço. O fundamental da rotina era o respeito às regras e a
conformidade a determinados preceitos técnicos, do tipo observar totalmente as ordens médicas e
administrativas. Acreditamos que as interações aqui são dirigidas prioritariamente por ações
estratégicas visando a disciplina e a obediência às normas do serviço. Em outras situações, por
exemplo, numa instituição em que o trabalho em equipe não era tão normatizado e o poder não
233
estava tão concentrado117, a rotina era menos uniformizadora, pululava improvisações,
bricolagens e havia espaço para jogos de afirmação identitária entre os diversos profissionais.
Aqui, julgamos que as interações são guiadas preferencialmente por ações cujo foco são a
comunicação, as representações e a identidade — enfim, estamos diante de ações comunicativas,
baseadas na interação e em jogos de identidade.
Em suma, percebe-se que o trabalho em equipe pode apresentar, dependendo do contexto
profissio nal, várias situações nas quais as duas modalidades de práticas aparecem misturadas,
ainda que, seguindo nosso raciocínio, o contexto profissional e a forma de articulação das
práticas delimitam a predominância de um tipo de ação em relação a outro, sendo pontos de
partida para se entender como, em diversas circunstâncias, acontece o domínio das ações
estratégicas nas práticas profissionais. Tal fato pode ocorrer em diversas situações, pois, embora
a interação comunicativa seja dominante, pode estar a tal ponto pautada por preceitos técnicos e
administrativos que as referências às representações e o jogo identitário estariam suplantados
pelas ações estratégicas.
Neste momento, podemos perceber melhor as correspondências que fizemos entre as
práticas fechadas e abertas. Como vimos, focamos o tempo todo nossa atenção nas interações e
suas vicissitudes. Dependendo do contexto, podem ser mais ou menos normatizadas. Tal
afirmação é banal, pois geralmente as interações são regidas por normas e regras; na realidade,
quando dizemos que são "normatizadas", significa que são interações dirigidas para a
maximização do resultado do serviço. Daí o peso das interpelações de ordem técnica e
administrativa na condução da ação — digamos que as interações são enquadradas pela
instituição ou pela organização do trabalho. Já na outra situação, quando estamos diante de
práticas abertas e há uma flexibilidade normativa, as interações são mais independentes da
coerção institucional ou organizativa, estando mais enquadradas pelas representações
profissionais dos indivíduos e pelos jogos identitários.
117 Invariavelmente, pelo que observamos, quando existe concentração de poder numa equipe, a centralização e a coordenação das ações estão sob o domínio do médico.
234
Pode-se tentar resumir a discussão no seguinte quadro118:
Práticas Normas institucionais ou organizativas
Tipo de Ação Inserção do profissional
Tipo de Interpelação
Práticas fechadas (normativas)
Pressão normativa (+) ação estratégica
(-) ação comunicacional
heteronomia técnica e administrativa
Práticas abertas (significativas)
Flexibilidade normativa
(+) ação comunicacional
(-) ação estratégica
autonomia Representações e jogos identitários
Se estamos corretos, a autonomia do profissional vai depender das normas que organizam
seu serviço, dos recursos à disposição (condições de trabalho), das regras que regem a sua prática
e do poder heurístico de referências simbólicas tais como representações, valores de grupo e
posições identitárias. Assim, quando as práticas profissionais não entram em contradição com as
normas, e no momento em que as atividades são estabelecidas em comum acordo no grupo,
correspondendo a crenças mais ou menos partilhadas, a prática profissional sofre um forte
condicionamento afetivo-cognitivo e uma marcante orientação das representações profissionais.
Contudo, pode existir uma situação em que a interpelação institucional é fraca e as
orientações do grupo de trabalho não são consensuais ou não apresentam uma influência muito
forte. Geralmente, tal condição manifesta-se, entre outras situações, da seguinte forma:
• em instituições onde a característica do trabalho não implica uma forte
institucionalização das ações, nem uma necessária mobilização do grupo;
• em instituições nas quais não há controle de parte a parte (anomia institucional) e
há poucos recursos materiais e simbólicos, inclusive os que poderiam impor
normas e crenças.
118 Seguimos, aqui, o trabalho de Blin (1997).
235
Em tese, o leque de escolhas não é diretamente predeterminado pela organização do
trabalho ou pelo consenso do grupo, deixando o indivíduo com uma maior liberdade de escolha.
Mas, no segundo exemplo, a situação é mais complicada, pois, embora o indivíduo não sofra
injunções para determinar sua ação, sua margem de liberdade é limitada pela falta de recursos e
pela ausência de regras que otimizem a atividade. O que sobra, realmente, são comportamentos
individualizados nos quais as referências às representações profissionais são onipresentes,
embora não sejam partilhadas. O lema é "vire-se como puder"119...
Mas, se discutimos acima situações onde as representações têm algum papel na prática,
como elas ficariam num contexto onde as normas são imperativas, isto é, onde a ação estratégica
domina e estrutura todo o espaço profissional? Evidentemente, já respondemos em parte a essa
questão, mas podemos repetir a argumentação, examinando-a do ponto de vista do profissional.
Para tal, imaginamos os seguintes cenários:
Ø quando o profissional considera o sistema normativo reversível, mesmo quando há
uma clara incompatibilidade entre as representações e as normas, ele adotaria
condutas de resistência ou de luta aberta contra as regras do serviço. A prática
sofreria grandes mudanças ou transformações circunstanciadas. No caso em que as
normas permaneçam intactas, provavelmente o profissional protegerá suas
representações (posição identitária), adaptando-as perifericamente e produzindo
mudanças pontuais — as proteções, contudo, serão possivelmente carcomidas pelo
tempo, havendo uma produção de representações intermediárias mais afinadas
com as condições de exercício do trabalho, e as representação antigas sofrerão um
processo de idealização ou simplesmente se extinguirão;
Ø quando o profissional não pode deixar de aceitar de alguma maneira as normas da
organização do trabalho, considerando-as irreversíveis, o discurso (sobre a
vocação e o objeto profissional, por exemplo) seria racionalizado, e as
representações seriam conformadas à situação, podendo apresentar adaptações
notáveis ou mesmo mudanças marcantes120. É provável que o profissional defenda
119 Percebemos essa conduta nas condições de trabalho que imperam no hospital público... 120 Pensamos no caso de um psicanalista trabalhando num serviço alopático e hospitalar...
236
suas representações através de mecanismos de defesa (justificação, racionalização,
substituição...), cujas produções ideativas acoplar-se-ão nas representações,
causando mudanças periféricas ou substanciais no seu conteúdo. Caso não haja a
possibilidade até mesmo de se utilizar mecanismos de defesa, a probabilidade é
forte de as representações sofrerem mudanças brutais;
Ø existiria, é claro, situações nas quais ocorreria, apesar da pressão normativa, uma
compatibilidade entre as normas e as representações profissionais. Neste caso,
normas e representações confundir-se- iam, reforçando a significação global da
representação. A interação seria determinada por normas e representações
diretamente instrumentais. Tal situação seria ideal no caso da cirurgia, por
exemplo, um tipo de medicina que exige uma base técnica acentuada e interações
que visem expressamente a otimização do resultado. Já quanto às medicinas que
exigem a interação, inclus ive como garantia do resultado, a completa
determinação (representação + norma) instrumental da interação traria
provavelmente efeitos contraproducentes.
De qualquer forma, mesmo que a prática seja completamente imposta, ela precisa, pelo
menos hipoteticamente, ser de alguma forma apropriada e integrada ao sistema de representações
do profissional, senão estaremos diante de uma crise vocacional ou de identidade completamente
paralisante. A integração é o resultado, muitas vezes apenas transitório, de um processo que
envolve diversas transações entre as representações do profissional, as normas do serviço e os
valores do grupo. Tais transações podem ser consideradas um jogo identitário, no qual o
profissional projeta sentido sobre sua ação a partir das suas interações com o meio institucional e
com os outros profissionais. Percebe-se com nitidez tal fato na análise concreta do trabalho das
equipes, no qual a interação entre os profissionais é fundamental e, por isso mesmo, a
necessidade de adaptação e de confo rmidade entre os indivíduos de diversas profissões torna-se
tão importante. Apesar das diferenças e dos possíveis conflitos entre as normas do serviço, as
identidades e as representações profissionais, haveria uma busca de consenso — a procura de um
campo mínimo de ação — com o intuito de levar adiante o trabalho.
237
a) Prática, consenso e equipe multiprofissional
Neste tópico, nosso ponto de partida será justamente a questão do consenso apenas
assinalada acima. Tentaremos mostrar a sua importância na análise das relações entre a prática e
o modo de organização das equipes multiprofissionais. Pois, enquanto tal, a busca do consenso é
uma característica marcante de determinadas formas de organização do trabalho. Sua necessidade
surge, fundamentalmente, nas instituições onde o trabalho em equipe é valorizado. Buscá-lo é
desejável, pois o campo institucional médico, em particular o psiquiátrico, envolve competências
profissionais diferentes, cuja interdependência é objetivamente necessária para a realização das
ativid ades do serviço. Há uma imperiosa necessidade de entendimento e do estabelecimento de
um mínimo campo comum de ação.
Claro, a divisão de trabalho e a interdependência profissional, por si só, não tornam
inevitável a procura do consenso. O serviço pode funcionar simplesmente utilizando uma
hierarquia e uma centralização de poderes, dispensando a necessidade da construção de um
consenso, pois as decisões não seriam propriamente consensuais e sim impostas de cima para
baixo. O consenso é desejável e necessário, na verdade, quando a organização do serviço é
organizado por valores que exigem a participação dos profissionais. No campo psiquiátrico, tais
valores entraram em cena historicamente com a hospitalização do antigo asilo, império da
hierarquia e do monopó lio de poder do psiquiatra. A hospitalização correspondeu a uma
democratização na organização do trabalho, bem como à valorização crescente das outras
profissões do campo da saúde mental (enfermagem, psicologia...). A concentração do poder nas
mãos dos psiquiatras diminuiu consideravelmente e a hierarquia foi se tornando cada vez mais
funcional e horizontal.
Em tal modelo organizativo, pelo menos enquanto ideário, a participação dos
profissionais nas tomadas de decisão é estimulada e colocada como condição sine qua non do
consenso. Logo, para haver consenso é preciso participação121. Não é o acordo que o
caracterizaria, e sim a associação entre os indivíduos. Somente desse modo as atitudes e as
decisões individuais tornam-se atitudes e decisões sociais, isto é, partilhadas e construídas
121 A partir daqui seguimos as posições de Serge Moscovici & W. Doise (1992).
238
socialmente num grupo de profissionais. Mas, se o consenso depende da participação, infere-se
que o tipo de participação é fundamental para a qualidade do acordo entre os profissionais.
Moscovici e Doise (1992) defendem que, num grupo no qual é possível uma participação livre de
pressões, o indivíduo tende a polarizar o seu discurso. Ocorreria uma polarização de grupo em
que o consenso é estabelecido a partir dos extremos, isto é, a partir das posições que polarizam as
discussões no grupo. Tal tese é interessante, porque vai de encontro a posições que afirmam que,
nas discussões coletivas, os indivíduos procuram o meio-termo ou o compromisso. Contudo,
oferece uma certa limitação, pois a construção do consenso geralmente acontece em situações nas
quais a participação ocorre sob uma pressão normativa. Tendo consciência dessa limitação,
podemos inferir algumas hipóteses sobre a relação entre consenso e participação (1992):
Ø há uma relação de reciprocidade entre a participação e as interações. A qualidade
das interações seria fundamental na estruturação da participação do indivíduo,
sendo mais importante, na tomada racional das decisões, do que a competência dos
indivíduos
Ø o consenso estabelece-se a partir dos extremos preferidos (polar ização no grupo)
quando a participação não é coagida por normas e regras que constranjam a
liberdade de opinião do indivíduo;
Ø quanto mais intensa e mais livre a participação, maior a implicação do indivíduo
nas tomadas de decisão do grupo. A implicação significa que o indivíduo está
engajado nas discussões e nas decisões, e que tomou partido e posição nas
deliberações coletivas. Ao se engajar e ao tomar partido, o indivíduo inscreve suas
posições de valor (representações, cultura profissional...) nas discus sões e nas
decisões do grupo. Num grupo estruturado para o trabalho em equipe, a
implicação do indivíduo leva-o na direção de suas posições e valores; assim, caso
a implicação torne-se coletiva, os indivíduos são levados na direção das crenças e
valores do grupo;
239
Se tais hipóteses têm alguma pertinência e, ao mesmo tempo, remetermo-nos ao debate
anterior sobre as práticas fechadas e abertas, pode-se inferir duas formas gerais de
participação122:
Ø consensual: envolvem grupos onde as práticas abertas imperam e, portanto, há
participação e implicação dos profissionais — cada indivíduo pode ter acesso às
decisões coletivas. Há engajamento e a performance dos indivíduos é a medida de
sua participação. Havendo discussão, ocorrem as polarizações de grupo,
produzindo tensões e, ao mesmo tempo, movimentos de reconciliação no sentido
de uma ação conjunta. O consenso é construído, assim, a partir do dissenso e da
recomposição das posições em torno de valores e representações partilhadas pelo
grupo. O acordo é fundado, segundo Moscovici e Doise, a partir dos conflitos
sócio-cognitivos (choque entre posturas afetivas, representações e posições de
valor) que precederiam as tomadas de decisão (1992);
Ø normativa: envolvem grupos onde o peso da hierarquia e a pressão normativa
influem na tomada de decisões. Há uma regulação das possibilidades das decisões.
Estamos no reino das práticas fechadas. Há um baixo grau de implicação e a
participação, embora muitas vezes obrigatória, é passiva, levando os indivíduos a
buscarem um compromisso nas decisões e a procurarem o meio-termo entre as
diversas posições existentes no grupo. As ações são enquadradas pelas regras e
pela obediência à hierarquia;
Podemos resumir a discussão acima através do seguinte quadro:
Participação Interação Prática Implicação Consenso Ação Consensual Conflitos
sócio-cognitivos
Prática aberta
Engajada Baseado na Polarização
Performativa
Normativa Conformismo Prática fechada
Desengajada Baseado no compromisso
Enquadrada
122 Seguimos, aqui, o trabalho de Blin (1997).
240
Pode-se acrescentar ainda que cada tipo de participação vai produzir um efeito diferente
nas representações profissionais. Na participação consensual, o profissional, por causa do
engajamento, implica sua representação na sua ação performativa; assim, a representação pode
sofrer transformações e mutações consideráveis, principalmente quando é partilhada pelo grupo.
Já na participação normativa, como não há engajamento, a representação não é ativada na ação.
Cada um mantém a sua representação e procura o compromisso e o meio -termo no processo
decisório, geralmente regulado pela hierarquia e pelas normas do serviço. Conclui-se, dessa
forma, que a transformação das representações profissionais pré-existentes, numa determinada
organização de trabalho, é dependente dos modos de participação e da forma como é estabelecido
o consenso.
b) As condições empíricas do trabalho em equipe
Vamos agora aplicar concretamente todas essas inferências discutidas acima no nosso
material empírico. Antes será importante caracterizar as organizações de trabalho. Para fins de
comparação, dividimos as observações segundo as instituições. A primeira e mais geral divisão
seria ente o público e o privado. Assim, na esfera pública, examinamos o trabalho em equipe e as
reuniões num hospital fechado e num hospital aberto (hospital-dia); na esfera privada,
examinamos o trabalho numa clínica privada.
No hospital fechado, observamos a mecânica do trabalho, as discussões e as tomadas de
decisões em todas as enfermarias. No hospital-dia, observamos de forma geral os procedimentos
de trabalho e as reuniões no serviço, aberta a todos os profissionais. Já na clínica privada,
observamos as atividades profissionais no local de trabalho.
No hospital psiquiátrico público (HPP), estamos diante de uma situação na qual a
interpelação institucional é fraca e, em tese, o psiquiatra tem uma autonomia profissional
relativamente grande. Contudo, os recursos humanos, organizativos e materiais são tão escassos
(incluindo os baixos salários) que relativizam a margem de manobra do profissional. Na verdade,
o psiquiatra é mais independente do que autônomo, isto é, suas ações não sofrem tanta
interferência externa (normas e regras do serviço), mas são limitadas pelas condições de trabalho,
241
impedindo-o de formular de forma autônoma as normas de sua atividade. As regras e as normas
do serviço existem, evidentemente, mas têm pouca eficácia no enquadramento da conduta
profissional. Na forma, até que poderiam, caso fossem completamente aplicadas, produzir uma
pressão normativa que enquadraria as atividades profissionais. Não é o que ocorre. Talvez, para
isso acontecer, fosse necessária uma articulação entre uma melhoria geral dos recursos e uma
pressão administrativa da hierarquia no serviço.
O que existe, no fundo, não é uma flexibilidade normativa, e sim um relaxamento ge ral
das regras do serviço (o que chamamos de anomia institucional) devido à falta de recursos,
incluindo os recursos de poder que poderiam ser utilizados pela administração para impor a
ordem. Nossa impressão foi a de que não existe legitimidade para a cobrança, por parte da
hierarquia funcional e administrativa, de ações profissionais condizentes com as normas
existentes. Não existe legitimidade na exigência de compatibilidade entre normas e atividade
profissional, pois os baixos recursos não são funcionais a uma articulação ideal entre o
desempenho profissional e o trabalho no serviço. A maioria das regras torna-se pro forma,
sofrendo na prática uma adaptação geral às condições dos recursos disponíveis. Exigir que se
respeitassem as normas do serviço poderia paralisá-lo, pois não haveria recurso para tanto. O
jeito é respeitar as regras quando puder, adaptá-las quando necessário e ignorá- las de quando a
quando. Os profissionais têm mais ou menos consciência do "jeitinho"123, e muitos justificaram
que são obrigados a adotá- lo para garantir um mínimo funcionamento do serviço.
No hospital-dia, os recursos são, proporcionalmente, um pouco maiores do que no
hospital fechado, até porque a quantidade de paciente, de profissionais, principalmente de
psiquiatras, e a própria estrutura do serviço são menores. Não encontramos propriamente uma
anomia institucional e sim uma tentativa permanente de combatê- la. O "jeitinho" existe, mas não
é realizado de maneira individualizada ou isolada, e sim coletivamente, tentando adaptar ao
máximo as condições de trabalho do serviço às normas vigentes. Aparentemente, há uma
predisposição dos profissionais em trabalhar de forma coletiva, incentivado talvez pelo lema
maior, dito informalmente por uma psicóloga, "todos estão mesmo no mesmo barco...".
123 Ou adaptação. A noção de "jeitinho" foi empregada por alguns entrevistados, bem como por membros da enfermagem e da administração do HPP.
242
Provavelmente, essa situação seja condicionada pelas próprias características da população de
pacientes. São pacientes relativamente estáveis ("compensados", no jargão) que necessitam de
mais atenção psicoterápica do que clínica, bem como uma preocupação com a sua re-inserção
social — um ambiente de trabalho onde, em tese, o papel do psicólogo e do serviço social seria
relevante; enfim, um ambiente "relacional", necessitando de interações e um certo grau de
cooperação coletiva. Acreditamos, desse modo, que não foi uma mera coincidência encontrarmos
psiquiatras que ou eram psicanalistas ou profissionais que fizeram uma formação analítica, sendo
assim predispostos a um trabalho "relacional".
Já na clínica privada, o que há é um enquadramento dos profissionais pelas normas do
serviço, e os psiquiatras, apesar de manterem uma certa independência profissional (controlam as
regras da intervenção clínica), não têm tanta autonomia profissional (não controlam as regras do
serviço). O "jeitinho" existe, mas é mitigado e, geralmente, apenas no sentido de garantir uma
outra jornada de trabalho. Não há anomia institucional, mas sim o esforço de se seguir as regras e
de se instituir práticas fechadas. Nas entrevistas, foi-nos revelado que o controle era maior, com o
profissional sentindo-se mais fiscalizado na realização do seu trabalho. Outra questão importante
encontrada nos discursos, foi a relação entre conformismo com as regras do serviço e a falta de
estabilidade no emprego. De fato, tal situação cria objetivamente uma relação de forças ingrata da
qual o profissional não pode tirar proveito, deixando-o numa posição de subordinação.
Aparentemente, no HPP, o "jeitinho" não se reduz ao problema da articulação entre as
normas do serviço e a atividade profissional, pois repercute, inclusive, na questão da
contribuição-retribuição, isto é, na relação entre a carga horária a ser cumprida pelo profissional e
o salário recebido. Todos os profissionais do HPP afirmam de forma enfática que recebem um
péssimo salário, argumentando que o valor da contribuição (tempo de trabalho) não corresponde
ao valor da retribuição (salário recebido)124. Por isso, em particular os psiquiatras, como não há
dedicação exclusiva, muitos têm uma dupla ou mesmo uma tripla jornada de trabalho, exercendo
a profissão em outras instituições, geralmente clínicas privadas ou consultórios. Ora,
principalmente entre os psiquiatras, observamos um comportamento que, nitidamente, redefine a
124 "Esse trabalho aqui é uma exploração, pois eu ganho uma porcaria" — como disse um entrevistado; afirmação que foi dita de várias formas, inclusive de maneira eufemística.
243
relação entre a contribuição e a retribuição: os psiquiatras, com exceção de um, não assumem
toda a carga horária do serviço, seja chegando atrasado, seja saindo mais cedo125. A redefinição
da relação contribuição-retribuição, assim, seria a seguinte: diminui-se o tempo de trabalho,
compensando aparentemente o baixo valor da retribuição. Porém, na verdade, diminui-se a carga
horária, ao mesmo tempo em que se aumenta a intensidade do trabalho. Todo o trabalho, de fato,
é realizado com rapidez126, permitindo que o profissional possa sair mais cedo, sem prejudicar,
em princípio, a realização do serviço. Os psiquiatras são pagos pelo tempo de trabalho (seis
horas, por exemplo), contudo, como precisam trabalhar em outro local, justamente para
compensar o baixo salário, saem do HPP antes de se completar toda a carga horária. Para is so,
compensam a inobservância da carga horária completando todo o trabalho necessário com o
máximo de rapidez. Pode-se argumentar evidentemente que, elas por elas, a intensidade do
trabalho compensa a redução do tempo de trabalho — o que não evita, sem dúvida, a perda da
qualidade do serviço, mas tudo isso permite ao profissional que mantenha mais de uma jornada
de trabalho, ao mesmo tempo que gera a ilusão de que, diminuindo o tempo de trabalho, diminui
o valor da contribuição, nivelando-o ao valor da retribuição127.
Observamos, também, esse tipo de comportamento no hospital-dia e nas clínicas privadas,
embora com maior parcimônia. Aparentemente, a conduta é mais velada e sujeita a adaptações.
Mas o objetivo é o mesmo: permitir ao psiquiatra a manutenção de várias jornadas de trabalho,
redefinindo a relação contribuição-retribuição. Um comportamento, vale frisar, que não é
explicitado pelos profissionais, embora seja assumido diante de um questionamento direto. O
discurso é velado, com toda uma série de racionalizações justificando a postura, ainda que, no
limite, reconheça-se a contradição evidente dessa conduta com as normas e regras do serviço.
Portanto, o "jeitinho" tem várias conseqüências, inclusive em relação às práticas. Certo, o
"jeitinho" vai oferecer uma certa liberdade ao psiquiatra e, portanto, um certo poder de decisão,
principalmente no hospital-dia. Assim, a abertura ou não das práticas no local de trabalho vai
depender essencialmente da postura do profissional ou, em outras palavras, de sua "cultura
125 Exemplo: um psiquiatra que tem uma carga horária de seis horas, trabalhará assim apenas quatro, pra mais ou pra menos. 126 Consultas, reuniões e atendimentos aos pacientes, por exemplo. 127 Contudo, existiram várias situações onde o profissional, inclusive o psiquiatra, não intensificavam o trabalho, deixando várias tarefas por fazer.
244
profissional", principalmente numa situação como a encontrada na organização de trabalho do
HPP, onde o modus faciendi segue a tradição de "todo poder ao médico"128 — tudo indica que,
em tal ambiente, a autonomia dos outros profissionais da saúde mental é bem mais restrita do que
a dos médicos. No hospital-dia, ao contrário, o "relacional" condiciona as práticas com um peso
semelhante ao das normas institucionais — na realidade, o "relacional" funciona como uma
norma do serviço. Nessa situação, o poder do psiquiatra encontra-se relativamente diminuído em
detrimento da enfermagem e, principalmente, da psicologia. O ambiente parece ser mais
favorável ao trabalho em equipe alicerçado em práticas consensuais. Já na clínica privada, o
psiquiatra tem pouca margem de manobra, logo, pouca iniciativa. Ele está no topo da hierarquia
profissional, mas ainda subordinado às regras do serviço ou, em outras palavras, ao (s) dono (s)
da clínica. Há trabalho em equipe, mas sob uma estrita coordenação médica e com uma nítida
pressão normativa.
No HPP, percebemos melhor a iniciativa dos profissionais, observando os procedimentos
de dois psiquiatras que eram os responsáveis pelas enfermarias nas quais estávamos alocados.
Havia uma diferença na postura dos dois profissionais que provinha fundamentalmente de suas
representações profissionais. Por exemplo: um dos psiquiatras era mais tradicional, admitindo o
trabalho em equipe, mas sob estrita coordenação médica: todo o procedimento era controlado
pelo psiquiatra — diagnóstico, tratamento, prognóstico e alta. Não só possuía a última palavra,
mas a iniciativa na tomada de decisões. Nessa enfermaria, as práticas podem ser consideradas
como um meio -termo entre fechadas e abertas, justamente por combinar o trabalho em equipe
com uma alta centralização das decisões nas mãos do psiquiatra — no caso, a prática torna -se
fechada menos pela pressão normativa proveniente das regras do serviço do que pela imposição
de uma hierarquia profissional. Contudo, quanto ao tipo de participação, perc ebemos que, por
causa do quase monopólio das decisões, assemelha-se mais ao tipo descrito como "normativo",
em que os membros adotam sem muita discussão as decisões do psiquiatra, evitam atos
problemáticos, assumindo um nítido conformismo com as condições de trabalho. Na outra
enfermaria, o profissional tinha como posição de valor o trabalho em equipe, não encarnando
uma posição normativa e decisória no ambiente de trabalho. As decisões eram produzidas pela
128 O hospital psiquiátrico ainda é o herdeiro do asilo psiquiátrico e, como tal, reproduz seus condicionamentos: exclusão do paciente e poder do alienista, agora substituído pelo psiquiatra.
245
dinâmica das discussões em grupo. Pode-se dizer que, nessa enfermaria, as práticas eram abertas,
já que a participação dos profissionais era consensual, permitindo que os procedimentos do
serviço fossem controlados, de fato, pelo grupo e não pelo psiquiatra.
Apesar das diferenças, as duas situações têm muito em comum, a começar que a iniciativa
das mudanças, principalmente a instauração de fato do trabalho em equipe, nos dois casos, partiu
dos psiquiatras. Ao mesmo tempo, as duas situações possuem, no fundo, um caráter
experimental, preenchendo inclusive um vazio normativo, já que, do ponto de vista formal, as
normas do serviço não previam nem validavam o trabalho em equipe. Por isso, talvez, a dinâmica
de grupo fosse construída cautelosamente, com vários recuos e muitos impasses, embora as
atividades, na primeira situação, fossem mais previsíveis, até porque a hierarquia e a
centralização das decisões preestabeleciam rapidamente as condutas "adequadas" ao serviço;
enquanto que, na segunda situação, ocorria a necessidade de, a todo momento, restabelecer o
consenso diante de cada novo acontecimento. De todo modo, as experiências estavam, nas duas
enfermarias, completamente particularizadas e restritas ao local de trabalho — não encontramos
outras experiências do mesmo tipo no restante das enfermarias do HPP129.
Na verdade, nas outras enfermarias, encontramos o que poderíamos chamar de situação
anômica: as atividades de trabalho eram de praxe e, praticamente, não existiam reuniões, havendo
um reduzido engajamento por parte dos profissionais seja nas interações profissionais, seja na
melhoria do serviço. Os problemas eram resolvidos caso a caso, na maioria das vezes
individualmente, somente ocorrendo a consulta ao psiquiatra quando havia algum impasse. Como
disse informalmente uma enfermeira: "nosso método de trabalho é 'empurrar com a barriga" —
o que talvez signifique, se nossa interpretação é válida, uma espécie de repetição mecânica de
procedimentos baseados na mera manutenção do cotidiano do serviço. Tal método conferia até
algum poder e responsabilidade ao psiq uiatra, já que, em tese, a tomada de decisões ficava sob
sua alçada; contudo, na prática, o alcance de seu poder e de sua influência não ultrapassava a
129 Contando com as duas examinadas, o HPP possuía seis enfermarias ao todo.
246
simples reprodução do dia-a-dia do serviço, isto é, o poder de se continuar, como já foi dito,
empurrando tudo com a barriga...130.
Mas a descrição acima não responde a uma questão: por que em tais enfermarias não
havia, por menor que seja, um trabalho em equipe? Dissemos há pouco que a abertura ou não das
práticas dependeria fundamentalmente da iniciativa do psiquiatra. Por que, nesse caso, os
psiquiatras não tiveram a iniciativa, como no caso das duas enfermarias examinadas, de
implementar o trabalho em equipe? Eles seriam contra esse tipo de organização da atividade
profissional? Tudo indica que não. Na verdade, o problema complica-se mais ainda quando
sabemos, através das entrevistas, que todos os psiquiatras compartilham a crença de que o
trabalho em equipe é necessário e benéfico ao hospital psiquiátrico. Portanto, a resposta não se
encontra nas representações dos psiquiatras. Talvez, encontre-se nas diferentes condições de
trabalho apresentadas nas enfermarias. Contudo, salvo engano, exceto a enfermaria dos
"agitados", todas as enfermarias eram iguais, apresentando as mesmas condições de trabalho e os
mesmos tipos de profissionais. Logo, aparentemente a resposta não se encontra nas condições de
trabalho das enfermarias.
Na falta de dados suficientes para uma explicação do problema, podemos postular, pelo
menos, algumas hipóteses ou argumentações, tomando como base inclusive os depoimentos
prestados pelos psiquiatras:
Ø a iniciativa dos psiquiatras exige uma mínima implicação no trabalho. Caso a
implicação do profissional seja significativa, ocorre um engajamento e uma maior
participação nas tomadas de decisão no local de trabalho. Assim, dois psiquiatras
colocaram que não se sentiam implicados no trabalho do HPP. "Eu faço o que
tenho que fazer, mas não tenho tempo para mais nada...", afirmou um deles,
concluindo que construir um espaço onde se possa trabalhar em equipe exige
esforço e tempo — a questão do tempo, aqui, é fundamental, pois a implicação
envolve um mínimo de investimento profissional no trabalho, e isso demanda
tempo. Ora, tais psiquiatras tinham três jornadas de trabalho: hospital público,
130 Como disse um psiquiatra, numa entrevista informal: "você me pergunta se tenho algum poder... Mas que poder é esse se não consigo fazer nada do que quero?!"
247
hospital privado e consultório — nesse sentido, tinham que escolher qual o
trabalho mais adequado aos seus interesses; logo, escolher qual o serviço que
poderia produzir- lhes a maior implicação. A contabilidade do tempo e o interesse
dos entrevistados, assim, esclarece o raciocínio: é preferível aplicar o escasso
tempo de investimento profissional, base da implicação, no serviço que melhor
valoriza, segundo os entrevistados, a qualificação profissional: o consultório! A
prioridade, assim, recai completamente no trabalho liberal em detrimento do
serviço público 131 — por isso, inclusive, os entrevistados faziam o possível para
que a maior jornada de trabalho fosse realizada no consultório;
Ø pelo que interpretamos do discurso dos entrevistados, a questão tem, inicialmente,
um caráter pragmático, tipo custo-benefício: qual o serviço que posso mais me
implicar, isto é, em qual investir o maior tempo de investimento profissional?
Depois, o argumento toma outra direção: qual o serviço que valoriza mais minha
qualificação profissional? Ao colocarem o problema da valorização profissional,
os entrevistados querem, pelo que interpretamos, enfatizar principalmente a
valorização salarial: dedicar-me-ei ao serviço onde obtenho a maior renda.
Contudo, se no primeiro momento a renda é um critério importante, no segundo
momento a valorização profissional possui uma relação direta com a questão da
autonomia profissional: dedicar-me-ei ao serviço que me oferecer a maior
autonomia profissional. Inclusive, um dos entrevistados enfatizou de sobremaneira
a autonomia profissional, argumentando que é impossível trabalhar, nas atuais
condições de trabalho, de forma autônoma no HPP. Valorização salarial e
autonomia profissional, assim, definiriam a escolha dos entrevistados,
determinando o seu grau de implicação no serviço;
Ø vale sublinhar que a defesa da autonomia profissional não significa pari passu a
defesa da profissão liberal, aqui representado pelo consultório, pois os
entrevistados colocaram explicitamente que, se fosse mais valorizado o salário e a
autonomia no serviço público, priorizá- lo-iam enquanto tal — os entrevistados
foram unânimes em defender uma compatibilidade entre melhores salários,
131 Os dois psiquiatras que implementaram o trabalho em equipe nas suas enfermarias tinham duas jornadas de trabalho: o serviço público e o consultório.
248
autonomia profissional e dedicação exclusiva. A escolha seria pragmática, na
realidade, pela seguinte razão: o serviço é escolhido segundo a valorização da
renda e da autonomia, sem que, aparentemente, representações sobre o modo de
trabalho profissional, liberal ou assalariado, possuam algum peso. Não que tais
representações não tenham importância — justamente ao contrário!132 Contudo,
no caso da maioria dos entrevistados, a defesa da autonomia não implica
necessariamente a defesa de uma modalidade de trabalho profissional;
Ø enfim, o último argumento refere-se às interações profissionais. O psiquiatra
responsável pelo "pavilhão dos agitados" afirmou que o maior obstáculo eram os
próprios profissionais, incluindo ele mesmo, pois não estavam "qualificados" para
a implementação do trabalho em equipe. Argumentava ainda que se referia
especificamente ao trabalho na sua enfermaria, cujas características exigiam uma
qualificação diferente das demais. Pelo que interpretamos, no seu discurso existe o
indício de que a atividade em equipe necessita de uma "mentalidade" adaptada à
constante interação entre os profissionais. Seu maior exemplo é a enfermagem,
cujo quadro profissional é composto, na maioria absoluta, de auxiliares de
enfermagem sem qualificação superior e, por isso, incapazes de realizarem um
trabalho com um mínimo de autonomia, base de uma mentalidade, segundo o
entrevistado, adaptada ao trabalho em equipe. Sem autonomia, os auxiliares de
enfermagem precisam, para a realização de suas tarefas, de uma pressão normativa
alicerçada na hierarquia profissional — em outras palavras, precisam obedecer
estritamente as ordens de seus superiores, os médicos. A última colocação vai de
encontro ao fato de que, nas enfermarias onde funciona o trabalho em equipe,
existiam auxiliares de enfermagem sem qualificação superior. O que os faria,
assim, trabalharem equipe? O que achamos interessante, ao contrário, pois
explicaria melhor o fenômeno, seria a percepção de que existe uma relação entre
um tipo de mentalidade e o trabalho em equipe — determinadas representações
sobre o modo de trabalho favoreceriam o trabalho em equipe, bem como,
132 Os dois psiquiatras — responsáveis pelas enfermarias onde há trabalho em equipe — possuem um discurso de valorização do serviço público. Em tal situação, a valorização ocorre independentemente do papel dado à renda e à autonomia.
249
acrescentaríamos, determinadas práticas que envolvessem, por exemplo, uma
participação consensual beneficiariam também essa forma de atividade;
Os argumentos acima podem ser utilizados para explicar por que os psiquiatras daquelas
duas enfermarias tiveram a iniciativa de implementar o trabalho em equipe. Primeiro, eles "só"
têm duas jornadas de trabalho: HPP e consultório, tendo assim mais tempo de investimento
profissional, logo, de implicação no serviço; segundo, defendem o trabalho em equipe, possuindo
a "mentalidade" adequada; terceiro, e talvez tão importante quanto, todos os dois priorizam o
serviço público em detrimento do privado e do liberal. Significativamente, todos os dois, além de
psiquiatras, fizeram a residência médica em medicina social, cuja ênfase no serviço público é
bastante acentuada. Embora aufiram mais recurso financeiro no consultório, a renda não possui
uma significação suficiente para valorizar o trabalho liberal ao ponto de priorizá- lo em prejuízo
do trabalho no serviço público. Certo, o consultório é utilizado para a complementação da renda,
representando inclusive a maior contribuição financeira, mas não pode concorrer com a
valorização vocacional dada ao trabalho no serviço público133. Enquanto nos exemplos anteriores
a escolha do serviço era determinada por critérios de renda e de autonomia, aqui é a
representação do serviço, se público ou liberal (ou, ainda, privado), que é fundamental.
Não foi apenas em relação ao serviço público que encontramos alguma valorização
vocacional, já que o mesmo aconteceu em relação ao trabalho no consultório. Muitos
entrevistados afirmaram que o consultório é o melhor serviço para a realização da vocação
médica, pois é justamente aquele que garante a autonomia profissional. Contudo, não
encontramos numa vocação, digamos assim, para o trabalho no serviço privado. Seria como se o
trabalho numa clínica privada fosse esvaziado de vocação ou missão; como se a questão de
trabalhar em tal serviço fosse meramente pragmática, isto é, empregatícia. De fato, segundo
alguns entrevistados, no serviço privado, eles são meros empregados seguindo as regras do
serviço, sem que ocorra nenhum investimento pessoal no trabalho, exceto o compromisso
profissional de realizar as tarefas de forma eficiente. Enfim, não se sentem "implicados" — pode-
se indagar, evidentemente, até onde vai essa não implicação no serviço privado. Certamente, essa
133 Muitos entrevistados colocaram o trabalho no serviço público como um "ideal", portanto investido de missão e vocação.
250
situação não tem relação com toda e qualquer clínica privada em psiquiatria, mas sim com as
concretas, justamente as observadas na pesquisa, e sua forma de organização de trabalho; logo,
pode-se deduzir que, oferecendo uma maior autonomia profissional ao psiquiatra, haveria uma
maior implicação no serviço. De qualquer forma, fica a questão: por que o serviço privado é
desvalorizado? Pelo que interpretamos das entrevistas, o serviço privado é sumamente
desvalorizado na formação universitária, enquanto que o setor público e liberal são colocados
como verdadeiras escolhas vocacionais. As clínicas privadas são, inclusive, identificadas ao lucro
e à falta de autonomia profissional — apesar da precariedade das condições de trabalho no
serviço público, em particular no hospital fechado, muitos entrevistados relataram que se sentem
"explorados" no serviço privado, a despeito do fato de que ali muitas vezes ganhassem mais.
Se tais inferências tentam explicar a implicação do profissional nos serviços psiquiátricos,
prestaremos a atenção agora a um problema correlacionado: o modo de participação dos
profissionais. Como tal, está relacionada às questões discutidas acima, pois o modo de
participação pode elucidar alguns problemas concretos da implicação. Observamo- lo em todos os
serviços; no caso do hospital fechado, examinamos todas as enfermarias, inclusive definindo a
participação nas enfermarias, onde não há trabalho em equipe, como "anômica", fazendo assim
contraponto às duas outras formas de participação já assinaladas, a consensual e a normativa. De
nossas observações, retiramos seis itens que podem ser definidos como "indicadores de
participação". Para cada item, fizemos a descrição do modo de participação.
Função das reuniões: as reuniões são situações privilegiadas para denotar o modo de
participação, pois podemos, através da observação, perceber o tipo de enquadramento que sofre o
participante. Nas duas enfermarias onde havia trabalho em equipe, as reuniões aconteciam
diariamente, enquanto nas outras, semanalmente; no hospital-dia, as reuniões eram diárias; na
clínica privada, semanais. Assim, percebemos as seguintes características e diferenças:
Consensual: transmissão das informações; troca e confronto de opiniões; procura de
soluções, tomada coletiva e respeito às decisões — não encontramos, de fato, equipe alguma sem
coordenação médica. De qualquer forma, na participação consensual, a gestão do médico é
menos hierarquizada do que na participação normativa, principalmente nas condições de trabalho
do hospital-dia;
251
ü normativa: transmissão de informações; troca de opiniões a partir da avaliação do
psiquiatra; hierarquia na tomada de decisões;
ü anômica: transmissão dispersa de informes; assentimento da rotina do serviço;
hierarquia na tomada de decisões.
Liderança: observamos o modo pelo qual eram tomadas as decisões no grupo. A observação da liderança mostra bem como ocorre a circulação das informações, como se toma as decisões e qual o peso da hierarquia:
ü consensual: visivelmente, a liderança era do psiquiatra, embora o entrevistado, no
discurso, admitisse um rodízio na coordenação da equipe. De qualquer forma,
pode-se dizer que a liderança era do tipo democrático, baseado fundamentalmente
na confiança do grupo. No hospital-dia, apesar da nítida coordenação médica,
durante as discussões na reunião, encontramos vários líderes informais, a começar
pelo psicólogo;
ü normativa: o psiquiatra possui aqui o monopólio da coordenação da equipe. Não
há a possibilidade de uma rodízio entre os profissionais. A liderança é firmemente
ancorada na hierarquia profissional, em que o psiquiatra tem uma predominância
evidente;
ü anômica: há hierarquia sem liderança. No fundo, o que acontece é um "laisser-
aller" — cada um assume a rotina do serviço, dá continuidade ao trabalho, pouco
se importando com o serviço do outro.
Comunicação social: aqui, demos a atenção, digamos assim, à forma da comunicação.
Observamos as assimetrias no processo comunicativo, a ocorrência de "ruídos e dissonâncias":
ü consensual: acesso livre à discussão; escuta dos argumentos; criatividade na
elaboração das respostas; participação no debate; desacordos sem
constrangimentos; expressão dos conflitos; escuta dos argumentos — vale dizer
que, devido à liderança consuetudinária do psiquiatra, raramente percebemos
252
conflitos ou desacordos frontais com o líder, exceto em algumas situações bastante
circunscritas nas reuniões do hospital-dia;
ü normativa: passividade (mutismo) na discussão, com exceção do psiquiatra;
participação incipiente no debate; esquiva dos conflito e dos desacordos; bloqueio
dos argumentos; conformismo e espera da decisão do líder;
ü anômica: ausência de debate; ausência de conflito; pass ividade e espera ansiosa do
final da reunião;
Tomada das decisões: observamos essencialmente como era obtida a decisão, entendida
como resultado da discussão:
ü consensual: as decisões eram tomadas de forma coletiva, embora não devamos
subestimar o peso da palavra do líder na argumentação e na influência no
resultado da discussão. Como na discussão ocorrem polarizações, a tendência é a
formação de pequenos grupos, apresentando opiniões diferentes, até que um ou
outro grupo apresente uma maior influência no resultado do debate. Enfim, a
decisão era tomada consensualmente, a partir de um leque de soluções;
ü normativa: hierárquica, embora em assuntos incontroversos a tomada de decisão
pudesse ser coletiva. Nessa situação, como dificilmente há polêmica, a influência
ocorre via a percepção de que a maioria está de acordo com determinada posição.
A decisão era tomada por compromisso, seguindo a maioria e a hierarquia;
ü anômica: hierárquica. Mesmo em assuntos incontroversos, a expectativa fica toda
centrada na tomada de decisão do psiquiatra. Há uma conduta passiva, no sentido
de seguir de forma acrítica a decisão hierárquica;
Engajamento na discussão: observamos aqui a qualidade da implicação dos participantes e
a forma do engajamento;
ü consensual: engajamento público e implicação dos membros do grupo na
discussão;
ü normativa: engajamento mitigado e pouca implicação;
ü anômica: ausência de engajamento e implicação.
253
Condutas: este item é um prolongamento do anterior, pois aqui observamos um tipo de
comportamento relacionado ao engajamento e à implicação — uma espécie de descrição da
postura do engajamento no grupo. Seriam diversas variáveis que corporificam o engajamento e a
implicação:
ü consensual: assiduidade nas reuniões; exposição de opiniões pessoais; procura do
convencimento do colega; sugestão de soluções; gestão dos conflitos e desacordos;
respeito da decisão e realizá- las na prática;
ü normativa: moderada assiduidade nas reuniões; opiniões de compromisso; procura
da maioria e do argumento "médio"; passividade na sugestão de soluções; esquiva
do conflito;
ü anômica: baixa assiduidade nas reuniões; falta de opiniões e de argumentação;
espera da decisão hierárquica; indiferença às soluções apresentadas.
Pode-se facilmente inferir de toda essa discussão que o modo de participação tem uma
relação com a implicação. Quanto mais anômica a participação, provavelmente menor será a
implicação; quanto mais consensual, maior a implicação. Como vimos, a implicação do
entrevistado possui outras explicações, mas é evidente que, numa situação anômica, o estímulo à
participação será menor e, portanto, menor sua implicação. Pode-se deduzir que, em geral, quanto
maior a participação, maior a implicação; contudo, tal relação dependerá do contexto, isto é, do
modo concreto em que ocorre a participação. E, se existe uma relação entre participação e
implicação, provavelmente há também uma relação entre o modo de participação consensual e o
trabalho em equipe — o tipo consensual favorece as atividades em equipe.
Porém, até que ponto podemos deduzir do modo de participação o engajamento? Nossa
impressão é que nossos "indicadores de participação" apontam muito mais para a forma ou estilo
da participação do que propriamente a alguma determinação do engajamento dos profissionais.
Engajamento envolve implicação e participação, mas principalmente supõe solidariedade com
alguma representação do grupo, isto é, envolve atitudes concretas. Dessa forma, para deduzir o
engajamento dos profissionais, construímos "índices" de engajamento baseados no
254
comportamento dos participantes das reuniões134. A construção dos índices, reconheçamos, peca
por sua arbitrariedade, mas, apesar da consciência de suas limitações, foi-nos útil como um
instrumento descritivo do engajamento. O que encontramos, de todo modo, não foi uma surpresa,
mas sim a corroboração de que as práticas consensuais favorecem o engajamento. Senão
vejamos:
• primeiro, inferimos alguns comportamos que julgamos importantes para uma
reunião em grupo: 1) assiduidade nas reuniões; 2) atenção durante a falação do
outro; 3) expressão de opinião pessoal; 4) persuasão do outro; 5) sugestão de
soluções; 6) respeito às decisões e sua realização na prática; 7)gestão da polêmica
e do conflito; 8) procura da liderança na discussão;
• segundo, demos pesos (de 1 a 5) diferenciados aos índices: peso 1 para os índices
1) e 2); peso 2 para os 3) e 4); peso 3 para os 5) e 6); peso 4 para o índice 7) e 5
para o 8).
• terceiro, produzimos uma escala com notas de 0 a 3: ausente, fraco, moderado,
forte;
• quarto, produzimos uma escala com as seguintes notações percentuais: muito
engajado (> 80); engajamento forte (60 a 80); engajamento moderado (40 a 60);
engajamento fraco (30 a 40); nenhum engajamento (< 30)
• quinto, produzimos uma tabela com os resultados:
Índices Peso Hospital fechado (enferma rias sem trabalho em equipe)
Hospital fechado (enfermarias com trabalho em equipe)
Hospital-dia Clínica privada
assiduidade nas reuniões
1 Fraco Moderado forte Forte
atenção durante a falação do outro
1 Fraco Moderado forte Moderado
expressão de opiniã o pessoal
2 Fraco Moderado forte Fraco
persuasão do outro 2 Ausente Moderado forte Fraco sugestão de soluções
3 Ausente Moderado moderado Fraco
respeito às decisões 3 Fraco Moderado moderado Moderado
134 Seguimos, aqui, o trabalho de Blin (1997).
255
e sua realização na prática gestão da polêmica e do conflito
4 Ausente Moderado moderado Fraco
procura da liderança na discussão
5 Ausente Fraco moderado Fraco
Resultado Máximo: 63
07: nenhum engajamento (< 30)
37: engajamento moderado (58%)
48: engajamento forte (76%)
27: engajamento fraco (43%)
Assim, encontramos um engajamento forte justamente no hospital-dia, local onde existem
práticas consensuais, e, claro, numa situação onde imperam práticas anômicas, o engajamento
não existe enquanto tal. Vale frisar que colocamos no mesmo tópico as duas enfe rmarias do
hospital fechado, embora tenham, como já analisamos anteriormente, diferenças no modo de
participação, principalmente por causa das diferentes formas de condução do trabalho em equipe
realizadas pelos dois psiquiatras. Caso separássemos as duas enfermarias, aplicando os critérios
expostos acima, veríamos que a enfermaria, onde a condução das atividades favorece uma prática
consensual, apresentaria como resultado um engajamento moderado para forte, enquanto na outra
enfermaria, onde há a predominância de uma prática normativa, o resultado seria o de um
engajamento fraco.
Mas, se a implicação, o modo de participação e o engajamento têm uma relação com o
trabalho em equipe, o que dizer das representações dos entrevistados? Ora, de toda essa
discussão, podemos concluir que a opinião dos entrevistados a respeito do trabalho em equipe
teve, na prática, uma influência relativamente marginal. Se, de um lado, o trabalho em equipe vai
depender prioritariamente de uma decisão institucional; do outro, caso não seja uma norma
institucional, tudo vai depender da implicação, do engajamento e do modo de participação no
qual está inserido o psiquiatra. Todavia, embora marginal na prática, as representações dos
entrevistados revelaram importantes questões identitárias. Inclusive, não deixa de ser importante
assinalar que houve uma grande polarização: enquanto 26 entrevistados defenderam uma equipe
sem a obrigatoriedade de uma coordenação médica135, 21 entrevistados sustentaram a
necessidade da mesma — já três entrevistados assumiram uma posição sui generis: trabalho em
135 Haveria, no caso, um rodízio na coordenação.
256
equipe sem funções profissionais, em que todas as diferenciações e especializações seriam
superadas pela atividade coletiva.
Em relação aos dois primeiros grupos, foi notória a preocupação, quase uma obsessão no
segundo grupo, em delimitar as fronteiras profissionais. A inquietação do primeiro grupo seria a
seguinte: a equipe pode trabalhar sem coordenação médica, na base do rodízio, contanto que seja
respeitada a competência de cada profissional. Nesse sentido, todo saber especializado deve ter o
seu locus apropriado, desde que isso não traga privilégio algum. A equipe é multiprofissional,
sendo um espaço de igualdade entre as profissões, onde não há propriamente uma hierarquia e
sim uma horizontalidade baseada na função profissional. "Cada macaco no seu galho" — como
fez alusão um entrevistado. Nessa visão, a autonomia profissional é garantida pela independência
de cada função e pelo respeito que se deve a cada saber. A palavra-chave é a complementaridade
de competências, sem misturas, com fronteiras nítidas.
Já do grupo que defende a equipe com coordenação médica, pode-se dizer que sua
inquietação é mais premente, beirando a ansiedade. A coordenação da equipe é valorizada,
apresentando três exigências: responsabilidade, qualificação e saber profissional abrangente. Ora,
todas as três determinações, segundo os entrevistados, são características marcantes do médico.
Pelo que interpretamos, basicamente o argumento seria o seguinte: como o saber médico (no
caso, o saber psiquiátrico) é o mais abrangente, ponto de referência inclusive das outras
profissões de saúde, seria inevitável que o médico tenha uma maior qualificação e assuma uma
maior responsabilidade. Como disse um entrevistado: é natural que o médico seja o líder, pois é
o mais qualificado — a maior qualificação implica um saber mais abrangente do que todos os
outros do campo da saúde.
Noutras entrevistas, a mediação entre o saber e a responsabilidade foi realizada a partir do
reconhecimento profissional. O saber médico é mais valorizado, logo, mais reconhecido. Mas,
nas argumentações, a responsabilidade não adviria necessariamente do maior status da medicina,
e sim da maior cobrança pela qual é submetida. Sendo assim, a medicina não só teria mais status,
como também seria, por causa disso, mais cobrada e exigida, logo, teria mais responsabilidade.
Com efeito, o problema da cobrança foi, várias vezes, ressaltado pelos entrevistados: Quem
responde pelo paciente é o médico, não é a enfermagem, nem outro profissional — argumentou
257
um entrevistado. Equipe com rodízio é uma beleza, mas qualquer bronca quem vai responder é o
médico — acrescentou ainda outro psiquiatra. De certa maneira, através do argumento da
cobrança, os entrevistados escapam, principalmente num ambiente onde existe uma sensibilidade
igualitária, da percepção de que a maior responsabilidade da medicina viria do seu status ou
privilégio. Enfatizar a relação entre a responsabilidade e a cobrança tem como estratégia
legitimadora um raciocínio meritocrático: a medicina implica um saber mais abrangente e a
necessidade de uma vasta qualificação, logo, uma competência que engloba ou, pelo menos,
condiciona o campo inteiro da saúde. O reconhecimento profissional, assim, viria mais da
competência de seu saber do que propriamente de seu status — o qual seria um subproduto
meritocrático. Saber ? reconhecimento ? competência ? responsabilidade seria um raciocínio
mais legítimo do que privilégio ou status ? reconhecimento ? responsabilidade.
As diversas argumentações a respeito da responsabilidade da medicina escamoteiam,
também, outro espinhoso problema: a questão do poder. Nenhum entrevistado desse grupo
argumentou que a coordenação da equipe deveria ser médica por causa do maior poder médico.
Não existiu um raciocínio do tipo: maior poder, maior responsabilidade. No máximo, foi
assinalado que o médico tem mais recurso, dado sua qualificação mais ampla, e assim uma maior
capacidade em exercer uma coordenação de uma equipe multiprofissional. O termo "recurso"
pode no limite ser identificado com o de "poder", contudo, o sentido parece ser mais pragmático,
relacionado à capacidade em resolver problemas e encontrar soluções. Como insinuou um
entrevistado, ao ter mais recurso e capacidade, o médico teria uma maior aptidão à
"administração" de uma equipe. Os termos "recurso" e "administração" têm uma função
semelhante à da noção de "cobrança", pois, enquanto esta última ameniza a questão do status da
medicina e sua relação com a responsabilidade, os dois termos escamote iam um poder médico
identificado à dominação.
Os entrevistados, ao defenderem a necessidade da coordenação médica, estavam
preocupados em delimitar as competências profissionais. Se, no grupo anterior de entrevistados,
admitiu-se um rodízio na coordenação, embora fosse sempre ressaltado que isso não devia apagar
as fronteiras entre as profissões, neste grupo, a exigência da delimitação está relacionada à
manutenção da coordenação nas mãos dos médicos. Seria como se, sem coordenação médica,
ocorreria inevitavelmente a mistura de competências e, conseqüentemente, uma diminuição
258
sensível da performance da equipe. Por que tanto medo da mistura e tanta preocupação em
preservar as diferentes competências? Inferimos que há, aqui, um medo difuso e velado de que o
psiquiatra seja "despossuído" de seu saber e competência. O psiquiatra pode-se transformar,
segundo um entrevistado, num "passador" de medicamentos ou, ainda, tornar-se um profissional
igual a qualquer outro da equipe, perdendo sua identidade e especificidade. Acontecendo a
"despossessão", o procedimento médico-psiquiátrico ficaria espalhado pelo coletivo e, assim, a
tríade fundamental da medicina — diagnóstico/prognóstico/tratamento — seria realizada
coletivamente e não mais através da performance individual de um profissional.
O medo da despossessão não é sintoma apenas desse grupo de entrevistados; na verdade,
encontramo-lo entre quase todos os psiquiatras entrevistados, com exceção dos três já assinalados
que defenderam uma equipe sem delimitação de funções profissionais. O medo, entretanto, é
mais pronunciado entre aqueles que exigem a coordenação médica. Mas, afinal, o medo tem
algum fundamento na realidade ou é uma ilusão, quase uma paranóia? Vários entrevistados
afirmaram que o medo baseia-se numa possibilidade que pode tornar-se realidade daqui a algum
tempo. Ora, numa equipe de saúde mental interdisciplinar, por que a enfermagem ou a psicologia
não poderiam emitir diagnósticos? E o tratamento e o prognóstico? Por que tais procedimentos
seriam monopólio dos psiquiatras? Um entrevistado alegou que, em tese, não há interdito técnico
algum para que um psicólogo, por exemplo, possa dar um diagnóstico psiquiátrico. E que seu
medo, caso seja permitido o fim das delimitações das tarefas profissionais, é que ocorra uma
diminuição considerável da valorização profissional do psiquiatra. O psiquiatra seria "rebaixado"
(sic), tendo o mesmo valor de um enfermeiro ou de um psicólogo. Mesmo a parte clínica já é
realizada por um clínico... O que iria sobrar pra gente? — disse o entrevistado. Iria sobrar
apenas a administração de medicamentos, pois até a psicoterapia teria a concorrência dos
psicólogos.
Na realidade, o nó da questão seria justamente esta: a possibilidade técnica ou não da
enfermagem ou da psicologia, por exemplo, darem conta de alguns, quando não da totalidade dos
procedimentos médicos. Com exceção de quatro entrevistados (o logo acima descrito e os outros
três já citados), todos os entrevistados colocaram que as tarefas realizadas por um psiquiatra
exigiam justamente a qualificação e a especialização de um... psiquiatra. Não haveria a
necessidade, para o bom funcionamento da equipe, de uma mistura de competências, já que
259
tecnicamente, para a realização das tarefas, precisa-se de vários profissionais especia lizados, com
suas respectivas qualificações. O que existiria seria uma complementaridade técnica entre as
diversas profissões — uma do tipo igualitária, sustentada pelos defensores do rodízio, e uma
outra do tipo "complementaridade com predominante", em que a predominância estaria com o
psiquiatra, visto possuir a maior qualificação, exigindo-se, por isso, a coordenação médica. Neste
último caso, pode-se perceber que a defesa da coordenação médica seria a garantia da
permanência do status profissional do psiquiatra, justamente porque sua qualificação técnica é
imprescindível ao trabalho da equipe — sem médico, não tem trabalho. Tire qualquer outro e o
trabalho ainda pode continuar... (entrevistado). O status adviria da exigência técnica e não de um
privilégio ou do poder. É o bom funcionamento da equipe que não pode prescindir do papel do
médico. Com tal argumento, escapa-se do constrangimento em defender o status da medicina via
privilégio ou poder. Não haveria, como disse um entrevistado, um problema ético. O argumento
técnico torna-se um argumento meritocrático e, como tal, basta a si mesmo, não infringindo
nenhuma sensibilidade igualitária. Pois seria muito mais eficiente defender a coordenação médica
através de um argumento baseado no mérito do que utilizando outras fontes de legitimação — no
geral, fundar o status ou o reconhecimento profissional via um discurso baseado no privilégio ou
no poder compromete a legitimidade da profissão numa sociedade de base igualitária.
Pelo que deduzimos das entrevistas, se as representações dos entrevistados sobre o
trabalho em equipe trouxeram à tona algumas questões identitárias, o mesmo se pode dizer a
respeito das opiniões sobre as suas relações com os outros profissionais da saúde mental.
Comparando as opiniões dos entrevistados que trabalhavam nos serviços observados com os
outros que responderam às perguntas, percebemos algumas diferenças:
Ø os psiquiatras que trabalham no HPP e na clínica privada afirmam que sentem uma
dificuldade profissional com a enfermagem, em particular com os auxiliares de
enfermagem. A razão alegada seria a sua má qualificação profissional. Muitos
alegaram que tal problema dificulta, e muito, o trabalho em equipe, outros
disseram que o verdadeiro problema é o contato diário, envolvendo hierarquias e
subordinações, nas condições de trabalho como as existentes, por exemplo, no
HPP. Vale lembrar que, na prática, os psiquiatras quase não têm contato com a
260
psicologia, enquanto que, na clínica privada, a hierarquia é explicitamente
favorável à psiquiatria;
Ø nas entrevistas, a maioria absoluta dos entrevistados que relataram dificuldades
com a enfermagem eram "clínicos". No discurso, a queixa central resume-se à má
qualificação da enfermagem;
Ø os psiquiatras que trabalham no hospital-dia, apesar de algumas queixas em
relação à enfermagem, colocaram que a principal dificuldade nas relações
profissionais seria com a psicologia. Aqui, as queixas são exuberantes: os
psicólogos são "invasivos", entrando indevidamente na área de competência
médica; não conhecem os limites da doença mental, pois pensam que podem
interpretar arbitrariamente um sintoma; pensam que são os mais qualificados e os
atores principais do serviço; buscam o tempo liderar as reuniões. Percebemos aqui
o sinal, pelo menos no discurso, de uma preocupação com uma delimitação de
fronteiras profissionais e de um medo da perda do status da psiquiatria. Apesar das
queixas, quando da nossa permanência no serviço, não observamos atrito algum;
na realidade, percebemos um evidente esforço de cooperação. Nas reuniões, é
verdade, observamos aqui e ali pequenas querelas, polêmicas pontuais, mas nada
que revelasse algum antagonismo explosivo. Dada as queixas, só podemos supor
que nossas observações, infelizmente, passaram ao largo do problema ou,
pensando em outra hipótese, os antagonismos são mitigados na prática e revelados
apenas no discurso. De todo modo, num ambiente "relacional", onde a psicologia,
em tese, teria mais relevância, onde os psiquiatras têm formação analítica e onde
as práticas consensuais favorecem as polarizações e os conflitos, embora também
favoreçam a resolução dos mesmos, os confrontos entre psicólogos e psiquiatras
não seriam uma surpresa.
Ø nas entrevistas, as queixas contra a psicologia foram principalmente apanágio dos
psiquiatras "biomédicos". Na verdade, as queixas eram nem tanto contra a
psicologia e sim contra a psicanálise. As críticas são semelhantes às descritas
acima, talvez um pouco mais virulentas;
Ø nas entrevistas, os psiquiatras psicanalistas reclamaram mais dos médicos e dos
próprios psiquiatras do que da psicologia. A dificuldade central seria que os
261
médicos e os psiquiatras, por causa de sua formação biológica, não priorizam o
"relacional", apresentando problemas em trabalhar em equipe, nos
relacionamentos profissionais e nos com os pacientes.
Inferimos da discussão acima que o convívio no ambiente de trabalho pode ser decisivo
nos discursos sobre as relações profissionais. Tal fato explica porque psiquiatras de formação
analítica criticaram a psicologia, enquanto outros com a mesma formação, mas sem
apresentarem, no trabalho, uma vivência relevante com psicólogos, direcionaram as críticas aos
médicos e aos psiquiatras, sendo inclusive coerentes com sua representação de doença mental.
Provavelmente, psiquiatras "clínicos", trabalhando num hospital-dia, apresentariam mais queixas
contra a psicologia do que contra a enfermagem, justamente porque, num tal ambiente, as
superposições profissionais acontecem freqüentemente e as disputas profissionais são (quase)
inevitáveis. Parece que as representações que os entrevistados têm das relações profissionais
possuem um evidente condicionamento do contexto, até por motivos óbvios, já que as relações,
quando vivenciadas, e por esse fato mesmo, produzem representações bem mais impregnantes do
que uma opinião apriorística sobre o assunto.
Fechando, enfim, a discussão, podemos inferir que as representações e as práticas
profissionais são dependentes da força dos sistemas normativos da instituição. A autonomia do
profissional vai depender do efeito que tal coerção produz na sua prática. A pressão normativa,
caso seja inibidora da autonomia, afasta a prática da representação, podendo até implicar um
antagonismo. Geralmente, a obediência institucional ou a conformidade ao grupo prescrevem e
orientam, via as normas do serviço, as práticas. Quando há efetivamente uma maior autonomia,
representações e práticas formam "sistema", possuindo uma circularidade sem contradições.
262
XII. Capítulo VII
A. Trajetória e Vocação
Neste tópico, através da análise das entrevistas, faremos uma discussão sobre a relações
entre trajetória e vocação na formação identitária. Analisaremos o delicado problema da razão
(ou das razões) dos entrevistados terem escolhido a medicina, em particular a psiquiatria, como
profissão, e se tal escolha possui alguma relação com a trajetória do profissional. Problema
delicado porque a "escolha" da profissão, muitas vezes, é afirmado de uma forma tão subjetiva
quanto idiossincrática, sendo assim difícil para o pesquisador inserir o discurso numa
contextualização menos psicológica e menos biográfica. Por isso, achamos interessante
problematizar a "escolha" da profissão em relação à trajetória social, tentando encontrar, digamos
assim, os vínculos sociais da opção profissional dos entrevistados.
Não quisemos, com isso, encontrar uma relação necessária entre trajetória e vocação; na
verdade, nosso objetivo findou sendo o de problematizar a própria relação. Assim, pelo que
percebemos na análise do material empírico, o conteúdo da relação entre trajetória e vocação não
pôde ser determinada a priori, sendo na realidade uma questão empírica — dessa forma, nada
impede que, no caso de um determinado entrevistado, a sua trajetória biográfica e social tenha
determinado a sua escolha profissional... ou não: nada impede também que a escolha profissional
tenha tido uma relação indireta ou mesmo contingente com a trajetória do entrevistado — no
mundo contemporâneo, em diversas situações, pode-se perceber a trajetória do indivíduo como o
produto do encontro contingente de várias séries causais independentes entre si; nesse sentido,
para alguns indivíduos, vale a divisa de Ortega Y Gasset: "eu sou eu, e minhas circunstâncias".
Certo, essa é uma situação não tão freqüente, pois relacionada a uma estrutura de escolhas bem
mais ampla do que a que vigora normalmente, mas potencialmente mais freqüente em sociedades
onde reinam uma crescente democratização, aliada a um aumento do processo de individuação.
Enfim, não negamos que exista uma relação entre trajetória e vocação, pois não negamos a
relação enquanto tal, afirmamos apenas que a sua natureza não pode ser determinada antes que
seja analisada empiricamente.
263
Ao mesmo tempo, não inferimos da origem social do entrevistado a sua trajetória, embora
seja interessante como ponto de partida na análise. Não há um apriorístico caminho traçado,
determinado pela posição social de origem do entrevistado. Não há imposição de um destino.
Dependendo de qual sistema social estamos nos referindo e de que modo foi construída a
trajetória, a origem social pode ter um peso maior ou menor na formação identitária do indivíduo
— peso que vai da determinação à probabilidade, do destino à escolha. Igualmente, pode-se
deduzir também que, quanto mais limitado o leque de escolhas, mais determinante a origem
social e, quanto mais amplo, mais o peso causal da determinação esfumaça-se e se transforma
numa mera probabilidade.
Em relação à situação de nossos entrevistados, inferimos que, pela forma mesma como se
estrutura a escolha profissional, geralmente num contexto de acentuada individuação e
especialização na divisão social do trabalho, logo, inserida numa estruturação mais ampla de
escolhas, a origem e a posição sociais têm uma relação probabilística com a escolha da profissão
— como a profissão insere-se numa complexa divisão social do trabalho e se alicerça num
acentuado processo de individuação (incluindo neste o sistema educacional), logo, inscreve-se na
estruturação de um amplo leque de escolhas vocacionais. Nesse sentido, dando um exemplo e
fazendo uma comparação, geralmente o sistema de escolha de um filho de um pequeno agricultor
é restrito o suficiente para determinar sua condição futura e presente de pequeno agricultor,
enquanto um filho de um médico, inserido num sistema educacional e de escolha profissional —
portanto, possuindo uma estruturação mais ampla de escolha —, embora tenha uma probabilidade
razoável de se tornar ele mesmo um médico, possui uma acentuada margem de manobra de não
sê-lo. Por isso, não é surpreendente que a escolha profissional tenha uma maior probabilidade de
acontecer em setores superiores da estratificação social, na qual, para falar como Bourdieu
(1980), a possessão de vários tipos de capitais (econômico, social e simbólico) permite um leque
amplo de escolhas, incluindo as profissionais.
Talvez, por isso, não tenha sido uma surpresa que todos os entrevistados possuam uma
filiação (pais) de "classe média"136, embora a coisa mude de figura quando analisamos a filiação
136 Não problematizaremos a noção de "classe média". No caso, entendemos como "classe média" os setores médios da estratificação social, incluindo assalariados (principalmente funcionários públicos de nível médio e superior, e profissionais assalariados) e pequeno-burgueses (principalmente, pequenos
264
anterior (avós), cuja proveniência dos estratos inferiores da estratificação social foi importante137
— 15 entrevistados tiveram avós incluídos nos setores "populares" ou de baixa renda. E, vale
sublinhar, estes últimos eram todos provenientes do interior do estado. Para analisar melhor tais
questões, vale a pena discutir a direção geral da filiação encontrada:
Para os 15 entrevistados que tiveram seus avós incluídos nos setores ditos populares, a
direção geral da filiação é clara: há uma nítida mobilidade social ascendente. Dos avós aos pais,
percebemos a transformação de famílias, antes inseridas nos setores mais inferiores da
estratificação social, em famílias de "classe média". A ascensão social segue diversas estratégias,
mas, pelo que interpretamos, o caminho passa principalmente por um ponto de partid a
fundamental: a passagem da condição de pequeno agricultor e de artesão para a condição de
comerciante138. Segundo os entrevistados, a educação não cumpriu um papel relevante nessa
passagem, e sim a poupança dos avós, permitindo aos pais a entrada no comércio. Embora os pais
desses entrevistados tivessem, na maioria absoluta, o segundo grau completo, não foi tal fator,
segundo os entrevistados, isto é, a entrada no circuito escolar, a condição fundamental para a
ascensão social dos pais em relação aos avós, e sim, repetimos, a entrada no comércio ?
portanto, tal fato permitiu a ascensão social, a transformação dos mesmos em "classe média" e,
para seis (06) pais de tais entrevistados, a mudança para a capital.
Foi somente neste momento, justamente quando os pais de tais entrevistados tornaram-se
"classe média", que o papel da educação, como estratégia dominante para a mobilidade social,
tornou-se relevante. Os entrevistados foram explícitos: seus pais sempre enfatizaram o papel da
educação. Tal papel, pelo que interpretamos, foi constantemente relacionado a um discurso de
ascensão social. Inclusive, os entrevistados ofereceram diversos exemplos disso, apresentando
ditos e clichês que teriam sido repetidos constantemente pelos seus pais: "se você quer ser
alguma coisa, você precisa estudar"; "sem estudo, você vai ser um pé-rapado"; "estuda menino,
senão não vai ser nada na vida " ? além das diversas injunções profissionais, principalmente, no
comerciantes, agricultores ou fazendeiros ligados ao comércio, profissionais liberais). Os pais, aqui referidos, possuíam, no mínimo, o segundo grau completo. 137 Incluímos nesse estrato assalariados (principalmente, operários, funcionários públicos de nível inferior) e pequeno-burgueses (principalmente, pequeno agricultor não ligado ao comércio, artesão). Os avós têm, no máximo, o primeiro grau completo. 138 Apenas dois pais desse contingente não conseguiram a ascensão, continuando no meio rural como artesão e ferroviário.
265
caso dos entrevistados, para a escolha da profissão médica. E, invariavelmente, essa estratégia
teve como complementação o envio dos entrevistados às cidades (no caso, Recife, pois é no
centro mais próximo onde havia faculdades de medicina). Assim que tomado o caminho para a
capital, ele tornou-se irreversível: nenhum desses entrevistados, após o final da sua formação
universitária, retornou ao local de origem139.
Contudo, ao contrário do analisado acima, a grande maioria dos entrevistados (35)
tiveram como ascendentes famílias de classe média. E, de tal contingente, 11 avós de
entrevistados moraram no interior140, embora a filiação posterior tenha -se estabelecido na capital,
mostrando que, nesse caso, o deslocamento do interior para a capital foi, proporcionalmente,
muito mais massivo do que no exemplo anterior141. Pode-se dizer, assim, que a filiação desses
entrevistados é de "classe média", caracterizando, com isso, uma reprodução social. Não há
propriamente uma ascensão social, e sim uma busca, a partir e por dentro da posição social já
estabelecida, de status social. A escolha profissional (no caso, pela medicina) seria, desse ponto
de vista, uma forma de manter uma posição e adquirir, ao mesmo tempo, uma disposição baseada
no prestígio social. Acreditamos que essa diferença teve uma repercussão direta na forma pela
qual foi apreendida o papel da educação na escolha profissional. A começar que, embora
tenhamos encontrado a mesma ênfase na educação, sendo assim semelhante à considerada no
grupo anterior de entrevistados, o discurso dos pais focava menos a ascensão social do que a
vocação.
Mas, nesse caso, onde ficaria a busca pelo (manutenção ou aumento do) prestígio? Na
verdade, a relação entre educação e vocação tem como pano de fundo justamente a garantia do
prestígio. Não causou surpresa, nesse sentido, a mistura no discurso dos pais, segundo os
entrevistados, de injunções relacionando status com vocação. Ao mesmo tempo em que se dava a
devida importância à educação, fazia-se uma relação entre a escolha profissional e a identidade
139 Fato que pode ser considerado uma mera coincidência, pois fizemos nossas entrevistas no Recife. Há vários casos de médicos que, assim que formados, voltaram às suas cidades de origem para exercer a profissão. 140 Ao todo, juntando toda a filiação, temos 26 entrevistados que tiveram ascendentes que viveram no interior. 141 A questão de que todos os pais de tais entrevistados sejam da capital, independentemente do fato de que vários vieram do interior e se estabeleceram no Recife, deve-se provavelmente às características de nossa amostragem.
266
do indivíduo, mas não uma escolha qualquer, e sim uma que valorizasse a "pessoa". Certo, ditos
familiares do tipo "você tem que fazer o que gosta" ou "escolha o que é melhor para você" podem
ser considerados como vocacionais, no sentido em que enfatizam a escolha e a realização de si;
no entanto, tais ditos sempre estão misturados e acoplados a outros tão imperativos quanto: "você
tem que escolher uma profissão decente" ou "a melhor profissão é aquela que oferece sustento e
apreço" ? em suma, profissões que têm alguma importância social, logo, prestígio.
Percebemos, assim, dois modos de apreensão do papel da educação na escolha
profissional: a) busca da ascensão social e b) busca do prestígio, via vocação. A busca pela
ascensão, evidentemente, pode implicar também a busca pelo prestígio, e nada impede que esteja
acoplado também a um discurso vocacional. A diferença entre os dois discursos reside, na
verdade, na ênfase que cada um oferece à vocação ? a diferença entre "vencer na vida" e
"realizar o melhor de si" ou entre o sucesso e a vocação pode ser indiscernível. No primeiro
modo de apreensão, talvez a diferença de ênfase seja uma herança da filiação de alguns
entrevistados, para os quais a ascensão social tornou-se uma questão estratégica na construção da
biografia familiar; no segundo modo, a educação formal parece dada, um hábito já adquirido e
entranhado no cotidiano, não sendo afirmada explicitamente como uma estratégia para a ascensão
social ? a preocupação com a vocação e o prestígio parece ser, pelo menos de forma explícita,
bem mais importante.
De todo modo, nos dois discursos, a escolha profissional jamais é completamente livre,
pois sofre um condicionamento do prestígio social que cada profissão possui na sociedade ? o
discurso baseado na ascensão vai escolher estrategicamente as profissões mais valorizadas,
acontecendo o mesmo com o alicerçado no prestígio social. A vocação teria suas raízes fincadas
no "pacote" de escolhas ao qual o entrevistado tem acesso e, ao mesmo tempo, nos diversos
modos de valorização profissional. No plano empírico, isso significa que os entrevistados tiveram
um restrito leque de escolhas profissionais, cuja variação dependeu em parte da valorização
social de cada profissão. O leque de escolhas muda segundo a época e a geração do entrevistado,
porém a variação é pequena e o leque idem. Na realidade, pelo que pesquisamos, os entrevistados
tiveram, quando da época da escolha profissional, acesso a um pacote de, no máximo, três e, no
267
mínimo, cinco profissões extremamente valorizadas socialmente142. As profissões variaram
muito pouco segundo a geração do entrevistado: do mais velho ao mais novo entrevistado, vemos
um rodízio entre o direito 143, a engenharia144 e a arquitetura 145 ? evidentemente, a medicina é o
membro constante do leque de escolhas146. Embora vários entrevistados tenham sublinhado que
escolheram livremente a profissão médica, colocando que a escolha deu-se por circunstâncias
estritamente pessoais, independentemente do fato de esse discurso ser factível ou não, não
achamos contraditório dizer que, tacitamente, o leque de escolhas foi dado ou construído,
digamos assim, socialmente: o entrevistado pode ter tido sua margem de manobra, sua liberdade
de escolha; contudo, sua liberdade raramente ultrapassou os limites da estrutura de escolhas na
qual estava inserida.
Inclusive, podemos perceber melhor essa questão, analisando a trajetória ocupacional da
filiação dos próprios entrevistados. O leque de escolha é restrito: dos avós aos pais, a ocupação
mais seguida foi a de comerciante, depois, alguma ocupação profissional e, enfim, a de
funcionário público. Claro, pode-se dizer que há, dentro de cada ocupação, diferentes atividades
(vários tipos de comércio, várias profissões, vários tipos de funcionários...), mas, mesmo assim, a
variação interna é pequena. Um exemplo: no campo profissional, a escolha restringiu-se a três
profissões: medicina, engenharia e direito. Entre as mulheres, o pacote é mais restrito ainda: na
verdade, é um pacote de uma só profissão, a de professora do 1° grau.
De todo modo, independentemente do fato de que exista ou não um enquadramento
normativo para a escolha profissional, ou mesmo que a escolha e o sentido da vocação sejam
estruturados ou, ainda, sejam um pano de fundo condicionando as opções vocacionais, a escolha
e, conseqüentemente, a percepção da vocação foram compreendidas pelos entrevistados como um
momento individualizado e até idiossincrático ? chamamos esse discurso de "discurso da
142 O mais comum, sem dúvida, foi o pacote de três profissões... 143 Presente no leque de escolhas dos entrevistados acima dos 45 anos; desaparece um tanto entre os entrevistados que têm, atualmente, em média 40 anos e reaparece entre os que têm abaixo dos 35 anos. 144 Presente nos entrevistados acima dos 35 anos. Abaixo dessa faixa etária, a engenharia, principalmente a civil, perde em importância, talvez porque já não seja tão valorizada profissionalmente como antigamente. 145 Somente aparece nos entrevistados que estão na faixa etária entre 35 e 45 anos. 146 Novamente, a presença constante da medicina deve-se, essencialmente, por causa das características de nossa amostragem, todos médicos. Mas é provável que, num estudo sobre valorização profissional, a medicina tenha realmente um peso importante no leque de escolhas profissionais.
268
escolha livre". Alguns entrevistados, é verdade, reconheceram que a escolha e o sentido da
vocação podem ter uma determinação social ou "externa" à vontade do indivíduo, dada
principalmente pela família, mas, em última instância, quem decide é o indivíduo e tal decisão
tem um caráter individual. O que está em jogo, no fundo, é a liberdade da escolha ? e tal
liberdade é bastante valorizada pela maioria dos entrevistados ? , daí a presença constante do
discurso da escolha livre. Contudo, como veremos agora, mesmo que a liberdade da escolha
tenha sido ressaltada, diante da pergunta "por que você escolheu a medicina?", os entrevistados
ofereceram respostas nas quais a estruturação das escolhas aparece com certa evidência.
ü Escolha "desde o início":
O dito paradigmático que ilustra o discurso desses 16 entrevistados é o "pensei em fazer
medicina desde o início ". O que se ressalta aqui é o dom, algo que estava presente nos
entrevistados desde sempre, uma espécie de qualidade inata à medicina. Segundo os
entrevistados, a escolha é totalmente livre, pois ela é uma questão de fórum íntimo, sem qualquer
determinação externa, embora alguns colocassem que a família tenha tido um certo papel na
escolha. No fundo, seria uma escolha livre pelo fato que se negar injunções externas; porém,
como o dom estava escrito nas entranhas da alma desde sempre, pode-se alegar que, do ponto de
vista de um ato que privilegiaria a consciência, a escolha já estava dada ? se estava dada, como
poderia ser livre? Aqui, a escolha é uma espécie de epifania interna: "quando eu soube que
queria fazer medicina, soube também que sempre tinha querido..." ? como ilustra bem essa
frase de um entrevistado. Tal discurso enfatiza bastante, embora não monopolize o termo, o
caráter de missão da profissão médica. O dom é uma capacidade dada, mas, assim que é
explicitado e assumido pela pessoa, a missão de ser médico surge como uma tomada de
consciência, quase como uma reflexão sobre o sentido do dom. Para os entrevistados, a missão de
ser médico é, fundamentalmente, "ajudar e socorrer" as pessoas. O conteúdo da missão do
médico, nesse caso, possui um parentesco com o do sacerdócio ? embora não fosse explicitada,
a relação é um tanto evidente.
ü Escolha parental:
O mote principal do discurso, aqui, é a "influência", no caso e exclusivamente, familiar.
Foram 16 entrevistados que disseram que a influência da família foi decisivo para a escolha da
269
medicina. Desses 16, nove (09) têm pais médicos e colocaram explicitamente que o seu exemplo
foi fundamental para a decisão. A determinação para o restante teve a influência de parentes
próximos (irmãos e tios, principalmente) que ajudaram a escolha da medicina como profissão.
Consideramos esse tipo de escolha praticamente um subtipo da "escolha desde o início". Há
referência ao dom e até a uma vocação familiar para a medicina. Continua existindo um discurso
da escolha livre, embora ocorra o reconhecimento de que a influência da família tenha sido
decisivo.
ü Escolha pragmática:
Nesse ponto, aconteceu um fato diferente: a escolha profissional aparece no discurso sem
que se tenha uma relação necessária com a vocação. Pode-se imaginar situações onde a escolha
profissional, além de não ter uma relação necessária com a trajetória, não possui uma
compatibilidade com a vocação ou com o que o indivíduo julgava ser a sua vocação. A escolha
foi uma questão de oportunidade e não exatamente relacionada com a aspiração e o desejo do
indivíduo. Tal situação não é propriamente incomum, pois a encontramos, por exemplo, em 05
entrevistados, cuja escolha pela medicina foi por negação das escolhas existentes ou,
simplesmente, por uma questão circunstancial. Percebemos uma nítida relação, no discurso de
tais entrevistados, entre a escolha e o problema da mobilidade social. O entrevistado tinha que
escolher alguma profissão; havia uma pressão considerável da família para que optasse por uma
profissão valorizada; em suma, como disse um entrevistado: "todos queriam que eu fizesse
medicina" ou, ainda, "desde pequenininho que me falam para ser médico ? fui na onda". Porém,
o que diferencia esses entrevistados seria justamente a falta de um discurso no qual se coloque
explicitamente a "vontade de ser médico". A ênfase recai, nesse sentido, na valorização da
medicina e na oportunidade que oferece para a ascensão social ? muitas vezes, alguns
entrevistados passam a idéia de que foram "empurrados" para a profissão médica, adotando
menos uma conduta performativa do que uma postura passiva diante da necessidade da escolha
profissional.
ü Escolha de "perfil":
Apesar do parentesco com a classificação acima, estamos diante de entrevistados (05) que
se colocam retrospectivamente como uma pessoa "afeita" à profissão. A descoberta da vocação
270
acontece no meio do curso de medicina e, para alguns, já em pleno exercício da profissão.
Muitos, assim, não queriam fazer necessariamente medicina, descobrindo a vocação tardiamente.
Contudo, há um olhar retrospectivo para o passado, recuperando de certa maneira a vocação.
Concretamente, a vocação surge depois da escolha; retrospectivamente, a vocação é recuperada, e
a estória da escolha profissional é recauchutada: a vocação já deveria existir na época da escolha,
já que, posteriormente, o entrevistado descobriu-se médico. A escolha, no fundo, já era
vocacional, embora o entrevistado pensasse o contrário. Como disse um entrevistado: "eu não
assumia a profissão ". Outro, de viés psicanalítico, chegou a afirmar que detestava o curso de
medicina, até por causa da imposição familiar para ser médico, mas que tudo isso era uma
"resistência" e que, na verdade, sempre tivera jeito para a profissão, ao ponto de, atualmente,
adorar o que fazia.
ü Escolha "contato mórbido" ou "luminosa":
Sete (07) entrevistados colocaram que a determinação da escolha aconteceu a partir do
contato passageiro ou prolongado com uma doença, seja como doente, seja acompanhando ou
mesmo assistindo a um doente, geralmente da família. Ocorre, nesse caso, o que poderíamos
chamar de catarse: "vi que queria ser médico, acompanhando meu avô no hospital, fiquei
fascinado..."; "ali deitado numa cama de hospital, operado de apendicite, cercado por gente de
branco, descobri que queria estar no lugar deles...". Acreditamos que o discurso tenha uma
relação com a questão do dom. O evento mórbido revelaria ao entrevistado a sua vocação, isto é,
explicitaria o que antes era um tanto inconsciente para a luz do dia ? o dom, ainda oculto, seria
revelado, enfim, sob o aspecto de vocação. Mas o processo não é propriamente racional, pois
baseado num acontecimento de forte conotação afetiva-emocional: o contato com a morbidade.
Parece muito mais uma catarse ou uma iluminação.
De certo modo, exceto a "escolha pragmática ", todas as outras são variações de uma
escolha baseada no dom. Parece que, para a maioria absoluta dos entrevistados, é necessária
alguma predisposição à profissão. Tal predisposição foi chamada de dom. A vocação seria, nesse
sentido, a consciência do dom. E, pelo que percebemos, o dom é, para os entrevistados, um tanto
impermeável a injunções externas. Pode ser explicitado, iluminado, trazido à tona,
potencializado, recuperado retrospectivamente, mas estaria lá sempre latente, de maneira tácita
271
ou mesmo oculto, esperando um fiat lux para eclodir. Por isso, a discussão sobre escolha
profissional e vocação é uma narrativa pessoal. Seria a afirmação de um ego que, através da
soberania de sua vontade, embora muitas vezes por caminhos circunstanciais e um tanto
prosaicos, revela o que está inscrito no âmago de sua pessoa ? o fundamento da realização de si:
sua vocação.
Por outro lado, a questão tornou-se um pouco mais complexa quando sobrepomos a
escolha pela medicina à escolha pela psiquiatria. Foi como se reinicializássemos a discussão,
embora o resultado tenha sido muito parecido, pois encontramos praticamente as mesmas
classificações. Contudo, a impressão seria de que a psiquiatria representou, para a maioria dos
entrevistados, uma outra escolha, em certos casos até mais importante do que a própria escolha
pela medicina. Provavelmente, como já discutimos acima, tal fato deva-se ao lugar peculiar que a
psiquiatria ocupa no seio da medicina. Analisaremos melhor tal questão, discutindo já as escolhas
pela psiquiatria.
ü Escolha desde o início:
Fazendo um cruzamento com a respectiva classificação anterior relacionada à escolha
médica, pudemos notar que a composição é diferente, embora a quantidade seja praticamente a
mesma (17 entrevistados). Nove entrevistados compartilham o mesmo grupo, sendo a maioria ?
vemos, aqui, o reaparecimento dos agrupamentos feitos a partir do objeto profissional ?
biomédicos e clínicos. O restante, justamente a diferença na composição dos grupos, é todo
formado por psicanalistas.
Ao passo que o discurso da escolha ("desde o início") pela medicina é relativamente
homogêneo, neste ponto, os discursos são diferentes: os biomédicos e clínicos afirmaram a
coincidência da escolha, identificando medicina e psiquiatria ? já na escolha médica estava
embutida a psiquiátrica. Desde sempre quiseram a psiquiatria, mas porque queriam também ser
médicos. A identificação na escolha entre medicina e psiquiatria deve-se, em parte, à influência
parental (05 entrevistados com pais psiquiatras) e ao contato com a morbidade psiquiátrica
(alguns tiveram contato com parentes apresentando alguma patologia psiquiátrica ou mesmo
conheceram um hospital psiquiátrico). A escolha psiquiátrica seria um momento da vocação
médica.
272
Já os psicanalistas enfatizaram bastante uma aproximação com a psicologia: "sempre tive
uma queda pela psicologia, pelo relacional"; "quando era pequena, o pessoal me achava
simpática; na adolescência, as pessoas me procuravam pra conversar...". Por que, então, não
fizeram psicologia? Por um motivo já conhecido: a maioria desses entrevistados tinham parentes
psiquiatras e algum contato com pacientes psiquiátricos. Contudo, a ênfase é diferente em relação
aos biomédico e clínicos ? na verdade, parece invertida: a escolha médica seria um momento da
escolha psiquiátrica. As duas escolhas acontecem juntas, mas o pólo psiquiátrico tem uma maior
magnitude.
Enfim, pudemos notar que o momento parental e o "luminoso" estão fundindo no "desde o
início". Porém, o luminoso é bem mais presente entre os psicanalis tas. Seria o contato com a
loucura, principalmente no contato com algum parente psicótico: "um dia, quando tinha 10 anos,
fui visitar minha tia no asilo. Achei esquisitíssimo e fiquei apavorada, mas também fascinada" ?
curiosamente, a fascinação, ao contrário da catarse baseada na admiração, como vimos no
discurso do "desde o início" da escolha médica, foi baseada no pavor e no medo. Inclusive, um
entrevistado disse explicitamente: "não me pergunte por que, mas o que me fez fazer psiquiatria
foi o medo que tive da loucura. Acho que tenho até hoje...". Se a medicina possui uma carga
simbólica carregada o suficiente para produzir escolhas diretamente relacionadas à injunções
edipianas ou sexuais, segundo alguns psicanalistas, a começar por Freud 147, a psiquiatria não
ficaria atrás; assim, podemos aceitar, com alguma prudência, que a atração e a fascinação,
causadas pelo comportamento desviante e pela loucura, produzem algum poder de sedução,
influenciando de alguma forma a escolha profissional pela psiquiatria.
ü Escolha baseada no trabalho
A noção de "experiência" é fundamental para compreender as motivações dos 17
entrevistados que estão inseridos nesse grupo. Aqui, experiência quer dizer trabalho, portanto, a
escolha pela psiquiatria foi condicionada por algum contexto de trabalho que envolvesse a
psiquiatria, principalmente o hospital psiquiátrico. Geralmente, foi a primeira experiência do
147 Ver Freud e sua análise do jogo do médico entre as crianças...
273
entrevistado, ainda estudante148, em tal ambiente . Neste ponto, pudemos encontrar discursos que
enfatizaram o aspecto "luminoso" do encontro com a loucura e, conseqüentemente, a escolha
profissional da psiquiatria. De todo modo, foi a experiência na psiquiatria, isto é, a prática
psiquiátrica que condicionou a escolha. A presença nesse grupo dos clínicos e dos biomédicos é
marcante ? encontramos apenas dois psicanalistas. O grupo, inclusive, segue o costume médico
de escolher a especialidade após uma série de experiências práticas em vários setores e
disciplinas diferentes da medicina. Após isso, é de praxe a escolha da área almejada. A maioria
dos entrevistados ? não só desse grupo ? passaram por essa situação. Independentemente do
fato de o médico já pretender especificamente alguma especialidade, é comum a passagem por
várias áreas médicas antes da decisão final ? os entrevistados, contudo, assinalam que passaram
por poucas áreas (a maioria passou pela clínica médica ou algum setor de emergência), sendo a
decisão rápida, logo após a primeira experiência de trabalho.
A escolha baseada no trabalho engloba a escolha alicerçada no perfil. Foi no trabalho que,
retrospectivamente, o entrevistado recuperou a vocação pela psiquiatria. A partir da experiência,
olha-se o passado e se reafirma o caminho tomado. O raciocínio é o mesmo do da escolha pela
medicina: a percepção de que o momento presente é a reafirmação de algo que estava ainda
inconsciente no passado: a vocação psiquiátrica.
ü Escolha "desilusão com a medicina"
Embora apenas 05 entrevistados estejam enquadrados nessa classificação, ela é
importante pela sua originalidade e pelo fato de que todos são lacanianos. Os entrevistados, na
verdade, não afirmam uma escolha pela psiquiatria por causa da desilusão com a medicina, e sim
uma pela psicanálise. A desilusão, assim, é dupla: pela medicina e, conseqüentemente, pela
psiquiatria. A psiquiatria é intrinsecamente médica: "é a medicina no campo da loucura", como
disse um entrevistado. A desilusão aconteceu, ao contrário do momento decisório e positivo do
grupo anterior, justamente no ambiente de trabalho. Foi a experiência psiquiátrica que afastou os
entrevistados da psiquiatria e, conseqüentemente, da medicina. Mas por que, então, não saíram da
profissão? Os motivos são vários, a começar pelo mais pragmático de todos: era tarde demais,
148 Todos os entrevistados relataram que o momento da escolha pela psiquiatria aconteceu ainda quando eram estudantes.
274
pois o curso já estava acabando, e a psicanálise poderia substituir a psiquiatria, sem o peso de
uma saída definitiva do campo profissional médico, embora isso representasse, na visão dos
entrevistados, uma saída da ciência médica.
Pode-se dizer, no limite, que medicina e psiquiatria são duas escolhas dentro do mesmo
campo profissional, expressando algumas variações nas suas relações: 1) a escolha pela
psiquiatria é um momento da vocação médica; 2) é um momento da vocação médica, mas possui
uma especialidade que, no frigir dos ovos, tem a mesma magnitude; 3) é uma ruptura com a
vocação médica. Aqui, novamente apareceram os agrupamentos produzidos a partir das análises
do objeto profissional, o que não aconteceu quando das questões relativas à escolha pela
medicina: 1) foi expressado preferencialmente pelos biomédicos e pelos clínicos, 2) pelos
clínicos e psicanalistas e 3) pelos lacanianos.
Mas, até agora, questionamos o que determinou a escolha profissional; por isso,
olharemos neste momento com mais atenção o tipo de vocação advogado pelos entrevistados. O
problema seria saber que tipo de engajamento envolveu a escolha profissional. Em termos gerais,
encontramos três tipos:
• vocação como realização pessoal
Tal discurso está disseminado entre os entrevistados e, talvez, seja o discurso
paradigmática da vocação. A profissão, nesse sentido, seria justamente a forma privilegiada de
realização de si. A escolha profissional foi, assim, a melhor forma de concretizar um potencial
existente dentro de cada um. Discurso perfeitamente conectado aos desdobramentos do
individualismo moderno.
• vocação como altruísmo
É a vocação do sacerdócio e da entrega. As palavras chaves são "ajudar" e "tratar". O
médico é altruísta assim que realiza a vocação médica de ajudar e tratar os doentes. É a vocação
médica, por excelência. Encontramo s tal discurso praticamente em todos os entrevistados.
• vocação como relacionamento
275
Seria a vocação específica da psiquiatria. Todos os entrevistados, inclusive os biomédicos,
afirmaram essa característica do tratamento psiquiátrico: a necessidade da relação psicoterápica
no tratamento psiquiátrico. Claro, há diferenças de ênfase, mas, no todo, o discurso é homogêneo
Enfim, pesquisamos também qual seria a relação entre a escolha
psiquiátrica e a formação universitária. Se considerarmos a opinião dos
entrevistados (39), não houve influência da formação na escolha pela psiquiatria.
De forma coloquial, vários entrevistados colocaram que a cadeira de psiquiatria
era tão ruim que poderia tê-los feito desistido de qualquer vocação psiquiátrica. A
maioria dos entrevistados colocou que a formação psiquiátrica universitária era
fundamentalmente eclética, embora com alguma predominância da
psicopatologia clássica. Vale dizer que estamos falando das duas faculdades de
medicina que existem no Recife. Apesar disso, 27 entrevistados colocaram que as
cadeiras de psiquiatria eram fracas. Por isso, a formação psiquiátrica confundiu-
se com a experiência adquirida fundamentalmente na prática hospitalar. Era no
hospital, como estudante, geralmente acompanhando algum plantonista mais
velho que a maioria dos entrevistado adquiriu a experiência e,
conseqüentemente, uma formação baseada na prática. Mas, não só no hospital,
pois todos os entrevistados que tiveram alguma formação analítica fizeram-na
durante o período de estudos, até mesmo como compensação à formação
universitária.
1. Consultório e Autonomia
Quando discutíamos as condições de trabalho no HP, fizemos referência a uma condição
comum entre os psiquiatras, isto é, ao fato de que os entrevistados tinham, em geral, mais de uma
jornada de trabalho. Neste tópico, analisaremos de forma mais detida essa questão. O primeiro
fato relevante: todos os entrevistados têm, no mínimo, dois empregos e, geralmente, duas
jornadas de trabalho. O emprego quase onipresente é o trabalho no consultório (41 entrevistados
têm consultório). Pela sua importância na maioria dos discursos, pode-se inferir que é em torno
dele que gira os outros trabalhos e as outras jornadas. Seria o emprego que gera mais renda,
embora não seja necessariamente o mais valorizado. Com efeito, embora vários entrevistados
276
tenham colocado o trabalho no consultório como o mais valorizado, para muitos entrevistados,
entretanto, em particular para aqueles que trabalham no público ou na universidade, o trabalho no
consultório está no mesmo patamar de importância, ainda que muitos tenham confessado,
principalmente aqueles que são professores universitários (14), que o consultório perderia
bastante a sua importância relativa, caso o público ou a universidade fosse mais valorizada e mais
bem remunerada, ao ponto de alguns alegarem que prescindiriam do mesmo.
Na realidade, o discurso dos professores universitários (14 entrevistados) parece ter
alguma ambigüidade em relação ao trabalho no consultório. Há um crítica de fundo a respeito do
trabalho liberal como sendo intrinsecamente voltado aos setores de classe média, por isso,
segundo vários entrevistados desse grupo, distante de qualquer política pública de saúde mental.
A maioria dos entrevistados desse grupo é "clínico", com alguma passagem pela medicina
preventiva e pelos movimentos de saúde mental ? possuem um discurso que politiza a saúde
mental, estando articulado ao movimento pela Reforma Psiquiátrica, cujo programa e
organização foram realizados fundamentalmente pela esquerda, principalmente a partidária.
Provavelmente, a ambigüidade venha justamente dessa aparente contradição: como conectar um
discurso político e social sobre a saúde mental com um trabalho no consultório, dito "liberal" e
"individualista"?
A conexão vira um nó górdio, e seu contorno, racionalizações. As justificações são,
digamos assim, de natureza "pragmática", podendo ser resumidas da seguinte maneira: 1) todos
os entrevistados ganham na universidade um salário de professor assistente, percebido como uma
"ninharia"; 2) a jornada de trabalho na universidade impede outra forma de atividade, tipo num
hospital público149 ou numa clínica privada, restando apenas o consultório como alternativa.
Indagados sobre atividades de extensão na universidade, como por exemplo um trabalho de
psiquiatria comunitária, vários concordaram que seria a alternativa ideal, mas não sendo
remunerado, sempre sobrará o sempiterno problema salarial:
149 Todos dessa amostra trabalharam um dia no serviço público, deixando-o após o ingresso na universidade.
277
no início, até que tentei uma atividade desse tipo, lá em Nova Descoberta150,
que me exigia muita dedicação. Aí tive filhos, a carestia apertou e montei um
consultório com um amigo professor ? como bem resumiu um entrevistado.
Assim, na universidade, a atividade pedagógica ? aulas e orientação de alunos ? é a
principal, senão a exclusiva, ocupação dos entrevistados. Pode-se alegar que tal questão é um
problema de geração e, com efeito, os próprios entrevistados admitem que o salário não era uma
referência fundamental no início da carreira, passando a sê-lo realmente a partir de um dado
momento, justamente quando ocorreu a decisão de constituir uma família. Vale alertar, porém,
que nossa amostra (professores universitários) foi constituída por pessoas que estão na faixa
etária entre 35 e 45 anos. Uma população mais jovem, sem ainda a constituição de laços
familiares, talvez, prescindisse totalmente do trabalho no consultório... ou não: analisando o
discurso de alguns entrevistados, na faixa etária abaixo dos 30 anos151, que assumem, ainda que
vagamente, como projeto pessoal uma carreira universitária, não percebemos a ambigüidade
discutida acima: não há contradição ideológica entre o trabalho liberal e o social na esfera pública
e societária ? a questão é uma mera adaptação ao tempo exigido pela diversas esferas de
atividade ou mesmo uma questão de "gosto pessoal". Contudo, há uma clara percepção que
consultório e hospital, em particular o HP, são dois mundos diferentes, inclusive no que concerne
a uma diferença anterior entre o público e o privado.
Como disse um entrevistado:
"são dos mundos diferentes. No público, temos uma população que muitas
vezes não tem dinheiro sequer para comprar remédios ? sem dinheiro pra
passagem, logo, não os pacientes não conseguem chegar ao ambulatório. Uma
massa muito grande de pessoas que tem dificuldade de se colocar, de
verbalizar. No consultório, trabalho com o outro lado do Brasil: pessoas de
classe média, que se alimentam, que pensam, que estudam, que falam ?
150 Bairro popular do Recife. 151 A maioria absoluta desses entrevistados trabalha apenas em clínicas privadas, esperando a ocasião de entrar, via concurso, no serviço público ou na universidade.
278
parecidas comigo! Posso assim estabelecer vínculos terapêuticos. (...) Cada
mundo invoca condutas diferentes...
Curio samente, são os psicanalistas152 que vão cortar o nó górdio: não há contradição entre
o consultório "liberal" e o trabalho na esfera pública e societária. Na verdade, para
compreendemos melhor essa posição, precisamos esclarecer que o trabalho no consultório não é
visto pelos entrevistados como "liberal" 153, e sim como um espaço privilegiado para a análise ?
o consultório é um espaço profissional como qualquer outro. Dado o caráter individualizado da
consulta analítica, não causa surpresa essa posição. Contudo, vale a nuance: os psicanalista
referem-se a um serviço público do tipo extra-hospitalar, afirmando que o hospital psiquiátrico é
incompatível com a terapia analítica. Todos os entrevistados colocaram que é impossível
trabalhar como psicanalista nas condições atuais do hospital psiquiátrico, por isso admitem a
primazia do consultório como espaço profissional por excelência de atuação dos psicanalistas.
De todo modo, montar um consultório em psiquiatria não é uma tarefa propriamente fácil.
Em média, segundo os entrevistados, é necessário cinco anos para adquirir uma clientela estável
e, mesmo assim, em situações de crise econômica, seria freqüente o paciente que paga a metade
ou, até mesmo, simplesmente não pode pagar a consulta. É preciso ter uma "retaguarda" ?
geralmente, familiar ? que garanta financeiramente o tempo de estabilização do consultório.
Quem não tem "retaguarda" ? a maioria absoluta dos entrevistados ? precisa garantir, no início
da carreira, uma poupança através do trabalho ou no serviço público ou no privado ou nos dois ao
mesmo tempo. Vários entrevistados, na época da pesquisa, ainda estavam na fase de
estabilização, por isso tinham até três jornadas de trabalho ? público, privado e consultório. No
caso da impossibilidade de se trabalhar no serviço público, a alternativa mais escolhida é o
emprego em vários serviços privados ? alguns entrevistados trabalhavam em até cinco serviços
privados, seja como plantonista, seja como assistente154. Já os professores universitários foram
152 Há vários professores univers itários que fizeram formação analítica, mas que não se enquadraram como "psicanalistas", sendo ecléticos, pragmáticos e adeptos da bricolagem ? a formação baseada na psicopatologia clássica e no ecletismo é muito mais proeminente; daí a classificação como "clínicos". 153 Um entrevistado, tendo consciência da identidade entre trabalho liberal e consultório médico, afirmou que um amigo, médico e petista (por coincidência, outro entrevistado), tinha-lhe dito, brincando, que o consultório era um trabalho individualista e liberal, logo pequeno-burguês. 154 A assistência psiquiátrica seria uma atividade que não envolve necessariamente o plantão, mas o acompanhamento diário ou semanal do paciente.
279
unânimes em considerar a estratégia de entrar na universidade como o caminho mais
"confortável", já que se garantia uma estabilidade empregatícia e um salário inicial razoável.
Com isso, poder-se-ia manter o consultório até a estabilização da clientela, além do conhecimento
de uma população psiquiátrica potencialmente cliente no hospital universitário.
Sendo o consultório a forma de trabalho mais procurada entre os entrevistados, cabe a
pergunta: seria procurada por quê? Pelos discursos analisados, a procura pelo trabalho no
consultório está relacionada, fundamentalmente, à estabilização financeira. Muitos colocaram
explicitamente que, caso o serviços público ou a universidade fossem melhor remunerados, o
peso do consultório seria diferente ou bem menor. Já os psicanalistas, como vimos, além da
procura da estabilização financeira, afirmaram que o consultório é o esp aço profissional ideal
para a prática psicanalítica. Pode-se interpretar esse último discurso como uma procura pela
autonomia profissional, tomando como premissa que a procura do espaço ideal da profissão seja
uma garantia de controle das condições de trabalho e de controle do exercício do saber
profissional. No entanto, mesmo no caso dos psicanalistas, não encontramos entre os
entrevistados uma vinculação necessária entre o consultório, visto nesse sentido como um
trabalho "liberal", e a autonomia profissional. Pelo que interpretamos, os entrevistados
consideram que é perfeitamente possível garantir a autonomia profissional nos ambientes
profissionais onde vigoram o assalariamento. O grande problema, segundo vários entrevistados,
seria o controle das condições de trabalho, já que, em tese, o controle do exercício do saber
profissional está, de alguma forma, garantido via a profissão. Tal controle das condições de
trabalho seria garantido, no nível local, via equipe multi-profissional, e, de forma geral, por uma
política pública em saúde mental que garantisse uma reforma psiquiátrica.
2. A questão do hospital e da Reforma Psiquiátrica
Mas como garantir uma reforma psiquiátrica? Ora, justamente aqui, há outro problema:
não há consenso sobre a reforma psiquiátrica, nem mesmo sobre o papel do hospital ? talvez,
das questões da reforma, seja a questão. Inclusive, o resultado da pesquisa sobre esse assunto
invalidou nossa hipótese: pensávamos que haveria uma correspondência entre a defesa da DM
como uma doença ontologicamente diferente de todas as outras (dualismo nosológico) e a defesa
de uma instituição especial e separada de todas as outras da medicina (dualismo institucional) ?
280
logo, a defesa do hospital psiquiátrico (HP). Para tratar uma doença que é um singularidade
patológica seria necessário um aparato especial, diferente das outras instituições médicas, o
hospital psiquiátrico. Ou ainda: haveria uma correspondência entre a defesa da DM como uma
doença igual a qualquer outra (monismo nosológico) e a defesa do fim do HP e,
conseqüentemente, defesa da hospitalização no hospital geral (HG ? monismo institucional).
Para tratar uma doença convencional seria preciso somente um aparato médico banal, o hospital
geral.
Na verdade, o resultado foi diametralmente oposto à nossa especulação: os psicanalistas,
por exemplo, et pour cause defensores do dualismo nosológico, foram radicalmente contra o HP,
sustentando a sua completa substituição por instituições extra-hospitalares; já os biomédicos
ratificaram o HP, defendendo a sua reforma radical, e os clínicos, pelo menos, seguiram seu
ecletismo, repartindo-se entre defensores e adversários do HP, embora tenham sido os maiores
advogados, juntamente com os biomédicos, do HG. Mas, como tentaremos mostrar em seguida,
nossas especulações, pelo menos, direcionaram em algum sentido a discussão.
Ø Não seria incompreensível a ojeriza dos psicanalistas em relação ao HP; afinal, no
decorrer de toda a nossa discussão, desde o início percebemos que os psicanalistas
sempre colocaram como incomp atível a organização atual do HP com a terapia
analítica. Ao mesmo tempo, vimos a adequação entre as organizações extra-
hospitalares e a psicoterapia. Contudo, talvez pudéssemos pensar que os
psicanalistas, por causa de nossa hipótese de uma homologia entre dualismo
nosológico e dualismo institucional, fossem a favor, pelo menos, de uma reforma
radical do HP e não de sua supressão pura e simples. Ora, a homologia é apenas
lógica, e foi a vivência concreta dos psicanalistas que impôs uma posição baseada
na sua experiência do contexto profissional e do exercício de seu saber. Por
exemplo: o HP pode sofrer uma reforma radical e se transformar numa
comunidade terapêutica, onde predomina inclusive a teoria psicanalítica, do tipo
que já existiu na França e nos EUA, e a defesa desse tipo de organização
hospitalar ? ainda um aparato institucional separado das outras instituições
médicas ? não entraria em contradição com a hipótese da homologia. Na verdade,
isso não aconteceu, e, o que importou para os entrevistados, foi a consumação da
281
terapia analítica, julgada incompatível com uma estrutura hospitalar, qualquer que
seja ela, reformada ou não;
Ø curiosamente, há um dado que pode trazer à tona a homologia: quase todos os
psicanalistas foram contra ou colocaram claras reticências à implantação de
setores psiquiátricos no HG. Os argumentos foram vários: a) medo da loucura por
parte dos médicos, em particular dos clínicos; b) preconceito contra os pacientes e
os psiquiatras; c) incompatibilidade entre o espaço hospitalar e o trabalho
psicoterápico. Assim, embora sejam contra o HP, como também o HG, estão a
favor de uma estrutura extra-hospitalar separada das outras instituições médicas.
Ironicamente, o dualismo institucional voltaria com toda a força através de uma
posição contra qualquer hospitalocentrismo;
Ø já em relação à outra homologia, entre monismo nosológico e monismo
institucional, a posição dos biomédicos e de muitos clínicos é bem nuançada.
Todos são contra o modelo atual, sustentando uma reforma radical do HP; ao
mesmo tempo, afirmam a necessidade de um modelo de reforma que contemple
setores psiquiátricos no HG. Aqui, surge a primeira diferença: a maioria dos
biomédicos coloca um peso maior no HP do que no HG, enquanto os clínicos
afirmam uma clara complementaridade entre as duas estruturas hospitalares. O
peso das estruturas extra-hospitalares é relevante, porém ainda secundário em
relação às estruturas hospitalares, embora possamos interpretar a posição de vários
clínicos como a defesa de um sistema complementar com várias estruturas de
tratamento, sem peso específico numa determinada estrutura em detrimento duma
outra;
Ø os biomédicos sustentaram uma reforma radical do HP, ao contrário do que
afirmaria a lógica da homologia: a defesa incondicional do HG na hospitalização
da DM. Sabemos que, para os biomédicos, é fundamental a volta da psiquiatria à
medicina e sua identificação, quase fusão, com a neurologia. A nossa impressão é
de que a pretendida reforma radical do HP identifica-se à sua transformação numa
estrutura hospitalar neuropsiquiátrica e altamente tecnologizada. O setor
psiquiátrico do HG surgiria como primeiro passo da hospitalização do paciente e o
HP como o local por excelência de tratamento, principalmente para os casos mais
282
graves, cujo tratamento no HG tenha sido insuficiente. Diante do questionamento
de que defender um HP recauchutado significaria a defesa de uma aparato
institucional separado da medicina, os entrevistados afirmaram explicitamente que
uma reforma radical do HP implica necessariamente uma volta à medicina ? o
HP seria apenas uma estrutura específica, assim como o é uma clínica neurológica
ou cardiológica. Além do mais, segundo os entrevistados, o fato de essa estrutura
hospitalar ter como base a clínica neurológica e psiquiátrica ? em suma:
neuropsiquiátrica ? torna-a médica como qualquer outra;
Ø já os clínicos espalham-se por várias posições: a maioria defendeu o fim do HP,
assim como os psicanalistas. Outra parte substancial sustentou a reforma radical
do HP. Talvez o que os tenha diferenciado dos dois grupos seja a defesa do HG:
fim do HP, mas transferência da estrutura de hospitalização para o HG; reforma do
HP, mas uma necessária complementação com o HG. As estruturas extra-
hospitalares são relevantes, pelo menos bem mais importantes do que na posição
dos biomédicos. Em regra, pode-se dizer que a posição é baseada na
complementaridade e numa estruturação horizontal, sem peso específico, embora
com funções diferenciadas, para cada estrutura de tratamento.
Podemos resumir as posições, tomando como parâmetro o HP:
Ø hospitalocentrista baseado no HP: o hospital psiquiátrico é o referencial
institucional. Os outros serviços, inclusive o HG, são secundários, embora
cumpram uma função importante;
Ø hospitalocentrista baseado no HG: embora não tenhamos encontrado essa posição
entre os entrevistados, ela é possível logicamente. No limite, alguns clínicos
chegaram a insinuar uma certa simpatia pelo fim do HP e a transferência da
estrutura hospitalar para os hospitais gerais. As estruturas extra-hospitalares
estariam numa situação subalterna, tendo uma função apenas complementar. A
referência seria o HG;
Ø hospitalocentrista mista: a referência seria as duas estruturas hospitalares, o HP e o
HG, os dois estando numa relação de complementaridade. As estruturas extra-
hospitalares continuariam subordinadas à lógica hospitalar. Tal posição, em
283
relação à referência hospitalar, pode ser considerada como moderada. Um
entrevistado conceituou-a como "múltiplo com predominante", isto é, várias
estruturas de tratamento com a predominância centrada nos hospitais;
Ø extra-hospitalar pura: não há referência hospitalar alguma, apenas estruturas de
tratamento extra-hospitalares (ambulatório, casa de acolhimento, centro de
emergência psiquiátrica...). Admite-se o hospital-dia e o hospital-noite,
considerando que, por princípio, não são exatamente estruturas hospitalares;
Ø sistema integrado complementar: seria o múltiplo sem predominante. Não seria
hospitalocentrista, pois haveria a garantia da horizontalidade. As estruturas
hospitalares, com maior peso para o HG, seriam estruturas com funções de
hospitalização rápida.
Outra discussão importante é aquela a respeito do papel da hospitalização na psiquiatria.
Possui como pano de fundo o debate anterior, embora tenha sua autonomia. Analisando as
entrevistas, percebemos uma grande preocupação em diferenciar internamento de hospitalização.
Na verdade, internamento é colocado quase como uma noção tabu, relacionada a uma época
ultrapassada da psiquiatria, os idos do asilo. Os entrevistados admitem que, atualmente, ainda se
está fazendo internamentos e não propriamente hospitalizações, dada as condições precárias dos
hospitais, considerados ainda como semi-asilares, e de um modelo psiquiátrico baseado na tutela
e na exclusão do paciente. A noção de internamento, entretanto, é um tanto vaga, podendo ter
vários significados e associações com outras noções: encarceramento, tutela, perda da cidadania,
cronicidade, loucura... O fato é que "internamento" tem um sentido negativo ? como tentou
sintetizar um entrevistado: "internamento é a hospitalização no asilo ". Mas podemos perceber
que a noção é reservada para procedimentos considerados fora do campo médico, embora tenham
algum sentido para a psiquiatria, principalmente durante a sua história. "Hospitalização", assim,
recupera uma psiquiatria mais humanizada e anti-asilar. Diante do pejorativo internamento, é
uma noção ética e cidadã.
Muitos entrevistados, além da denúncia das atuais condições asilares dos hospitais
psiquiátricos, foram contra a hospitalização. Praticamente todos aqueles que pediram o fim do
HP, fizeram severas reticências à hospitalização. Pelo que interpretamos, hospitalização, mesmo
num HP reformado, significaria ainda internamento. Have ria um atendimento emergencial em
284
psiquiatria, com imediata compensação do paciente e envio do mesmo para outras estruturas
extra-hospitalares ? segundo um entrevistado, o fato de um paciente passar uma semana num
centro de emergência psiquiátrica ainda não caracterizaria uma hospitalização. O termo é, assim,
identificado à hospital e daí a internamento. Normalmente, a defesa do fim da hospitalização vem
acompanhada, no discurso, de uma premissa: reforma psiquiátrica com criação de estruturas
extra-hospitalares.
Quem não foi contra o fim da hospitalização, sustentou a necessidade de uma restrita. O
discurso pode ser resumido dessa forma: tem doença que não tem como não internar. A definição
do caso restrito passa pela definição jurídica (auto e heteropericulosidade) e médica (gravidade
dos sintomas). Comumente, ocorre a mistura das duas definições, principalmente no caso em que
a gravidade dos sintomas seja identificada a tentativas de suicídio ou extrema agressividade. Mas
existe um outro tipo de discurso, que encontramos em alguns entrevistados, um tanto paradoxal e
contraditório: há o reconhecimento de que a hospitalização não é necessária, porém deve ser
realizada por causa do preconceito social e mesmo por pressão da família. A hospitalização torna-
se inevitável devido a fatores, digamos assim, extra-médicos. O entrevistado pode até resistir a
várias injunções familiares para a hospitalização; contudo, como a pressão é cotidiana, o
psiquiatra fraqueja enfim e abre a guarda. Há uma certa franqueza nessa confissão, pois a defesa
da hospitalização restrita, na verdade, insere-se de forma cômoda no discurso profissional, já que,
na prática, a hospitalização é ampla e irrestrita. No fundo, o discurso pede desculpa à prática.
Quase como uma desculpa, ainda existe uma outra resposta, do tipo: "devemos fazer o
possível para evitar a hospitalização; ela deve ser breve e rápida; tem casos que é impossível o
tratamento sem a hospitalização". Fica-se sem saber até que ponto, para o entrevistado, a
hospitalização não deveria existir, mas parece que a realidade impõe-na, ao risco de o
profissional ter que aceitar a sua convivência, independentemente da sua vontade. Pareceu-nos
evidente que a hospitalização impõe para o psiquiatra uma série de justificações, devido mesmo
ao seu caráter estigmatizante. Existiria uma espécie de "culpa" em relação à hospitalização, até
entre os psiquiatras que defendem o HP. Apesar da dupla transformação reiterada e aprovada por
todos ? do asilo para o hospital; do internamento para a hospitalização ? , a carga negativa em
torno desse ato de passagem da psiquiatria ainda existe forte o suficiente para causar embaraço.
285
Não causa surpresa que o debate acima descrito, sobre o hospital e a hospitalização,
repercuta de frente quando se discute a reforma psiquiátrica. Todos os entrevistados foram
unânimes em dizer que a psiquiatria brasileira não pode continuar como está atualmente. Foram a
favor da reforma, mas não existe propriamente consenso a respeito de qual modelo adotar. A
maioria dos entrevistados, inclusive, tem críticas sobre a sua implantação: está lenta demais, está
rápida demais, radical em demasia, conservadora em excesso. Contudo, basicamente o ponto
maior de controvérsia seria o modelo adotado. E, justamente, o grande problema é que somente
uma minoria de entrevistado sabe alguma coisa a respeito do modelo adotado. Uma minoria que,
não por mera coincidência, tem algum interesse ou empatia com o movimento que gerou a
reforma.
Nesse sentido, as respostas foram extremamente vagas. Houve raros elogios explícitos à
reforma enquanto prática realizada, ao contrário da unanimidade à necessidade de reforma. De
todo modo, como a reforma combate o hospitalocentrismo, todos os entrevistados, cuja simpatia
passava por qualquer modelo no qual o hospital ainda tem alguma primazia, foram reticentes à
reforma; de mesmo contrário, os entrevistados que foram contra o HP ou que defenderam um
sistema integrado sem predominância hospitalar mostraram um interesse pela reforma. Mas, se
houve controvérsias, pelo menos ocorreu algum consenso em relação aos problemas que a
reforma precisará enfrentar: 1) preconceito contra a reforma: muitos colocaram que o medo da
loucura atrapalha o movimento reformista, precisando assim de uma campanha acoplada de
esclarecimento; outros, que há resistência ideológica, principalmente por parte daqueles que
advogam um modelo asilar de tratamento psiquiátrico; 2) lobby privado: a maioria dos
entrevistados alegou que o sistema privado é um obstáculo à reforma porque bate de frente com a
eliminação de leitos hospitalares e, conseqüentemente, com a diminuição das hospitalizações.
286
XIII. Considerações Finais (à guisa de conclusão)
O fim de uma tese possui um sintoma típico: o medo de um olhar retrospectivo. Medo do
epílogo. Depois de todo um caminho de teorização e de pesquisa, temos a obrigação de examinar
tudo o que foi feito e responder à pergunta dilacerante: ? afinal, qual é a conclusão? Sim, com
efeito, qual seria a nossa conclusão? Talvez a ratificação de que analisar a identidade profissional
de psiquiatras é, de fato, uma tarefa complexa e difícil. Aliás, bem mais difícil do que
pensávamos inicialmente. Imaginávamos, no começo, que apreender a identidade profissional
não exigiria tanto esforço conceitual ? a identidade profissional dos psiquiatras fosse, digamos
assim, mais transparente e evidente. Nosso ponto de partida, no fundo, era de que não existisse
uma contradição tão visível entre identidade e papel social. Aos poucos, fomos obrigados a
procurar um caminho analítico no qual se reconhecesse a assimetria inerente ao processo de
identificação. Outra dificuldade foi a de estabelecer a relação entre identidade e prática, criando a
necessidade de se introduzir uma mediação, o conceito de representação, cuja vantagem foi a de
ter mostrado que a relação possui uma dialética bem mais complexa e árdua de se apreender. Por
causa disso, inclusive, tivemos que articular, de alguma forma, o campo representativo da doença
ao campo profissional, justamente porque o objeto profissional da psiquiatria, a doença mental,
possui uma importância relevante na construção da identidade profissional.
No fundo, olhando retrospectivamente, tentamos implementar uma construção teórica,
cuja interpretação do mundo empírico pudesse articular o psicológico e social, centrada no que
chamamos de "indivíduo socializado". Ela nos permitiu relacionar representações, práticas e
identidades ao examinarmos a maneira de pensar e agir de sujeitos inscritos em contextos
profissionais. Inclusive, a diversidade de representações e lógicas de ação trouxe a necessidade de
utilizarmos vários de aportes teóricos, cuja utilidade foi a de permitir uma melhor apreensão do
conjunto de problemas trazidos à baila pelo nosso objeto de estudo. Evidentemente, o apelo a
vários sistemas explicativos precisa de uma organização teórica, minimamente coerente e
operacional, que permita uma gestão clara das tomadas de decisão, sobretudo em relação às
interpretações realizadas a partir do material empírico. Ao se propor uma análise diferencial das
representações e ao se estudar as suas relações com as práticas e os processos de identificação,
tentou-se evitar a idealização das representações, isto é, um certo de tipo de mentalismo que as
transferisse mecanicamente para o mundo empírico.
287
Na nossa opinião, nossas análises demonstraram que o objeto profissional é constitutivo
da identidade profissional entre os psiquiatras. Todavia, seria uma questão empírica saber se o
objeto profissional do neurologista, por exemplo, possui uma importância comparável ao do
psiquiatra. A representação de doença em neurologia é estável. É dada para o profissional. Não
há necessidade de se posicionar, visto que já existe um consenso etiológico, isto é, uma tomada
de posição oficial a respeito da doença em neurologia. Não há ortodoxia, propriamente dita na
psiquiatria, mas sim uma competição entre linhas nosológicas que buscam a hegemonia no
campo psiquiátrico. O objeto da psiquiatria possui uma natureza que impede a sua apropriação
completa pela medicina psiquiátrica. E, atualmente, não é mais monopolizado pela psiquiatria e
sim socializado entre as várias profissões do campo da saúde mental. O objeto da psiquiatria
tornou-se objeto da saúde mental, logo, é representado e apropriado por várias profissões. Mas,
convenhamos, a doença mental nunca foi propriamente unidimensional, pois sempre existiram,
dentro da psiquiatria, sobretudo após a segunda guerra, várias representações oficiais, oficiosas e
não oficiais sobre a "loucura". A novidade é, assim, a ampliação dimensional do objeto para
outras profissões que, atualmente, formam o campo profissional da saúde mental. A doença
mental tornou-se um objeto pluriprofissional, possuindo um papel identitário diversificado. Os
psiquiatras, como vimos, possuem uma percepção aguda do problema e, alguns, um temor
pronunciado, pois a apropriação do objeto por outras profissões, independentemente do fato de
serem do campo da saúde mental, é uma perda concreta do antigo status da psiquiatria, quando
esta tinha o controle exclusivo da construção representacional do objeto profissional.
Pelo fato de não existir um consenso etiológico no campo psiquiátrico, há uma luta
fratricida entre diversas correntes nosológicas, embora ocorram também contemporizações,
sobretudo, como vimos, através do mecanismo de bricolagem. De todo modo, do ponto de vista
do controle representacional do objeto profissional, a psiquiatria possui uma fraqueza simbólica,
traduzida numa dificuldade de legitimação, não conseguindo impor no cenário disciplinar da
medicina uma concepção homogênea de doença. Se dentro da área médica, a psiquiatria não
consegue legitimar uma concepção de doença, o mesmo acontece no campo da saúde mental. O
que existe é um espaço onde há um pluralismo de representações de doença mental, justamente
porque acontece um pluralismo de profissões que têm como objeto profissional a doença mental.
Evidentemente, toda essa situação cria tensões identitárias, cujas conseqüências são percebidas
no trabalho em equipe. E, pelo que interpretamos do nosso trabalho, quanto mais constituída a
288
equipe multiprofissional em saúde mental, mais tensão haverá, mais necessidade terão os
psiquiatrias de re-configurarem sua ocupação para se adaptar aos novos tempos.
Por isso, repetimos, o exame do objeto profissional foi fundamental para o estudo da
identidade profissional entre os psiquiatras. Contudo, tivemos a necessidade de estabelecer o
alcance das representações da doença mental enquanto guias da ação dos entrevistados.
Percebemos assim algumas limitações, pois seria uma questão empírica saber, pelo menos em
relação ao nosso objeto de estudo, quando uma representação social possui essa capacidade de
orientação de conduta. Um exemplo: um psiquiatra que tenha uma representação analítica da
doença mental, dependendo do contexto, não "realiza" sua representação em termos de
comportamento. Como vimos, trabalhando num hospital público ou privado, ou se enquadra nas
normas da instituição ou o próprio ambiente impede que sua conduta seja "guiada" pela sua
representação. É no consultório que observamos uma adequação entre prática e representação,
pois está organizado de tal forma que permite o trabalho analítico. Em suma, percebemos limites,
em relação à determinação da prática, no alcance da representação.
O limite no alcance da representação pôde também ser percebido noutro contexto.
Observamos que a representação para "funcionar" precisava ter um mínimo de enquadramento
doutrinário. Acreditamos que isso seja característica das representações do campo profissional,
sobretudo daquelas que têm como mira o objeto da profissão, no caso daqui a doença mental.
Assim, a representação analítica e a biológica apresentaram uma capacidade de enquadramento
normativo relativamente forte, enquanto a representação clínica, justamente por não apresentar
uma característica doutrinária, não demonstrou a mesma força de coesão lógica e de indução de
condutas, não sendo um ponto de referência no qual se aglutinam atitudes e opiniões dos
entrevistados. Pode-se dizer que a representação clínica foi afetada pelo ecletismo dos
entrevistados, cuja característica é a mistura de registros nosológicos e de lógicas de ação
profissionais, perfazendo o que chamamos de bricolagem. De todo modo, chegamos à conclusão
de que a representação da doença mental, do ponto de vista identitário, pode se transformar,
dependendo das circunstâncias, em habitus ? no caso de psicanalistas e neuropsiquiatras
absolutamente convictos da sua noção de doença, ao ponto de percebê- la como doutrina ? ,
embora na maioria absoluta dos casos seja muito mais próxima do que chamamos de forma
identitária. As representações do objeto profissional podem estar a meio caminho entre o habitus
289
e as formas identitárias, mas as exclusivamente profissionais, ao contrário, são autênticas formas
identitárias, por causa de sua dependência do contexto ? logo, sua caracterização flutua segundo
as situações, e não pode ser deduzida logicamente, sendo sempre uma questão empírica.
Em relação ao campo profissional, o ponto central da discussão foi, provavelmente, a
discussão sobre a equipe multiprofissional, até porque as observações e as entrevistas mostraram
que, no trabalho em equipe, o jogo identitário profissional possui uma visibilidade importante.
Pensamos que o destino da equipe em saúde mental é o futuro da construç ão identitária do
psiquiatra, seja no sentido de uma luta profissional para a manutenção da posição privilegiada155
do médico, seja aceitando uma democratização do poder profissional médico, o que implicaria
uma re-configuração identitária. Sinceramente, somos pessimistas em relação a esse processo: o
primeiro cenário, na nossa opinião, sufocaria as potencialidades do trabalho em equipe; o
segundo geraria uma crise de identidade da qual não sabemos os desdobramentos. Na verdade, a
viabilização do trabalho em equipe, daí concretamente o nosso pessimismo, exigiria a realização
prática da Reforma Psiquiátrica, o que dificilmente vai acontecer a médio prazo. A tendência é a
saúde mental brasileira continuar atolada na transição e, assim, o trabalho em equipe permanecer
quase pro forma, favorecendo a institucionalização definitiva do poder médico. Por isso, a
realização prática da Reforma agilizaria a consolidação do trabalho em equipe no seio da saúde
mental ? convenhamos, mesmo uma equipe com uma clara coordenação médica, mas
funcionando a contento e erigida numa mínima participação consensual, é melhor do que a
situação atual.
Em relação à vocação, a discussão confirmou o que foi analisado teoricamente: a vocação
é um habitus vinculado ao individualismo. Assim sendo, encontramos no material empírico as
interpelações clássicas do individualismo moderno, sobretudo no sentido de uma vocação como
realização de si. Contudo, temos a impressão que, dada as injunções do mercado e da entrada em
cena de elementos relacionados ao individualismo contemporâneo, é possível que estejamos
chegando a uma época de crise vocacional. Por isso, achamos que a "escolha pragmática" será
cada vez mais dominante na escolha profissional. O ponto de referência será, de forma crescente,
a ascensão social e não uma motivação interna, do tipo vocacional clássico; será o mercado de
155 A defesa do Ato Médico é um sinal de que o conflito pode estar se direcionando para esta posição.
290
trabalho, e não "a realização de si"; será o sucesso e o reconhecimento, e não a "vontade de
ajudar". Assim, um estudante de medicina escolherá a psiquiatria, por exemplo, por sua inserção
no mercado de trabalho e sua resposta imediata em termos sobretudo financeiros156. Pensamos
que a crise vocacional é inerente a esse processo, sua conseqüência lógica e real.
Por fim, vale a pena assinalar um "ponto futuro" em nosso trabalho: carecemos de um
trabalho comparativo. Como discutimos na análise conceitual, a sociologia das profissões
necessita da comparação para tornar-se pertinente e fecunda. Comparação entre segmentos
profissionais, comparação entre profissões, comparação com sistemas profissionais de outros
países. Evidentemente, tal trabalho comparativo tornaria nossa pesquisa mais profunda, bem
como permitiria um alcance interpretativo bem maior do que aquele que foi realizado aqui.
Acreditamos que, assim, nosso trabalho é uma sinalização, um ponto de partida para outros
trabalhos de cunho comparativo que possa, inclusive, confirmar ou infirmar nossos
questionamentos, nossas hipóteses e nossas conclusões.
156 Por isso, talvez, encontramos atualmente tão poucos estudantes interessados na psiquiatria ? decididamente, ela não tem uma "resposta de mercado".
291
XIV. BIBLIOGRAFIA
ABBOTT, Andrew. The system of professions: An essay on the division of expert labor.
Chicago: The University of Chicago Press, 1988.
AEBISCHER, Verena & DUCONCHY, Jean-Pierre & LIPIANSKY, E. Marc. Idéologies et
représentations sociales. Suisse: Delval, 1991.
ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon. Instituição e poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986
ALEZRAH, C. Les psychiatres des hôpitaux. Aujourd´hui et demain. L´information
Psychiatrique, Paris: nº 678, outubro 1992.
ALMEIDA, Celia. Médicos e assistência médica: Estado, mercado ou regulação? Uma
falsa questão. Cad. Saúde Pública, out./dez. 1997, vol.13, no.4, p.659-676. ISSN 0102-
311X.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
AMARANTE, Paulo. Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma
psiquiátrica. Cad. Saúde Pública, jul./set. 1995, vol.11, no.3, p.491-494. ISSN 0102-311X.
ARAÚJO, Maria de Fátima Santos. Um "quase – doutor": prática profissional e
construção da identidade do enfermeiro no programa de saúde da família. 2003. 194f.
Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia,
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2003.
ARLIAUD, M. Les médecins. Paris: Maspéro. 1987.
BALINT, M. Le médecin, son malade et la maladie. Paris: Payot, 1973.
BARBIER, Jena-Marie, GALATANU, Olga (orgs.). Action, affects et transformation de
soi. Paris: PUF, 1998.
BARDIN, L. L'analyse de contenu. Paris: PUF, 1978.
BASAGLIA, Franco. A instituição negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985
BASTIDE, Roger. Les sciences de la folie. Paris: Mouton, 1972.
BASTIDE, Roger. Sociologie des maladies mentales. Paris: Flammarion, 1965.
BASZANGER, Isabelle. Les chantiers d'un interactionniste américain. In: STRAUSS,
Anselm. La trame de la négociation: sociologie qualitative et interactionnisme. Paris:
L´Harmattan, pp. 11-61, 1992.
292
BECKER H. S. The nature of a profession. Education for the professions. In: Sixty first
yearbook of the National Society for the study of education. Chicago: Univ. Of Chicago
Press, 1962.
BECKER H. S. Outsiders. Études de sociologie de la déviance. Paris: Métailié, 1985.
BECKER H. S. Les mondes de l'art. Paris: Flammarion, 1988.
BENSAÏD, N. La consultation. Paris: Denoël-Gonthier, 1974.
BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. La construction sociale de la réalité. Paris:
Meridiens Klincksieck, 1992.
BERLINGUER, Giovanni. A Doença. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
BERLINGUER, Giovanni. Psiquiatria e Poder. Minas Gerais: Interlivros, 1976.
BERTOLOTE, José M. Legislação relativa à saúde mental: revisão de algumas
experiências internacionais. Rev. Saúde Pública, abr. 1995, vol.29, no.2, p.152-156. ISSN
0034-8910.
BLACKBURN, Robin (org.). Ideologia na ciência social . Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982.
BLEDSTEIN B. J. The culture of professionalism: the middle class and the development of
higher education in America. New York: Norton, 1978.
BLIN, Jean-François. Représentations, pratiques et identités professionnelles. Paris:
L'Harmattan, 1997.
BOLTANSKI, Luc. Consommation médicale et rapport au corps. Paris: CSE, 1971.
BOLTANSKY, Luc. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 3º edição, 1989.
BONELLI, Maria da Gloria. O Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros e o Estado: a
profissionalização no Brasil e os limites dos modelos centrados no mercado. Rev. bras. Ci.
Soc., fev. 1999, vol.14, no.39, p.61-81. ISSN 0102-6909.
BOUDON, Raymond. L'Idéologie ou l'origine des idées reçues. Paris: Fayard, 1986
BOURDIEU, P. Le sens pratique. Paris: Éds. De Minuit, 1980.
BOURDIEU, Pierre, PASSERON J. -C. La reproduction. Les fonctions du système
d'enseignement. Paris: Ed. Minuit, 1970.
BOURDIEU, Pierre. Choses dites. Paris: Les Éditions de Minuit, 1987.
BOURRICAUD, François. L´individualisme institutionnel: essai sur la sociologie de T.
Parsons. Paris: PUF, 1977.
293
BRAVERMAN, H. Travail et capitalisme monopoliste. Paris: Maspero, 1976.
BUCHER R., STRAUSS A. Professions in process. American journal of sociology,
p.325-334, 1961.
BURRAGE, Michael & TORSTENDAHL, Rolf (Ed.). Professions in theory and history:
rethinking the study of the professions. London: Sage. 1990.
CADORET, Michelle (org.). La folie raisonnée. Paris: PUF, 1989
CAIAFA, D. Movimento Punk na cidade: a invasão dos bandos sub. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1985
CAMARGO JR., Kenneth R. de. Sobre palheiros, agulhas, doutores e o conhecimento
médico: o estilo de pensamento dos clínicos. Cad. Saúde Pública, jul./ago. 2003, vol.19,
no.4, p.1163-1174. ISSN 0102-311X.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 2º
edição, 1982.
CARR-SAUNDERS, A.M.. The professions. London: Oxford University Press, 1933.
CASTEL, Robert. La gestion des risques: de l'anti-psychiatrie à l'après psychanalyse.
Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.
CASTEL, Robert. L'ordre psychiatrique. L'âge d'or de l'aliénisme. Paris: Les Éditions de
Minuit, 1976.
CASTELLS, Mannuel. O poder da identidade. Vol II, São Paulo: Paz e Terra, 2000.
CLAVREUL, Jean. A Ordem Médica: poder e impotência do discurso médico. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1983.
COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia
no Rio de Janeiro 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.
COLLINS, Randall. Market closure and the conflict theory of the professions. In:
BURRAGE, Michael, TORSTENDAHL, Rolf (orgs). Professions in theory and history.
London: Sage, 24-43, 1990.
COMTE-SPONVILLE, André, FERRY, Luc. A sabedoria dos modernos. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
COOPER, David. Psychiatrie et antipsychiatrie. Paris: Seuil, 1971.
COOPER, David & LAING, Ronald. Razão e violência . Petrópolis: Vozes, 1976
294
COSTA, Jurandir Freire. História da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Documentário,
1976.
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e Norma familiar. Rio de Janeiro: Graal,
1979.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
DASCAL, Marcelo (org.). Conhecimento, linguagem e ideologia. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1989.
DEJOURS, Christophe. O corpo, entre a biologia e a psicanálise. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1988.
DELAPORTE, François. Le savoir de la maladie: essai sur le choléra de 1832 à Paris.
Paris: PUF, 1990.
DEMAILLY, L. La qualification ou la compétence professionnelle des enseignants.
Sociologie du Travail, nº1, 59-69, 1987.
DERBER, Charles, SCHWARTZ, William. Des hiérarchies à l´intérieur de
hiérarchies: le pouvoir professionnel à l´oeuvre. Sociologie et sociétés, vol.XX, nº2,
octobre 1988.
DESROSIÈRES, A., THÉVENOT, L. Les catégories socio-professionelles. Paris: Éd. La
Découverte, Coll Repères, 1988.
DEVEREUX, G. Essais d´ethnopsychiatrie générale. Paris: Gallimard, 1970.
DINIZ, Marli. Os donos do saber. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
DODIER, N. L´expertise médicale: essai de sociologie sur l´exercice du jugement . Paris:
Métailié, 1993.
DOISE, W, MOSCOVICI, Serge. Dissensions & Consensus: une théorie générale des
décisions collectives. France, PUF, 1992.
DOISE, W. Et al. Représentations sociales et analyses de données. France: Presses
Universitaires de Grenoble, 1992.
DOISE, W., CLEMENCE, A, LORENZI-CIOLDI, F. Représentations sociales et analyses
de données. Grenoble: PUG, 1992.
DUBAR, C. La qualification à travers les journées de Nantes. Sociologie du Travail, nº1, 3-
14, 1987.
295
DUBAR, Claude. La socialisation: construction des identités sociales et professionnelles.
Paris: Armand Colin, 1991.
DUBAR, Claude, TRIPIER, Pierre. Sociologie des professions. Paris: Armand Colin, 1998.
DUMONT, Louis. Essais sur l'individualisme. Paris: Seuil, 1983
DURKHEIM, Emile. L'évolution pédagogique em France. 2º Paris: PUF, 1969.
DURKHEIM, Emile. Education et sociologie. Paris: PUF, 1977.
DURKHEIM, E. Les formes élémentaires de la vie religieuse. 3º edição, Paris:
PUF/Quadrige, 1994.
DURKHEIM, E. De la division du travail social. Paris: PUF, 1998.
EDELMAN, G. L. Biologie de la conscience. Paris: Odile Jacob, 1992.
EHRENBERG, Alain. Le culte de la performance. Paris: Calmann-Lévy, 1991.
EHRENBERG, Alain. La fatigue d'être soi. Paris: Odile Jacob, 1998.
ELSTER, John. Karl Marx: une interprétation analytique. Paris: PUF, 1989.
ESCANDE, J.P.. Les Médecins. Paris: Grasset, 1975.
ELIAS, Nobert. Qu'est-ce que la sociologie? Paris: Éditions de l'Aube, 1991.
ELIAS, Nobert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
ERIKSON, E. Enfance et société. Neuchâtel: Delachaux et Nestlé, 1966.
FERRO, Marc. Les sociétés malades du progrès. Paris: Plon, 1998.
FIGUEIRA, Sérvulo A. (org.). Sociedade e Doença Mental. Rio de Janeiro: Editora
Campus, 1978.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1971.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Petrópolis: Vozes, 1972
FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia . Rio de Janeiro: Graal, 1984.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Vol I, Rio de Janeiro:
Graal, 1977.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense, Universitária, 3º
edição, 1987.
296
FREIDSON, E. The theory of professions: state of the art. In: DINGWALL, R. & LEWIS,
Philip (org.). The sociology of the professions: lowyers, doctors, and others. New York: St
Martin's Press, 1982.
FREIDSON, Eliot. La profession médicale. Paris: Payot, 1984.
FREIDSON, E. The Changing nature of professional control. In: Annual Review of
Sociology, vol. 10 (1-20), 1984.
FREIDSON, E. Professional powers: a study of the institutionalization of formal
knowledge. Chicago: University of Chicago, 1986.
FREIDSON, E. Renascimento do profissionalismo. São Paulo: Edusp, 1998.
FREITAS, Fernando Ferreira Pinto de. Subsídios para mudanças do modelo de assistência
psiquiátrica. Cad. Saúde Pública, jan./mar. 1998, vol.14, no.1, p.093-106. ISSN 0102-
311X.
FREUD, S. Essais de psychanalyse. Paris: Payot, 1987.
GAUCHET, Marcel. L'inconscient cerebral. Paris: Le Seuil, 1992
GHIGLIONE, Rodolphe, BEAUVOIS, Jean-Léon, CHABROL, Claude, TROGNON,
Alain. Manuel d'analyse de contenu. Paris: Librairie Armand Colin, 1980.
GIANNETTI, Eduardo. O mercado das crenças: filosofia econômica e mudança social.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
GIDDENS, Anthony. La constitution de la société. Paris: PUF, 1987.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1993.
GODELIER, Maurice. L´idéel et matériel. Paris: Fayard, 1984.
GOFFMAN, Erving. La mise en scène de la vie quotidienne. Vol I, Paris: Ed. Minuit, 1973.
GOFFMAN, Erving. Les rites d'interaction. Paris: Ed. Minuit, 1974.
GOFFMAN, Erving. Manicômio, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectivas, 1974.
GOFFMAN, Erving. Stigmate. Paris: Ed. Minuit, 1975.
GOLDHAGEN, Daniel Jonah. Os carrascos voluntários de Hitler: o ovo alemão e o
holocausto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
GOLDSTEIN, Jan. Consoler et classifier: l'essor de la psychiatrie française. France:
Synthélabo, 1997
GORZ, André. Crítica da divisão do trabalho. 2º edição, São Paulo: Martins Fontes, 1989.
297
GRMEK, Mirko D. La première révolution biologique. Paris: Payot, 1990.
GUICHENEY, P. Qu´est -ce que le médecin?. Paris: Mouton, 1974.
GUIMÓN, J. La profession de psychiatre. Paris: Masson, 1998.
HABERMAS, Jürgen. Morale et communication. France: Le Cerf, 1987.
HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa; racionalidad de la acción y
racionalización social. Tomo I, Madrid: Taurus, 1987
HABERMAS, Jürgen. Théorie de l´agir communicationnel. 2 tomes, Paris: Fayard, 1987b.
HALL, Oswald. Les étapes d´une carrière médicale. In: HERZLICH, Claudine (org.).
Médecine, maladie et société. Paris: Mouton, pp 210-225, 1970
HAMBURGER, J. Introduction au language de la médecine. Paris: Flammarion, 1979.
HELARY, jean-Pierre. Attitudes et représentations dans la pratique hospitalière
aujourd´hui: proposition pour une étude anthropologique. In: 110º Congrès Nacional des
Sociétés Savantes: Le corps humain: Nature, Culture, Surnaturel. Montpellier: 1985
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2º edição, 1985.
HARRÉ, Rom. Grammaire et lexiques, vecteurs des représentations sociales. In:
JODELET, Denise (org.). Les représentations Sociales. 3º edição. Paris: PUF, pp. 116-131,
1993.
HERZLICH, C., PIERRET, Janine. Malades d´hier, malades d´aujourd´hui. Paris: Payot,
1984.
HERZLICH, C. Santé et maladie: analyse d'une représentation sociale. Paris: Nouton, 2º
edição, 1975.
HERZLICH, Claudine (org.). Médecine, maladie et société. Paris: Mouton, 1970.
HUGHES, E.C.
HUGHES, E.C. Le regard sociologique. Paris: EHESS, 1996.
ISRAËL, L. La décision médicale. Paris: Calmann-Lévy, 1980.
JAMOUS, Haroun. Sociologie de la décision. La réforme des études médicales et des
structures hospitalières. Paris: Editions du CNRS, 1969.
JODELET, D. et al. Les représentations sociales. Paris: PUF, 1989.
JODELET, Denise. La representación social: fenómenos, concepto y teoria. In:
MOSCOVICI, S. Psicologia Social. p.474, Buenos Aires: Paidos, 1986.
298
JODELET, Denise. Folies et représentation sociales. Paris: Presses Universitaires de
France, 1989.
JONHSON, T. Professions and power. Londres: Macmillan, 1972.
JUNKER, Buford H. A importância do trabalho de campo (uma introdução às ciências
sociais). Rio de Janeiro: Lidador, 1971.
KANTOROWICZ, E. Les deux corps du roi. Paris: Gallimard, 1989.
KARPIK, Lucien. Les politiques et les logiques d'action de la grande entreprises
industrielles. In: Sociologie du travail, Nº 1, p.82-105, 1972.
KARPIK, Lucien. Les avocats entre l'État, lê public et lê marche. XII-XX siècle. Paris:
Gallimard, 1995.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectivas, 1975.
LACAN, J. Le séminaire, II. Paris: Seuil, 1978.
LAING, R-D. Le soi et les autres. Paris: Gallimard, 1971.
LAMBRICHS, Louise L. La vérité médicale. Claude Bernard, Louis Pasteur, Sigmund
Freud: légendes et réalités de notre médecine. Paris: Robert Laffont, 1993.
LANCETTI, Antonio (org.). Saúde loucura. nº1, São Paulo: Hucitec, 1989.
LAPLANCHE, J., PONTALIS, J-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Ed. Martins
Fontes, 1980.
LAPLANTINE, François. Anthropologie de la maladie Paris: Payot, 1992.
LARSON, M.S. Professionalism: rise and fall. In: International Journal of Heath Services,
9, 609-627, 1979.
LARSON, Magali S. À propos des professionnels et des experts ou comme il est peu utile
d´essayer de tout dire. In: Sociologie et sociétés, Les Presses de l´université de Montreal,
vol XX, nº 2, pp.23-40, octobre, 1988.
LARSON, Magali S. The rise of professionalism: a sociological analysis. Berkeley:
University of California Press, 1977.
LEGAULT, M-J. Le métier de chercheur scientifique en sciences sociales et la sociologie
des professions. In: Sociologie et sociétés, vol.XX, nº2, octobre 1988.
LIMA-GONÇALVES, Ernesto. Médicos e ensino da medicina no Brasil. São Paulo:
Edusp, 2002.
LIPIANSKY, M.(org.). Stratégies identitaires. Paris: PUF, 1990.
299
LIPOVETSKY, Gilles. L'ère du vide: essais sur l'individualismo contemporain. Paris:
Gallimard, 1993.
LOPES, J.L. A psiquiatria e o velho hospício. In: Jornal brasileiro de psiquiatria, 14: 3-19,
1965
LUZ, Madel T. As instituições médicas no Brasil. 3º edição, Rio de Janeiro: Graal, 1986.
LUZ, Madel T. Natural, Racional, Social. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: Medicina social e constituição da
Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
MACHADO, Roberto. Ciência e Saber (a trajetória da arqueologia de Foucault). Rio de
Janeiro: Graal, 1982.
MacINTYRE, A. Après la vertu: études de théorie morale. Paris: PUF, 1997.
MAIA, Rousiley C. M. e FERNANDES, Adélia B. O movimento antimanicomial como
agente discursivo na esfera pública política. Rev. bras. Ci. Soc., fev. 2002, vol.17, no.48,
p.157-171. ISSN 0102-6909.
MARGLIN, Stephen. Origem e funções do parcelamento das tarefas (para que servem os
patrões?). In: GORZ, André. Crítica da divisão do trabalho. São Paulo: Martins Fontes,
pp. 39-77, 1989.
MARSIGLIA, R.G. et al. Saúde mental e cidadania. São Paulo: Mandacaru, 1987.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo, Martin Claret, 2001
MEAD, G-H. L'esprit, le soi et la société. Paris: PUF, 1963
MEDEIROS, Tácito. Formação do modelo assistencial psiquiátrico brasileiro. 1977. 256f.
Dissertação (Mestrado em Psiquiatria) - Instituto de Psiquiatria, UFRJ, Rio de Janeiro,
1977.
MEDEIROS, Soraya Maria de e GUIMARAES, Jacileide. Cidadania e saúde mental no
Brasil: contribuição ao debate. Ciênc. saúde coletiva, 2002, vol.7, no.3, p.571-579. ISSN
1413-8123
MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MICHELAT, Guy. Sobre a utilização da entrevista não-diretiva em Sociologia. IN:
THIOLLENT, Michel (org.). Crítica metodológica, investigação social e enquête operária.
São Paulo: Polis, p.201, 1980.
300
MILES, Agnes. O doente mental na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar,
1982.
MYERHOFF, B, LARSON, W. The doctor as culture hero: the routinization of charisma.
Human organization, 24, 187-191, 1965.
MOLINER, Pascal. Images et représentations sociales: de la théorie dês représentations à
l'étude des images sociales. Grenoble: PUG, 1996
MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
MOSCOVICI, Serge, HEWSTONE, Miles. De la science au sens commum. In:
MOSCOVICI, Serge (org.). Psychologie sociale. Paris: PUF, p.541, 1986.
MOSCOVICI, Serge (org). Psicologia Social. Buenos Aires: Paidôs, 1986.
MOSCOVICI, Serge, Doise. W. Dissensions e consensus. Une théorie générale des
décisions collectives. Paris: PUF, 1992
MOULIN, Anne Marie. Le dernier language de la Médecine: histoire de l´immunologie de
Pasteur au SIDA. Paris: PUF, 1991.
MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. São Paulo: Nova Fronteira, 1989.
NICÁCIO, Maria F. Da instituição negada à instituição inventada. In: Saúde & Loucura.
São Paulo: Hucitec, p.91-109, 1989.
OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1989.
OGIEN, Albert. Le raisonnement psychiatrique. Paris: Meridiens Klincksieck, 1989.
OGIEN, Albert. Sociologie de la déviance. Paris: Armand Colin, 1995.
ORTIZ, Renato. Durkheim: arquiteto e herói fundador. In: Revista brasileira de ciências
sociais, (11): 5-22, 1989.
PAICHELER, G. L'invention de la pychologie moderne. Paris: L´Harmattan, 1992.
PARADEISE, C. Des savoirs aux compétences: qualification et régulation des marché du
travail. Sociologie du Travail, nº 1, 35-46, 1987.
PARADEISE, Catherine. Les professions comme marchés du travail fermés. In: Sociologie
et sociétés, vol.XX, nº2, octobre 1988.
PARSONS, T. Professions. In: SILLS, David L. (org.). Internacional Encyclopedia of the
Social Sciences, New York: Crawell Collier and Macmillan, p. 536-547, 1968.
PARSONS, Talcott. Éléments pour une sociologie de l'action. Paris: Plon, 1955.
301
PAULO NETTO, José, FALCÃO, Maria do Carmo. Cotidiano: conhecimento e crítica.
São Paulo: Cortez, 1987.
PELBART, Peter Pál. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
PERRUSI, Artur. Imagens da Loucura: representação social da doença mental na
psiquiatria. São Paulo: Cortez, 1995.
PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.
POLANYI, K. La grande transformation. Paris: Gallimard, 1983
POROT. M. La psychologie médicale du praticien. Paris: PUF, 1976.
PORTER, Roy. Uma história social da loucura. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: Zahar,
1978.
POULANTZAS, Nicos. O estado, o poder, o socialismo. 2° edição, Rio de Janeiro: Graal,
1985.
PUTNAM, Hilary. Représentation et réalité. Paris: Gallimard, 1990.
QUINET, Antonio (org.). Psicanálise e psiquiatria: controvérsias e convergências. Rio de
Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
RAIKOVIC, Pierre. Le sommeil dogmatique de Freud. França: Synthélabo, 1994.
RENAUT, Alain. O indivíduo: reflexão acerca da filosofia do sujeito. Rio de Janeiro:
Difel, 1998
RESENDE, Heitor. Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Cidadania e
loucura: políticas de saúde mental no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1987.
REYNAUD, Jean-Daniel, PARADEISE, Cather ine. Les systèmes de relations
professionelles. Paris: Editions du CNRS, 1990.
REYNAUD, Jean-Daniel. Qualification et marché du travail. In: Sociologie du Travail, nº
1, 86-109, 1987.
REYNAUD, Michel, LOPEZ, A. Evaluation et organisation des soins en psychiatrie.
Paris: Éditions Frison-Roche, 1994.
RIBEIRO, Herval Pina. O hospital: história e crise. São Paulo: Cortez, 1993.
RIBEIRO, José M., SCHRAIBER, Lilia B. A autonomia e o trabalho em medicina. Cad.
Saúde Pública, Junho 1994, vol.10 no.2. ISSN 0102-311X
302
ROSÁRIO COSTA, Nilson (org.). Demandas populares, políticas públicas e saúde.
Petrópolis: Vozes, 1989.
ROSEN, George. Da polícia médica à Medicina Social. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
SAINSAULIEU, Renaud. Sociologie de l'organisation et de l'entreprise. France: Presse de
la Fondation Nationale des Sciences Politiques & Dalloz, 1987
SCHELER, Max. Problèmes de sociologie de la connaissance. Paris: PUF, 1993.
SCHLANGER, Judith. La vocation. Paris: Seuil, 1997.
SCHURMANS, Marie-Noëlle. Maladie mentale et sens commun: une étude de sociologie
de la connaissance. Suisse: Delachaux & Niestlé, 1990.
SCHRAIBER, Lilia B. O trabalho médico: questões acerca da autonomia profissional. Cad.
Saúde Pública, Março 1995, vol.11 no.1. ISSN 0102-311X
SCHUTZ, Alfred. Le chercheur et le quotidien. Paris: Meridiens Klincksieck, 2º edição,
1994.
SWAIN, Gladis. Dialogue avec l'insensé: à la recherche d'une autre histoire de la folie.
Paris: Gallimard, 1994.
SIMMEL, George. Sociologie: etudes sur les formes de la socialisation. Paris: PUF, 1999.
SINDING, Christiane. Le clinicien et le chercheur. Paris: PUF, 1991.
SINGER, Paul (org.). Prevenir e curar. 3ºedição, Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1988.
SKRABANEK, Petr, MACORUICK, Jones. Idées folles, idées fausses en Médecine. Paris:
Éditions Odile Jacob, 1992.
SMITH, Andrew Croyden. Esquizofrenia e Loucura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
SONENREICH, Carol, KERR-CORREA, Florence. Para uma psiquiatria dos anos noventa.
In: Revista ABP-APAL, 12 (1,2,3,4), p. 8, 1990.
SOUZA, Jessé de. O malandro e o protestante. Brasília: Edub, 1999.
SOURNIA, Jean-Charles. Histoire de la médecine. Paris: La Découverte, 1992.
SPERBER, Dan. L'étude anthroplogique des représentations. In: JODELET, Denise. et al.
Les représentations sociales. Paris: PUF, 1989.
STEPHAN, Jean-Claude. Economie et pouvoir médicale. Paris: Economica, 1978.
STRAUSS, Anselm. La trame de la négociation: sociologie qualitative et interactionnisme.
Paris: L´Harmattan, 1992.
303
SWAIN, Gladys. Dialogue avec l'insensé. Paris: Gallimard, 1994.
SZASZ, Thomas S. O mito da doença mental. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
THIOLLENT, Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquête operária. São
Paulo: Polis, 1980.
THOMPSON, E.P. Miséria da Teoria (ou um planetário de erros). Rio de Jane iro: Zahar,
1981.
TORRE, Eduardo Henrique Guimarães e AMARANTE, Paulo. Protagonismo e
subjetividade: a construção coletiva no campo da saúde mental. Ciênc. saúde coletiva,
2001, vol.6, no.1, p.73-85. ISSN 1413-8123.
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. 2° edição, Petrópolis-RJ, Vozes, 1994.
VÁRIOS. Cidadania e loucura (políticas de saúde mental no Brasil). Petrópolis, Vozes,
1987.
VÁZQUEZ, Adolfo Sanchez. Filosofia da praxis. 2° edição, Rio de Janeiro: 1977.
VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas paa uma antropologia da sociedade
ontemporânea. 5° edição, Rio de Janeiro, 1999.
VERGEZ, Bénédicte. Le monde des médecins au XXe siècle. Paris: Ed. Complexe, 1996.
WATIER, Patrick. La sociologie et les représentations de l'activité sociale. Paris:
Meridiens Klincksiek, 1996.
WEBER, Max. Le savant et le politique. Paris: Plon, 1959.
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1970.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 5° edição, São Paulo:
Pioneira, 1987.
WEBER, Max. Essais sur la théorie de la science. Paris: Presses Pocket, 1992.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. volume I, 3° edição, Brasília, Editora Universidade
de Brasília, 2000.
WEBSTER, Richard. Por que Freud errou: pecado, ciência e psicanálise. Rio de Janeiro:
Record, 1999.
WRIGHT, E. O. Class, crisis and the state. Londres: Verso, 1978.
WRIGHT, E. O. Classes. Londres: Verso, 1985.
304
XV. Anexo I
Guia de entrevista:
Doença mental:
interrogar o psiquiatra sobre sua concepção de psicose, em particular, sobre a esquizofrenia.
interrogar o psiquiatra sobre sua concepção acerca do lugar que ocupa as nevroses na psiquiatria.
Interrogar o psiquiatra sobre a existência ou não do dualismo nosológico na psiquiatria
interrogar o psiquiatra sobre as etiologias das doenças mentais (determinar o lugar do biológico, do psíquico e do meio social e familiar na etiologia).
interrogar o psiquiatra sobre o tratamento sintomático das doenças mentais (o lugar dos medicamentos e das psicoterapias).
interrogar o psiquiatra sobre as principais dificuldades do tratamento sintomático das doenças mentais.
interrogar o psiquiatra sobre os preconceitos face à doença mental.
Psiquiatria e seu saber
interrogar o psiquiatra sobre o caráter científico da psiquiatria
interrogar o psiquiatra sobre a relação entre a psiquiatria e a neurologia
interrogar o psiquiatra sobre as diferenças entre saber psiquiátrico e saber profano da doença mental
Identidade profissional
interrogar o psiquiatra sobre o lugar da psiquiatria na sociedade
305
interrogar o psiquiatra sobre o lugar da psiquiatria na medicina, principalmente face à neurologia (valorização ou desvalorização da psiquiatria, retorno da psiquiatria à neurologia).
interrogar o psiquiatra sobre as relações profissionais nas quais ele se engaja para fazer seu trabalho
interrogar o psiquiatra sobre quais as relações mais difíceis dentro do trabalho
interrogar o psiquiatra sobre o trabalho em equipe
interrogar o psiquiatra sobre o tratamento (monopólio ou não)
Trajetória
Profissão dos pais e avós
interrogar o psiquiatra sobre sua vocação profissional (o motivo de ter escolhido a psiquiatria, o tipo "ideal" do psiquiatra)
Centro de formação universitária (idade de entrada e saída) e as características da disciplina de psiquiatria
currículo sucinto
instituição de referência, psiquiatra de referência e obras de psiquiatria de referência
percurso profissional depois de sua entrada no mercado de trabalho (quais instituições, salários iniciais e atuais)
Lugar(es) de trabalho atual(is) (nível de satisfação)
Hospital
interrogar o psiquiatra sobre o lugar do hospital psiquiátrico nas instituições médicas
interrogar o psiquiatra sobre o lugar do hospital geral nas instituições psiquiátricas.
interrogar o psiquiatra sobre o papel do hospital psiquiátrico no ostracismo do paciente
306
interrogar o psiquiatra sobre o papel da hospitalização na psiquiatria
interrogar o psiquiatra sobre o sistema psiquiátrico francês/brasileiro (seus problemas, suas virtudes, seu futuro)
XVI. Anexo II
Protocolo de observação
1. PSIQUIATRA / PACIENTE
1.1. Psiquiatra / situação de consulta
1.2. Psiquiatra / situação de hospitalização (hospitalização compulsória e/ou voluntária)
1.3. Psiquiatra /situação de assistência e de acompanhamento do paciente hospitalizado
1.4. Psiquiatra / psicótico
1.5. Psiquiatra/ neurótico
1.6. Psiquiatra / diagnóstico
1.7. Psiquiatra/ tratamento
2. PSIQUIATRA / SERVIÇO (HOSPITAL, SETOR OU AMBULATÓRIO)
2.1. Organograma do hospital ou do serviço
2.2. Psiquiatra / hierarquia do serviço
2.3. Psiquiatra / normas do serviço
3. PSIQUIATRA / PROFISSIONAL DE SAÚDE
3.1. Psiquiatra / trabalho em equipe
3.2. Psiquiatra / enfermeiras
3.3. Psiquiatra / hierarquia funcional ou profissional
307
3.4. Psiquiatra / Psiquiatra
4. PSIQUIATRA / PROCEDIMENTOS
4.1. Psiquiatra / medicamentos
4.2. Psiquiatra / dossiê
4.3 Psiquiatra / caso difícil
4.4 Psiquiatra x árbitro de seu poder (alocação do paciente, transferência de pavilhão, etc)