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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE CENTRO DE EDUCAÇÃO, FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO, ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA
RITA DE CASSIA CASTILHO VARLESI DE AZEVEDO
PERSONA – UM OBJETO ESTÉTICO NA AMBIÊNCIA
SÃO PAULO 2018
RITA DE CASSIA CASTILHO VARLESI DE AZEVEDO
PERSONA – UM OBJETO ESTÉTICO NA AMBIÊNCIA
Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial à obtenção de título de Doutora em Educação, Arte e História da Cultura. Orientadora: Profa. Dra. Regina Lara Silveira Mello
SÃO PAULO
2018
Bibliotecária Responsável: Ana Lucia Gomes de Moraes - CRB 8/6941
A994o Azevedo, Rita de Cassia Castilho Varlesi de.
Persona : um objeto estético na ambiência / Rita de Cassia Castilho Varlesi de Azevedo. – 2018.
159 f. : il. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Educação, Arte e História da Cultura) - Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018. Orientador: Regina Lara Silveira Mello Referências bibliográficas: f. 135-137.
1. Persona. 2. Ambiência. 3. Performance. 4. Dispositivos. 5. Interação. I.
Mello, Regina Lara Silveira, orientador. II. Título.
CDD 709.04071
Aos meus amores
Wilton e Julia.
Na vida me descobri musa de uma arte que também me pertencia.
Desvelando minhas Personas, percorri por um caminho de memórias
de um amor infinito que se fez arte e o fará sempre
na voz de um único duplo. Tawi
RESUMO Esta tese objetiva apresentar experimentos artísticos voltados à temática da Persona de modo a identificar a relação do objeto estético na ambiência analógica/digital. O recorte desta pesquisa visa articular teorias sobre o modo como cada área artística estudada elabora a construção da sua Persona, levando algumas obras a dialogar com outras áreas, ampliando os horizontes significantes para o espectador. Os levantamentos técnicos sobre a obra de cada artista conduzem o encaminhamento da pesquisa refletindo sobre o modo estético e teórico utilizado nas obras. A escolha dos artistas citados objetiva traçar um paralelo entre a prática artística e a intervenção dos dispositivos presentes nas obras, tomando o foco nas Personas e na ambiência. A pesquisa caminha por uma exteriorização da Persona pelas máscaras e performances, e tem como diferenciador estético a potencialização dos dispositivos analógicos ou digitais. A partir disto, o percurso segue em diversas áreas das Artes como: teatro, fotografia, performance, dança e arte digital de modo a abranger diferentes experiências estéticas e, portanto, cada “máscara” se diferencia e se assemelha na identificação da Persona. A metodologia usada consiste em levantamentos teóricos, trabalhando a historicidade nas relações das áreas citadas e a interlocução com os dispositivos utilizados para a elaboração das obras. O objetivo geral desta pesquisa é apresentar a teoria e a prática da atividade artística em diferentes segmentos das artes de modo a apontar relações identitárias nas obras dos diferentes artistas. A justificativa desta pesquisa está no ato criativo do artista na elaboração de sua Persona, no percurso escolhido para a expressão da sua máscara e na ambiência na qual ela se instala. Palavras-chave: Persona; ambiência; performance; dispositivos; interação.
ABSTRACT This thesis is aimed to present artistic experiments focused on the subject matter of the Persona, in order to identify the relationship of the aesthetic object in the analogue/digital ambience. The clipping of this research has in view to articulate teories about the way how each studied artistic area elaborates the construction of his Persona, making some of these works to dialogue with other áreas, expanding the significant horizons for the viewer. The technical surveys on the work of each artist lead this research, refleting on the aesthetic and theorical method used in their works. The choise of the mentioned artists aims to draw a parallel between artistic practice and the intervection of the devices present in the works, having the focus on the Persona and the ambience. The research walks to an exteriorization of the Persona through the masks and performances and it has as an aesthetic differentictor, the potentialization of the analog or digital devices. From this stage, the route follows in several areas of the arts as: theather, photography, performance, dance and digital art in order to cover different aestetic experiences and therefore each “mask” differs and looks like the identification of the Persona. The methodology used consists of theorical surveys working as historicity in the relations of the mentioned areas and the interlocution with the devices utilized for the elaboration of the works. The general purpose of this research is to present the theory and practice of the artistic activity in different segments of the arts, in order to appoint the identities in the works of the different artists. The justification for this research lies in the artist's creative act, in the elaboration of his Persona, in the course chosen for the expression of his mask and in the ambience in which he settles. Keywords: Persona; ambience; performance; devices; interaction.
RESUMEN Esta tesis busca presentar experimentos artísticos sobre la temática de la Persona, a fin de identificar la relación con el objeto estético en la ambiência analógico/digital. El recorte de esta investigación articula teorías sobre el modo como cada área artística estudiada elabora la construcción de su Persona, llevando algunas obras a dialogar con otras áreas y, por consiguiente, amplían los horizontes significantes para el espectador. Los levantamientos técnicos sobre la obra de cada artista conducir el encaminamiento de la investigación, reflexionando sobre el modo estético (y teórico) empleado en las obras. La elección de los artistas citados busca trazar un paralelo entre la práctica artística y la intervención de los dispositivos presentes en las obras tomando el foco en las Personas y en el ambiência. La investigación prosigue por una exteriorización da Persona por las máscaras y por las performances, y tiene como diferenciador estético la potenciación de los dispositivos analógicos y digitales. A partir de esto, el análisis sigue por diversas áreas de las Artes, como, por ejemplo, teatro, fotografía, performance, danza y arte digital con el propósito de abarcar diferentes experiencias estéticas y, por lo tanto, cada ˜máscara˜ se diferencia y se asemeja en la identificación de la Persona. La metodología usada consiste en levantamientos teóricos, trabajando la historicidad en las relaciones de las áreas citadas y la interlocución con los dispositivos utilizados para la elaboración de las obras. El objetivo general de esta investigación es presentar la teoría y la práctica de la actividad artística en diferentes segmentos de las artes para apuntar relaciones de identidad en las obras de los diferentes artistas. La justificativa de esta investigación está en el acto creativo del artista en la elaboración de su Persona, en elecciones para la expresión de su máscara y en la ambiência en que ella se instala.
Palabras clave: Persona; ambiência; performance; dispositivos; interacción.
LISTA DE FIGURAS
Figura Descrição Página
Figura 1 Máscaras da Commedia Dell’Art - personagens, Pantalone, Briguella e Dotore.
19
Figura 2 Máscaras das Personas da Commedia Dell’Art: Arlecchino, Brighella, Colombina, Dotore Balanzone, Pulcinella, Pantalone e Giangurgolo.
20
Figura 3 Foto do Balé Triádico desenvolvido por Oskar Schlemmer entre 1912 a 1922 na escola de teatro da Bauhaus
23
Figura 4 Plano figurativo para o Ballet Triadic, 1920, pena, tinta nanquin, aquarela – 38,5x53,5cm.
24
Figura 5 Desenho esquemático da proposta de ação no Balé Triádico desenvolvido por Oskar Schlemmer.
25
Figura 6 Esboços dos figurinos do Balé Triádico. 25 Figura 7 Figura e lineamento espacial, 1924, pena, 21x27 cm 26 Figura 8 Fotografia e estudos em aquarela e nanquin - “Dança com
barras”, 1927 (Kreibig). 26
Figura 9 Lineamento egocêntrico espacial, 1924, pena, 21,5x28cm. 27 Figura 10 Diagrama para Dança de gestos. Cortesia da Bauhaus-Archiv,
Berlin, 1926. 28
Figura 11 Peça teatral com cenário desenvolvido por Lyubov Popova 32 Figura 12 Palco do teatro de Meyerhold - Magnanimous Cuckold e
atuação biomecânica, 1929. 32
Figura 13 Foto dos atores em exercício biomecânico sobre o peso do corpo do parceiro e modelo dos exercícios praticados (1922).
33
Figura 14 'Woman Dancing (Fancy)' 1887 - Animal Locomotion series -Eadweard Muybridge.
35
Figura 15 E.J. Marey cronofotografia “salto à vara” (1890). 35 Figura 16 Estudo de cronofotografia – Étienne-Jules Marey. 36 Figura 17 E.J. Marey “Cronofotografia Geométrica” e o Homem de terno
preto com listras e pontos para cronofotografia, 1883. 36
Figura 18 Foto Retrato – André Kertész. 37 Figura 19 Fotos da série “Distortion”, André Kertész (1933 a 1940). 38 Figura 20 Foto - David Hockney. 39 Figura 21 Foto de David Hockney, Kasmin Los Angeles 28th March 1982,
Composition of Polaroid. 40
Figura 22 David Hockney, processo de trabalho 1982. Foto de Michael Childers/CORBIS.
41
Figura 23 Gregory swimming pool pictures, 1982. 41 Figura 24 Still Life Blue Guitar, composite polaroid, 24 1/2 x 30 in. David
Hockney, (1982). Celia’s Children Albert + George Clark Los Angeles April 7th 1982 composite polaroid, 35 x 23 1/4 in. David Hockney
42
Figura 25 Foto Double take 2010. 42 Figura 26 Foto Timmy Tourist e Transit - Alexa Meade (2009). 43 Figura 27 Foto Mango Lassi e Mango Lassi in process - Alexa Meade,
(2012). 44
Figura 28 Foto Ussen 2012 e Hesitate 2012. 45 Figura 29 Foto Egg on egg 2009. 45 Figura 30 Foto Risen, 2012 e "Risen" in process e Martyrdom Alexa
Meade, (2012). 46
Figura 31 Foto - The Sherman - Cindy Sherman. 47
Figura 32 “Untitled Film Still #2”, 1977 - “Untitled Film Still #21”, 1978 - “Untitled Film Still #35”, 1979
48
Figura 33 Foto "Rear-Screen Projections”- "Untitled #66," 1980 - "Untitled #70," 1980 - "Untitled #71," 1980 - "Untitled #77," 1980
48
Figura 34 "Untitled #92," 1981 - "Untitled #85," 1981 - "Untitled #93," 1981. 49 Figura 35 Horrors - Untitled #140, 1985 - Untitled #153, 1985 49 Figura 36 History Portraits/Old Masters - “Untitled #213, 1989 “Untitled
#225”, 1990 “Untitled #209”, 1989, “Untitled #224”, 1990 50
Figura 37 "Sex Pictures" “Untitled #305 -1994 - “Untitled #250 -1992 - “Untitled #302 -1993 - “Untitled #177 -1987
50
Figura 38 Hollywood/Hampton Types: “Untitled #359”, “Untitled #360”, “Untitled #353” - 2000
51
Figura 39 Foto Gregory Crewdson. 51 Figura 40 Foto Untitled (The Father) Gregory Crewdson (2007). 52 Figura 41 Foto do set de produção de duas obras fotográficas de Gregory
Crewdson. 53
Figura 42 Foto UNTITLED (BIRTH), Gregory Crewdson, (2007). 54 Figura 43 Foto Untitled, Gregory Crewdson, (1998). 55 Figura 44 Foto Untitled (Ophelia) 1998-2002 - Gregory Crewdson. 56 Figura 45 Foto do mímico Marcel Marceau. 58 Figura 46 Fotos do livro "The Alphabet Book", de Marcel Marceau by
Mendoza George, (1970). 59
Figura 47 Foto do ator e dançarino Kasuo Ohno. 60 Figura 48 Foto Christian Perez apresentação de Butoh. 60 Figura 49 Foto "Amagatsu", Yoshihiko Ueda, (1993). 61 Figura 50 Foto apresentação Akaji Maro. 61 Figura 51 Cena da apresentação do grupo Butoh Dairakudakan no
Vancouver International Dance Festival, (2017). 62
Figura 52 Fotos da performance de Olivier Sagazan. 63 Figura 53 Foto de pinturas, esculturas e performances de Olivier Sagazan. 64 Figura 54 Performances de Videocriaturas de Otávio Donasci. 65 Figura 55 “Videobusto” Performance nos 80 anos da Pinacoteca do
estado. Otávio Donasci 65
Figura 56 Fotos de performances das “Videocriaturas” de Otávio Donasci 66 Figura 57 Imagens do vídeo - palestra e performance Donasci - AVLAB
São Paulo #2 - Idiossincrasia do Sonoro pt.01. 66
Figura 58 Performance de Videocriaturas de Otávio Donasci. 67 Figura 59 “The Veiling”, Bill Viola, (1995). 68 Figura 60 “Three Women”, Foto: Kira Perov – Bill Viola, (2008). 69 Figura 61 “Catherine’s room”, Bill Viola, (2001). 69 Figura 62 The crossing”, Bill Viola, (1996). 70 Figura 63 Fotos da obra SHRINK, 1995 de Lawrence Malstaf. 70 Figura 64 Local de instalação da obra SHRINK, Lawrence Malstaf, (1995). 71 Figura 65 Apresentação no evento FILE - o borbulhar de universos,
(2017). 72
Figura 66 Hakanaï, Adrien Mondot & Claire Bardainne, (2013). 72 Figura 67 Cinematique, Adrien Mondot & Claire Bardainne, (2010). 73 Figura 68 “Le mouvement de l’air”, Adrien Mondot & Claire Bardainne,
(2015). 73
Figura 69 Obra “Nuées Mouvantes” - Adrien M. e Claire B. - 2011 - 2015 74 Figura 70 Hand-drawn Spaces, Eshkar e Kaiser, (1998/2009). 74 Figura 71 Ghostcatching, Digital Incarnate, de Bill T. Jones, Paul Kaiser, e
Shelley Eshkar. 75
Figura 72 After Ghostcatching, uma versão estereoscópica, colaboração 75
entre Bill T. Jones e OpenEnded Group. Figura 73 Biped, Merce Cunningham e OpenEnded Group. 75 Figura 74 Lâmina 11 – Scaneamento com movimentos da performer,
(2002). 76
Figura 75 Lâmina 15 – Scaneamento com movimentos da performer, (2002).
77
Figura 76 Imagem de um desenho planificado anamórfico. “Charles I” (Post 1649)
78
Figura 77 Cromo periférico precoce – estudos de Andrew Davidhazy. 79 Figura 78 Foto periférica com câmera digital improvisada (modelo:Sarah)
– estudos de Andrew Davidhazy. 80
Figura 79 Teste de scaneamento com movimentos em scanner atual, (2018).
81
Figura 80 Lâmina 08 – Scaneamento com movimentos da performer, (2002).
82
Figura 81 Lâmina 05 – Scaneamento com movimentos da performer, (2002).
83
Figura 82 Lâminas – Livro-arte “Atame”, 2003. 85 Figura 83 Lâminas – Livro-arte “Atame”, 2003. 86 Figura 84 Lâminas – livro-arte “Atame”, 2003. 87 Figura 85 Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do
Precário”. 88
Figura 86 Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
90
Figura 87 Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
91
Figura 88 Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
92
Figura 89 Imagem das interfaces digital de “Atame – Angústia do Precário” com gráfico (seta em amarelo) que simula o movimento do mouse.
92
Figura 90 Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
93
Figura 91 Obra “Atame - Angústia do Precário” - Wilton Azevedo - 2003 a 2009.
93
Figura 92 Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
94
Figura 93 Evento File – Festival de Linguagem Eletrônica – “Atame – Angústia do Precário” - performance de Raquel Rava.
95
Figura 94 Storyboard da obra “Atame – Angústia do precário”. 96 Figura 95 E-poetry em Chicago - performance de Brenda Marques - 2007. 97 Figura 96 File 2010 no teatro Cacilda Backer. Performance: Adriane
Gomes, Dora Smék, Fernanda Nardi e Marcelo Martorelli. Projeção: Ricardo Botini – 2010.
97
Figura 97 Apresentação no Actamedia 5 [in verso] – Rita Varlesi e Savana Pace - 2006.
97
Figura 98 Performance videográfica com projeção de vídeo. 98 Figura 99 Performance videográfica com projeção de vídeo e interferência
gráfica por software 99
Figura 100 Fotos de escultura mapeada por Lucca Del Carlo com vídeo performance de Rita Varlesi.
99
Figura 101 Evento “Volta ao Fim” - apresentação na Livraria da Vila – unidade Fradique.
100
Figura 102 Evento Volta ao fim - Apresentação na Casa das Rosas. 100
Figura 103 Evento “Volta ao Fim” - apresentação na Oficina Cultural Oswald Andrade (2011).
100
Figura 104 Performance videográfica com projeção de vídeo e interferência gráfica por software.
101
Figura 105 Performance videográfica com projeção de vídeo e interferência gráfica por software.
102
Figura 106 Projeções mapeadas em vias públicas - Evento Vídeo Guerrilha - Rua Augusta - 2012.
102
Figura 107 Fotos do cemitério da Consolação - Rita Varlesi e Ângelo Dimitre – 2015.
104
Figura 108 Fotos do cemitério de automóveis de Capão Bonito - Rita Varlesi – 2017.
105
Figura 109 Fotos de Ângelo Dimitre, layers com intervenção digital por Wilton Azevedo e performance de Rita Varlesi.
105
Figura 110 Vídeo de Ângelo Dimitre e intervenção de software Wilton Azevedo.
106
Figura 111 "The Fourth Dimension"– trecho do vídeo anamórfico de Zbigniew Rybczynski, 1988.
106
Figura 112 Foto periférica com câmera digital– estudos de Andrew Davidhazy.
107
Figura 113 Esculturas em vidro produzidas com vidro reciclado em moldes - Rita Varlesi - 2016.
108
Figura 114 Trabalho de montagem de escultura em vidro - Rita Varlesi - 2016.
109
Figura 115 Foto de peneiras para a seleção de tamanhos das texturas utilizadas nas esculturas em vidro.
109
Figura 116 Esculturas em vidro planificado. 110 Figura 117 Esculturas em vidro moldado. 111 Figura 118 Exposição MIS Campinas “Arte e linguagens contemporâneas”
– Escultura In-Finitude - 2017. 111
Figura 119 Foto de interfaces do cdrom “Looppoesia – Poética da mesmice”, 2004, Wilton Azevedo.
113
Figura 120 Tabela de níveis de envolvimento interdisciplinar entre artista, programador e dispositivo.
114
Figura 121 Detalhe de um desenho de AARON sem título, 1980 e Detalhe: A primeira imagem colorida criada pela AARON no Computer Museum, Boston, MA, em 1995. Coleção do Museu de História da Computação.
116
Figura 122 Foto de interfaces produzidas no software SIGCA pela aluna Isabelle Alfeo, integrante do LHUDI , 2016.
118
Figura 123 Continuum Realidade-Virtualidade (Paul Milgram e Fumio Kishino).
122
Figura 124 Obra - Anamorphose Temporelle – Adrien M. e Claire B. - 2011 123
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.......................................................................... 14
Capítulo 1 A corporeidade da Persona: máscara e corpo.....................................................…....... 18
1.1 Máscara – objeto facial.……................................................................................................. 18 1.2 Máscara – corpo..................................................................................................................... 22
1.2.1 O Balé Triádico de Oskar Schlemmer............................................................................... 22
1.2.2 A biomecânica de Vsevolod E. Meyerhold........................................................................ 29
Capítulo 2 Representações da Persona: o estático e o movimento na captação fotográfica.…........... 34
2.1 O olhar anamórfico................................................................................................................. 36
2.1.1 Os espelhos de Kertész...................…….......................................................................... 37
2.1.2 As polaróides de David Hockney...................................................................................... 39 2.2 O olhar pictórico...................................................................................................................... 42 2.3 O olhar performado................................................................................................................. 47 2.4 O olhar na Persona compondo a ambiência.......................................................................… 51
Capítulo 3 Persona em performance: materialidade e virtualidade..................….............…….............. 57
3.1 Marcel Marceau...........................................…........................................................................ 58
3.2 Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata..........…................................................................................. 60
3.3 Olivier de Sagazan.................................................................................................................. 62
3.4 Otávio Donasci.......................…............................................................................................. 64
3.5. Bill Viola.............................................................................................................…………...... 66
3.6 Lawrence Malstaf.....................................................................................................…........... 69
3.7 Adrien Mondot & Claire Bardainne......................................................................................... 72
3.8 OpenEnded............................................................................................................................. 73
Capítulo 4 Objeto estético na ambiência: o processo criativo das Personas de Rita Varlesi.….......... 76
4.1 “Atame” – Livro-arte – 2003…............…................................................................................. 76
4.1.1 O experimento....................................................................................…………………..... 76
4.1.2 O livro-arte..........….............................................................................…………………..... 83 4.2 “Atame – Angústia do precário” - mídia interativa................................................................... 88
4.2.1 Desenvolvimento das Personas........................................................................................ 88
4.2.2 Câmera parada – conceito de “Teatro de Arquivo”........................................................... 93 4.3 O experimento Persona Andrógina......................................................................................... 97
4.3.1 “Volta ao Fim”- obra de Wilton Azevedo e Alckmar dos Santos....................................... 98 4.4 A Persona no projeto In-Finitude............................................................................................ 102
4.4.1 Fotografia, vídeo e performance em “In-Finitude”............................................................. 102 4.4.2 Esculturas em “In-Finitude”............................................................................................... 107 4.5 Dispositivos digitais e sua aplicabilidade..................................................................…………..112 4.6 A ambiência no objeto estético Persona..........................................................................….......116
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................……………………….................................. 125 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.……………………………………………..……. 135 ANEXOS………………………............………………………………………………….. 139
15
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Esta pesquisa avaliou as estruturas que compõem uma Persona e como ela
se manifesta em diversos meios culturais. O uso do termo “Persona” foi adotado
para designar personagens e suas intervenções com o espaço artístico.
A palavra “Persona” em latim significa pessoa, indivíduo e o mesmo
significado foi encontrado em vários idiomas com escrita muito semelhante1. Esta
“individualidade” marcada pela palavra Persona traz a este estudo, o uso da palavra
buscando o ser representado na forma materialmente humana ou semelhante a esta
como significado expressivo nas artes. A palavra Persona carrega uma força
linguística na sua formação que diferencia um papel previamente estruturado, mas
com possibilidades abertas ao gênero, caráter ou qualquer outra característica que
delimite o ser.
Foram abordadas pelo recorte teórico da pesquisa, as áreas de teatro,
performance, fotografia, dança e artes digitais. Objetivou-se assim, avaliar a
expressividade das Personas no ambiente artístico em que são inseridas. A
pesquisa teve seu encaminhamento nos meios analógicos como ponto de partida,
finalizando no meio digital. A proposta destacou performances com a presença do
corpo e a representação do corpo digital, avaliando o percurso da Persona nos
diferentes meios artísticos, iniciando a construção de uma taxonomia para a
qualificação da Persona na ambiência digital. O direcionamento que cada meio
cultural proporciona para o desenvolvimento de Personas, de acordo com os
cânones estabelecidos nestes meios, é determinante para a recepção num processo
de criação artística que se baseia também no enviroment, ou na ambiência daquele
meio.
Alguns questionamentos desta pesquisa: O que é uma Persona nas artes?
Como esta Persona atua? Como se apresenta o reflexo do artista no enviroment
destinado a sua composição? Até onde a Persona é criação ou criatura no seu
envolvimento com a ambiência digital?
1 Catalão, espanhol, italiano: Persona - francês: personne - galego: persoa - alemão, galês, inglês, norueguês:
16
Apresentam-se estudos dos papéis de representação artística que um corpo é
capaz de constituir em suas relações sígnicas, nos ambientes físicos e imateriais.
Neste recorte, foram abordadas teorias que conceituam corporificações no meio
artístico, no viés analógico e também no digital. As obras artísticas trouxeram
significado à pesquisa como mediadoras das possibilidades de representação
estética, física ou imaterial, com suas Personas e como elas se apresentam,
utilizando os espaços para compor uma ambiência digital.
A pesquisa se iniciou com a abordagem do termo máscara no teatro da
Commédia Dell’Art, na representação física de Personas, passando pela atuação
teatral, com a estilística de novos formatos para o desenvolvimento corporal da
Persona através de diálogos, com ou sem falas. Transitamos a seguir pelo design
que compõe a visualidade física, material e imaterial do corpo. Em seguida foi feito o
levantamento de expressões artísticas (fotografia) que utilizaram dispositivos para
representar as novas visualidades da Persona, explorando o espaço visual na
ambiência. Na busca do envolvimento do corpo com o espaço, seja este físico ou
imaterial, avaliamos os movimentos físicos que encontram no espaço a resistência
material, invadindo a espacialidade digital numa unicidade com a Persona.
Em suas representações, alguns fotógrafos exibem o corpo-Persona como
espelho da sociedade, envolvendo técnicas diversas para obtenção da imagem
estática, revelando a Persona no seu enviroment.
Sobre os fotógrafos que integram a pesquisa: Cindy Sherman, que trabalha
Personas em seus autorretratos, representando intensivamente uma sociedade de
papéis caricaturalmente associados a temáticas femininas, sexuais e artísticas que
levam a uma extrema exposição do indivíduo social. Alexa Meade que, com sua
forma de visualizar o meio para a expressão artística de sua obra, passou a
tridimensionalizar sua pintura, para depois visualizá-la num processo de apreensão
da imagem através da fotografia. Sua obra consiste em transformar Persona e
enviroment em uma só unidade – uma pintura – sua Persona viva torna-se pintura
perecível e, pela lente da câmera fotográfica virtualiza-se no plano bidimensional,
transformando-se em registro de pintura. Gregory Crewdson que elabora uma
estrutura de narrativa visual, envolvendo cenários cinematográficos, iluminação,
atores e toda a infraestrutura necessária para uma execução fotográfica que
17
vislumbra cotidianos ficcionais, trabalhando uma ambiência propícia à narrativa.
André Kertész fez muitas experimentações fotográficas em seguimentos diferentes,
mas aqui foram abordados seus estudos de deformações de corpos, em que
utilizava de dispositivos que mudavam a composição estética dos corpos de suas
Personas. David Hockney trouxe experimentos da pintura para a sua fotografia,
buscando pelas partes visualizar o todo em uma gestalt de polaroides.
Para pensar a Persona na performance, foram analisadas as obras de alguns
artistas performáticos que transitam entre a performance analógica e a digital. Otávio
Donasci que, na década de 80, trouxe a videoarte pela performance com as suas
“Videocriaturas” constituídas de corpos-Persona e uma materialidade que invertia
papéis na interação do público. Bill Viola pela construção de Personas que transitam
na virtualidade interiorizada do ser e pela relação da Persona com o seu entorno na
materialidade das intervenções. Lawrence Malstaf pela relação da materialidade
imersiva entre a Persona e seu enviroment. Adrien Mondot e Claire Bardainne, que
desenvolvem uma intervenção na qual a espacialidade digital dialoga com a Persona
analógica, promovendo um espetáculo performático de movimentos harmônicos e
contrastantes na construção estética da obra.
A representação artística no meio digital foi estudada pelos corpos-Personas
que, pela intervenção tecnológica, formulam a ambiência digital por avatares e
ciborgues autômatos que, alinhados entre hardwares e softwares, possibilitam uma
colaboração interdisciplinar de artistas, biocientistas e engenheiros, entre outras
áreas, com o objetivo de conectar as artes com sua virtualidade pela intervenção
digital. Alguns artistas que integram a pesquisa, relacionados ao meio digital são:
OpenEndedGroup que tem como base de formação os artistas, Marc Downie e Paul
Kaiser, e em cada trabalho desenvolvido faz parcerias com outros artistas e
coreógrafos, como no trabalho desenvolvido com Merce Cunningham em 1999, com
a parceria de Shelley Eshkar. Wilton Azevedo que, como multiartista, elaborou obras
em várias linguagens e no meio digital, a Persona e sua interação com o ambiente,
chegando ao conceito de “teatro de arquivo” e “ambiência digital”, ambos abordados
nesta pesquisa.
Discutir a ambiência digital é o ponto chave desta pesquisa que apresenta as
Personas e seus ambientes digitais nas obras de artistas selecionados e analisa o
18
modo como cada um desenvolve a sua criação, utilizando os meios digitais não
simplesmente como meio, mas como uma nova linguagem de criação. Avaliar como
Persona e ambiente podem ser um só na mídia digital, que codifica e modifica a
criação de modo a torná-la outra estrutura.
19
Capítulo 1
A corporeidade da Persona: máscara e corpo.
Neste capítulo, pontua-se um distanciamento entre o ator e a sua Persona,
distinguindo o objeto estético no termo Persona, transitando pela história do teatro
de modo a analisar o percurso das bases de criação deste objeto estético. O uso do
termo Persona será diferenciado na pesquisa como identificador do objeto estético
durante todo o percurso de estudo.
Em meados do séc. XV e XVI, pesquisas2 apontam, na Itália, o surgimento do
termo “Persona” com o significado de máscara; a origem do termo, no dicionário3
italiano, vem de “per suonare” que significa “para soar, tocar/ emitir um som”.
1.1 Máscara – Objeto facial
Na Commedia Dell’Art, os atores utilizavam máscaras com características
físicas que estereotipavam a personagem a ser representada de maneira a compor
a estrutura do roteiro. A Commedia Dell’Art era formada por atores, geralmente da
mesma família, que – em apresentações itinerantes – apresentavam-se em várias
cidades. Um diferencial desta atuação teatral em relação ao teatro vigente da
mesma época – o teatro de Comédia Erudita – é que a liberdade nas atuações
baseavam-se no improviso em que, a cada cidade, utilizavam-se das características
das Personalidades locais para formar os Personagens já pré-determinados no
roteiro intitulado “canovacci”4.
Outra característica encontrada na Commedia Dell’Art era a atuação da
mulher que, diferente da Comédia Erudita, era proibida de atuar no teatro, sendo os
papéis femininos representados por homens. Todo o esquema de apresentações
contava com o ineditismo; o local, o público, a temática, enfim suas apresentações
eram caracterizadas de acordo com o enviroment, desenvolvendo uma identificação
2 AMARAL, Ana Maria. Teatro de formas animadas: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo: Edusp, 1996. 3 http://dicionario.reverso.net/ 4 canovacci era um roteiro pré-estabelecido para o segmento da trama que a cada apresentação contava com situações inusitadas e pontuadas por improviso na atuação.
20
com aquele público que se espelhava naquelas máscaras/Personas. O objetivo,
além de entreter, era ilustrar o cotidiano daquela região – geralmente – em uma
sátira.
A máscara, na Commedia Dell’Art, determinava as características da
Personagem, o elemento divisório da ilusão teatral, determinando cada Personagem
de acordo com as formas visuais do objeto de representação. Apresentavam
aberturas na parte dos olhos e da boca do ator; a atuação tinha uma preocupação
com a fala e as máscaras funcionavam como envoltórios determinando o limite do
ator e da Persona.
Fig.: 1 – Máscaras da Commedia Dell’Art - personagens, Pantalone, Briguella e Dotore.
Fonte: www.maskmuseum.org/mask/commedia-brighella-1/
Os gestos e a expressão corporal dos atores seguiam um padrão
característico em cada Persona, segundo o perfil que cada máscara ditava como
regra. Neste momento, temos a primeira formatação de uma composição
previamente estabelecida, determinando a vida do objeto máscara na atuação
teatral.
A estrutura dos papéis determinava as relações encontradas na vida real em
que as características eram expostas de modo fixo nas máscaras, como o servo que
quer levar vantagem, o servo briguento e pernicioso, o médico que era o detentor do
saber, o mercador idoso e cheio de lábia para vender o seu peixe, o capitão que
seria o representante do homem forte e galanteador, mas na verdade, morria de
medo de tudo.
Um dado interessante é que, em toda a trama, temos o romance e, neste
caso, os amantes eram os atores que não usavam máscaras. Interessante pensar
21
no conceito da verossimilhança na narrativa teatral, em que na representação
amorosa não existem máscaras.
Essa modelização das máscaras da Commedia Dell’Art buscava trabalhar
papéis, padrões arquetípicos específicos de uma sociedade que se encaixavam nas
personalidades de qualquer cidade pelas quais ele se apresentassem.
As máscaras reproduziam as características que os italianos atribuíam a cada região do país: o mercador da República de Veneza, o carregador de Bérgamo, o pedante de Bolonha, o apaixonado toscano, o capitão espanhol ou italiano, ou napolitano [...]. Assim a representação da Commedia dell’Arte fornece um quadro completo das classes e das regiões italianas. (SCALA, 2003, p. 22).
As Personas da Commedia Dell’Art são: Arlecchino, Pantalone, Brighella,
Capitano, Dottore, Columbina, os Innamorati (únicos sem máscaras), Pedrolino,
Pulcinella e Scaramuccia.
Fig.: 2 - Máscaras das Personas da Commedia Dell’Art: Arlecchino, Brighella, Colombina, Dotore Balanzone, Pulcinella, Pantalone e Giangurgolo
Fonte: http://seguindopassoshistoria.blogspot.com.br/2015_02_01_archive.html
As características arquetípicas das personagens do teatro da Commedia
Dell’Art assinalam uma entrada para a análise das Personas através da
corporeidade da máscara que sempre existirá como “ponte”, seja uma apresentação
física ou virtual do objeto estético nas expressões artísticas.
Persona, na teoria de C.G. Jung (2008), é a Personalidade que o indivíduo
apresenta aos outros como real, mas que, na verdade, às vezes é uma variante
muito diferente da verdadeira.
22
A Persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e por outro lado a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo. […] É claro que como individualidade ninguém pode adaptar-se por completo a essas expectativas; daí a necessidade inegável de construir-se uma Personalidade artificial. As exigências do decoro e das boas maneiras incumbem-se do resto para incitar ao uso de um tipo de máscara adequada. Atrás desta última forma-se então o que chamamos de “vida particular”. (Jung, 2008, p. 79)
Fazendo um paralelo entre os papéis virtuais e a representação real, a
máscara física do teatro, a exemplo da Commedia Dell’Art, tem na sua configuração
da Persona uma estética visual de acordo com cada Personalidade. Ao
compararmos com o real, o indivíduo que “se Persona”, usa de artifícios físicos para
expor uma máscara, seja ela uma maquiagem, uma tatuagem, adereços como joias
ou percing entre outros. Os artistas Drag queen usam o termo “se montar” para a
transformação do masculino em feminino em uma estética claramente reforçada
neste estereótipo.
A construção dos papéis presentes nas Personas, pelo estudo cênico gestual
e no imaginário existente no indivíduo intérprete, tem o objetivo de especificar as
Personas nas obras que serão citadas, de modo a entender a sua atuação enquanto
objeto estético, na expressão física e virtual que será abordada nesta pesquisa.
A máscara é o reflexo daquilo que é planejado como Persona para ser vista e
exteriorizada na sua melhor forma e conquistar o outro, ou seja, é aquilo que o
público espectador espera. Ao falar de Persona como uma máscara, propõe-se
avaliar o interior e exterior desta, o que é de extrema importância para pensarmos o
que move esse objeto estético.
Do exterior sabemos pontualmente o que está à nossa frente, pois existe a
conquista visual da máscara que em seu conceito lúdico e instigante proporciona
aquilo que nos agrada ou nos incomoda. Já no que diz respeito ao interior desta
máscara, existe uma expressão vivente que é o ator, modelando e recriando aquilo
que se exterioriza na visualidade da máscara, portanto o ator conhece a mágica que
faz viver a máscara-Persona.
23
1.2 Máscara - corpo
Nas artes, a elaboração da Persona tem corpo e esse corpo é revestido por
uma “máscara” que tem na sua expressividade as mais diversas formas de se
representar, e para percorrer essa análise traremos dois modelos que diferem nos
seus processos criativos, porém se assemelham na proposta de construção de suas
Personas.
Oskar Schlemmer apresentou uma plasticidade corporal de um modo muito
próprio, trazendo formas geométricas procedentes de seus desenhos, pinturas e
esculturas, para apresentar novos argumentos na estética corporal do teatro.
Acrescentou formas geométricas aos figurinos de suas Personas elaborando-os de
modo a impulsionar novos movimentos de dança, interagindo com a geometria
espacial do entorno.
O Conceito de Biomecânica de Vsevolod E. Meyerhold do teatro das
vanguardas russas posicionou um novo modo de visualizar a ação do corpo do ator
em palco dialogando com o espaço e a música.
O estudo de movimentos concatenados nos corpos dos atores no teatro de
Meyerhold promoviam uma coreografia dinâmica que ocupava cenários modulares
proporcionando uma unicidade dos elementos que compunham aquela ambiência.
1.2.1 O Balé Triádico de Oskar Schlemmer
Em meados de 1919, a convite de Walter Gropius, Schlemmer assumiu a
direção da escola de teatro da Bauhaus, com a função de elaborar uma nova
expressão artística no contexto teatral.
Como artista multifacetário que era, Schlemmer elaborou uma coreografia e
cenografia própria em sua pesquisa na Bauhaus, desenvolvendo 15 figurinos para a
montagem de uma apresentação que denominou de “Balé Triádico” (fig. 3), vindo
este a ser apresentado pela primeira vez em 1922.
24
A sua formação visual proporcionou desenvolver no teatro da Bauhaus
estudos que tinham como base formas geométricas para compor figurinos e
trabalhar as relações conceituais de mecanismo e organismo na coreografia.
Goldberg comenta sobre a obra de Schlemmer:
Ele explicava que “a partir da geometria plana, da busca da linha reta, da diagonal, do círculo e da curva desenvolve-se uma estereometria do espaço através da linha vertical móvel do dançarino”. A relação entre a “” poderia ser sentida se imaginássemos “um espaço preenchido por uma substância macia e maleável em que as figura da sequência dos movimentos do bailarino endurecessem como uma forma negativa”. (Goldberg, 2015, p. 94)
Tendo o figurino como um suporte para a elaboração coreográfica e visual,
Schlemmer promovia o encaminhamento de determinado movimento nessa
coreografia do ator-bailarino, explorando a espacialidade da cena.
Fig.: 3 - Foto do Balé Triádico desenvolvido por Oskar Schlemmer entre 1912 a 1922 na escola de teatro da Bauhaus.
Fonte: http://projectfabrica.tumblr.com/post/114103116103/the-theatre-of-the-bauhaus-oskar-schlemmer
Sua criação foi fundamentada em uma nova elaboração coreográfica em que
os bailarinos eram colocados em certo grau de complexidade para trabalhar novas
coreografias, saindo das estruturas convencionais do balé. Essa complexidade
envolvia movimentos mecânicos propostos pelos figurinos aos bailarinos, devido às
suas estruturas geometrizadas que impediam alguns movimentos básicos da dança,
25
propondo de maneira incondicional a experimentação de novos movimentos obtendo
assim uma nova expressão corporal na relação objeto-corpo e espacialidade (fig. 4).
Fig.: 4 - Plano figurativo para o Ballet Triadic, 1920, pena, tinta nanquin, aquarela – 38,5 X53,5 cm.
Fonte: Livro Bauhaus, Instituto cultural de relações exteriores, Stuttgard,1974
Na sua concepção artística Schlemmer, traz a geometria matemática que
constrói uma visualidade no figurino, contaminando a coreografia, que se encaixa no
espaço cenográfico invadido pelo som.
Identificamos na obra de Schlemmer uma taxionomia da sua elaboração
artística: Visualidade - Persona, Movimento – Espacialidade, e Sonoridade. Essa
elaboração artística apresenta-se como um todo único, mas propomos aqui abordar
os conceitos de modo a identificá-los separadamente.
• Visualidade - Persona
O figurino apresentado por Schlemmer funcionava como uma máscara-corpo
caracterizando a Persona em cena.
Em sua estética imagética focada em formas geométricas básicas que
constroem os figurinos das Personas, Schlemmer buscou através da geometria e
dos materiais utilizados, apresentar uma proposta de unir a mecanização, princípio
da industrialização, e a natureza criativa do indivíduo, esta que poderia se sobrepor
às restrições do figurino e inovar uma coreografia para a modernidade, objetivo este
o da inovação na escola da Bauhaus.
26
Fig.: 5 - Desenho esquemático da proposta de ação no Balé Triádico desenvolvido por Oskar Schlemmer.
Fonte: http://projectfabrica.tumblr.com/post/114103116103/the-theatre-of-the-bauhaus-oskar-schlemmer
Schlemmer era minucioso em sua arte e vemos essa intensidade na
elaboração dos seus trabalhos. Toda a estrutura de suas obras teatrais passava
pelo planejamento bidimensional do desenho e pintura, através de esboços, depois
para o tridimensional das esculturas; na plasticidade dos figurinos com as notações
de volumes e planificações do espaço e ao fim na aplicabilidade que o figurino
exercia na mediação entre corpo e máscara nas suas Personas. A escolha das
formas, cores e texturas dos materiais para a confecção dos figurinos, obedecia a
um criterioso planejamento identificado em seus esboços (fig. 6). A visualidade dos
seus figurinos relacionava-se com a cenografia unindo movimentos e sons para uma
construção da ambiência da obra.
Fig.: 6 - Esboços dos figurinos do Balé Triádico
Fonte: http://tmlarts.com/oskar-schlemmer/
27
• Movimento – Espacialidade
A dinâmica de movimentos com os materiais anexados ao corpo dos
bailarinos era elaborada em um envolvimento espacial, extremamente analisado em
planos frontais e ângulos superiores, como se apresentam em seus estudos
planificados do cenário (fig. 7, fig. 9 e fig. 10).
Fig.: 7 - Figura e lineamento espacial, 1924, pena, 21 x 27 cm
Fonte: Livro Bauhaus, Instituto cultural de relações exteriores, Stuttgard,1974
A oposição entre plano visual e profundidade espacial era um problema complexo que preocupava muitos dos que trabalhavam na Bauhaus durante a época em que Schlemmer ali permaneceu. “O espaço como elemento unificador na arquitetura" era o que constituía para Schlemmer, o denominador comum dos diferentes interesses do corpo docente da Bauhaus. Na década de 1920, o que caracterizava a discussão sobre o espaço era a noção de Raumempfindung, ou “volume percebido”, e era essa “sensação do espaço” que Schlemmer atribuía as origens de cada uma de suas produções de dança. (Goldberg, 2015, p. 94)
Essa preocupação com a espacialidade que era comum a todos os
pesquisadores da Bauhaus foi o que levou Schlemmer, em sua inventividade, a
proporcionar uma linguagem múltipla que estabelecia parâmetros matemáticos e
físicos para ordenar geometricamente as estruturas na espacialidade.
Fig.: 8 - Fotografia e estudos em aquarela e nanquim - “Dança com barras”, 1927 (Kreibig)
Fonte: Livro Bauhaus, Instituto cultural de relações exteriores, Stuttgard, 1974 e http://socks-studio.com/2017/07/19/when-body-draws-the-abstract-space-slat-dance-by-oskar-schlemmer/
28
A energia cinética que na física estudamos como resultado do trabalho da
energia mecânica, relacionando a massa de um corpo e sua velocidade, define o
estudo dos movimentos explorado por Schlemmer na busca de uma nova expressão
corporal para o teatro da Bauhaus.
A mobilidade do bailarino no espaço é estudada em uma análise geométrica
que planeja a utilização de todos os movimentos possíveis de acordo com o
planejamento espacial e a estrutura do figurino.
O Balé Triádico representava a industrialização e os mecanismos usados
através da ação dos movimentos dos seus bailarinos, envolvendo o figurino e o
espaço que contava com a virtualidade do som atuando na obra.
As formas geométricas, juntamente com o material utilizado, (fig.8)
estabelecem um padrão que dificulta os movimentos usualmente utilizados nas
coreografias, fazendo com que o bailarino busque nas possibilidades do corpo a
concepção de uma coreografia estética singular.
A coreografia apresenta-se inovadora, rompendo os padrões de espacialidade
e motricidade.
Fig.: 9 - Lineamento egocêntrico espacial, 1924, pena, 21,5 x 28 cm.
Fonte: Livro Bauhaus, Instituto cultural de relações exteriores, Stuttgard, 1974.
Para Schlemmer, a estrutura geométrica elaborada no figurino dos dançarinos
tinha por objetivo renovar as possibilidades de ação, propondo uma complexidade
no desenvolvimento dos movimentos, que sofriam a resistência das formas
geométricas nas suas elaborações coreográficas.
29
• Sonoridade
Quando Schlemmer apresentou pela primeira vez o Balé Triádico, ele estava
extremamente influenciado pela música de Arnold Schönberg, a qual havia escutado
na apresentação da peça Pierrot Lunaire. Schönberg desenvolveu a técnica de
pontuar com sonoridades diferentes a entrada de cada personagem na cena teatral,
onde cada personagem tinha um som, e o som era repetido na aparição do
personagem em cena. Esse fator proporcionava à Persona uma ampliação do
sentido que se estendia na musicalidade e na percepção do público.
Schlemmer dividiu o seu Balé Triádico em três séries: a primeira “Amarelo”, a
segunda “Rosa” e terceira “Preto”. Apesar de a divisão ser relacionada às cores, ela
indicava a harmonia sonora. Alegria para a amarela, romance para a rosa e tristeza
para a preta. O objetivo era propor um humor aos atos que eram ritmados pela
sonoridade de Paul Hindemith. A sonoridade dá a tonalidade a cada série
respeitando a dramaticidade dos tons das cores.
Fig.: 10 - Diagrama para Dança de gestos. Cortesia da Bauhaus-Archiv, Berlin, 1926.
Fonte: https://www.antheamissy.com/how-the-bauhaus-school-gave-life-to-performance-art-movement/
O ruído era um elemento importante em seus trabalhos, configurando em
cada obra uma característica diferenciada. Em “Dança de gestos”, as intervenções
sonoras eram com inserções de espirros propositais, dos atores, ou gargalhadas e
tosse, isso como um “meio de isolar a forma abstrata” (Goldberg, 2015, p. 94).
A proposta de corpo como objeto estético, segue na pesquisa explorando a
fisicalidade iniciada na obra de Konstantin Stanislavsky, no seu teatro da ação física
e parte para uma visão diferenciada na Biomecânica de Meyerhold, explorando a
corporeidade do objeto estético em cena.
30
1.2.2 A biomecânica de Vsevolod E. Meyerhold
Para falar de Meyerhold iniciaremos com seu mestre no qual se identifica uma
vertente para o seu encaminhamento na criação da Biomecânica.
Konstantin Stanislavsky, russo, ator e diretor de teatro juntamente com
Niemirovtch-Dântchenco fundam, no séc. XX, o teatro de Arte de Moscou (TAM),
seguindo uma linha nova de interpretação de atores em que as técnicas e exercícios
de representação partiram da proposta de Stanislavsky para um conceito de maior
disciplina denominado: “Método das ações físicas”.
Este método consistia em trabalhar as ações físicas do ator para tornar a
expressão física constante. O ator não deveria basear-se em sentimentos pré-
concebidos para a construção da Personagem, mas sim focar-se na estrutura física
de interpretação para criar a emoção da personagem. Esse exercício baseava-se
em uma construção da Persona de modo que os movimentos físicos e o ritmo
sonoro davam o andamento ao objeto artístico. Os professores que auxiliavam
Stanislavsky nas aulas sobre movimento eram Tórtsov e Rakhmánov.
Stanislavsky, mestre do teatro russo, desenvolveu um sistema de análise e
exercícios para a atuação do ator em que propunha uma investigação interiorizada
da memória emotiva, buscando um caminho para a interpretação das emoções da
personagem.
Segundo Vássina5, seu sistema baseava-se na “revivescência” que explorava
a naturalidade do ator para desenvolver uma “superfantasia”; nesse sistema, o ator
acrescentaria novos elementos de sua vivência, buscando no seu interior
sentimentos seus que se transformariam, com os exercícios, em sentimentos da
personagem, criando, ao fim desta prática, o melhor desenvolvimento para a
Persona. Este processo pode ser chamado de “work in progress”6 em que o sistema
funciona como um encadeamento de componentes que questionam e respondem ao
ator sobre a sua arte de atuação teatral na elaboração de Personas.
5 Elena Vássina, teatróloga e pesquisadora russa, autora, tradutora e organizadora de ensaios e livros dedicados à poética do drama moderno e à história do teatro russo. 6 “Nenhum manual ou gramática da arte teatral”: alguns apontamentos sobre a formação do sistema de Stanislavsky. http://www.pequenogesto.com.br/
31
Esse ritmo é composto de momentos individuais de todas as extensões concebíveis, dividindo o tempo de um compasso em partes variadas. São possíveis incontáveis permutações, combinações, agrupamentos. Se vocês escutarem com cuidado a confusão, desses ritmos, batidos pelos metrônomos, poderão por certo procurar e selecionar dentre eles tudo de que precisam para fazerem suas próprias combinações e agrupamentos rítmicos a fim de exprimir as fórmulas mais complexas e variadas. (TÓRTSOV, p. 256)
Este exercício buscava a percepção individual de cada ator que, ao captar o
compasso de um determinado metrônomo, podia construir o tempo-ritmo exterior e
interior ao mesmo tempo, de acordo com as suas manifestações físicas. A
percepção sensorial do ator, nesse tempo-ritmo, viria antes, o que não
engrandeceria a manifestação física que deve vir primeiro no método.
Sobre o conceito de biomecânica de Meyerhold:
Na proposta de Meyerhold, o ator tinha uma vivência dentro da sua atuação,
pela música como intervenção na expressão corporal, apresentando neste contexto
a relação corpo-tempo-espaço. A biomecânica tem por fundamento trabalhar essa
relação de envolvimento do ator com a Persona e o espaço. Para tanto, Meyerhold,
como aluno de Stanislavsky, rompe com este, fundando sua própria teoria teatral
sobre a importância dos movimentos corporais através do conceito por ele
desenvolvido sobre biomecânica aplicada ao teatro em meados de 1920.
O estudo da biomecânica já havia sido pensado anteriormente por outros
autores ligados à área médica e à engenharia, porém o termo tomou força no teatro
através das aplicações práticas de Meyerhold.
Muito precocemente, Meyerhold propõe um trabalho plástico e rítmico em oposição ao mergulho na memória afetiva dos seguidores de Stanislavsky e à busca da emoção. “É preciso aperfeiçoar o corpo do ator”; ele sonha em propor ao ator uma partitura como a do intérprete-músico, em vez dos improvisos da intuição. (PICO-VALLIN, p. 68)
Segundo Vallin, a biomecânica de Meyerhold utilizava de sua ação física para
propor uma plasticidade aos movimentos em cena e desta forma elaborar Personas
representadas em seus movimentos concebidos sobre uma dinâmica temporal e
espacial. Os atores de Meyerhold eram como títeres e suas ações físicas eram pré-
concebidas e articuladas pelo diretor, cabendo ao ator executar os movimentos.
32
Aonde o corpo humano, pondo a sua flexibilidade a serviço da cena, a serviço da expressividade, alcança a sua máxima plenitude? […] Na dança. […] ali onde a palavra perde a sua força expressiva, começa a linguagem da dança. (MEYERHOLD, p. 129 – 130)
Segundo Meyerhold (2017), o corpo do ator era uma ferramenta onde a
mente criadora manipulava os movimentos como de um títere. Para ele, o corpo do
ator era mais um objeto em cena para ser manipulado de acordo com a teoria
teatral. Essa manipulação tinha como foco o diretor teatral e a participação do ator
deveria ser estruturada de modo a seguir teorias teatrais, base referente à escola da
Commedia Dell’arte que também seguia uma predeterminação de gestos do ator em
função da máscara/Persona que usava para atuar.
Por algum tempo, Meyerhold seguiu os passos de Konstantin Stanislavsky,
divergindo na forma de direção teatral; para ele, o movimento cênico se
materializava na elaboração de exercícios e na perfeição cinética do títere com
pantominas advindas da Commedia Dell’arte, influenciado também pela música que
acompanhava a cena.
Meyerhold buscou nos construtivistas opções para a elaboração de cenários
para que suas apresentações pudessem sair do formato convencional de palco
teatral e possibilitar maior liberdade de montagem em qualquer lugar para suas
peças.
Achou na proposta de andaimes o grande ponto que iria contribuir para a sua
autonomia de apresentação. Um sistema de andaimes multifuncional permitia levar
suas peças para vários lugares com a possibilidade de montagem e desmontagem
rápida e a estrutura modular que permitia também recriar novos modelos a partir da
mesma estrutura. Meyerhold teria assim um cenário modular em que o design e a
funcionalidade proporcionariam a melhor estrutura para o desenvolvimento de suas
peças.
33
Fig.: 11 - Peça teatral com cenário desenvolvido por Lyubov Popova
Fonte: https://collections.artsmia.org/art/28233/model-for-meyerhold-theatre-el-lissitzky
Lyubov Popova foi a desenvolvedora deste cenário (fig. 11 e fig. 12) em 1922
que possibilitava vários planos visuais em que a continuidade da peça transcorria de
modo sobreposto e interligado para o desenvolvimento dos movimentos do teatro da
biomecânica. A dinâmica da peça ocorria por setores interligados de modo a
promover uma atenção aos movimentos em todo o cenário.
Fig.: 12 - Palco do teatro de Meyerhold - Magnanimous Cuckold e atuação biomecânica, 1929.
Fonte: https://www.radford.edu/rbarris/art428/constructivism1.html e http://www.sierz.co.uk/blog/meyerhold-on-
audiences/
Esses exercícios propostos por Meyerhold eram intimamente relacionados ao
movimento do ator, que deveria ter como foco o movimento, não o sentimento para
ocupar a dimensão espacial da cena, a qual depois passou a ser acompanhada pelo
ritmo da música. Os atores se movimentavam em uma coreografia dinâmica e
concatenada aos movimentos propostos nos estudos da biomecânica (fig. 13).
O conceito de biomecânica trabalhava o cinético e o estático de forma
semelhante para a construção de valores, em que o corpo do ator funcionava como
34
um objeto de cena, por isso elementos como a iluminação, o cenário e o figurino
estetizavam a cena da biomecânica.
Fig.: 13 - Foto dos atores em exercício biomecânico - exercício sobre o peso do corpo do parceiro - modelo dos
exercícios praticados (1922).
Fonte: http://impro2.com/2006/11/ -
http://www.casaruibarbosa.gov.br/arquivos/file/Pequeno_Gesto_Piconvallin_artigo03(1).pdf e http://impro2.com/2006/11/28/biomecanica-de-meyerhold/ e www.jakeorr.co.uk
A vetorização é o primeiro impulso de uma narrativa ou de uma cronologia entre diversas partes da obra cênica, o percurso do sentido pela floresta dos signos, a ordenação da representação. […] o que definimos aqui como as vetorizações do espetáculo e que constrói o sentido e o ritmo como uma sequência de quadros ou segmentos orientados. […]. Essa dinâmica - seja ela chamada de focalização, interação ou vetorização - engendra o movimento da obra - tanto o sentido quanto o ritmo. O espectador a localiza e a vivencia com facilidade, pois participa de sua criação pela sua escuta e suas reações. A percepção e a recepção são assim um ato de construção rítmica da obra… (PAVIS, 1996, p. 117 e 215).
A biomecânica com sua estrutura repetitiva dos movimentos corporais,
instituiu valores mecanicistas ao objeto estético explorando a fisicalidade dos atores
aliada à musica e potencializando esses elementos, constituindo uma ambiência
cenográfica.
35
Capítulo 2
Representações da Persona: o estático e o movimento na captação fotográfica.
Este capítulo aponta o caminho percorrido por alguns fotógrafos selecionados
e pontua a representação de suas Personas na construção desse objeto estético,
diferenciado na percepção particular de cada olhar. Abordam-se as questões
técnicas utilizadas e a conceituação de espaço, tempo e ambiência na qual a
Persona é inserida.
O invento da fotografia foi um marco tecnológico que determinou ao longo da
sua evolução uma nova perspectiva de se produzir linguagem visual. Além da
documentação científica, a fotografia nos possibilitou absorver a visualidade das
coisas sob novas perspectivas.
Em 1877-1878, o fotógrafo Eadweard Muybridge (Edward James
Muggeridge) desenvolveu um sistema de captação dos movimentos, acionado por
disparador elétrico, em que pelo posicionamento de 12 câmeras poderia relatar a
biomecânica dos movimentos em sequência. O primeiro trabalho desenvolvido por
um contrato foi o de captar a cavalgada de um cavalo, comprovando que no galope
do animal, em determinado momento, as quatro patas ficavam suspensas no ar. Em
1873, porém, o fisiólogo e fotógrafo francês Étienne-Jules Marey já havia feito um
estudo através de “registros gráficos eletromecânicos” (Fabris7) que comprovava
esse movimento do animal, na publicação de La machine animal, locomotion
terrestre e aérienne.
O objetivo de citar esses dois fotógrafos é de assinalar diferenças do olhar na
captação de imagens do corpo humano, em um sentido artístico – poético, onde
temos o tempo instaurado na fotografia através do instante congelado e da
sobreposição destes instantes.
7 FABRIS, Annateresa. A captação do movimento: do instantâneo ao fotodinamismo. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-53202004000400005#back82 . Acesso em: 28, mai, 2017.
36
Os estudos de Muybridge estavam centrados em uma busca técnica que
captasse os instantes do movimento de corpos (fig. 14) e para isso desenvolveu os
experimentos com pessoas e animais em variadas situações nas quais seus corpos
eram captados quadro a quadro. Apesar de o registro ter um fundamento mais de
comprovação científica, existe uma poética na sua linguagem que também serviu de
inspiração para outros artistas fotógrafos e das artes plásticas.
Fig.: 14 - 'Woman Dancing (Fancy)' 1887 - Animal Locomotion series -Eadweard Muybridge.
Fonte: http://history-is-made-at-night.blogspot.com/2010/12/eadweard-muybridge.html
Marey em 1904 registrou movimentos corporais de modo a representar a
plasticidade da imagem por meio de sua pesquisa como fotógrafo de movimentos
em um só frame (fig. 15). Nos seus estudos do movimento encontramos a
duplicidade visual, que promovia - pelo posicionamento do corpo em diferentes
locais no plano de cena e a posição fixa da câmera com o obturador aberto
captando as imagens – uma “anamorfose cronotópica” (Machado, 1997) conceito
esse que será abordado no capítulo 4. Esse resultado nos leva à ideia de construção
do tempo na imagem estética de modo a compor uma visualidade como na obra
“Cronofotografia geométrica” (fig.17).
Fig.: 15 - E.J. Marey cronofotografia “salto à vara” (1890)
Fonte: https://www.flickr.com/photos/25936587@N02/2530209049
37
Fig.: 16 -Estudo de cronofotografia – Étienne-Jules Marey.
Fonte: http://doktorhander.blogspot.com/2009/06/etienne-jules-marey.html
Em suas representações de corpos em movimento, podemos identificar
Personas ocupando o tempo e o espaço em uma multiplicidade de corpos
representados no mesmo fotograma. A sua busca pelo movimento na fotografia e as
experimentações com vários dispositivos fotográficos, proporcionaram um grande
número de composições visuais, levando sua pesquisa a resultados surpreendentes
do movimento (Fig. 16).
Fig.: 17 - E.J. Marey “Cronofotografia Geométrica” e o Homem de terno preto com listras e pontos para
cronofotografia, 1883.
Fonte: http://goldberg.berkeley.edu/courses/S06/IEOR-QE-S06/images.html
2.1 O olhar anamórfico.
A proposta será iniciada pelo fotógrafo André Kertész que com seu olhar
sobre o corpo feminino, busca ângulos na projeção de espelhos para reconstruir
uma nova estética anamórfica de suas Personas. Em seguida apresentaremos o
trabalho do artista David Hockney que em seu trabalho com as Polaroides,
38
reconstruiu em uma estética de colagens cubista, acrescentando o tempo em suas
imagens, Personas que em uma composição de partes formam o todo reconstruído.
2.1.1 Os espelhos de Kertész
Fig.: 18 - Foto Retrato – André Kertész
Fonte: https://br.pinterest.com/pin/443252788302734900/
Na fotografia, uma das vertentes temáticas do grande mestre André Kertész
(fig. 18) foi a imagem distorcida pelo uso de um dispositivo, no momento em que o
digital não pertencia à cena e alguns artistas buscavam modificar o olhar, imprimindo
uma nova estética às artes fotográficas.
A deformidade das imagens captadas por Kertész cria uma atmosfera
dismórfica do corpo feminino, incorrendo em uma metáfora do belo (fig. 19). Essa
busca pelo olhar que difere é fato importante para o artista-fotógrafo que trabalha
com a ótica do real e Kertész buscou, em seus últimos anos de vida, captar
incessantemente essa deformidade. Foram mais de 200 fotos captadas com o uso
de espelhos.
A mesma modelo representada por modulações de imagens é como uma
máscara corporal que se acopla àquela Persona, proporcionando características
novas a cada clic fotográfico, outros seres representados em um mesmo corpo pela
deformação do espelho.
39
A essa anamorfose compreende-se a possibilidade de escolhas estéticas ao
se acoplar dispositivos que inserem novas visualidades no objeto estético final. A
propósito, a fotografia terá sempre algo a acrescentar no objeto estético, pois sua
possibilidade técnica possibilita diferenciações do olhar na sua concepção final
artística.
Fig.: 19 - Fotos da série “Distortion”, André Kertész (1933 a 1940).
Fonte: http://lounge.obviousmag.org/por_tras_do_espelho/2012/07/as-distorcoes-de-andre-kertesz.html
40
Em 1965, Piotr Kowalski efetuou uma montagem especular de tal sorte que o espectador contornava um espelho giratório. Sua imagem lhe era devolvida tal como seria vista por ele e, se ele mexia sua mão direita, era no seu lado esquerdo que ela aparecia. Era-lhe impossível recompor seu rosto sem ser imediatamente tomado pela vertigem. Essa ruptura da relação especular é uma convincente colocação à prova da desestruturação perpétua dos modos de apreensão do corpo… A impossibilidade de adotar um ponto de vista, estando tomado pela vertigem das imagens desestruturantes, apresenta-se como a abertura a um mundo mágico gerado pelas ilusões ópticas. (JEUDY, 1998, p. 51.)
Ver a imagem invertida é o que de mais comum existe no nosso sentido e,
quando um artista muda esse parâmetro em uma representação artística, essa
imagem torna-se estranha ao nosso olhar, à nossa percepção visual. A estrutura
corporal é a ligação física neste enviroment em que vivemos, é o objeto com o qual,
em primeira instância, trabalhamos as nossas representações. Nas artes, o estudo
da anamorfose trabalha as relações corporais de modo a desestruturar o real em
deformações ópticas que se baseiam em dispositivos ora analógicos (espelhos,
lentes), ora digitais (softwares e hardwares), compondo Personas que protagonizam
o imaginário artístico.
2.1.2 As polaróides de David Hockney
Fig.: 20 – Foto composite polaroids - David Hockney
Fonte: https://manuskywalkerblog.wordpress.com/tag/braques/
Em 1982, Hockney (fig. 20) inicia seus trabalhos com polaróides compostas e
colagens fotográficas. De 1982 a 1984, dedicou-se a explorar a fotografia de modo a
deixar sua pintura de lado, voltando a ela um tempo depois. Em uma média de 4
41
horas de exposição fotográfica, mais a elaboração anterior da cena e a finalização
da composição, levavam Hockney a um resultado compositivo com identificação
perceptiva no fechamento da Gestalt.
Fig.: 21 - Foto de David Hockney, Kasmin Los Angeles 28th March 1982, Composition of Polaroid
Fonte: http://letteraturaartistica.blogspot.com.br/
A narrativa desenvolvida nessa linguagem fotográfica trabalha com a
composição do movimento da fotografia de modo que a Persona é captada em uma
singularidade de detalhes (fig. 21) como se o dispositivo imitasse o nosso “olhar
avaliativo” sobre o outro, e a câmera amplifica nosso poder de ver com suas lentes,
ampliando os detalhes e “focando” nos elementos de interesse.
Nessa junção de elementos que compõem a Persona, a leitura se faz das
partes e da totalidade, compondo uma nova maneira de ler essa narrativa da
personificação.
42
No trabalho das composições com Polaroides de Hockney, os espaços em
branco entre as fotos reforçam ainda mais a estrutura de fechamento da Gestalt
para interpretarmos este signo como se estivéssemos olhando através de uma
trama aramada, e as deformações dos movimentos na composição do todo
identificam as relações de tempo inserido na fotografia (fig. 22, 23 e 24), reforçando
a ideia de “anamorfose cronotópica” (MACHADO, 1997, p. 61).
Fig.: 22 - David Hockney, processo de trabalho 1982. Foto de Michael Childers/CORBIS.
Fonte: http://www.lamag.com/the80s/david-hockney/
Fig.: 23 - Gregory swimming pool pictures, 1982.
Fonte: https://www.gauditekenen.nl/david-hockney/
43
Fig.: 24 - Still Life Blue Guitar, composite Polaroid, 24 1/2 x 30 in. David Hockney, (1982). Celia’s Children Albert + George Clark Los Angeles April 7th 1982 composite Polaroid, 35 x 23 1/4 in. David Hockney
Fonte: http://www.shootingfilm.net/2013/01/joiners-polaroid-collages-by-david.html
http://www.hockneypictures.com/photos/photos_polaroid_06.php
O dispositivo fotográfico, em qualquer época e de qualquer tipo que seja, tem,
dentro das possibilidades criativas da expressão artística, o objetivo de facilitar, ou
melhorar a potencialidade do meio.
2.2 O olhar pictórico
Fig.: 25 - Double take - 2010.
Fonte: www.alexameade.com/
A palavra imagem possui, como todos os vocábulos, diversas significações. Por exemplo: vulto, representação, como quando falamos de uma imagem ou escultura de Apolo ou da Virgem. Ou figura real ou irreal que evocamos ou produzimos com a imaginação. Neste sentido, o vocábulo possui um valor psicológico: as imagens são produtos imaginários. Não são estes seus únicos significados, nem os que aqui nos interessam. (PAZ, 1976, p. 37)
44
A artista Alexa Meade (fig. 25) trabalha as artes plásticas na espacialidade
tridimensional das Personas e finaliza sua obra na bidimensionalidade da fotografia.
A característica de seu trabalho é apresentar a relação corporal, envolvendo corpos
em uma performance artística, onde o posicionamento do corpo juntamente com a
sua intervenção da pintura, planificam a imagem e em qualquer posicionamento de
câmera na captação da imagem fotográfica, obteremos uma imagem bidimensional,
como uma pintura (fig. 26). Representação da junção dos elementos Persona e
enviroment.
Fig.: 26 - Foto Timmy Tourist e Transit - Alexa Meade - 2009.
Fonte: www.alexameade.com/
Esse trabalho objetiva trazer o real tridimensional para a pintura pictórica
bidimensional pela construção com as tintas trabalhadas nos personagens e no
ambiente ao seu redor. É como se ela transformasse uma figura real em uma
personagem de uma tela. Essa descoberta artística se deu por acaso na pesquisa8.
Meade fazia, sobre as sombras, a relação de luz e sombra dos objetos, o que a
fascinava e, para tanto, passou a pintar as sombras que duravam pouco tempo, pois
a luz se modificava e invadia as suas sombras. Certo dia pensou em pintar a sombra
de um amigo seu na parede e de repente já estava pintando seu amigo também,
diferenciando luz e sombra e, ao se afastar do amigo, percebeu que tinha planificado
a imagem dele.
8 Meade, Alexa. Seu corpo é minha tela. Palestra no TEDGlobal. Disponível em: www.ted.com/talks/alexa_meade?language=pt-br. Acesso em: 10, set, 2015.
45
O palco, em sua forma idealmente perfeita, é um espaço interno, limitado pela estrutura do teatro e a cena é um espaço fictício a pintar ou sugerir um espaço real. Na concepção da cena, cumpre incluir não apenas os cenários e os dispositivos cênicos, mas também as indumentárias e as máscaras dos atores. A iluminação pertence à cena apenas na medida que a torna visível, contribui para a definição do lugar ou do tempo, ou cria uma impressão. Se ela pertence dramaticamente à representação, enfatizando os movimentos dos atores ou formando uma ação independente, podemos incluí-la no espaço de ação. (BRUSAK, 1978, p. 341)
Fig.: 27 - Foto Mango Lassi e Mango Lassi in process - Alexa Meade - 2012.
Fonte: www.alexameade.com/
A manipulação da imagem antes da fotografia, ou seja, a elaboração do
espaço para a temporalidade do instante que a câmera capta a imagem está sendo
trabalhada tanto nas obras de Crewdson quanto nas de Meade, pois ambos
corroboram para uma gestação imagética da perfeição e esse processo criativo
resulta na obra que é esse todo. Na crítica genética de Cecília Almeida Salles9, o
processo criativo tem a sua consideração como parte da obra.
O que pode ser visto na construção das Personas nas obras dos dois artistas
citados anteriormente é que os atores ou modelos que compõem as obras são
simplesmente elementos que não alteram a obra elaborada na mente do artista.
Destes corpos-personagens não existe uma interação do corpo-personagem-
modelo, com exceção de um trabalho de Meade feito em parceria com a artista
9 SALLES, Cecilia Almeida. Crítica Genética - Fundamentos dos Estudos Genéticos Sobre o Processo de Criação Artística, São Paulo: Edusp, 2008.
46
Sheila Vand na qual o desenvolvimento criativo se deu em conjunto e no corpo da
amiga (fig. 27 e 28).
Fig.: 28 - Foto Ussen - 2012 e Hesitate - 2012.
Fonte: www.alexameade.com/
Como essa estranha aliança entre a forma e a imagem é possível? Pensamos de preferência que a forma precede a imagem, pois reduzimos esta última à representação. A forma daria corpo à imagem. (JEUDY, 2002, p. 33).
O trabalho de Meade também conta com a identificação dos objetos (fig. 29) e
elementos de cena participando da construção imagética em que a tinta invade com
determinação tonal tudo o que está em cena, sem exceção. E a performance dos
modelos vivos ocorre na atuação ora estátua, ora em pequenos movimentos da
exibição ao público(fig. 30).
Fig.: 29 - Foto Egg on egg - 2009.
Fonte: www.alexameade.com/
47
Fig.: 30 - Foto Risen, 2012 e "Risen" in process e Martyrdom Alexa Meade - 2012.
Fonte: www.alexameade.com/
Fazendo uma ponte entre o levantamento da pesquisa de Hockney e o
trabalho da artista e fotógrafa Alexa Meade, esta quis trazer a “sombra para a
pintura”, pintando sobre a sombra dos objetos e depois passou a pintar sobre as
áreas de luz que incidiam nos objetos. Com isso percebeu que pintando o objeto real
nele mesmo (na sua forma física), quando olhava à distância aquela cena, ela se
tornava um quadro de pintura.
Meade pegou um elemento que ela gostaria de pintar e pintou ele mesmo,
transformou esse elemento real em pintura e, para transportar, guardar essa
memória visual plena e de qualidade artística, utilizou-se da fotografia como
documentação artística.
Ela transformou o objeto real em ferramenta (tela) e a materialidade da luz foi
o seu eixo para pintar esse objeto. A plasticidade do resultado do seu experimento
resultou em uma expressão artística que foi amplificada e memorizada enquanto
arte pela fotografia. A descoberta do diferencial na sua arte, por meio de uma
expressão artística, coloca seu trabalho em destaque sobrepondo técnicas de
pintura e fotografia para obter sua obra final.
Por minha experiência com fotografia quando estudei o trabalho de Alexa
Meade, pensei que o seu resultado final da pintura planificada através da fotografia
estivesse pautado na frontalidade como um quadro e que somente um determinado
ângulo da câmera pudesse captar a característica da pintura, bidimensionalizando
aquele cenário. Em uma entrevista10, Meade coloca que, de qualquer ângulo que ela
posicionar a câmera, ela obterá o registro de suas pinturas planificadas. Pensando
10 Meade, Alexa. Seu corpo é minha tela. Palestra no TEDGlobal. Disponível em: www.ted.com/talks/alexa_meade?language=pt-br. Acesso em: 10, set, 2015.
48
tecnicamente, a artista trouxe a pintura para a realidade, transformando o objeto real
em objeto real pintado, ou seja, modificou a linguagem visual daquela imagem de
acordo com a representação que ela queria dar, inserindo o estilo da pincelada e
das cores da tinta naqueles elementos reais.
A tinta proporcionou tornar o objeto real tridimensional em estrutura
planificada e a câmera neste caso funciona como um dispositivo de captação da
memória daquela pintura que é volátil e perecível “por ser real”.
No caso dos pintores que se utilizaram de dispositivos como lentes e câmera
obscura para a melhor captação da imagem real, estes tinham como objetivo,
comum a todo artista, a perfeição e esta se dá pelo poder expressivo que cada
artista tem independente do dispositivo que aperfeiçoa a sua arte.
Trabalhar com a ideia da representação de elementos tridimensionais em
plano bidimensional como a pintura ou desenho sempre foi objeto de valor a
qualificar o artista. Mas o objetivo real das representações pela arte não passaram
de estruturas para representar o humano e sua sociedade, sua necessidade de
perdurar.
2.3 O olhar performado
Fig.: 31 - Foto - The Sherman - Cindy Sherman.
Fonte: http://www.artnet.com
Cindy Sherman (fig. 31) é uma artista e fotógrafa americana que desenvolve a
criação de Personas por suas “máscaras” em forma de maquiagem e adereços para
montar diversos papéis. Sherman desenvolve um trabalho desde 1976 quando foi
49
para Nova Iorque e passou a se fotografar. Sua obra consiste em autorretratos em
que a artista performa diferentes Personas, constituindo papéis que representam
críticas sociais, cenas cotidianas, artísticas e cinematográficas. Nesta construção de
Personas, o seu corpo passa a ser um veículo para questionamentos críticos do
mundo atual e seu trabalho, com uma indiscutível marca, dá vida às suas obras.
Em 1977, sua obra seguiu na linha cinematográfica buscando Personagens
nas atrizes de cinema em que as fotografias narravam histórias. De 1977 a 1980,
desenvolveu a série “Untitled Film Stills” (fig. 32), com 69 fotografias de
Personagens que exploravam a feminilidade, buscando esse dado ficcional
cinematográfico para compor suas Personas.
Fig.: 32 – “Untitled Film Still #2”, 1977 - “Untitled Film Still #21”, 1978 - “Untitled Film Still #35”, 1979
Fonte: https://www.moma.org/collection/works/56515 - https://www.guggenheim.org/artwork/4380 -
https://www.artgallery.nsw.gov.au/collection/works/369.1986/ Os arquétipos sociais são bastante trabalhados na obra de Sherman: a dona
de casa, a prostituta, a dançarina, a atriz e as relações do cotidiano, explorando os
sentimentos da Personagem no gênero feminino, classificado em: a mulher em
perigo, a mulher chora, a mulher trabalha, etc., todas estas Personas sob a ótica
camaleônica e/ou caricata de ilustrar o outro.
Intitulando suas fotografias "Untitled" e numerando-as, Sherman torna a
Persona comum, pertencente a todos. Em 1980 criou uma série "Rear-Screen
Projections" (fig. 33) em que trabalhou suas imagens fotográficas com projeções de
fundo.
Fig.: 33 - Foto "Rear-Screen Projections”- "Untitled #66," 1980 - "Untitled #70," 1980 - "Untitled #71," 1980 - "Untitled #77," 1980
50
Fonte: http://www.cindysherman.com
O fundo, ou o enviroment, conta muito sobre a história que pretende se
apresentar nas imagens de uma obra e o artista está sempre buscando novas
alternativas para expressar as suas ideias na representação de suas Personas.
Em 1981, a revista Artforum convidou Sherman para fazer um "centerfold" (fig.
34), mas depois rejeitou o trabalho, alegando que as fotografias poderiam ser mal
interpretadas.
Fig.: 34 - "Untitled #92," 1981 - "Untitled #85," 1981 - "Untitled #93," 1981.
Fonte: https://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/gallery/4/#/5/untitled-93-1981/
De 1985 a 1989, Sherman começou a trabalhar o estranho com alguns
elementos fora do seu corpo, como próteses (fig. 35). Nesta sua fase de trabalho, a
iluminação é reforçada nas cores RGB.
Fig.: 35 – Horrors - Untitled #140, 1985 - Untitled #153, 1985
Fonte: http://www.phaidon.com/
Em outra fase do seu trabalho: “History Portraits Series” (fig. 36), Sherman
desenvolveu releituras de alguns retratos de pintores famosos e, apesar de morar
em Roma na época deste trabalho, ela dizia não visitar os museus e as igrejas e
usar como referência para o seu trabalho, livros com reproduções das obras que ela
recriou.
51
É interessante notar que no percurso do trabalho de Sherman o
desenvolvimento de suas Personas parte de uma descoberta narrativa em um
enviroment cinematográfico, momento em que ela pouco inseria máscara em suas
Personagens. Depois se envolveu com outros elementos como maquiagem que
denotavam uma maior caricatura das figuras personificadas; máscaras que
chegavam a praticamente ocultar seus traços de corpo real e objetos exteriores que
compunham partes do corpo os quais ela retirava de cena. E neste último trabalho,
“History Portraits Series”, ela utiliza-se de praticamente todos os elementos já
trabalhados de forma a retomar ou reestabelecer um parâmetro daquele ícone
(retratos pintados) que foi o antecessor da fotografia de retrato, com a qual ela
iniciou seu trabalho. Isso nos leva a pensar em um ciclo de 360º voltando ao seu
ponto inicial.
Fig.: 36 - History Portraits/Old Masters - “Untitled #213, 1989 “Untitled #225”, 1990 “Untitled #209”, 1989, “Untitled #224”, 1990
Fonte: https://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/gallery/7/#/18/untitled-225-1990/
Em 1992, desenvolveu a série "Sex Pictures" (fig. 37). Trabalhando uma
Persona elaborada por objetos como: bonecas, próteses e genitálias masculinas e
femininas de modo a figurar um todo reconstituído pelas partes, recompostas de
modo a causar estranhamento. Neste momento do seu trabalho, transfere a sua
Persona para esses objetos, não aparecendo em cena como é característica do seu
trabalho.
Sherman estabelece uma nova máscara para sua Persona, uma máscara
extensiva ao seu corpo que apresenta aberrações visuais de dispositivos facetados
que no realinhamento do conjunto causam uma repulsa que não existia
anteriormente.
Fig.: 37 - "Sex Pictures" “Untitled #305 -1994 - “Untitled #250 -1992 - “Untitled #302 -1993 - “Untitled #177 -1987
52
Fonte: https://www.moma.org/interactives/exhibitions/2012/cindysherman/gallery/6/
Atualmente, Sherman voltou a usar-se como modelo na série de retratos
“Mulheres da Califórnia” (fig. 38). Essas mulheres são representantes, a seu modo
de ver, dos tipos existentes na sociedade. Retomando a relação de retrato
convencional, com fundo neutro, semelhante aos retratos de família do início da
história da fotografia, porém com a expressão da mulher atual estereotipada.
Fig.: 38 - Hollywood/Hampton Types: “Untitled #359”, “Untitled #360”, “Untitled #353” - 2000
Fonte: https://www.sothebysinstitute.com/news-and-events/news/contemporary-art-in-6-artists/
Já há muito tempo, o artista utiliza-se de elementos para desenvolver a sua
arte, seja pincel e tinta, uma máquina fotográfica, um scanner digital e um performer
e tantas outras que se possa imaginar. Os artistas, ao longo do tempo, buscam a
representação de sua arte pelas materialidades que podem ser mutáveis, orgânicas,
entre outras.
2.4 O olhar na Persona compondo a ambiência.
Fig.: 39 – Foto Gregory Crewdson
53
Fonte: https://www.semipermanent.com/profiles/gregory-crewdson
A idealização da beleza corporal corresponde, na maioria das vezes, à representação do corpo imóvel, à escultura, como se em repouso ele inspirasse uma apreensão estética mais poderosa do que em movimento. Olhando séries de fotografias de um mesmo corpo tomado em diferentes posturas, é a parada sobre a imagem (o movimento suspenso) que faz nascer a atração estética? Se é esse o caso, o prazer estético viria sobretudo da captura da imobilidade do corpo no cerne de seu movimento. (JEUDI, 2002, p. 58 e 59)
O fotógrafo e cineasta Gregory Crewdson (fig. 39) trabalha as relações da
construção da imagem, restaurando os elementos que compõem a cena de modo a
elaborar uma ambiência que narra uma imagem parada como em um roteiro de
filme.
Sua obra fotográfica é como uma pintura de Hopper11 - no qual ele se inspira -
minuciosamente elaborada com técnicas de iluminação, composição e coloração.
Trabalha com as estruturas temporais e espaciais, elaborando a cena como um filme
que será rodado, porém, marca a obra em um fotograma, capta o instante da
imagem que contém uma história (fig. 40).
O cinema parado no tempo e espaço de um segundo que tecnicamente
precisou de muita produção e tantas outras mãos em horas de elaboração para ser
captado.
A proposta de se ter um movimento suspenso, como uma cena que fica em
nossa memória e nos volta em uma lembrança, constrói de forma forte e impactante
no nosso inconsciente como um signo que se instala para ser referenciado algum
dia.
Fig.: 40 - Foto Untitled (The Father) Gregory Crewdson - 2007.
11HOPPER, Edward. Coletânea de obras. Disponível em: https://www.edwardhopper.net/ Acesso em: 20, ago, 2016.
54
Fonte: http://www.gregorycrewdsonmovie.com/
As Personagens inseridas em suas fotografias narrativas, por sua composição
postural, iluminação e agregamento com a estrutura espacial, promovem a
ambiência desta obra narrativa que em sua perfeição faz-se quadro, uma pintura.
Pintar com a câmera é o que poderíamos identificar nos trabalhos de
Crewdson e sua técnica da construção visual, agregando iluminação, cenário,
figurino, produção e direção de câmera ilustra a perfeição.
Sua técnica fotográfica consiste em elaborar um set de filmagem e avaliar a
cena em movimento, testando a posição dos atores e de todo o cenário, iluminação
e posicionamento dos elementos na cena, de modo a definir a captação da imagem
(fig. 41).
Ele não utiliza nem um outro dispositivo sem ser a estrutura de filmagem e
fotografia cinematográfica, ou outro complemento para desenvolver a foto, não
existe computação gráfica na sua obra.
Fig.: 41 - Foto do set de produção de duas obras fotográficas de Gregory Crewdson.
Fonte: http://www.gregorycrewdsonmovie.com/
55
Crewdson em entrevista a uma Revista Eletrônica12 coloca Diane Arbus como
sua primeira inspiração na área fotográfica e em suas obras, realmente podemos
identificar o que Arbus captava em suas fotografias: a solidão e as diferenças
humanas, Crewdson trabalha em grande angular de modo a apresentar o panorama,
a espacialidade que compõe o cenário, vivenciando assim em suas cenas paradas a
amplitude do enviroment diante da figura humana, a Persona que representa um
pequeno, porém fundamental ponto neste universo (fig. 43).
Alfred Hitchcock e David Lynch também são suas inspirações dentro do
universo visual da cena e encontramos vestígios das obras de seus inspiradores na
composição de sua obra que fomenta o lado psicológico das Personagens em cada
ambientação cenográfica (fig. 42).
Fig.: 42 - Foto UNTITLED (BIRTH), Gregory Crewdson - 2007.
Fonte: http://www.gregorycrewdsonmovie.com/
Falar da importância da Persona no espaço é quase que cinequanon, pois
não haveria história sem um Personagem, mesmo que esse Personagem fosse um
objeto, ele teria que ter um “anima”, uma vida para que a sua existência tivesse
significado. Quando colocamos em uma instalação artística, no teatro ou em uma
fotografia um objeto como Persona, este deve conter em seu signo o conteúdo para 12 An Interview with Gregory Crewdson Disponível em: <https://petapixel.com/2016/05/18/interview-gregory-crewdson/> Acesso em: 20, set, 2016.
56
“ser” Persona, deve ter significado para o espectador para fazer sentido na obra
vista e para isso temos o enviroment/ambiência que estrutura objeto/Persona,
cenário e narrativa.
É uma imagem-tempo, a série do tempo. A atitude cotidiana é o que põe o antes e o depois no corpo, o tempo no corpo, o corpo como revelador do termo. A atitude do corpo põe o pensamento em relação com o tempo como com esse fora infinitamente mais longínquo que o mundo exterior. (DELEUZE, 2005, p. 228)
Deleuze coloca em seu livro13 que o cinema faz o corpo cotidiano passar por
uma cerimônia e isso é de fundamental importância para a construção de arquétipos
referentes ao nosso dia a dia, porém de maneira especular. Tanto o cinema quanto
a fotografia advindos da mesma potência criadora de obter instantes em movimento,
concebem a imagem “perfeita” ou “imperfeitamente-perfeita” que nos faz vestir as
máscaras das Personas ali construídas. O que a fotografia faz é transportar essa
cotidianidade para um espetáculo imagético, trabalhando os elementos visuais da
composição de modo a harmonizar nossos olhos14.
Fig.: 43 - Foto Untitled, Gregory Crewdson - 1998.
Fonte: http://www.gregorycrewdsonmovie.com/
13 Deleuze, Gillez. A imagem-tempo - cinema 2. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. Editora Brasiliense. 2005. 14 Poderíamos citar dois outros fotógrafos; Ryan Schude e Jeff Wall, o primeiro da atualidade, tem o trabalho visual semelhante ao do Crewdson, porém mais alegórico e menos narrativo, e o de Jeff Wall que trabalha na mesma ambientação explorando como Crewdson as cores americanas, com um staff de produção de menor tamanho.
57
A imagem composta com uma profundidade de campo permite uma nitidez
incrível em sua totalidade e esse aspecto proporciona uma grandiosidade de
detalhes que compõem a ambiência da cena. Nosso olhar tende a passear pela
cena lendo a narrativa através dos detalhes. Crewdson fala em entrevista à “The
american reader”15 que no seu trabalho o espectador é mais propenso a projetar sua
própria narrativa sobre a imagem.
Crewdson cria possibilidades visuais para a narrativa dar andamento nas
mentes das pessoas, pois geralmente suas imagens são dúbias (fig. 44),
proporcionando vários caminhos interpretativos.
Fig.: 44 - Foto Untitled (Ophelia) 1998-2002 - Gregory Crewdson.
Fonte: http://www.gregorycrewdsonmovie.com/
15Disponível em: <http://theamericanreader.com/> Acesso em: 20, set, 2016.
58
Capítulo 3 Persona em performance: materialidade e virtualidade
Para falar sobre performance, é importante vivenciar a expressão artística e a
escola que a modeliza. Nas artes da performance, existe uma tríade: artista,
Persona e público.
Toda a expressão corporal tem um sentido e na performance artística sua
representação deve atender às relações estéticas de modo a apresentar seu
conceito ao público. A performance estrutura-se nas leis expressivas do corpo
artístico dialogando com a materialidade da qual o artista a submete.
Apresentamos alguns artistas que criaram e criam suas Personas em
diferentes materialidades dialogando com a ambiência na constituição do objeto
estético na sua totalidade.
O desenvolvimento de uma arte está intimamente ligado à evolução dos
materiais de sua época e às descobertas por acaso, ou em pesquisas extensas
sobre determinado assunto.
O potencial criativo humano é surpreendente e a evolução dos materiais,
desde o processo analógico das máquinas mecânicas ou das químicas de tintas e
soluções fotográficas até a última invenção digital, possibilitaram as escolhas para
se fazer a diferença. Essa diferença estética que pode ser o que mais nos agrada ou
incomoda, mas como diferença irá nos tocar, fazer “sentido” sem precisar ter
sentido.
As obras dos artistas analisadas neste capitulo se fundem entre analógicas e
digitais, portanto, falaremos de suas propriedades materiais e virtuais sem divisões.
Conforme a etimologia, o mímico imita seu objeto, mas essa imitação não tem de ser direta e conforme. Ela se baseia em uma codificação do gesto e da Personagem, estabelece e fixa os pontos de passagem obrigatórios da sequência gestual, conduzindo a uma depuração do gesto, depuração reconhecível e logo reproduzível. […] O corpo do mímico arruma, organiza e balisa sua trajetória, preparando assim o percurso do espectador. (PAVIS, 1996, p. 115 e 116)
59
3.1 Marcel Marceau
Na atuação do mímico, sua representação visual por meio da maquiagem
proporciona uma identificação gráfica e a sua gestualidade facial e corporal
apresentam uma Persona composta do que poderíamos chamar de uma “máscara
linguagem”, porque o ator se expressa promovendo uma linguagem não oral.
A linguagem está no ato da Persona e na sua interação no ambiente, porque
o mímico trabalha a gestualidade no espaço e, apesar de poder utilizar alguns
objetos em cena, geralmente trabalha com o espaço vazio. Esse vazio compõe uma
linguagem sígnica que o espectador codifica e com a ausência da oralidade, a
mímica se apoia na atuação explícita da gestualidade, pensando na codificação do
seu público e estruturando seus “gestos” de modo a promover o sentido no outro.
Fig.: 45 - Foto do mímico Marcel Marceau
Fonte: http://theprisma.co.uk/2013/07/21/marcel-marceau-the-voice-without-sound/
Marcel Marceau (fig. 45), mestre da pantomima, conhecido mundialmente, foi
pioneiro em suscitar as artes da mímica e criou o personagem “Bip”, fundamentado
no Pierrot da Commedia Dell’art que utilizava como marca uma máscara de pintura
para ressaltar a expressividade do rosto.
Para o mímico, esforçamo-nos em determinar as regras quase geométricas que regem o processo de decodificação, de depuração e de “aumento” do gesto e do corpo. A captação do sistema gestual é decisiva, pois permite ao espectador, como ao analista, ler o espetáculo de mímica, olhando para além da realidade física. A descrição não apresenta dificuldades insuperáveis, a partir do momento em que as regras de transposição e de codificação do real tenham sido claramente estabelecidas. (PAVIS, 1996, p.119)
60
Quando o público espectador assiste a uma pantomima, a sua leitura da
narrativa fica centrada em um só código - o do gesto. Portanto, esse código tem que
ser reforçado para o melhor entendimento do seu público. Marceau criou uma
linguagem da mímica, em principal com o público infantil, elaborando um livro com o
alfabeto do mímico (fig. 46).
Fig. 46 - Fotos do livro "The Alphabet Book", de Marcel Marceau by Mendoza George, (1970).
Fonte: http://november-books.blogspot.com.br/2012/12/the-marcel-marceau-alphabet-book-signed.html
Por não ser usual, a linguagem dos gestos no dia a dia das pessoas, diferente
da linguagem textual, necessita de uma expressividade clara e marcante para a sua
significação.
A gestualidade dos movimentos mímicos falam com o espectador de modo a
fazê-lo adentrar no universo da mímica em que o som e as palavras apresentam-se
com a imagem. O mímico promove em sua expressividade gestual uma apropriação
da ambiência, dialogando com o espaço vazio.
As expressões faciais são analisadas com frequência na vida das pessoas,
assim, o uso da maquiagem funciona como uma máscara física separando o artista
da Persona.
A antropologia do gesto por Marcel Jousse16 leva a uma identificação mais
extensa sobre a questão da gestualidade e, apesar de sua área de estudo abranger
a psicologia e a educação, podemos traçar um parâmetro que leva o trabalho do
mímico a uma interioridade maior do que uma simples decodificação mímica do
objeto. O trabalho do mímico que produz com o corpo uma linguagem em um
espaço vazio, sem signos físicos, é de uma complexidade que envolve os
mecanismos do conhecimento para elaborar a memória, o gesto, o ritmo e a
16Marcel Jousse foi um antropólogo que em 1917 estudou as expressões gestuais de uma reserva indígena Siux nos EUA, desenvolveu estudos fonéticos e trabalhou com psicologia normal, patológica e etnologia. Tornou-se especialista no estudo de estilo oral, ritmo e gesto. http://www.marceljousse.com/pt/qui-est-marcel-jousse/une-courte-biographie/
61
expressão, compondo uma estrutura de comunicação visual que leve a sua
mensagem ao espectador.
3.2 Kassuo Okno e Tatsumi Hijikata
Na década de 70, mesmo período da pantomima de Marceau, a dança Butoh
- pelas mãos de Kazuo Ohno (fig. 47) e Tatsumi Hijikata - também teve
expressividade na mídia.
Fig.: 47 - Foto do ator e dançarino Kasuo Ohno.
Fonte: https://papodehomem.com.br/morre-kazuo-ohno-mestre-do-buto/
O Butoh é um dança que busca a expressividade interior do dançarino (fig.
48, 49 e 50) e o seu fundamento filosófico tem a interiorização pessoal como guia,
aproximando essa expressão artística do happening e das performances.
Pensando na filosofia apontada por Tatsumi Hijikata, a improvisação do
artista que consegue interiorizar e buscar, em uma estrutura quase inconsciente, a
expressão de um sentimento de dor, êxtase, loucura, entre outros e apresentar isso
na forma corporal, tem nesse processo a síntese do Butoh, representado sempre em
uma inovação de acordo com os artistas que estarão no palco.
Fig.: 48 - Foto Christian Perez apresentação de Butoh.
http://www.contemporary-dance.org/butoh.html
62
Segundo Caldeiras17, a ideia de “olho de peixe” na manifestação performática
do Butoh é a representação de um corpo morto que, como o peixe, está vivo e
pronto para reagir fisicamente. O transe serve para interiorizar os sentimentos para
que a expressão corporal apareça de forma mais forte.
Os espetáculos hoje apresentados pelo Butoh seguem uma linha que delimita
o espetáculo, com figurino, maquiagem, coreografia e cenário, sem deixar de
trabalhar a filosofia da dança.
Fig.: 49 - Foto "Amagatsu", Yoshihiko Ueda, (1993).
Fonte: http://elhurgador.blogspot.com.br/2014/08/fotografos-japoneses-vii-yoshihiko-ueda.html
Eu não estou interessado em uma bela estrutura de dança nos moldes tradicionais. A Dança é um caminho de vida, não uma organização de movimentos. Minha arte é uma arte de improvisação. É muito perigosa. Eu tento revelar com meu corpo todo peso e mistério da vida, seguir minhas memórias até o útero de minha mãe (grifo nosso). Em 1920, vi La Argentina, uma dançarina flamenca. Sua dança moveu minha alma e mudou minha vida. Em 1977 criei uma dança para ela, para sua energia. (OHNO apud CALDEIRA, 2009, p.5)18
Fig.: 50 - Foto apresentação Akaji Maro
Fonte: http://www.mm52.com/star/akaji_maro/photo_4.html
17 http://www.mimus.com.br/solange2.pdf 18 http://www.mimus.com.br/solange2.pdf
63
O Butoh trabalha com a ideia de transitoriedade do zen budismo, onde se faz
necessária a morte para que haja a vida, onde é necessário libertar-se das formas
do corpo e do pensamento.
Outro artista da atualidade que trabalha o Butoh é Akaji Maro, o qual usa a
dramaturgia em seus espetáculos, apresentando uma configuração com roteiro,
figurino, cenário, iluminação, enfim, toda a estrutura de espetáculo que difere da
proposta inicial do Butoh (fig. 51). Atualmente, Akaji Maro dirige o grupo
Dairakudakan.
Fig.: 51 - Cena da apresentação do grupo Butoh Dairakudakan no Vancouver International Dance Festival, (2017).
Fonte: https://www.123dentist.com/community-events/vancouver/vancouver-international-dance-festival-presents-
dairakudakan/
3.3 Olivier de Sagazan
O artista Olivier de Sagazan, pintor, escultor e performer, utiliza seu corpo
Persona, trabalhando a fisicalidade da forma e a repetição de índices visuais,
exteriorizados em sua performance visceral.
O artista performático francês Olivier de Sagazan trabalha a representação
corporal em suas performances, utilizando seu corpo como suporte na aplicação de
materiais como; argila, estopa, tinta, galhos, penas e pigmentos que constituem a
sua Persona. O resultado de sua performance “cega” são formas, gestos e sons que
transformam seu corpo em Personas disformes com aspecto monstruoso.
Seu trabalho é desenvolvido de forma visceral e aleatória, envolvendo um
processo escultórico cego, porém seguindo uma marca visual que é sempre
64
identificada em cada performance (fig. 52). Esta marca segue a linha de suas
pinturas e esculturas artísticas. A performance invade o cenário e se faz presente de
forma aleatória em uma constante alteração recriando novas formas anamórficas. As
imagens produzidas na sua atuação performática são únicas, pois o artista modela
seu rosto e corpo, resultando em máscaras deformantes a cada instante da
performance.
O resultado visual é sempre animalesco, como um monstro provocando no
espectador, uma angústia em que a cada nova modelagem no rosto, por alguns
segundos, o artista terá a ausência do ar ao recobrir sua face com a argila. Em
seguida retira a argila da boca ou nariz e volta a respirar. O artista faz esse processo
durante toda a performance.
Fig.: 52 – Fotos da performance de Olivier Sagazan
Fonte: nefdesfous.free.fr/
O corpo da Persona de Sagazan tem na sua materialidade elementos básicos
de modelagem escultórica. O que o artista exterioriza da sua arte hoje é uma
vivência que iniciou exposta no bidimensional da pintura, passando para o
tridimensional da escultura, até chegar à performance de um mesmo signo (fig. 53).
Gera assim uma tríade de representações de suas Personas.
É verdade que um tenaz halo de magia banha nossas tradições de imagens. O inconsciente psíquico, com seu desencadeamento de imagens liberadas do tempo – cujas épocas se apresentam misturadas – não está sujeito ao envelhecimento. Neste sentido, a “magia da imagem” poética sempre existiu. Como a da imagem onírica. Os mortos ainda habitam nossas noites e não é inutilmente que Hesíodo faz de Hipno o caçula de Tãnatos. Portanto, através do culto ao sonho o surrealismo conseguiu reencontrar a dinâmica essencial, o coração vivo da imagem. (DEBRAY, 1993, p. 34.)
65
Fig.: 53 - Foto de pinturas, esculturas e performances de Olivier Sagazan.
Fonte: http://olivierdesagazan.com
3.4 Otávio Donasci
Donasci é um dos precursores da videoarte no Brasil e criou, além de outros
trabalhos, um meio de representar personagens utilizando vídeo, performance e
música em uma formatação teatral, tendo como resultado as “Videocriaturas”.
As “Videocriaturas” (fig. 54) criadas na década de 80 personificaram a
linguagem da videoarte no Brasil, um experimento inovador e impactante, sem
outros como comparativo. Elas são produzidas totalmente pelo artista que também
atua nas performances. A primeira videocriatura foi apresentada em Campos de
Jordão, a convite do músico e compositor Koellreuter, em 1981.
66
No desenvolvimento de suas obras performáticas, Donasci utilizou a
tecnologia televisiva, inicialmente com TVs de tubo, filmadoras e videocassetes.
Com o avanço das tecnologias, adaptou a materialidade de suas Personas para as
TVs de cristal líquido, (de Plasma e de Led) até a utilização de Ipads e celulares.
Fig.: 54 - Performances de Videocriaturas de Otávio Donasci.
Fonte: imagens cedidas pelo autor
Nas Videocriaturas a imagem é gerada em tempo real e essa estrutura é
fundamental para a obra segundo Donasci19. A performance com as “Videocriaturas”
conta com um performer no qual é colocada a estrutura televisiva que funciona
quase sempre como uma máscara da face, mas também já foi usada como máscara
em outras partes do corpo. Essa estrutura televisiva apresenta o vídeo em tempo
real de uma pessoa do público, e assim acontece a interação do público com a obra.
Fig.: 55 - “Videobusto” Performance nos 80 anos da Pinacoteca do estado. Otávio Donasci
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=XK5nQcT6C8o
Outra performance das “Videocriaturas” foi o “Videobusto” (fig. 55) que em
sua narrativa questionava a obra de arte no museu e sua Persona dialogava com
outras obras de arte e com o público.
19 Em entrevista concedida à Rita Varlesi (2005).
67
A substituição do corpo físico por um corpo tecnológico cria um
estranhamento e ao mesmo tempo estimula o desejo da participação do público,
propiciando a este, estar em um outro corpo, um corpo artístico.
A linguagem do vídeo combinada com a atuação da performance possibilita
que Personas de corpo e cabeça diferentes dialoguem em uma composição
analógico-digital (fig. 56), propiciando um encontro com a potencialidade de se
reinventar a cada performance.
As “videocriaturas” corporificaram esqueletos, cavalos, ônibus, esculturas em
museu, corpos de todos os gêneros e tamanhos, por quase 50 anos de criação
deste desenvolvimento artístico inigualável e carismático.
Fig.: 56 – Fotos de performances das “Videocriaturas” de Otávio Donasci
Fonte: imagens cedidas pelo artista
Para Donasci, as “Videocriaturas” são seres híbridos que ampliam os
recursos expressivos do ator através da linguagem audiovisual.
A convite de José Celso Martinez, Donasci foi chamado a fazer parte da
leitura da peça “O Homem e o cavalo” de Osvald de Andrade, apresentando uma
“Videocriatura” em 1988.
Fig.: 57 - imagens do video - palestra e performance Donasci - AVLAB SP - Idiossincrasia do Sonoro pt.01
Fonte: https://vimeo.com/14506883
Os elementos caricaturais da máscara performática com vídeos invertidos ou
partes do corpo trocadas de lugar inseridos nas “Videocriaturas” (fig. 57), ou as
68
distorções corpóreas (cavalo e outros), propiciam uma obra completa e com sucesso
de público (fig. 58). Donasci não criou somente uma obra, ele criou um meio, um
meio para performar e criar vidas em corpos misturados.
Fig.: 58 - Performance de Videocriaturas de Otávio Donasci.
Fonte: imagens cedidas do arquivo pessoal de Otávio Donasci.
Outro artista expoente e pioneiro da videoarte é Bill Viola, artista reconhecido
mundialmente por seus trabalhos utilizando vídeo para instalações arquitetônicas,
releituras videográficas em obras de arte renascentistas, performances que
apresentam relações sensoriais entre outras obras que desenvolve na arte
contemporânea.
No ato criativo, o artista vivencia seus medos, desejos e referenciais de sua
vida e a expressão surge intuitivamente na caracterização de um ou mais elementos
de sua obra; pode ser uma cor, um objeto, ou até algo que se repete sem ser
identificado. Essas experiências estão sempre presentes na história presente para a
uma interferência futura.
3.5 Bill Viola
Bill Viola relata20 uma experiência que teve na infância com 6 anos, sobre ter
caído em um lago e quase se afogar. Este episódio trouxe para ele uma vivência
que lhe mostrou algo mais além da superfície que ele conhecia e o vislumbrou,
trazendo um paraíso de novidades à sua mente que marcariam a expressão em
seus trabalhos artísticos de modo profundo.
20 VIOLA, Bill. Entrevista - Cameras are Soul Keepers - Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uenrts2YHdI> Acesso em: 20, ago, 2016.
69
Seus trabalhos estão centrados “em experiências humanas universais” (fig.
61) - nascimento, morte, desenvolvimento da consciência21 - e busca inspiração
também nas raízes da arte oriental e em tradições espirituais do zen budismo, do
sufismo islâmico o no misticismo cristão.
Fig.: 59 - “The Veiling”, Bill Viola, (1995).
Fonte: urania-josegalisifilho.blogspot.com
Quando descobriu o vídeo em 1969, Viola começou a pensar a sua arte neste
meio e um fator interessante que o artista coloca é a similaridade do azul eletrônico
do vídeo com o azul da água que, em instâncias diferentes, promovem fluxos
semelhantes.
Na proposta de apresentar layers ou camadas de projeção com Personas
(fig. 59), trabalha os planos do espaço cênico para a interatividade do público.
Na obra “Three Women” (fig. 60), Viola transforma o corpo da Persona
utilizando a materialidade da água em forma de cortina, como um espelho,
representando o duplo, o dentro e o fora. Esta obra posiciona a plasticidade e a
textura da água como divisor (uma transição) entre o que está por trás (espelho
d’água) e o que está adiante dele (imagem presente), e é no meio termo que a ação
acontece, na intersecção entre os dois planos. A interferência material da água
muda o código visual, produzindo uma estética etérea do corpo da Persona.
21 VIOLA, Bill. Coletânea de obras. Disponível em: <https://www.billviola.com/> Acesso em: 20, ago, 2016.
70
Fig.: 60 - “Three Women”, Foto: Kira Perov – Bill Viola, (2008).
Fonte: http://50years.sfzc.org/bill-viola/; www.huma3-archive.com; http://eyelevel.si.edu/2008/09/zen-and-the-
art.html e www.spectacles-selection.com
Viola fala sobre a fluidez da água e sua similaridade com os fluxos eletrônicos
e como os elétrons fluem no circuito, onde a corrente elétrica também flui de um
campo a outro. Nosso corpo também trabalha com essa fluidez do sangue pelo
corpo, das sinapses que enviam comandos do cérebro para o corpo, o som que se
propaga no espaço, onde todos esses fluidos são movimentos e o movimento é um
dos pontos estruturantes do trabalho de Viola.
Fig.: 61 - “Catherine’s room”, Bill Viola, (2001).
Fonte: http://www.gwarlingo.com/2014/practice-face-fear-work-make-art/
O foco conceitual de vida, transição e morte têm sido o aporte das suas obras
e os elementos principais - água, ar, fogo e terra - pronunciam-se em quase todos os
trabalhos como bases reais e físicas que preenchem o vazio do espaço, criando
uma ambiência na obra.
Na obra “The crossing” (fig. 62) de 1996 (performer: Phil Esposito) o artista
trabalha com a materialidade da água representada no vídeo, em que a água cai
sobre o performer promovendo uma estrutura real, apresentada na instalação ao
lado da segunda parte em que o mesmo performer está sobre a ação do fogo virtual
em uma montagem videográfica, portanto, real e virtual estão lado a lado em um
comparativo de sentidos para o público expectador.
71
Fig.: 62 -The crossing”, Bill Viola, (1996).
Fonte: http://artelectronicmedia.com/artwork/the-crossing
3.6 Lawrence Malstaf
Lawrence Malstaf22 é um artista que trabalha com arte e tecnologia,
produzindo instalações artísticas e obras cenográficas. A produção de seus
trabalhos une a física e a tecnologia para envolver a materialidade e promover a
interação imersiva de seu público.
Na obra “Shrink” (fig. 63), Malstaf trabalha com a materialidade da Persona
que fica plastificada pelo vácuo, suspensa, tendo um tubo que leva o ar para o
performer da obra, e esse performer pode ser o próprio público, dependendo da
instalação.
A imposição para vivenciar a obra é de se manter inerte o máximo possível,
havendo um pequeno movimento, pois a sucção reposiciona a Persona no seu
espaço. A experiência e referência visual nos remetem à posição fetal no interior do
ventre materno.
Fig.: 63 - Fotos da obra SHRINK, 1995 de Lawrence Malstaf.
22 MALSTAF, Lawrence. Coletânea de obras. Disponível em: <http://lawrencemalstaf.com/info.html> Acesso em: 15, nov, 2016.
72
Fonte: www.lawrencemalstaf.com
A performance ocorre com a imersão da um indivíduo qualquer (público ou
performer) que passa a ser a Persona, plastificada e inerte como um quadro
pendurado para ser visto e analisado (fig. 64 e 65). As linhas ou rugas que o vácuo
produz na Persona e no ambiente à sua volta, juntamente com os tubos
transparentes (um alimentador de ar e o outro sugador do ar), dramatizam a ideia da
figura fetal.
Fig.: 64- Local de instalação da obra SHRINK, Lawrence Malstaf, (1995).
. Fonte: www.lawrencemalstaf.com
A plasticidade desta obra traz a proposta de interiorização, mencionada em
uma de suas palestras, onde Malsfat23 proporciona ao público uma introspecção por
alguns minutos, fazendo de cada participante parte da obra.
Outra obra impactante para a ação do público é a “Mirror”.
Em uma sala escura com foco de luz sobre uma cadeira diante de um
espelho, o público é convidado a se sentar e apertar um botão que ao ser acionado
inicia uma vibração crescente e constante no espelho à sua frente, levando à
deformação total da imagem por alguns minutos. Ao final a imagem se estabiliza
desaparecendo e o que é visualizado é somente o espelho sem o reflexo do público
interator.
23 Palestra na primeira edição do FILE Solo no CCBB dia 22/07/2017
73
Fig.: 65 - Apresentação no evento FILE - o borbulhar de universos, (2017).
Fonte: Fotografia Rita Varlesi, 2017.
3.7 Adrien Mondot & Claire Bardainne
Os artistas Adrien Mondot & Claire Bardainne trabalham em conjunto com
uma equipe de designers e programadores, entre outros especialistas contratados a
cada obra desenvolvida, que elaboram suas criações artísticas digitais.
Fig.: 66 – Hakanaï, Adrien Mondot & Claire Bardainne, (2013).
Fonte: http://www.am-cb.net/
“Hakanai” (fig. 66) é um projeto que trabalha a “impermanência das coisas”24,
relações oníricas que se modificam a qualquer instante e a possibilidade da
interação do performer/dançarino com o espaço digital intensifica essa dinâmica
onírica.
O cenário da obra “Cinématique” (fig. 67) dialoga com os movimentos
corporais por meio de linhas, pontos e letras, e este espaço “abraça os corpos e o
24 MONDOT, Adrien & BARDAINNE, Claire. Coletânea de obras. Disponível em: <http://www.am-cb.net/> Acesso em: 20, ago, 2016.
74
gesto”, trazendo uma dinâmica à cena que provoca a interação visual do ator com o
espaço digital.
Fig.: 67 - Cinématique, Adrien Mondot & Claire Bardainne, (2010).
Fonte: http://www.am-cb.net/
Na obra “Le mouvement de l’air” (fig. 68), a relação pendular em que o
dançarino tem seu corpo projetado no espaço em constate interação com a estrutura
digital promove a dinâmica deste ambiente.
Fig.: 68 - “Le mouvement de l’air”, Adrien Mondot & Claire Bardainne, (2015).
Fonte: http://www.am-cb.net/
A obra “Nuées Mouvantes” (fig. 69) foi elaborada para compor uma instalação
imersiva “XYZT - Les paysages abstraits”, envolvendo a criação de softwares que os
artistas desenvolveram em equipe. Para o trabalho “Nuées Mouvantes”, uma das
obras pertencentes à instalação, foi desenvolvido um programa eMotion que
possibilitava captar os movimentos do público copiando a sua forma e seu
movimento naquela espacialidade com uma projeção digital, onde a animação imita
os movimentos do mundo físico.
A instalação promove uma jornada sensorial ao público, num espaço
minimalista e onírico, que abre experimentos em torno da síntese de movimentos,
representações anamórficas e paisagísticas criadas por paradoxos matemáticos.
75
Fig.: 69 - Obra “Nuées Mouvantes” - Adrien M. e Claire B. - 2011 - 2015
https://www.am-cb.net/projets/xyzt-les-paysages-abstraits
Todos os trabalhos destes artistas traçam um paralelo entre o analógico e o
digital, onde a ambiência promove uma interação especular entre os dois meios.
3.8 OpenEndedGroup
Outro grupo citado é o “OpenEndedGroup” composto pelos artistas, Paul
Kaiser e Marc Downie, entre outros colaboradores, que desenvolvem trabalhos
digitais em artes para diversos segmentos como dança, teatro, cinema,
comunicação entre outros.
Fig.: 70 - Hand-drawn Spaces, Eshkar e Kaiser, (1998/2009).
Fonte: http://openendedgroup.com/artworks/hds.html
O trabalho do grupo aborda ações digitais como; renderização 3D não-foto
realística25, movimento corporal por captura e autonomia de inteligência artificial nas
obras dirigidas ou assistidas.
Trabalhando a espacialidade arquitetônica em camadas digitais, elaboram um
diálogo da Persona com o ambiente que é construído pela Persona digital (fig. 70,
71 e 72), por meio da dinâmica das cores e formas soltas e concomitantemente
ligadas, elaborando uma Ambiência Digital que ao mesmo tempo está à frente do
espectador e também o envolve em uma imersão a um novo espaço virtual.
25 OpenEndedGroup. Coletânea de obras. Disponível em: <http://openendedgroup.com/index.html> Acesso em: 25, set, 2017.
76
Fig.: 71 - Ghostcatching, Digital Incarnate, de Bill T. Jones, Paul Kaiser, e Shelley Eshkar
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=aL5w_b-F8ig
OpenEndedGroup executou trabalhos com Merce Cunningham26 com o
software DanceForms e com captura de movimentos e desenvolveram o “Biped” (fig.
73) dirigido por Cunningham em 1999.
Fig.: 72 - After Ghostcatching, uma versão estereoscópica, colaboração entre Bill T. Jones e OpenEndedGroup.
Fonte: http://openendedgroup.com/index.html
“Biped” foi trabalhado com a captura de movimentos utilizando a tecnologia
digital em que dois bailarinos foram coreografados em 7027 poses digitalizadas,
animadas por linhas, pontos e sinais gráficos que compuseram a obra juntamente
com a música de Gavin Bryars. Utilizaram o software “DanceForms” para
desenvolver a coreografia digital para a dança.
Fig.: 73 - “Biped”, Merce Cunningham e OpenEndedGroup
Fonte: http://openendedgroup.com/index.html
26 CUNNINGHAM, Merce. Coletânea de obras. Disponível em: <https://www.mercecunningham.org/merce-cunningham> Acesso em: 25, set, 2017. 27 OpenEndedGroup. Coletânea de obras. Disponível em: <http://openendedgroup.com/index.html> Acesso em: 25, set, 2017.
77
Capítulo 4
Objeto estético na Ambiência: o processo criativo das Personas de Rita Varlesi
4.1 “Atame” – Livro-arte – 2003
4.1.1 O experimento
Em 2002 quando cursava o mestrado em semiótica com algumas aulas sobre
o estudo da imagem digital, resolvi testar a visualidade do scanner como dispositivo
de captura de imagens de modo não convencional ao que a máquina propunha
(representar o real digitalmente e planificado através da luz incidente sobre o objeto
disposto na mesa de scaneamento). O trabalho consistia em scanear o corpo em
movimento diante do visor do scanner e verificar o resultado visual obtido pela
varredura do leitor óptico sobre a imagem tridimensional (fig. 74,75). O objetivo era
saber qual resposta visual aquela tecnologia iria proporcionar lendo uma imagem em
movimento, sabendo-se que seu funcionamento não objetivava essa ação, ou seja,
pesquisar como o “olhar da máquina” captaria o movimento.
Fig.: 74 - Lâmina 11 – Scaneamento com movimentos da performer - 2002.
Fonte: Arquivo da autora
78
A proposta era levantar dados de como o scanner com sua função inicial de
leitura estática iria configurar uma imagem em movimento. O resultado foi a
formação de imagens com alterações visuais de acordo com a velocidade dos
movimentos desenvolvidos diante do visor do scanner.
As imagens obtidas nos movimentos contínuos e em menor velocidade
revelavam pequenas deformações anamórficas e nos movimentos mais bruscos e
pausados, o resultado das imagens foi de cortes com menor e às vezes nenhuma
deformação, propondo uma leitura em faixas segmentadas de imagens. A relação
ocorria através do tempo e do movimento performado na frente do scanner.
Fig.: 75 - Lâmina 15 – Scaneamento com movimentos da performer - 2002.
Fonte: Arquivo da autora
No trabalho, o tempo e o movimento do corpo promoviam a distorção da
imagem de acordo com a direção vertical da leitura do scanner, compondo uma
imagem linear na captação da forma e do movimento que proporcionava a inscrição
do tempo na imagem captada e ao mesmo tempo planificava o movimento operando
uma anamorfose28 no resultado final daquela Persona. Os cortes nítidos na
presença dos movimentos mais bruscos configuravam-se em uma tecnologia que
aparentava a sua escritura de varredura de linhas.
Segundo Machado (1997, p. 58) o conceito de anamorfose (fig. 76) refere-se: 28 Imagem deformada de um objeto, dada por um espelho curvo ou por um sistema óptico não esférico, bem como pelos aparelhos de raios X (deformação cônica das sombras). Fonte: https://www.dicio.com.br/anamorfose/
79
[…] as técnicas clássicas de anamorfose consistem num deslocamento do ponto de vista a partir do qual uma imagem é visualizada, sem eliminar, entretanto, a posição anterior, decorrendo daí um desarranjo das relações perspectivas originais. […] Com a generalização do termo, o conceito passa a abranger também toda e qualquer distorção do modelo “realista” (leia-se “renascentista”) em representação figurativa, tais como as deformações resultantes da reflexão de uma imagem numa superfície distinta (por exemplo: a reflexão de uma imagem plana num espelho convexo).
Fig.: 76 - Imagem de um desenho planificado anamórfico. “Charles I” (Post 1649)
Fonte: foto do livro - Anamorfic Art de Jurgis Baltrušaitis. pág.: 107.
Os processos fotográficos de captação de imagem tiveram como objetivo em
seus primórdios obter o instante congelado do tempo, o estático que representasse
as formas de modo coerente e o mais fiel ao natural dos objetos e pessoas, como
uma suspensão do tempo de modo documental.
Contando com as questões ópticas das câmeras, os fotógrafos ao longo da
história passaram a vivenciar possibilidades técnicas do “olhar” pelas lentes que com
o avanço da tecnologia ampliaram as possibilidades de representação da imagem.
Capturar o instante passou a ter, na abertura do diafragma, na velocidade do
obturador, na sensibilidade dos suportes de base (vidro, metal, película) e nos
processos químicos, muitas possibilidades estéticas para a reprodução das
imagens. Um dos caminhos possíveis foi o de captar o movimento.
As primeiras câmeras em virtude do tempo de exposição da fotografia exigiam
do elemento retratado que mantivesse uma pose imóvel por um longo período, pois
caso contrário, a imagem ocasionaria um “defeito”, um borrão que desconfiguraria a
condição de “suspensão do tempo” - termo de Machado (1997, p. 61) - ao qual o
invento fotográfico se incumbiu de prover no início da sua utilização.
80
Depois as câmeras, no constante avanço tecnológico, passaram a ser mais
rápidas na captação do instante e duplamente possibilitavam captar o movimento,
resultando em imagens deformadas propositalmente, em que o resultado segundo
Machado (1997, p. 61) chamamos de “anamorfoses cronotópicas”.
O princípio básico do cronotopo fotográfico reside na elasticidade do conceito de instante: considerando o tempo como um desenrolar de eventos, a fotografia surge como algo que se interpõe nessa sucessão, para fixar um intervalo. […] Isso quer dizer que em toda imagem fotográfica há necessariamente inscrição do tempo. (MACHADO, 1997, pág. 61 e 62)
A essa elasticidade do tempo na representação fotográfica podemos
selecionar dois enfoques: um do tempo instantâneo, que congela a imagem em
menos de um segundo, e o outro do tempo cronológico alongado que inscreve uma
anamorfose na imagem. Esta diferença temporal da captação das imagens está
pontuada na escolha estética que se faz do seu uso e da possibilidade de se obter o
instante “eternizado” na imagem fotográfica.
Ao unir tempo e espaço em uma representação visual estática, em que o
percurso do instante deste tempo esteja configurado na imagem, proporciona-se a
esta um diferencial que une os elementos em uma narrativa visual. Na obra “Atame”
a configuração cria uma nova Persona pela representação técnica do dispositivo.
Nesta conformação do tempo inserido na obra, podemos considerar a
materialização deste tempo como a quarta dimensão do espaço representado no
scaneamento com movimentos performáticos.
Como exemplo de pesquisa que busca a imagem anamórfica que
compreende o movimento/tempo, temos o fotógrafo e professor Andrew Davidhazy,
citado por Machado (1997, p. 63) que desenvolveu um dispositivo fotográfico para
captar o tempo em fotogramas. Desse trabalho obteve como resultado anamorfoses
cronotópicas semelhantes (fig. 77 e 78) ao scaneamento planificado.
Fig.: 77 - Cromo periférico precoce – estudos de Andrew Davidhazy.
Fonte: Arquivo pessoal do autor.
81
O seu trabalho de pesquisa ao longo dos anos foi o de criar novos inventos ou
adaptações aos dispositivos de captação imagética, e um deles foi a adaptação de
um scanner a uma câmera fotográfica, proporcionando a captação do movimento e,
por conseguinte a inscrição do tempo na fotografia. Esse scanner possibilitava a
inscrição de um tempo contínuo na resposta anamórfica do fotograma, diferente do
scanner que utilizei em minha pesquisa na obra “Atame”, que em alguns momentos
registrava o anacronismo e em outros, seccionava a imagem com cortes verticais
pontuais.
Fig.: 78 - Foto periférica com câmera digital improvisada (modelo: Sarah) – estudos de Andrew Davidhazy.
Fonte: Arquivo pessoal do autor.
A proposta de distorção, na obra “Atame” ocorre na desconstrução da figura
por meio dos cortes do scanner e da anamorfose das imagens que resultam da
linguagem tecnológica do scanner utilizado.
Na leitura do scanner, o leitor óptico opera da seguinte forma:
É feito uma leitura por varredura de linhas, com uma lâmpada que percorre o
visor do scanner no sentido vertical e incide a luz no elemento sobre o visor, sendo
essa refletida para uma lente ligada a um sensor de captura de imagem. Esse
sensor é o CCD (Charge-coupled Devices) com luz fria ou o CMOS (Complementary
Metal Oxyd Semiconductor) com luz LED, formados por cristais semicondutores que
convertem a luz em carga elétrica. A luz é acumulada em uma placa e em seguida
terá no software ORC (programa de reconhecimento óptico de caracteres) a
conversão da imagem para a linguagem digital e posteriormente para a impressão.
Com as mudanças tecnológicas na obtenção de imagens, os scanners atuais
não promovem mais esses cortes nítidos como os obtidos na obra “Atame” (fig. 80).
Portanto, a resposta visual obtida em “Atame” parte da tecnologia desenvolvida para
os scanners e do modelo utilizado no período de desenvolvimento da obra.
82
Essa referência inscreve no trabalho uma intervenção visual que o constitui a
partir das potencialidades do scanner utilizado. Partindo desta resposta, podemos
analisar que a concepção do tempo inscrito no trabalho ocorre de dois modos: na
anamorfose captada no movimento do corpo no tempo do scaneamento e na
linguagem de cortes resultante de um tempo tecnológico do scanner.
Hoje a reprodução tecnológica de um scanner resulta em anamorfoses
contínuas, como no exemplo da fig. 79 a seguir.
Fig.: 79 - Teste de scaneamento com movimentos em scanner atual - 2018.
Fonte: Arquivo Rita Varlesi.
[…] o tempo como uma categoria que tem uma expressão sensível, que se mostra na matéria significante e que pode, portanto, ser modelada artisticamente. Em termos estritamente semióticos, o tempo surge então como um elemento transformador, capaz de abalar a própria estrutura da matéria, de comprimi-la, dilatá-la, multiplicá-la, torcê-la até o limite da transfiguração. (MACHADO, 1997, p. 59-60)
Seguindo a consideração de Machado, pressupõe-se que este estudo
artístico dos escaneamentos tenha inscrito o tempo na materialidade da obra
“Atame”.
O scanner ao captar a performance transformou o tempo e o movimento
(interação do corpo no espaço) em uma imagem estática, deformada e segmentada,
propondo a construção de uma nova estrutura visual que passou a ser um objeto
estético, uma Persona.
83
Fig.: 80 - Lâmina 08 – Scaneamento com movimentos da performer - 2002.
Fonte: Arquivo Rita Varlesi.
Os cortes do scanner apresentam “pedaços do corpo” como uma colagem
(fig. 80 e 81), e em uma tentativa de leitura destes fragmentos, por uma sequência
de movimentos entrecortados, nos deparamos com a pregnância da forma na
identificação total da Persona.
Arnheim (1989, p.35) discorre sobre a configuração da Gestalt, na
interpretação da forma das imagens:
Por exemplo, a maneira pela qual é visto um determinado padrão depende (a) da configuração do estímulo e (b) das tendências formadoras do sistema nervoso, enquanto distintas dos efeitos dos interesses, experiências passadas ou escolhas fortuitas do observador específico. […] A psicologia da Gestalt estava largamente ligada à “natureza humana” - como o homem percebe, como cresce, como compreende. […] A lei básica da Gestalt descreve uma luta, inerente às entidades físicas e psíquicas, em direção à estrutura mais simples, mais regular e mais simétrica alcançável em determinada situação.
Nessa leitura da obra “Atame”, a Gestalt nos conduz pelo padrão de
repetições que mesmo desordenadas em sua visualização anamórfica e
segmentada, têm uma direção e sequência de padrões que nos encaminha
visualmente para a leitura do todo.
É uma elaboração que se faz em conjunto com o dispositivo formando a
“imagem-movimento” em que seu resultado proporciona uma visualidade da
84
Persona, com interferências de espaço-tempo, obtidas da potencialidade do
scanner.
Fig.: 81 - Lâmina 05 – Scaneamento com movimentos da performer - 2002.
Fonte: Arquivo Rita Varlesi.
Sobre a materialidade da obra e sua proposta, inicialmente houve o processo
de apreensão da imagem pela captura do scanner, proporcionando deformidades e
segmentações na Persona. Esse experimento foi feito em 16 imagens únicas nas
quais os movimentos e feições elaborados na performance buscavam apresentar
uma estética de dor e êxtase.
4.1.2 O livro-arte
Seguindo o processo, ao apresentar essas imagens para Wilton Azevedo,
“artista multifacetado”, professor doutor em poéticas digitais, artista das artes
plásticas e gráficas, músico, poeta e escritor, este propôs que fizéssemos um
trabalho em conjunto, pois havia recebido um convite para participar da Wandering
Librarie, evento que fazia parte da 50a Bienal de Veneza em 2003, sob a curadoria
de Caterina Davinio.
O trabalho a ser apresentado consistia em montar um livro-arte para ser
exposto ao público e como Azevedo já havia feito um poema - “Atame” - há algum
85
tempo, propôs que uníssemos as imagens scaneadas ao poema porque havia uma
contextualidade que assemelhava as imagens à narrativa poética e, portanto,
teríamos uma construção visual e textual interessante para montagem do livro.
Poema “Atame” de Wilton Azevedo:
Atame Com a vida Na garganta E dissimula
Um sussurro frouxo Que diz
Morte para Os que tem prazer
Venha aqui E corte meus
Pulsos com teus Lábios
Se cobras Tanto assim
Ajuda-me a desfazer O leito que
A pouco jaz hesitado Quase morto
Por você não compreender Que sou humano
Dei margem ao outro Dissimulei o ódio
E o ciúmes Esta pena de morte
Dos covardes A força do abruptos A gilete dos fracos
E a indiferença De quem não te olhou
E me sentei Em um sofá
Antes de voltar para casa Dissimulei novamente o ócio
Da semente atada Atame
E não me digas Que me ama Porque quero
Voltar sem remorso Do pouco que Resta na mira
Dos fracos Aponte-me uma saída
Com os dedos Dos teus pés
Lânguidos dos caminhos Raros como
Atar a si mesmo Significados frouxos
Atame Do que não significo Faça amor comigo
Só por intelecto Cuspa no prato
Que não comemos Por falta de sinceridade
Léxico da escritura Que te pertence
Analfabeta Por atar Apenas
Sedução Charme
E Compaixão
Dos inofensivos
86
Para a composição do livro escolhemos 12 imagens scaneadas que melhor
se conectavam com o poema e iniciamos a construção física da obra.
As imagens impressas foram novamente digitalizadas, porém sem nenhuma
intervenção de software que modificasse a estrutura original destas. Neste processo
foi inserido o texto do poema, com as quebras dispostas em cada lâmina de imagem
de modo a estabelecer o entendimento textual de início e fim em cada página do
livro. Essa proposta foi estabelecida para que a leitura pudesse ser feita de modo
não linear, pois o livro seria composto de lâminas (páginas) soltas para compor uma
hipertextualidade na obra.
O livro “Atame” foi elaborado em lâminas de acetato rígido adesivadas com as
imagens e o poema, acompanhado de uma mesa de luz que permitia a leitura das
sobreposições de suas transparências.
Fig.: 82 - Lâminas – Livro-arte “Atame” - 2003.
Fonte: Arquivo Rita Varlesi.
Em uma menção ao digital na sua potencialidade de caminhos hipertextuais e
leituras não-lineares, pensamos em montar o livro com lâminas soltas para que as
sobreposições pudessem proporcionar vários caminhos de entendimento visual e
textual, já que o texto do poema de Azevedo possibilitava ser lido em partes com
junções aleatórias para a compreensão da linguagem poética ali inserida.
O tipo de material escolhido juntamente com a concepção das imagens, o
poema elaborado e a interação na leitura do trabalho pelo público de modo
87
interventivo, proporcionavam um livro-arte com a dinâmica dos meios digitais em
que a forma como as lâminas eram posicionadas ou lidas possibilitavam um
hipertexto poético e a leitura visual operava como um palimpsesto de imagens
sobrepostas em uma mesa de luz.
Fig.: 83 - Lâminas – Livro-arte “Atame” - 2003.
Fonte: Arquivo Rita Varlesi.
O hipertexto, termo criado por Theodor (Ted) Nelson em 1963 - antes da
WWW (World Wide Web) por Tim Berners-Lee, propunha uma estrutura de links
interativos entre conteúdos que se complementavam em várias mídias como: textos,
vídeos, imagens estáticas, sons, músicas entre outros que comporiam uma estrutura
88
hipermídia, por interfaces. O objetivo era compreender todo o conhecimento possível
para tornar acessível a informação para todos. Este estudo propõe uma estrutura da
web, com algumas diferenciações da atual, na forma de apresentar as informações e
em 1972 foi iniciado com o projeto Xanadu29.
A proposta de hipertexto pertence às mídias digitais interativas, porém a
materialidade das mídias gráficas/textuais também utilizam-se desta possibilidade de
movimento e interação para tornar seus meios mais dinâmicos e atraentes para o
público leitor. Um exemplo disso é o livro de Júlio Cortázar, “O jogo da amarelinha”
de 1963, em que o trânsito textual caminha não-linearmente pela estrutura do texto,
apresentando uma modalidade interativa na leitura da narrativa.
A propósito do uso hipertextual, as artes gráficas e plásticas se apoderaram
desta potencialidade promovendo o uso de sensores sonoros em anúncios
publicitários impressos entre outras modalidades interativas como abordado em
minha dissertação.
A obra “Atame” (fig. 82, 83, 84) enquanto livro-arte apoiou-se nas estruturas
do hipertexto para construir uma narrativa poética, dinâmica, interativa, não-linear e
com uma plasticidade visual a ser construída na visualidade interativa do público.
Fig.: 84 - Lâminas – livro-arte “Atame” - 2003.
Fonte: Arquivo Rita Varlesi.
29 http://xanadu.com/xuTheModel/
89
4.2 “Atame – Angústia do precário” - mídia interativa.
O processo criativo de “Atame - Angústia do Precário” (fig. 86) partiu do
conceito Interprosa que Azevedo criou após o lançamento do CD-ROM “Interpoesia”
(1998), em parceria com Philadelpho Menezes. A proposta do Interprosa era o
desenvolvimento de uma narrativa digital interativa e após a morte de Menezes em
2000, esta proposta ficou em suspensão até 2003 quando Azevedo identificou no
livro-arte “Atame” a oportunidade para retomar a narrativa digital – Interprosa.
Em 2003, Azevedo iniciou o roteiro e os poemas para a narrativa e me
convidou para desenvolver a personagem. O argumento da obra era pautado na
narrativa de uma mulher em primeira pessoa que conjecturava sobre relações
amorosas e existenciais, pela conexão de textos e poemas. A linha condutora da
narrativa trabalhava a ideia da personagem se auto scannear, e esse foi o enfoque
visual em que me apoiei para a elaboração da personagem.
Fig.: 85 - Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
4.2.1 Desenvolvimento das Personas.
O meu processo criativo de elaboração das Personas transcorreu na
caracterização da montagem física destas, na performance desenvolvida para a
câmera e na direção e produção dos vídeos e fotografias.
As imagens que inicialmente nasceram da estética do scaneamento
continuavam na narrativa onde minha ação de scanear o corpo passava agora a ser
a ação da personagem, da narradora da trama.
90
A seguir, transcrevo um trecho do roteiro da narrativa “Atame – Angústia do
Precário” - Locução em off da personagem:
NADA ME RESTA!
NADA.
É ESTRANHO SABER QUE O ÚNICO BOTÃO QUE EU TENHO PRA APERTAR,
PODE CONTAR A HISTÓRIA DE UMA PAIXÃO.
MESMO QUE COM O TEMPO, ESTA MESMA HISTÓRIA VIRE FICÇÃO…
NÃO IMPORTÂNCIA!
NÃO TEM IMPORTÂNCIA ALGUMA!
Nesse caminho iniciei os estudos para compor estas novas Personas,
trabalhando agora os suportes da fotografia e da filmagem que possibilitavam usar
planos fechados em close-up com cortes e deformações pelo movimento da câmera
e/ou da performance. O objetivo era simular as imagens do scanner e ainda assim
construir uma nova estética aliada ao digital interativo.
A elaboração física das Personas partiu da construção de uma materialidade
erotizada caracterizada no figurino e na atuação performática.
As cenas foram produzidas com performances trabalhando os movimentos
corporais com enfoque na gestualidade facial e nos recortes visuais que pelas
filmagens e fotografias evidenciaram os detalhes do corpo com iluminação
apropriada para a construção da cena.
As filmagens foram trabalhadas com ângulos de câmera plongê30 e em planos
fechados em close-up de modo a captar uma atmosfera intimista explorando a
sensualidade feminina. Foram feitas algumas filmagens externas para compor o
cenário, mas as cenas das Personas foram realizadas em filmagens internas.
A elaboração de cada Persona foi pensada na plasticidade fotográfica e
videográfica de modo a compor uma unidade visual que ainda seria trabalhada 30CâmeraPlongê(mergulho)oucâmeraaltarefere-seaotermotécnicoquedefineoângulodecimaparabaixodacâmeraemrelaçãoaoobjetofotografadonaescolhadacomposiçãofotográfica.
91
graficamente no software. A edição do trabalho, tanto a parte visual, quanto a sonora
ficaram a cargo de Azevedo que desenvolveu todo o processo de elaboração da
narrativa.
Os vídeos e as fotos produzidas tinham um processo semelhante ao do
trabalho da fotógrafa Cindy Sherman, no modo de me autofotografar e filmar. A
artista Sherman foi uma importante referência para o desenvolvimento do meu
trabalho na construção de Personas.
No período em que desenvolvi as Personas de “Atame - Angústia do
Precário”, ainda não conhecia a obra de Sherman, mas a identificação foi imediata
quando tomei contato com seu trabalho que influenciaram a minha composição
artística na construção de Personas, portanto cito a artista por sua genialidade de
performar com o olhar sobre o sujeito.
Fig.: 86 - Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
O processo de captação das imagens baseou-se em uma orientação visual
para elaborar as Personas (fig. 85), de modo a continuar a linguagem fragmentária
do livro-arte, explorando a potencialidade fotográfica e videográfica na captação das
cenas.
O trabalho tinha uma formatação hipertextual para atuar nas mídias digitais e
em apresentações artísticas. Os elementos que compunham a narrativa se
interconectavam nas diferentes linguagens (fig. 87). As Personas caminhavam pelo
universo feminino evidenciado no roteiro e nos textos poéticos, exaltando a
sensualidade feminina.
As Personas e as cenas foram planejadas de modo a obter na construção
imagética uma percepção do todo, em que as partes se completassem por
semelhanças nos padrões de formas, cores e movimentos.
92
Captar partes do corpo propõe um enunciado de sedução como no
voyeurismo de olhar pela fechadura da porta (fig. 88). A descoberta do outro em seu
momento íntimo propõe nesta obra uma sensualidade explorada entre imagens,
sons, textos poéticos, música e narrativa.
O processo de filmagem e fotografia foi realizado com câmeras acionadas
com controle remoto e disparadores durante a execução de minha atuação
performática. Após cada take verificava a direção da cena e passava os vídeos
brutos e as fotos para Azevedo, que fazia a edição das imagens e juntamente com a
música e a locução elaborava a narrativa na mídia digital.
Fig.: 87 - Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
“Atame - Angústia do Precário” foi desenvolvido de 2003 a 2011 e
apresentado em vários formatos de exibição durante esse período. Na maioria dos
eventos sua apresentação era acompanhada de performances físicas e projeções
do trabalho, incluindo música e narrativa sonora.
Na primeira fase do trabalho, a construção visual foi feita pensando na
narrativa digital sendo gravada uma locução do texto e dos poemas por Thaís
Gonçalves, criada uma estrutura musical de fundo por Azevedo, a filmagem e as
fotografias das Personas e a finalização gráfica por Azevedo. Esse processo se deu
por alguns anos em que a cada apresentação as intervenções sonoras e visuais
eram modificadas de acordo com a estrutura do evento e o posicionamento artístico
de Azevedo. Esse trabalho poético percorreu países da América Latina, América do
Norte e Europa, acompanhado de palestras e workshops sobre o desenvolvimento
da obra.
93
Fig.: 88 - Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
Em algumas apresentações eram acrescidas performances, às vezes com
dança, outras com canto e instrumentos musicais e também com locuções no palco.
Neste período, a criação das Personas continuava com experimentações
visuais e expandindo a proposta da obra, Azevedo amplificava o trabalho com as
sonoridades e convergências gráficas dos softwares utilizados.
O desenvolvimento das imagens no meio digital compreendia uma relação
gráfica e de orientação visual que pudesse encaminhar o olhar do público para as
ações hipertextuais. Citando um exemplo no layer (fig. 89) que em uma sucessão de
fotos promoviam a ação do movimento da língua, quando o mouse circundava a
imagem, acompanhado da escrita “lembrança” e deixava um rastro que se dissipava
na tela.
Fig.: 89 - Imagem das interfaces digital de “Atame – Angústia do Precário” com gráfico (seta em amarelo) que
simula o movimento do mouse.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
Em meados de 2009, Azevedo iniciou uma parceria com Savana Pace que
ajudou na formatação digital da obra que se transformaria em um CD-ROM. O CD-
ROM apesar de finalizado nunca foi produzido, o que não impediu o trabalho de ser
continuamente renovado e apresentado em forma de performance poética.
94
Obra foi elaborada em softwares de edição de imagem, som e programação
interativa. A sua programação fechada foi elaborada para a interação do público
através de um totem interativo ou por CD-ROM.
Trata-se de uma narrativa digital (fig. 90), que apresenta uma locução em off
de modo facetado, que tem continuidade em cada hipertexto de acordo com a
interação do público.
Fig.: 90 - Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
Os poemas apresentam-se nas interfaces de modo animado promovendo
uma leitura em movimento de acordo com a interação nos elementos visuais
daquela interface.
Em cada interface a interação é diferenciada de modo a promover um
exercício de descobertas na navegação de cada hipertexto (fig. 91). As imagens em
movimento, o texto escrito, a música e a narração em off, compreendem uma
dinâmica de elementos que envolvem uma narrativa invadindo os sentidos, da visão,
da audição e do tato, buscando na ação de intervenção de cada indivíduo uma
leitura única e interpretação daquela ambiência.
Fig.: 91 - Obra “Atame - Angústia do Precário” - Wilton Azevedo - 2003 a 2009.
Fonte: arquivo de Rita Varlesi.
95
4.2.2 Câmera parada – conceito de “Teatro de Arquivo”
Em uma outra fase da construção visual de “Atame - Angústia do Precário”
em 2005, propus uma filmagem com uma câmera parada em que a Persona
feminina encenava o dia a dia com o movimento de entrada e saída de cena (fig.
92), trabalhando as relações de tempo e espaço em que o enquadramento da cena
delimitava o que seria visualizado como em uma câmera de vigilância.
A narrativa se desenvolvia em um enquadramento da cena no qual o público
iria supor os acontecimentos da trama somente pelo que seria apresentado na
entrada e saída da Persona por aquele espaço.
A filmagem foi feita no período de 4 horas e a edição realizada por Azevedo
com sobreposições das cenas e inserção do elemento textual e gráfico, reduzindo a
2 horas. Esse trabalho tinha o propósito de constituir a ideia de rotina e redundância
naquela ambiência e também passou a ser base para a sobreposição de algumas
imagens nas apresentações, com a proposta de “teatro de arquivo”.
A proposta de “teatro de arquivo” que Azevedo desenvolveu consistia na
junção da captação de imagens e sons, compondo uma coletânea de informações
que poderiam ser utilizadas variadas vezes se combinadas e editadas a cada
proposta artística, gerando novas visualidades e sonoridades.
Fig.: 92 - Imagens das interfaces digitais de “Atame – Angústia do Precário”.
Fonte: Arquivo do autor - https://www.youtube.com/watch?v=jJIDn0nv3Ag&ab_channel=WiltonAzevedo
96
Toda a estrutura de “Atame - Angústia do Precário” foi apresentada de
diversos modos: digital com performance em palco, digital interativo para o público
em eventos, performance com diferentes composições.
O modelo de apresentação com projeções virtuais feitas “ao vivo” tinha na sua
essência uma abordagem inédita a cada apresentação, com sons, locuções,
músicas e performances sempre novos, ligados às imagens que eram sobrepostas
em colagens visuais, mesclando vídeos das performances feitas durante o evento e
outros dos arquivos pré-elaborados (fig. 93). A obra era um acontecimento que se
dava ali no palco e seu ineditismo promovia construções diferentes a cada
apresentação.
O digital interativo de “Atame - Angústia do Precário” era por outro lado, uma
estrutura fechada em uma formatação hipertextual que tinha também o ineditismo na
não-linearidade interativa, mas a sua narrativa encerrava-se nas limitações de uma
mídia física como o CD-ROM, ou na possibilidade de atualizações da hipermídia (fig.
94). A sua comunicação ocorria em congressos, simpósios, entre outros eventos,
acompanhada da apresentação dos conceitos teóricos de Azevedo e como mídia
interativa foi apresentado ao público pela primeira vez no FILE – Festival
Internacional de Linguagem Eletrônica em 2010.
Fig.: 93 - Evento File – Festival de Linguagem Eletrônica – “Atame – Angústia do Precário” - performance de Raquel Rava.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
97
Fig.: 94 - Storyboard da obra “Atame – Angústia do precário”.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
98
Sobre as performances que acompanhavam as apresentações de “Atame -
Angústia do Precário”, foram realizadas enquanto apresentação poética, com leitura
de texto e poemas (Fernanda Nardi e Marcelo Martorelli), com apresentação de
canto (Rava), com performance artística e mapeamento facial (Adriane Gomes e
Rita Varlesi), com performance de instrumento musical - arpa (Dora Smék), com
performance artística (Nara Ciotti e Brenda Marques), entre outras. Junto a essas
performances havia também toda uma estrutura de cenário e iluminação que
compunham as apresentações sonoras e visuais, feitas em tempo real (fig. 95, 96 e
97).
Fig.: 95 - E-poetry em Chicago - performance de Brenda Marques - 2007.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
Fig.: 96 - File 2010 no teatro Cacilda Backer. Performance: Adriane Gomes, Dora Smék, Fernanda Nardi e
Marcelo Martorelli. Projeção: Ricardo Botini - 2010.
Fonte: Fotos Ligiane Braga.
Fig.: 97 - Apresentação no Actamedia 5 [in verso] – Rita Varlesi e Savana Pace - 2006.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
99
4.3 O experimento Persona Andrógina.
Depois do desenvolvimento destas Personas femininas para “Atame” (livro-
arte) e “Atame - Angústia do Precário” iniciei uma pesquisa sobre a construção de
uma Persona andrógina utilizando a máscara da pantomima e a expressividade do
rosto como base para uma exteriorização, tendo como referência o teatro-dança
Butoh.
O foco da pesquisa estava na produção gestual facial e para isso foi
desenvolvida uma plasticidade com a maquiagem inicialmente branca, apresentando
uma máscara neutra com possibilidades de construção visual (fig. 98 e 99). Essa
máscara tinha como princípio simbolizar uma passagem na transição de gêneros da
Persona. Os primeiros estudos visuais que desenvolvemos foram projeções em que
um vídeo com outras imagens faciais também deste rosto desenhariam um duplo
digital com inserções gráficas de formas e textos elaborados no software. Neste
processo usávamos uma metalinguagem no vídeo do vídeo, e na face da face.
Fig.: 98 - Performance videográfica com projeção de vídeo.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
Depois, utilizando maquiagem que ressaltava detalhes de olhos e boca, como
na pantomima de Marcel Marceau, explorei a gestualidade dos movimentos faciais
de modo a repetir expressões básicas da mímica somente com movimentos dos
olhos e da boca, com objetivo de não movimentar a cabeça para obter uma boa
sobreposição na finalização do software.
É que a verdadeira poesia, quer queiramos ou não, é metafísica, e é seu próprio alcance metafísico, eu diria, seu grau de eficácia metafísica, que constitui todo o seu verdadeiro valor. … E fazer a metafísica da linguagem, dos gestos, das atitudes, do cenário, da música sob o ponto de vista teatral é, ao que me parece, considerá-los com relação a todas as formas que eles podem ter de se encontrar com o tempo e com o movimento. (ARTAUD, ano, p. 44 e 46)
100
Fig.: 99 - Performance videográfica com projeção de vídeo e interferência gráfica por software.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
4.3.1 “Volta ao Fim”- obra de Wilton Azevedo e Alckmar dos Santos.
Quando Wilton Azevedo e Alckmar dos Santos me convidaram para
desenvolver a personagem do conto “Volta ao fim” de Alckmar, pensei em continuar
com a proposta de Persona andrógina e conversado com os autores iniciamos o
trabalho de filmagem.
O trabalho consistia em desenvolver uma Persona para projeções em tela
plana, com mapeamento de tela e tridimensional em uma escultura no formato de
cabeça.
O mapeamento ou mapping consiste em uma programação em um software
específico para modelar a imagem plana de um vídeo bidimensional em outros
planos: bidimensionais com recortes, ou tridimensionais. Esse trabalho foi
desenvolvido por Lucca del Carlo e consistia em diferentes mapeamentos (fig. 100)
de acordo com o local das apresentações e pela disposição das projeções. As
apresentações realizadas na cidade de São Paulo-capital, que tiveram o uso desse
mapeamento, ocorreram na Livraria da Vila – unidade Fradique (com a participação
de Francis Mainardi) e na Oficina Cultural Oswald Andrade. Fig.: 100 - Fotos de escultura mapeada por Lucca Del Carlo com vídeo performance de Rita Varlesi.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
101
A elaboração do cenário, montagem e iluminação para as apresentações
ficavam sob minha responsabilidade. É importante destacar que a temporariedade
do texto era transportada para a peça pelas marcações do espaço nos quais seriam
projetadas as imagens poéticas de acordo com cada capítulo do texto, e a
iluminação era elaborada marcando com cores os momentos do texto que
representavam o percurso da vida do narrador (fig. 101, 102 e 103).
Fig.: 101 - Evento “Volta ao Fim” - apresentação na Livraria da Vila – unidade Fradique.
Fonte: Foto Rita Varlesi.
Fig.: 102 - Evento Volta ao fim - Apresentação na Casa das Rosas.
Fonte: Foto Alan Azevedo.
Fig.: 103 - Evento “Volta ao Fim” - apresentação na Oficina Cultural Oswald Andrade (2011).
Fonte: Foto Rita Varlesi.
102
A personagem do conto era do gênero masculino, porém a minha Persona
promovia uma ponte entre a performance na leitura do conto pelo autor do texto
(Alckmar dos Santos) e a composição sonora e visual de Azevedo em que a
androgenia da Persona apresentava a temporariedade da narrativa textual, no
enfoque poético da apresentação da obra.
A plasticidade gráfica da edição de Azevedo propiciou vida à Persona por
meio de sua máscara pantomímica para essa peça (fig. 104 e 105). O trabalho
utilizou o teatro de arquivo com as projeções no rosto branco que também fizeram
parte da obra “Eletroacáustica” e foram elaboradas novas filmagens, pensando no
vídeo que seria mapeado na escultura.
A cena captada nas fotos e nos vídeos era sempre em close-up para reforçar
os gestos faciais que produziam movimentos de modo repetido, trabalhando a
redundância e seguindo a locução do texto. O trabalho bruto foi encaminhado a
Azevedo que editou e filtrou as imagens de modo impactante, acrescentando o
elemento gráfico e sonoro às imagens.
Fig.: 104 - Performance videográfica com projeção de vídeo e interferência gráfica por software.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
Em algumas apresentações da peça, tivemos reformulações visuais de
acordo com os espaços físicos em que a obra seria apresentada, porém a estrutura
da peça tinha um percurso a ser seguido de acordo com os capítulos do texto, em
uma linearidade textual, mas com a intervenção não-linear de Azevedo que
“performava” as imagens e sons ao vivo, de modo que cada apresentação, um novo
espetáculo era apresentado.
103
Fig.: 105 - Performance videográfica com projeção de vídeo e interferência gráfica por software.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
O trabalho foi apresentado em formato de mapeamento exterior (fig. 106) em
via pública no evento “Vídeo Guerrilha”31, organizado pela Visual Farm, e nesse
evento foi utilizada a proposta de teatro de arquivo.
Fig.: 106 - Projeções mapeadas em vias públicas - Evento Vídeo Guerrilha - Rua Augusta - 2012.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
As Personas desenvolvidas ao longo desses 16 anos proporcionaram um
aprendizado único em que a construção artística se faz em pares e em trocas.
4.4 A Persona no projeto In-Finitude
Após 13 anos de trabalhos desenvolvidos sobre o objeto estético, com o
aprendizado na relação de troca da obra artística de Wilton Azevedo, tencionei que
minha Persona deveria expandir na busca de uma continuidade conceitual.
31 Evento púbico de projeção em grandes formatos, que acontecia da Rua Augusta, com participação de vários artistas nacionais e internacionais, com estruturas de participação interativa do público.
104
Em 2015 ao ingressar no doutorado do Programa de Pós-Graduação em
Educação, Arte e História da Cultura, desenvolvi um projeto chamado “In-Finitude”
no qual a proposta era unir a minha Persona ao trabalho de outros artistas
convidados como coautores que pudessem contribuir na construção imagética da
temática “transição da vida e morte do corpo e do objeto”, objetivando a elaboração
de instalações artísticas que propusessem um diálogo entre Personas e ambiências
analógicas e digitais.
Apesar deste percurso de pesquisa não ocorrer da forma como pretendia, foi
possível realizar uma parceria com o fotógrafo Prof. Dr. Ângelo Dimitre para
desenvolver um ensaio fotográfico e a filmagem da minha performance; a contínua
parceria de Azevedo na parte digital e sonora e a colaboração da Profa. Dra. Regina
Lara no novo aprendizado e ensino da arte em vidro.
A primeira etapa do trabalho em “In-Finitude” foi desenvolvida em três
linguagens: fotografia, performance digital e escultura em vidro, de maneira que se
fundissem em uma única ambiência. Essa etapa foi desenvolvida em 2015 e 2016
4.4.1 Fotografia, vídeo e performance em “In-Finitude” O trabalho fotográfico consistiu na captação de imagens mortuárias no
Cemitério da Consolação, objeto estético este que seria fundido às esculturas em
vidro na forma de lápides para uso em instalação artística. Naquele momento me
deparei com as impossibilidades materiais das quais dispunha para realizar o projeto
almejado. Para tanto, desenvolvi esculturas em placas de vidro que comporiam a
instalação artística das lápides e aguardei o processo de pesquisa sobre os
materiais que poderiam ser submetidos à queima junto ao vidro ou uma adaptação
de materiais para a proposta do projeto. Ainda trabalhando sobre a pesquisa,
debruço-me sobre processos fotográficos antigos – colódio úmido32 - retomando esta
parte do projeto para a finalização das esculturas no decorrer deste ano (2018).
Algumas imagens captadas no cemitério foram trabalhadas de modo a propor
a ideia de movimento, outras a ausência ou excesso de luz (fig. 107). Essa parte do
32 Colódio úmido é uma técnica antiga de foto positiva em vidro
105
trabalho fotográfico foi desenvolvida junto ao fotógrafo e colega de estudos do
LHUDI33, Prof. Dr. Ângelo Dimitre.
Fig.: 107 - Fotos do cemitério da Consolação - Rita Varlesi e Ângelo Dimitre - 2015
Fonte: Arquivo de Rita Varlesi e Ângelo Dimitre.
A proposta fotográfica era captar signos imagéticos que descrevessem os
locais referenciais de morte de pessoas e objetos e, portanto, iniciamos com os
cemitérios de pessoas e carros. O desenvolvimento fotográfico dos cemitérios de
automóveis (fig. 108) foi feito somente por mim.
Concomitante à captação das fotografias, iniciamos o processo de
performance digital com a captação de imagens fotográficas e videográficas (fig.
109). Nesse processo desenvolvi a performance e Dimitre a filmou e fotografou.
Passamos as imagens brutas para Azevedo que iniciou os trabalhos digitais junto
aos softwares com intervenção sonora (Azevedo já havia criado uma música para o
“In-Finitude”).
33 LHUDI – Laboratório de Humanidades Digitais criado pelo prof. Dr. Wilton Azevedo na UPM - Universidade Presbiteriana Mackenzie.
106
Fig.: 108 - Fotos do cemitério de automóveis de Capão Bonito - Rita Varlesi – 2017.
Fonte: Arquivo de Rita Varlesi.
A música desenvolvida por Azevedo para “In-Finitude” foi utilizada junto ao
software promovendo uma interferência sonora no grafismo estabelecido para as
imagens do trabalho. Nesse período Azevedo também produziu o vídeo “Vanish
Face”, com o material da performance.
Fig.109 - Fotos de Ângelo Dimitre, layers com intervenção digital por Wilton Azevedo e performance de Rita Varlesi.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
QRCode que direciona para o link da obra “Vanish Face”:
107
O corpo virtual da performance da Persona simula movimentos por meio de
formas diferenciadas, de acordo com a sonoridade da música, e se confunde com o
enviroment de modo a construir uma significação única no ambiente digital.
O estudo anamórfico também foi utilizado no “In-Finitude”, para produzir
imagens sobrepostas deformantes pela junção do vídeo duplicado em
sincronicidades diferentes (fig. 110), resultando uma deformação em movimento
aqui apresentada em frames. Este trabalho será finalizado com a união do texto ao
vídeo sonoro.
Fig.: 110 - Vídeo de Ângelo Dimitre e intervenção de software Wilton Azevedo.
Fonte: Arquivo pessoal de Azevedo.
A anamorfose pode ser observada nos trabalhos em movimento como no
filme de Zbigniew Rybczynski artista polonês que operava a imagem em captação
com velocidade reduzida do vídeo, pela varredura das linhas horizontais deste e do
delay de cada frame. A sua obra, “A quarta dimensão” (fig. 111) apresenta esse
processo em vídeo.
Fig.: 111 - "The Fourth Dimension"– trecho do vídeo anamórfico de Zbigniew Rybczynski, 1988.
Fonte: http://www.zbigvision.com/
108
“A Quarta Dimensão” mostra um casal e vários objetos em movimento, simultaneamente, no tempo e no espaço. As imagens são divididas em linhas, mais precisamente 480, em que a cada frame é aplicado um delay de uma linha. Assim, depois de 480, linhas a cabeça do personagem está virada, e seus pés continuam na posição original, o que provoca um desdobramento do tempo e do espaço. O tempo- espaço da imagem é modificado com a expansão do período, percebido através do processo do delay repetitivo das linhas. O presente e o passado ficam representados no mesmo frame. (GOETJEN, p. 65)
O fotógrafo Davidhazy, citado no início deste capítulo, também aborda a
anamorfose por varredura de linhas de movimento, porém sua pesquisa é elaborada
na fotografia, por meio da manipulação de câmeras fotográficas que produzem o
mesmo efeito do vídeo, porque trabalham com a captação incidente da luz. Os dois
artistas fazem uso da mesma proposta técnica para a construção de imagens
anamórficas.
Fig.: 112 - Foto periférica com câmera digital– estudos de Andrew Davidhazy.
Fonte: http://scottthephotographer.com/?p=1143
A foto (fig. 112) foi feita com uma câmera polaroide em que o campo de visão
da câmera foi adaptado para uma redução em forma de fenda de 1mm, como no
processo de linhas do scanner. Depois de um período estático, ocorre o movimento
do objeto e da câmera como na função de varredura do scanner de modo a varrer a
imagem na horizontal de cima para baixo34.
109
4.4.2 Esculturas em “In-Finitude”
O desenvolvimento deste processo ocorreu no laboratório de vidro da UPM,
coordenado pela Profa. Dra. Regina Lara e foram produzidas 12 esculturas de peças
planas com inserção de materiais como tijolo, metais, sílica, corantes, vidros
coloridos diversos e varetas de vidro. Também foram produzidas esculturas com
molde no formato de uma cabeça humana (fig. 113), dividida em 4 partes para o
melhor posicionamento do vidro na queima. As esculturas das cabeças totalizaram 9
partes, sendo que uma cabeça completa foi finalizada e participou de exposição35 no
MIS de Campinas, com inserção de iluminação interna.
As esculturas em vidro foram desenvolvidas na técnica fuzing36 e foram
adicionados objetos em metal, entre outros elementos, às placas de vidro para a
fusão em temperatura média de 700o.
Fig.: 113 - Esculturas em vidro produzidas com vidro reciclado em moldes - Rita Varlesi - 2016.
Fonte: Foto Ângelo Dimitre.
O resultado do trabalho deu origem a algumas placas de tamanho
30cmx50cm que simbolizam lápides. Outras esculturas também foram feitas de
modo planificado utilizando placas menores em tamanhos variados, não excedendo
o tamanho de 21cmx30cm, representando a finalização do tempo de cada objeto
inserido nas esculturas.
A materialidade definida com a escolha do vidro para o desenvolvimento das
esculturas ocorreu devido ao seu aspecto de transparência, aglutinamento de
objetos, fragilidade e ao mesmo tempo periculosidade. Essas características
35 Exposição: “Arte e Linguagens Contemporâneas”, no Museu da Imagem e do Som de Campinas. 36 Técnica de queima de vidro utilizando sobreposições de placas de vidro para a fusão em formo específico.
110
correspondem ao conceito previamente estipulado no projeto “In-Finitude”,
acrescentando valor estético ao mesmo.
Fig.: 114 - Trabalho de montagem de escultura em vidro - Rita Varlesi - 2016.
Fonte: Foto Ângelo Dimitre.
A materialidade do vidro começa na sua possibilidade de reuso, e reciclar é
uma palavra forte enquanto consciência estética na contemporaneidade artística.
Ressignificar está intimamente ligado ao conceito proposto no trabalho em que
possibilitamos sempre novos caminhos sobre a estética visual.
Essa materialidade nos proporciona pensar a construção de diferentes
significações em meio à estética do aprisionamento de elementos na técnica de
fusing glass (fig. 114), a sobreposição gráfica acompanhando a transparência da
matéria e a solução maleável da sua estrutura reciclável de vidro.
Na atividade prática da escultura em vidro, buscamos na pesquisa de
materiais a melhor possibilidade para a obtenção de texturas, transparências e
cores, além de outros materiais que possam acrescentar visualidade ao trabalho.
Selecionar o vidro (fig. 115) na moagem é um fator de extrema importância
para a liga de materiais e para a resposta estética que obteremos desta escolha. O
processo de escolha define a textura estética da escultura a ser elaborada,
determinando o perfil artístico da peça final. Entendemos que proporcionar escolhas
é garimpar para uma visualidade tátil.
Fig.: 115 - Foto de peneiras para a seleção de tamanhos das texturas utilizadas nas esculturas em vidro.
Fonte: Fotos Rita Varlesi.
111
A pesquisa amostral é também de extrema importância para testar a
materialidade do vidro com outros elementos e apresentar potencialidades estéticas
que as experiências podem proporcionar. Nossa pesquisa baseou-se em materiais
porosos e granulados que suportassem a temperatura para a queima com o vidro
(fig. 116).
A plasticidade na construção aleatória de formas e a possibilidade de iluminar
o vidro de diversas maneiras acrescentam uma nova ambiência a esta
materialidade.
Fig.: 116 - Esculturas em vidro planificado.
Fonte: Fotos Rita Varlesi.
O ângulo e o plano da fotografia e a posição como a escultura é colocada no
cenário, juntamente com a iluminação, permitem uma narrativa visual atemporal.
Esse aprisionamento de objetos na transparência do vidro guarda na forma de
escultura, como em uma fotografia, as memórias materiais aprisionadas não como
no instante fotográfico, mas na sua plenitude como material de descarte.
Para simbolizar o corpo Persona na materialidade do vidro, escolhi a forma de
uma cabeça - na qual já havia anteriormente trabalhado a imagem da Persona em
projeções mapeadas na obra “Volta ao fim” - para desenvolver uma escultura em
vidro.
O processo foi desenvolvido com um molde de quatro divisões que
comporiam a cabeça para o fechamento posterior à queima do vidro. O trabalho foi
realizado ao longo de um ano, dando formato à escultura na queima de vidro
reciclado (fig. 117).
112
Fig.: 117 - Esculturas em vidro moldado.
Fonte: Fotos Rita Varlesi.
O trabalho finalizado (fig. 118) teve a inserção de uma iluminação interna e
foi exposto no MIS – Museu da Imagem e do Som de Campinas na exposição “Arte
e linguagens contemporâneas” em 2017.
Fig.: 118 - Exposição MIS Campinas “Arte e linguagens contemporâneas” – Escultura In-Finitude - 2017.
Fonte: Fotos Rita Varlesi.
A transitoriedade do corpo material na passagem deste corpo para uma nova
imaterialidade digital transforma Persona, objetos e cenário em uma ambiência única
simbolizando a transição de vida e morte.
• Período de desenvolvimento da obra com participação em eventos:
113
A obra “In-Finitude” foi exibida em cinco eventos com diferentes propostas,
durante o seu período de desenvolvimento, de 2015 a 2018:
- 2015 - 4o Seminário de Letras Expandidas (Seminário da Pós-
graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade do
Departamento de Letras da PUC-RIO) com apresentação de palestra e
paper publicado em revista da instituição de ensino.
- Em 2016 - participação na Virada Cultural em Campinas com a
apresentação de vídeo em projeção mapeada.
- Em 2017 - exposição “Arte e linguagens contemporâneas” no MIS –
Museu da Imagem e do Som de Campinas apresentando a escultura
em vidro com iluminação interna e publicação digital.
- Em 2018 – participação no congresso “Proceedings VI International
Congress Synaesthesia, Science & Art” em Alcalá La Real, na
Espanha, com apresentação de palestra, exibição de pôster e paper
publicado no livro do congresso.
Em alguns dos trabalhos citados a atuação do público era passiva e este
vivenciava a obra como expectador, já em outras o público era o interator, que
navegava e atuava ativamente com a obra. Essa vivência com a arte buscando
explorar os sentidos do público, esta cada vez mais atuante com instalações
performáticas e com o uso de dispositivos tecnológicos que complementam as
possibilidades de ação do público sobre o objeto estético.
4.5 Dispositivos digitais e sua aplicabilidade.
A atuação do dispositivo digital é de extrema importância na estrutura do
desenvolvimento criativo dos trabalhos que permeiam as Personas em Atame –
Angustia do Precário, Volta ao Fim e In-Finitude, pois estas tomam forma
enveredando entre os espaços materiais e virtuais das apresentações e
estabelecendo parâmetros sensoriais para a percepção do público.
A tecnologia dos dispositivos sempre estará em movimento, em evolução,
tanto na estrutura da recepção dos hardwares, quanto na maleabilidade dos
114
softwares, e a possibilidade inerente de novos horizontes de criação encoraja os
artistas a voarem juntos de programadores para a evolução estética que esta rede
pode oferecer.
Concentramos uma quantidade significativa de energia em encontrar novas interfaces, assim como novos algoritmos de programação para novos conceitos artísticos. Nossa atividade artística se tornou uma atividade de pesquisa e as obras de arte que criamos tornam-se projetos de pesquisa que exploram o status quo do que é conhecido e comercialmente viável. (SOMMERER E MIGNONNEAU, p. 266, 2003).
Segundo Sommerer e Mignonneau, os processos de desenvolvimento
artístico são alterados de acordo com as possibilidades que os softwares comerciais
demandam e um diferencial desta estrutura é quando o artista detém a informação
de um software como programador do seu trabalho ou quando desenvolve a sua
própria estrutura de software ou hardware para o desenvolvimento de sua obra.
Na obra de Wilton Azevedo, o CD-ROM “Looppoesia – Poética da mesmice”
(realizada em 2001 e publicada em 2004), o autor finalizou a obra deixando a
programação aberta para o cd rodar de modo diferente em diversos dispositivos,
proporcionando uma possibilidade de leitura diferente em cada um ao ponto de com
o avanço tecnológico a obra passou a “sumir” na disponibilidade de visualização ou
com a velocidade com que os dados poéticos foram lançados (fig. 119).
Esta estrutura permite observar que o processo criativo, pode “burlar” o
encaminhamento originário da programação de modo a obter um retorno artístico
inovador, mediante as possibilidades impostas comercialmente.
Fig.: 119 - Foto de interfaces do cdrom “Looppoesia – Poética da mesmice”, 2004, Wilton Azevedo.
Fonte: http://www.periodicodepoesia.unam.mx/index.php/1636-alterpoesia/4214-no-089-in-progress
115
Na obra ‘Looppoesia – Poética da mesmice’ a proposta de ruído apresentada abrange a relação temporal e evolução informática dos suportes tecnológicos que a leem, cada qual a seu tempo com ruídos diferentes. Por exemplo, se tivermos um computador menos potente para a reprodução da obra, o ruído será identificado de uma forma e se o computador for mais potente (atual) o ruído quase que desaparece com a velocidade de leitura […] Esta proposta artística do não fechamento da velocidade de leitura do cdrom faz do dispositivo digital um gerador da obra. O ruído da obra também é a interferência que o suporte tecnológico promove sobre ela, ao ponto de termos hoje alguns computadores que nem ao menos teriam o acesso do drive do cdrom para recebê-la, chegando ao ápice da ilegibilidade da redundância do ruído. (AZEVEDO e VARLESI, 2016).
A intervenção na arte pode ser tecnológica, pela criatividade com que se
operam os hardwares ou softwares promovendo resultados não estipulados pela
regra da programação e a resposta a essa ação programática faz parte da
constituição do objeto estético.
Estas obras de arte são “sistemas dinâmicos vivos”37 que mudam, adaptando-
se na diversidade da ambiência de acordo com os parâmetros estabelecidos, e
estas mudanças se dão no campo da criação do artista, na intervenção executada
pelo software e na interação do público com a obra.
Tomando como base a Persona – objeto estético e sua interlocução em
softwares e hardwares usados como dispositivos de intervenção, propõe-se a
elaboração de uma taxionomia que classificará esta atuação artística em três níveis
de envolvimento.
Fig.: 120 – Tabela de níveis de envolvimento interdisciplinar entre artista, programador e dispositivo. Níveis
Dispositivo Indicial - DI
Dispositivo Edificado - DE Dispositivo Progressivo- DP
Estrutura pré-determinada com escolhas baseadas nas
potencialidades comerciais de softwares e suas devidas
combinações. No cruzamento das potencialidades dos softwares determina-se o
caminho elaborado previamente no processo criativo do artista
ou utiliza-se de respostas caóticas que contribuem para o
processo.
Estrutura desenvolvida de acordo com as necessidades estéticas do artista e com as possibilidades tecnológicas
disponibilizadas para a elaboração do software. O
encaminhamento deste nível se faz em um conjunto muito
estreito entre programador e artista, para que a proposta do
processo artístico se desenvolva em harmonia, chegando ao
resultado interdisciplinar esperado.
Estrutura generativa com autonomia na finalização
estética de acordo com as variáveis programadas.
Implementação do aprendizado computacional com “algorismo genético”. Redes neurais, com
saídas de respostas não-determinísticas de acordo com a
complexidade dos dados implementados.
Fonte: Taxionomia elaborada para a tese.
37 Termo de Sommerer e Mignonneau, 2003, p. 270
116
No primeiro nível temos o dispositivo - nomeado “Indicial” - apresentando uma
pré-programação já estruturada do software comercial que pode ter finalidades
diversas de uso, inclusive na arte.
Neste nível o artista adapta a sua criação à potencialidade do software,
buscando na sua estrutura programática algorítmica subsídios gráficos, sonoros,
entre outros que possam propor mudanças no objeto estético de acordo com a
proposta artística da obra.
Desta forma o dispositivo apresenta-se como ferramenta para o uso do artista
que busca neste ou naquele software “o pincel e a tinta ideal” para trabalhar a sua
arte. A escolha e a combinação de dispositivos que não haviam sido elaborados
para determinadas finalidades e combinações artísticas são determinantes para o
resultado final da elaboração do objeto estético considerando as escolhas do artista.
A arte pode ser desenvolvida diretamente no software a partir do uso de
outros dispositivos, como câmeras de foto, vídeo e equipamentos sonoros entre
outros, inseridos na linguagem computacional.
Em um segundo nível temos o dispositivo – nomeado “Edificado” - em que o
software é desenvolvido especificamente para um determinado trabalho artístico, de
acordo com o crivo do artista que elabora seu processo criativo em conjunto a
estrutura programática do software promovendo uma integração das potencialidades
digitais com a perspectiva estética da obra a ser desenvolvida.
Neste nível o artista tem a possibilidade de junto com o programador
desenvolverem o melhor caminho na programação para o resultado estético que o
artista pretende alcançar. O sucesso no desenvolvimento do software dependerá
das possibilidades tecnológicas que possam ser alcançadas mediante a escolha
estética final para a obra.
No terceiro nível, a proposta é que o dispositivo – nomeado “Progressivo” –
que atua em parte sozinho em uma constituição autômata, esteja aliado a uma pré-
programação definida proporcionando uma identificação humana criativa. Esta
identificação que ocorre no resultado final da obra refere-se ao número amplificado
de combinações de dados possíveis obtidos como resposta desta automação,
levando a uma criação visual inovadora, com bases em uma lógica programática.
117
Nesse nível consideramos que existe uma somatória no processo criativo de
modo a compor uma espécie de “coautoria” entre dispositivo e artista. Podemos
exemplificar esse nível pelas possibilidades gerativas que a programação em
cruzamentos combinatórios pode proporcionar e para tanto citamos a obra “Aaron”.
A obra “Aaron” (fig. 121) é elaborada pelo engenheiro e artista Harold Cohen,
iniciada em 1973 em um contínuo desenvolvimento até os dias de hoje. Foi a
primeira estrutura computacional de arte gerada por computador, tendo na sua
composição a proposta do conceito de arte generativa.
Inicialmente o trabalho começou com desenho de pedras, identificando
basicamente as estruturas de figura e fundo com formas abertas e fechadas e em
2000 teve uma evolução figurativa, passando a formatar estruturas mais complexas
em formas e cores, com tonalidades e sombreamentos.
Fig.: 121 – Detalhe de um desenho de AARON sem título, 1980 e Detalhe: A primeira imagem colorida criada pela AARON no Computer Museum, Boston, MA, em 1995. Coleção do Museu de História da Computação.
Fonte: http://www.computerhistory.org/atchm/harold-cohen-and-aaron-a-40-year-collaboration/
Esses processos de desenvolvimento criativo que hoje são moldados pelos
dispositivos digitais, possibilitam a atuação artística na espacialidade física e virtual
de modo a originar ambiências que se intercomunicam.
O Envolvimento das Personas nos diferentes espaços expositivos proporciona
a cada trabalho desenvolvido tanto na materialidade quanto na virtualidade, a
concepção de ambiências que exploram a percepção do público. Para notabilizar a
ambiência, discorreremos sobre a origem teórica do termo e o seu percurso de
desenvolvimento em várias áreas para complementar a aplicação da práxis dos
trabalhos apresentados até agora.
118
4.6 A ambiência no objeto estético Persona.
A nomenclatura do dicionário38 indica a definição do termo “ambiência”
propondo ligações do meio ambiente no contato com indivíduos de modo a envolvê-
los fisicamente ou psicologicamente e nesse sentido buscamos nos conceitos
estudados com as obras apresentadas uma definição do caminho processual
artístico na construção de ambiências modeladas no meio digital, com as relações
de sentido material.
Na França dos anos 70 alguns pesquisadores iniciaram um trabalho para
ampliar a formulação do termo “meio-ambiente” utilizado na arquitetura e neste
processo desenvolveram o conceito Ambiance39, termo usado para qualificar de
modo mais abrangente um ambiente arquitetônico e a sua articulação com as
pessoas.
Este estudo estava pautado na proposta de levar a sonoridade do espaço
como vértice da pesquisa, e em 1979 foi introduzida como disciplina na l’École
Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble40.
A partir dos anos 90, a pesquisa foi ampliada para as dimensões da
percepção que abordavam outros fenômenos sensíveis como: formas, cores, sons,
texturas, entre outros elementos que amplificam os sentidos promovendo uma
sinestesia na concepção da ambiência arquitetônica.
Este trabalho foi desenvolvido no laboratório de pesquisas das ambiances –
AAU – Ambiances Architectures Urbanités41 – em que duas equipes de pesquisa;
uma em Grenoble e outra em Nantes iniciaram seus estudos de modo a abarcar
áreas diversas que constituíssem uma forma mais completa e subjetiva para compor
a relação homem-habitat.
38 O termo ambiência, segundo dicionário Aurélio38, tem o significado de; “sf - Aquilo que envolve, que cerca; meio físico ou moral: viver numa ambiência agradável. Ambiência é sinônimo de: ambiente” e no dicionário Michaelis38; “sf. 1- Qualidade do que é ambiente. 2 - O meio em que vive um animal ou vegetal. 3 – Conjunto de condições morais que cercam uma pessoa e nela podem influir.” www.dicio.com.br/ambiencia/ 39 Sobre a palavra Ambiance, segundo o dicionário Le Robert Micro; “nf. 1 – Atmosphère matérielle ou morale qui environne une personne, une réunion de personnes. – climat, milieu. Il avait l’impression d’une ambiance hostile. – musique d’ambiance, discrète et agréable. 2 – Farm. Il y a de l’ambiance ici, une atmosphère gaie, pleine d’entrain.”. 40 http://www.grenoble.archi.fr/ 41 http://aau.archi.fr/
119
A partir de sua criação, o termo Ambiance passou a ser usado como
referência na arquitetura, ficando a cargo de vários autores – do início até hoje -
conceituar a subjetividade a que se propõe o conceito.
Na concepção do trabalho que analisa a sensorialidade das formas, cores,
sons e movimentos na ambiência digital podemos apresentar os estudos
desenvolvidos com o SIGCA (Sistema Integrado de Gestão do Conhecimento
Aplicado).
O SIGCA é uma plataforma intermodal para experimentos perceptivos
sinestésicos, voltado à avaliação psicotecnológica pelo grupo de estudos do
programa de trabalho Sinlogyc-Fiac sob a direção do Prof. Antonio Brech da
Fundação Internacional Artecitta. No seu período de desenvolvimento foram
elaborados experimentos com variados públicos. O objetivo do software é
proporcionar uma interatividade sinestésica criativa do interlocutor com o
desenvolvimento das formas e cores de modo que a sua interação possibilite uma
experimentação sensória.
Fig.: 122 - Foto de interfaces produzidas no software SIGCA pela aluna Isabelle Alfeo,
integrante do LHUDI42, 2016.
Fonte: LHUDI – Laboratório de humanidades digitais
Foi desenvolvida uma parceria entre a Fundação Internacional Artecitta e a
Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2016, por intermédio do prof. Dr. Wilton
Azevedo. Essa parceria possibilitou o início da pesquisa (fig. 122) com os
experimentos no software SIGCA entre o LHUDI – Laboratório de Humanidades
Digitais, coordenado pelo prof. Azevedo e o grupo de estudos coordenado pelo prof.
Antonio Brech na Espanha. Os estudos deram início a pesquisa no LHUDI com
estagiários da graduação e da pós-graduação, objetivando os experimentos da
42 LHUDI – Laboratório de Humanidades Digitais criado pelo Prof. Dr. Wilton Azevedo na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
120
pesquisa, porém esta foi interrompida pelo falecimento do prof. Azevedo e em 2018
os laços foram retomados com o prof. Antonio Brech no qual levei para a
apresentação na Espanha um trabalho inicial sobre a análise sinestésica na arte.
Sobre a música como integradora do espaço, gerando ambiência neste
entorno podemos citar no início do séc. XX, a experiência do compositor francês Erik
Satie que seguindo uma estética que precedeu o dadaísmo criou o conceito de
“música-mobília” (Musique d'Ameublement) especificando o som como parte
integrante de uma ambiência de modo a compor o contexto de uma determinada
espacialidade. O objetivo de Satie era apresentar o elemento musical integrado ao
ambiente físico no sentido de complementá-lo para que ele fizesse parte daquela
atmosfera, sem se destacar como elemento único.
Na década de 70, sobre a influência de Satie entre outros, o músico Brian
Eno43 foi considerado o criador da “música ambiente” reforçando a função da música
como integralizadora de um ambiente pela proposta generativa de composições
para este fim. Eno desenvolve hoje composições para fins comerciais variados como
aeroportos, lojas e eventos empresariais.
O som é um fator importante na construção de uma ambiência, podendo
conceber uma cenografia sonora que orienta a percepção do público de modo a
conduzi-lo a uma experiência sensorial sobre a obra.
De acordo com Oskar Schlemmer em seu diário44 ele se refere a Schönberg,
como citado no capítulo 1, com sua música dodecafônica que funcionava com uma
marcação sonora no complemento da atuação do personagem. Novamente, a
sonoridade e a estética visual das Personas e seu espaço, encontram uma
unicidade.
Desta união dos elementos que se complementam na leitura do todo, em uma
ambiência física e virtual analisamos as obras de Azevedo pensando também na
leitura do público que é instigado pela formatação das ambiências e adentra as
Personas neste entorno sensorial.
43 Brian Peter George St. Jean le Baptiste de la Salle Eno é um músico, compositor e produtor musical britânico, um dos maiores responsáveis pelo desenvolvimento da ambient music. 44 The Letters and Diaries off Oskar Schlemmer, livro publicado por Tut Schlemmer.
121
A pesquisa do termo Ambiência Digital nesta análise vem da proposta de
avaliar o espaço em que a Persona está adentrando, enquanto objeto estético, os
elementos que compõem este espaço e o quanto os dispositivos tecnológicos
(softwares) podem influenciar a sua visualidade.
Para Azevedo45 (2009, p. 179) o termo ambiência, promove “a dilatação de
um só ambiente, o que comprova o surgimento da escritura expandida”. No contexto
dessa dilatação a que se refere Azevedo, abordarmos as relações sensoriais que se
fazem da interlocução entre objetos, sons, espacialidades e temporalidades que
permeiam uma “ambiência” nas suas obras e como essas relações afetam a
visualidade do objeto estético.
Sobre a escritura expandida, Azevedo diz:
[…] Esta última é que pra mim caracteriza a maioria das poesias digitais. Não há mais código predominante, a ambiência é som-texto-imagem, ou como chamou Décio Pignatari uma vez, uma poesia verbo-voco-visual, sei que ele se referia a uma parte da poesia concreta que sempre ocorreu no espaço bidimensional, mas que cabe aqui, porque suas matrizes cifradas desaparecem, sobrevivem em forma de programação que admite o processo como uma escritura digital que se expande, pela própria maneira como o programa opera, sem distinção entre som, imagem e texto.” (aula de Azevedo - Humanidades Digitais – EAHC - Mackenzie em 2015).
A estrutura digital compreende uma espacialidade que envolve muitos
elementos em uma única linguagem, o que nos faz pensar nesse processo.
A proposta de se explorar a atmosfera para os espetáculos teatrais há muito
tempo vem construindo estéticas, apoiando-se em diferentes linguagens, buscando
abarcar vários elementos em uma ambiência sensorial para o público.
Em 1922, o arquiteto austríaco-americano, artista, designer e cenógrafo Frederick
Kiesler, elaborou a peça RUR (Goldberg, p. 105) - Os robôs universais de Rossum
(peça que introduzia os conceitos de androide e robô) apresentando um cenário
inovador em matéria de ambiência, com um palco cinético, projeção de filme ao
invés de cenário pintado e estático e com a presença de um projetor que saía da íris
de um olho gigante controlado por controle remoto. A cenografia também foi
trabalhada com jogos de espelhos em que as paredes se moviam proporcionando
45 Pós-doutorado na Université Paris VIII - Laboratoire de Paragraphe, tutoria Prof. Dr. Phillipe Bootz.
122
jogos de imagens por todo o espaço cenográfico e ao final ainda propôs colocar uma
queda d’água para o que foi a primeira projeção em um fluxo contínuo de água. “Era
a concepção teatral de criar tensão no espaço” (Goldberg, p. 106).
Essa estrutura tencional que compunha a ambiência também foi pensada pelo
dramaturgo Antonin Artaud em 1958, que buscando a virtualidade sobre o arranjo
cênico aferiu as realidades materiais e simbólicas de um teatro que emana seu
espectro duplo por meio da miragem, ou de uma “realidade virtual” que possa aflorar
a partir dos personagens, objetos e imagens.
De acordo com Dixon (2007), a virtualidade proposta por Artaud é uma
constante presente na performance tecnológica, visto que a relação entre o corpo e
seu duplo digital é investigada sob amplos aspectos conceituais como o
espelhamento narcísico, alter-ego, emanação espiritual, duplicação alquímica ou
avatares.
Conforme proposto por Milgram e Kishino (1994), a Realidade Mista descreve um continuum de visualização que se estende desde a produção de imagens mediadas (ambientes reais) até a simulação de uma realidade puramente virtual. Na conceituação deste trabalho, utilizamos o termo Realidade Mista para definir o contexto no qual existe um fluxo contínuo entre a mediação por vídeo e o processamento gráfico destas imagens pelo agenciamento computacional. (VARLESI e COSTA, 2018).
A concepção de ambiência considera na espacialidade física as relações do
espaço e seu envolvimento com as pessoas de modo a explorar as formas, cores,
sons, texturas, odores, enfim vários elementos que tem por objetivo amplificar os
sentidos nesta troca, como por exemplo, na configuração de hospitais, em que as
cores e padronagens do espaço passam a ter um valor importante na resposta dos
seus pacientes e acompanhantes, ou como em uma loja que desenvolve um
perfume específico para ser usado como fundo sensorial em sua marca.
Apresentando estudos sobre a intervenção dos dispositivos digitais na
finalização de trabalhos artísticos propomos novos modos de construir estéticas
programáveis. Este movimento aponta para a envoltura da sinestesia na ambiência
digital por meio de múltiplas combinações de imagens e sons.
Objetivamos aqui a busca da apropriação do termo para a área digital,
utilizando “ambiência digital” para denominar os espaços programáticos utilizados na
composição de uma obra de arte.
123
A mistura entre realidade e virtualidade (fig. 123) pode ser considerada de
um modo ampliado, isto é, na sobreposição entre ações performativas, mediações
recodificadas e projeções audiovisuais não imersivas.
Partindo deste conceito, propõe-se o uso da potencialidade que a mídia digital
proporciona para o envolvimento da sinestesia, no intuito de impulsionar a
expressão artística em um crescente dialogismo entre as Personas desenvolvidas
para as artes e seu espaço de atuação.
Fig.123 - Continuum Realidade-Virtualidade (Paul Milgram e Fumio Kishino).
Fonte: Livro - MILGRAMP.,KISHINOF.“A taxonomy of mixed reality visual displays”, in IEICE Transactions on
Information Systems, Vol. E77-D, n.12, pp. 58-70.
Objetivando o detalhamento do espaço e a articulação dos elementos que o
compõem e que com ele se correspondem, abordamos as relações de
sensorialidade que abastecem as obras digitais citadas, e neste sentido
identificamos que o dispositivo proposto teve o papel de relacionar a Persona no
espaço-tempo pelos processos generativos computacionais.
[…] os signos não operam por partes, mas sim por relações cronotópicas (tempo e espaço). Eles se articulam ao invés de se fragmentarem, utilizam-se de sua capacidade hipotática para verticalizar tempo e espaço, potencializando o dado processual do signo. (AZEVEDO e VIGAR, p.89, 2013).
A proposta de uma “escritura expandida”46 colocada por Wilton Azevedo
sobre as narrativas poéticas digitais é uma experiência estética evolutiva, que ocorre
na ambiência digital em que a Persona se insere.
A ambiência digital tem explorado nas artes o elemento lúdico interativo
buscando nas sensações de seus visitantes/interatores, apresentar uma obra que
retorne uma experiência sensorial estimulando a participação de seu público (fig.
46 Termo da Tese de pós-doutorado de Wilton Azevedo.
124
124). Este caminho entre a arte e sinestesia é um percurso que tem sido explorado
desde o início das mídias digitais.
Fig.124 - Obra - Anamorphose Temporelle – Adrien M. e Claire B. – 2011.
Fonte: https://www.am-cb.net/projets
Programar é criar ambiência, é dar ossatura cronotópica, é a evolução dos signos em forma de código algorítmico que se faz na sua expansão, na sua dilatação sintagmática. A ambiência digital em que se dão essas relações é a própria escritura digital expandida in processing, pois o formato dessa poética não encontra diferença entre ambiência digital e escritura digital expandida, oriundas de suas matrizes de linguagem. (AZEVEDO e VIGAR, p.89, 2013).
O que importa para a relação estrutural na ambiência digital não é
propriamente um modelo de software ou de hardware que articula a mensagem
artística, mas sim a resposta que se tem desse dialogismo na estruturação da
Persona e na sua troca com o público espectador.
O pesquisador Rolim47, em sua pesquisa voltada ao espaço cenográfico, fala
sobre o conceito de ambience: “Ele está preocupado em compreender as
articulações das antropologias transensoriais, a unidade sensível dos ambientes, a
sinestesia fornecida pelas atmosferas e [a] estética do espaço construído.”,
buscando assim uma interligação sensorial entre o espaço e o indivíduo, de modo
que o conjunto “ambiência” se faça desta união.
Na sua concepção, Rolim considerava as relações do espaço e seu
envolvimento com as pessoas de modo a explorar as relações formas, cores, sons,
texturas, odores, enfim vários elementos que tinham por objetivo amplificar os
sentidos nesta troca.
A apresentação das obras artísticas e seu percurso de desenvolvimento
criativo possibilitou entender a construção de novas estéticas programáveis e este
movimento apontou para a envoltura da sinestesia na ambiência digital por meio de
47 Rolim, Eliézer. A percepção do espaço urbano. Estudo das Ambiences Urbaines Architecturales. www.laboratoriourbano.ufba.br
125
múltiplas combinações de imagens e sons, propiciando o encaminhamento para
uma continuidade deste estudo em sinestesia baseado nas limitações metodológicas
deste trabalho.
126
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando a necessidade de explorar ambiências, o artista sempre buscou
recursos externos na materialidade de elementos que pudessem apoiar a sua
expressão artística. Uma tinta com característica específica, um mineral que
pudesse ser esculpido, um objeto que emitisse determinado som, e essa busca faz
parte de um desejo intrínseco de expressão do artista.
Os experimentos artísticos pesquisados no objeto estético Persona,
possibilitaram percorrer diferentes caminhos do processo criativo de vários artistas,
em que a identificação do padrão visual e a expressão como cada um construiu sua
Persona aproximaram o entendimento de como a arte possibilita uma unificação das
estruturas na concepção da ambiência.
No processo criativo dos artistas identificamos na construção das Personas a
presença da interdisciplinaridade, com o uso de diferentes materiais, promovendo na
elaboração das ambiências, a totalidade de um corpo do objeto estético.
O corpo da Persona é uma máscara identitária que envolve os aspectos da
exterioridade fazendo uma ponte com a interioridade artística alcançando o espaço
ao seu redor, na composição de uma ambiência única do corpo-tempo-espaço.
A Commedia Dell’Art buscou na materialidade da máscara a reverberação do
som que moldava uma Persona, portanto, o físico e o virtual em uma união
harmônica com o arquétipo construíam o objeto estético – Persona.
Na construção das minhas Personas, as máscaras revelam uma intimidade
de sentimentos, expostos como no vão da máscara da Commedia Dell’Art por onde
ecoam as vozes dos atores. “Persuonare”48, para soar, amplificar o conteúdo que
nasce de uma criação artística. A máscara é um meio, um elemento de transição
entre o ator e sua Persona. A assinatura de minhas Personas brutas tiveram nas
mãos de Azevedo a transformação de um único duplo, que é a soma amplificada da
particularidade dos dois artistas.
48…
127
A linguagem visual, conceitual e sonora na somatória artística produz a
Persona e sua ambiência de modo uníssono.
No Balé triádico, Oskar Schlemmer explorou o movimento do ator-bailarino no
espaço cênico, observando como seria romper a mobilidade do corpo através de
figurinos. Estes figurinos mecanizavam os movimentos do ator-bailarino com
restrições físicas que impediam as ações básicas da dança e por outro lado,
potencializavam a construção de novos movimentos em estruturas de formas,
texturas e cores, acompanhados de uma cadência sonora que marcava os
acontecimentos da época.
A Biomecânica, acompanhando os movimentos estilísticos da vanguarda
russa, apresentou Personas que sua expressão artística exibiam a potencialidade do
corpo humano, explorando o mecanismo que envolvia as relações com outros
corpos e com o espaço cenográfico que em sua estrutura modelada, viabilizava uma
dinâmica visual.
Estes dois movimentos, em prol da renovação expressiva do teatro,
elaboraram máscaras corporais explorando as materialidades e suas relações com o
espaço, proporcionando experimentações para o que consideramos hoje uma
ambiência artística. Suas pesquisas corroboraram para o desenvolvimento do
pensamento amplificado da expressão artística.
Na fotografia, a representação da Persona como objeto estético, pontuou as
possibilidades do olhar que se apoderaram de dispositivos mecânicos e ópticos para
apresentar à sociedade - com o encaminhamento revelador do artista fotógrafo -
uma visualidade outra que não a do simples olhar.
O espelho, objeto de visualidade constante na vida dos indivíduos, apresenta
o que somos no tempo corrente; a fotografia propiciou apreender esse tempo
instante, de maneira a podermos voltar sempre à visualidade que ficou no registro. É
esse “duplo”, já elaborado por Artaud, que na virtualidade abre portas para as
representações digitais.
128
Os artistas e as obras estudados apresentaram o envolvimento que os
dispositivos, tecnológicos e as estruturas materiais possibilitaram na criação das
Personas e da sua ambiência.
A percepção anamórfica de Kertész, em sua constante busca de ângulos que
gerassem novas visualidades para as formas perfeitas da natureza humana,
compreende a construção do belo no anamórfico, objeto estético da Persona. Em
Atame livro-arte, o desenvolvimento anamórfico foi o resultado da performance da
matéria - corpo do artista - que através do dispositivo scanner, suscitou a elaboração
em fragmentos que constituíram a Persona.
David Hockney possibilitou uma visão de suas Personas, das partes formando
o todo, de modo a compor a geometria perfeita dos quadrados. Estes compunham a
forma como um todo e, ao mesmo tempo dividiam os quadros em aproximações e
ângulos diferenciados pelo movimento do elemento retratado. Esta possibilidade
ocorreu do dispositivo que permitia a visualidade instantânea das fotos, da
composição como elas eram dispostas - e isso cabe somente ao artista - e ao olhar
artístico que buscava nos movimentos e ângulos o melhor enquadramento para a
totalidade da obra. Temos nas polaróides de Hockney uma colagem de olhares que
constroem as suas Personas. As Personas apresentadas nas obras de Azevedo
partiam das partes para a formação do todo em uma Gestalt de fechamento. O
objetivo desta linguagem de colagem imagética era de proporcionar o fechamento
da leitura no outro, no público, que em alguns trabalhos, era também interator.
As Personas de Alexa Meade habitam dois mundos que se unem na
representação fotográfica. A luz é o ponto metafórico das duas linguagens com as
quais a artista realiza a sua obra. O pictórico de suas pinturas tridimensionais
baseia-se na luz de suas pinceladas impressionistas e a fotografia capta o
enquadramento de sua Persona em perfeita integração com o espaço, permitindo
uma ambiência tanto na instalação da obra quanto na sua representação fotográfica.
Cindy Sherman apresenta a sociedade em diferentes ópticas que compõem
suas Personas femininas (em sua maioria) exibindo um retrato crítico da sociedade
e ricamente expressivo enquanto materialidade e ambiência.
129
Sobre a materialidade nas minhas Personas, a concepção ocorreu
inicialmente com o dispositivo scanner, pois a linguagem continuava o meu trabalho
fotográfico anterior. As imagens scanneadas proporcionavam a captação do
movimento e, portanto, a temporalidade da performance naquele dispositivo.
Esse percurso do movimento elaborado no livro-arte teve continuidade nos
movimentos captados com as fotografias e os vídeos executados para a obra
“Atame - Angustia do precário”, que percorreu as plataformas digitais pensando na
interatividade do público.
Quando iniciei o trabalho para a linguagem digital de “Atame - angustia do
precário”, usei as diferentes possibilidades da fotografia e do vídeo em que a
construção imagética era composta da captação de movimentos e de detalhes da
imagem do corpo. Através de closes, câmera noturna e plongê, elaborei uma
sequencia visual dos cortes e deformações que o scanner me propiciou no primeiro
trabalho. As imagens partiam sempre de uma elaboração de pedaços que
constituíam o todo das Personas, linguagem que também foi mantida na
materialidade da cena analógica, pois ao construir os cenários, a elaboração
também se dava em partes projetivas mapeadas sobre elementos bidimensionais
em camadas (telas e tecidos) e em elementos tridimensionais (corpos, cabeça de
gesso e de vidro). As partes compunham também a ambiência. A proposta de partes
também tinha continuidade da concepção de “teatro de arquivo” de Azevedo que
depois da montagem dos vídeos, decompunha em partes.
Na obra In-Finitude, a materialidade do vidro, nas esculturas que elaborei
resgatam a proposta das partes formando o todo através do material reciclado do
vidro com o qual eu criava máscaras e esculturas. Os objetos inseridos nas
esculturas em vidro eram antes desmembrados para compor a continuidade da
proposta de partes formando o todo. Um dos elementos trabalhados foi o tempo, em
que os objetos inseridos eram relógios de pulso desmontados apresentando suas
engrenagens minúsculas e delicadas diante da liquidez plástica e transparente do
vidro.
Na criação das minhas Personas podemos fazer uma divisão em níveis de
estetização da seguinte forma: a formatação das Personas ocorre na performance
130
em que a atuação compreende um individuo e a sua relação dispositivo-ambiência e
ao mesmo tempo existe um olhar de direção, produção ou curadoria, que se faz em
tempo real para avaliar esteticamente o comportamento da Persona naquela
ambiência. Esse segundo momento de direção também tem o meu julgamento
estético na composição construtiva em que de tempos em tempos durante a
performance passava para detrás da câmera pensando o produto intermediário, que
depois ainda iria para a produção digital de Azevedo com a finalização textual,
sonora e musical e ainda nas apresentações teria a intervenção em tempo real de
imagens, sons e música.
Entendo esse processo, como estágios nos quais as Personas em seu
percurso de desenvolvimento se favoreciam de todas as colagens e intervenções,
resultando sempre em reflexões vivas do objeto estético.
No espaço do improviso, subentende-se que não há regras, que não há
coordenadas lógicas que determinem a ação do improviso; porém apesar do fazer
artístico que salta de dentro das mentes e corpos, a busca é sempre de uma
materialidade plástica que contemple os sentidos, visuais, táteis e sonoros na
elaboração artística e isso é construído sob um conjunto de regras harmônicas
internas ao indivíduo, sendo estas constituídas ao longo de sua existência.
A ambiência é um fator de destaque identificado no trabalho de Gregory
Crewdson. Enquanto diretor de fotografia cinematográfica constrói uma narrativa
fílmica em uma só cena, elaborando uma atmosfera em meio ao um turbilhão de
equipamentos, assistentes e cenários, em muitas das vezes construídos
especificamente para o seu trabalho fotográfico. O trabalho de Crewdson indica que
uma elaboração em equipe funciona perfeitamente na construção de narrativas de
Personas. O artista tem o dom do olhar, mas uma equipe constitui a perfeição da
técnica. Isto também foi identificado na obra de dois grupos de artistas que
trabalham com as mídias digitais; Adrien M. e Claire B. e o grupo Opened que em
conjunto a outros especialistas que atuam em variadas especialidades
complementam o trabalho da equipe com resultados competentes.
O desenvolvimento do trabalho artístico em dupla ou trio gera uma troca, um
diálogo, onde a palavra e a imagem é construída e continuada no outro com
131
mudanças ou complementos. O desafio é a construção de uma narrativa total,
completa em suas singularidades inseridas por cada artista. A narrativa total
compreende a Persona e a sua ambiência.
Sobre a corporeidade nas expressões artísticas pesquisadas, o teatro Butoh
de Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata, e a performance de Olivier Sagazan revelaram,
cada um na sua devida expressão artística, uma interiorização do indivíduo
enquanto ser conflitante, representando nas suas artes no corpo o sentimento
interior que constrói o exterior da Persona.
As Personas constituídas ao longo de 16 anos nas obras de Azevedo
possibilitaram em uma troca artística a elaboração de um vocabulário gestual
apresentando a intimidade de cada objeto estético. Sobre as obras:
Em Atame a Persona feminina apresenta-se em meio à sensualidade e
sexualidade pelos movimentos diante da câmera como em um constante gozo
chegando ao delírio da perda. As imagens ora são nítidas e intimistas, ora são
difusas e indutivas. A constituição do corpo deste objeto estético foi elaborada pelos
figurinos e adereços utilizados, que compunham diferentes visualidades da mesma
Persona acrescentando ao seu enviroment imagens captadas em localidades
diversas que dialogavam com seus desejos. A inserção do dispositivo scanner como
elemento de representação da própria Persona leva a uma metalinguagem do duplo
dentro da obra. A gestualidade flui nesta linguagem com a corporeidade dos
movimentos que dialogam com os poemas, grafismos e interações na ambiência
digital.
Em Volta ao fim o vocabulário gestual é elaborado na máscara pantomímica,
que busca na representação gestual da face, a repetição de movimentos cíclicos
que permeiam a temporalidade da narrativa. Suas apresentações teatrais buscaram
explorar nas projeções bidimensionais e tridimensionais mapeadas nos elementos
cenográficos as diferentes materialidades que comporiam a visualidade da obra,
levando a concepção da ambiência.
Na obra Volta ao fim, existia uma tríade na elaboração da narrativa; Santos
apresentou o seu conteúdo textual (livro “Ao que minha vida veio…” - 2011) a
Azevedo que desenvolveu toda a elaboração da narrativa digital e eu o
132
desenvolvimento das Personas. No percurso criativo da obra os autores decidiram
que a apresentação seria finalizada em uma cena teatral. Santos foi o narrador do
monólogo e eu desenvolvi a cenografia para as projeções e dirigi a atuação do autor
do texto, elaborando a iluminação e as marcações físicas da narrativa nos teatros
em que a peça foi apresentada. Na construção das Personas andróginas, algumas
foram utilizadas de experimentos feitos anteriormente e outras que produzi ao ouvir
a narrativa de Santos em que a gestualidade da performance videográfica ficava na
repetição do movimento de algumas palavras sem nenhuma sonora, como na
mímica.
Na concepção da ambiência, o artista Lawrence Malsfat compreende em sua
obra a construção de espaços interativos que buscam a intervenção de performers
ou público, com um intuito imersivo de tornar Persona; o interator.
A obra de Otávio Donasci também busca no público o interator para as suas
“Videocriaturas” que em corpos performáticos conduzem cabeças ou partes dos
corpos “em vídeo”, e proporcionam a experiência do público de se tornar Persona
televisiva. Interessante falar que o processo criativo deste artista é todo elaborado
por ele do início ao fim; ele constrói as Personas para a fisicalidade da performance
e oferece a virtualidade da tela para o público interagir.
No trabalho de desenvolvimento das Personas nas obras de Azevedo tem no
seu processo criativo uma intensa construção de colagens que acrescentam as
obras uma dinâmica que envolve os dois artistas tendo a colagem como
representação dessa união plástica que se dá em partes pra formar o todo da
Persona na ambiência como na Gestalt.
O processo criativo foi pulsante e em constante mutação, mantendo uma linha
estética representante da visualidade dos dois artistas. No desenvolvimento da obra
durante todo o seu percurso ouve, além do improviso e da experimentação de
dispositivos e materiais, uma preocupação com o envolvimento que o público teria
com a obra. No caso de Atame – livro-arte a preocupação era como ocorreria a
interação do público com um livro que na sua estrutura, apresentava-se como um
livro diferenciado fisicamente e com a proposta de não-linearidade da leitura. O livro,
composto de lâminas soltas que tinham a proposta de uma leitura hipertextual, na
133
sua transparência e luminosidade (mesa de luz que possibilitava a visão e leitura
sobreposta das lâminas do livro) possibilitavam um palimpsexto de imagens e textos,
resgatando passados e futuras construções de sentido. O público tinha o poder de
determinar a ordem de leitura do poema que na forma como foi desmembrado nas
lâminas, possibilitava uma leitura não-linear, oferecendo ao público possibilidades
interativas para a leitura.
No trabalho Atame – Angústia do precário, a proposta digital interativa foi
desenvolvida no enfoque perceptivo-sensório que determinava as ações com certa
previsibilidade para que a usabilidade com a mídia fosse satisfatória.
Buscamos alguns caminhos comuns e outros que se diferenciavam na
programação, o foco emocional do trabalho se sustentava no conceito das relações
amorosas e de suas perdas. A construção programática do software foi desenvolvida
para que o público vivencie a narrativa interagindo com o poema, na possibilidade
gestual dos movimentos promovidos pelas Personas e na construção visual dos
pedaços remontando o visual das Personas. O objetivo era de propor uma
identificação visual e sonora no público que percorria os caminhos digitais
acompanhando e interagindo com as Personas e suas ambiências digitais.
Nas obras de Azevedo existe uma troca criativa na construção das Personas
em que a base do desenvolvimento vai além do recorte imagético, textual e sonoro.
O trabalho é dividido e somado entre dois artistas durante todo o seu percurso
criativo e conta com a inserção de outros artistas ou elementos que complementam
a obra. A construção da Persona se dá nessa somatória tendo como base a
performance fotográfica e videográfica e sua continuidade ocorre através da sua
máscara digital, somada a poética e a sonoridade que promovem a ambiência. Essa
unicidade entre Persona e Ambiência digital proporciona um objeto estético íntegro
(total).
A temporalidade é parte integrante das representações, imagéticas, sonoras e
textuais nas obras que desenvolvi as Personas. Nas quatro obras: Atame livro-arte,
Atame – Angústia do precário, Volta ao fim e In-Finitude, existe uma ligação na
relação de tempo-espaço que constrói as ambiências com uma plasticidade
diferente em cada uma, onde as Personas transladam, e a concepção de “teatro de
134
arquivo” de Azevedo, possibilita a colagem do tempo e da espacialidade criando o
objeto estético que pode ser perpetuado. Em Atame livro-arte a temporalidade fica
retida junto ao movimento que denota uma narrativa em um frame, na captação da
imagem deformada do scanner.
Atame angústia do precário teve no seu período de desenvolvimento um
caminho percorrido com diferentes experimentações plásticas na elaboração da
Persona e da ambiência. Passou por projeções, apresentações poéticas e teatrais,
digitais interativas e performances sonoras entre outras buscando a representação
feminina na voz de diferentes narradores, na performance corporal e sua captação
videográfica, no congelamento fotográfico e na sonoridade musical. O tempo se faz
presente nesta obra no crescimento e renovação das Personas e ambiências que a
cada materialidade explorada em sua estética deixaram uma marca denotando a
sua passagem. A temporalidade na obra discute as vivências e é somente delas que
se alimentam as nossas memórias.
A construção da Persona masculina passando antes pela androgenia era uma
tentativa de desprender a visualidade feminina que se manifestou durante nove anos
nos trabalhos de Atame. A androgenia possibilitou uma figuração mais plástica de
teor máscara pantomímica proporcionando uma nova visualidade a Persona que
habitava no trabalho Volta ao fim. Essa plasticidade caminhou entre diferentes
materialidades no tridimensional e no bidimensional, como no mapeamento da
projeção sobre a escultura em gesso nas apresentações dos eventos e também no
mapeamento nas camadas planas de tecidos. A relação de tempo nesta obra
discorre da própria narrativa de maturescência ao inverso da Persona do texto e
ilustra o tempo no lugar imutável da máscara-Persona digital.
Na obra In-Finitude a temporalidade também esta agregada diretamente ao
conceito da obra, pois o percurso de vida das Personas e dos objetos tem a sua
potencialidade prescrita durante determinado tempo. A representação temporal na
proposta de In-Finitude é expressar a intimidade de vida que pessoas e objetos têm
ao longo do seu caminho.
O efêmero é a essência humana desvelada no tempo e na memória dos
objetos que dialogam com a existência e depois dela tornam-se memórias vivas da
135
nossa passagem. O efêmero somos nós, e a fotografia, os dispositivos e os
processos memoriais vieram para captar esse efêmero e resgatar nossa passagem
enquanto existência humana. A arte compreende uma forma de expressão que
buscar tornar eterno algo que possamos deixar na passagem. O tempo é muito
mencionado em várias instâncias artísticas, porque é a definição de vida que
determinamos como moderadores da nossa precariedade. É o devir, o vir a ser que
procuramos durante toda a existência consumir ao máximo da sua essência.
Ao concluir esta reflexão sobre o processo criativo das minhas Personas,
identifico uma passagem temporal dividida em três etapas: O nascimento e a
descoberta, a maturidade e a mudança, o envelhecimento e a morte.
136
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140
ANEXOS
141
ATAME: A ANGÚSTIA DO PRECÁRIO
Interprosa de Wilton Azevedo 2006
142
TAKE 1
Nada me resta!
Nada.
É estranho saber que o único botão que tenho para apertar, pode contar a história de uma paixão.
Mesmo que com o tempo, esta mesma história vire ficção...
Não tem importância!
Não tem importância alguma!
Vivemos os grandes amores De duas maneiras:
Quando a presença é inevitável
E quando falamos sobre ela.
Convivemos para se fazer história.
TAKE 2
Não há nada de cruel nisso.
Apenas tenho percebido,
Que meu corpo desde o fio de cabelo até a ponta dos meus pés,
Passam a impressão de que sou feita de pedaços
Registros de pedaços.
Acredito que as pessoas se amam em pedaços,
Se tudo acontecesse por inteiro
Não haveria paixão,
Somente amor
143
Quem disse que em um álbum de retratos se guarda a memória de nossas vidas?
Ali há somente poses, sorrisos, lugares, hierarquia...
dias nublados, sol, noite, dia, mas não tem odor nem cheiro...
aquilo que aguça a lembrança, mas que ainda não se registra.
Cheiro da roupa sem ninguém.
Do chão secando quando se deitou sem hesitar para amar.
O cheiro da mala desfeita que por mais países que se vá,
lembramos apenas da vontade de voltar.
Como o cheiro me faz recordar.
TAKE 3
O cheiro sempre nos lembra alguma coisa,
mas não tem cópia, não se simula...
A condição de um perfume é ser simulação,
por isso precisa estar em uma pessoa...ou em algum lugar.
Um perfume de quem você amou muito...não dá para copiar.
Você pode até comprar o mesmo perfume, mas falta alguém nele.
Os lingüistas diriam que falta o SUJEITO...(risos)
Não me parece que tenha apenas amanhecido
Não importa a hora de saída ou de entrada
Os sinais que vêm e continuam vindo
144
São como repetições,
É um Déjá vu
Uma paixão em excesso...
Mas não existe paixão sem excesso.
De maneira nenhuma, não pode existir.
POEMA 1
A verdadeira paixão
Não para nem pra pensar
É distante se há saudade
E muito perto
Quando é questão de idade
A verdadeira paixão
É barroco por fora
E maneirista por dentro
Entranhas sem metragens concebidas
E denso sem peso regulado
A verdadeira paixão
Está a um palmo sempre de acontecer
E duas bocas para ter acontecido
A verdadeira paixão
Briga,
Grita,
Chama a atenção dos vizinhos
Porque quer estar perto
E não perder nenhum momento...
Depois é saudade
145
E se o amor foi verdadeiro
Bastará apenas
Memória e imagens
Para valer
O que ficou por fora
O que antes estava por dentro.
TAKE 4
Quero deixar as coisas que vivi em algum lugar
As memórias que me fazem chorar
Parecem que foram implantadas
Na minha história...
Quem tem uma história?
Quem?
Quem?
Ou melhor, quem não tem uma historia?
Quem?
Só se quer esquecer, quando temos a impressão de que Vamos durar para sempre...
Os vampiros não refletem no espelho porque são eternos
Não precisam de registros.
A paixão que ATA deixa marcas.
Por um instante,
Pensamos que vamos ser eternos durante a paixão e o gozo,
146
Quando tudo então finda...vimos que é efêmera.
O que fica é uma história,
Minha com ele.
TAKE 5
Apenas um rosto deixa marcas nesta luz atada
O passado a limpo.
Como me disse o poeta uma vez
POEMA 2
O que faço Comigo Aqui Renuncio-me Até o último Fio de cabelo Aos pelos de Meu corpo Sem que eu Contamine A aquisição De meus desejos De me conformar Tão triste De ver você Olhando Em mim.
147
TAKE 6
Meu rosto e corpo por mais que gelado,
Não têm consciência do que ele reproduz
Apenas passa o tempo
Tempo...
Tempo...e marca com um beijo no ventre o que nada foi compreendido.
Compreendido
Pela última vez
A compaixão da renúncia se faz na benevolência dos versos.
E a poesia que a gente não vive,
Fica impressa em um testamento da memória.
Recortar a própria história é uma lição das mais duras
Exige disciplina de cirurgião
E um amante sempre pronto para limpar a testa suada durante a operação.
TAKE 7
Nada terá resposta enquanto copiarmos a nós mesmos.
Atarmos a esta memória em pedaços é o que me restou,
Sozinha, neste apartamento de imagens sem eco.
TAKE 8
A cama desarrumada,
Os sinais do vício marcados no estofado
A tua voz na secretaria eletrônica dizendo que não estamos
148
O tempo precisou passar para eu acreditar que nunca estava
Dei razão à secretaria eletrônica
Leave your message after the beap!!!
Só percebi agora no meu corpo portando óvulos
Que não possuo BIP.
TAKE 9
O amor feminino fica atado como súplica ...
Deito minha cabeça neste vidro frio e passo horas fazendo foto de mim mesma,
Me copiando piedosamente sem compaixão
Apenas para ver se recupero a memória pela exaustão.
POEMA 3
Olhei para o chão E por um instante Você não estava mais aqui Ir pra lá Foi a opção A distância surgiu como Um ponto de fuga
A intenção de não mais nos vermos Foi acredito A mais cega Experiência cruel a nossa De nos seduzirmos Invadirmos E sedarmos Diante da conquista
149
TAKE 10
Lembra disso?
Lembra daquilo?
Lembra daquele dia...lembra ....lembramos e passeamos nas gavetas que tentamos arrumar por desculpa da idade.
Atar... Atar
TAKE 11
Já foi atado por alguém de verdade alguma vez?
Não queira saber como é
Os seios endurecem
As pernas são poucas,
Apenas duas para laçar,
Os lábios incham, crescem e ficam mais vermelhos,
O brilho dos olhos não deixam duvidas de quem está
Atada
POEMA 4
Cabe a ti A mão que corre E passa Pela boca E cala Pelas pernas E abre Pelos olhos E revira Pelos dedos E os molha Pelos poros E os transpira Pelas mãos
150
Que suplica Em sussurros Cardíacos De não caber mais A mim O desejo de correr Pela boca pernas olhos dedos poros mãos E dizer Pare. Suplicando O Outro.
TAKE 12
Sabe de uma coisa?
Eu já pedi socorro quando isso me aconteceu.
E por incrível que possa parecer,
Não apareceu ninguém
Era eu e ele sempre
Pura distração da minha vaidade
É muito masculino usar o corpo para a escritura.
É sadismo.
Não consigo escrever com o meu próprio sangue
Nas paredes da minha própria casa
A melancolia me faz ser criativa
Se fosse o contrário, eu me mataria
151
E Freud diz que a vantagem de Demócrito, era a melancolia se fosse depressão não sobraria nem a escrita para contar história.
Não, não dá.
Já tentei escrever com a matéria de meu corpo...
Mas não era dor quando tentei fazê-lo
Percebi que o que eu sentia
Era paixão...
TAKE 13
Porque os sentidos são chamados de sentidos?
Será porque vem de sentimento?
Sensação?
Sensato...
Estranho porque nenhuma destas palavras me faz entender a paixão.
Estes movimentos que me coloco a fazer
Para cada vez mais as imagens se tornarem fixas
Desdobram as partes do meu corpo em saudade...
Os flashs que ficam acompanhando a memória
Para convencê-la de desistir de lembrar.
Uma mulher quer sempre ter ao seu lado alguém que diga algo sobre a vida,
Nem que seja mentira,
Para passar o tempo
Até que ela possa estar pronta para ser mulher... mãe.
Não que mãe seja uma condição,
152
Não,
Não mesmo!
Mas é preciso saber o que dizer a ela...
TAKE 14
Para cada parte do corpo feminino deveria ter o que dizer:
Para os cabelos, o cheiro sem compromisso
Para a nuca, o que é oculto
Para os lábios, a afirmação,
Para os seios, as conclusões em dobro,
Para as pernas, os desenleios,
Para os pés a prontidão.
TAKE 15
Não me resta dúvida sobre esta condição...
Levei poucos anos para saber disso
E muito mau trato de quem passou na minha vida.
É interessante saber que um dia se esteve com alguém
Que para não sermos refém da memória , copiamos a nós mesmos
Em busca de nada
Narciso quando olhou a sua face, morreu...afogou-se
Eu já pensei várias vezes nisso.
Não em me matar,...Pelo menos ainda,
Mas em fazer justamente o contrário,
Deixar de olhar para os espelhos,
Quaisquer que sejam.
153
Não dá.
TAKE 16
O que fazemos hoje em que somos olhados por nós mesmos
por várias espécies de câmeras que inventamos?
Trocamos de roupa?
Vemos onde será a nova cirurgia?
Tiramos os pelos com pinça...
Nada disso...(silêncio)
Não conseguimos evitar a nós mesmos.
Nem se quiséssemos
Provavelmente quando o outro vai embora
O que nos dói mais,
É ficarmos com nós mesmos
Junto à Angústia do Precário
TAKE 17
É ..., mas esquecemos...
Esquecemos sim,
E às vezes nem conseguimos mais ver a nossa imagem junta
De quem me teve por dentro,
Se eu pudesse parar de copiar a mim mesma
E ao invés de imagens usasse as palavras como
Solução...
A única coisa que me vem são estas imagens
154
A única coisa... (silêncio)
Às vésperas de me fazer adulta
Tive duvida se vale a pena
Não há nada que me convença que estou em plena evolução...
Isso é para o Darwin, que provavelmente não sabia nada sobre as mulheres
E se soubesse, não viajaria tanto.
POEMA 5
Estou triste A história que tanto Ensinou-me Deu cabo de nós Ontem estávamos sozinho E não era coincidência A arte que tanto indagamos E nos ferimos Não representava Nada Era silêncio O que fizemos juntos Só cabe a nós Amei-te muito E foi a performance Mais difícil De toda a minha vida Estar ao teu lado ontem Contou-me um dia Que o artista tem dez anos E que eu estava apenas no terceiro Não sei em que ano Encontro-me agora Mas sinto tua falta Fiquei muito tempo
155
Com uma pintura sua E quando devolvi, Você falou que podia Jogar fora Retomei a minha pintura Ali estava o meu caminho Compreendi-te tanto Que você passou A ser parte da minha história Silêncio. Leia Cage Ouça Cage – Você disse: Ele fala sobre o silêncio “Sabia que o silêncio Não existe” Existe sim Era apenas eu e você Como sempre. Não vou te esquecer Enquanto puder esboçar Um pensamento sobre arte Enquanto puder Pintar o que penso Sobre a vida Sabia que nós dois Sobrevivemos literalmente? Ontem eu estava lá
TAKE 18
Não tenho nenhuma vocação para Penélope, Nenhuma. Gostaria que ele ficasse aqui Ao meu lado. Dizendo coisas, Aguçando a minha imaginação Os meus fetiches
156
POEMA 6
PARTE 1 Não tenho coragem Para me matar Já sei onde diabos Deixei meu significado E mesmo significando pouco Já vivo O que significo E faço
PARTE 2 Quem eu amo Passa Quem eu olho Passa Quem eu pari Passa Quem eu beijo Passa Por quem me apaixono Passa PARTE 3 Ver os diabos a quem pertenço Tenho comigo A falta de coragem Da morte Mesmo que Deus não queira Até por falta De sorte
TAKE 19
Não quero duvidar da minha sanidade
Em nome de quem amei,
E muito menos por estar fazendo algo que só compete
157
À minha vaidade,
Mas há horas que eu tenho duvidas do que vivi.
TAKE 20
Ás vezes até acredito que ele deva estar
Andando por aí...
Em algum lugar,
Me observando de longe
Se me avistasse nesta situação também duvidaria de minha sanidade.
Ele só não terá duvidas,
Se realmente um dia me amou...
E se por um minuto teve a mesma sensação que eu tive.
POEMA 7
Cúmplice de um diálogo Seguirá o serialista Sério de si Em pensar no efeito Da perda da linguagem Sem referência Sobrou-o sozinho
Como uma catedral Sob o mar de Debussi Não vou fazer objeções Quanto à solidão Mas pertencerei a estes Hiatos de pensamentos Andrades Não me compete A intenção de repetir Signamente a solidão
158
Andamos súbito de si Que ao meu ver As respostas não comportam O espaço em branco Do que estudei Não vale a pena Nem na palavra
TAKE 21
A palavra só tem valor quando não temos nada a dizer,
Quando ela nos falta,
E neste caso não precisa ser por ninguém.
Nem por alguma coisa.
Apenas a falta, a ausência de uma situação...
Quando alguém diz que te ama.
TAKE 22
Tentei prever o que poderia me acontecer
No momento que você me deu as costas
É como um vulto que pensamos estar
Presente.
TAKE 23
As coisas não acontecem assim.
Quando estamos juntos
Apenas estamos...estamos...
159
Guardar as fotos dos momentos bons,
É querer esquecer os momentos ruins.
Eu prefiro me registrar
Criar um alfabeto próprio
A escrita superior
Um A, E,I,O,U ...
Em preto e branco
Como o passado que aprendi a ver
Nos filmes.
TAKE 24
Uma lei só é obtida pela insistência da duração...
Esta é a melhor definição para um casamento.
Nunca pensei no quanto deve durar esta minha atitude.
De me repor em recortes
Montando a minha memória através das imagens em partes
De meu corpo
TAKE 25
A cada ida de minha imagem
Retirada pela luz que apalpa meu corpo de baixo para cima,
Subtraio a matéria dele
Impregnada em mim
TAKE 26
Performance... e mais performance
160
Redesenhando todo o meu corpo
Em cada parte que você tocou
Eu agora faço o mesmo
Apenas apertando um botão.
Um homem quer entrara em alguém
A mulher quer estar em alguém
POEMA 8
Cheguei, E li um bilhete seu Que parecia dizer amém A cada irrealidade Que eu tinha te contado Superei, Aquele ar de espanto E espremi meu cérebro Até que a última vertigem Se contaminasse Do que eu havia Dito e feito Não é sempre Que me encontro Neste celibato inóspito Que contrai Todo meu teor humano Em remorso No bilhete Acreditei estar ali Razão suficiente Para que eu Esperasse você suspirar De dor e prazer Amor pra sempre
161
Não era apenas um bilhete Era o passado a limpo
Que me garantia Mais dois anos de vida Boca a boca De respiração plena Paciência – eu pensei Paciência... Este bilhete Faz-me transpor A fronteira sem passaporte Mais astuto que existe, O da dignidade Entre eu E o que você deixou escrito Afixado no desespero Do acaso Um encontro duradouro Que só coube ao passado Mesmo antes de qualquer bilhete Na pior parede que seja No pior cômodo de minha casa
TAKE 27
Sempre se corre risco nestas situações
Não existe o homem perfeito
Nem na Grécia antiga
Naquelas esculturas de cor de salitre
E com crenças nos pálidos lábios...
Não posso me sentir um ser
Privado de corporeidade
162
Meu corpo clama por alguns sentidos seus.
Quando estávamos perto,
Um do outro.
Eqüidistante da ética
Que me fez prisioneira,
Não sei direito,
Se era a mesma pessoa que me lembro agora.
As pessoas que nos viam
Tinham até a solução para minha neurose
Em relação à vaidade dele.
Onde estão estas pessoas que
Antes me vigiavam pela quantidade de paixão que eu tinha?
Em algum lugar...
Na certa escondidos porque não demos certo.
Estou apaixonada por esta minha imagem,
Acho que foi este o meu engano,
Não me apaixonar por mim mesma
Antes de colocar alguém dentro de mim
TAKE 28
Se por um minuto eu pudesse pensar como ele,
Mais que isso,
Sentir como ele me sentia
Eu me beneficiaria da influência
De sua infantilização...
163
Disso eu garanto.
Como demorou para que eu entendesse
Que para estar com alguém
Tem que se tirar raios-X
De seus pulmões,
Depois de um grande beijo cedido pelos lábios
Para ver se há um pingo do meu ar
Ou de minha saliva dentro dele.
Teve até um artista que certa vez
Guardou o ar de sua cidade dentro de uma caixa de madeira...
TAKE 29
Parece engraçado,
Mas se eu tivesse o ar dele dentro de uma caixa desta.
Talvez sentisse mais o seu hálito do que
Qualquer tipo de brisa
TAKE 30
Não...não vale a pena
Qualquer texto posto na boca,
Depois de uma grande paixão
Corre-se o risco de virar uma tragédia,
E neste caso é bem melhor
Que vire memória,
164
Imagem...
POEMA 9
Quando estamos Não há Maridos Esposas Homens Mulheres Garotos Garotas Namorados Namoradas Filhos Filhas Menino Meninas Amigos Amigas Alunos Alunas Mas há
Quando estamos O sentido De sermos consumidos Pelo que Não existe Dentro de nossas Paixões (ATAME COM TRILHA)
Atame Com a vida Na garganta E dissimula Um sussurro frouxo Que diz Morte para
165
Os que tem prazer Venha aqui E corte meus Pulsos com teus Lábios Se cobras Tanto assim Ajuda-me a desfazer O leito que A pouco jaz excitado Quase morto Por você não compreender Que sou humano Dei margem ao outro Dissimulei o ódio E o ciúme Esta pena de morte Dos covardes A força dos abruptos A gilete dos fracos E a indiferença De quem não te olhou E me sentei Em um sofá Antes de voltar para casa Dissimulei novamente o ócio Da semente atada Atame E não me digas Que me ama Porque quero Voltar sem remorso Do pouco que Resta na mira Dos fracos Aponte-me uma saída Com os dedos Dos teus pés Lânguidos dos caminhos
166
Raros como Atar a si mesmo Significados frouxos Atame Do que não significo Faça amor comigo Só por intelecto Cuspa no prato Que não comemos Por falta de sinceridade Léxico da escritura Que te pertence Analfabeta Por atar Apenas Sedução Charme E Compaixão Dos Inofensivos
TAKE 31
(COM TRILHA)
A lembrança tem ossatura Tem consistência...
A memória tem que se
Constituir em
Palavras
A minha mente está cheias delas
Só as palavras podem fazer
Durar e reviver
E apenas as imagens podem
167
Fazer do luto de uma alma viva
Se tornar companhia
E deixar que fique atado para sempre
Como uma tatuagem às avessas
Em que meu corpo, atado a uma lembrança, passe a marcar essas imagens.