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Perspectiva cultural do envelhecimento

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Perspectiva cultural do envelhecimento

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GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

José SerraGovernador

Rita PassosSecretária Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social

Nivaldo Campos CamargoSecretário Adjunto

Carlos Fernando Zuppo FrancoChefe de Gabinete

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Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social – SEADS

Departamento de Comunicação Institucional – DCI Paulo José Ferreira Mesquita

Coordenador

Coordenadoria de Gestão Estratégica – CGE Cláudio Alexandre Lombardi

Coordenador

Coordenadoria de Ação Social – CAS Tânia Cristina Messias Rocha

Coordenadora

Coordenadoria de Desenvolvimento Social – CDS Isabel Cristina Martin

Coordenadora

Coordenadoria de Administração de Fundos e Convênios – CAF Carlos Alberto Facchini

Coordenador

Fundação Padre AnchietaPaulo Markun

PresidenteFernando Almeida

Vice-Presidente

Coordenação Executiva – Núcleo de Educação Fernando Almeida

Fernando Moraes Fonseca Jr. Mônica Gardeli Franco

Coordenação de Conteúdo e Qualidade Gabriel Priolli

Coordenação de Produção – Núcleo de Eventos e Publicações Marilda Furtado

Tissiana Lorenzi Gonçalves

uma realização

Equipe de Produção do Projeto

Coordenação geralÁurea Eleotério Soares Barroso

SEADS

Fernando Moraes Fonseca Jr. Fundação Padre Anchieta

DesenvolvimentoSEADS

Elaine Cristina Moura Ivan Cerlan Janete Lopes

Márcio de Sá Lima Macedo

Organização dos conteúdos/textosÁurea Eleotério Soares Barroso

ColaboradoresClélia la Laina, Edwiges Lopes Tavares, Izildinha Carneiro, Ligia Rosa de Rezende Pimenta, Maria Margareth Carpes,

Marilena Rissuto Malvezzi, Paula Ramos Vismona, Renata Carvalho, Rosana Saito, Roseli Oliveira

Produção editorialMaria Carolina de Araujo

Coordenação editorialMarcia Menin

Copidesque e preparaçãoPaulo Roberto de Moraes Sarmento

RevisãoProjeto gráfico, arte, editoração e produção gráfica

Mare Magnum Artes Gráficas

IlustraçõesAdriana Alves

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Perspectiva cultural do envelhecimento

Direitos de cópia

Serão permitidas a cópia e a distribuição dos textos integrantes desta obra sob as seguintes condições: devem ser dados créditos à SeaDS – Secretaria estadual de assistência e

Desenvolvimento Social do estado de São Paulo e aos autores de cada texto; esta obra não pode ser usada com finalidades comerciais; a obra não pode ser alterada,

transformada ou utilizada para criar outra obra com base nesta; esta obra está licenciada pela licença Creative Commons 2.5 Br

(informe-se sobre este licenciamento em http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br/)

as imagens fotográficas e ilustrações não estão incluídas neste licenciamento.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Queiroz, zally P. V.Perspectiva cultural do envelhecimento / zally P. V. Queiroz,

elisabeth Frohlich mercadante, ruth lopes ; [coordenação geral Áurea eleotério Soares Barroso]. -- São Paulo : Secretaria estadual de assistência e Desenvolvimento Social : Fundação Padre anchieta, 2009.

Bibliografia.

1. administração pública 2. Cidadania 3. envelhecimento 4. idosos - Cuidados 5. Planejamento social 6. Política social 7. Políticas públicas 8. Qualidade de vida 9. Serviço social junto a idosos i. mercadante, elisabeth Frohlich. ii. lopes, ruth. iii. Barroso, Áurea eleotério Soares. iV. Título.

09-09543 CDD-362.6

Índices para catálogo sistemático:1. São Paulo : estado : idosos : estado e assistência e

desenvolvimento social : Bem-estar social 362.6 2. São Paulo : estado : Plano estadual para a Pessoa idosa-

Futuridade : Bem-estar social 362.6

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[...] nós envelheceremos um dia, se tivermos este privilégio. Olhemos, portanto, para as pessoas idosas como nós seremos no futuro. Reconheçamos que as pessoas idosas são únicas, com necessidades e talentos e capacidades individuais, e não um grupo homogêneo por causa da idade.

Kofi annan, ex-secretário-geral da oNu.

Prezado(a) leitor(a),

Temos a grata satisfação de fazer a apresentação deste material elaborado pela

Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (SeadS)

e pela Fundação Padre Anchieta – TV Cultura.

Um dos objetivos do Plano Estadual para a Pessoa Idosa do Governo do Estado de

São Paulo – Futuridade, coordenado pela SeadS, é propiciar formação permanente

de profissionais para atuar com a população idosa, notadamente nas Diretorias

Regionais de Assistência Social (dradS).

No total, esta série contém dez livros e um vídeo, contemplando os seguintes

conteúdos: o envelhecimento humano em suas múltiplas dimensões: biológica,

psicológica, cultural e social; legislações destinadas ao público idoso; informações

sobre o cuidado com uma pessoa idosa; o envelhecimento na perspectiva da

cidadania e como projeto educativo na escola; e reflexões sobre maus-tratos e

violência contra idosos.

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Sumário

Violência contra idosos: um novo desafio Zally P. V. Queiroz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Contextualização da violência no tempo histórico e na sociedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

As diferentes formas de abuso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

A violência contra idosos no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Fatores de risco de violência contra idosos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Perfil da vítima e do agressor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

Violência institucional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20

O papel do profissional de saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21

Avaliação de violência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

Exame físico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Histórias clínica, social e familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Outros aspectos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Princípios para intervenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

Prevenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

Velhice: identidade e subjetividade Elisabeth Frohlich Mercadante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Identidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

Identidade e velhice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

Subjetividade e velhice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

Com esta publicação, destinada aos profissionais que desenvolvem ações com

idosos no Estado de São Paulo, o Futuridade dá um passo importante ao

disponibilizar recursos para uma atuação cada vez mais qualificada e uma prática

baseada em fundamentos éticos e humanos.

Muito nos honra estabelecer esta parceria entre a SeadS e a Fundação

Padre Anchieta – TV Cultura, instituição que acumula inúmeros prêmios em

sua trajetória, em razão de serviços prestados sempre com qualidade.

Desejo a todos uma boa leitura.

Um abraço,

Rita PassosSecretária Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social

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Violência contra idosos: um novo desafio

Zally P. V. Queiroz

A família e o idoso Ruth Lopes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

Contextualização do tema no processo histórico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

Outros olhares sobre o tema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

Avós e netos: espaço possível de encontro de gerações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

Atividades práticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

Psicoterapia, grupos de apoio, oficinas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

Temas para discussão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

Filmes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

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O inimigo maduro a cada manhã se vai formandono espelho de onde deserta a mocidade.

Carlos Drummond de andrade, “o retrato malsim”.

E ste texto aborda diferentes aspectos da questão da violência contra idosos: os primeiros estudos, a construção de conceitos e

classificação de abusos, os fatores de risco, a importância do profissional de saúde, os proce-dimentos para identificação e prevenção da violência contra idosos.

Contextualização da violência no tempo histórico e na sociedade

a violência entre pessoas e grupos sempre esteve pre-sente na história da civilização, mas apenas com seu significativo crescimento nas últimas décadas passou a constituir um novo desafio para a sociedade.

Zally Pinto Vasconcellos de Queiroz é assistente social, especialista em Gerontologia por “notório saber” pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). Mestre em Ciências da Saúde pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Membro nato do conselho consultivo da SBGG, coordenadora e docente do curso de especialização em Geriatria e Gerontologia do Centro Universitário São Camilo, docente do curso MBA em Qualidade de Vida nas Organizações do Centro Universitário São Camilo/AbrAmge, autora de diversos textos da área de Gerontologia.

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inicialmente objeto de preocupação e estudo das áreas da segurança pública e justiça, bem como de alguns movimentos sociais, somente na década de 1960, nos países mais desenvolvidos, a violência come-çou a ser percebida pelo setor da saúde como um emergente proble-ma de saúde pública (minayo e Souza, 1995). Voltados, a princípio, à violência contra as crianças, os estudos dirigiram-se em seguida às mulheres e, nos anos 80, surgiram as primeiras denúncias e levanta-mentos de dados sobre a violência contra idosos.

esse aumento do interesse da área da saúde pela questão da violência deveu-se a dois fatores principais: a conscientização cada vez maior dos valores da vida e dos direitos de cidadania e as mudanças no perfil da morbimortalidade em todo o mundo.

as primeiras pesquisas que comprovaram a existência de abusos e maus-tratos contra idosos, segundo Quinn e Tomita (1990), foram realizadas nos estados unidos, Canadá, inglaterra e austrália, en-frentando dificuldades de comprovação, pelos constrangimentos que geravam, tanto nas residências dos idosos como nas instituições de longa permanência. Nas agências sociais e de saúde, os depoimentos de profissionais e usuários permitiram obter os primeiros dados sobre o assunto.

À medida que os estudos avançavam, os pesquisadores perceberam a necessidade de organizar as informações para, principalmente, definir uma terminologia adequada e uma conceituação para violência nas diversas formas constatadas.

entre as várias definições de violência, destaca-se a adotada, em 2001, pela organização mundial da Saúde (omS), apresentada em 1998 pela international Net work for the Prevention of elder abuse (inpea):

Abusos em idosos constituem uma ação única ou repetida, ou ainda a ausência de uma ação devida, que causa dano, sofrimento ou angústia em uma relação na qual exista expectativa de confiança.

As diferentes formas de abuso

internacionalmente, o abuso é classificado com base na natureza das ações: abuso físico, psicológico/emocional, financeiro/material, sexual e negligência.

No Brasil, a Política Nacional de redução da morbimor-talidade por acidentes e Violência, aprovada em 2001 pelo ministério da Saúde, assim define as diferentes formas de abuso, também de acordo com a natureza das ações:

abuso físico e maus-tratos físicos – uso da força física •para compelir a vítima a fazer o que não deseja, ferindo-a ou provocando-lhe dor, incapacidade ou morte.abuso psicológico ou maus-tratos psicológicos – agressões verbais •ou gestuais com o objetivo de aterrorizar a vítima, humilhá-la, restringir sua liberdade ou isolá-la do convívio social.

Nos anos 80, surgiram as primeiras denúncias e levantamentos de dados sobre a violência contra idosos.

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abuso sexual – ato ou jogo sexual, em relação homo ou heterosse-•xual, sem consentimento, que visa a utilizar a vítima para obter excitação ou práticas eróticas e sexuais por meio de aliciamento, violência física ou ameaças.abandono – ausência ou deserção do responsável governamental, •institucional ou familiar de prestar socorro a uma pessoa que este-ja sob sua proteção.Negligência – recusa ou omissão, por familiar ou instituição, do •cuidado necessário com a pessoa sob sua responsabilidade. a ne-gligência é uma das formas de abuso contra idosos mais comuns no país. ela se manifesta frequentemente associada a outros abu-sos que geram lesões e traumas físicos, emocionais e sociais, so-bretudo contra os que estão em situação de múltipla dependência ou incapacidade.abuso financeiro e econômico contra idoso – exploração imprópria •ou ilegal ou uso não consentido de recursos financeiros e patrimo-niais do idoso. esse tipo de violência ocorre, principalmente, no âmbito familiar.autonegligência – Conduta da pessoa idosa que ameaça a própria •saúde ou segurança pela recusa de prover a si mesma os cuidados que lhe são necessários.

minayo (2005) propõe outra classificação dos abusos, levando em conta três níveis de ação:

estrutural – ações decorrentes da desigualdade social, sendo natu-•ralizadas nas manifestações de pobreza e discriminação.interpessoal – ações perpetuadas em formas constrangedoras de •comunicação e de interação cotidiana, tanto em família como em comunidade. institucional – ações que se manifestam na aplicação ou omissão, •na gestão das políticas sociais, pelo estado e pelas instituições de assistência, reproduzindo as relações desiguais de poder e domínio.

A violência contra idosos no Brasil

De acordo com Guimarães (1997), a produção cientí-fica brasileira na área do envelhecimento é ainda muito tímida, e os dados demográficos sobre a população ido-sa no país foram praticamente ignorados até a metade da década de 1980. apenas nos últimos anos do século XX, segundo esse autor, a análise da transição demo-gráfica da população brasileira passou a ser feita por pesquisadores de universidades e órgãos de pesquisa. o mesmo acontece com a violência, problema social emer-gente no final do século passado.

No Brasil, segundo informe Técnico institucional da Secretaria de Políticas de Saúde (ministério da Saúde, 2000), “os acidentes e a violência configuram problema de saúde pública de grande magni-tude e transcendência, com forte impacto na morbidade e na morta-lidade da população”.

Segunda causa de mortalidade no país, a violência é hoje uma das grandes preocupações da área da saúde, pois atinge todos os grupos etários e todas as classes sociais, e, mesmo quando não leva à morte, provoca lesões e traumas físicos e emocionais de grande intensidade.

a violência contra idosos, no entanto, ainda é muito pouco conhe-cida e estudada, resultando em precariedade de dados sobre o assun-to. mesmo nos órgãos de denúncia, os registros são pouco esclarece-dores, e os profissionais que atendem aos possíveis casos de negligência não estão bem preparados para efetuar sua constatação, registro e encaminhamento.

apesar disso, a questão da violência vem recebendo, desde o final dos anos 1990, crescente atenção de vários setores da sociedade e do governo. Nesse processo de reconhecimento, os movimentos sociais têm exercido papel fundamental, sobretudo as organizações não go-

A violência contra idosos ainda é muito pouco conhecida e estudada, resultando em precariedade de dados sobre o assunto.

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vernamentais de atenção aos maus-tratos, primeiro em crianças e adolescentes, depois em mulheres e mais recentemente em idosos.

o acelerado envelhecimento populacional que o Brasil vivenciou nas últimas décadas e as consequentes alterações no perfil de morbimor-talidade da população não foram acompanhados pela implantação de políticas sociais de promoção e atenção à saúde do idoso, dando origem a um contingente significativo de pessoas de idade avançada fragiliza-das e dependentes, vítimas potenciais de abusos e maus-tratos.

a pequena oferta de serviços públicos adequados e a falta de suporte médico-social à família dificultam o papel de cuidador a ser cumpri-do, muitas vezes, pelos familiares de idosos, principalmente quando estes apresentam perda de capacidade funcional.

Da mesma forma, a escassez de propostas alternativas de atenção à pessoa idosa, como centros-dia, assistência domiciliar, centros de convivência e serviços especializados no atendimento a pacientes

portadores de demência, faz com que a família seja muito pouco assistida no cuidado com o idoso.

os programas de assistência domiciliar, que agora começam a se expandir no país, poderão identificar, registrar e encaminhar os casos de violência contra idosos, assim como apontar propostas de preven-ção, por meio da identificação dos fatores de risco presentes em ido-sos e seus cuidadores.

Com o surgimento de instituições de defesa dos direitos humanos, a partir dos anos 80, e com a constatação do significativo aumento dos casos de morbimortalidade por causas violentas na década de 1990, o ministério da Saúde incluiu a prevenção da violência entre as ações mencionadas na Política Nacional de Saúde do idoso (1999), orien-tadas para todos os segmentos da população, inclusive os mais velhos, com sua especificidade.

Fatores de risco de violência contra idosos

estudos identificaram alguns fatores que tornam maiores o risco e a vulnerabilidade para negligência, maus-tratos e abuso contra a pessoa idosa, entre eles: ciclos recorrentes de violência familiar, problemas de saúde mental e dependência química do cuidador, incapacidade fun-cional do idoso dependente, estresse causado pelo ato de cuidar, difi-culdades financeiras, falta de suporte à família e isolamento social.

embora não existam pesquisas que abordem especificamente o his-tórico de relações familiares violentas, há evidências, com base em depoimentos de cuidadores em situação de abuso familiar contra a pessoa idosa, de que crianças submetidas a maus-tratos por adultos mais velhos podem causar maus-tratos a seus pais e avós.

a presença de alguma dependência é uma característica comum aos idosos vítimas de negligência e maus-tratos: fragilidade física e men-

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tal gerando problemas de incontinência e locomoção, redução de visão e/ou audição e mesmo dependência financeira.

o estresse como fator de risco está relacionado à dependência física ou mental do idoso e à falta de preparo de familiares ou mesmo de cuidadores profissionais para o ato de cuidar. Segundo alguns estudos, os cuidadores familiares são na maioria mulheres, em geral de meia-idade, que acumulam outras funções no âmbito de sua família e que tiveram sua rotina de vida profundamente alterada com a eclo-são de dependência em pessoa do grupo familiar de origem, com frequência mãe ou sogra.

Perfil da vítima e do agressor

Quinn e Tomita (1990) realizaram um levantamento dos principais estudos desenvolvidos nos estados unidos sobre abusos contra idosos e constataram a existência de situações de violência contra eles no interior da família. elaboraram também, com base nesse levantamen-to, um perfil de vítima de violência familiar: mulher, com 75 anos ou mais, viúva, física ou emocionalmente dependente, na maioria das vezes residindo com familiares, um dos quais é seu agressor. o perfil básico desse agressor é: adulto de meia-idade, geralmente filho ou filha, quase sempre dependente da vítima, com problemas mentais

e/ou dependente de álcool ou outras drogas.

Violência institucional

a violência nas instituições de longa permanência tem sido muito pouco estudada, sobretudo pelas dificulda-

des e barreiras existentes para o desenvolvimento de pesquisa nesses locais. Pode-se afirmar que ela

existe quando os níveis de cuidado estão com

padrões abaixo do esperado e do definido pela legislação sobre o assunto: higiene ruim, cuidado físico e qua lidade de vida precários, inexistência de qualificação da equi-pe de cuidados, esgotamento dos enfermeiros e auxilia-res, falta de privacidade dos moradores. Também podem ser apontados fatores organizacionais, como uso de drogas que dopam os idosos, desnutrição, contenção e até agressões físicas.

Deve-se suspeitar de maus-tratos em uma instituição de longa permanência quando se observa o aumento do número de óbitos por mês ou quando um idoso resi-dente em instituição dá entrada em pronto-socorro com sinais de maus-tratos. Nesse caso, a suspeita de violência tem de ser denunciada à Vigilância Sanitária.

O papel do profissional de saúde

Segundo machado e Queiroz (2006), é extremamente importante o papel do profissional de saúde na prevenção, identificação e trata-mento das situações de negligência e maus-tratos contra pessoas idosas, pois as principais portas de entrada de idosos vitimados são os serviços de saúde em geral e os ambulatórios e prontos-socorros em particular.

a falta de qualificação para o adequado atendimento ao idoso e o preconceito sociocultural em relação à idade avançada dificultam ainda mais a constatação da violência nos pacientes mais velhos. Por isso, muitos profissionais consideram o declínio funcional e a perda da qualidade de vida atributos da velhice e alegam falta de tempo para uma consulta ambulatorial mais cuidadosa, deixando, muitas vezes, de identificar situações de abuso e seu adequado encaminhamento.

É muito importante o papel do profissional de saúde na prevenção, identificação e tratamento das situações de negligência e maus-tratos contra idosos.

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os profissionais de saúde também alegam frequentemente não que-rer se envolver em questões familiares, julgando-as de domínio pri-vado, perdendo, assim, a oportunidade de proteger o idoso e ajudar a família a encontrar soluções adequadas para as dificuldades que estão vivenciando na ação de cuidado. em decorrência dessa situação, confirma-se a importância do trabalho intersetorial e da responsabi-lidade da assistência Social por intermédio dos Centros de referên-cia e assistência Social (Cras).

Torna-se cada vez mais necessária ampla ação informativa para a prevenção de abusos e maus-tratos contra idosos, tanto para profis-sionais de saúde como para cuidadores familiares.

Avaliação de violência

Conforme machado e Queiroz (2006), algumas recomendações para a identificação de maus-tratos contra idosos são apontadas por auto-res que vêm trabalhando com essa questão.

Exame físico

Deve ser feito um exame cuidadoso do aspecto geral, observando:Higiene e propriedade das roupas.•existência de lesões cutâneas, hematomas e úlceras de pressão na •pele e membranas mucosas.Presença de hematomas, lacerações e cortes na cabeça, pescoço e •tronco.aparelho geniturinário.•existência de lesões de punho e calcanhar, que podem sinalizar •contenção.

Histórias clínica, social e familiar

alguns cuidados precisam ser observados durante a entrevista de le-vantamento do histórico do idoso:

entrevistar e examinar a pessoa em situação de privacidade, sem a •presença de seu cuidador, familiar ou profissional.explicar ao cuidador ou acompanhante que ele também será entre-•vistado logo depois, pois essa é a rotina do serviço.Não ter pressa durante a entrevista.•Procurar trabalhar pontos de interesse ao longo da entrevista, com •tranquilidade.ouvir antes de examinar.•Prestar bastante atenção a traumatismos, queimaduras, aspectos nu-•tricionais e alterações recentes nas condições econômica e social.Não diagnosticar prematuramente o idoso como vítima de abuso •ou negligência, nem adiantar ao cuidador um plano de intervenção até que todos os fatos estejam esclarecidos.Fazer contatos colaterais, visitando o local de moradia e entrevis-•tando vizinhos, amigos e outros familiares, em busca de informações adicionais.

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Outros aspectos

alguns indícios podem também facilitar a identificação de uma pos-sível situação de violência:

o idoso é trazido ao hospital por outra pessoa que não seu cuidador.•existe um intervalo prolongado entre o trauma ou doença e a apre-•sentação do idoso para os cuidados médicos.a descrição do trauma não é compatível com os sinais encontrados.•os frascos de remédios indicam que a medicação não está sendo •administrada conforme a prescrição feita.o conhecimento da história pessoal do cuidador pode apontar si-•tuações sociais problemáticas, como desemprego, doenças, drogas ou alcoolismo.

Princípios para intervenção

estudos feitos por Tomita (1990) sugerem alguns princípios para intervenção, desde que confirmada a suspeita de violência:

atuação multidisciplinar, sendo fundamental a presença do médico •(Sistema Único de Saúde – SuS) e do assistente social (Cras).Tomada de decisões compartilhada pela equipe, essencial para apoio •aos profissionais.Procedimentos realizados de maneira cuidadosa, para não expor o •idoso a situações de maior risco.Conhecimento dos recursos da comunidade, o que pode ajudar na •proteção à pessoa idosa.

Suporte familiar por meio de orientação •para as questões relativas à doença do idoso, para a tomada de decisões, para a divisão de responsabilidades dos familiares e para a informação sobre

a rede de apoio comunitário.

Prevenção

a prevenção e o combate à violência de modo geral têm sido dificultados por influência de fatores relacio-nados a problemas macroestruturais, institucionais e políticos. Segundo minayo (2000), esse contexto social acarreta forte sentimento de insegurança, que tende a exacerbar o individualismo, promovendo, assim, a ex-clusão social e dificultando a expressão do sentimento de solidariedade.

em relação à violência contra idosos, tais fatores têm determinado:

Poucas políticas públicas de saúde e assistência social •direcionadas ao atendimento das necessidades desse crescente segmento populacional. aumento dos problemas sociais e econômicos que •afetam a grande maioria das famílias brasileiras, para as quais os membros idosos constituem muitas vezes um peso.Despreparo dos profissionais de assistência social e saú-•de para lidar com situações de abuso e negligência.

embora desde 2003 a sociedade brasileira disponha do estatuto do idoso, que determina punições para os casos comprovados de violên-cia contra idosos, ainda são poucas as denúncias das situações de abuso e negligência.

machado e Queiroz (2006) sugerem algumas ações preventivas de violência contra idosos, que podem ser desenvolvidas por organi-zações governamentais e da sociedade civil voltadas aos direitos humanos:

informar e conscientizar a sociedade sobre os aspectos relacionados •à violência, em particular a que atinge os idosos.

O contexto social atual tende a exacerbar o individualismo, promovendo a exclusão social e dificultando aexpressão do sentimento de solidariedade.

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Promover treinamentos para profissionais que atuam nas áreas •de atenção ao idoso, para identificação, tratamento e prevenção da violência.Defender os idosos vítimas de maus-tratos e negligência.•estimular pesquisas sobre a violência contra idosos, para conhecer •melhor sua extensão e natureza.Criar programas educativos para idosos que desenvolvam sua capa-•cidade de autocuidado, a ajuda mútua, bem como a defesa do direito de autodeterminação.estimular políticas públicas de prevenção de violência que contem-•plem serviços adequados para dar apoio a adultos vulneráveis, pro-movendo a coesão familiar e a solidariedade intergeracional.

Conclusão

Para o equacionamento da questão da violência contra idosos no Brasil, torna-se cada vez mais necessária a ação conjunta do estado, da sociedade civil, das organizações comunitárias e dos grupos repre-sentativos da população idosa, tendo como ponto de partida sua conscientização e sensibilização para a gravidade desse problema de saúde pública.

uma vez que os profissionais de saúde (SuS), assistência social (Cras) e direito (Centro de integração da Cidadania – CiC) são os mais frequentemente envolvidos na ocorrência de casos de violência, é imprescindível sua capacitação para identificar, intervir e prevenir tais situações.

recomenda-se também a elaboração de um protocolo de atendimen-to ao idoso em serviços de saúde e assistência social que inclua o rastreamento de situações de violência, para ser seguido pelos profis-sionais que atuam na área, bem como a criação de redes de apoio ao idoso vitimado e ampla divulgação desses recursos.

além do estímulo a pesquisas nessa área e da imple-mentação de políticas públicas de prevenção aos abusos e maus-tratos, considera-se fundamental a promoção de programas de educação gerontológica para todas as faixas etárias e em todos os níveis, na família e na co-munidade, visando a combater o preconceito em rela-ção à velhice, que é a forma de violência mais apontada pelos idosos.

Como no Brasil a família é percebida como o espaço mais apropriado para a moradia e o cuidado do idoso dependente, qualquer que seja sua classe social, é preci-so investir em programas de suporte aos cuidadores fa-miliares de idosos, para que o cuidado seja adequado, digno e respeitoso, prevenindo os maus-tratos, em par-ticular a negligência doméstica (minayo, 2005).

É fundamental criar programas de educação gerontológica para todas as faixas etárias, na família e na comunidade, para combater o preconceito em relação à velhice.

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Deve-se levar em conta, ainda, como o próprio idoso pode contribuir para um relacionamento intergeracional harmonioso, respeitoso e solidário. a participação em programas de lazer que ofereçam ativi-dades recreativas e educativas é importante na atualização das pes soas idosas em relação ao universo a sua volta, propiciando a necessária reflexão sobre convivência amistosa, apesar da diferença de hábitos e valores. o engajamento da população mais velha em movimentos comunitários e ações voluntárias também pode contribuir para uma nova imagem do idoso na comunidade e no contexto familiar.

Só assim será possível construir uma sociedade para todas as idades, que respeite e valorize o cidadão idoso.

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Velhice: identidade e subjetividade

Elisabeth Frohlich Mercadante

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R efletir sobre a velhice implica a utilização de conceitos e noções que possam fundamentar a compreensão sobre as ideias a ela relacionadas.

este texto apresenta e discute duas noções que sustentam várias ex-plicações teóricas levadas a efeito pelas ciências humanas e sociais nas análises desenvolvidas sobre diversos temas, entre eles a velhice: iden-tidade e subjetividade.

Identidade

a questão da identidade faz com que nos perguntemos “quem somos?”, tanto pes-soal como socialmente. assim, a resposta e a explicação do “quem somos?” remetem a uma análise que deve levar em conta uma

Elisabeth Frohlich Mercadante é doutora em Ciências Sociais (PUC-SP), coordenadora e professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia, antropóloga, pesquisadora na área de Gerontologia. Participou da pesquisa “Cuidar e incluir: identificando necessidades de idosos de baixa renda”, financiada pela fApesp com as seguintes entidades: Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo; Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP; Departamento de Medicina Social da Santa Casa (MSSC); curso de graduação em Gerontologia, Campus Leste-USP; Associação Nacional de Gerontologia do Rio Grande do Sul (ANG-RS); Secretaria Municipal de Assistência Social e Desenvolvimento (SMADS).

Viver não dói. O que dói é o tempo, essa força oníricaem que se criam os mitosque o próprio tempo devora.

emílio moura, “Canção”.

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“identidade pessoal”, que nos defina como indivíduos, e uma “identi-dade social”, que nos explique como membros de grupos.

a identidade, seja ela pessoal ou grupal, é pensada e construída com base em uma relação social que se estabelece entre o “eu” e o “outro”. a principal característica dessa relação é o fato de ela apresentar-se sempre como “contrastiva”, isto é, o “eu” sempre se define na “alteri-dade”, no contraste com o “outro”. o “eu” é o contrário do “outro”. Portanto, não se pode falar de identidade sem apontar essa relação.

em outras palavras, em seu significado mais próximo, a identidade, tanto individual como social, diz respeito à separação e ao ordena-mento de grupos de uma população em uma série de categorias de-finidas em termos de “nós” e “eles”.

De maneira geral, na noção de identidade, o destaque é dado às diferenças e às qualidades positivas. os cientistas sociais utilizam

essa noção na análise das diversas minorias étnicas, religiosas e de grupos sociais. esses grupos (identidades sociais) podem ser de muitos tipos ou composições: homossexuais, prostitutas, cama-das sociais (média, por exemplo), grupos ocupacionais (carpinteiros, médicos, advogados, empregadas domésticas etc.) e tantos outros que possam ser classificados pela categoria identidade. a justifica-tiva do uso da categoria identidade para demarcar cada um desses grupos se apoia no fato de eles terem um mínimo de continuidade temporal e articularem suas experiências comuns em torno de cer-tas tradições e valores.

o que se quer, inicialmente, ressaltar nessa concepção é que a hete-rogeneidade social passa a ser o fundamento, o pressuposto que ex-plica as próprias sociedades complexas de hoje. Desse modo, os vários grupos sociais, com suas características singulares, isto é, as diferentes identidades sociais, são vistos como facetas diversas da plural e mul-tifacetada sociedade moderna.

a ideia de heterogeneidade como marca fundamental das sociedades complexas chama a atenção para a participação diferenciada dos in-divíduos e grupos na sociedade. assim, esses indivíduos e grupos fariam leituras diferentes sobre temas comuns e gerais presentes em suas sociedades.

Identidade e velhice

a velhice é, decerto, um fenômeno biológico, mas entendê-la apenas dessa maneira significa reduzir a questão e não analisá-la em sua to-talidade e complexidade, o que implica ignorar os aspectos psicoló-gico, social e, principalmente, cultural.

Na área geriátrica, os autores definem a velhice como fenômeno biológico de declínio físico e mental irreversível em decorrência da passagem do tempo, depois de o organismo ter alcançado a plena

Mercado Municipal em São Paulo.

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maturidade. está presente, nessa literatura, a relação entre o social e o biológico, mas este é tomado como principal fator de implicações sociais na vida dos indivíduos que envelhecem. Normalmente, tais implicações se referem a um fechamento do mundo do idoso, que se torna pequeno, restrito e privado, em oposição ao mundo vivido quando jovem e adulto, mais amplo e público.

a maneira como, em geral, se formula a identidade de velho, levando em conta sobretudo as características físicas e biológicas, dá a ela uma substância que assume tal força e presença que passa prioritariamen-te a definir o indivíduo.

a presente reflexão deseja mostrar que a identidade de velho se define não por possuir apenas uma substância, uma essência, e sim por ser uma construção cultural elaborada e reelaborada constantemente.

assim, se a velhice, não se quer aqui negar, se define como fenômeno biológico, essa identidade de velho só se define parcialmente e, com certeza, cai-se em uma postura equivocada ao extrapolar essa parte ou condição biológica para explicar a totalidade (comportamentos, atitudes, pensamentos etc.) do indivíduo – ou seja, erra-se ao priori-zar a condição biológica como a conformadora do comportamento psicossocial do indivíduo.

a velhice, portanto, se apreendida só como questão bio-lógica, não revela seu lado social. ela, além de sua especi-ficidade biológica, localiza-se em uma história e insere-se em um sistema de relações sociais. Desse modo, as variáveis histórica e sociocultural, particulares de cada sociedade, são as que fundamentam e explicam a variável velhice bio-lógica, que é comum a todos os seres humanos em todas as sociedades. em outros termos, o destino da velhice, o ser velho não é o mesmo em todos os lugares; ele é vivido de acordo com o contexto social.

a velhice, assim como a juventude, não é uma concepção absoluta, e sim uma forma de interpretar o percurso da vida. Joel Birman (1995, p. 30) afirma:

Como interpretações, estas concepções – juventude e velhice – se trans-formam historicamente. Portanto, não existe qualquer substancialida-de absoluta no ser da velhice e da juventude, pois estes são conceitos construídos historicamente e que se inserem então ativamente na dinâ-mica dos valores e das culturas que enunciam algo sobre o seu ser.

Com base no que se explicitou até aqui, é preciso, portanto, entender a velhice em sua totalidade; ela não representa apenas um fato bioló-gico, mas também um fato cultural.

Como já indicado, a problemática das identidades sociais, como trabalhada pelas ciências humanas, chama a atenção para as relações de contrastividade como elementos fundamentais na construção das identidades. Vários autores apontam a existência de um jogo de rela-

A velhice, assim como a juventude, não é uma concepção absoluta, e sim uma forma de interpretar o percurso da vida.

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Uma pessoa fica sempre sobressaltada quando a chamam de velha pela primeira vez.

Sentir-se velho, pelo olhar dos outros, pode ser enten-dido tendo em vista o fato de que a velhice pertence à categoria que Sartre denominou “os irrealizáveis”. Sobre eles, explica Beauvoir (1990, p. 357):

Seu número é infinito, pois representam o inverso de nossa situação. O que somos para outrem é impossível vivê-lo no modo do para si. O irrealizável é o “meu ser a distância que limita todas as minhas escolhas e cons-titui o seu avesso”.

e a autora ainda aponta:Em nossa sociedade, a pessoa idosa é designada como tal pelos costumes, pelos comportamentos de outrem, pelo próprio vocabulário: ela tem que assumir essa realidade. Há uma infinidade de maneiras de fazê-lo: nenhuma me permitirá coincidir com a realidade que assumo. A velhice é um além de minha vida, da qual não posso ter nenhuma plena experiência interior. De maneira mais geral, meu ego é um objeto transcendente, que não ha-bita minha consciência, que só pode ser visualizado a distância.Essa visualização opera-se através de uma imagem: tentamos representar quem somos através da visão que os outros têm de nós. A própria imagem não é dada na consciência: é um feixe de intencionalidades dirigidas através de um analogon em direção a um objeto au-sente. Ela é genérica, contraditória e vaga (Beauvoir, 1990, p. 357).

a identidade de velho, tal qual aparece na reflexão de Beauvoir, parece-nos estigmatizada e, logo, profunda-

ções contrastivas para que seja possível a formulação das diversas identidades sociais. o conjunto das identidades compõe um sistema que gera a possibilidade de uma estratégia de diferenças. Partindo dessa concepção, tem-se a ideia de que a identidade do “eu” é cons-truída pela oposição à identidade do “outro” e vice-versa.

Dessa forma, a identidade de velho constrói-se pela contraposição à identidade de jovem; consequentemente, há também a contraposição das qualidades: atividade, produtividade, beleza, força, memória etc. como características típicas dos jovens e as qualidades opostas pre-sentes nos idosos.

as características atribuídas aos velhos, que vão definir seu perfil identitário, são estigmatizadoras, fruto de produção ideológica da sociedade. os idosos conhecem e também partilham essa ideologia, que, entretanto, define o velho em geral, não em particular. assim, pessoalmente não se sentem incluídos no grande modelo ideológico. Partilhar a ideologia revela o fato lógico de que certos indivíduos preenchem os requisitos necessários para serem classificados como velhos. Desse modo, se o “velho” não sou “eu”, o velho é o “outro”. as diferenças, as qualidades pessoais são, então, levantadas e apresen-tadas para definir uma identidade pessoal que se contrapõe à catego-ria genérica de velho.

o ser velho tem sua identidade claramente definida pela relação que estabelece com o outro, alteridade jovem.

Simone de Beauvoir (1990, p. 353) chama a atenção para essa relação “eu” e “outro”, profun damente chocante, estigmatizadora, criadora da identidade de velho:

É normal, uma vez que em nós é o outro que é velho, que a revelação de nossa idade venha dos outros. Não consentimos nisso de boa vontade.

Simone de Beauvoir(1908-1986), filósofa, escritora e feminista francesa, fundou com o filósofo Jean-Paul Sartre, seu companheiro de toda a vida, o periódico Les Temps Modernes. Em 1949, publicou O segundo sexo, pioneiro manifesto do feminismo, no qual propôs novas bases para o relacionamento entre mulheres e homens.

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mente pejorativa. essa ideia também está presente na noção de estigma proposta por Goffman (1975, p. 13):

O termo “estigma”, portanto, será usado em referência a um atributo depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem; portanto, ele não é, em si mesmo, nem honroso, nem desonroso.

ora, a vivência primeira da velhice se dá no corpo. o corpo por si só não revela como atributo a velhice, porém, uma vez que ela, como estigma, instala-se no corpo, passa a inquietar o idoso. Certamente, a inquietação decorre de uma avaliação também estigmatizada e, em consequência, de uma abominação do indivíduo diante do próprio corpo. a visão de um corpo imperfeito – “em declínio”, “enfraquecido”, “enrugado” etc. – não avalia apenas o corpo, mas sugere imediatamen-te ampliar-se além dele, sobre a personalidade, sobre o papel social, econômico e cultural do idoso.

mais do que isso, nessa correlação entra a noção de tempo, que se apresenta como “pouco tempo de vida”, “do tempo que passou”, “de que nada mais se deve esperar de um indivíduo que, com o passar do tempo, ‘só deve decair’”. essas ideias relacionando velhice e tempo revelam um indivíduo que não investe no pre-sente nem projeta o futuro, que só tem passado, lem-branças para rememorar e, mais tarde, o confronto com a morte. elas negam a possibilidade de um futu-ro para o velho.

a esse respeito, afirma Birman (1995, p. 39):O idoso é considerado alguém que existiu no passado, que realizou o seu percurso psicossocial e que apenas espera o momento fatídico para sair inteiramente da cena do mundo.

ainda sobre a negação de um futuro para o velho, Beauvoir (1990, p. 266) a relaciona com a ideia da reciprocidade:

Quando, nos casos patológicos de despersonalização, o doente não tem mais ligação com seus próprios fins, então os homens lhe aparecem como os representan-tes de uma espécie estranha. O que se passa no caso da relação do adulto com o velho é o inverso. O velho – salvo exceções – não faz mais nada. Ele é definido por um exis, e não por uma práxis. O tempo o conduz a um fim – a morte – que não é o seu fim, que não foi estabelecido por um projeto. E é por isso que o velho aparece aos indivíduos ativos como uma “espécie estranha”, na qual eles não se reconhecem. Eu disse que a velhice inspira uma repugnância biológica; por uma espé-cie de autodefesa, nós a rejeitamos para longe de nós.

O corpo por si só não revela como atributo a velhice, porém, uma vez que ela, como estigma, instala-se no corpo, passa a inquietar o idoso.

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o estabelecimento de uma relação não recíproca não ocorre só no caso do adulto perante o velho, mas também do adulto para com a criança. Há, no entanto, um in-vestimento da sociedade e dos adultos na educação da criança, para assegurar o próprio futuro da sociedade na qual ela vive. o velho, diferentemente da criança, é um ser sem futuro.

a negação do futuro, a noção de um tempo que passa e que, ao passar, implica a decadência do corpo e do espírito do velho colocam-se como qualidades negativas socialmente imputadas aos idosos, crian-do, assim, um modelo, uma identidade genérica de velho.

a existência de uma identidade construída com base em um mo-delo estigmatizador de velho e a verificação da fuga desse modelo pelos próprios idosos, que, como indivíduos, como seres singulares, não se sentem nele incluídos, apontam o fundamento próprio da construção de uma identidade social paradoxal: o velho não sou “eu”, e sim o “outro”. É por meio desse fundamento, que contrasta e realça, que as diferenças pessoais surgem e imediatamente se con-trapõem à categoria genérica de velho. assim, se, de um lado, o levantamento das diferenças, das particularidades exibidas indivi-dualmente remete para a negação do modelo geral, de outro, essas mesmas e tantas outras particularidades podem ser trabalhadas pelos indivíduos para a produção de um novo sujeito velho. esse novo sujeito, portanto, não se define na contraposição a uma “alte-ridade jovem”, mas sim na produção de uma “subjetividade” nega-dora da identidade estigma.

embora a noção de identidade seja útil para classificar um grupo de pessoas – nesse caso, pessoas cronologicamente reconhecidas como idosas –, ela não explica o ser velho como sujeito pleno de desejos e, dessa forma, não apenas portador de identidade, mas também, e sobretudo, de subjetividade.

Subjetividade e velhice

os homens, o tempo todo, estão gerando acontecimentos, produzin-do desejos.

Ferrigno (1987, p. 16), a respeito do desejo, afirma:Os desejos podem ser o florescimento da vida se levarem a uma política libertária, tanto mais intensa e abrangente quanto mais agenciamentos conseguir formar através de conexões com desejos de outros. Rizoma de fluxos de desejo. Agenciamento coletivo de enunciação, sinônimo de pro-cesso de singularização e, portanto, ser degenerescência da vida, se for encarcerado, domesticado e territorializado na repetição e no isolamento.

o desejo é subterrâneo, é o outro plano da realidade das formas e da organização, que atravessa hierarquias e categorias como raça, sexo, classe social, indivíduo, família, estado, governo, trabalho, idade e tantas outras: o de uma grande máquina denominada inconsciente humano.

A noção de identidade não explica o ser velho como sujeito pleno de desejos.

Retrato do pai de Rembrandt, 1631, de Rembrandt. Autorretrato, 1519, de Leonardo da Vinci.

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o desejo é imanentemente revolucionário. Segundo Guattari (1987, p. 46), as invenções originadas do desejo ocorrem incessantemente, em todos os níveis:

intrapessoais (o que está em jogo no sonho, na criação etc.); pessoais (por exemplo, as relações de autodominação); e interpessoais (a invenção de novas formas de sociabilidade na vida doméstica, amorosa, profissional, na relação com a vizinhança, com a escola etc.).

o desejo, então, é elemento fundante da subjetividade, e esta pode ser produzida por instâncias individuais e institucionais.

a problemática da subjetividade, que tem como um dos elementos constitutivos a sociabilidade, já foi apontada por Georg Simmel em seus trabalhos “a metrópole e a vida mental” e On individuality and social forms. Para ele, a noção de subjetividade aparece pelo viés da discussão da existência de uma cultura objetiva e de outra subjetiva. a cultura objetiva é exterior ao sujeito, mas interage o tempo todo com ele. a cultura subjetiva pressupõe o desenvolvimento da vida psíquica do homem. É preocupação de Simmel entender em qual

extensão o processo da vida psíquica trabalha os bens e realizações da cultura objetiva, introjetando-os.

a cultura subjetiva não pode existir sem a objetiva, pois o desenvolvi-mento do sujeito diz respeito à aquisição interna (psíquica) de objetos cultivados. a cultura objetiva, por sua vez, é em parte independente da subjetiva. objetos culturais “cultivados” podem ter finalidades distintas daquelas que implicam sua utilização pelos sujeitos.

Não há, segundo Simmel, uma relação de reciprocidade equilibrada, no sentido de que, quanto maior for o desenvolvimento da cultura objetiva, maior também será o desenvolvimento da cultura subjetiva. Na verdade, afirma ele, é o contrário que ocorre. a relação de des-proporção e de desequilíbrio é clara entre as duas culturas. Para Simmel, o desenvolvimento da técnica em todos os setores da vida moderna, de um lado, e a insatisfação dos sujeitos com esse tipo de progresso, de outro, evidenciam o fato de que as coisas se tornam cada vez mais elaboradas, sofisticadas, e os homens conseguem cada vez menos transpor a perfeição dos objetos para o desenvolvimento da vida interna, subjetiva.

essa relação de desequilíbrio, de não reciprocidade entre as duas culturas, faz-nos retornar ao pensamento de Félix Guattari, que ressalta o fato de que o desenvolvimento tecnológico, por si só, não pode ser julgado nem posi-tiva nem negativamente em sua associação com a sub-jetividade. Certamente, para Guattari, o desen volvimento da tecnologia ligada à criação de universos referenciais, a novas expe riências sociais, como vimos, pode tanto se constituir em saída do “período opressivo atual”, levan-do-nos a uma “era pós-mídia”, como mergulhar a socie-dade e os homens em seu oposto.

Segundo Simmel, a problemática da subjetividade não se reduz à discussão da relação entre culturas objetiva e

A sociabilidade, que possibilita a constituição da subjetividade, está presente nos vários tipos de associações, promovendo a proximidade entre os indivíduos.

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subjetiva; ela aponta também a possibilidade de seu desenvolvimen-to pelo exercício da sociabilidade. a sociabilidade é um elemento que possibilita a constituição da subjetividade; está presente nos vários tipos de associações, existindo como um fim em si mesma, gerando nos indivíduos a satisfação pelo próprio fato de a exercerem, de se sentirem associados e, assim, de resolverem a solidão individual pela união, pela proximidade de uns com os outros.

Considerações finais

a noção de identidade homogênea de velho, que leva em conta a relação com a alteridade jovem, implica a ideia de reprodução, de reviver o passado, mesmo que alterado. Desse modo, o presente está sempre repondo, repetindo algo já vivido, impossibilitando, dessa forma, a criação, a invenção.

a heterogeneidade, observada na vida diária dos idosos, não é sufi-ciente para anular uma visão homogênea de pensar sobre o velho e a velhice. Portanto, uma nova maneira de representação simbólica, que destaque a noção de subjetividade, impõe-se como de fundamental importância para avaliar a produção de um novo sujeito – nesse caso, um novo sujeito velho.

a noção de subjetividade apoia-se nas ideias de invenção, de produ-ção de novas situações de vida pelo desempenho tanto individual como grupal dos sujeitos em suas decisões cotidianas. Na perspectiva da subjetividade, os indivíduos destacam-se como inventores da vida social. assim, essa noção, que tem como principal aliado o desejo, estabelece, para os sujeitos, o reconhecimento e a produção de novas modalidades, de formas alternativas de vida – individual e grupal – que certamente vão se contrapor aos códigos estabelecidos de orien-tações mais tradicionais, às classificações identitárias.

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A família e o idosoRuth Lopes

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Contextualização do tema no processo histórico

A passagem da sociedade agrária para a industrializada caracterizou--se por importantes alterações no agrupamento familiar. Nas sociedades baseadas na agricultura, a estrutura da chamada fa-

mília extensa era compatível com a necessidade de mão de obra para a lavoura de subsistência. Nesse tipo de família, conviviam até quatro gerações, do bisneto ao bisavô, além de parentes laterais e outros agregados. Já a família típica da sociedade industrial é a nuclear, composta de um casal e poucos filhos ou mesmo nenhum. esse en-colhimento do grupo familiar tem sido determinado pela necessi dade de ágeis deslocamentos de mão de obra para a indústria e pela exi-guidade de espaços nas grandes cidades.

as mudanças das últimas décadas não permitem saber exatamente o que é família. Debruça-se sobre a organização familiar contemporânea

Ruth Gelehrter da Costa Lopes é doutora em Saúde Pública (USP). Vice-coordenadora e docente do Programa de Estudos Pós-Graduados em Gerontologia da PUC-SP; líder do grupo de pesquisa CNPq “Khalaó”, pesquisadora do Grupo de Estudos de Psicogerontologia (GEP) “Saúde, Cultura e Envelhecimento” – CNPq, Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento (nepe) – CNPq; membro da Rede Ibero-Americana de Psicogerontologia (redip) e do Centro de Pesquisas e Ações em Gerontologia (ger-Ações). Professora e coor denadora do curso Psicogerontologia: Fundamentos e Perspectivas (cogeAe-PUC-SP). Psicóloga, supervisora do Atendimento em Grupo a Idosos – Clínica/PUC-SP e Atendimento a Idosos em Grupo na Comunidade – Faculdade de Psicologia/PUC-SP (7º e 8º períodos). Autora do livro Saúde na velhice: as interpretações sociais e os reflexos no uso do medicamento. São Paulo: edUc, 2000.

Essa lembrança... mas de onde? de quem?Essa lembrança talvez nem seja nossa,mas de alguém que, pensando em nós, só possamandar um eco do seu pensamentonessa mensagem pelos céus perdida...Ai! Tão perdida que nem se possa saber mais de quem!

mario Quintana, “essa lembrança que nos vem”.

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para apreender as relações que perpassam essa rede de convivência. apesar de a vida familiar continuar tendo valor social, os papéis do-mésticos são conflitivos, uma vez que não há espaço para a dimensão individual, atributo hoje supervalorizado. e como compatibilizar a individualidade e a reciprocidade familiar? Vive-se uma época reple-ta de alternativas e ao mesmo tempo normativa; os papéis, não es-tando rigidamente preestabelecidos, são objeto de constantes revisões, em busca da construção de uma nova lógica nos relacionamentos. Ter ou poder escolher desencadeia a angústia, expondo a individualidade dos sujeitos. Quando se perde aquilo em que se investia, é necessário reorganizar a intimidade pessoal, familiar e social. o limite entre o que pertence ao domínio público e o que cabe ao privado fica em suspenso. assim, a questão “Quem deve cuidar do idoso?” se coloca de maneira dramática para os familiares.

a reflexão sobre a complexidade da família atual e o reconhecimento de sua importância no suporte à velhice visam a contribuir para a

formação de profissionais que venham a interferir nas políticas de saúde de modo a colaborar nessa difícil articulação: demandas indi-viduais, organização familiar e suportes institucionais.

o envelhecimento da população brasileira é hoje um fato significa-tivo, o que impõe a investigação e análise de amplos setores da socie-dade. acredita-se que isso não deve ser atribuído apenas aos altos índices demográficos, que apontam o crescimento desse segmento etário, mas muito mais à sensibilidade da sociedade para tal fenô-meno. afinal, o que adianta dar mais anos à vida se não se dá mais vida aos anos?

Tratar de aspectos que envolvem o envelhecimento sinaliza a visibi-lidade que o tema vem conquistando. Teme-se ficar idoso. apesar de cada vez mais se apregoar a “boa velhice”, exemplificando-a com fi-guras públicas poderosas e sábias, o “idoso denegrido” faz parte do cotidiano e povoa o imaginário das pessoas de forma assustadora.

Família reunida, 1955.Família reunida, 1905.

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Conhecer o processo de envelhecimento pode engendrar o resgate de um discurso e uma prática realista e verdadei-ramente amorosa, desde que se possa também ampliar a noção dos vínculos afetivos, não recaindo sempre na ex-pectativa de que o núcleo familiar esteja apto a apoiar parentes que estão envelhecendo.

as mudanças na estrutura da família têm contribuído para maior distanciamento entre as gerações. É expressivo o número de pessoas idosas que moram sozinhas ou apenas com o cônjuge, assim como das que vivem em instituições de longa permanência. mesmo no caso de idosos que coabitam com filhos e netos, as conversas mais duradou-ras são raras e até inexistentes (miranda, 2003).

Outros olhares sobre o tema

Avós e netos: espaço possível de encontro de gerações

o processo de envelhecimento populacional vem gerando desafios que ultrapassam o fator demográfico. além dos aspectos sociais, eco-nômicos e políticos, também estão envolvidas questões que repercu-tem nas relações humanas. É cada vez mais relevante o aumento das possibilidades de interação entre avós e netos. a convivência mais prolongada entre as gerações mais velhas e as mais novas beneficia todos os envolvidos, com a transmissão de valores e de cultura e o desenvolvimento do sentimento de “avosidade”.

No relacionamento intergeracional, é preciso estar atento à pertinên-cia do respeito ao conhecimento preservado pelos idosos e à constru-ção de um diálogo com as novas gerações. os avós têm papel impres-cindível, atuam como intermediários entre o passado, o presente e o futuro. Tanto os pais como os avós necessitam rever velhos conceitos

e procurar compreender a mudança dos valores e a evolução das ge-rações nos “novos tempos”, já que muitas vezes, de forma inesperada, veem-se diante de responsabilidades que não lhes competem e/ou para as quais não estão preparados.

a nova constituição populacional e outros fatores a ela associados, como a entrada da mulher no mercado de trabalho, propiciaram uma convivência mais prolongada entre as gerações mais velhas e as mais novas. Não há uma “receita” para que tal convivência seja benéfica, porém pode-se afirmar que nas famílias em que esse contato é culti-vado há a possibilidade de satisfação de ambas as partes. o sentimen-to da “avosidade”, por não ser ditado por regras impostas pela socie-dade, permite preencher um espaço (muitas vezes vazio) na vida do idoso e alimenta a ideia de continuidade e perpetuação com as gera-ções mais novas (erbolato, 2006).

Situações em que a responsabilidade pela criação da criança é trans-ferida dos pais para outro adulto da família (geralmente avó, tia ou madrinha) vêm se tornando comuns. elas podem decorrer da neces-sidade da mãe de possuir um emprego, para ajudar na renda familiar, ou ainda de morte, migração, falta de condições de saúde, financei-ras ou psicológicas de um dos pais ou de ambos (oliveira, 2003).

ao mesmo tempo que se assiste à desintegração de um ideal de família sustentado durante 200

anos, observa-se o surgimento de outras formações sociais baseadas, muitas vezes, em laços de afinidade e não de parentes-co (Goldfarb e lopes, 2006).

Pode-se falar da invenção social da in-fância no século XViii, quando se

criou um estatuto para essa faixa etária, assim como da invenção da

adolescência no final do XiX,

Conhecer o processo de envelhecimento pode engendrar o resgate de um discurso e uma prática realista e verdadeiramente amorosa.

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época em que também surgiu a aposentadoria. a crise da meia-idade, ou dos 40, 50 anos, veio na esteira da invenção da velhice, em meados do século XX (miranda, 2003).

Cada vez mais encontram-se exemplos de idosos que preservam a alegria, a criatividade e a capacidade de realização das mais diferentes tarefas (sociais, de lazer, de aprendizado e profissionais). Geralmente, são pessoas que não se isolaram e procuraram manter uma convivên-cia saudável não apenas com pessoas de sua faixa etária, mas com jovens, crianças e adultos mais novos, o que lhes permite experimen-tar ideias e motivações diversas.

Nesse contexto de prolongamento da vida, verifica-se que a atual geração de netos é a primeira que pode esperar conhecer os quatro avós. Tal convivência cria um conjunto de laços e desafios. os novos laços centram-se, essencialmente, na interação entre avós maternos e paternos, que têm de construir uma relação entre si, ainda que me-diada pelo neto (Goldfarb e lopes, 2006). Surge, assim, um desafio para avós e netos: os avós precisam interagir, contemplando-se e dando carinho e afeto a seus netos comuns; os netos devem aprender a lidar com os quatro avós e a dividir seu tempo entre eles (Souza, 2005). indiscutivelmente, avós e netos representam um encontro de gerações que pode ser concretizado com base em três eixos temporais:

tempo social (história da sociedade e da comunidade), tem-po familiar (passagem pelas várias fases do ciclo de

vida familiar) e tempo individual (aspectos do desenvolvimento do indivíduo).

Segundo Neugarten e Weinstein (1968), a assunção de diferentes estilos pelos avós (dis-tantes, autoritários, substitutivos, divertidos, formais) associa-se não só com características de personalidade e com a relação que mantêm com os filhos, mas também com o estado

de saúde, a distância geográfica e a idade. em geral, os avós menos saudáveis são os mais formais; os mais sau-dáveis e mais novos, os mais divertidos; os que vivem mais longe tendem a ser distantes.

os avós podem assumir importante papel na vida dos netos, mas a relação inversa também se verifica. o en-volvimento emocional na prestação de cuidados aos netos, em uma base diária, constitui para muitos avós uma motivação para a vida, até porque é acompanhada de menor responsabilidade e maior tolerância.

De fato, a convivência entre avós e netos pode ser benéfica para ambos, sobretudo porque sua relação não implica responsabilidades, obrigações e conflitos, como a de pais e filhos. Para os avós, é, principalmente, a realização de um sonho, pois esse laço é sentido como a concretização

Nesse contexto de prolongamento da vida, a atual geração de netos é a primeira que pode esperar conhecer os quatro avós.

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do desejo de continuidade, a possibilidade de exercer vários papéis e a oportunidade de interações significativas que permitem ver os próprios filhos serem pais. Para os netos, torna-se possível viver uma relação educativa e afetiva diferente: os avós dispõem de mais tempo para brincar e passear, enquanto os pais têm pouco tempo, trabalham e muitas vezes chegam em casa cansados e chateados. além disso, a maturidade, a experiência de vida e a disponibilidade podem repre-sentar para os avós um potencial de imaginação e criatividade.

redler (1986) afirma que a função de avô ou avó está sempre pre-sente, não importando se o indivíduo a aceita ou rejeita, se ela é bem ou malsucedida, satisfatória ou conflitiva; tudo depende de como foi exercida a função paterna ou materna da qual deriva. Ter um neto é um novo laço geracional absolutamente inédito e exige uma reorgani zação psíquica, uma relocalização dos lugares de pertenci-mento, uma verdadeira “metamorfose libidinal”, como a denomina a mesma autora.

o envelhecimento masculino possui algumas particularidades relati-vas às transformações que o gênero tem sofrido e às representações que a sociedade tem dos homens. o homem idoso precisa enfrentar questões como aposentadoria e limitações para ter uma vida saudável,

saber lidar com o ócio, investir em novos conhecimentos, pro-jetos de vida, lazer e convivência com os netos. en-

tretanto, não se pode deixar de citar o idoso que vive só, para quem a solidão prevalece e, com ela, a rejeição pela sociedade. Todos esses aspectos devem ser observados e ser motivo de investigação diante do processo de envelhecimento (Pedrosa, 2006).

a maioria dos homens que se aposentam não aceita o fato de afastar-se do trabalho e procura outra ocupação (remunerada

ou voluntária). esses “idosos socialmente ativos”, usando a denomi-nação de lopes (1990), ou seja, aqueles que se engajam em alguma atividade, participam de um grupo de teatro amador, investem em programas de lazer, praticam atividades esportivas ou qualquer outra que lhes faça sentido ou traga reconhecimento social.

a “avosidade” masculina é um exercício cotidiano, no qual as perspectivas se renovam e o neto e o avô possuem significância na vida um do outro. Pais que eram rígidos, ao se tornarem avôs, têm a opor tunidade de proporcio-nar liberdade de expressão, criatividade e brincadeiras.

Tanto o avô como o neto ocupam lugar significativo na relação que se constrói entre os dois. as trocas de experiência, as brincadeiras, as conversas e a cumplici-dade buscam afeto, acolhimento e reciprocidade. Para os avôs, a velhice e o envelhecimento estão relacionados

A “avosidade” masculina é um exercício cotidiano, no qual as perspectivas se renovam e o netoe o avô possuem significância na vida um do outro.

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a um processo contínuo. a vivência pode ser fruto da experiência adquirida ou significar perda.

o sentimento da “avosidade” em mulheres segue a linha do que ocorre com os homens. a relação das idosas com seus netos pode ser bastante saudável, constituindo a base de uma futura formação só lida da geração mais nova e uma maneira de assegurar a transmissão de valores e experiências pela mais velha.

redler (1986), ao discorrer sobre os sentimentos presentes na “avosi-dade”, revela que estes podem significar uma recompensa por perdas e carências, a possibilidade de construir uma história de amor com o neto, em substituição àquelas perdidas no passado. Para as avós, os netos representam uma ligação com o futuro, o que justifica a transmissão dos valores da família como forma de garantir sua continuidade.

a dimensão afetiva construída pelas avós, no círculo familiar, é justificada, ainda, pela visão da sociedade sobre o instinto materno. o “ser mãe” e o “querer ser mãe” são percebidos como processos naturais no universo feminino, e, em consequência, o “tornar-se avó” também o é (oliveira, 2003).

um aspecto interessante do vínculo entre avós e netos é que tanto homens como mulheres ten-dem a se relacionar mais com os filhos de seus filhos favoritos (Goldfarb e lopes, 2006). essa predileção também pode ser expressa pelos netos (Barros, 1987), e o fato de a escolha partir das crianças reforça para os avós a ideia de que a relação tem fun-damentos não racionais. Tal escolha parece permea da pela

espontaneidade, ou seja, pela plenitude de sentimentos que a própria representação social de seus papéis apoia (Côrte, merca dante e arcuri, 2006).

o que define um avô não é uma imagem nem uma idade cronológica, tampouco um papel social. a “avo-sidade” é uma função intimamente ligada à função materna ou paterna, das quais se diferencia, mas que, como elas, tem papel determinante na estruturação psíquica do sujeito (Goldfarb e lopes, 2006).

apesar dos vários estereótipos sobre o envelhecimen-to, atualmente tem se verificado importantes mudan-ças na construção social da terceira idade. Nessa pers-pectiva, os idosos são vistos como seres dotados de condições de desenvolver atividades prazerosas e pro-motoras de realização pessoal (miranda, 2003). Com isso, constata-se realmente a emergência de uma nova imagem da velhice.

Atividades práticas

os diferentes grupos da sociedade que se dispuserem a discutir a longevidade dentro de seus espaços poderão apontar alternativas que assegurem um envelhecimento mais digno a seus membros. apresen-tam-se a seguir algumas ideias baseadas em práticas profissionais.

Psicoterapia, grupos de apoio, oficinas

examinam-se, aqui, as possíveis intervenções no núcleo familiar, em face de uma convivência tumultuada com um membro em processo de envelhecimento: atendimento psicoterapêutico familiar, grupos de apoio comunitário ou a doenças específicas, como a associação Brasileira de alzheimer (abraz).

A relação das idosas com seus netos pode ser bastante saudável, constituindo a base de uma futura formação sólida da geração mais nova.

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a psicoterapia individual familiar é indicada quando se comprovam conflitos preexistentes à situação do sofri-mento relatado, impedindo o enfrentamento da nova realidade. É realizada em sessões sema nais ou quinzenais durante um período que varia de 2 a 18 meses, depen-dendo do tipo de demanda e da evolução do trabalho. recomenda-se também a orientação individual ante si-tuações éticas que impossibilitem sua abordagem nos grupos de apoio.

uma vez encaminhadas as possibilidades elaborativas, o objetivo é que os familiares se integrem nos grupos de apoio institucionais e se beneficiem de experiências coletivas. Nossa preferência por esses grupos se baseia no efeito terapêutico da identificação que se esta-belece entre pessoas que compartilham o mesmo problema. Nesse âmbito, cada integrante do grupo passa, em breve espaço de tempo, de uma atitude de demanda desesperada a outra de oferta de ajuda eficaz, estabelecendo-se verdadeiras redes de colaboração solidária que atuam de forma espontânea e autônoma em relação à institui-ção promotora. assim, cada participante do grupo se transforma em verdadeiro agente multiplicador que leva apoio e esclarecimen-tos sobre a doença a âmbitos nos quais sua existência e caracterís-ticas são frequentemente ignoradas. o resultado direto desse traba-lho é grande melhora na qualidade de vida não apenas do doente, como também do cuidador, favorecendo sua interação com o meio familiar e social.

Na abraz, desde 1992 são realizadas reuniões abertas mensais. a assistência varia de 20 a 80 familiares por reunião, na qual se desen-volve uma primeira parte informativa, a cargo de um profissional convidado, seguida por discussões em grupos de 10 a 15 participan-tes cada um, coordenados por familiares (cuidadores mais experientes). os temas das palestras informativas são escolhidos pelos participantes

e obedecem a uma programação semestral, comunicada aos associados por carta e jornal da associação.

oficinas com 10 a 15 integrantes, organizadas em dez encontros, cada qual com a duração máxima de três horas, estruturadas por meio de dinâmicas de grupo, dão a oportunidade de os participantes se informarem e, principalmente, exporem conteúdos emocionais que cercam as delicadas relações afetivas nas famílias.

Temas para discussão

o padrão cultural, impregnado da “dependência prolongada das •crias em relação às mães” (Durham, 1983, p. 18), empurra nova-mente a mulher do núcleo familiar para o papel de tutora nos casos em que um adulto dependente necessita de cuidados para garantir a sobrevivência. a naturalização desse fato acaba se tor-nando um obstáculo para a família organizar e refletir conjunta-

Integrantes de grupos de apoio passam de uma atitude de demanda desesperadaa outra de oferta de ajuda eficaz.

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Se tivéssemos tempo• . Direção: José eduardo de oliveira. Brasil, 2007. 71 min. o filme mostra a “explosão” de sentimentos e de emoções gerada pelas tristes recordações que laura, 60 anos, tem de seu passado e também pela realidade que enfrenta, causando-lhe uma revolta desmedida. eugênio, 70 anos, emocio-nalmente mais equilibrado do que a companhei-ra, está debilitado e enfrenta as sequelas de um derrame que o deixou com dificuldades de visão e com os movimentos das pernas e dos braços comprometidos. o enclausuramento dos dois idosos na casa onde moram é um fato marcante, e os diálogos dos personagens, bem como as manifes-tações de repulsa e de carinho entre eles, são crescentes na noite derradeira.

mente sobre a possibilidade de novos arranjos para amparar esse membro, dividindo o ônus emocional, encargos monetários e aten-ções específicas. a dificuldade aparece quando tentamos definir o que é família. •em nossa cultura, a família é o espaço natural em que se operam as primeiras identificações, lugar de emoções fortes e conflitos profundos. assim como para outras sociedades o grupo familiar não está ligado a consanguinidade, para os adultos doentes e/ou idosos muitas vezes esse fato se repete. identificar o núcleo afetivo de referência que substitui o parentesco familiar “natural” é um passo essencial.a sociedade contemporânea em transformação relega a segundo •plano o adulto doente, priorizando o investimento na formação da nova geração. o historiador Philippe ariès (1975) descreve esse cenário: “a família moderna, ao contrário, separa-se do mundo e opõe à sociedade o grupo solitário dos pais e filhos. Toda a energia do grupo é consumida na promoção das crianças, cada uma em particular, e sem nenhuma ambição coletiva: as crianças, mais do que a família”.

Filmes

O bolo• . Direção: José roberto Torero. Brasil, 1995. 14 min.O bolo é um dos episódios de Felicidade é..., filme narrado em quatro segmentos, cada um assinado por um diretor, e todos discutindo o tema “Feli-cidade”. um casal está fazendo bodas de ouro. ela prepara o bolo, ele molda um pedaço de madeira. os dois se xingam e se ofendem. Felicidade pode ser apenas você ter alguém a quem humilhar. Fe-licidade pode ser apenas você não estar sozinho.

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