perspectivas epistemolÓgicas da bioÉtica brasileira a partir da teoria de thomas kuhn
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Aline Albuquerque S. de Oliveira et al. Revista Brasileira de Bioética. Volume 1, n. 4, 2005. Pp. 363-385TRANSCRIPT
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Universidade de Braslia
Ctedra UNESCO de Biotica
Programa de Ps-Graduao em Biotica
PERSPECTIVAS EPISTEMOLGICAS DA BIOTICA BRASILEIRA A
PARTIR DA TEORIA DE THOMAS KUHN*
Aline Albuquerque S. de Oliveira**
Karin Calazans Villapouca***
Prof. Dr. Wilton Barroso****
* Publicado na Revista Brasileira de Biotica. Volume 1, n. 4, 2005. Pp. 363-385
** Advogada da Unio, Mestre em Direito/UERJ, Professora do CEUB.
*** Advogada.
**** Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da UnB, Orientador da Pesquisa.
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RESUMO: O presente artigo aponta para uma reflexo epistemolgica da biotica
brasileira, a partir de tendncias fundamentadas, principalmente, na adequao de
suas teorias ao contexto scio-econmico e cultural de nosso pas. Destacam-se seis
importantes vertentes, quais sejam: biotica autonomista; biotica de interveno;
biotica da proteo; biotica da teologia da libertao; biotica crtica de
inspirao feminista e biotica feminista e anti-racista, para mostrar que o
surgimento de uma comunidade cientfica de bioeticistas, nos termos da teoria de
cincia de Thomas Kuhn, pode ser uma realidade no Brasil. Alm disso, analisou-se
o contedo da Carta de Braslia e apontou-se a ocorrncia do Sexto Congresso
Mundial de Biotica, realizado em Braslia, no ano de 2002, como dados essenciais
para indicar a existncia de consensos entre os pesquisadores nacionais.
UNITERMOS: Biotica; Epistemologia; Paradigma.
SUMARY: This article presents an epistemological consideration about Brazilian
Bioethics from the point of view of tendencies whose theories are mainly based on
the social, economics and cultural context of our country. We point out six schools
to show that the emergence of a scientific community of bioethics researchers, in
the terms of Thomas Kuhn scientific theory, might be a reality in Brazil. These
schools are: autonomist bioethics, bioethics of intervention, bioethics of protection,
theology of liberations bioethics,feminist and anti-racist bioethics and critical
bioethics with feminist inspiration. Moreover, we analyze the content of Carta de
Braslia and point out the Sixt World Congress of Bioethics, taken in Brasilia,
2002, as essential facts that indicate the existence of common beliefs among
national researchers.
KEYWORDS: Bioethics; Epistemology; Paradigm.
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1. Introduo
A biotica como um campo de saber surge na dcada de setenta nos Estados
Unidos e passa, atualmente, por uma fase de consolidao. Nos ltimos anos, a
disciplina biotica est sendo includa em currculos de diversos cursos de
graduao, despontando como linha de pesquisa em cursos de ps-graduao e
sendo objeto de estudo de inmeros centros de pesquisa, o que tem contribudo para
o aprofundamento de suas bases tericas.
O desenvolvimento da biotica no Brasil iniciou-se, muito tmida e
pontualmente, nos anos oitenta. Nessa fase, em razo da ausncia de centros de
pesquisa em biotica e produo cientfica nacional, houve a importao de
propostas tericas no estudo da biotica, principalmente da teoria principialista,
formulada nos Estados Unidos da Amrica, por Beauchamp e Childress (1).
Entretanto, a partir dos anos noventa, percebe-se a construo paulatina de uma
perspectiva biotica brasileira, contextualizada e voltada para a elaborao de
aportes tericos que consideram a realidade dos pases latino-americanos. Isso foi
conseqncia direta do surgimento de ncleos de estudo em biotica, que
proporcionaram a pesquisa por bioeticistas ptrios, da publicao da Revista
Biotica pelo Conselho Federal de Medicina, da instituio do Conselho Nacional
de tica em Pesquisa, e da criao da Sociedade Brasileira de Biotica. E, ainda, no
ano de 2002, a biotica brasileira alcanou um importante patamar no debate
mundial ao sediar, em Braslia, o Sexto Congresso Mundial de Biotica. A partir de
uma minuciosa formao das mesas de conferncias e debates, o citado Congresso
propiciou a discusso das principais questes bioticas enfrentadas pelos pases
perifricos, que muitas vezes so relegadas pelos bioeticistas dos pases centrais.
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Ficou ressaltado que questes polticas, econmicas e sociais no podem ficar
apartadas da discusso biotica contempornea.
Assim, no Brasil, podemos destacar dois eixos principais para a
consolidao desse saber: 1) o da construo e aprimoramento de teorias ticas
fundamentadas no contexto brasileiro; 2) o da discusso e elaborao de um
estatuto epistemolgico, cujo cerne o questionamento ontolgico da biotica e sua
caracterizao como campo de conhecimento.
O presente trabalho tem como objetivo trazer discusso esses dois eixos,
de modo que possamos refletir sobre as escolas da biotica elaboradas no Brasil
com base na teoria da cincia. O marco terico adotado quanto s questes
epistemolgicas foi a teoria formulada por Thomas S. Kuhn. Tal opo se deu em
virtude da importncia que Kuhn confere histria para o entendimento da
concepo de cincia, indicando como caminho o estudo da evoluo das idias,
mtodos e tcnicas cientficas (2), contrapondo-se s abordagens generalizantes e
desvinculadas do processo de construo coletiva do saber cientfico. Com efeito, a
proposta desse artigo a compreenso da biotica brasileira, analisando o
movimento evolutivo de suas idias, com base nas teorias elaboradas em seis
escolas especficas.
A teoria kuhniana estabelece que a formao de saberes se funda num
processo permeado por uma tenso constante entre os pensamentos convergentes e
os pensamentos divergentes. Assim, utilizamos a perspectiva de Kuhn para perceber
o processo de consolidao da biotica brasileira, demonstrados pontos de consenso
e dissenso entre as teorias. Segundo o enfoque kuhniano, a existncia de progresso
num campo do saber passa pela prefigurao de consensos mnimos.
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Para a elaborao e discusso dos dois eixos apontados, foram escolhidas
seis escolas da biotica brasileira, so elas: autonomista; biotica de interveno;
biotica da proteo; biotica da teologia da libertao; biotica crtica de
inspirao feminista; e biotica feminista e anti-racista. A despeito da relevncia
das outras escolas existentes, tal escolha teve como base o texto denominado
Panorama da biotica brasileira (3) e a dissertao de mestrado de Mauro Prado
(4). Essa opo tambm considerou a quantidade de publicaes dos tericos das
seis escolas analisadas, que tambm se destacam por suas participaes em
congressos nacionais e internacionais.
Nesse sentido, o presente trabalho pretende contribuir para a reflexo
epistemolgica da biotica brasileira, a partir da teoria kuhniana de cincia.
Inicialmente, delineamos pressupostos elementares da concepo cientfica de
Kuhn. Num segundo momento, apresentamos as caractersticas principais de seis
tendncias tericas. Por ltimo, considerando a noo de matriz disciplinar,
identificamos as acepes comuns entre as escolas, apontamos a construo coletiva
do programa do Sexto Congresso Mundial de Biotica, e analisamos a existncia de
um exemplar na comunidade de bioeticistas brasileiros.
2. Premissas bsicas do pensamento de Kuhn
Para utilizar as propostas de Kuhn em nosso artigo, a primeira noo a ser
exposta a de paradigma. No significado mais corrente, paradigma um modelo
ou padro aceito (5), ou seja, uma construo terica que, em razo de sua
capacidade para a resoluo de problemas relevantes, assim considerados pela
comunidade cientfica, adquiriu um status superior em relao s demais teorias.
No obstante o sentido usual adotado, ele foi criticado por Masterman, a qual
aponta que, em A estrutura das revolues cientficas, o termo paradigma
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utilizado com, aproximadamente, vinte e dois significados diferentes (6). Essa gama
ampla de significados ensejou diversas crticas, que ressaltaram a vagueza da noo
de paradigma e sua impreciso conceitual. Em 1969, como uma tentativa de
resposta aos crticos, Kuhn estabeleceu a idia de matriz disciplinar, redefinindo os
elementos paradigmticos e sua relao com a constituio de um campo do
conhecimento.
A matriz disciplinar refere-se a paradigma em sentido lato e exemplar em
sentido estrito. Dessa forma, passa-se a trabalhar com dois sentidos de paradigma.
No de matriz disciplinar, tem-se o conjunto de elementos consensuais de
determinado grupo de cientistas; no de exemplar, a concreta soluo de um
problema que foi adotada de forma compartilhada pelos membros da comunidade
cientfica.
Primeiramente, importante destacar os componentes da matriz disciplinar:
generalizaes simblicas; modelos; e exemplares. Os trs elementos de uma matriz
disciplinar possuem caractersticas paradigmticas, ou seja, constituem pontos
consensuais de uma comunidade cientfica que so compartilhados por seus
integrantes.
As generalizaes simblicas so equaes fundamentais de uma teoria,
proposies formuladas e aceitas pelo grupo. Essas formulaes destinam-se
prtica e soluo de problemas concretos, na medida em que formulam
proposies cuja aplicao forma uma totalidade. As proposies so inteligveis
apenas a partir de um nmero ilustrativo de aplicaes. A idia de proposio
comum contrape-se a de soluo individual e isolada de um problema, marcada
pela ausncia de liame terico entre as vrias solues, no permitindo com isso, a
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construo de um saber racional, uma vez que os significados dos conceitos
empricos so fixados pelas proposies tericas compartidas.
Os modelos, por sua vez, realizam a interao entre as generalizaes
simblicas e os exemplares, identificando os problemas no resolvidos e assentando
a relao de semelhana entre estes e os exemplares, com o objetivo de que lhes
sejam aplicadas as mesmas proposies utilizadas no exemplar, se houver
identificao suficiente.
A matriz disciplinar se assenta sobre a noo de paradigma decomposto em
elementos consensuais mltiplos. No entanto, aps 1969, segundo Barroso (7),
Kuhn passa a empregar, com maior freqncia, o termo paradigma com o
significado de exemplar. realada por Kuhn a necessidade de consensos para a
caracterizao de um saber como cincia normal, no sentido de que apenas um
ponto bsico deve ser essencialmente consensual numa comunidade cientfica: a
concreta resoluo de determinado problema. Portanto, no presente trabalho,
adotamos a idia de paradigma desenvolvida a partir de 1969, na Estrutura das
revolues cientficas. Utilizaremos as noes de matriz disciplinar e exemplar,
principalmente, em virtude de se tornarem sucedneo da concepo geral de
paradigma.
Considerando a proeminncia da noo de exemplar sobre os demais
componentes da matriz disciplinar, no desenvolvimento da cincia madura, tem-se
uma fase inicial, denominada cincia pr-normal ou pr-consensual, na qual no se
verifica a existncia de elementos mnimos de convergncia, e a fase da cincia
normal ou madura, em que h a presena de exemplares. A passagem da cincia
pr-normal para a cincia madura se d de forma gradativa, podendo, muitas vezes,
levar dcadas. Na cincia madura, h a possibilidade da explicao mais complexa
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da realidade processada, no se verificando a inteno de inovar por meio de
fundamentos, e sim de tentativas constantes de expandir a correspondncia entre a
teoria e o mundo fenomnico, sem, contudo, a v pretenso de predizer e manipular
toda a realidade.
A construo de um saber cientfico, sob o enfoque kuhniano, implica a
participao ativa da comunidade cientfica, na medida em que os consensos
mnimos sero estabelecidos pelos seus membros atravs de atividades constantes,
que envolvem a indicao de tcnicas de ensino/aprendizagem e de comunicao. A
constituio de um objeto cientfico no se encontra dissociado da realidade
concreta. A identificao do objeto atravessa as escolhas de pesquisadores
influenciados por seus valores. Assim, o pensamento kuhniano ressalta a
importncia da atividade da comunidade cientfica para a formatao de um saber.
No nosso entender, as escolas aqui levantadas prefiguram a existncia de
uma comunidade cientfica na biotica brasileira, pois seus formuladores e seus
adeptos encontram-se unidos pelo estudo em comum, com a absoro da mesma
literatura e desenvolvem uma comunicao freqente no interior dos grupos em que
esto inseridos. Nesse sentido, seguindo os passos de Kuhn (8) a fim de identificar a
maturidade epistemolgica da biotica, parte-se para busca dos elementos tericos
mnimos que promovam uma relativa unanimidade entre os bioeticistas ptrios.
Para isso, apresentamos a seguir um perfil das seis escolas da biotica brasileira.
3. Escolas da biotica brasileira
3.1. Escola da biotica autonomista
A corrente denominada biotica autonomista parte da idia de autonomia do
sujeito como norte para o entendimento e resoluo de conflitos ticos no campo da
biotecnologia e medicina. Essa corrente vem sendo desenvolvida por Marco Segre,
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conforme se pode verificar em vrios artigos seus, bem como no livro, em co-
autoria com Cludio Cohen, intitulado Biotica (9).
Segre estabelece uma diferenciao entre moral e tica com base nos
conceitos de autonomia e heteronomia kantianos. A moral, caracterizada como
heternoma, comparada idia de superego advinda da psicanlise, na medida em
que seria a introjeo de valores impostos e aceitos sob o medo do castigo. Essa
moral, fixada de forma autoritria atravs dos vrios cdigos de conduta presentes
na sociedade, no revela opo normativa livre e consciente do sujeito, portanto,
consoante Segre, incapaz de fundamentar a autonomia. Assim, se a moral ou
qualquer cdigo de conduta infundido exteriormente ao sujeito no podem embasar
uma biotica autnoma, dever-se- recorrer noo de tica. Para Segre, a tica no
se subsume racionalidade kantiana, embora considere que a autonomia advm da
faculdade do sujeito de se auto-legislar, uma vez que acrescenta a emoo ao
processo de constituio de normas prprias.
A emoo um fator de relevncia equnime razo na percepo e
elaborao dos conflitos, pois o inconsciente, noo indispensvel para o
entendimento de autonomia segundo Segre, tem como substrato os sentimentos.
Dessa forma, o sujeito, ao processar um conflito tico, coloca-se como racional e
concomitantemente como ser crdulo, no afastando suas crenas de seu
posicionamento tico; assim, a pluralidade de crenas e sentimentos no deve ser
desconsiderada na apreciao de qualquer conflito tico.
A condio tica autnoma, ou seja, a partir da percepo individual do
conflito, fundamentada na emoo e na razo, o sujeito constri sua norma de forma
coerente. A coerncia um dado ressaltado por Segre, sendo considerada resultado
do equilbrio emocional adquirido a partir da percepo dos sentimentos
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conflitantes e do ajustamento entre eles, ou seja, uma conseqncia do
desenvolvimento do ego.
Com efeito, o enfoque dado por Segre autonomia parte de noes
psicanalticas, contrapondo moral atrelada ao superego tica vinculada ao
ego. A tica autonomista permite a crtica, uma vez que nenhum corpo normativo
aceito sem a avaliao do ego; por outro lado, a moral recepcionada a partir da
introjeo de normas decorrente do medo do castigo ou do anseio pelo
reconhecimento. A tica predominantemente individual, ligada s noes
intrnsecas ao sujeito, e apenas perpassando por ele, os conflitos podero ser
dirimidos. Ressaltando a acepo do sujeito como ncleo de sua teoria, assenta
Segre que o princpio fundamental da tica o respeito ao ser humano, entendido
como ser autnomo e apto a atuar socialmente (10).
Na relao entre a tica social e a pessoal deve-se levar em conta as
emanaes ticas de cada um dos sujeitos, a fim de ajust-las necessidade da
coexistncia humana. Desse modo, as decises de mbito social apenas sero postas
se houver instncias de debate permissoras da manifestao da autonomia
individual. O ponto central, assim, o posicionamento individual diante dos
dilemas ticos, porque cada sujeito, com suas particularidades, adotar uma opo
em face das questes bioticas. Ainda, segundo a biotica autonomista, em razo da
pluralidade axiolgica, somente a biotica laica pode ser manifestao da
autonomia, uma vez que a religio baseia-se em hierarquizao e assentamento de
valores.
Por fim, sob a tica da biotica autonomista, qualquer posicionamento deve
considerar a liberdade individual e a possibilidade de se perceber conflitos e fazer
opes fundamentadas nos sentimentos e racionalidade singulares, sem o recurso a
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um cdigo normativo prvio ou superior, salvo se essa hiptese representar uma
escolha deliberada do sujeito autnomo, realizada aps o crivo de seu ego.
3.2. Escola da biotica de interveno
A biotica de interveno ou biotica dura se insere no movimento que
intitulado como perspectiva crtica brasileira. A biotica brasileira, na dcada de
oitenta e incio de noventa, basicamente se reportava ao arcabouo terico de
Beauchamp e Childress (11), fundamentado em quatro princpios: autonomia,
beneficncia, no-maleficncia e justia. Entretanto, com o desenvolvimento da
pesquisa em biotica no Brasil, alguns bioeticistas nacionais, dentre eles Volnei
Garrafa, Dora Porto e Mauro Prado, principais expoentes da biotica de
interveno, rechaaram a importao descontextualizada de teorias ticas
estrangeiras com vistas formulao de uma teoria que se adequasse s
contingncias de um pas perifrico com grave quadro de excluso social.
Assim, a biotica de interveno reflete o processo de elaborao de uma
teoria que inclua a realidade scio-econmica brasileira e os problemas no campo
da sade e da biotecnologia decorrentes desse contexto. Para tanto, a fim de
demarcar o objeto que separa a biotica brasileira da produzida nos pases centrais,
Garrafa formula a noo de biotica das situaes emergentes, abrangendo aqueles
conflitos que surgiram em razo do desenvolvimento biotecnolgico, e biotica das
situaes persistentes, considerando as questes que h muito esto presentes nos
debates ticos, como, por exemplo, o aborto, a eutansia e as relacionadas
alocao de recursos sanitrios, discriminao e excluso social (12). Com isso,
a biotica sob essa perspectiva tem como principal objeto situaes persistentes
originadas da desigualdade social, sob o vis da defesa dos excludos e dos
vulnerveis.
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A biotica de interveno critica a atitude apoltica de algumas teorias
estrangeiras e enfatiza a necessidade de se construir uma biotica que intervenha
diretamente na realidade. Assim, indica a necessidade de premissas capazes de
embasar prticas interferentes no contexto scio-econmico e cultural e que
percebam a pluralidade moral presente nas sociedades contemporneas.
Partindo do pressuposto de que os problemas advindos da desigualdade
social nacional e internacional devem ser foco da biotica desenvolvida em um pas
perifrico, a biotica de interveno adota, na esfera pblica, o consequencialismo
solidrio, e na esfera privada, a contextualizao dos conflitos ticos. No mbito
coletivo, enfatiza a responsabilidade do Estado no que tange soluo dos dilemas
persistentes, principalmente a proteo dos vulnerveis e dos excludos. Desse
modo, legitima-se o princpio da proteo como recurso a ser adotado pelo Estado
a fim de justificar a defesa e o provimento do bem-estar da populao (13).
Conforme os primeiros delineamentos da biotica de interveno, duas
referncias tericas so utilizadas: a finitude dos recursos naturais e a questo
relacionada corporalidade referente ao prazer e a dor (14). ressaltada a
necessidade de controle do desenvolvimento desenfreado da tecnologia e da
indstria, estimulado pela sociedade de consumo, aliada obrigao de se repor
constantemente os recursos renovveis extrados. Segundo a biotica de
interveno, esse pode ser um ponto tico universal de convergncia entre as
pessoas envolvidas com as questes ambientais e preocupadas com o futuro do
planeta. Tambm so ressaltadas por essa teoria as sensaes de prazer e dor, que
apesar de serem diferentes para uns e outros, so passveis de serem percebidas por
qualquer ser humano, por indicarem uma esfera de contato entre todas as pessoas,
no obstante possurem posturas ticas completamente divergentes. Desse modo, o
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pluralismo tico contemporneo apenas pode ser enfrentado no nvel da
corporalidade, considerando o prazer e a dor como marcos para orientaes
valorativas (15). Entretanto, enquanto no se verifica a consecuo desse processo,
h que se recorrer a parmetros ticos universais, como os direitos humanos
reproduzidos na Declarao Universal dos Direitos Humanos.
A biotica de interveno se revela como uma perspectiva terica ainda em
construo, mas com estrutura alicerada sobre premissas claras. Na mesma medida
que se mostra fundamental a aceitao do pluralismo moral, a biotica de
interveno tambm invoca a necessidade de uma biotica laica, ao propor a
elaborao de uma teoria desvencilhada de cdigos, normas ou qualquer parmetro
de conduta fechado. Defende que a biotica deve ser pautada sob a gide da
liberdade, sem, contudo, se apartar de algumas finalidades bsicas, tais como: a
tutela dos excludos; a afirmao do papel do Estado; o respeito aos direitos
humanos. Essas so as alternativas apresentadas para se combater as injustias
sociais.
Portanto, sob o vis da biotica de interveno, ao Estado atribui-se o papel
irrenuncivel de intervir diretamente em benefcio dos vulnerveis. Para tanto
indispensvel o enfrentamento da questo acerca da alocao de recursos sanitrios,
uma das situaes apontadas pelos tericos da biotica de interveno com uma das
mais relevantes para a biotica brasileira. Desta forma, conclui-se que a biotica de
interveno no apenas trata dos micro-problemas. Ao constatar a insuficincia
terica do principialismo para lidar com os macro-problemas, essa escola da
biotica entendeu que apenas o estudo aprofundado dos macro-problemas poderia,
de fato, contribuir para a construo de um pensamento em biotica identificado
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com a realidade prpria dos pases perifricos, nos quais as questes de natureza
macro se revelam muito mais prementes.
3.3. Escola da biotica da proteo
A biotica da proteo construo dos bioeticistas Fermin Roland
Schramm e Miguel Kottow. No artigo mais elucidativo sobre a biotica da proteo
(16), h uma crtica contundente postura das correntes predominantes na biotica
anglo-americana, quanto ao destaque conferido aos problemas ticos advindos da
relao mdico-paciente e quanto teoria tica fundamentada nos quatro princpios
desenvolvida por Beauchamp e Childress. Assim, Schramm e Kottow apontam que
a problemtica em torno da sade pblica ficou renegada, uma vez que o modelo
principialista no desenvolveu aportes tericos capazes de lidar com os dilemas
especficos no mbito dessas questes. Como proposta, os referidos bioeticistas
apresentam o princpio da proteo.
Antes de formularem as bases do princpio da proteo, demonstram que o
princpio da solidariedade, desenvolvido por Callahan (17), e a tica da
responsabilidade, exposta por Jonas e Lvinas (18), no so hbeis para lidar com
o papel do Estado diante dos mais frgeis e excludos, no obstante reconhecerem a
importncia desses conceitos para a biotica.
O princpio da proteo se fundamenta no papel mais elementar do Estado,
que o de proteger a integridade fsica e patrimonial de todos os indivduos que se
encontram em seu territrio, funo essa reconhecida desde o sculo XVIII.
Contudo, ressaltam que, com o advento do Estado do bem-estar social, ampliaram-
se as prestaes estatais, ou seja, passa a se considerar dever do Estado no apenas
o respeito s liberdades pblicas, como tambm a prestao positiva de bens
sociais. A proteo consiste em assegurar aos indivduos determinadas prestaes
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que os possibilitem desenvolverem-se plenamente alm de atender a outras
necessidades e interesses individuais e coletivos. Schramm e Kottow (19)
enumeram as caractersticas do princpio da proteo, quais sejam: a gratuidade,
no h um compromisso prvio de assumir uma atitude protetora; a vinculao, a
atitude, uma vez assumida, torna-se um dever; a segurana efetiva das necessidades
do afetado.
Segundo a biotica da proteo, cabe ao Estado assumir obrigaes na esfera
da sade pblica sob o fundamento de uma responsabilidade social relacionada aos
necessitados. Entretanto, salientam que no se deve confundir proteo com
paternalismo, pois, sob o vis da proteo, os agentes estatais apenas podem atuar
em conformidade com as determinaes preestabelecidas de forma coletiva. Assim,
uma vez decididas pela sociedade certas polticas sanitrias, cabe ao Estado, de
forma irremedivel, contempl-las.
A biotica da proteo parte do pressuposto de que a sade essencial para
a qualidade de vida e, sem a sua tutela, no h como se operar o desenvolvimento
de potencialidades pessoais. Da mesma forma, apenas atravs do Estado, a sade
pode ser protegida, ou seja, no h como indivduos isolados exercerem
satisfatoriamente a proteo defensiva, contra o adoecimento, ou proativa,
salvaguarda de formas de viver saudveis (20).
A despeito da imperatividade da atuao estatal a fim de propiciar bens em
sade, a biotica da proteo no afasta a necessidade de se respeitar a pluralidade
axiolgica presente nas sociedades atuais e a incorporao de uma moralidade laica
(21). Desta forma, Schramm a define como uma biotica laica que possui a tarefa
de proteo dos mais desamparados com intuito de alcanar a justia social.
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16
Em textos mais recentes, percebe-se a aplicabilidade da biotica da proteo
em dilemas ticos de diferentes naturezas, a despeito de ter se originado sob a tica
da responsabilidade pblica, verifica-se que, em razo da riqueza argumentativa,
pode ser aplicada ao mbito interpessoal. Nas relaes entre indivduos, a biotica
da proteo tambm pode vir a desempenhar a tarefa fundamental de reequilibrar
relaes originalmente desmedidas.
3.4. Escola da biotica da teologia da libertao
A partir das reflexes de Mrcio Fabri dos Anjos, a biotica brasileira
recebeu muitas influncias da denominada Teologia da Libertao. De forma muito
sucinta, essa corrente teolgica v a presena de Deus, Pai/Me, como o grande
Criador do mundo. Os seres humanos so vistos como co-criadores do mundo e
responsveis pela conduo de si mesmos Vida plena. J as potencialidades
humanas so dons a serem desenvolvidos ao longo da existncia. (22). A escola que
ser aqui analisada prope uma interface entre os conceitos teolgicos ocidentais
catlicos e os da biotica.
O princpio fundamental da tese defendida pelos telogos est na existncia
de uma mstica que permeia a biotica, tanto quanto outros ramos do saber
humano como, por exemplo, a poltica e a economia. A terminologia mstica por
ser entendida partindo do enfoque etimolgico que significa as razes e motivaes
ocultas que sustentam os critrios, as argumentaes, as propostas de atitudes e as
normas em Biotica. (23) Tambm pode ser compreendida como os ideais, as
projees utpicas, ou as esperanas dos tericos (24).
Acrescenta-se noo de mstica, a existncia de campos de reflexo
comum entre esses dois saberes, tais como: o avano da cincia e da tecnologia
vivido pela sociedade contempornea; as novas interpretaes dos significados e do
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prprio sentido da vida; a relao dos seres humanos entre si e destes com o meio
ambiente. Os telogos acreditam que muitos bioeticistas, diferentemente do que
ocorre com grande parte dos acadmicos dedicados a outras reas do saber, so
tocados por um notrio senso de justia, solidariedade e humanismo (25).
A Teologia da Libertao, em uma postura coerente com seus limites em
lidar com um saber plural e secular como a biotica, estabelece uma proposta de
apenas dar contribuies multidisciplinariedade caracterstica desse ramo do
conhecimento humano. Podemos ressaltar a sugesto de se perceber as questes
bioticas a partir de trs dimenses que se inter-relacionam: questes mini-
sociais; questes midi-sociais; e questes macro-sociais. As primeiras podem
ser entendidas como aquelas que contemplam as relaes interpessoais, a exemplo
das familiares, das existentes entre o mdico e o doente etc. As segundas podem ser
entendidas como as que envolvem iniciativas institucionais e grupais, exemplo as
vividas pelos grupos de risco, grupos de pesquisa etc. J as terceiras trabalham com
as grandes estruturas e os sistemas de vida social, como os organismos polticos da
rea de sade, questes da socializao de recursos para a sade etc (26).
A escola da Teologia da Libertao, de maneira muito peculiar, percebe o
Brasil e todos os pases da Amrica Latina como terrenos muito frteis para sua
atuao. Devido s inegveis desigualdades sociais desses pases, um dos principais
focos de ateno dos telogos, os pobres so vistos como os que esto em condio
mais vulnervel na sociedade. Portanto, perceptvel o engajamento scio-poltico
de suas teorias. O texto de Anjos denominado Biotica nas desigualdades sociais
(27) um exemplo clssico disso.
Dessa forma, a interface da biotica com a teologia tem como objetivo
essencial realizar o dilogo entre cincia e religio. H muitos preconceitos gerados
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em torno da Igreja como inibidora do avano cientfico (28). Independentemente de
quem tenha razo, por meio desse dilogo muitas questes podero ser melhor
compreendidas e somadas criao de um lugar comum onde religiosos e pessoas
no vinculadas aos preceitos teolgicos possam intercambiar idias e reformul-las,
quando entenderem necessrio, em prol de um bem maior que a construo de
uma sociedade mais justa e solidria.
3.5. Escola da biotica crtica de inspirao feminista
A biotica crtica de inspirao feminista, no contexto brasileiro, surgiu
como uma resposta a certas questes ticas que dizem respeito principalmente
sade e ao papel da mulher na sociedade.
Duas pesquisadoras despontam nessa tendncia: Dbora Diniz e Marilena
Corra. O texto intitulado Biotica feminista: o resgate do conceito de
vulnerabilidade (29) demonstra didaticamente como a construo social do papel
da mulher pode distorcer o sentimento de autonomia na hora da tomada de
determinadas decises. Um exemplo bastante elucidativo a opo pelo uso das
novas tecnologias de reproduo, normalmente invasivas e de alto custo financeiro
e emocional, em caso de impossibilidade de gravidez natural. O que as autoras
denominaram de vulnerabilidade moral da mulher perpassa pelas reflexes acerca
da quase-obrigao de toda mulher gerar um filho como parte do imaginrio social.
Para explicar a proposta da biotica feminista, destacam que esta no deve
ser confundida com um discurso sexista. Esse rtulo visto como uma forma de
mascarar e perpetuar os padres de desigualdade e opresso existentes. Lembram a
necessidade de compreenso do significado, de um lado, de vulnerabilidade, e do
outro, de diferena. A diferena pode ser entendida como um valor moral fruto de
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19
conquistas histricas da humanidade na luta por uma convivncia democrtica em
que a dignidade e a liberdade dos indivduos so princpios essenciais (30).
Argumentam quanto ao consenso de que homens e mulheres so diferentes,
principalmente se considerarmos aspectos fisiolgicos. No entanto, enfatizam que
isso no significa dizer que a insero social das mulheres nas sociedades
contemporneas deva continuar subjugada clssica dominao masculina que
fragiliza, oprime e vulnerabiliza a condio feminina (31).
3.6. Escola da biotica feminista e anti-racista
A presente escola possui como figura representativa a bioeticista Ftima
Oliveira.O atributo de anti-racista decorrente da crescente tomada de conscincia
de toda a sociedade com relao necessidade de um posicionamento nesse sentido,
assim como de aes concretas visando acabar com a perniciosa discriminao
racial no pas. As anlises partem de polmicas em que mulheres e negros so
representantes de grupos em visvel desvantagem no acesso aos bens da vida,
portanto, muitas vezes, se encontram em condies de vulnerabilidade. Como a
biotica um novo saber, permeado de muitas discusses de vanguarda, no
poderia se furtar a refletir questes raciais e de gnero, to importantes
contemporaneidade.
Alm disso, Oliveira aborda a importncia da percepo de tipos de
vulnerabilidade decorrentes da pobreza, tais como a vulnerabilidade social, cultural,
tnica, poltica, econmica, educacional, e de sade. Para a autora, a pobreza e a
fome so empecilhos ao desenvolvimento pleno das potencialidades genticas dos
seres humanos, portanto precisam fazer parte do debate das biocincias (32).
Com isso, considerando as perspectivas feminista e anti-racista como frutos
de elaboraes acadmicas interligadas a teorias sociais e polticas que no
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poderiam ser evitadas em um saber multidisciplinar, percebe-se a disposio da
autora em divulgar outras abordagens de temas bastante discutidos em biotica. So
enfoques necessrios que pretendem driblar o generalismo tico que muitas vezes
deixa de contemplar nuances fundamentais da diferena humana.
Uma vez apresentadas, em traos gerais, as seis tendncias de estudos
brasileiros sobre biotica, expomos, a seguir, nossa proposta de enquadramento da
biotica nacional como matriz disciplinar, considerando a teoria da cincia
formulada por Kuhn.
4. Matriz disciplinar e biotica brasileira
4.1. Generalizaes simblicas
Das seis tendncias, destacamos como pontos consensuais: a postura crtica contra a
adoo automtica de aportes tericos advindos dos pases centrais e a preocupao
em formular teorias que contemplem aspectos da realidade brasileira e dos pases
perifricos como um todo. A construo epistemolgica da biotica brasileira
perpassa pela anlise desses pontos consensuais, com o escopo principal de lhe
fortalecer no cenrio internacional.
Consideramos a biotica como matriz disciplinar, ou seja, um saber
especfico dominado por alguns praticantes que demonstram em suas teorias a
existncia de consensos mnimos. Tais compartilhamentos so decorrentes das
escolhas tericas feitas pelos integrantes das escolas que criam uma comunidade
cientfica. A caracterizao da biotica como campo do saber especfico, no
obstante sua importncia, no ser alvo de discusso neste artigo. Nosso objeto a
anlise da existncia de consensos coletivos entre os bioeticistas brasileiros.
Os consensos mnimos podem ser decompostos em generalizaes
simblicas e exemplares. As generalizaes simblicas so expresses formais
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21
recebidas sem dissenso pelos membros do grupo, e sobre as quais so construdas
as tcnicas de resoluo de problemas. No mbito da biotica, cincia no exata, as
generalizaes simblicas no podem ser situadas na esfera de expresses lgicas e,
sim, como crenas compartilhadas pelos bioeticistas. Assim, uma vez assentadas,
entre os membros da comunidade cientfica, determinadas proposies, qualquer
construo terica ulterior parte dessas premissas, no precisando justific-las
reiteradamente. So esses consensos mnimos que refletem as percepes ticas da
realidade partilhadas pelos bioeticistas.
Se apontamos que os membros da comunidade biotica nacional giram em
torno de uma matriz disciplinar, para se estabelecer as generalizaes simblicas, h
que se buscar proposies compartilhadas entre as diversas escolas. Portanto, as
generalizaes simblicas, compreendidas como noes fundantes gerais, sero
extradas das escolas que formam o arcabouo terico no mbito da biotica
brasileira.
A partir das caractersticas principais das escolas aqui abordadas, podem ser
enumerados elementos comumente aceitos por seus membros. Em primeiro lugar,
destaca-se a proteo de pessoas fragilizadas. Essa fragilidade pode ser decorrente
de condies inerentes pessoa, como sexo, etnia, idade, ou alguma enfermidade,
ou de situaes que tornam os seres humanos mais expostos a influncias externas.
perceptvel que as denominaes variam conforme a escola, contudo, nota-se que
todas atribuem biotica brasileira a tarefa de ressaltar a proteo dos suscetveis,
desamparados (33), excludos (34) (35), com autonomia reduzida, no sentido de
Segre (36), bem como dos oprimidos (37). O primeiro elemento apontado revela o
compromisso da biotica brasileira com a proteo dos frgeis, principalmente ao
destacar o contexto de desigualdade socioeconmica do pas (38) (39) (40).
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22
Como decorrncia do dever de se proteger os frgeis, independentemente da
motivao para classific-los assim, tem-se a necessidade de se estabelecer quem
vai efetivar a proteo. Se algumas pessoas ou parcelas da sociedade brasileira se
encontram em situao de debilidade, medidas devem ser adotadas para que tal
condio seja alterada ou, no mnimo, amenizada. Assim, aponta-se que, partindo
das teorias bioticas tratadas, ao Estado deve ser atribuda a tarefa de proteo da
comunidade, atravs, por exemplo, do monitoramento contnuo da pesquisa
cientfica (41). O Estado possui o papel fundamental e indelegvel de adotar
medidas protetoras (42) e de limitar o poderio econmico (43) refletido nos
interesses mercadolgicos, por meio de produo normativa (44). Constata-se, desta
forma, que a biotica brasileira destaca o Estado como agente principal na
superao de fragilidade pessoal e coletiva. Principalmente, no tocante ao papel
estatal na alocao de recursos e na supresso das iniqidades sociais (45).
A biotica no Brasil assenta-se sobre uma concepo de tica laica ou civil
(46) (47), como o contexto mais adequado para dirimir questes ticas (48),
rechaando a soluo de problemas baseada em parmetros estritamente religiosos,
com diminuto alcance social. No obstante a religiosidade da maioria da populao
brasileira preciso no se trabalhar com dogmas na construo de uma teoria
biotica (49), prescrevendo uma biotica sem concepes apriorsticas (50). Essa
proposio associa-se a outra, compartilhada pelos bioeticistas mencionados,
referente considerao da pluralidade moral contempornea (51) (52). A
inexistncia de uma nica cosmoviso enfaticamente utilizada com o escopo de se
demonstrar a necessidade de se encontrar pontos de interseo entre as diversas
comunidades morais (53). Assim, observa-se que, a biotica brasileira, compartilha
o entendimento de que, independentemente da teoria tica de fundo, as discusses
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23
no podem ser pautadas por um encaminhamento que, a priori, seja excludente de
moralidades antagnicas. Conseqentemente, parte-se do discurso laicizador em
biotica, sem, entretanto, negar-se a dialogar com a abordagem teolgica (54).
O respeito dignidade da pessoa humana outro ponto de destaque nas
escolas apresentadas. A concepo de que a pessoa humana o alicerce axiolgico
da biotica brasileira manifesta. Essa opo valorativa, entretanto, varia de
roupagem nas diversas escolas. A regra que assenta a observncia da dignidade da
pessoa humana (55), algumas vezes, aparece como a necessidade de no violao
dos direitos humanos (56), outras, como a imperiosidade de se respeitar o indivduo
(57) e, ainda, por meio da incorporao dos direitos das mulheres e das vtimas do
racismo como direitos humanos, ressaltados por Oliveira (58). Completando a
escolha axiolgica manifestada pelas escolas apontadas, tem-se para Schramm (59)
as populaes humanas como objeto de tutela.
Os aspectos compartilhados pelos representantes das escolas podem ser
resumidos em: a proteo dos mais frgeis e o papel do Estado nessa tarefa, a
despeito da relevncia conferida sociedade civil (60); a pluralidade moral aliada a
uma biotica laica, sem pressupostos religiosos; e, por fim, o respeito dignidade
da pessoa humana embasada nos direitos humanos como limites inegociveis para
prticas sociais, delineamentos da biotica traduzida para o contexto brasileiro.
Alm disso, percebe-se nitidamente que a comunidade de bioeticistas
brasileiros j manifestou, recentemente, outras formas de consensos. A despeito da
impossibilidade fsica de explorar devidamente a temtica, no se pode deixar de
destacar que a construo coletiva do programa do Sexto Congresso Mundial de
Biotica, realizado entre os dias 30 de outubro e 03 de novembro de 2002, em
Braslia, demonstra cabalmente a existncia de consensos mnimos na biotica
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brasileira. A Comisso Organizadora foi integrada por pessoas provenientes de
diversas tendncias, como, p. ex., Volnei Garrafa, Fermin Roland Schramm, Mrcio
Fabri dos Anjos, Marco Segre, que conseguiram alcanar um entendimento quanto
ao tema oficial e programao cientfica do Congresso. Ou seja, constata-se a
presena da preocupao com a perspectiva da multidisciplinariedade, o respeito ao
pluralismo moral, e o enfoque nos macro-problemas relacionados ao poder e
justia, como pontos de convergncia.
Assim, a temtica do Sexto Congresso Mundial de Biotica, e seus
desdobramentos no que tange escolha dos conferencistas e s sesses constituem
material de extrema relevncia para se aprofundar o estudo, sob a tica kuhniana, da
biotica brasileira. Cabe destacar, ainda, a repercusso mundial do referido
Congresso, principalmente em razo do considervel nmero de participantes e da
presena de bioeticistas de notria importncia, bem como de ter inserido na pauta
da discusso biotica internacional questes at ento no debatidas a contento,
como as relacionadas justia social. Considerando as peculiaridades do Sexto
Congresso, apontamos como imprescindvel, em pesquisas a serem realizadas
futuramente, o estudo do trabalho desenvolvido pela Comisso Organizadora do
Congresso como reproduo de percepes compartilhadas pelos vrios bioeticistas
representativos do pensamento nacional.
4.2. Exemplares
Os exemplares, isto , as solues de problemas aceitas consensualmente
pelo grupo sero aqui abordados conforme a noo de paradigma. De fato, aps a
publicao do psfacio de Estrutura das revolues cientficas, o sentido de
exemplar foi assim compreendido (61): os problemas concretos conjugados com as
solues anudas pelo grupo de pesquisadores formam um exemplar. A existncia
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25
de um exemplar ou exemplos compartilhados fundamental para que um
determinado saber adquira consistncia terica e possa alcanar o status de cincia
normal.
patente que, em razo das escolas da biotica brasileira ainda se
encontrarem em estgio de elaborao terica, a presena de exemplares no
facilmente verificvel. Na verdade, no obstante a relevncia da construo terica,
na aplicabilidade de proposies consensuais e nas suas conseqncias tericas
que se revela a habilidade maior de um bioeticista. Ao conferir respostas
fundamentadas e satisfatrias para problemas em biotica, compreendendo-a como
um saber aplicado, destinado reflexo e conformao de questes no campo da
sade e da biotecnologia, qualquer elaborao terica no pode se apartar da
imperatividade de demandas prticas. Portanto, a busca e anlise de exemplares
de extrema relevncia para a conformao da biotica no Brasil.
Partindo-se do entendimento de exemplar, h que se buscar um problema ao
qual foi conferida uma soluo consensual, compartilhada majoritariamente, pelo
grupo de bioeticistas no Brasil. Apontamos como problema a ser solucionado a
tentativa de alterao do texto da Declarao de Helsinque, iniciada em 1997, e
proposta pelos representantes da Associao Mdica dos Estados Unidos.
A Declarao de Helsinque, elaborada em 1964, o documento que impe
limites ticos da pesquisa em seres humanos, estabelecendo restries s prticas
aparentemente cientficas que violem a autonomia e integridade fsica de pessoas.
Na reunio anual da Associao Mdica Mundial, do ano de 1997, a
delegao da Associao Mdica dos Estados Unidos apresentou vrias propostas
de modificao substancial dos preceitos em vigncia da Declarao. Na 51a
Assemblia Geral da AMM, em 1999, novamente, houve a tentativa de alterao da
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26
Declarao. Entretanto, as sugestes foram apenas registradas no relatrio da
reunio (62) e postergaram sua deliberao para a reunio que seria realizada em
Edimburgo. Na Assemblia Geral da AMM, em Edimburgo, os membros presentes
no aceitaram o inteiro teor das propostas apresentadas pelos representantes norte-
americanos, contudo, foram inseridas algumas modificaes que tornaram o texto
ambguo (63).
Dentre as sugestes de alterao, importante destacar o duplo standard
de tratamento (64). O item 2 do inciso II da Declarao de Helsinque impe que
em qualquer estudo mdico, todos os pacientes incluindo os do grupo controle,
se houver devem ter assegurados os melhores mtodos diagnsticos ou
teraputicos comprovados. Essa regra estabelece que, mesmo diante da falta de
mtodos diagnsticos ou teraputicos no local onde os participantes da pesquisa
residem, esses tm direito que lhes sejam fornecidos os melhores mtodos referidos
comprovados. Sutilmente, pretendem os norte-americanos, membros da Associao
Mdica, alterar a redao do citado dispositivo. Sua inteno que os participantes
da pesquisa tenham garantido apenas os mtodos diagnsticos ou teraputicos que
lhes sejam acessveis, ou seja, disponveis no pas em que residem. Embora tnue a
diferena entre melhores mtodos diagnsticos ou teraputicos comprovados e
melhor mtodo diagnstico, profiltico, ou teraputico que em qualquer outra
situao estaria disponvel (65), o que se prope a estipulao de duplo padro de
pesquisa: um para ser aplicado em pases perifricos e outros em pases centrais
(66), na medida em que nos primeiros, em grande parte, no h qualquer tratamento
disponvel. Portanto, diante das desigualdades sociais existentes no mundo, tem-se
que, nos pases pobres, as pesquisas sero realizadas sem a obrigatoriedade de se
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27
assegurar aos participantes os mtodos j comprovados, acessveis, na maioria das
vezes, apenas populao dos pases ricos.
Ao se deparar com a gravidade do problema concreto tentativa de
modificao de ponto crucial do texto da Declarao de Helsinque a comunidade
de bioeticistas no Brasil se reuniu no Frum Nacional Declarao de Helsinki:
Perspectivas da Sociedade Brasileira e aprovou a Carta de Braslia, em 08 de
fevereiro de 2000. A soluo conferida pelos membros de grupos representativos da
biotica brasileira foi no sentido de que a Declarao de Helsinque deve ser
entendida como um documento consolidador de valores da humanidade, tendo
como base os direitos humanos. Considerou-se, ainda, a necessidade da tutela de
pessoas ou grupos que devem receber cuidados especiais vulnerveis em razo
de no estarem aptas a se protegerem.
A biotica brasileira possui pressupostos consensuais mnimos verificados
nas escolas apresentadas, na constituio da pauta do Sexto Congresso Mundial, e
na fundamentao da Carta de Braslia. A adoo dessas crenas compartilhadas
permite que as formulaes ulteriores avancem, na medida em que no ser mais
necessrio justificar previamente a escolha de tais proposies. Da mesma forma, a
sua efetivao e insero social ser maior, uma vez que um discurso unssono
propicia a divulgao da biotica para maior nmero de pessoas, democratizando-a,
e o enfrentamento de questes ticas de forma comunitria, otimizando as aes dos
bioeticistas, com o alcance de resultados mais slidos.
5. Consideraes finais
A biotica, enquanto campo de saber, apresenta-se de forma pluralista,
acolhendo em seu corpo diferentes teorias ticas. Da mesma forma, as diversas
correntes de pensamento devem procurar contextualizar sua aplicao de acordo
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28
com a realidade observada. Apesar da validade dessas afirmaes, acreditamos que
qualquer saber para se desenvolver e alcanar respaldo social precisa de consensos
mnimos. A existncia de elementos paradigmticos possibilita a consolidao da
comunidade de pesquisadores e a configurao acadmica do saber.
Na realidade, embora plural e relativista, a biotica brasileira possui algumas
proposies centrais e essenciais que no devem ser ignoradas. A elaborao da
Carta de Braslia, no ano 2000, assinada por entes representativos da biotica
nacional e a construo coletiva do programa do Sexto Congresso Mundial de
Biotica, ocorrido no Brasil em 2002, revela a existncia desses elementos
paradigmticos e de uma comunidade cientfica.
Na dcada de noventa, com a emergncia da biotica crtica, os autores
apontados fizeram observaes contundentes quanto adoo descontextualizada
dos princpios, originalmente, decorrentes do Relatrio Belmont (67), e
reelaborados por Beauchamp e Childress (68). O discurso, da maioria, foi no
sentido da necessidade de se rechaar o emprego uniforme de princpios em
primazia do respeito diferena moral verificada nas sociedades contemporneas.
Contudo, a constatao factual da ausncia de uma moralidade comum no
mundo atual no conduz ao entendimento de que no deva haver proposies
consensuais dentro da biotica. A questo acerca da tentativa de alterao de alguns
pontos fundamentais da Declarao de Helsinque paradigmtica nesse sentido. A
adoo do relativismo e o desprezo por proposies inegociveis levam
argumentao exposta por aqueles que sugerem a alterao do item referente ao
duplo padro.
A biotica brasileira, ao se posicionar criticamente em relao teoria
predominante de Beauchamp e Childress (69), e ao absorver o pluralismo moral
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29
contemporneo, no deve rechaar a presena de consensos compartilhados e
principalmente de elementos paradigmticos que servem de ponto de partida para
qualquer discusso tica. Ao contrrio, a proteo dos
vulnerveis/frgeis/excludos/suscetveis; a observncia dos direitos humanos,
compreendidos como limite tico incontestvel; a necessidade de participao de
entes reguladores de condutas, estatais ou supraestatais, capazes de criar imposies
a indivduos, grupos ou comunidades, so paradigmas da biotica brasileira,
comunitariamente aceitos, necessrios para a soluo de conflitos ticos, que no
devem ser menosprezados sob as argumentaes em torno da
contextualizao/relativizao/pluralismo. No caso da Declarao de Helsinque
ficou patente que indispensvel para o fortalecimento da biotica, e para o
aumento de sua capacidade de interferncia na realidade o acolhimento de
proposies paradigmticas.
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