pesavento, sandra. resenha

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PESAVENTO, Sandra  Imaginando o imaginário. Os modelos históricos interpretativos ligados ao pensamento racional e científico, como o historicismo de Ranke e o positivismo de Comte e o marxismo (principalmente sua versão leninista), perduraram até metade do século XX e relegaram ao estudo do imaginário uma posição secundária. O movimento de ruptura a esses modelos se deu a partir do racionalismo cartesiano que, ao instituir o saber científico como única fonte do conhecimento, separava tudo aquilo que poderia ser considerado inventado, fantasioso e “não sério” e por isso, não científico. Na passagem do século XIX para o XX, ainda que as contribuições da psicanálise e da antropologia indicassem para um rompimento ainda mais profundo, essas investidas não foram suficientes para abalar as certezas normativas da razão. Foi a partir do próprio marxismo, com E. P. Thompson, Christopher Hill, Raymond Willians ou da escola dos Annales que a renovação começara acontecer de fato. Nos anos 1980, a história social recaiu sobre a “nova história cultural”, e elegeu novos objetos de estudo, tais como as mentalidades, os valores, crenças, represen tações coletivas, entre outros (PESAVENTO, 1995).  A definição do conceito de imaginári o é bastante fluída e segundo Jacques Le Goff, um tanto imprecisa, vaga, ambígua (p. 49, 1990). Para Philipe Ariès, este conceito se aproxima da noção de inconsciente coletivo, “uma espécie de estrutura mental ou visão de mundo dos tempos passados” (PESAVENTO, p. 13, 1995). Ne sta esteira, Michel Vovelle concorda com a imprecisão do termo e reitera que este se aproxima de uma “visão de mundo”, e que em outras palavras, constitui “o que não está formulado, o que permanece aparentemente como não significante, o que se conserva como muito encoberto ao nível das motivações inconsci entes.” (p. 19, 1987). É importante destacar que o imaginário parte de um campo de representações e, como expressão do pensamento, se manifesta por meio de imagens e discursos que pretendem definir a realidade.  Essa “realidade” , por outro lado, não expressa literalmente o “real”, pois ela é sempre apreendida a partir dos interesses e bagagem social de cada individuo. Assim, “no domínio da representação, as coisas ditas, pensadas e expressas têm outro sentido além daquele manifesto. [...] O imaginário enuncia, se reporta e evoca outra coisa não explícita e não presente” (PESAVENTO, p. 15, 1995). É como se o imaginário reportasse sempre a um “outro”, submerso no inconscien te coletivo. Só é possível decifrar a representação a partir da articulação texto/contexto. [....] Para Ginzburg, se a realidade parece opaca e incompreensível, é

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  • 5/21/2018 PESAVENTO, Sandra. Resenha

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    PESAVENTO, SandraImaginando o imaginrio.

    Os modelos histricos interpretativos ligados ao pensamento racional e

    cientfico, como o historicismo de Ranke e o positivismo de Comte e o marxismo

    (principalmente sua verso leninista), perduraram at metade do sculo XX e

    relegaram ao estudo do imaginrio uma posio secundria. O movimento de ruptura

    a esses modelos se deu a partir do racionalismo cartesiano que, ao instituir o saber

    cientfico como nica fonte do conhecimento, separava tudo aquilo que poderia ser

    considerado inventado, fantasioso e no srio e por isso, no cientfico. Na

    passagem do sculo XIX para o XX, ainda que as contribuies da psicanlise e da

    antropologia indicassem para um rompimento ainda mais profundo, essas investidas

    no foram suficientes para abalar as certezas normativas da razo. Foi a partir do

    prprio marxismo, com E. P. Thompson, Christopher Hill, Raymond Willians ou daescola dos Annales que a renovao comeara acontecer de fato. Nos anos 1980, a

    histria social recaiu sobre a nova histria cultural, e elegeu novos objetos de estudo,

    tais como as mentalidades, os valores, crenas, representaes coletivas, entre outros

    (PESAVENTO, 1995).

    A definio do conceito de imaginrio bastante fluda e segundo Jacques

    Le Goff, um tanto imprecisa, vaga, ambgua (p. 49, 1990). Para Philipe Aris, este

    conceito se aproxima da noo de inconsciente coletivo, uma espcie de estrutura

    mental ou viso de mundo dos tempos passados (PESAVENTO, p. 13, 1995). Nesta

    esteira, Michel Vovelle concorda com a impreciso do termo e reitera que este se

    aproxima de uma viso de mundo, e que em outras palavras, constitui o que no

    est formulado, o que permanece aparentemente como no significante, o que se

    conserva como muito encoberto ao nvel das motivaes inconscientes. (p. 19, 1987).

    importante destacar que o imaginrio parte de um campo de

    representaes e, como expresso do pensamento, se manifesta por meio de imagens

    e discursos que pretendem definir a realidade.Essa realidade, por outro lado, no

    expressa literalmente o real, pois ela sempre apreendida a partir dos interesses e

    bagagem social de cada individuo. Assim, no domnio da representao, as coisas

    ditas, pensadas e expressas tm outro sentido alm daquele manifesto. [...] O

    imaginrio enuncia, se reporta e evoca outra coisa no explcita e no presente

    (PESAVENTO, p. 15, 1995). como se o imaginrio reportasse sempre a um outro,

    submerso no inconsciente coletivo.

    S possvel decifrar a representao a partir da articulaotexto/contexto. [....] Para Ginzburg, se a realidade parece opaca e incompreensvel,

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    preciso buscar indcios, estabelecer relaes e procurar significados em dados

    aparentemente irrelevantes, mas que adquirem sentido dentro de um contexto mais

    amplo. (PESAVENTO, p. 17-18, 1995).

    Para Chartier, a partir dos papis sociais que as representaes soconstrudas, assim, no h uma histria cultural desconectada de uma histria social.

    Alm disso, no h oposio entre mundo real e mundo imaginrio e a

    representao do real, ou o imaginrio, , em si, elemento de transformao do real e

    de atribuio de sentido ao mundo (PESAVENTO, p. 18, 1995).

    Para Bourdieu, o campo das representaes um espao de lutas sociais

    e de um jogo de poder.

    Para Clifford Geertz, a cultura um sistema simblico cuja decifraoimplica ir em busca de significados. Os significados s podem ser obtidos atravs de

    uma descrio densa e cujo contexto se mostra como fundamental para dar sentido

    representao. Chartier orienta o caminho para decifrar a construo de um sentido, e

    ressalta a necessidade de um cruzamento entre prticas sociais e historicamente

    diferenciadas, com as representaes feitas. (PESAVENTO, p. 19, 1995).

    A questo de natureza simblica das imagens remete a noo de

    alegoria: a imagem , pois, revelao de uma outra coisa que no ela prpria. Pensaralegoricamente implica referir-se a uma coisa mas apontar para outra, para um sentido

    mais alm. Mais do que isso, implica realizar a representao concrecreta de uma

    ideia abstrata. Subjacente ao que se v, se l ou se imagina, a alegoria comporta um

    outro contedo. (PESAVENTO, p. 22, 1995).

    Utopia autoritria? Questo moral? a sociedade constitui seu

    simbolismo, mas no dentro de uma liberdade absoluta, pois ela se apoia no que j

    existe. Tais representaes teriam, na sua concepo, um fundo de apoio na

    concentricidade das condies reais de existncia. Ou seja, as ideias-imagens

    precisam ter um mnimo de verossimilhana com o mundo vivido para que tenham

    aceitao social, para que sejam crveis. (PESAVENTO, p. 22, 1995).

    ESTE O PAS QUE VAI PRA FRENTE O imaginrio comporta um

    elemento utpico como forma especfica de ordenao de sonhos e desejos coletivos.

    A utopia a projeo, no domnio do imaginrio de uma de uma sociedade

    radicalmente outra, de um mundo em tudo melhor que o mundo real. (PESAVENTO,

    p. 22, 1995).

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    Manipulao do imaginrio No se pode esquecer que o imaginrio

    uma das foras reguladoras da vida coletiva, normatizando condutas e pautando perfis

    adequados ao sistema.

    Existem 3 instancias de realizao do imaginrio: a do suporte naconcretude do real, a da utopia e a ideolgica.

    Progresso no h como negar a natureza ideolgica das ideias do

    progresso: o discurso da burguesia triunfante contava com esta ideia que

    consubstanciava as excelncias do sistema e a sua capacidade de construir um

    mundo cada vez melhor. Por outro lado, a conquista antecipada e a meta da

    sociedade do bem estar foram tambm uma utopia que acalentou os sonhos do sculo

    XIX.