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MITOS E LENDAS EGÍPCIAS PHILIP ARDAGH

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MITOS E LENDASEGÍPCIAS

PHILIP ARDAGH

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Mitos e Lendas Egípcias

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MITOS E LENDAS EGÍPCIASCONTADAS POR PHILIP ARDAGHILUSTRADAS PORDANUTA MAYERMITO OU LENDA?DIVINDADES DO ANTIGO EGIPTOO ASSASSÍNIO DE UM DEUSÀ PROCURA DE OSíRISA LUTA PELO TRONOO FIM DA HUMANIDADEO FARAÓ E O LADRÃONAUFRAGADOS NA ILHA DE KAO NOME SECRETO DE RÁÍNDICE REMISSIVOEDITORIAL ESTAMPA

MITO ou LENDA?Muito antes de as pessoas saberem ler ou escrever, as histórias eram transmitidasoralmente. De cada vez que eram contadas, mudavam um pouco, acrescentando-se umanova personagem aqui e uma mudança na trama acolá.Os mitos e as lendas nasceram dessas histórias em constante mutação.

O QUE É UM MITO?Um mito é uma história tradicional que não se baseia em algo que realmente aconteceue, normalmente, fala de seres sobrenaturais. Os mitos são inventados, mas ajudam aexplicar os costumes locais ou os fenómenos naturais.

O QUE É UMA LENDA?A lenda assemelha-se muito ao mito. A diferença está no facto de a lenda poder basear-se num acontecimento real ou numa pessoa que realmente existiu. O que não significaque a história não tenha mudado ao longo dos anos.

ANTIGO EGIPTO

O Egipto era originariamente constituído por dois países. Há cerca de 5OOO anos, porvolta de 3000 a. C., esses países tornaram-se um só. Nos 3000 anos seguintes, o Egiptofoi um dos países mais ricos e mais poderosos do mundo.O olho wedjat simbolizava o olho dos deuses Rã e Hórus. Segundo o mito, o olho deHórus foi arrancado, mas, como por milagre, voltou a crescer. O olho wedjat era tidocomo um amuleto da sorte.

O VALE DO NILOA maior parte do Egipto era conhecida como Terra Vermelha. Era o deserto quente eseco, e poucas pessoas o habitavam. Quase todos os egípcios viviam na Terra Negra, novale do rio Nilo, Sempre que o rio transbordava, a terra ficava mais fértil e mais escura,razão pela qual recebeu esta denominação.

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PIRÂMIDES E FARAÓSO Egipto é famoso pelas suas pirâmides, que ainda se mantêm de pé nos nossos dias.Eram os túmulos dos antigos governantes, às vezes chamados faraós. As pessoasacreditavam na qualidade divina dos faraós. Os últimos foram sepultados nas colinasrochosas ou em túmulos subterrâneos num local chamado vale dos Reis.

A ESCRITA ANTIGAOs antigos Egípcios cobriam os seus monumentos de hieróglifos, uma linguagem escritaformada por letras e símbolos. Muitas vezes, estas letras eram esculpidas na pedra, eainda hoje podem ser vistas. Muitas histórias eram escritas em papiro - uma espécie depapel feito de juncos entrelaçados. Chegou até nós um número surpreendente depapiros.

DECIFRAR O CÓDIGOSó na década de 2O do século passado é que os peritos conseguiram decifrar oshieróglifos egípcios. Antes dessa altura, os historiadores baseavam-se nos registosescritos de outras línguas, tal como o grego antigo. Os antigos Gregos tinham registosmuito precisos das crenças dos antigos Egípcios.As zonas habitadas pelos antigos Egípcios localizavam-se na Terra Negra, nos valesférteis do rio Nilo. Este encontrava-se rodeado por desertos a Terra Vermelha.

UMA LENDA MODERNAOs mitos e as lendas deste livro são todas do Antigo Egipto. Existe uma outra lendaegípcia famosa, mas moderna - a maldição de Tutankámon. O túmulo de Tutankamon,um jovem rei do Antigo Egipto, foi descoberto no vale dos Reis em 1922. A busca foifinanciada por um homem chamado Lord Carnarvon. Começou a correr o boato de que otúmulo estava amaldiçoado. Segundo esta lenda moderna, todas as luzes se apagaramno Cairo no momento em que Lord Carnarvon morreu e, em Inglaterra, o seu cão morreutambém.

DIVINDADES DO ANTIGO EGIPTOOs mitos e as lendas dos antigos Egípcios foram criados a partir de muitos credosdiferentes. Cada aldeia e cidade adorava os seus próprios deuses e deusas. Apopularidade de alguns espalhou-se, e mais tarde as histórias desses deuses fundiram-se para formar aquilo que conhecemos como mitologia do Antigo Egipto.

MUITOS DEUSES, A MESMA FUNÇÃOUma das consequências do facto de os antigos Egípcios adorarem muitos deuses é quemuitos destes tinham os mesmos deveres. Por exemplo, havia muitos deuses do Sol.Cada deus era adorado por um grupo diferente de pessoas e nenhuma dessas pessoasacreditava em todos os deuses. Mais tarde, Rã tomou-se conhecido como deus do Sol etodos os demais deuses do Sol foram considerados meras manifestações de Rã. osdiferentes deuses fundiram-se num Só. Em MARCHA o comércio deve terdesempenhado um papel importante na divulgação dos mitos e das lendas. Dado que aspessoas das diferentes partes do Egipto viajavam pela Terra Negra a vender coisas,provavelmente partilhavam as suas histórias e as suas crenças. As pessoas começarama ouvir falar de diferentes deuses, deusas, mitos e lendas e assimilaram-nos.

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A CRIAÇÃOAté uma coisa tão importante corno a criação da Terra e do povo que a habitava eracontada em muitas versões diferentes. Urna das primeiras, originária da cidade deHeliópolis, dizia que Áton era o criador. Mais tarde, quando Rã se tornou o rai is maispoderoso de todos os deuses egípcios, ele próprio se tornou o criador e - nessa forma eraconhecido como Rá-Áton.

NOMES MAIS CONHECIDOSNo Antigo Egipto eram adorados centenas de deuses e deusas. Segue-se uma lista dosmais importantes. RÁ O deus do Sol. Aparecia sob multas formas. Muitas vezesrepresentado corri cabeça de falcão. Tornou-se o deus mais importante. Os deuses comque ele se fundiu viam acrescentada ao seu nome a palavra Rã (por exemplo Rá-Áton eÁmon-Rá).

ÁTON (mais tarde RÁ-ÁTON) "O Tudo". O deus criador. Pai de Sliu e Tefinit. SHU Pai deNut, a deusa do céu. Era seu dever mantê-la acima de Geb, a Terra, para que os doisnunca se juntassem.TEI`NUT Irmã e mulher de Sliu. Uma deusa da Lua. Mãe de Nut e Geb. NUT A deusa docéu, sustentada pelo pai, Sliu. Mulher de Geb. Mãe de Osíris, ísis, Seth e Néftis.GEB A própria Terra. Todas as plantas e árvores cresciam nas suas costas. Marido deNut. Pai de Osíris, ísis, Seth e Néftis.OSíRIS Senhor dos mortos. Irmão e marido de ísis. Pai de Hórus. Representado multasvezes com um corpo mumificado, envolto em ligaduras.íSIS Deusa da fertilidade. Senhora da magia. Irmã e mulher de Osíris. Mãe de Hórus.Tornou-se a mais poderosa de todas as deusas e deuses.SETH Deus do caos e da confusão. Filho mau de Geb e Nut. Lutou contra Hóruspara governar o Egipto.HóRUS Filho de ísis e Osíris. Tinha cabeça de falcão e corpo de humano. Lutou contraSeth para governar o Egipto.ANúBIS Deus dos mortos, com cabeça de chacal. Assistente de Osíris.ÁMON (mais tarde ÁMON-RÁ) Rei dos deuses na mitologia posterior, mais tardeconsiderado outra manifestação de Rã.BASTET A deusa-mãe representada por vezes como uma gata. Filha de Rã, irmã deHátor e Seklimet.HÁTOR Adorada como vaca. Por vezes, tomava a forma de uma leoa enfurecida. Filhade Rã, irmã de Bastet e Sekhmet.SEKl-IMET Filha de Rã, com cabeça de leoa, irmã de Bastet e Hátor.

NOTA DO AUTOROs mitos e as lendas de diferentes culturas são contados de diferentes maneiras. Oobjectivo deste livro é contar novas versões destas velhas histórias e não tentarapresentá-las da forma como teriam sido contadas, segundo a tradição. Podem ser lidasisoladamente, ou umas a seguir às outras, como uma história. Espero que gostem delase que este livro vos faça querer saber mais sobre os antigos Egípcios.

Rã, o poderoso deus do Sol, fez de Osíris e ísis o rei e a rainha do Egipto. Emborafossem deuses, andavam entre os humanos espalhando sabedoria e compreensão. Tudoteria corrido bem, se o irmão deles, Seth, não tivesse sentido ciúmes do seu poder.O povo do Egipto amava o seu rei e a sua rainha. Osíris e ísis tornavam agradável a vidado seus súbditos. Ensinavam ao povo egípcio a melhor forma de tratar da terra e levavam

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ao seu país a lei e a ordem, para que todos pudessem ser tratados com justiça. Em troca,os Egípcios tomavam conhecimento dos deuses e da forma como deveriam adorá-los. Aspessoas eram felizes, os deuses eram felizes e o Egipto prosperava.Mas chegou uma altura em que Osíris decidiu que devia espalhar a boa sorte por todosos países da Terra, não ficando apenas pelo Egipto.- E necessário que os outros povos aprendam a tirar o melhor partido da sua terra e aviver em paz e harmonia - disse ele um dia à mulher.- Isso é verdade, irmão e marido - concordou ísis. - Enviemos mensageiros ao estrangeiropara espalhar a nova sobre o poder e a sabedoria de Rã.Osíris abanou a cabeça.- Eu próprio tenho de fazer essa viagem - disse ele. - Se as pessoas virem que é um deusque lhes traz essas dádivas de conhecimento e prosperidade estarão mais dispostas aaceitá-las e a melhorar as suas vidas.

Então e o nosso Povo, Os Egípcios? Quem olhará por eles enquanto 1 franzindo osobrolho. estiveres ausente? - perguntou ísis, Osíris pousou a mão no ombro da mulher.- Ora, claro que serás tu, irmã. És a minha rainha. És muito amada e respeitada, tal comoeu. - Sorriu. - Deves ficar aqui e governar o nosso reino na Minha ausência.- Muito bem - anuiu ísis- Sabia que Osíris tinha razão. Era justo que os deusespartilhassem a sua sabedoria com os povos da Terra. E Osíris, o rei do Egipto, era aescolha ideal para uma tarefa tão importante. ísis estava certa de que conseguiriagovernar o Egipto na sua ausência, tal como ele sugerira. Mas havia algo que aincomodava. Alguém, na verdade. Esse alguém era o irmão de ambos, Seth. Seth nuncadissera a Osíris ou a ísis que queria governar o Egipto - que achava injusto que o irmãotivesse sido coroado rei, e não ele. Mas ísis sabia. Conhecia muito bem Seth. Ouvia ainveja na voz do irmão quando ele falava. Apercebia-se de que ele tentava controlar asua ira por causa do que considerava ser uma grande injustiça.Assim, depois dos preparativos, Osíris saiu do reino do Egipto e começou a sua viagempelo estrangeiro. A viagem foi longa, visitando país após país. Entretanto, no seu palácio,ísis aguardava que Seth avançasse e tentasse apoderar-se do trono... mas nadaaconteceu.Seth passava a maior parte do tempo no palácio com os cortesãos.Sempre que via ísis, tratava-a com o respeito devido a uma rainha. Era bem-educado emultas vezes simpático, mas ísis não confiava nele.O que ísis não sabia era que o ardiloso Seth travara amizade com alguns cortesãosdescontentes. Embora a vida possa ser boa, há sempre pessoas gananciosas quequerem mais. O Egipto era próspero. A vida era boa. Porém, estes homens egoístasqueriam ser ainda mais prósperos e viver ainda melhor.Seth explorou esta fraqueza. Fez destes cortesãos idiotas e gananciosos os seus aliados.- Quando for rei do Egipto, não irei esquecer os meus amigos. Quem me ajudar agoraserá ricamente recompensado mais tarde - sussurrou Seth aos conspiradores num cantoescuro, longe de ísis e da sala do trono.- E quero mesmo dizer ricamente.- Mas quem é que diz que o povo irá obedecer-te, se te apoderares do trono enquanto oteu irmão, o rei, estiver ausente? - perguntou um dos cortesãos.- Não irei apoderar-me do trono - respondeu Seth. - Iremos esperar a ocasião.Aguardaremos que o meu irmão regresse e dar-lhe-emos as boas-vindas de braçosabertos.- E depois?- Depois? - Seth sorriu. - Depois executaremos o meu plano!

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Quando o rei Osíris regressou finalmente, todo o reino festejou. ísis, a sua rainha, foi aprimeira a saudá-lo.- Bem-vindo a casa, marido e irmão! - exclamou ela. - Tive muitas saudades tuas.- Todos tivemos - disse Seth, saindo de trás do trono da irmã. Um sorriso maldoso pairounos seus lábios, mas Isis pareceu ser a única a reparar nele. E não tencionava permitirque Seth estragasse uma ocasião tão feliz.Houve danças e acrobacias, celebrações e canções. Os festejos duraram vários dias.Osíris estava de novo ao lado da mulher e no selo do seu povo. E Seth continuava a nãoatacar. Estava à espera... à espera que surgisse a sua oportunidade.E ela acabou por surgir, na forma de um convite para um grande banquete que iria terlugar no palácio real. Naquela noite, a rainha ísis não iria estar presente. Era o momentoque Seth aguardara com tanta paciência. Sem os olhos atentos da irmã para o vigiarem,poderia pôr em prática o seu plano.Ao banquete assistiu o pequeno grupo de cortesãos descontentes que se haviam tornadoaliados de Seth. Antes de este chegar, puseram-se a falar de uma arca fabulosa que Sethrecebera.- Dizem que foi feita com as melhores madeiras pelos artesãos mais hábeis - afirmou umdeles.- Ouvi dizer que tem tanto ouro que brilha como o Sol - acrescentou outro.

Disseram-me que era mais bela do que muitos dos tesouros do próprio rei - murmurououtro suficientemente alto para que as suas palavras chegassem aos ouvidos de Osíris.Quando Seth entrou na sala do banquete - propositadamente tarde para que a suaentrada fosse grandiosa - todos falavam desta fabulosa arca dourada.- É verdade que possuis um tesouro tão belo? - perguntou Osíris.- Sim, irmão - respondeu Seth. - Depois de comermos darei ordens para que o tragam aopalácio.Então começou a grande festa. Mais tarde, quando o banquete estava a chegar ao fim,um grupo de criados entrou com a arca dourada. Na sala ouviu-se um murmúrio deespanto e de deleite. A arca era realmente bela.- Tenho uma ideia! - exclamou Seth. - Vejamos se alguém cabe na minha arca... com acabeça a tocar num lado e os pés no outro. Quem lá couber melhor, pode ficar com aarca!Porém, o que os convidados, incluindo o rei Osíris, não sabiam Iera que a ideia de Sethfazia parte de um plano cuidadosamente elaborado.Tal como haviam ensaiado, um dos conspiradores avançou e deitou-sedentro da arca aberta, enquanto alguns faziam fila atrás dele, e outros encorajavam osrestantes a juntarem-se a eles. Alguns eram demasiado altospara a arca, tendo de dobrar os joelhos para lá caberem. Outros eram demasiado baixos.Por fim, a única pessoa que ainda não tinha entrado na arca era o próprio rei Osíris.- Irmão! - chamou Seth. - Não te juntas à brincadeira? Osíris hesitou por um momento.- Porque não? - respondeu ele então, com uma gargalhada. Entrou na arca e deitou-se.Ficou admirado ao ver que cabia lá dentro na perfeição. Isso não foi surpresa para Seth.Ordenara aos artesãos que construíssem a arca de acordo com as suas indicações - paraque ela pudesse ser o caixão ideal para o irmão.

circundados Com os conspiradores em volta da arca paraque os outros convivas não vissem o que estava a acontecer, Seth fechou a tampa daarca, trancou-a e selou-a com chumbo derretido. Os seus cúmplices afastaram-se então,permitindo que todos vissem um Seth sorridente ao lado da arca.

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- Não há vencedor - anunciou ele. - A arca continua a ser minha. Com isto, os seusaliados gananciosos agarraram na arca e levaram-na para fora da sala. Por dentro, aarca não tinha ar e estava tão bem selada como um túmulo. O seu tamanho ideal nãopermitia que Osíris dobrasse as pernas e batesse com os pés na tampa, ou levantasse osbraços e batesse nos lados. Estava encurralado. Os seus gritos de socorro foramabafados e ninguém os ouviu. Então, o pouco ar que havia dentro da arca esgotou-se e,incapaz de respirar, o rei do Egipto morreu. Sem levantar um dedo contra Osíris, o seuirmão Seth assassinara-o.A coberto da noite, o caixão falso foi levado para junto do Nilo e atirado ao rio. Na manhãseguinte, Seth anunciou a trágica morte do irmão, e autoproclamou-se rei. Nesse mesmodia foi coroado.Quando a rainha ísis tomou conhecimento da morte do marido, ficou muito triste ecomeçou a chorar. Depois, vestiu as roupas de viúva e cortou uma madeixa do seucabelo. Mas o seu período de luto iria ter de esperar. Precisava de saber de que forma orei Osíris morrera e o que acontecera ao seu corpo.

Afastada do seu próprio palácio pelo novo rei, o seu malvado irmão Seth, ísis andou dealdeia em aldeia tentando descobrir a verdade do que acontecera ao seu maridoassassinado. Corriam muitos boatos, mas ela soube finalmente a verdade por um grupode crianças. As crianças contaram à antiga rainha do Egipto que haviam visto unshomens lançarem uma arca no Nilo. Era uma arca muito bela - viram-na bem à luz dosarchotes - e tinham ouvido os homens vangloriarem-se de que lá dentro se encontrava ocorpo do rei morto, Osíris. Quando os homens se foram embora, as crianças tinhamsaído das sombras e visto a arca a ser arrastada rio abaixo pela corrente.- Então ainda há esperança! - exclamou ísis, sentindo-se invadida por uma grandealegria. Correu junto à margem do rio, seguindo a corrente, e desejando com todas assuas forças que a arca tivesse encalhado na margem. Viajou até chegar ao mar, mas nãoviu sinais dela. No entanto, não estava disposta a desistir.Ísis viajou para norte ao longo da costa e ouviu dizer que algumas pessoas tinhamavistado uma estranha e bela arca a flutuar no mar.Nunca chegou a vê-la com os seus próprios olhos, mas tinha a certeza de que a iriaencontrar em breve.A deusa viajou por vários países, seguindo os relatos da arca, até ter chegado ao reinode Biblo. Falava-se não de uma arca dourada no mar, mas sim de uma fabulosatamargueira que crescera da noite para o dia na praia.

ísis descobriu que o rei Melcarte de Biblo mandara cortar a tamargueira e levá-la para acidade, a fim de a utilizar como pilar no seu palácio. Estava convencida de que a árvoremágica devia ter algo a ver com o caixão de Osíris, e correu até ao palácio.Quando a deusa chegou, sentou-se num pátio junto à entrada e esperou. É claro quepodia ter usado os seus poderes para roubar o pilar e descobrir o seu segredo. Mas nãoquis fazê-lo. O seu irmão Seth já abusara suficientemente do poder. Ela iria aguardar eprocurar outra forma de entrar no palácio.Não teve de esperar muito. Algumas criadas da rainha Athenais de Biblo saíram dopalácio e viram ísis. Pela sua beleza e pelo seu aspecto calcularam que ela não era dali;por isso, correram a perguntar-lhe de onde era. A sua senhora adorava saber coisas delonge, e a mulher misteriosa podia ter notícias para lhe dar.ísis explicou-lhes que viera do Egipto. Depois ofereceu-se para pentear o cabelo de umadas criadas segundo a última moda. As suas mãos foram tão rápidas e tão hábeis que a

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rapariga ficou encantada com o resultado, e pouco depois ísis tinha penteado o cabelo detodas as criadas.- Puseste algum óleo? - perguntou uma delas. - Que cheiro delicioso é este?Não se tinham apercebido de que ísis, enquanto as penteava, lançara o seu bafo sobrecada rapariga e - como era deusa e uma senhora da magia - o divino cheiro do seu hálitoficara agarrado à pele delas.Quando chegou a altura de regressarem ao palácio, as jovens criadas tiveram pena departir.- Obrigada! - agradeceram com um sorriso, correndo para a entrada. A rainha Athenaisficou encantada com os novos penteados das suas criadas, mas foi o cheiro que aencantou ainda mais.- Deve ser um daqueles magníficos novos perfumes egípcios de que tanto se fala -comentou ela. - Mandem chamar imediatamente essa mulher!

Assim, Ísis, disfarçada de mulher simples, foi levada à presença da rainha que lhe pediuque penteasse e perfumasse o seu cabelo. ísis assim fez, e Athenais ficou encantada.Pediu a ísis que permanecesse ali.Nessa noite, Isis foi até à sala onde se encontrava o pilar. Este era feito de um únicotronco de uma árvore incrível que nascera na praia. Quando encostou a mão à madeiramacia, percebeu de imediato o que acontecera.O caixão do seu marido fora ter à praia e ficara preso nas raízes de uma jovemtamargueira. Embora morto, alguns dos poderes divinos de Osíris tinham de algumaforma escapado da arca selada, fazendo com que a pequena árvore se transformassenoutra gigantesca, tendo no meio o deus no seu caixão... O corpo de Osíris estava dentrodaquele pilar! A chorar, ísis voltou para a cama.Dali a pouco tempo, a rainha Athenais de Biblo afeiçoara-se já muito a Ísis, e esta àrainha e ao seu filho bebé, de quem agora cuidava. ísis contentava-se em ficar ali nopalácio, perto do corpo do seu amado marido. De dia, desempenhava o papel de amadedicada do príncipe. À noite era uma viúva que chorava a morte do marido no seucaixão em forma de pilar.À medida que o tempo ia passando, ísis começou a amar tanto o príncipe que não podiasequer pensar que ele iria morrer, tal como Osíris. Todas as noites levava o rapazinhoadormecido até à sala do pilar. Acendia uma fogueira mágica que ardia vigorosamentecom as chamas da mortalidade. Com cuidado, colocava o bebé no centro da fogueira e, acada noite que passava, um pouco mais da sua mortalidade ia sendo queimada. Eleacabaria por poder viver para sempre.Enquanto esperava que aquele processo se completasse, ísis transformava-se numpássaro e voava em redor do pilar que continha o corpo de Osíris dentro da arcadourada.Intrigada e preocupada com os rumores das visitas secretas da ama à sala, a rainhaAthenais entrou na sala uma noite. Gritou aterrorizada ao ver o seu filho, que pareciaestar no meio das chamas. Retirou-o de lá e segurou-o bem junto de si no momento emque ísis passava de andorinha a ser humano.- Feiticeira! - gritou a rainha. - Não te aproximes de mim! Percebendo o medo da rainha, adeusa apressou-se a acalmá-la.Explicou-lhe que as chamas não magoavam a criança mas que, como ele fora arrancadoda fogueira mágica, não poderia viver para sempre.Explicou então quem era e porque estava ali.

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Aliviada com o facto de o filho estar ileso, mas triste por ter quebrado o feitiço que lhepodia ter permitido viver para sempre, Athenais perguntou de que forma poderia servir adeusa ísis.ísis pediu-lhe autorização para retirar dali o pilar, e Athenais concordou prontamente. Adeusa arrancou o tronco e tirou do seu interior o caixão.O rei Melcarte e a rainha Athenais deram à deusa o melhor barco da sua frota e umatripulação que o dirigisse. Na manhã seguinte, ísis despediu-se deles e começou a suaviagem de regresso com Osíris na arca.De novo em terra, ísis ordenou à tripulação que transportasse a arca até ao deserto, ondeninguém pudesse vê-Ia. Depois, mandou levá-la para os pântanos de Buto, no caso de anotícia da sua descoberta chegar aos ouvidos de Seth. De vez em quando, abria o caixãoe olhava para o corpo de Osíris. Ele parecia tão calmo como se estivesse a dormir, e nãomorto.Certa noite, enquanto ísis se encontrava a dormir, Seth apareceu no pântano. Os seusespiões andavam por toda a parte, e fora informado do local onde a arca estavaescondida.Levantando a tampa, olhou para o corpo do irmão que tinha assassinado.- Pareces tão perfeito - desdenhou. - Tão completo. E se a magia da tua querida irmã forsuficientemente forte para te dar vida? Podias sair daí... Tenho de me certificar de queisso nunca irá acontecer.Assim, retirou o corpo do caixão e cortou-o em catorze bocados. Depois espalhou osbocados por todo o Egipto.

- Agora vamos ver se a minha irmã consegue pôr-te de novo inteiro! - exclamou ele comum sorriso maldoso nos lábios cruéis.Quando ísis descobriu que o corpo do marido tinha desaparecido, pôs-se a gritar cheia deangústia e desespero.Os seus gritos eram tão fortes e tão cheios de dor que chegaram aos ouvidos da irmã deísis, Néftis, a mulher de Seth. Néftis teve tanta pena de ísis que decidiu ajudá-la aencontrar os bocados do corpo do irmão de ambas.Esta tarefa terrível foi bastante demorada, tendo levado vários anos, mas, por fim, todosos bocados foram reunidos. Alguns dizem que Anúbis, o deus com cabeça de chacal,ajudou as irmãs. Depois, usando a sua magia, ísis fez com que o corpo de Osíris voltassede novo ao que era.No entanto, ísis não foi capaz de lhe dar vida. Em vez disso, Rã, o deus do Sol, fez doespírito de Osíris o senhor dos mortos no reino do Oeste. Daí em diante, quando aspessoas morriam, os seus espíritos passavam a ser julgados e a ter a oportunidade degozar a vida depois da morte.

Apesar da morte de Osíris, Rã permitiu que ísis tivesse um filho do rei. O seu nome eraHórus e, quando cresceu, ele reclamou para si o direito de governar o Egipto comoherdeiro do seu pai. Seth estava furioso. Tivera de matar o seu irmão Osíris para poderficar com o trono, e agora o filho de Osíris queria roubar-lho... Bom, com certeza nãotencionava desistir sem dar luta. Se houvesse necessidade, talvez matasse tambémaquele rapaz. Tentara matar Hórus quando ele era bebé, e não conseguira, mas não iriafalhar uma segunda vez. Entretanto, tentaria resolver aquela disputa de outra forma.O assunto foi apresentado ao tribunal dos deuses. Todos se puseram do lado de Hórus.- Ele tem direito ao que reclama - afirmou Sliu que, como filho mais velho de Rã, presidiaao tribunal.- A justiça está do lado dele - concordou outro.

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- Seth apoderou-se do trono à força - disse outro. - Hórus tem direito a ele.- Então estamos todos de acordo - afirmou Sliu. Os outros deuses assentiram. - Tomemtodos conhecimento que, por decisão unânime...- Unânime? - interveio Seth. - Isso significa que todos aqui estão contra mim?Sliti olhou em volta para os deuses e deusas reunidos.- Sim - respondeu.- Mas não sou eu um deus? - perguntou Seth, esboçando umsorriso cruel.

- Com certeza. Um dos que se serve da força e da traição... Seth voltou a interromper.- Então, eu sou um deus e digo que o trono é meu... o que significa que a decisão não éunânime.- Tu não podes ter voz - interveio Shu. - És um dos arguidos. Foi decidido...Como é que ousam decidir! - bramou uma voz. E desta vez não foi Seth, mas sim opróprio Rã. - Por que motivo nenhum de vocês me consultou? Não é verdade que eu souo criador? Não é verdade que sou Khepri de manhã, Rã à tarde e Áton à noite? Não éverdade que sou o moldador das montanhas? Não é verdade que sou o senhor dosdeuses?-S... sim - respondeu Sliu, um pouco a medo.- E no entanto não pensam em consultar-me neste assunto? - perguntou Rã.- Mas é tão óbvio que Hórus tem direito ao trono! - protestou ísis.- Como se a minha irmã... a mãe dele... fosse uma testemunha imparcial! - queixou-seSeth. - Ela esteve sempre contra mim!- É verdade o que Seth diz - declarou Rã, ainda zangado por ter sido posto de parte. Paraele devia ser também evidente que Seth não tinha razão, mas parecia decidido aaborrecer os outros. - Iremos decidir isto de outra forma!- Como? - perguntou ísis, temerosa. O seu filho estivera prestes a conseguir aquilo a quetinha direito por nascimento. Agora, tudo corria mal. - Como podes entregar o trono doEgipto ao tio enquanto o filho e herdeiro ainda é vivo? - insistiu.- Como é que o trono pode ser retirado a uma pessoa mais velha e entregue a um jovem?- retorquiu Rã. E a discussão continuou, com inutos Juízes escolffidos e irritados porambas as facções. No fim, Seth e Hórus decidiram de que forma o assunto iria serresolvido. Tencionavam defrontar-se várias vezes, e o vencedor seria o governante doEgipto.

Durante uma luta terrível, Seth e Hórus transformaram-se em hipopótamos e lutaram noNilo. As suas enormes bocarras ficaram presas uma na outra. ísis, que assistia a tudo namargem, teve medo que eles se afogassem e lançou uma seta a Seth.Infelizmente para Hórus, a mãe tinha má pontaria. A seta feriu Hórus na perna. Istocolocou Seth em vantagem. Se ísis não tivesse voltado a disparar, atingindo Seth,poderia ter sido o fim para Hórus.Seth contorceu-se agonizante, a seta profundamente enfiada na carne.- Não sou teu irmão? - gritou ele. - Como foste capaz de me fazer isto?- O meu pai era teu irmão! - retorquiu Hórus. - Lembra-te do que lhe fizeste!Isis, porém, teve pena de Seth e utilizou a sua magia para tirar a seta da sua carne. Oprimeiro confronto chegara ao fim, sem um claro vencedor.De outra vez, Seth encontrou Hórus a dormir junto a um oásis e arrancou-lhe um olho -há quem diga que foram os dois - mas, graças a Hátor, a sua mulher, conseguiu reavê-loe recuperou a visão.

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E assim as lutas continuaram. Por vezes, Hórus servia-se da astúcia em vez da força.Numa dessas ocasiões, insistiu para que fizessem uma corrida de barco. Mas aquelacorrida não estava destinada a ser uma corrida vulgar.- Os barcos têm de ser feitos de pedra - disse Hórus.- Mas isso é impossível! - protestou Seth. - Os barcos de pedra afundam-se!- Se eu consigo fazer um barco de pedra, com certeza que o grande Seth tambémconsegue - retorquiu Hórus cheio de astúcia.- Muito bem - disse Seth, aceitando o desafio -, mas tens de me prometer que não usarasa magia da tua mãe. Esta luta é entre nós os dois.- Tens a minha palavra! - ripostou Hórus, furioso com a sugestão de poder sequer pensarem pedir ajuda a ísis.Assim, Seth afastou-se e foi construir um barco de pedra. Quando chegou à beira daágua, o barco de Hórus já estava no rio. Parecia ter sido esculpido numa única rocha,mas flutuava na perfeição. O seu peso assemelhava-se ao de um simples tronco.Seth ficou impressionado, e empurrou o seu barco para o Nilo.O barco afundou-se com ele lá dentro.

- Ganhei! - exclamou Hórus, tentando não se rir.Soltando um bramido de fúria, Seth voltou a transformar-se em hipopótamo e atirou-se aHórus. Quando as suas poderosas mandíbulas se fecharam em torno do barco, eledescobriu que este não era feito de pedra - era um barco de madeira coberto de gessopara imitar pedra.Os deuses que estavam a observar tudo também viram isso.- Parem já tudo! - ordenou Rã, e Seth teve de obedecer. Este último desafio foiinvalidado, tal como todos os outros. Ambos tinham feito batota: Hórus com o barco eSeth ao transformar-se em hipopótamo.Isís usou a magia de várias maneiras para ajudar o seu filho Hórus a recuperar o tronoque ela sabia pertencer-lhe por direito. Uma vez, Transformou-se numa bela mulher evestiu-se de viúva. Sentou-se num local onde sabia que Seth passava. Quando este seaproximou, ela estava a chorar.- Porque estás tão triste? - perguntou ele, fascinado com a sua beleza.- O meu marido morreu e o nosso gado foi levado - gemeu ela.- Conta-me o que aconteceu - pediu Seth, pondo um braço sobre os ombros dela. Erarealmente a mulher mais bela que ele alguma vez vira.- O meu marido era pastor e, quando ele morreu, o gado e a nossa casa passaram apertencer ao nosso filho - chorou ísis, disfarçada. - Mas agora um desconhecidoapareceu e tirou-nos tudo. Diz que tudo lhe pertence.Seth olhou para a mulher. Achou estranho que um simples pastor pudesse ter casadocom uma mulher tão bela. Uma mulher daquelas era digna de casar com um deus. Comoé que um desconhecido podia ter feito uma coisa daquelas?- Como ousa um desconhecido apoderar-se do que pertencia ao teu marido, se o filhodeste ainda é vivo? - perguntou ele, furioso.ísis riu-se e voltou a mudar de forma - desta vez transformando-se num pássaro que vooupara uma árvore e piou, deliciada com a armadilha em que o irmão fora cair.

- Então uma pessoa não devia roubar aquilo que pertence a um homem se o seu filhoainda for vivo! - exclamou ela. - Será que isso inclui o trono do Egipto? Tu próprio tecondenaste, com as tuas palavras, irmão. O trono pertence a Hórus, e sabe-lo bem!Ísis informou os outros deuses que Seth confessara, mas nem assim ele desistiu.

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Alguns dizem que foi o próprio Osíris, agora Senhor dos Mortos, que acabou por obrigaros deuses a decidir a favor do seu filho e a colocá-lo no trono. Havia demónios no seureino que apenas eram leais a Osíris - não a Rã - e ele ameaçou libertá-los na Terra, se oassunto não fosse resolvido.Outras versões dizem que a decisão final coube a Neith. Neith era mãe de Rã, o quefazia dela a mãe do próprio criador. Ela ordenou que Hórus fosse coroado rei. Senão,faria com que os céus tombassem sobre a Terra, provocando o fim do mundo.Depois de oitenta anos de luta, Hórus e Seth fizeram as pazes. Hórus governou um paíssatisfeito durante muitos anos e foi ele o antepassado de todos os faraós que se lheseguiram.

Durante algum tempo, Rã esteve na Terra, tendo tomado uma das suas muitas formas,de modo a poder viver no seio do seu próprio povo. Foi bastante venerado e respeitado,até finalmente ter começado a envelhecer. E de aspecto, Rã já não era o grande deustodo-poderoso que fora outrora. Seria ele realmente o senhor de todos os deuses, o deusda luz e da saúde? Não tinha um ar muito saudável. Os seus ossos eram como a prata,a pele de ouro e o cabelo da cor de lápis-lazúli - um azul-escuro que fazia lembrar àspessoas o cabelo grisalho de um velho.Em breve, o respeito das pessoas foi desaparecendo e, passado algum tempo, essa faltade respeito transformou-se em zombaria.- Porque devemos respeitá-lo? - perguntavam. - Daqui a pouco, ele desaparece. Porquetemos de o honrar desta forma?Rã ficou furioso quando ouviu a forma como era tratado pelas pessoas que ele própriocriara. Diz a lenda que os primeiros seres humanos nasceram das lágrimas que elechorou; no entanto, agora, os seres humanos tratavam-no como se ele não fosse maisimpor ante nas suas vidas que um mero pedaço de terra.Muitos humanos conspiravam abertamente contra ele.Vamos destruir este velho deus para poder decidir o nosso próprio destino - disseram.Como crianças rebeldes que se voltam contra o próprio pai, os humanos tornaram-se ospiores traidores.Rã convocou o deus Nun, pois fora das antigas águas de Nun que o próprio Rã nascera.

- Muitos dos humanos que eu criei sentem agora por mim um grande desprezo - contouele a Nun. - Tenciono destruí-los, mas quero pedir primeiro a tua opinião. Achas correctoum tamanho castigo?Os seres humanos nasceram das tuas lágrimas - disse Nun. - Não dizes que a tua filhaHátor é o teu "Olho"? Ela não vê por ti e relata aquilo que vê?- Sim - anuiu Rã. - Continua.- Então não achas que devia ser o teu olho a limpar as tuas lágrimas... a destruí-los porti? - sugeriu Nun.- Sim! - exclamou Rã, furioso. - Mandarei Hátor matar as pessoas mal-agradecidas quecriei... todas elas, até à última, mulheres e crianças.Rã ordenou a Sliu, Tefnut, Geb e Nut que fossem em segredo ao seu palácio. Tambémenviou uma mensagem especial à sua filha Hátor, informando-a de que tinha de aincumbir de uma missão importante.Em breve, todos chegaram ao palácio, mas era difícil manter em segredo uma reuniãotão importante de deuses e deusas. Correu a notícia de que Rã mandara reunir as suastropas.

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Os homens e as mulheres que haviam falado mal dele abertamente sentiram medo.Alguns abandonaram os seus lares e as suas famílias e foram esconder-se nos desertosda Terra Vermelha.- Tenciono destruir aqueles que se viraram contra mim - anunciou Rã aos deuses. - O seutempo na Terra está a chegar ao fim.- Toda a humanidade, ou só aqueles que te traíram - perguntou um deus.- Todos! - exclamou Nun. - Em breve iriam virar-se contra Rã, por isso é melhoracabarmos já com eles!- Sim! - concordou Rã, cheio de ódio. Como podiam as pessoas ousar falar dele como seele fosse um velho caquéctico? Ele era o criador.Dera-lhes vida... pelo que podia facilmente tirá-la. - Cabe-te a ti fazer isso, filha - disse elea Hátor. - Tu tomas multas formas. Muitos conhecem-te pela tua bondade, como deusada Lua, ou pela tua cabeça de vaca e olhos meigos, mas quero que assumas a tua formamais terrível... Transforma-te numa leoa e desmembra-os!

O castigo de Rã foi rápido e terrível. A sua filha, Hátor, agora transformada numa leoaferoz, começou a perseguir os traidores. Gostava bastante de os matar com as suastemíveis garras e de lhes arrancar a pele e os ossos com os dentes medonhos.Em breve começara a gostar do sabor do sangue, e era-lhe indiferente quem com- ia oumatava - homens, mulheres ou crianças, inocentes Ou culpados. Não fazia diferença. Asua missão era destruir a raça humana e ela adorava matar. Depois de umdia cheio de mortes, regressou ao palácio do pai. Estava exausta e tinha o pêlo sujo dosangue das vítimas. - O pai deu-lhe as boas-vindas e disse-lhe que fosse descansar.Por dentro, Rã sentia-se atormentado. Agora que as mortes tinham começado, estavaarrependido. Talvez fosse justo destruir os traidores, mas sentira-se atormentado com osgritos dos moribundos inocentes. Tinham chegado até ele as orações dos seus fiéisseguidores, mas ainda assim ele permitira que a sua filha os matasse devido ao seugosto por sangue - um gosto que ele próprio fomentara com as ordens que lhe dera. Amorte não era solução. Não criara a raça humana para que agora a destruísse.No entanto, Rã não podia voltar atrás com a sua palavra. Numa altura em que aspessoas - e talvez alguns deuses e deusas - haviam começado a duvidar da sua força edo seu poder absoluto, não podia dar-se ao luxo de mostrar fraqueza ou indecisão. Deraa Hátor as suas ordens e não podia voltar atrás. Teria de arranjar forma de salvar o querestava da humanidade enquanto Hátor dormia.Rã sabia que não podia perder tempo. Nessa noite, chamou os seus mensageiros.- Corram mais depressa que as sombras até ao Assuão e tragam-me Ocre - ordenou ele,informando-os da enorme quantidade que Pretendia- (O ocre é uma espécie de terra mui'to vermelha. Era muitas vezes usada em tintas.)

Enquanto os mensageiros cumpriam a sua missão secreta e Hátor dormia - continuandotransformada em leoa e sonhando com a morte - Rã mandou chamar o sumo sacerdoteda cidade de Heliópolis.O sumo sacerdote lançou-se aos pés do deus.- Em que posso servir-te, poderoso Rã? - perguntou ele. Observara as mortes e sabiaque o criador estava furioso com aqueles que criara.Rã apontou para uma pilha de cestos que os mensageiros lhe haviam trazido.- Leva aqueles cestos e manda misturar o ocre em sete mil jarros de cerveja. Esta tarefamuito importante tem de ser concluída antes de amanhecer.

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- Assim será feito - disse o sumo sacerdote, afastando-se, cheio de pressa. Com a ajudade um exército de escravas, a terra vermelha foi metida nos jarros de cerveja, tornando olíquido mais espesso e vermelho.A seguir, Rã conduziu o sumo sacerdote e as muitas escravas que transportavam os setemil jarros. A ninguém era permitido falar ou fazer barulho. Este exército silencioso,cumprindo sem saber uma missão que iria salvar a própria humanidade, avançava semruído através da noite. Por fim, chegaram ao local que Rã tinha escolhido.Ao nascer do dia, a um sinal do seu deus e senhor, as escravas verteram o conteúdo dosjarros sobre a terra, e em breve se formou uma grande poça de espesso líquidovermelho.- O vosso trabalho está terminado - disse Rã, virando-se e começando a afastar-se. - Nãofalem disto a ninguém.Nessa manhã, Hátor acordou com as forças revigoradas. Como continuava sob a forma,de uma leoa assustadora, estava ansiosa por obedecer às ordens do pai e matar maisseres humanos. Isso ensiná-los-ia a não falarem de Rã num tom desrespeitoso... emboraas pessoas não pudessem ensinar esta lição aos filhos. Em breve, todos os sereshumanos estariam mortos!O cheiro do sangue humano já estava entranhado nas suas narinas e Hátor sentia-seimpaciente por começar. Correndo com a velocidade de uma leoa a caçar, Hátor chegouao local onde terminara no dia anterior. À sua frente estava uma enorme poça, queparecia cheia de sangue humano.Deliciada, começou a bebê-lo, tal como um gato bebe leite. Era bom. Bebeu mais. Só quenão sabia que aquilo não era sangue, mas sim cerveja vermelha... e, deusa ou nãodeusa, depois de ter bebido tanta cerveja, ficou embriagada e cheia de sono.Pouco depois, Hátor desistiu da missão de destruir a raça humana. Não tinha vontade dematar nem de beber sangue. Só lhe apetecia... dormir... Cambaleando sobre as suasenormes patas, Hátor regressou ao palácio com um sorriso na sua cara de felino.- Olá, filha - saudou-a Rã, e Hátor pousou a cabeça no seu colo. Deixou de pensar emmortes e dormiu um sono profundo. Rã acariciou o seu pêlo, satisfeito. A sua honra forasalva e a humanidade também.Às vezes, quando o Nilo transborda, a água molha a terra ocre e fica vermelha. Talvez Rãtivesse ido buscar ali a sua ideia. Ou talvez tenha feito com que isso acontecesse paranão nos esquecermos de que ele podia facilmente ter-nos destruído.

Esta história assustadora fala-nos de uma sala trancada contendo um tesouro, um corposem cabeça e um bandido muito esperto. Embora nunca tenha existido um faraóchamado Rampsinito, há quem acredite que esta história pode ter sido baseada emfactos reais. Rampsinito era imensamente rico, até pelos padrões dos faraós, e o seumaior receio era que os tesouros que possuía fossem roubados. Nem as pirâmides - ostúmulos dos seus antepassados - estavam a salvo dos ladrões, apesar das suasarmadilhas e passagens secretas. Por conseguinte, Rampsinito decidiu que iria mandarconstruir um edifício de pedra para guardar os seus bens. Mandou chamar um bomarquitecto, ordenou-lhe que desenhasse uma casa e estudou os planos até ao ínfimopormenor antes de autorizar o inicio das obras.Só os homens de maior confiança foram postos a trabalhar no projecto e todos eramvigiados pelo próprio arquitecto. Quando o edifício ficou completo, Rampsinito fez umaúltima inspecção. Era constituído por uma única sala. As paredes, o tecto e o chão eramde pedra maciça. Não havia janelas e existia apenas uma única Porta. Satisfeito,Rampsinito mandou encher o edifício com os seus tesouros e pôs guardas à porta.

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Depois fechou com o seu selo a entrada, para que ninguém lá pudesse entrar sem oquebrar, revelando assim o seu crime.O tempo foi passando e, embora fossem efectuados outros roubos pelo reino, ostesouros do faraó permaneceram a salvo.

Só depois de o arquitecto que construíra esta caixa de pedra gigante ter morrido é quecoisas estranhas começaram a acontecer.Numa ocasião em que Rampsinito passou pelos guardas, quebrou o selo da porta, entrouna sala para admirar o seu tesouro e sentiu que algo estava diferente. Não sabia sefaltava alguma coisa. O seu tesouro possuía tantas coisas - estatuetas, amuletos,perfumes, móveis de ouro e prata - amontoadas pela sala que era impossível saber ondeestava tudo. Mas havia qualquer coisa estranha.Os guardas insistiram, dizendo que ninguém passara por eles, e recordaram ao faraó queo selo não fora quebrado até ele próprio ter entrado. Intrigado, Rampsinito colocou umnovo selo na porta e foi tratar dos seus assuntos.Uma semana mais tarde, quando o faraó voltou a entrar na sala, não teve dúvidas de quedesta vez faltavam coisas. Havia espaços vazios. Fora roubado! Sentindo-se tão intrigadocomo furioso, Rampsinito espalhou armadilhas pelo tesouro, voltou a selar a sala eduplicou o número de guardas à porta. Agora iria apanhar o espertinho do ladrão!Na manhã seguinte, o faraó deparou com uma cena inesperada. Um homem fora naverdade apanhado numa das armadilhas. As mandíbulas de metal tinham-no preso pelaperna, pelo que ele não pudera fugir... mas não era essa a única razão por que estehomem não podia ir a lado nenhum. O ladrão capturado não tinha cabeça.- Como é que pode isto ser possível? - bramiu o faraó. - Ninguém pode ter entrado aquiatravés de um túnel escavado no chão. O chão é de pedra, bem como as paredes e otecto. A porta estava selada e guardada... No entanto, falta a cabeça deste homem epeças do meu tesouro!Ordenou que o corpo fosse pendurado nos muros do palácio, como aviso para outrosladrões que pudessem tentar roubar o seu tesouro. Isso foi uma coisa muito má, pois atéum ladrão tinha direito a um funeral decente. Cabia aos deuses julgar o morto.

- Prestem atenção e vejam se alguém chora ao avistar o morto - ordenou Rampsinito. -Podem ser os cúmplices ou os familiares do ladrão, e devem ser trazidos à minhapresença. Eu irei solucionar este mistério!Assim, o corpo foi pendurado para que todos pudessem vê-lo. embora muita genteficasse horrorizada com a crueldade, ninguém chorou. Depois o corpo foi roubado.O furto foi executado com uma grande ousadia. Começou quando um homem apareceu adizer que vinha entregar vinho ao palácio. O vinho era transportado em sacos de pele decabra no dorso dos seus burros, em vez de 'habituais. Quando os burros passaram pelosguardas, algumas nos arros peles caíram ao chão, as rolhas saltaram e o vinhoentornou-se. Os guardas precipitaram-se para a frente, a fim de as agarrar, e o homemagradeceu-lhes por terem salvado aquele vinho. Deu-lhes uma pele meio cheia, comoforma de agradecimento, e eles insistiram para que bebesse com eles.Em breve, os guardas tinham bebido demasiado e, depois de muitas anedotas e demultas gargalhadas, adormeceram. Foi nessa altura que o pretenso mercador de vinhocortou a corda que prendia o corpo sem cabeça, o meteu às costas de um burro edesapareceu na noite.Quando o faraó Rampsinito foi informado do que acontecera, ficou furioso. Os guardastinham acordado com grandes dores de cabeça devido ao excesso de vinho... mas essa

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dor não foi nada quando comparada com o castigo que receberam devido ao seudescuido. Porém, apesar de tudo, Rampsinito não pôde deixar de admirar secretamenteeste inteligente ladrão que parecia ir sempre um passo à frente.Agora era a vez de o faraó ser astuto. Calculou que uma das coisas que um ladrãoesperto devia gostar de fazer, quase tanto como roubar, era vangloriar-se dos seusroubos. De que valia cometer crimes ousados se não se podia contar nada a ninguém?Assim, Rampsinito anunciou que daria a mão da sua filha ao homem que revelasse osegredo mais astuto, independentemente da sua crueldade. Tinham apenas de visitar aprincesa e de lhe contar o segredo. Ela escolheria o vencedor, depois de ter ouvido asconfissões.

É claro que o faraó estava apenas interessado numa confissão, ou s . a, na do ladrão.Combinaram que - se ele aparecesse - a filha o agarraria pela mão e chamaria osguardas, que entrariam logo em acção.É claro que o ladrão apareceu. Olhava, nervoso, para um lado e para o outro e vinhacoberto com uma grande capa. A história que tinha para contar era de factoextraordinária.- O meu pai foi o principal arquitecto do teu pai - explicou. - Construiu a sala de pedraonde o teu pai guarda os seus tesouros.Desenhou-a e controlou a sua construção, mas ninguém o controlava a elé. Uma daspedras era, na realidade... duas, unidas de forma tão perfeita que ninguém conseguia vera junta. O meu pai contou o segredo ao meu irmão e a mim antes de morrer. Nósdescobrimos a pedra, dividimo-la em duas e rastejámos através do buraco. - A princesaescutava-o, maravilhada. - Da primeira vez que o meu irmão e eu entrámos na sala,levámos apenas algumas coisas, para que ninguém desse por falta de nada. À medidaque o tempo foi passando, ficámos mais gananciosos, até o teu pai ter posto lá asarmadilhas - continuou o ladrão, com uma expressão cheia de tristeza. - O meu irmão foiapanhado numa e partiu a perna. Teve imensas dores e não havia possibilidade de elefugir. Insistiu para que eu lhe cortasse a cabeça. Preferia morrer depressa do que emagonia... e, se eu levasse comigo acabeça do meu pobre irmão, ninguém poderia identificá-lo e vir atrás de mim ou da minhafamília. - A filha de Rampsinito estava fascinada pela confissão do ladrão. - Entreguei acabeça à minha mãe e enterrámo-la - prosseguiu o ladrão. - Mais tarde, fui buscar ocorpo dele. já o juntámos à cabeça, e o meu irmão teve um funeral digno. Bom, apesar detriste, não achas que foi a melhor confissão que já ouviste até hoje?- Oli, sim - respondeu a princesa com um sorriso, admirando a inteligência dele, mastambém feliz por imaginar a satisfação que o seu pai iria ter ao apanhar aquele homem. -Dá-me a tua mão.- Muito bem - concordou o homem. Por entre as pregas da capa apareceu um braço, e aprincesa agarrou na mão, que estava estranhamente fria.

"Então a mão de um ladrão é assim", pensou a Princesa. Apertou-a com força e Chamouos guardas.Quando eles entraram na sala a correr, o astuto ladrão já tinha desaparecido. E aprincesa desatara aos gritos. Segurava uma mão humana, mas na extremidade do braçonão havia mais nada! Não era o seu braço que o ladrão estendera sob a capa. Forasuficientemente inteligente para perceber logo que aquilo era uma armadilha, mas nãoquisera perder a oportunidade de contar a sua história!

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Rampsinito ficou tão impressionado e espantado com a volta que os acontecimentostinham levado que anunciou que perdoava ao ladrão e lhe dava uma grande recompensase ele se entregasse. O ladrão acreditou nele e o faraó cumpriu a sua palavra.O ladrão inteligente recebeu ainda mais recompensas. Não só recebeu a mão daprincesa em casamento como foi feito ministro. E porque não? Afinal, era um dos homensmais inteligentes do Egipto!

Esta lenda inclui um conto dentro de outro conto. Começa com um barco a regressar aoEgipto, depois de uma missão na Núbia. A missão é comandada por umemissário e destina-se a trazer riquezas ao faraó. A missão foi mal sucedida e oemissário sabe que o faraó não aceita de ânimo leve uma derrota.O emissário encontrava-se sozinho na proa do navio a observar as estrelas quando umdos marinheiros veio ter com ele.O que se passa, senhor? - perguntou o marinheiro.O emissário olhou para o marinheiro, que era, tal como ele, um oficial bem respeitado nacorte do faraó.- Esta missão foi um desastre - respondeu ele com um suspiro.- Amanhã terei de enfrentar o faraó com pouco ou nada para lhe mostrar.- Um desastre? - perguntou o marinheiro. - Não pode chamar-lhe isso. Não perdemosninguém no mar nem nenhum homem morreu em terra. Isso vale alguma coisa, nãoacha?- Acho que o faraó não vai ser dessa opinião - retorquiu o emissário com um aperto nocoração.O marinheiro sorriu.- As coisas nem sempre acabam como se espera - disse ele. Veja o meu exemplo. Sabeque sou um cortesão respeitado, mas nem sempre assim foi. Outrora, não passava deum pobre marinheiro e, como se não bastasse, fiz parte de uma expedição que foi umverdadeiro desastre.

E assim começou a contar ao emissário a sua espantosa história.- Foi a minha primeira viagem e estava cheio de orgulho por fazer parte de uma tripulaçãotão boa - contou o marinheiro. - Éramos cento e vinte, e havíamos sido todos escolhidosa dedo. O navio era enorme e os meus companheiros destemidos. Sabiam tudo o quehavia para saber sobre a arte de navegar. Se um marinheiro pode sentir-se emsegurança no mar, é junto de homens como eles."Como fui tolo em esquecer-me de que estávamos todos nas mãos de Deus. O nossonavio atravessava o mar Vermelho, rumo às minas reais de turquesas, quando o azar nosatingiu. O nosso navio foi fustigado de todos os lados até que uma onda enorme,inimaginável na sua força e no seu tamanho, nos cobriu e afogou todos a bordo, exceptoa mim."Essa onda que matou os meus companheiros pegou em mim e atirou-me para a costade uma ilha desconhecida. Gelado, ensopado e atordoado, reuni todas as minhas forçase arrastei-me para a praia e para fora da água. Com um último esforço, abriguei-me sobuma pilha de madeira. Ali fiquei durante três dias e três noites."Por fim, acordei e arrastei-me para o interior da ilha, à procura de comida e de águadoce, para não morrer. Descobri que a ilha era um paraíso. Assemelhava-se ao jardimmais luxuriante que possa imaginar. Estava repleto de árvores, de relva e dos melhoresfrutos e legumes, havia aves e outros animais e lagos de água fresca cheios de peixe.

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Preparei um festim e depois queimei uma oferenda aos deuses, agradecendo-lhes terem-me salvo a vida e levado para um local tão farto."Pouco depois, a terra sob os meus pés começou a tremer e ouvi um ruído muitoestranho. Uma cobra enorme, atraída pelo fumo, surgiu entre as árvores. Era de umabeleza aterradora, comprida como uma dezena de homens, com escamas de ouro elápis-lazúli. Também tinha uma barba como a dos deuses, tão comprida como eu! Acobra empinou-se, como se estivesse prestes a atacar, e depois falou... sim, falou...perguntando-me como é que eu fora parar à sua ilha.

"Confesso que estava demasiado assustado para responder. Atirei-me para o chão,pondo-me à mercê dela. Que mais poderia eu fazer? Antes de perceber o que estava aacontecer, a cobra agarrara-me com as suas mandíbulas. Tive a certeza de que iriacomer-me, mas sentia-me paralisado pelo terror, não conseguindo implorar misericórdiaou gritar por ajuda. Contudo, em vez de me fazer mal, ela levou-me para o seu covil."Ali, pousou-me no chão e perguntou-me pela segunda vez: "_ Como vieste aqui parar,pequenote? - Havia uma certa ternura na voz da cobra gigante e, daquela vez, reuni todaa coragem para responder. Falei-lhe da viagem às minas, da terrível tempestade e doscento e dezanove homens que se tinham afogado."Então fiz uma descoberta espantosa. A enorme criatura era meiga. Disse-me que eu nãodevia ter medo, mas sim dar graças por ter sido salvo."- Tiveste razão em agradecer aos deuses - disse ela. - Eles decidiram salvar-te daságuas para que pudesses viver aqui comigo durante quatro meses. Depois desse tempo,serás salvo pela tripulação de um barco que vai passar por aqui. Levar-te-ão de voltapara o Egipto e é aí que vais morrer, de velhice."Claro que fiquei admirado, e também aliviado, pois, como sabe, morrer longe do Egipto eda família significa que os preparativos e as cerimónias não podem ter lugar, e que onosso espírito não alcança o Reino dos Mortos. Mas eu continuava triste por causa damorte dos meus colegas marinheiros."A cobra gigante compreendeu os meus sentimentos. Aproximou a cabeça da minha, asua língua bifurcada a entrar e a sair enquanto falava."- Eu sei o que é perder uma pessoa que nos é chegada, pequenote - disse ela com umar muito triste. - Agora estou sozinha nesta ilha, mas nem sempre foi assim. A minhafamília costumava Partilhar comigo este paraíso, os meus irmãos, irmãs, a minha mulhere os meus filhos. Éramos ao todo setenta e cinco, e a nossa vida era cheia de felicidade.Mas, um dia, tudo terminou. Uma estrela-cadente tombou dos céus e matou-os todos.Durante bastante tempo, desejei também ter sido engolida pelas chamas. Sem eles,sentia-me desesperada e sozinha. Partilho da tua dor.

"Fiquei muito comovido com a história que aquela magnífica criatura me contara. Todo omedo que eu sentia desapareceu."- Quando regressar ao Egipto, como tu previste, informarei o faraó do teu esplendor e datua bondade - disse eu. - Pedir-lhe-ei que te mande óleos perfumados e tesourosexóticos."Mas a cobra riu-se. Sabia que eu era um pobre marinheiro, não um homem abastado, eque não seria ouvido pelo faraó."- E o que faria eu com esses presentes? - perguntou então a cobra.- Sou um príncipe, e esta ilha tem mais riquezas do que aquelas que o teu faraó mepoderia dar. Do que mais gosto é da tua companhia.

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"Durante quatro meses, fomos os melhores companheiros. A cobra chamava à ilha a ilhade Ka, e ka, como sabe, é o espírito que vive dentro de nós. Mas não creio que elaquisesse dizer que era uma ilha de espíritos malditos.

Não vi ali fantasmas, apenas beleza. Creio que era antes um local encantado... Então, talcomo a cobra havia previsto, depois de terem passado quatro meses, vi um barco nohorizonte. Creio que a cobra se serviu dos seus poderes para o aproximar da costa, ondeeu lhe fiz sinal e reconheci a tripulação."Embora me sentisse feliz por regressar a casa e à minha família, tive multa pena dedeixar para trás a cobra com escamas de ouro e lápis-lazúli."- Adeus, pequenote - disse a cobra. - Não te esqueças de mim."Não posso negar que senti um nó na garganta quando aceitei os presentes que ela medeu. Eram tesouros de todos os tipos, desde especiarias raras a jóias, passando poróleos e animais. Beijei o chão diante da cobra e prometi-lhe que um dia regressaria."- Nunca voltarás a encontrar este sítio - anunciou ela. - Quando te fores embora, elecobrir-se-á de água."Depois, fez outra profecia. Disse que eu regressaria a casa são e salvo dali a doismeses. Despedimo-nos e eu levei os meus presentes para o navio."Quando cheguei ao Egipto, fui com a tripulação até ao palácio do faraó. Dei-lhe ospresentes que a nobre cobra me oferecera. Também Ísis era a deusa da fertilidade e davida. Era a senhora da magia e mulher de Osíris, Senhor dos Mortos. Era mais espertado que muitos deuses e deusas, mas desejava o maior poder de todos - o poder de Rã.Deus do Sol, Rã, tinha multas formas diferentes e cada uma delas possuía um nomediferente. Estes nomes eram usados nas orações e nos louvores, por todo o Egipto. Eraminvocados para o honrar e para celebrar a sua importância e o seu poder. Excepto umnome. Esse nome era secreto, conhecido apenas pelo próprio deus. Fora-lhe dado noprincípio dos tempos - pois fora ele que criara o tempo - e encontrava-se bem escondidono seu interior.O nome secreto de Rã era a chave do seu poder. Conhecer o nome secreto era ter ocontrolo do mais poderoso de todos os deuses. ísis queria esse nome.Poucos estavam a salvo da magia de ísis, mas essa magia não tinha qualquer efeito emRã, o criador, o maior de todos os deuses. Então, se não podia usar a sua magia, comopoderia ísis obter o nome? Através da astúcia?Embora fosse todo-poderoso, Rã não parecia Já ser o deus magnífico que fora no início.O seu corpo estava velho e frágil e, embora ele continuasse a ser a maior força da Terra,a sua pele mostrava-se flácida e, por vezes, babava-se pelo canto da boca.

Na mente de ísis começou a formar-se uma ideia. A única maneira de enganar Rã e fazê-lo revelar o seu nome era utilizar o poder do próprio deus e virá-lo contra ele!Uma manhã, ela juntou-se a Rã, enquanto ele passeava pela Terra, rodeado por umgrupo de outros deuses e deusas. Entre estes estavam Sliu, Tefnut, Seth, Sekhmet,Hátor, Anúbis, Tot e Néftls.'Rã já não via tão bem como dantes, e os seus passos também já não eram tão seguros.Uma vez, quando se calou, uma gota da sua saliva pingou até ao chão. Agora era aoportunidade de ísis. Uma gota da saliva do próprio criador seria uma arma maispoderosa contra ele do que um exército de mil homens!Quando os outros avançaram, ísis ficou para trás e pegou cuidadosamente na terra coma saliva do criador. Depois afastou-se, sem ser vista, e regressou ao seu palácio. Longedos olhares indiscretos, amassou a terra macia até ela se ter transformado em barro e,enquanto trabalhava, ia dizendo palavras mágicas.

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Trabalhou durante toda a noite, murmurando os seus feitiços para que eles semisturassem com o poder da saliva de Rã e com a terra. Com esse barro fez uma cobra.Mas esta cobra não era uma estatueta. Estava viva.Agora, só restava a ísis esperar.Na manhã seguinte, Rã seguia pelo caminho habitual no seu passeio com os outrosdeuses e deusas. Só que não sabia que ísis já ali estivera antes dele e libertara a cobra.De súbito, Rã sentiu uma picada no tornozelo. Soltou um grito. O que teria sido? Nada doque ele criara podia magoá-lo, e ele era o criador de todas as coisas. No entanto, a dorera terrível e ia-se alastrando pela perna. E com a dor surgiu uma agonia interior.

- Fui envenenado! - exclamou ele, caindo. Os deuses e deusas que o acompanhavamficaram abismados. Era impensável verem o poderoso Rã tropeçar e cair. E eraimpossível ter sido envenenado.- Como é que isto pode ter acontecido? - perguntou um dos deuses. Maat, a deusa aladada justiça, lançou-se para a frente e viu a cobra a desaparecer na erva alta. Não podiaacreditar nos seus olhos. Nenhuma cobra era capaz de envenenar o senhor dos deuses.- Ajudem-me! - suplicou Rã. - Estou a morrer! Estou a arder! Os de uses e deusastentaram ajudá-lo, um de cada vez, mas os seus feitiços e os seus poderes de nadaserviram contra aquela força desconhecida que ia sugando a vida a Rã.Sabia-se que Ísis era mais esperta que mil homens e que a sua magia só era inferior à deRã. Era a única que poderia fazer qualquer coisa para salvar o deus do Sol, e, por isso,mandaram-na chamar. Ele parecia ainda mais frágil e vulnerável ali deitado, com acabeça pousada no regaço dela. Mal sabiam os outros deuses que fora ísis quem virara opoder de Rã contra ele próprio.- O que aconteceu? - perguntou ela, fingindo estar chocada e não saber o queacontecera. - Como pode o Senhor da Criação estar tão doente?- Doente? Estou é a morrer! Fui mordido por uma serpente - disse o deus do Sol com osdentes cerrados, enquanto tentava lutar contra a dor.- Mas esta cobra não foi criada por mim. Há aqui tramóia.- Não podes morrer, pai divino - declarou a deusa.- Sinto-o... - gemeu Rã, contorcendo-se quando a dor aumentou. Na sua testa surgiramgotas de suor.- Eu posso salvar-te - disse Ísis -, mas preciso de saber o teu nome.- Chamo-me Rã. Sou o criador dos céus e da Terra. De manhã, sou Khepri, umescaravelho que veleja pelo céu na Barca dos Milhões de Anos, Rã, o Sol forte do meio-dia, e Áton, o Sol no ocaso, à tarde...- Fez uma pausa e contorceu-se de dores. - Sou o moldador das montanhas...- Não é a esses nomes que me refiro, senhor - interrompeu ísis. - Esses nomes são doconhecimento de todos. Se quiser salvar-te, tenho de saber o teu nome secreto.

- Não posso dizê-lo a ninguém - gemeu Rã -, pois é nele que está o meu poder!- Sem o saber, não posso salvar-te, senhor - retorquiu ísis. - E não posso deixar-temorrer. Tens de me dizer.- Como poderá um segredo desses ajudar-me? - perguntou Rã, lutando contra a dor.- Porque a única cura possível é haver alguém que te chame por esse nome - explicouísis. - Nenhum veneno pode fazer-te mal se fores chamado pelo nome do poder máximo.O 'veneno - proveniente de uma cobra criada a partir da própria saliva de Rã e com o seupoder - corria agora pelas velas do deus. Ele ficou cheio de tonturas e começou a vertudo desfocado. Tinha a boca seca e a voz áspera.

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- Tenho de dizer-te - concordou ele, por fim. Reunindo todas as suas forças, conseguiusentar-se e dar uma ordem. - Deixem-nos! - exclamou para o grupo de deusas e deusesansiosos e, embora a sua voz fosse fraca, ninguém ousou questioná-lo. Rã e ísis ficaramsozinhos.- O meu nome secreto é o meu poder... e só o direi a ti.Leitor, não posso dizer-te que nome era esse. Mas posso dizer-te que Rã o passou a ísise ela sentiu o seu corpo encher-se de um novo poder.No Egipto há monumentos, chamados obeliscos, que apontam para o céu. Cada umdeles foi construído em memória de Rã e está coberto de hieróglifos que louvam o deusdo Sol e enumeram os seus muitos nomes. Há histórias de Rã esculpidas em colunas enas paredes dos túmulos. Há murais e papiros. Nenhum deles - nem sequer um - revela onome secreto de Rã. Continuou a ser um segredo entre o deus do Sol e a senhora damagia. ,Agora que ísis tinha o que queria, curou imediatamente Rã da picada da cobra. Mas Rãficou mais do que curado. Recuperou a glória perdida. Brilhou tal como brilhara no início.Os deuses e as deusas ficaram muito satisfeitos com o rejuvenescimento de Rã, eelogiaram Ísis pela sua perícia em curar o deus. Ela sabia que seria perigoso declarar-semelhor que o deus. os Outros virar-se-iam contra ela, e Ísis não desejava isso. Não,usaria o conhecimento de forma sensata e servir-se-ia do nome quando precisasse deajuda. Se alguma vez quisesse que Rã lhe desse alguma coisa, ele teria de ceder.Rã, de novo saudável e tão - jovem como no princípio dos tempos, subiu a bordo da suabarca de milhões de anos e continuou a sua viagem pelos céus.

Satisfeita pelo facto de os seus planos terem sido bem sucedidos, ísis viu o deus do Solpartir. Sabia que, um dia, usaria o nome secreto de Rã para ajudar o seu filho Hórus. Ísisfaria tudo para que, no futuro, Hórus fosse tão Poderoso quanto Rã.

Primeira edição publicada na Grã-Bretanha em 1999 por Belitha Press Limited, LondresCopyright O neste formato Belitha PressUd. 1999Belitha Press 1999Copyright de texto O Philip Ardagh 1999Copyright de ilustração O Belitha Press 1999Copyright C Círculo de Leitores 1999Título original: Ancient Egyptian Myths & LegendsResponsável pelo texto: Stephanie Bellwood Maquetista: Jarme AsherConsultora: Liz BassantResponsável pela colecção: Mary-Jane WilkinsTradução: João BritoImpresso e acabado para Círculo de Leitores por Printer Portuguesa, Casais de MemMartins, Rio de Mouro em Dezembro de 1999Número de edição: 4721Depósito legal número 143 323/99 ISBN 972-42-2148-2