plural solombra

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Falando da sombra da vida, através da palavra salva do esquecimento por Cecília Meireles, Solombra evoca os nossos instintos mais secretos através da palavra dos nossos autores. Participam desta edição temos a poesia do compadre Akira Yamasaki, Karin K. Carteri, Zélia Guardiano, Bah Bee Paiva, Luiz Gonzanga Leite Fonseca, Thereza Rocque da Motta e Jeanne Callegari. Nosso personagem do mês é o poeta Adonis… Entrevistamos a atriz-autora-personagem-mulher-poeta-amiga-amante Lorenna Mesquita, que no palco “emprestou-se” a Florbela Espanca, poeta portuguesa – num monólogo de fazer sangrar a pele do público. E na nossa coluna Drops, se multiplicam nossos autores: Ana Farrah Baunilha, Aden Leonardo, Joakim Antonio, Emerson Braga, Thais Barbeiro, Tatiana Kielberman, Marcelo Moro, Dália Ester, Hugo Ribas, Belisa Parente, Ana Claudia Marques e Mariana Gouveia.

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ABRIL PLURAL

POR R$ 100,00

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habitare

Dade Amorim

"Há muito tempo estão conosco os móveis livros e tantas coisas roçando nossas vidas sob o desgaste do teto que reflete a luz da manhã no jardim. Há quanto tempo nos protegemos de sol e chuva e dos ventos do estio por trás das mesmas janelas de cortinas claras que nos defendem da rua a resguardar a sala cor de sépia. Há tanto contornamos a curva das escadas sabendo cores e penumbras e paisagens do quarto mais acima e conversamos sobre coisas sem lugar ou utilidade que vez ou outra esquecemos como corpos mortos numa prateleira até que se tornem de novo uma pequena surpresa e toquem nossos lábios com uma espécie branda de sorriso. E o que são os anos para nós que a cada dia lemos os jornais na rede da varanda e ainda reconhecemos os lugares das coisas que há muito se extinguiram?"

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Teatro de Sombras

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CARTA AO LEITOR | Tamiris Sakamoto

Este texto, rascunho sobre um ano implacável,

não estava programado para existir. Haja vista que

consigo facilmente descrevê-lo com poucas e cer-

teiras palavras desconexas, como bem lhe cabe o

adjetivo, sem questionamentos quanto a sua pleni-

tude. Sendo assim, não vi o porquê de relatar

algo apaticamente intenso. Não existem razões que

expliquem os meus não abraços, não beijos, não

sorrisos. Muito menos que descrevam a

fragrância de um ano que teve cheiro de café e

solidão. Subjetivo. Estático. Todavia, é inquietude

que precisa se expressar.

Meu desconforto talvez venha por eu ainda

estar perdida de mim mesma. Ou, pelo meu

próprio desconforto com a existência. A pergunta

que paira e acolhe todas as palavras escritas durante

2014, porventura, seja: e o que foi a vida? Pois

bem, não me arrisco a responder, já que mesmo

embriagada, tenha sido lúcida demais. Às vezes,

claustrofóbica.

ÍMPAR. SOBRE 14 E NOVO.

* não estava nos planos escrever uma

despedida para 14 e Novo, nem meus

achismos sobre Dois Mil e

CRISE... Daí li "KADOSH" (Hilda Hilst) e

mudei de ideia.

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04

Poderia desenhar o ano que passou com as

mesmas palavras que fiz Dois Mil e Doce, e este

rascunho ainda seria amargo. Acre. Agridoce.

Digo isso pois disputaram-me acirradamente.

Intensidade. Contudo, apenas. Dois Mil e Doce é

o quebra-cabeça que demorou 365 dias para se

completar. Todas as peças fizeram sentido. Os

tons deixados foram arte, ainda que contrastados.

Em contrapartida, 14 e Novo caso juntado, não

assume forma. Sem coesão e coerência. No limite,

diria que se por um lado conseguiu fechar alguns

jogos em aberto, por outro deu-me quebra-

cabeças novos que, talvez, necessitem mais do

que dias para serem montados. Minha recusa em

escrever isto quiçá seja reflexo da incapacidade

que o incompleto me coloca. Ainda que, amiúde,

escreva sobre o inacabado.

14 e Novo abre portas para Dois Mil e

Crise. O que foi par, terminou ímpar e consolidou

um gosto forte de tarja preta nas bocas, na minha

própria.

Tamiris Sakamoto. 21. Ex-estudante de Química

que quer saber Computação. Feminista. Socialista.

Nas horas vagas se faz escritora. Às vezes, delirante;

outras tantas, mantem os dois pés no chão. Ah, ela é

essa garota bem ao meu lado. Lunática!

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ADONIS

[PERSONAGEM]

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Personagem | Adonis

A poesia de Adonis — nome escolhido pelo

poeta sírio Ali Ahamed Said Esber — chegou

às minhas mãos através de uma amiga, que me

presenteou com o livro, lançado no Brasil pela

Companhia das Letras, com tradução de Michel Sleiman...

Adonis, na mitologia grega, era um jovem de grande bele-

za, que nasceu das relações incestuosas que o rei Cíniras de

Chipre manteve com a sua filha Mirra e conquistou o amor

de duas deusas, Afrodite e Perséfone fazendo surgir o mito

do ciclo anual da vegetação... combinação perfeita para o

homem-poeto-sirio que parece, tal qual o mito grego,

renascer após tenebroso inverno.

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Personagem | Adonis

Eu não tenho por hábito folhear um livro de poesias

— de uma só vez — como faço com romances... leio como

quem degusta uma chávena de chá. Bem lentamente e, em

pequenos goles. Por isso, levei meses para "consumir" a

poesia desse homem, que tem, em si, uma história bastante

peculiar.

No entanto, eu o li, muito antes de sabê-la... levando-

me para dentro seus versos — "me amam o caminho, a

casa | e na casa uma jarra vermelha | amada pela água"

— com o prazer de ler a poesia e a realidade que a escrita

inventa ao fino toque do lápis...

Dias depois — com a leitura finalizada — vim saber

que o poeta Adonis, foi se exilar na França, após se exilar

no Líbano, pois, sua poesia incomodou o nacionalismo

árabe pós-Segunda Guerra Mundial... ao levantar-se

enquanto voz-estridente, contra a islamização da literatura

árabe.

Infelizmente, o livro [poemas] de Adonis chegou aos

meus olhos através de uma tradução e, como não falo ára-

be, não dispunha de outra opção. Como existem diferenças

em todas as línguas, tenho consciência de que não li exata-

mente a poesia de Adonis, que é apontado como sendo o

melhor poeta contemporâneo da língua árabe.

Discordei — naturalmente — de alguns versos, ao re-

trucar com as paredes de meu quarto, que talvez, o sentido

fosse outro... e o significado final — consequentemente —

também.

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Personagem | Adonis

Encontrei, contudo, algum alento na internet, ao

pesquisá-lo e, me deparar com versos em francês. Em

seguida, encontrei uma excelente crítica, escrita por Luís

Dolhnikoff, que ralhava ferozmente contra o prefácio do

livro, escrito por Hatoum — premiado escritor brasileiro

— o qual não tinha lido até então. Dolhikoff também voci-

ferou contra o estilo do poeta Adonis, comparando-o de

maneira rude a outros poetas, como Ginsberg e, o meu

favorito Eliot, que escreveu "the waste land".

Eu não comparo poesias, nem seus tempos e espa-

ços... para mim, o poema é faca afiada a cortar enquanto

há carne. Aprecio essa metáfora que uso para dizer "gostei

ou não da poesia" que chegou aos meus olhos. Outro dia,

disse a um poeta, ‘sua poesia não me fez sangrar —

reescreva!’ E foi como insultá-lo.

Eliot, Borges, Ginsberg, Mário, Dickinson fazem is-

so comigo e Adonis, mesmo não tendo o “melhor corte”,

riscou minha pele.

Lembrando, sobretudo, que Adonis vem de uma

realidade limitada pela religião e pelos excessos de uma

cultura que não avança. Um mundo onde liberdade depen-

de de um deus-profeta-homem contra o qual ninguém ousa

levantar a voz.

Eis, então, que um poeta ousa questionar tal realida-

de e leva isso para a sua poesia. Ousa ser moderno, contrá-

rio, homem, artista... ousa ser, existir, num lugar onde não

se curvar ao sol é ser sentenciado à pena de morte… e que

se cumpra o enforcamento em nome de uma divindade

opaca, para qual todos se curvam às seis da tarde... por

que somos frágeis demais para recusar os rituais por nós

mesmos inventados.

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"Nasci e nasceu comigo o deus do amor

— que fará o amor quando eu me for?"

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“Você já viu a mulher

como carrega o corpo do outono?

Primeiro ela mistura o rosto e a cal-çada

depois tece um vestido com os fios

da chuva

as pessoas

na cinza da rua

são brasa apagada”

Adonis trad. Michel Sleiman

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Personagem | Adonis

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Despertarei ruas e noite e juntos passaremos pelas árvores. Os ramos serão malas verdes e o sonho, travesseiro no intervalo das viagens. A manhã persiste e estranha imprime seu rosto em meu segredo. (...) O espaço é fornalha e os ventos, velha a tecer contos, e os sacres, cortejo a abrir o céu. Como um amante, audacioso, juvenil, de paixão audaz, ergue o Alandalus profundo ergue-o para o Mundo — esse novo santuário. Todo espaço em seu nome é livro. Todo vento em seu nome é hino.

Adonis trad. Michel Sleiman

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Porque sempre me disseram que pra ser uma pessoa

produtiva é necessário ter disciplina. "Disciplina", dis-ci-

pli-na — palavra horrível, claustrofóbica, mal me cabe na

boca só em dizê-la, engasga, dá falta de ar. Gosto de

rotina, de ter uma motivação pra levantar da cama, mas

crio a minha própria, desprendida da numeralidade do

tempo, das luas e das coisas 'cotidanadas', o hábito

internalizado com cara de ritual, a mecanização triste dos

gestos repetidos; compreendo o dia com a noção de tarde

e cedo , escuro e claro, não planejo as linhas pra amanhã,

mas acredito no sol e no caminho dele, trajeto natural que

orienta a ordem cronológica da humanidade.

Não formei família no tempo dito propício, continuo

existindo pra sacudir os espaços onde entro, praticar a

sociabilidade, a interação humanóide, que sem querer

acaba sendo quase sempre um acontecimento de mudar

vida. Minha realização nessa Terra é escrever, isso me

basta pra ser feliz. mas há que se criar o tempo, otimizar

os dias pra poder criar.

Não consigo achar normal um mecanismo movido

por engrenagens regendo a inventada contagem da

existência majoritária da humanidade, a sequência

padronizada, lógica, controladora. Funciona, claro. Tem

toda sua utilidade funcional, tão presente na vida das

pessoas que, quase imperceptível, torna-se um verdadeiro

opressor silencioso, a comandar vidas com os avisos de:

— já é tarde. — não vai dar tempo; tic tac tic tac —

causador de ansiedades, marcador inexorável.

A HORA DA ESCRITA

Drops | Por Ana Farrah

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Entendo a necessidade de medir a vivência dos dias,

da semana, do bolo de 30 dias que é o mês, da duração de

um ano, pra dar-se conta que passou a década, e outra, e

outras mais... Se não fossem as delimitações de tempo e

espaço não haveriam sonhos utópicos de liberdade. Vai

que o povo todo resolve aderir à prática do 'nadismo'...

seria lindo e caótico, apesar da ideia parecer super

setentista e woodstokiana, uma vida sem a percepção

consciente de início e fim do passar dos dias

provavelmente tornaria impossível organizar-se para

dedicar um 'pedaço' desse não-tempo para o "momento de

escrever".

Acredito na escrita em momentos, em surtos de

inspiração, aquele insight que brilha sem hora marcada no

relógio, sem precedentes, aquela ideia genial na

madrugada, no pulo da queda de um sonho maluco.

Levanto e anoto. Depois de acordar é café e rememorar o

que estivar anotado. O segredo é ter o bloco de notas

aberto. Porque pra escrever há que se ter os instrumentos

— mais que o tempo em si — à mão, sempre. Caneta é

arma, é ferramenta. A ideia nunca espera. Não confie na

memória... Já perdi centenas de ideias geniais pra um

poema por puro esquecimento. Tem que registrar.

Dedicar tempo é fundamental. Se você tiver as ideias

concatenadas, mesmo que rabiscadas num rascunho, isso

será o esboço pro teu trabalho funcionar. Então serás um

escritor (ou aí que se começa a considerar que tens um

trabalho à fazer). Há que se organizar essa miscelânea de

ideias, em determinado momento, que, aí sim, deve ter

horário marcado na agenda, pra virar compromisso. E que

esse compromisso seja teu próprio chefe, teu empregador,

seja você mesmo a comandar essa empresa fabricante de

ideias transfrindo isso como expressão artística na escrita.

isso é trabalho. E a melhor hora é você quem faz. Faça sua

hora. Escreva, leia, crie, pire. Depois pára, respira e espere

digerir. Então tu senta e vai, deixa fluir. Saberás que

AQUELA será a tua melhor hora pra escrever. E funciona,

acredite.

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Perdi a chave de casa. Entro pelos fundos revirando

minha bolsa. Minha mão passeia por objetos que tocados

parecem desconhecidos. Penso se estivesse naqueles pro-

gramas em que vendam os olhos e deveria adivinhar o que

é, com o tato. Carrego aos ombros e não sei o que tenho, o

que possuo realmente?

Passei rápido pela cozinha, subi as escadas.

Não, não encontro minha chave. Em teatral atitude

despejo todo conteúdo na cama. Claro isso é um buraco

negro que se esqueceu de desativar ao meu toque. Todas

as coisas inúteis durante o dia vão para este lugar. Ser

algo, ser engolido, brincam de existir.

Penso em mim e você.

Sou isso também. Uma chave perdida num universo

curvilíneo e inexplicável. Enquanto ninguém vê, sou algo

de voar sem gravidade. Quando existo realmente desco-

necto a magia e nada sou.

Sou uma chave perdida.

Meus cacarecos esparramaram na colcha. Fizeram

barulhos de trecos. Um brinco apenas. Uma caneta, papéis

que nunca precisei verificar. Recibos que nem lembro que

gastei. Olhe! Ontem! Foi ontem que te encontrei. Há algo

de simultâneo ao caos no efeito do tempo. Não pode ter

sido ontem.

Uma poeira colorida, pontas de lápis de cor. Sim,

ontem entreguei um poema e colori com flores, depois nos

beijamos. Na pressa nem percebi, o grafite verde quebrou

logo no fundo. Riscou o pano de cetim. Ter você deixa

muitas marcas.

A UTILIDADE DA BAGUNÇA

Drops | Por Aden Leonardo

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Como vou poder entrar em casa agora? Sempre pelos

fundos? Como ter segurança se não possuo o segredo de

afastar o mal com duas ou uma volta? O infortúnio? Onde

encontro possível cópia? Se descrevê-la faz-se um molde?

_ Era uma chave, moço. Acompanhava algo de superação

- foi quando escalei uma montanha enorme. A segunda

mais alta do país, comprei de lembrança, veja que não fun-

ciona - Tem corcovas que entram delicadamente e destran-

ca a porta. Logo em seguida tranca. Preciso dessa chave.

Preciso organizar-me. Bem sei. Pensamentos. Vida.

Grito dentro da minha blusa com dezesseis anos.

Me confundo o que sou.

E se não for nada disso? E essa pressão no peito perturba-

dora? E esse líquido azul que escorre? Em toda bagunça

concentra bactérias. O que vocês estão fazendo comigo,

vermes? Ei, me solte! Alguém faça alguma coisa!

Agarro-me à mala vermelha, que está no chão com as rou-

pas da última viagem. Estou morta. A falta de gravidade

não me deixa cair no chão para fazer meu show. Não com-

preendo: a gravidade zero não permite chorar? Minha voz

não sai. Com o vácuo som não existe, meus gritos voltam

para dentro, ah, este líquido azul já escorre da minha boca,

é o meu vômito de última vida...

Malditos! Sempre confundiram minha cabeça! Existiam

em mim, eu apenas manifestava vocês.

Eu não deixei tudo no chão com tanta gravidade, nem

incomodava tanto assim, eram obviedades, entendem?

Minha voz errou, pensei ser o som um líquido mágico, a-

zul, lindo, brilhante, tudo.

Não, não coloquei meus gritos na mala não, na mala iam

as roupas... em infinitos vexames viscerais.

Ou será que guardei todos os gritos, onde mesmo? Será

que eu os colocava na mala? Meu Deus... Era isso, enrola-

va minhas roupas nos gritos e quando vesti de gente fiquei

desesperada... Sim perdi minha chave.

Definitivamente. Preciso cópias de mim.

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Page 18: Plural solombra

Drops | Por Joakim Antonio

Abro a gaveta e retiro uma folha de sulfite amarrota-

da, com uma escrita corrida, repleta de erros futuros. Den-

tro desta mesma gaveta, mora uma árvore de letras, regada

por textos escritos à mão e frutificando prosa, ou poesia, a

cada novo olhar. Penso se um dia irei parar com esse hábi-

to, pois há muito escrevo como a maioria, deixando os

textos numa nuvem digital, um éter obscuro e efêmero, de

onde as letras, por diversos motivos, podem nunca mais

retornar.

Mesmo assim, independente do local escolhido, os

textos ficam maturando e esperando novos desfechos, uma

troca de palavras entre o novo e o antigo eu, descartando

palavras escritas com ira e mágoa desmedida, mas nunca

as de alegria, pois o amor contido neles, nunca se dissol-

verá. Além do que, qualquer texto pode macular a folha

branca, mas só os perfeitos conseguem tirar seu véu de in-

visibilidade e tornar-se algo mais.

Confesso que andei questionando esse processo e

qual a real validade de deixar textos para depois,

afinal tudo é tão fast-food, gerando uma pressão invisível

para escrever, uma urgência, não por bem querer às letras,

mas devido à tão apregoada falta de tempo e ante o ilusó-

rio apocalipse da inteligência, que muitos dizem já ter

começado. Então talvez não devesse guardar nada e sair

por aí, destilando o que me vaza pelos dedos, preenchendo

tudo que vier a tocar.

APRENDA A DEIXAR

PARA DEPOIS

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Page 19: Plural solombra

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Mas ao olhar novamente para a folha em minhas

mãos, me vejo perdido no texto de outro, revendo vírgu-

las, procurando sinônimos e questionando ideias, passando

a trabalhar com uma terceira pessoa e somando ao texto,

situações vividas num tempo verbal post-scriptum, no qual

me perco no emaranhado de letras, não como da primeira

vez, num arroubo quase mediúnico, mas analisando cada

passagem, deixando um invisível fio de Ariadne, que me

guiará até o processo final.

De repente entro num processo caótico, me jogando

num abismo paradoxal, onde enquanto acho que revejo,

crio e, quando certo de criar, apenas reinsiro palavras,

dentre elas, algumas que jurei para sempre apagar. Num

desses momentos paro e questiono minha sanidade, pois

vejo claramente o texto esperando, como se fosse um

filho, orientações do caminho que deve trilhar. Então me

acalmo e com um bom pai, o ajudo a se reordenar e cres-

cer, sempre com a esperança de que eu tenha feito o meu

melhor.

Nesse momento, alguns textos mais se agitam querendo se

desfolhar, uns precisando de voo solo e outros de somar-

se, quiçá num livro, havendo também aqueles necessitan-

do serem exorcizados, estes sim, sem novas vírgulas que

lhe parem, para dar chance ao novo vingar. Mas todos

eles, mesmo que por um breve momento, ganharam bem

mais, encorpando-se, por poder descansar e maturar.

No final, pego uma xícara de café quente, me sento

confortavelmente, para novamente me questionar se vale a

pena deixar textos para outro momento. Então olho para a

folha e a tela do computador, vendo um filho nascido e

seu desenvolvimento, aceitando a escolha feita, entre

deixar estar e evoluir para algo mais. E chego conclusão

de que, como tudo na vida, cada texto pede um novo olhar

e o tempo certo, para poder desabrochar.

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Drops | Por Tatian Kielberman

A FRATURA EXPOSTA

A MINHA SOMBRA

Outro dia, pensando acerca do que motiva a escrita

de cada um de nós, algumas lembranças me guiaram até

os tempos do curso de psicologia, quando o professor de

‘teorias da personalidade’ buscava explicar como o ser

humano busca diferentes maneiras de lidar com cada uma

de suas vivências.

Segundo ele — embasado à época em teorias psica-

nalíticas — certos fatos marcantes do cotidiano necessi-

tam ser experenciados em suas profundezas, de modo que

se esgotem e o indivíduo possa, a partir de então, elaborá-

los com maior facilidade. Assim, uma vez passado o im-

pacto traumático dos acontecimentos, provavelmente se

tornaria, também, mais fácil pensar e falar sobre eles.

Recordei também um diálogo que tive há dias com

uma amiga escritora-psicanalista — conhecedora da teoria

e da prática em sua imensidão —, em que falávamos sobre

os simbolismos que os fatores do ambiente agregam às

nossas vidas. Ela me fez lembrar de que a teoria psicanalí-

tica tende a tratar os dramas e os infortúnios do homem

como algo externo, indireto... é mais ou menos como ser

atingido por um raio.

Page 21: Plural solombra

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E, nesse sentido, para ela, a escrita inserida no con-

texto psicanalítico é tratada como sendo um objeto de se-

gurança, uma vez que o indivíduo se aconchega em algo

familiar que o leva a escrever, sentindo-se confortável pa-

ra expor-se. Não é à toa que observamos tantos escritores

solitários e que, nesse meio, a depressão seja um objeto

tão comum.

Voltando ao ponto inicial de minha reflexão — as

motivações da escrita —, penso que necessitamos, sim,

lidar com certos conflitos ao longo da vida, seja conforme

o olhar das teorias psicanalíticas ou de suas variações.

Porém, quando se trata de expor sentimentos e falar do

que vai no coração, alguns escritores o fazem ainda

melhor quando sua fratura pessoal ainda está exposta...

porque, na verdade, ela nunca será elaborada por comple-

to.

Finalizo com outro afago dessa mesma amiga escri-

tora-psicanalista, que — sem sombra de dúvidas — permi-

tiu o entrelace de diversos conceitos anteriormente soltos

em meu pensamento...

...“eu, particularmente, acredito que a escrita é experi-

mentar velhos sabores, os da infância, que são insubstituí-

veis, tanto quanto inesquecíveis. A realidade não nos

permite superar tais aromas, mas o imaginário não

apenas transcreve, como nos permite, aliado à criativida-

de, reviver milhares de vezes, como se tivesse acontecido

há pouco, porque escrever e ler são atribuições de símbo-

los, como beber uma xícara de café. Sempre nos leva para

dentro, para o conforto da primeira vez.”

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Drops | Por Thais Barbeiro

A ARTE DE FICCIONAR

A REALIDADE

“Esta é a minha vida.

Este jogo conjunto.

Subimos todos juntos,

Em um navio que parte,

para longe, bem longe,

Para descobrir uma terra,

legendária e intacta...

Eu queria viver isso todos os dias,

até a minha morte.”

Ariane Mnouchkine

Senhoras e senhores — eu os convido a conhecer

o meu palco, onde deixo o meu grito e exponho a minha

necessidade. Sou uma artista e minhas veias pulsam emo-

ções muitas, de outros, de ninguém. Minhas, suas... como

saber?

Eu alcanço o meu público sempre que as cortinas se

abrem… através da palavra, do gesto, do olhar. Um único

movimento meu, basta para transmutar a realidade, fazen-

do catapultar um novo estado de consciência.

É a minha maneira de abandonar a realidade dos

homens… e te levar comigo para um estado de conforto,

tão gostoso como um abraço. Uma viagem para além das

coisa reais como as sabemos-conhecemos.

Page 23: Plural solombra

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Quando eu piso no palco, sou outro eu… o eu artis-

ta! O eu personagem. Por alguns segundos, mergulho

nesse universo novo, onde tudo acontece através do

meu imaginário, que é essa aranha a urdir sua fina teia,

que fisga fortemente todo aquele, que se deixa tocar por

essa nova realidade, que começa a acontecer muito tempo

antes desse encontro entre platéia e palco acontecer

Primeiro o ator se dedica as experimentações, encon-

trando em seu corpo os muitos sintomas das emoções, que

nem sempre são suas: leituras-pesquisas-movimentos-

novos-pausas-reflexões-respirações… e a cada novo

ensaio, o ator a tudo experimenta, provando de uma nova

maturidade.

O ator-pessoa se deixa pelo caminho e vai se trans-

formando em outra coisa,tão naturalmente, que é inegável

que, em alguns casos, uma nova substancia nasce.

E o que o público colhe é justamente essa

espécie de reinvenção de si mesmo. Teatro é transe.

Ritmo. Um corpo que baila virtuosamente no ar. Tudo

gira. Tudo acontece. O ator e o palco são uma mesma coi-

sa. Vitrine… e a melhor parte? É nos dar conta de que não

somos nada-ninguém porque dependemos do nosso públi-

co, que chega sendo uma coisa e vai embora sendo ou-

tra… mas, para a satisfação do artista, leva consigo esse

eco mundano-profano-vestido-esculpido-trabalhado que

não deixa nada no lugar — tudo muda — inclusive a es-

sência!

E quando os aplausos surgem no ar, é como um des-

pertador a nos devolver o próprio corpo. A realidade e a

ficção se tornam unas e a magia está completa.

Obrigada pela visita. Voltem sempre!

Page 24: Plural solombra

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Drops | Por Marcelo Moro

A MORTE NOSSA DE CADA DIA

E se morre hoje, por isso não pode morrer amanhã,

veja o perigo da frase motivo-moralista “não deixe para

amanhã o que se pode fazer hoje” .

Tantos morrem de morte morrida, e tantos outros de

morte matada, mas absolutamente ninguém de morte

planejada. Explico: uma vez planejada a morte considere-

se desde hoje morto.

A morte que mais me doeu, sem dúvida, até o

momento foi a morte inesperada do meu pai, de repente,

como se diz por aqui, caiu da vida para eternidade, eterno

em cada programa esportivo que ouço, em cada gol do Rio

Branco EC, em cada volta do jabuti no quintal, em cada

marchinha sacana de carnaval quase sempre com a letra

adulterada por ele mesmo.

Também acho que não há morte que não doa, sempre

alguém vai sentir mais ou menos que outros mas o vazio

vem é como faltasse aquela peça perdida do quebra-

cabeças de 5000 peças, que vai se tornar mais importante

que as outras 4999 que já estão encaixadas no fabuloso

desenho.

Page 25: Plural solombra

Drops | Por Marcelo Moro

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Engraçada então é nossa contagem de tempo, sempre

dizemos: um dia a mais — um dia mais para que cara-

pálida, é sempre um dia a menos, pois a vida por mais

divertida que seja é morte a prestação, abatida dia após

dia.

É fato em todas as civilizações que a morte é inven-

cível, e não enganável , é um ente, uma potestade eterna e

antiga, não mais velha que os seres porque para existir era

importante que existisse vida, mas é temida, e celebrada,

esperada e quase sempre desesperadamente indesejável.

Existem aqueles que a tiram para dançar, desafiam

para jogos e ela soberana e justa, honrada e um cálice de

lealdade não vence os desafios se não for sua hora exata

de vencer, nem um segundo a mais e nem um menos, não

se morre de véspera assim como não se morre atrasado.

Mas o dia a dia está aí, desafios, riscos, abusos por

prazer, sejam todos bem vindos a morte nossa de cada

dia .

Page 26: Plural solombra

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Drops | Por Lunna Guedes

VOCÊ É SEU PRÓPRIO AUTOR

U ma das coisas mais difíceis na vida de um

escritor... é saber pontuar suas histórias, atribu-

indo ritmo a sua narrativa. Não é mesmo fácil

e talvez seja uma das mais ingratas tarefas,

sendo apenas superada pelo desafio da folha em branco...

quando é preciso escolher a melhor das frases para lançar

o leitor no abismo, colocando-o em queda permanente.

Uma história começa a existir — primeiro — dentro

dessa caverna, que são os escritores. É tudo muito secreto,

silencioso. A trama vai sendo — lentamente — urdida em

malabarismos particulares. Nesse momento, o silêncio se

acaba e começam os barulhos — alguns insuportáveis.

Mas até se sentar diante da tela para escrever, o escri-

tor irá organizar milhares de pensamentos, traçar centenas

de anotações e pesquisar milhares de informações.

E na hora em que finalmente os dedos se mostram

prontos para dedilhar o teclado nessa construção insana,

cada um tem seu próprio ritual — estranhos, esquisitos,

surpreendentes e até mesmo inacreditáveis...

Mas o ato de se sentar para escrever, não significa

que o autor alcançou seu objetivo maior. Geralmente, o

primeiro escrito, é apenas uma promessa-que-não-se-

cumpre. Alguns autores preferem abandonar o texto

primeiro... optando por voltar a ele num tempo futuro,

quando a maturidade de seus pensamentos, talvez, venha

lhe permitir outro olhar.

Page 27: Plural solombra

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Que uma história precisa ter começo, meio e fim,

todos nós estamos cansados de saber, mas a estrutura lite-

rária vai muito além disso... é preciso pontuar os objeti-

vos, determinar as pausas e arquitetar cuidadosamente

esse roteiro onde absolutamente nada escape.

Eu tenho alguma preferência — confesso — por

histórias divididas em capítulos... justamente por facilitar

as interrupções da leitura em determinado momento.

Como leio em coletivos, ao descer em determinado ponto,

posso caminhar por todo o universo para o qual fui traga-

da. Alguns de meus livros favoritos, contudo, não dispu-

nham desse artifício, e eu sempre me perguntei: "por que

razão o infeliz do autor não dividiu a trama em capítu-

los?"

Mal sabia eu o quão difícil é organizar uma história

em pequenas divisões precisas, desenvolvendo argumen-

tos que sirvam fios condutores para o leitor, sem que esse

se sinta diante de uma rua sem saída. Cada capítulo, deve

ser para o leitor, uma espécie de cruzamento, de onde ob-

serva os caminhos sem saber para qual direção ir, mas

avista na figura de um transeunte qualquer, alguém a

quem pedir orientações e ao indagá-lo, a única resposta

possível para a pergunta feita pelo leitor — sabe onde fica

a rua desse capítulo? — deve ser inevitavelmente: no capí-

tulo seguinte.

O fim de um capítulo tem essa responsabilidade,

afinal, se trata do caminho que conduzirá o leitor ao que

ele tanto deseja: o final... da trama! Mas antes de chegar a

esse ponto, ele tem que ser, cuidadosamente, conduzido...

É mais ou menos como em um jogo de xadrez, antes de

derrubar o rei, dizemos Xeque e todo o resto — sabemos

— se orienta naturalmente...

Page 28: Plural solombra

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Drops | Por Dália Èster

A PELE QUE EU VISTO

É A FOLHA E PAPEL

ONDE ESCREVO

Encomendaram-me um gozo.

E eu, o tipo que não sabe nem interpretar o gozo

espontâneo, aceitei. Por revolta. Era prostituição dos

meus líquidos internos, esses que encharcam as pala-

vras quando escrevo, uma a uma, e de repente, toda

hora me vejo grávida de alguma imundície pessoal.

Não vai ser nenhum texto bonito sobre como eu me

coloco na escrita. Nenhum texto bonito pode ser a

meu respeito, onde tudo é uma carne estraçalhada,

pedaços expostos e pendurados e eu andando como se

nada estivesse acontecendo. E o leitor... de tudo, o que

eu mais odeio. Combinação satânica de que se cada

um tem sua própria pele rasgada e pendurada, andare-

mos então todos brincando de ciranda, e o diabo coor-

denando, todos nus e psicotizados, mascarados no

entanto pela música infantil, um ninar macabro, ao

fundo, nossos rostos marcados pela dor, pelo choro, os

olhos inchados. Então cada um enfia a mão no outro,

por dentro. Todos abutres poetizados. A mão apertan-

do o escrito, a primeira vez do toque, a exposição dia-

bólica cifrada, os dedos entrando um a um em mim,

desconhecidos a espremerem meu feto, e eu gritando:

tirem a mão de mim, monstros. Na verdade era tudo

muito excitante. E eu nunca podia ser tocada a menos

que uma mão se enfiasse sem convite em mim, porque

Page 29: Plural solombra

Drops | Por Dália Èster

27

eu estupidamente me abria no escrito, desejava ser

violada, tudo aqui dentro era uma paz assustadora,

uma paz de quem está distante de tudo, vivendo uma

realidade metafórica demais para que caísse em cima

do corpo e fizesse sentir que eu estava viva. Todos os

rostos eram iguais aos meus. O inferno era um quarto

cheio de espelhos. Olhando-os todos descobri que não

podia ser uma vagabunda: gozava na hora errada,

sempre. Não podia fingir orgasmos porque quando

eram fingidos, eu me enchia de tesão, me sentia tão

mais mulher e tão mais ardida por estar nessa bolha de

queimadura gigante, acabava sempre achando todo o

fingimento excitante, estranhamente, ele se tornava o

meu gozo mais sincero e intenso. Sendo que no cotidi-

ano de minha vida não poética me faltava sempre um

passo a mais para o derretimento, eu endurecia como

uma vela que não era mais necessária, cuja cera escor-

reu, mas não o bastante para ser consumida. Deus

sabe o quanto eu queria ser consumida, se tivesse que

vender minha pele a algum incendiário, eu o faria. A

luz do mundo sempre me irritou. Ela era a razão da

inutilidade do meu fogo. Por isso sempre retorno à

ciranda. Coloco fogo em cada papel, transformo-o em

mim mesma, e jogo nos outros, esperando que desfi-

gurem a cara. É em vão. Eles me olham, a pele enru-

gada, o olhar seco, um coração em chamas, e dizem:

bonito seu escrito. Nessa hora, sei que são monstros.

Que sou a única humana. Que no inferno ninguém vai

preso por omissão de socorro. Ao contrário, são

dementes aplaudindo cada vez que me suicido, meu

dna no sangue dos poemas, e eu sempre penso que

pelo menos eles têm braços, enfiam a mão descarada-

mente em mim, enquanto a cabeça olha o diabo e

concorda que não está acontecendo nada aqui, apenas

poesia.

Page 30: Plural solombra

28

Drops | Por Emerson Braga

CARTA A CECÍLIA MEIRELES

08 de novembro de 1964

Hospital dos Servidores do Estado

Rio de Janeiro – RJ

Caríssima cosedora de incertezas;

Não, não percas teu valioso tempo à procura do no-

me ou endereço do remetente desse escrito. Trata-se de u-

ma carta anônima, depositada sobre os lençóis enquanto

descansavas de teus ais. Revelar-te minha identidade feri-

ria o propósito primeiro do documento. A correspondên-

cia, enfim, chegou às mãos de sua célebre destinatária.

Por hora, é o que importa.

Nunca concluí de maneira satisfatória se

deveria referir-me a ti por poetisa ou poeta. Questiono-me

com alguma frequência ― apesar de não obter êxito al-

gum em minhas divagações ― se, como ente universal, o

criador de poesia deveria transcender questões de gênero

e chamar-se simplesmente poeta. A feminilidade é carac-

terística tão viva em teu trabalho que não te enxergo sim-

plesmente poeta, mas poetisa. Todavia, como alguns mau-

soléus parnasianos ainda associam o feminino da palavra

poeta à criação literária desprovida de excelência, prefiro

dirigir-me a ti com alguma intimidade, haja vista que

ignoro a denominação que melhor definiria tua verve

artística. Posso chamar-te Cecília? Afinal, somos compa-

nheiras de uma vida inteira, apesar de jamais termos sido

formalmente apresentadas. Ainda não.

Page 31: Plural solombra

29

Cecília, cometeste um terrível pecado. Magoaste a

vaidade dos deuses e estes planeiam uma vingança

contra ti. Invadiste domínios herméticos, desbravaste

segredos que não poderiam ser desvelados diante do

leviano olhar humano. O que retendias com tamanho atre-

vimento? Prometeu roubou o fogo dos deuses e entregou-o

aos homens. Vê o que, por toda a eternidade, foi feito

dele!

Ainda não atinas para meu intento, pois bem?

Refiro-me aos poemas inominados, presentes em tua

obra Solombra. Sabes por que não conseguiste batizar

cada bloco de estrofes? Porque aqueles versos alexandri-

nos não são desse mundo, meu bem. Tua ousadia maculou

a cortina de luz e sombra que divide as realidades das

quais somos cativas.

Lançaste teu olhar muito além de zonas fronteiriças.

Ignoraste que o futuro sempre é adiado porque aos

homens compete apenas viver o presente ou relembrar o

passado. O que pretendias com tua determinação em ad-

quirir conhecimentos vedados aos mortais? O eterno só

diz respeito ao eterno, curiosa mulher. Ao idear sobre o

fugaz e o que não tem fim, transformaste tua angústia em

trapaça. Não é natural a clarividência humana acerca do

que, por todo o sempre, deveria permanecer invisível.

Há perguntas que somente existem a fim de que teus

semelhantes possam deslocar-se através do tempo, e não

para que sejam respondidas. Ao homem cabe só o instan-

te, é isso. Mentes limitadas inflamariam facilmente mesmo

que diante do mais breve vislumbre da eternidade. E

delas, não restaria sequer o pó do qual germinaram.

Aproximaste-te do fogo que forjou a humanidade. Todavi-

a, és tu feita de outro metal, leve e magnético. Talvez por

isso tua natureza atraia tudo que existe unicamente no

nada e que deveria permanecer ininteligível. Estranha-me

que tenhas mantido a sanidade, mesmo após descrever em

uma única e ligeira palavra o que há de efêmero e perpé-

tuo na história do tempo.

Page 32: Plural solombra

30

Drops | Por Emerson Braga

Disseste na epígrafe de teu livro que o termo

solombra surgira-te de um choque violento entre as

luzes do Céu e as trevas da Terra. O ruído que advém de

tal embate não deveria ser percebido por tua sensibilida-

de, Cecília. Tal som foi concebido para regalo

daqueles que não têm ouvidos, olhos ou boca. Por que,

desde antes, não ocultaste sob a pedra fundamental de

tua acuidade esse desejo tolo de ter ciência do que é

intangível?

Ao invés de ignorá-la, transformaste a palavra que

deveria ter permanecido incógnita em um cancioneiro.

Pior! Ofereceste-a para apreciação desses pobres vasos

de barro, que nada sabem das mãos do oleiro. Os poemas

presentes em tua obra balizam um caminho que não pode

ser percorrido em vida por nenhum homem, mulher!

Obsequiaste indivíduos ordinários com um mapa para as

mais virentes estrelas de nosso obscuro universo. O que

procuras na face de Eros, Psiquê? Por que insistes em

desbravar o mistério que deveria amansar-te a inquietu-

de?

Caminham por entre trevas aqueles que leem teus

reveladores versos e, quanto mais adentram a escuridão

dos misticismos e enigmas, mais se aproximam da vedada

claridão que não lhes pertence. Cecília, caso teus leitores

teimem em voltar-se para dentro, enxergarão o que na

verdade há fora, e isso não pode ser, jamais! O que será

da noite se as crianças perderem o ingênito medo do

escuro, senhora? É necessário que o interior desses

mamulengos permaneça ambíguo, desconhecido. Por que

não povoaste teus versos apenas de sombras? Qual o

propósito daqueles ― mesmo que raros ― lampejos de

luminosidade?

Page 33: Plural solombra

31

Temo por ti, pelo que te aguarda após teu passamen-

to. Esquece-te das tantas vezes que foste ferida

pelos homens, Cecília. Nada se compara à fúria de

deuses molestados em sua fatuidade, desejosos de

permanecer um mistério.

Não há meios humanos ou etéreos para desfazer tal

engodo. Em teus versos, luz e sombra tornaram-se tais

quais irmãs siamesas, inseparáveis, intrinsicamente

dependentes uma da outra. Teu ardil foi de uma sabedoria

astuciosa: Escreveste poemas na escuridão e, quando os

deuses perceberam que Solombra projetava sobre a Terra

a mesma luz que se encandeia nas mais altas esferas, tua

pertinácia já havia tornado-se irremediável farol.

Pelo resto do dia, procura pensar em tua defesa,

Cecília. Em breve serás julgada por teu profano ato.

Descansa, pois o definitivo clarão aproxima-se na mesma

andadura que as trevas avançam sobre tua teimosa cons-

tância.

Amanhã ao entardecer, sob o lusco-fusco, entre tre-

vas e luzes, virei buscar-te. Perceberás de imediato minha

presença, apesar de eu não ter rosto. Diferente daqueles

com quem dividiste tua passagem por esse mundo, eu não

sou. Chegou aquela que não é, talvez digas tu em um

último sussurro carregado de revelação.

Deixa que essas criaturas vulgares permaneçam na

contemporaneidade dos fatos, que sigam desmaiadas sob

coisas cotidianas, Cecília. Para que haveriam de saber

aquilo que pertence ao para sempre e ao nunca mais?

Não temas. Permite que o futuro alimente-se de

todas as instâncias, que ele torne-se presente e, depois,

passado. Amanhã caminharemos pela atemporalidade dos

seres e das coisas e então te contarei minha história, antes

que, invejosos ― feito o abutre de Prometeu ―, devorem

os deuses carne e ossos de tua faminta existência.

Pequena Lágrima Atenta

Page 34: Plural solombra

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Drops | Por Ana Claudia Marques

O que é realidade?

— Eis a pergunta que tomou conta de mim desde que come-

cei a delinear este artigo porque nós, escritores, temos o

péssimo hábito de inventar realidades; mas de onde vem essa

estranha necessidade?

Penso eu e hão de concordar, este é um hábito ancestral.

Deve ser uma inveja do poder criador que atribuímos aos

deuses — “se eles podem, eu também posso” — deve ter

pensado o primeiro inventor de histórias — “e vou fazer me-

lhor do que o original!”

Antes de Guttemberg ou dos papiros, já haviam histórias

sendo passadas adiante oralmente, de geração em geração. O

ser humano não entendia a sua própria realidade, e para

explicá-la, tentar decifrá-la e aplacar seus próprios medos,

inventou outras. Assim nasceram lendas sobre a criação deste

mundo; sobre moradas de deuses no Olimpo, em Asgard, ou

os Vedas, com todo seu panteão de deuses, e suas histórias; o

Xintoísmo, para os japoneses.

Obviamente todas as outras religiões: do antigo Egito, a

Judaica, e depois a Cristã, a Islâmica — falavam e falam de

outras realidades que eu só posso considerar como sen-

do “ficcionais”. Gerações e mais gerações se pautaram — e

se deixam pautar — por “realidades” inventadas, tentando

alcançá-las, e serem dignos de a elas pertencerem!

A ARTE DE FICCIONAR

A REALIDADE

Page 35: Plural solombra

33

Sinceramente, é invejável não só a capacidade destes primei-

ros contadores de histórias, que tem um público cativo até

hoje; tanto quanto o é a capacidade do ser humano de trans-

portar-se e acreditar em algo que não vê, não toca e não chei-

ra!

Nós, humanos do século XXI, não somos tão diferentes de

nossos ancestrais. Me arrisco a dizer que nosso cérebro conti-

nua no mesmo estado de evolução, precisando sempre de uma

realidade paralela para poder suportar a vida nua e crua. Ainda

há aqueles que matam em nome de suas realidades — vide

todas as brigas religiosas, ideológicas ou partidárias que

presenciamos diariamente, com espanto e horror. Quer um ca-

so de amor mais longo com a ficção do que a destas pessoas?

Podemos nos achar mais evoluídos, mas temos fãs clube para

Harry Potters, Sociedades do Anel, Nárnias, Heróis Marvel,

príncipes e princesas, vampiros etc, e nos rendemos a estas re-

alidades convincentes, sonhando e vivendo com elas.

O bom ficcionista nos encanta com uma realidade absurda-

mente verossímil, pois cria leis que a regem, convencendo

nosso cérebro de uma realidade que pode ser absurda ou pró-

xima ou distante, somos para lá transportados através das pá-

ginas de um livro, das cenas de um filme, novela ou através

das palavras de um bom contador de histórias.

Somos convencidos através da emoção que preservamos

dentro de nós, a salvo! Vemos com os olhos da imaginação e

nos deixamos conduzir, com os olhos da realidade bem fecha-

dos.

A arte de ficcionar a realidade, portanto, passa pelos cinco

sentidos. A nossa realidade só existe baseada neles. Portanto,

ao escrevermos, contarmos uma história, não podemos esque-

cer de temperá-la com sentido e sentimentos. Não há Terra

Média que sobreviva à falta de romance entre elfos e reis, ou

ideais a serem alcançados por heróis improváveis ou previa-

mente designados porque é exatamente isso que buscamos em

nossa realidade comum.

Page 36: Plural solombra

INTERFERENCIA

em uma folha EM BRANCO

...frágil, bastante frágil, penso eu, o

argumento das pessoas que defendem o uso

da palavra poetisa simplesmente porque

existe na língua portuguesa, como se a

língua fosse uma lei sagrada ou irrevogável

e não o movimento das dinâmicas sociais-

culturais-políticas-econômicas-sexuais-( ...).

Mas, mais quebradiço ainda é o argumento

de que o uso de poeta masculiniza a poeta.

Ora ora ora ora ora ora ora ora ora ora essas

mesmas pessoas não importam nem um

pepino em masculinizar a mulher usando o

corretíssimo (gramaticalmente) termo

Homem; as mães usando o corretíssimo

(gramaticalmente) Pais e todos os

intragáveis genêricos masculinos neutros

universais que invisibilizam o feminino…

Carla Carbatti

Page 37: Plural solombra

35

Capa | Solombra

[...] Tenho pena de ver uma palavra que morre.

Me dá logo vontade de pô-la viva de novo.

Solombra, meu novo livro, é uma palavra que

encontrei por acaso e que é o nome antigo

de sombra. Era o título que eu buscava

e a palavra viveu de novo.

Cecília Meireles

Page 38: Plural solombra

36

Capa | Solombra

N o espaço-mundo do homem, a linguagem é,

sem dúvida alguma, o seu diferencial, pois é

através dela que se pode pontuar, objetivar,

esclarecer, notificar — acredita-se que, sem

nenhum traço de ambiguidade. O diálogo é a forma mais

coerente de expressão e, quando impresso, trata-se de

um combinado de frases perfeitas, com palavras escolhi-

das com imenso cuidado.

O homem fala... se expressa.

O homem se faz entender.

Contudo, nesse mesmo espaço-mundo, existe o

silêncio, no qual a palavra não pode penetrar. E, as

expressões — todas — esbarram na quietude dos olhos,

esses mesmos que às vezes se fecham... sendo, em

alguns casos, por todo o sempre.

Page 39: Plural solombra

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A linguagem finda... pois o silêncio é seu limite

determinante. Estranhamente, algum autor maquiavé-

lico escolheu denominar essa façanha da Natureza com

a mais cruel palavra do dicionário dos humanos: morte.

Em busca de elementos de sobrevivência, o

homem elegeu o inimigo do silêncio para salvar-se: a

palavra. Surgia, assim, a literatura, sobre a qual

Blanchot nos orienta em seus estudos, quase como

quem oferece uma tábua salva-vidas: “a linguagem

literária não é acabada, nem inacabada: ela é” —

levando-nos a uma inevitável conclusão: somos —

falíveis.

Diante da morte, o homem sucumbe… É uma luta inglória. Não há como sobreviver,

mesmo tendo, em seu íntimo, o grito encardido da exis-

tência. O último sopro. A última tentativa. A última pa-

lavra. Adeus. Morrer significa pontuar de vez a sua e-

xistência. Morrer significa não mais existir. Ser esque-

cido. Abandonado.

Tantas interpretações possíveis, mas apenas uma

sincera e verdadeira — definitiva… a morte não é uma

questão para os que se vão e sim para os que aqui

ficam, porque o homem determinou a morte como sen-

do uma foice a ceifar sua existência. Dando um derra-

deiro fim à luz de seus olhos, à chama que arde em seu

peito.

Mas a morte, para os homens da arte, é mera

semântica… o escuro é o lugar úmido e aquecido, no

qual se encontra alento para o sofrimento da carne e es-

paço para os delírios da alma. É na luz onde tudo se

dissipa e a morte, para eles, é uma vírgula cravada em

seus passos firmes.

Page 40: Plural solombra

Capa | Solombra

Existir é qualquer coisa breve, momentânea.

Vive-se apenas enquanto se cria e a existência finda

quando a premissa se esgota. Um livro. Uma tela. A

vida é expirar… apropriar-se. A vida é o instante em

que tudo se orienta dentro e, do lado de fora… é mor-

te, fim. Nunca mais.

Morre-se milhares de vezes…

Durante a noite, quando o sono atinge os sonhos

e esses se esparramam pelos cantos de seu corpo, em

estado de repouso pleno. Volta-se à vida, essa falsa luz

anunciada pelas letras que o homem compõe como

sendo verdades... sendo, de todas, sua maior mentira.

Como saber se o sol é de fato luz, e não trevas, ou

como assegurar que a vida é de fato sopro, começo, e

não fim… morte?

38

Page 41: Plural solombra

39

Quero uma solidão, quero um silêncio,

Numa noite de abismo e a alma inconsútil,

para esquecer que vivo — liberta-me

das paredes, de tudo que aprisiona;

atravessar demoras, vencer tempos

pululantes de enredos e tropeços,

quebrar limites, extinguir murmúrios,

deixar cair as frívolas colunas

de alegorias vagamente erguidas.

Ser tua sombra, tua sombra, apenas

e estar vendo e sonhando à tua sombra

a existência do amor ressuscitada.

Falar contigo pelo deserto.

— Cecília Meireles in; Solombra —

Page 42: Plural solombra

“ “

40

Frente e Verso,

sobre poesia e poética

Carlos Felipe Moisés

O contato com a poesia implica opera-

ções extremamente complexas, que me

põem em relação com um número

surpreendente de graus e níveis de

realidade. Ler um poema (com as devi-

das adaptações, valerá também para

escrever um poema) significa acionar

mecanismos de percepção que, de for-

ma mais ou menos elaborada, captam

os vários estratos do texto — o visual,

o sonoro, o semântico, o sintático —,

os quais adere, por associação ou ana-

logia, uma quantidade de referências

de ordem psicoafetiva, biográfica,

histórica, geográfica etc., que todo

poema, por elementar que seja,

contém.

Page 43: Plural solombra
Page 44: Plural solombra

42

origamis Akira Yamasaki

quando sinos cobram em alto e claro som pelo troco da desdita do pássaro indagante quando o peso infame das dores indignas dobra o corpo e o mar do pássaro incitante quando baixam marés e os choros regressam do muro da garganta do pássaro intrigante quando bolha de sabão o entendimento degenera e se dissolve nos olhos do pássaro instigante origamis de grous azuis na maca de emergência adormecem nas mãos do pássaro inquietante

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— F I M —

Zélia Guardiano

Não há ponte

Entre vida e morte

De sorte que

Se salta no infinito:

Frêmito esquisito

Pulo macabro

Do alto do telhado

Da cumeeira

Da existência

Em que se queda

Para sempre

Num abismo:

Vertigem

Vórtice voraz

Que começa aqui

E vai acabar

No nunca mais

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a cantiga da morte Karin k. carteri

a canção que a Morte entoa é blasfema, inconcebível

fala do prazer da dor e da extrema agonia de morrer nos braços

da Negra Dama

ela nos abraça no escuro ela nos embala sem pressa

Nos mostra o silêncio Nos engana— e conforta

Dama Negra— mentirosa, ardilosa e vil. sempre pontual

canta sua canção de notas cruéis e anuncia nossa hora próxima

— nossa hora vizinha!

ela nos acaricia no berço nos observa na praça

nos acompanha no carro e nos espera— sedenta

Page 47: Plural solombra

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a canção que a Morte canta é Infinita

fala de ganhos e perdas tem estrofes repetidas

em um interminável refrão!

ela nos sorri na estrada nos beija na testa

nos espera— faminta Nos engana e conforta

a canção que a Morte sussurra será a última em nossos ouvidos!

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Escuto

Jeanne Callegari

nada se ouve.

o telefone não toca, as chaves

não tilintam na porta

que não se abre.

ninguém pisa duro no chão

para desgosto da senhora

que mora embaixo.

ela deve estar contente, agora.

das caixas de som não sai

ruído ou balada

hip hop ou lamento

tantos discos garimpados

compositores raros

nenhum toca, agora.

naquela manhã, o telefone tocou pela primeira vez –

o alt-country que sempre me acordava

mas era de manhã, e eu

sonolenta, resmunguei

deixei que tocasse

Page 49: Plural solombra

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quando o telefone tocou pela segunda vez,

estava no banho. não quis molhar o tapete, o chão

e se escorregasse?

o telefone tocou pela terceira vez. eu me precipitava

pelas escadas

atrasada, como de regra.

aonde ia, tão apressada?

não voltei para atender.

o telefone vibrou na bolsa.

dessa vez respondi.

é como dizem: certas notícias correm rápido.

da janela, disseram. vigésimo andar.

desde então as gentes me olham, enternecidas.

recebo muitos abraços.

dizem que você faria de toda maneira

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se não naquele dia,

em outro

em breve.

dizem que já estava decidido.

e eu me pergunto: o que o teria movido

naqueles últimos instants

uma despedida?

odiava bilhetes. não deixou nenhum

dramáticas, você dizia

– das pessoas que deixavam bilhetes.

você sempre disse

que gostaria de ir em silêncio

sem alvoroço

que não houvesse choros ou censuras

que a morte era de cada um para escolher

o momento.

eu cobria os ouvidos.

Page 51: Plural solombra

49

só depois — agora —

quietude.

como você queria.

escuto:

nada toca

você não entra com estrépito pela porta

não assovia desafinado

ou dança catira para incomodar a vizinha

silêncio. de ruído apenas

o som dos telefonemas

daqueles três telefonemas

que soaram

ressoaram

e eu não atendi.

Page 52: Plural solombra

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A morte é uma puta Bah Bee Paiva Esses sonhos em linha reta Embaralhados pelos meus passos tortos Me fazem enxergar um futuro Na palma da mão, Na borda do copo, No fundo do seu olho Esse discurso engasgado Enquanto me arrasto Por essas ruas, com seus discos embaixo do braço Parece estar sempre prestes a me matar Saltar de pontes, Jogar-me na frente de carros, Flertar com a morte, Cobiçar seu riso sacana, Eu nunca me tornarei Alguém diferente disso.

Page 53: Plural solombra

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Soneto Póstumo Luiz Gonzaga Leite Fonseca

Morri, digo-lhes: estou feliz Aqui de cima nestes vastos céus azuis,

Vejo meu túmulo e meu nome sobre a cruz, Provisoriamente escrito a giz.

Em meu caixão solitária flor-de-lis, Adorna o meu cadáver em osso e pus,

E meu espírito envolto em áurea luz, estável, abre a boca e assim diz:

Desculpem-me, mas perdi o entusiasmo, Foi o desencanto, a rotina, este marasmo,

A falta de amor que me mataram,

Mas no mundo é viver e morrer, não tem dilema, Mas deixo-me aqui, em forma de um poema,

Aos póstumos que me amarão e aos poucos que me amaram.

Page 54: Plural solombra

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Primeira hora Thereza Christina Rocque da Motta

Verás como verter palavras.

Escolherás as horas

e beberás toda vez

a morte

em pequenos goles.

Não, não terás dúvidas.

Mais uma vez estarás só,

tu e tua estatura, como quem

aprende a altura para saltá-la.

O verso de tuas mãos te dói,

o alentado peso de tuas cicatrizes.

És quem soubeste ser.

Procura teu longo espelho.

Nada restará de ti,

então, começa agora

a descartar teu peso.

Page 55: Plural solombra

A HORA QUE PASSA

“ “

53

Ame doidamente alguém, mas nunca

abdique nem uma só das suas graças,

nem uma só das suas ideias que lhe

fazem vincar a fronte às vezes com

uma pequenina ruga de capricho e

insolência, que fica tão bem às

mulheres bonitas; não ajoelhe nunca,

porque está nisso o nosso grande mal,

o nosso profundíssimo erro; nós

invertemos muitas vezes os papéis,

e em proveito deles, e

depois as consequências são muitas

vezes as paixões que devastam uma

vida inteira por criaturas que se

dignam dar, por último, como humilde

mortalha, um olhar de compaixão!

Muitas vezes as nossas mais delicadas

atencoes, as nossas maiores provas de

amor, os nossos cuidados, são como

aquelas perolas que um dia alguem

atirou a uns porcos...

Trecho do monólogo

“Florbela Espanca — a hora passa”

Page 56: Plural solombra

...cheguei à Livraria da Vila — no Shopping

Higienópolis — pouco depois das seis, às portas do monó-

logo "Florbela Espanca — a hora que passa"... ainda em

tempo de orientar-me em uma pequena fila que me

levaria ao anfiteatro, um lugar que acontece entre

livros...

O primeiro contato com a atriz Lorenna Mesquita/

Florbela se deu durante a caminhada até o assento... com

olhar ameno, vestimentas comuns, negras... uma mulher-

atriz-poeta acontecia no canto do palco, sentada em uma

cadeira, colocada ali propositalmente para que público e

personagem se encontrem e se inventem... meu olhar —

confesso — pensou imediatamente em um verso qualquer

de Florbela e sua intensidade... uma das poucas poetas que

parece viver a escrita e nos deixa na condição de leitor,

imerso na condição desconfortável de ler e não a saber,

apenas imaginar uma realidade. Um punhado de perguntas

se orientam em nós de maneira natural... uma vez que a

escrita de Florbela traça aos nossos olhos, uma mulher

insatisfeita com a vida rural da década de vinte e que

cometeu suicídio aos trinta e seis anos, no ano de 1930.

Entrevista | Lorenna Mesquita

A HORA QUE PASSA

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"Se passar do dia dos meus

anos, morrerei de velha".

O monólogo, escrito por Loreena — é resultado de

um processo de pesquisa desenvolvida ao longo de três

anos... além de estudar com afinco a escrita de Florbela

Espanca, a atriz visitou às principais cidades portuguesas

em que a poeta viveu — Vila Viçosa, Évora, Lisboa, Porto

e Matosinhos — visitando as casas, a biblioteca, o túmulo

em destaque no cemitério. O resultado foi um vídeo-diário

de bordo e mais de três horas de espetáculo.

Fernando Pessoa diz que todo poeta é um grande fin-

gidor. E isso vale para os artistas.

Mas eu me permito sentir em cena os sentimentos da-

quele personagem. E no caso de Florbela, procuro estar

viva no palco e passar toda a verdade daquela mulher.

Naquela hora eu não a represento, eu sou ela.

PLURAL — de todas as poesias de Florbela, qual delas

ecoa em sua anatomia de mulher-atriz-escritora?

Lorenna Mesquita — sou apaixonada pelas poesias de

Florbela. Impossível eleger apenas uma. Posso escolher

uma por dia, de acordo com o meu estado de espírito.

Inclusive é assim que muitas vezes seleciono as poesias

que serão publicadas na fanpage que mantenho no

Facebook (Florbela Espanca — Poeta), a única página em

que ela publica (e responde) em primeira pessoa.

Mas se for para escolher algum pensamento que me defina

como pessoa e como artista, não seria um poema e sim

uma frase, um questionamento: "Por que eu não nasci

igual aos outros, sem dúvidas, sem desejos de impossível?

E é isso que me traz sempre desvairada, incompatível com

a vida que toda gente tem".

PLURAL — você visitou (tocou) com os olhos, os pés e

Fotografia. Adriana Elias

Page 58: Plural solombra

56

Entrevista | Loreena Mesquita

PLURAL — É fato que o ator leva algum tempo para se vestir

da personagem no dia da apresentação. Como é o seu processo

de desconstrução da Lorenna e reconstrução de Florbela?

Lorenna Mesquita — Florbela já está entranhada na minha

pele. Normalmente saio de casa com o figurino da peça e vou

ficando introspectiva. Quando entro em cena já sou ela, com a

respiração diferente e me aproprio de toda sua vida. Todos os

seus conflitos, suas angústias, sua força e feminilidade naque-

la hora são meus. O mais difícil é sair da personagem. A cena

final do espetáculo é muito forte emocionalmente e me suga

todas as energias. Depois de cada sessão, promovemos um ba-

te-papo com público e muitas vezes a minha voz ainda está

embargada. Numa das apresentações, senti uma angústia tão

intensa que tive dores no peito por uma semana. Fernando

Pessoa diz que todo poeta é um grande fingidor. E isso vale

para os artistas. Mas eu me permito sentir em cena os senti-

mentos daquele personagem. E no caso de Florbela, procuro

estar viva no palco e passar toda a verdade daquela mulher.

Naquela hora eu não a represento, eu sou ela.

Page 59: Plural solombra

PLURAL — de todas as poesias de Florbela, qual delas ecoa

em sua anatomia de mulher-atriz-escritora?

Lorenna Mesquita — sou apaixonada pelas poesias de Flor-

bela. Impossível eleger apenas uma. Posso escolher uma por

dia, de acordo com o meu estado de espírito. Inclusive é assim

que muitas vezes seleciono as poesias que serão publicadas na

fanpage que mantenho no Facebook (Florbela Espanca —

Poeta), a única página em que ela publica (e responde) em

primeira pessoa.

Mas se for para escolher algum pensamento que me defina

como pessoa e como artista, não seria um poema e sim

uma frase, um questionamento:

"Por que eu não nasci igual aos outros, sem dúvidas, sem

desejos de impossível? E é isso que me traz sempre

desvairada, incompatível com a vida que toda gente

tem".

PLURAL — você visitou (tocou) com os olhos, os pés e

também a alma os mesmos pousos da poeta Florbela ao visitar

uma Portugal moderna-antiga-contemporânea. Como essa

viagem maculou seus pensamentos, sentimentos? Que tipo de

simbiose ocorreu na pessoa-atriz-mulher Lorenna?

Lorenna Mesquita — quando fui a Portugal, em 2013, já estu-

dava Florbela há dois anos. E eu precisava conhecer a terra

em que ela nasceu, respirar o mesmo ar, andar pelas mesmas

ruas e imaginar como aquelas cidades eram na

época em que ela viveu. Conheci lugares em que ela

passou e tentava projetar de que forma ela era influenciada

por aqueles ambientes.

57

Page 60: Plural solombra

E se ela tivesse vivido em outros lugares, como teria sido sua

vida? Quem ela seria? Florbela mesma dizia que, uma pessoa

é formada pela influência de um conjunto de fatores: heredita-

riedade, educação, ambiente e destino. Durante a viagem,

descobri que eu não estava apenas em busca de Florbela Es-

panca. Eu estava em busca de mim mesma. Essa viagem foi i-

nício de uma mudança imensa na minha vida pessoal e profis-

sional.

PLURAL — você vem de outra cidade, esteve em Portugal e

outros tantos lugares e hoje, é certo dizer que vive em São

Paulo, certo? A maioria dos artistas carregam na amálgama um

pouco dos lugares onde estiveram. Conta pra gente o que é

saudade em sua pele hoje?

Lorenna Mesquita — me preencho dos lugares onde vou.

Absorvo sotaques, expressões, cheiros, paladares, cultura. Sou

parte de cada lugar que visito e deixo um pouquinho de mim

também. Desde que fui embora de casa, há dez anos, do que

eu sinto mais saudade é da minha família. Estou longe de

todos e queria muito estar por perto, vivendo a rotina: tomar

café da manhã, passear, conversar ou só ficar do lado em

silêncio. É essa saudade que me habita.

58

Entrevista | Lorenna Mesquita

Page 61: Plural solombra

59

PLURAL — como vê esse impulso à exposição da intimidade,

que fica explicita nas redes sociais, programas de televisão,

nos deixando com a sensação de que estamos o tempo todo di-

ante dos olhares de uma velha senhora em sua janela, figura

folclórica das pequenas cidades?

Lorenna Mesquita — as pessoas estão muito carentes de

atenção. E a carência é resultado da insegurança. Elas que-

rem chamar atenção o tempo todo, pedindo aprovação dos

amigos em forma de "curtidas" nesse mundo virtual. Um mun-

do em que elas vivem mais do que sua própria vida.

Já cansamos de ver as pessoas com o celular na mão atraves-

sando as ruas, esperando um ônibus, dirigindo ou mesmo num

bar com os amigos. Todos estão conectados virtualmente e

desconectados de suas vidas reais.

E chegam ao ponto de perder a noção, contando em praça

pública — como costumo chamar as redes sociais — coisas

que mal falariam para os mais íntimos.

PLURAL — a internet escancarou radicalmente o nosso pior

lado. O preconceito e julgamentos estão a mil nas "vozes" —

geralmente — sem rostos que vociferam ofensas, atirando

pedras para todos os lados. Qual o rótulo que mais te incomo-

da?

Lorenna Mesquita — Me incomodo com qualquer rótulo que

venha repleto de intolerância. Na verdade, só de ser um rótulo

já não é coisa boa. Porque significa que você definiu aquilo ou

alguém e não está aberto a olhar de outra maneira. E na inter-

net é ainda pior. Estar atrás da tela do computador ou do celu-

lar dá uma falsa noção de poder. Tem gente que acha que pode

falar o que quiser, julgar, colocar uma pessoa na fogueira por-

que não concorda com a ideia dela. Não há mais diálogo.

Cada um só quer defender o seu ponto de vista e não escuta o

outro. Há muita intolerância na internet, que também é resul-

tado da postura que a pessoa adota para a sua vida. A internet

só potencializa quem a pessoa é e faz cair a máscara.

Page 62: Plural solombra

PLURAL — Está na moda falar de uma infância onde muito

se brincava e aprendia com brincadeiras de ruas, viagens de

trens... nos conte como foi a sua. Será que você tem alguma

travessura para nos contar?

Lorenna Mesquita — tive uma infância muito feliz. Eu fui uma

verdadeira moleca. Gostava de brincar de bola, de boneca, de

carrinho, esconde-esconde, andar de patins, pular elástico.

Sempre estava rodeada de amigos e gostava de ser a palhaça

da turma. Na escola brincava de chorar e de ter filho (fingia

as dores do parto no intervalo das aulas). Mas nunca fui de

muitas travessuras. Minhas brincadeiras sempre foram muito

saudáveis. Sempre fui muito responsável, talvez por conta da

minha rotina. Meu dia era preenchido com muita atividade.

Após o colégio, eu me dividia entre as aulas de inglês e de

piano (entrei para o conservatório de música aos 4 anos de

idade e só saí aos 15, já formada). E em casa estudava as

lições com a minha avó, que adorava fazer sabatina de mate-

mática e português. E pra mim, isso também era uma grande

brincadeira.

60

Entrevista | Lorenna Mesquita

Page 63: Plural solombra

61

Estou suspensa. O abstrato das nuvens e traços de

Badida, nenhuma tela, nem mesmo um caco vitral. O

rosto que era face evaporou em sons multicoloridos.

Sou uma pata loura brincante, um ganso querendo

afogar-se, cágado querendo tomate, liberdade com asas,

olhos do mistério e da simplicidade. Agora há uma

interrogação estilística rasgada na cara, no que era chita

e seda.

Fui dispensada de viver como os homens; agora os

observo de cima. A saudade por vezes invade. Vivências

e amores passados surgem com uma nostalgia absurda.

O que foi… O que não foi… O que será? A esperança

tem olhos puxados e olhar misterioso.

Enxertos de cobras em peles de gado, uma multi-

dão de livros em estantes ambulantes, tambores sinco-

pados, negrinhos cantando e dançando. Cavalos galo-

pando, cabras em jardins. Nuvens. Nuvens. Nuvens. Va-

lentia em chutes, tocos e panos esganados. Quanta gente

polida, sem vida. Coloco sal no angú, atiço pra ver no

que dá.

As pessoas são realmente estranhas. Uma pupila

dilatada na calada da noite é um lobisomem, um bicho

do mato, uma onça pintada. Calma minha senhora, as

pessoas são estranhas, é preciso aprender a amar o tem-

po. O vento forte bate na porta, os astros arrastam, es-

quenta o coração, palpita. Não há ilusão. Observo e

questiono anéis em cordões. Uma meota, um amor vão?

Como é ruim sair daqui, não quero outro mundo, quero

o profundo.

A COSMOLOUCURA

DA NATUREZA HUMANA

Ensaio | Beliza Parente

Page 64: Plural solombra

62

Bloomsbury

— Isso é um bar brasileiro?

— Sim. — respondeu também em inglês a mulher de

jaqueta de couro que fumava na penumbra, do lado de

fora do Guanabara.

Eu devo ter aquiescido com um leve aceno de ca-

beça, dado um meio sorriso e retomado minha caminha-

da de volta ao Astor, onde estava hospedado, quando ela

perguntou:

— Por quê?

— Sou do Brasil. — disse me reaproximando.

— Eu falo português. — ela completa migrando para o

idioma luso com destreza notável para uma inglesa. —

Amanhã vou dançar neste bar. Se quiser vir...

— Claro. Venho, sim.

Curiosa, a forma novidadeira como nos comportamos

em viagens. Eu desejaria sinceramente ser animado na

vida ordinária por uma fração mínima do interesse pelo

mundo que manifesto fora de meu país natal. Naquela

tarde, eu me empolgara com o sistema de aluguel de

bikes do Hyde Park e estendera a pedalada até os jar-

dins de Kensington, vizinhos ao bairro de mesmo nome.

O trânsito de bicicletas de Londres já seria razão sufici-

ente para me fascinar, mas, como se não bastasse, pas-

sei rapidamente a dominar as principais linhas dos len-

dários ônibus vermelhos de dois andares. Neles eu

perambulara de East London a Notting Hill. Aguardava

um desses, que seguisse no sentido centro, quando fui

abordado por uma garota cujo sotaque só não tornava

seu inglês mais macarrônico que o meu. Tratava-se de

Conto | Francisco Ohana Bloomsbury

Page 65: Plural solombra

63

uma francesa recém-chegada à Inglaterra, que pedia in-

formações sobre que condução pegar para ir à parte nor-

te da cidade. E foi isso — precisamente isso — que dei

a ela, informações sobre que condução pegar para ir à

parte norte da cidade, a despeito de sua mochila nas

costas e de seu estilo hipster, que a metros de distância

já haviam despertado meus sentidos. Nos despedimos e,

à medida que a via partir, eu insistia inutilmente em me

convencer de que preferia voltar ao hostel.

Saltei inconformado de ira e autopiedade em algum

ponto de Covent Garden, onde comi uma porcaria qual-

quer no McDonald’s ou Burger King. Rendido pelo

cansaço, eu andava a esmo de volta ao Astor e me dis-

traía com os detalhes pitorescos do trajeto quando me

encontrei nos arredores da Gordon Square. Era noite,

mas a pouca luminosidade não me impediu de enxergar

uma placa identificando a casa em que havia morado o

economista John Maynard Keynes. Reconheço que não

há nada de muito interessante até aí. Mais adiante, no

entanto, outra placa distinguia o número em que vivera

Virginia Woolf. Tomei um susto de quem pressente es-

tar em um lugar interessante e estranhamente familiar.

Eu girava sobre meus calcanhares, olhando para todos

os lados sob a impressão de ser aos poucos insuflado

pelas sugestões do carrossel sexual do Bloomsbury

Group. Se, por um lado, eu me via à sombra de decisões

cruciais no ambiente de incerteza e pressão de um uni-

verso com probabilidades subaditivas, que rodeavam,

por exemplo, a francesa de Kensington, por outro, eu

tinha ganas de gritar — de dar o delicado grito de liber-

dade de uma Mrs. Dalloway. Esses impulsos domina-

vam meus pensamentos quando vi o Guanabara, na Par-

ker Street, umas duas ruas abaixo do British Museum.

Estava disposto a fazer da noite seguinte a redenção de

alguém que não fora a Camdem e sequer havia se inte-

Conto | Francisco Ohana Bloomsbury

Page 66: Plural solombra

64

ressado por entrar num pub. Com os brios postos à pro-

va e mordido, eu iria atrás da mulher da noite anterior.

Ao som de hits amazônicos dos anos noventa, peguei

uma cerveja e sentei num canto para esperar a apresen-

tação de samba e dar uma prospectada no ambiente. Eu

observava de longe uma garota de meias de renda escu-

ras, vestido preto de mangas e cabelos loiros acima dos

ombros. O tédio já se apoderava de todas as minhas si-

napses quando começou o espetáculo circense de horro-

res. A inglesa da véspera, uma asiática e dois capoeiris-

tas começaram então a desenvolver uma série de coreo-

grafias esdrúxulas, que contribuíam inequivocamente

para a consolidação do estereótipo da República de Ba-

nanas. Após o fim do circo de pulgas, a inglesa sumiu

com seu penacho nos bastidores. Restava buscar a garo-

ta das meias escuras, de quem todos se aproximavam

depois do espetáculo de dança, quando a festa esquen-

tou.

Eu já tirava conclusões precipitadas sobre minha perso-

nalidade e meu reduzido prazer de viver quando começa

a tocar uma canção brasileira de qualidade duvidosa,

para dizer o mínimo. A fim de tirar algum proveito da-

quela merda, concluo que é minha deixa, minha grande

chance de triunfar. Convidei-a para dançar.

— Esse não é meu tipo de música. — ela disse.

— Nem o meu.

— Quer sair para um cigarro?

Eu fumaria todos os maços do mundo naquele momento

a fim de ver meu esforço finalmente recompensado.

Sentia os ventos a meu favor, mas tive certeza de que

Deus era brasileiro ao descobrir que Justine era france-

sa. Não por nada; é uma questão de charme. Descemos

Conto | Francisco Ohana Bloomsbury

Page 67: Plural solombra

65

ao mesmo lugar em que encontrara a passista de Sua

Majestade, onde os fumantes inveterados se entreti-

nham em nuvens de risadas. Conversamos longamente.

Ela elogiou meu francês, disse que eu usava constru-

ções gramaticalmente muito sofisticadas. Disse também

que, apesar de morar em Paris, adorava retornar ao sul

da França, onde nascera e praticava caça com seus ca-

chorros. Enquanto ela falava, eu imaginava aquele chu-

chu perseguindo perdizes na relva com catorze beagles

em coleiras e um faisão domesticado no braço esquer-

do. Ela ensaiou comigo o passo básico da valsa, e ainda

posso me lembrar da sensação de abraçar sua cintura,

colocando minha perna direita entre as dela. Trocamos

contatos e ficamos de nos encontrar no dia seguinte

para um café.

Tentei encontrá-la em Londres, sem sucesso. Mas sou

um jogador! Ainda teria quinze dias de viagem, além de

uma última passagem por Paris, antes de retornar ao

Brasil. Tentei encontrá-la, sem sucesso. Sei que pode

soar melancólico, mas, a cada cigarro que uma mulher

acendia em Saint Germain-des-Prés, eu pensava vê-la,

perdendo-me entre falsos sinais de fumaça.

— Um falafel de frango com verdura, por favor. — pedi

em bom francês numa rua do Marais, enquanto acendia

um cigarro imaginário na boca de Justine.

Conto | Francisco Ohana Bloomsbury

Page 68: Plural solombra

66

Não estamos preparados

para o nada que somos

Conto | De Marcus Di Bello

A sensação de enjoo continua. Tento vomitar na

privada. Não consigo. Volto pelo corredor

do AP mandando fumaça pra dentro e tentando lembrar

aquele solo do Barão Vermelho. Porque aqui é assim

que se vive. Você ainda não aprendeu? Tem que se ape-

gar em algo. Esta cidade está condenada. Esta cidade

enlouqueceu. Ela não sabe mais o que quer. Ora Sol for-

te queimando a cabeça, ora céu fechado escuro ranzin-

za. Desde a morte daquele candidato a presidência da

república que o céu não ficava desse jeito, tão fechado

escuro ranzinza. Semana difícil. Semana bem difícil.

Mas a vida seguiu, o sofrimento não acabou, continua-

mos no zero a zero e o juiz é um grande filho da puta.

Da janela do AP vejo o formigueiro de gente lá

embaixo. Desço as escadas do prédio, passo imperceptí-

vel pelo porteiro e sou levado pelo vento até a rua. Não

estamos preparados. Essa é a real. Jogaram algo tão

valioso em nossas mãos que não sabemos nem como

começar direito. Não estamos preparados para a vida.

Não estamos preparados para o nada que somos. Estou

numa esquina movimentada e ninguém se olha. Tenho

vontade de gritar no meio da calçada. Sei que alguém

Page 69: Plural solombra

Conto | De Marcus Di Bello

67

vai me olhar. Alguém precisa olhar. Não é possível que

todos estejam ligados no automático. Muitos olham

para o chão. Poucos olham na horizontal. Raros são os

que olham para o céu. Triste. Não estamos preparados.

"Acorda pra vida!"

O passante nem parou. Seguiu o seu caminho.

Olho para o céu. Crio uma zona de contemplação. Não

sei quanto tempo fico assim. Talvez bastante, talvez al-

guns segundos. Começo a pedir dinheiro na rua. Numa

cidade pequena seria um forasteiro. Nesta cidade sou a-

penas mais um cara pedindo dinheiro na rua. Consigo

uns trocados e peço uma garrafa de cerveja num conhe-

cido bar de esquina.

"Deseja mais alguma coisa?"

"Desejo. Aquela árvore ali."

"Não tenho como trazer."

"Então é isso por enquanto."

Por enquanto é isso. Tudo como tem que ser.

Estou bebendo e pensando na vida. Outros pilotam

aeronaves. Outros se masturbam. Outros gerenciam

empresas. Outros jogam conversa fora. Eu estou beben-

do e pensando na vida. O enjoo passou. Ainda bem.

Finjo um sorriso e olho para o céu. Está tudo bem. Ain-

da bem.

Page 70: Plural solombra

68

Porque era neste azul

que eu me queria todos os dias

Conto | Mariana Gouveia

Ela me deu de presente uma cor.

Azul, azulzinho! Não era esses tons que se mistu-

ram entre tantos e se transforma em azul bebê, azul co-

balto, azul celeste e por aí vai.

Não! Quando ela me deu o presente me disse:

— Tome a cor azul! É tua!

E desse então, eu passei a conviver com a cor. O

céu, quando eu jogava meus olhos para lá, estava ele em

sua cor mais linda que há e nos olhos do bebê da vizi-

nha e nas canções que eu ouvia. No amor que ela me

trazia todas as manhãs.

As cortinas que balançam com o vento — que era

azul, um dia eu vi — as florezinhas miúdas que nasciam

no meu quintal, tinham a cor que era minha e embora

elas abrissem só pela manhã, no resto da tarde, choves-

se ou fizesse sol, havia lá no miolo o resquício da cor.

Fazendo presença no meu lugar.

Mas, um dia, ela se foi. Não sei se com medo da

guerra que meu amor travava em nós, ou se pela insegu-

rança que a paz do meu abraço causava na alegria dela.

Ela se foi e com ela levou a cor, que eu guardava nas

coisas dela para manter sempre em segurança, com

medo de alguém roubar.

Page 71: Plural solombra

Conto | Mariana Gouveia

69

Se foi e deixou apenas o silêncio e o papel de pre-

sente amassado junto com as coisas que iriam pro lixo e

no lugar do azul, o gris invadiu meu quarto, o chão, o

céu e meu lugar. Não havia lugar que eu olhasse que o

cinza e seus variados tons fazia questão de se apresen-

tar.

Mas, onde ele mais se mostrava inquilino, desses

que não sai de jeito nenhum, era no interno de mim.

Dentro, onde antes o azul predominava, o cinza tornou-

se uma cor invasora e teimava em acinzentar tudo que

eu sentia. Foi aí que descobri que a saudade tem cor e

aos poucos vai desbotando seu coração e sufocando

toda palavra com o nome, o pensamento, o cheiro dela e

a falta.

De vez em quando, as ruas pareciam começar a

azular, nas esquinas, entre um riso iluminado quando eu

a via passar. Mas, era apenas um borrado que você erra

e esquece de apagar e que com o tempo, desbota.

Percebi que eu deveria cobrar meu presente, já que ela

havia me dado, e fui, com o papel do presente amassa-

do, ainda com o cheiro dela, reclamar do que seria meu

por direito. Mas, o que vi, foi alguém com a minha cor

no sorriso que trocava com ela, e vi que o azul continu-

ava tão bonito ali, entre a semelhança de tudo que vi

que minha alma se tingiu de outra cor. Hoje sou verme-

lha! E ruborizo tudo que toco, mas é naquele azul que

eu me queria todos os dias.

Page 72: Plural solombra

70

Terminal Rodoviário,

a caminho de casa

Conto | Roseli Pedroso

— Maria, tô vexada! — disse a mulher na segunda fila do

ônibus, numa conversa afiada com a amiga, enquanto todos

os demais estavam entretidos com seus telefones celulares

—, cridita que peguei o cachorro filo dumégua na minha

cama com minha melhor amiga? Cão da peste! Affê! Qui tô

putcha da minha vida!

— Severina, mulé de Deus! Diga isso não! Tô passada

cuma notiça dessa! Quandio foi o sucedido?

— Sexta passada! Depois de trabalar um dia inteiro fazen-

do faxina em casa de bacana, chego em casa arriada de can-

saço e o que encontro? O sem vergonha, filo d’ um tinhoso

com a rapariga desdentada no maió desfruti em minha ca-

ma! Safados!!!!! Logo na minha cama novinha que nem

terminei de pagar ainda! Fiz o crediário em 24 meses! O

cochão é do bão cumadi! E o filo dum’égua me leva a outra

pro desfruti na minha cama novinha!

— Qui ce fez?

— Fiz o maió escandalo que toda a vizinhança saiu pra ver.

Vuô pena de galinha véia pra tudo que foi lado. Peguei as

coisa daquele safado e joguei na rua! Joguei tumén aquela

traidora. Aquela que não saia di casa, tomando meu cafezi-

nho, aquela faladora miserave, qui mi apunhalô nas costas.

Aquela que um dia dei guarida quando chego cuma mão na

frente e outra atrás, lá do norte faminta, esquelética, mofa-

da e suja! Disgrama de muíé, ajudei a consegui o primeiro

emprego, dei ropa minha, sapato meu, até calcinha empres-

tei mó de que a disinfeliz nem isso tinha. E agora abocanha

meu home? Tá certo que é um tranquera, mas era meu! Não

Page 73: Plural solombra

Conto | Roseli Pedroso

71

valia o que comia, mas era meu!

— E Severina, e agora? Tá suzinha, tá? O desgramento foi

de vez ou já vortô?

— Quero sabe mais desse traste não! Qui sô muié de uma

palavra só! Ele apareceu, joguei água nele, telefonô queren-

do voltá e desliguei na cara dele!

— Eita qui eu quiria se ansim! Mas me diga uma coisa: jo-

go fora aquele cochão? Sim porque eu num deitaria nele

mais é nunca!

— Tá maluca muié! Tô pagano ainda o crediaro e vô jogar

fora um cochão tão bão? O que fiz foi lava as ropa de cama

bem lavadim, despois quarei no sol, passei bem e tá novo!

A cama é boa, o cochão é bão e já tá prontinho para o

próximo e que o fioti seje mió!

— Tá me dizeno o quê? Ainda qué tê outro? Affê?!...

— Maria qui prigunta muié! Tô viva e tenho um fogo qui

valamedeus! Demorô! Qui venha o próximo e depressa,

viu? Oie, que chegou o nosso onbus.

Page 74: Plural solombra

72

O PODER DA PALAVRA

Ensaio | Loreena Mesquita

Acabo de ver o filme O Menino do Pijama Listra-

do, inspirado no Best-seller de John Boyne sobre um

garoto de oito anos que se torna amigo de um menino

judeu, da mesma idade, preso num campo de concentra-

ção nazista. As duas crianças conseguem conversar e

brincar através do arame farpado que as deveria separar

e nos mostram a pureza das relações humanas, mesmo

no meio da cegueira, da ganância, das mentiras, como

diz Florbela Espanca de “toda essa comédia humana

que me suja e a quem eu não perdôo sujar-me”.

Falar de nazismo não é um assunto que me agrade.

Além de todo sofrimento do povo judeu, questiono co-

mo as pessoas se deixaram manipular daquela maneira?

Como os nazistas conseguiram destilar e propagar tanto

ódio? Mas ainda bem que esse horror passou. Passou

mesmo? Infelizmente ainda há muita manipulação nas

igrejas, na política, nos grupos e redes sociais. As pes-

soas são muito manipuláveis. Pior, gostam de ser mani-

puladas. Querem que um líder as diga como agir e não

questionam. Desde criança escuto que o dom da palavra

é a arma mais poderosa que alguém pode possuir. E ela

pode ser usada para o bem ou para o mal.

Page 75: Plural solombra

Ensaio | Loreena Mesquita

73

Desde cedo também aprendi que o Ser Humano se

distingue dos outros animais justamente pela sua capa-

cidade de raciocínio. Quando pequenos, somos muito

questionadores, temos o olhar apurado e o coração aber-

to para aceitar o novo e o que é diferente de nós. Mas

quando adultos, alguns perdem a capacidade de questio-

nar e aceitam o que lhes apresentam como verdade. Pes-

soas “bem instruídas” clamam pela volta da ditadura.

Líderes religiosos propagam a homofobia. Político afir-

ma que as mulheres têm sim que receber menor salário

que os homens, porque elas engravidam.

O machismo não é exclusivo da sociedade brasi-

leira ou de países do terceiro mundo. Ele também está

presente nos países “desenvolvidos”, na maior potência

econômica mundial. A vencedora do Oscar de melhor

atriz coadjuvante, Patricia Arquette, em seu discurso

pediu pela igualdade salarial entre homens e mulheres

nos Estados Unidos. Sabia que seria ouvida por milhões

de pessoas e aproveitou a oportunidade de chamar aten-

ção para o assunto.

A questão salarial é um dos menores problemas.

Também por causa do machismo impregnado, mulheres

são violentadas sexualmente e moralmente dentro e fora

de casa, inclusive nas universidades. Por causa da into-

lerância, homossexuais apanham nas ruas e precisam

lutar a cada dia por direitos civis básicos. Por causa do

racismo velado, negros sofrem preconceitos por onde

andam, até em salas de aula, desde criança. Há quem

ache isso tudo normal e ainda aceite ter sua opinião gui-

ada e inflamada por “falsos profetas”. A palavra é a

arma usada para deixá-la na ignorância.

Page 76: Plural solombra

Mas também é a palavra a melhor arma para fazê-la

acordar. E foi com o poder da palavra que a modelo Waris

Dirie ganhou as páginas de jornais internacionais ao denun-

ciar a mutilação genital feminina e após relatar ter sido víti-

ma dessa prática abominável que ainda é comum em 28

países da África e em mais outras dezenas de países de fora

do continente que receberam imigrantes. Mais de 150

milhões de mulheres já tiveram o clitóris extirpado (com

caco de vidro e lâminas caseiras, sem anestesia), porque a

cultura e a religião local pregam que mulher não deve sen-

tir prazer.

Outras palavras que ganharam o mundo foram as da

menina paquistanesa Malala que recebeu o Prêmio Nobel

da Paz. Ela lutou pelo direito à educação feminina e, por

isso, foi baleada na cabeça num atentado praticado pelo

Talibã, quando saía da escola. Felizmente sobreviveu. O

mais irônico nos relatos da sua autobiografia, é que o ma-

chismo, a corrupção e a manipulação presentes na socieda-

de paquistanesa não são muito diferentes do que vivemos

no mundo ocidental. Em algumas passagens da leitura,

parece uma narração feita por uma criança brasileira, tama-

nha similaridade.

Ainda bem que existem mais pessoas questionadoras

como Arquette, Waris e Malala. O questionamento leva à

ação e à mudança. Para mudar é preciso estar vazio, livre

de qualquer amarra ou pensamento pré-concebido. Olhar o

outro com os olhos daquelas duas crianças do filme que,

mesmo com a adversidade do arame farpado, conseguiram

construir uma relação baseada no respeito. E respeito é

sinônimo de liberdade.

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Ensaio | Loreena Mesquita

Page 77: Plural solombra

Ensaio | Loreena Mesquita

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SOMBRA DE MIM

Ensaio | Hugo Ribas

Não sou metido a escritor, talvez minha arte

seja ou outra... Mas deposito em você, caro papel,

parte de mim. A mais escura, talvez. E escolho essa

parte porque dela nasce o que há de mais autêntico

dentro desse coração cujo solo árido já não pode mais

de puras águas beber. Sei que dessas linhas nada de

muito agradável pode surgir... Aliás, não sou o tipo

agradável, e gosto de ser assim. Admiro a antipatia e me

esforço em desagradar. A amargura faz parte da minha

essência, por isso tenho preferência por cortinas fecha-

das, decoração sóbria em demasia e da quietude. Faço o

que muitos não tem coragem. Ultrapasso a fronteiro do

bom senso, sem medo. Vou me despindo, aos poucos,

de toda luz e de toda cor. Sobra apenas isso. Minhas

mágoas e infelicidades. Rancores encarcerados. Raivas

disfarçadas.

Page 78: Plural solombra

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O breu de uma alma puramente lúgubre. Sinto

orgulho do que tantos outros sentiriam vergonha.E faço

de lodo, argila. Arranco do solo seco, poeiras em venta-

nia, feito melodia.

Da sombra se faz sol.

Chego até a me enganar…

Utopias de artista que de arte nada tem.

Não, não posso me envergonhar.

Queixo erguido, estou a me olhar. Espelho de

mim. Sombra de mim. Fonte inesgotável de inspiração,

e agora compreendo o porque de tantos caminhos,

bifurcações e indecisões. Encontro no amargor

da irrealização sombria, uma razão. Uma razão apenas.

Escrevo.

E descrevo em ti, amigo papel, o que há de mais

puro em mim: os porões da minha alma.

Chego ao fim e vejo que isso é bom. Cada frase,

cada palavra, cada sílaba. Carregadas e verdade. Isso é

bom. É bom e belo. Ainda que sombrio,efeito luz.Uma

luz negra, a resplandecer e trazer a tona um motivo

para ser feliz, ainda que padeça na penumbra da infeli-

cidade.

Page 79: Plural solombra

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