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PODER E SUBJECTIVAÇÃO SEGUNDO FOUCAULT E DELEUZE LUIS MANUEL DA SILVA LAVOURA ___________________________________________________ Dissertação de Mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea Abril de 2009 Orientador: Prof. Doutor Adélio Melo FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DO PORTO

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PODER E SUBJECTIVAÇÃO SEGUNDO FOUCAULT E DELEUZE

LUIS MANUEL DA SILVA LAVOURA

___________________________________________________

Dissertação de Mestrado em Filosofia Moderna e Contemporânea

Abril de 2009 Orientador: Prof. Doutor Adélio Melo

FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DO PORTO

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RESUMO Esta dissertação de mestrado pretende analisar o pensamento de Foucault e Deleuze, e as suas práticas genealógicas na análise das relações de poder, dos micro-poderes e dos pontos ou forças de resistência. Através destes dois filósofos são analisadas as sociedades disciplinares e as sociedades de controlo e os processos de subjectivação do sujeito através das diversas práticas dos poderes e dos saberes, e das múltiplas tecnologias e estratégias de dominação. Nas modernas sociedades de controlo os processos de subjectivação emergem dos dispositivos disciplinares e de controlo, e do biopoder. As práticas genealógicas, a crítica e a resistência têm por função desenredar as linhas dos dispositivos para inventar ou criar modos de existência e linhas de subjectivação. Analisar-se-á a possibilidade de linhas de fuga nas actuais sociedades de controlo partindo do princípio que tal processo de individuação terá de ter na base – sendo este o fio condutor – a genealogia, a crítica e a resistência para superar a linha de forças dos dispositivos. Palavras-chave: genealogia, poderes, micro-poderes, sociedade disciplinar, sociedade de controlo, subjectivação, resistência, crítica, ética.

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Summary

This master’s dissertation examines the theories of Foucault and Deleuze

and their genealogical practices in the analysis of power, micro-power

relations and of the points or resisting alliances.

Through these two philosophers, the disciplined societies and the control

societies will be analyzed as well as the process of individualization through

the diverse practices of power and knowledge, multiple technology and

domination strategies.

In modern control societies, the processes of individualization appear in

the disciplined mechanisms of control and bio-power. The genealogical

practices, the critique and the resistance have the purpose of unraveling the

device lines so as to invent or create modes of existence and individualization

lines.

The possibility of tangents in recent control societies will be analyzed

from the maxim that this individualization process must have as its basis –

this being the stream of thought - genealogy, the critique and the resistance

to overcome the force lines of the mechanisms.

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ÍNDICE Introdução ……………………………………………………………. 5 Capítulo I - Poderes e Micro-poderes …………………………………6

1. As práticas e as análises genealógicas ou críticas 2. Poderes e a microfísica do poder 3. Biopoder e Biopolíticas

Capítulo II - As Sociedades Disciplinares……………………….. .. …36 1. As disciplinas: corpo – alma 2. As disciplinas e o poder disciplinar 3. O panóptico e o panoptismo actual Capítulo III - As Sociedades de Controlo………………………….......55

1. As sociedades de controlo 2. O controlo e a resistência

Capítulo IV - Linhas de subjectivação e a actual sociedade de controlo..65 1. Racionalismo e crítica: a repetição do acontecimento

e a actualidade de hoje 2. O plano de imanência e a tarefa ética: liberdade… 3. Dispositivos, linhas de subjectivação e a relação a si 4. Subjectivação e resistência nas actuais sociedades

de controlo Conclusão………………………………………………………………… Bibliografia ……………………………………………………….. .

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem como ponto de partida o pensamento de Foucault e Deleuze, dentro do âmbito de uma analítica das relações entre poder e saber, nas sociedades disciplinares e de controlo. Tenta-se compreender como as relações de poder conduzem Foucault da genealogia à ontologia do presente e à problematização. E sobretudo procura-se entender em que medida a genealogia foucaultiana e os conceitos deleuzianos ainda podem servir de análise, hoje, para compreender as actuais sociedades de controlo. O fio condutor que perpassa por todos os capítulos é que a crítica genealógica, a autonomia crítica do pensamento, e os pontos ou forças de resistência se cruzam entre si e estão interligadas às próprias relações de poder, quer para delas se distanciar quer para produzirem mais relações de poder. E é a própria crítica, pensamento e resistência que permitem espaço à própria acção e reprodução do poder. E, igualmente, são elas que conduzem o indivíduo à ética permitindo-lhe desse modo uma acção própria que o faça “suportar” o poder. E, finalmente têm ainda um outro propósito mais vasto que é o de permitirem ao indivíduo uma linha de fuga para construir um «Si-Próprio» que escape à relação poder-saber. Mas quanto a este último propósito Deleuze adverte que não é certo que seja possível, pelo menos na maior parte dos dispositivos. Contudo, visto que a dimensão do «Si-Próprio» é algo sempre inacabado que o indivíduo maneja através das práticas genealógicas, da autonomia crítica e da força da resistência, fica talvez, a exigência do apelo das forças da existência para o indivíduo utilizá-las como se fossem orientações de si próprio com vista a fazer da sua vida uma obra de arte. A questão do saber e do poder está directamente ligada com a constituição do sujeito, que remete para a subjectivação uma vez que segundo Foucault são os múltiplos e diferentes dispositivos, constituídos por práticas discursivas e extradiscursivas, instalados em rede nas sociedades, que produzem através de determinados processos, a modelagem ou constituição dos sujeitos, e das suas subjectividades ancoradas às estratégias de dominação na trama da história. Esta Dissertação está dividida em quatro capítulos, cada um deles dedicado ao estudo de uma problemática que se actualiza continuamente no presente. O primeiro capítulo começa com a análise que Foucault faz da genealogia, e para isso é estudado um texto seu intitulado “Nietzsche, a Genealogia e a História” no qual Foucault pretende fazer uma análise genealógica das relações poder-saber. A genealogia nietzschiana opõe a história dos historiadores à “história efectiva” que faz surgir o

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acontecimento. Este traz o “novo” para a actualidade gerando, assim, uma ontologia crítica do presente. E deste modo a sua pesquisa torna-se numa “problematização” que retoma as questões singulares com um pensamento crítico. As relações de poder, enquanto poderes e micropoderes, têm efeitos múltiplos sobre a liberdade dos sujeitos e provocam processos de subjectivação e produzem subjectividades. Por entre estas linhas de força dos diversos dispositivos do poder emergem focos ou forças de resistência que estão entrecruzadas no interior do próprio poder e que são elas próprias forças de poder capazes de transformar o poder. Por fim, o biopoder através das biopolíticas controla e administra as populações e as manifestações globais da vida biológica. Como exemplo, é exposto o problema do racismo nas actuais sociedades de controlo. No capítulo dois, é analisada a sociedade disciplinar baseada nas técnicas de coercção com o objectivo de tornar os corpos dóceis e úteis para servirem o aparelho de produção. As disciplinas e os procedimentos disciplinares estiveram na base desta sujeição. É posta em funcionamento toda uma “anátoma-política”. O modelo Panóptico é um dispositivo que visa a gestão disciplinar e o controlo dos indivíduos. Hoje, numerosas instituições ainda possuem uma arquitectura física panóptica ou tecnologicamente pró-panótica; o esquema panóptico funciona ainda como mecanismo disciplinar e de controlo. No capítulo terceiro, são analisadas as sociedades de controlo sobretudo através dos conceitos de Deleuze. O controlo é feito na sociedade através da normalização, modelando a existência de cada indivíduo e os processos de subjectivação. Finalmente, o quarto capítulo foca os processos de subjectivação que objectivam os sujeitos e que também podem gerar processos de individuação como o «Si-Próprio» enquanto linha de fuga que escapa às forças estabelecidas e aos saberes constituídos. Nas modernas sociedades de controlo, que modos de subjectivação ou de existência, podemos inventar perante a expansão dos dispositivos de controlo, do biopoder e das biopolíticas? Haverá possibilidades de linhas de fuga, de novas linhas de subjectivação? Ou será que as actuais sociedades de controlo não permitem linhas de fuga? Ou será que permitem, mas para de imediato absorve-las para o interior da relação de forças dos dispositivos de poder? E que linhas de força de resistência podem os indivíduos criar perante a expansão dos novos controlos tecnológicos e sociais?

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Capítulo I - PODERES E MICRO-PODERES 1. As práticas e as análises genealógicas ou críticas É a partir da publicação da Arqueologia do Saber (1969) que Foucault começa a interessar-se pelo poder na sua relação com o saber, aparecendo explicitamente essas relações de saber-poder no seu livro Vigiar e Punir (1975) que ele considera a primeira “referência livresca”1 para a mudança no rumo da sua investigação da arqueologia para a genealogia. (tirar livresca). Entretanto, entre a publicação dos dois livros atrás mencionados Foucault publica um texto intitulado “Nietzsche, a Genealogia, a História”2 (1971) onde ele se confronta com alguns livros de Nietzsche que colocam em questão a diferença entre a história dos historiadores e a genealogia. Sobretudo o que Foucault procura em Nietzsche é um desafio para pensar o impensável. “Qual o máximo de intensidade filosófica e quais são os efeitos filosóficos actuais que podem ser tirados desses textos? Eis o que era para mim o desafio de Nietzsche.”3 A tarefa de Foucault é perscrutar a actualidade, é dizer não só o que somos hoje mas também apontar a fractura ou ruptura por onde aparece aquilo que hoje existe e que poderia não existir ou não ser o que hoje é. O seu objectivo desloca-se para uma genealogia das relações de poder-saber que se opõe à maneira tradicional de fazer história, a chamada história dos historiadores. A filosofia de Nietzsche foi um dos eixos sobre o qual Foucault operou a sua passagem da arqueologia para a genealogia e pode-se encontrar neste texto pistas para o surgimento do emergir da sua pesquisa dos micro-poderes e das micro-relações, que se fará de modo explícito no seu livro Vigiar e Punir. É também a partir das práticas genealógicas – “genealogia significa que encaminho a análise a partir de uma questão actual”4 – que ele define o acontecimento enquanto irrupção de uma singularidade histórica que conduzirá à actualidade e necessariamente à ontologia crítica do presente com as consequentes acções de resistência por parte do sujeito enquanto faz uso da sua razão. Igualmente, é por esta via genealógica que ele liga a história do pensamento a todos os seus livros pois ele mesmo afirma que aquilo que procura fazer é a “a história das relações que o pensamento mantém com a verdade; a história do pensamento, uma vez que ela é pensamento sobre a verdade.”5 É também esta pesquisa genealógica que permite a Foucault problematizar as suas questões. Ele mesmo afirma: “A noção que

1 Foucault, Michel, Microfísica do Poder (1979), trad. de Roberto Machado, São Paulo, Edições Graal, 2007, p. 237 Nota: nesta como nas restantes notas de rodapé em que for citado um livro em edição brasileira o português do Brasil é adaptado ou transcrito para o português de Portugal. 2 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. II (1994), trad. de Elisa Monteiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2005, p. 260 3 Idem, p. 322 4 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. V (1994), trad. de Elisa Monteiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006, p. 247 5 Idem, p. 241

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unifica os estudos que realizei…é a da problematização.”6 Segundo Foucault problematização “não quer dizer representação de um objecto preexistente, nem tão pouco a criação pelo discurso de um objecto que não existe. É o conjunto das práticas discursivas ou não discursivas que faz alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objecto para o pensamento (seja sob a forma da reflexão moral, do conhecimento científico, da análise política, etc.).”7 É através deste conceito de pensamento que Foucault desenvolve o tema da actualidade e pode pensar um acontecimento singular que já aconteceu na história mas que ainda nos atravessa. O pensamento nem é um conjunto de representações nem é um campo de atitudes. O pensamento não é o que dá sentido a uma conduta. O pensamento “é, sobretudo, aquilo que permite tomar uma distância em relação a essa maneira de fazer ou de reagir, e tomá-la como objecto de pensamento e interrogá-la sobre o seu sentido, suas condições e seus fins.”8 É deste modo que a questão acerca da singularidade histórica, “Was ist Aufklärung?”, surge como problematização e actualidade, pois o pensamento é “o movimento pelo qual dele nos separamos, constituímo-lo como objecto e pensamo-lo como problema.”9 É assim que a problematização das Luzes é colocada hoje, como um acontecimento que ainda nos atravessa, porque este tipo de pesquisa traz até nós a época em que esta questão foi colocada enquanto problematização que não varia cronologicamente e que continua a interpelar o pensamento do homem. Assim a problematização actual de um determinado acontecimento pode acrescentar uma nova solução às diferentes soluções que já decorreram também de uma outra problematização específica numa dada época. Este trabalho do pensamento é uma análise crítica que vai debruçar-se sobre as soluções já apresentadas para o problema e qualquer outra solução que propusesse iria apenas modificar alguns princípios sobre os quais assentavam as soluções já apresentadas. É deste modo que é pensada na actualidade o acontecimento “Was ist Aufklärung” que foi o momento histórico “em que a razão pode aparecer em sua forma “adulta” e “sem tutela”… esse momento em que a razão conquista autonomia.”10 A filosofia deve interrogar-se sobre este momento histórico, sobre o que é e o que significa o predomínio da razão “no mundo moderno, através dessas três grandes formas: do pensamento científico, do aparato técnico e da organização política”11, escreve Foucault citando Kant. A problematização é assim “um movimento de análise crítica”.12 Chegamos assim à ontologia crítica da actualidade trazidos pela análise genealógica. As singularidades históricas prolongam-se assim através do modo genealógico na actualidade. A problematização é um exercício crítico do pensamento cujo o objectivo é de problematizar e não de encontrar soluções definitivas para os problemas. A genealogia recusa as géneses lineares, ordenadas, lógicas pois “o mundo das coisas ditas e desejadas”13 conheceu “invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias”.14

6 Idem, p. 242 7 Ibid 8 Idem, p. 232 9 Ibid 10 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. II (1994), trad. de Elisa Monteiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2005, p. 314 11 Ibid 12 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. V (1994), trad. de Elisa Monteiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006, p. 233 13 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. II (1994), trad. de Elisa Monteiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora

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A genealogia age minuciosamente “meticulosa e pacientemente documentária”15. O genealogista percebe que “a neutralidade de sentimento ou a objectividade”16 não deriva de uma origem primeira que deva guiar todas as boas consciências, mas que afinal não é mais do que “filha da educação e do hábito”,17 isto é, de uma história, onde “por trás da verdade, sempre recente, avara e comedida, há a proliferação milenar dos erros”.18 O genealogista deve “deter-se nas meticulosidades e nos acasos dos começos”19 para assim “saber conhecer os acontecimentos da história, seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas que dão conta dos começos”.20 Parafraseando Fernando Pessoa, o mistério das coisas é as coisas não terem mistério nenhum. Assim como o segredo da essência das coisas, é que elas são sem essência. As coisas não têm um segredo essencial nem uma origem sem data, elas irrompem ao longo da história. A genealogia recusa que a procura da origem das coisas seja a procura da sua essência enquanto lugar da verdade. Esta ideia de que para descobrir a verdade é necessário ir à origem é o erro da verdade. A genealogia opõe-se “ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias”,21 isto é, opõe-se à pesquisa da origem enquanto metafísica. Ela não se opõe à história nem ao sentido histórico, mas sim à pesquisa da origem. Foucault escreve que o sentido histórico quando deixar de se dominar pelo ponto de vista supra-histórico “escapará da metafísica para se tornar o instrumento privilegiado da genealogia se ele não se apoia em nenhum absoluto.”22 À história tradicional é necessário opor a história efectiva que recusa qualquer ponto de apoio ou de estabilidade e qualquer apreensão da totalidade. É necessário “reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser”23 que se opõe ao movimento contínuo da história dos historiadores que a apreendem na sua totalidade, enquanto a história efectiva aniquila toda a estabilidade em que aquela assenta porque “o saber não é feito para compreender; ele é feito para cortar.”24 A genealogia ao recusar a pesquisa da origem, detém-se “nas meticulosidades e nos acasos dos começos”25 e dos episódios de onde emergem relações de micro-poderes que se entrecruzam e se enlaçam de modo rizomático e horizontal no quotidiano pelo meio do qual irrompem micro-relações, fora da totalidade fechada e supra-histórica. Segundo Nietzsche, a genealogia é definida como uma pesquisa da “proveniência” e da “emergência”. Deste modo ele evita e recusa, a busca da origem ou da essência, e o encontro com a metafísica. A pesquisa da proveniência visa “descobrir todas as marcas, subtis, singulares” e diferentes que se entrecruzam num indivíduo e que formam “uma rede difícil de desembaralhar”26 e que geralmente é apagada pela visão histórica dos historiadores. Esta rede é formada por poderes e micro-poderes. Pois na raiz do que conhecemos e do

Forense Universitária, 2005, p. 260 14 Ibid 15 Idem, p. 260 16 Nietzsche, Friedrich, Aurora, trad. Rui Magalhães, Porto, Editora Rés, s/data, p. 73 17 Ibid 18 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. II (1994), trad. de Elisa Monteiro, 2ª ed. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2005, p. 263 19 Idem, p. 264 20 Ibid 21 Idem, p. 261 22 Idem, p. 271 23 Idem, p. 272 24 Ibid 25 Ibid 26 Idem, p. 265

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que somos não há a verdade e o ser, mas apenas a exterioridade dos acidentes, e esta exterioridade é composta potencialmente por uma miríade de relações de força que são poderes que agem sobre aquilo que nós sabemos e conhecemos por “cálculos erróneos que fizeram nascer o que existe e tem valor para nós.”27 A proveniência da moral é transmitida e não adquirida. Esta herança da proveniência resulta de um conjunto de falhas que se vai reflectir no corpo, e fragmentar o que parecia imóvel e unificado. O eu ou sujeito desaparece enquanto continuidade. “A injustiça e a instabilidade no espírito de alguns homens, sua desordem e falta de medida são as consequências últimas de inumeráveis inexactidões lógicas, de falta de profundidade, de conclusões prematuras das quais seus ancestrais se tornaram culpados,”28 estas palavras de Nietzsche citadas por Foucault revelam que para Nietzsche o homem é vítima de todas as mistificações, e que só uma análise lúcida e uma reflexão crítica e autocrítica de si próprio, podem acrescentar à razão domínios considerados irracionais ou heterogéneos. Como afirma Foucault a investigação da proveniência não funda nem identidades nem homogeneidades, “muito pelo contrário: ela agita o que antes se percebia como imóvel, fragmenta o que se pensava unificado; mostra a heterogeneidade do que se imaginava conforme a si mesmo.”29 Sendo assim, este tipo de investigação tem por fim alargar as dimensões da razão, para incluir na sua tarefa crítica o pensamento do desabamento da identidade, e do ponto de vista supra-histórico com o seu ideal contínuo, evolutivo e teleológico. A razão e a crítica são inseparáveis, talvez sejam uma só e a mesma coisa, tal como a história do pensamento e a verdade. Para Nietzsche os instintos são energia, intensidade, uma força ou forças que irrompem através do corpo. É no corpo que a proveniência se manifesta através da actividade dos seus instintos. Nietzsche pretende a reabilitação das forças e das energias dos instintos, ou seja, os instintos estão doentes e reprimidos pelas diversas dominações e sujeições a que o homem foi submetido, e assim enfraquecidos voltam-se contra ele próprio para o destruir. O que ele pretende então, é a libertação do homem no sentido de que as forças dos instintos, enquanto potência e vontade activem e espicacem o corpo, e a razão enquanto capacidade crítica. A história da civilização foi uma decadência devido ao apagamento continuado dos instintos nas diversas formas de racionalidade histórica. Mas a genealogia não confunde as formas históricas de racionalidade com a razão, e é por isso que ela nunca deixa de ser uma actividade crítica. O corpo é um espaço onde se exercem relações de força, de poder, micro-poderes e micro-relações, é um campo de batalha que se debate e luta com “o estigma dos acontecimentos passados, assim como dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele também se ligam e subitamente se exprimem, mas nele também se desligam, entram em luta, se apagam uns e outros e prosseguem seu insuperável conflito”.30 Os acontecimentos inscrevem-se no corpo trespassando-o, e por isso tornam-se móveis e susceptíveis de mudar de lugar e de perspectiva, e de se entrecruzarem com outros acontecimentos. A genealogia “deve mostrar o corpo inteiramente marcado pela história, e a história arruinando o corpo”.31 Porque é sobre o corpo que são estabelecidas as estratégias de dominação e de sujeição, e é sobre o corpo que todas as instituições se debruçam para controlá-lo, dominá-lo, e impor-lhe um determinado saber. A proveniência relaciona-se com o corpo, “o corpo é o lugar da origem: no corpo se

27 Idem, p. 266 28 Ibid 29 Ibid 30 Idem, p. 267 31 Ibid

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encontra o estigma dos acontecimentos passados, assim como dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; ”32 É no corpo que eles entram em luta num interminável conflito de poderes e micro-poderes. O corpo está numa permanente intercessão com a história. “A genealogia, como análise da proveniência está, portanto, na articulação do corpo com a história.”33 Os diferentes modelos de racionalidade que historicamente têm predominado têm vindo a esvaziar o homem da potencialidade e da energia do corpo e isso tem como consequência, tal como afirma Nietzsche, a desordem e a instabilidade no espírito do homem. É portanto, devido ao esvaziamento das energias do corpo que o homem se torna submisso, porque incapaz de pensar por si próprio e de fazer um uso livre da razão. E segundo Nietzsche, a civilização organiza-se de modo “a entravar poderosamente o desenvolvimento da razão, dos desejos, do gosto pela independência.”34 Neste sentido, a genealogia pretende desenvolver na sua investigação o exercício crítico de uma razão poderosa. Para Nietzsche, esta razão poderosa é uma razão exercitada a pensar criticamente. A doença civilizacional provoca a ruína do corpo, e impede o homem de usar o seu poder crítico para libertar-se e transformar-se. Segundo Deleuze, na concepção nietzscheana “o que se opõe à razão é o próprio pensamento.”35 Para o genealogista “pensar é julgar, mas julgar é avaliar e interpretar, é criar valores.”36 E que tipo de crítica é esta? “A instância crítica é a vontade de poder, o ponto de vista crítico é o da vontade de poder.”37 É deste modo que ele realiza a crítica imanente. O que está na própria razão é a vontade de poder que se torna num princípio genealógico. “Só a vontade de poder… está apta a realizar a crítica interna. Só ela torna possível uma transmutação.”38 O objectivo da crítica não é a justificação, mas “sentir de um modo completamente diferente: uma outra sensibilidade.”39 Sendo assim, esta crítica aponta também para uma transformação do homem, para um si-próprio que se cria e se inventa numa estética de existência. É através do corpo que as forças de poder sobrevivem e subsistem, numa relação que identifica o tempo com o corpo dominado. Esta relação em movimento aloja-se no corpo. O poder tal como o tempo não está em lugar nenhum. O poder exerce-se tal como o tempo se vive. Mas as mesmas relações de poder estão presentes tanto no tempo como no corpo como na vida. As relações de poder instalam-se no corpo marcando-o e controlando-o livremente. O corpo é o lugar de encontro das estratégias dos poderes e dos micro-poderes que eficazmente actuantes prolongam as estratégias, de dominação, de submissão e de resistência a nível local. O corpo fica enredado na rede dos diversos dispositivos e agenciamentos, na cumplicidade com a sua própria sujeição, derivado das acções da sua subjectividade. O corpo não é neutro nem independente, ele “é uma força produtiva… ele é obrigado a trabalhar, porque ele é investido por forças políticas, porque ele é capturado nos mecanismos de poder”.40 Longos e transversais poderes e micro-poderes atravessam e constituem o corpo.

32 Ibid 33 Ibid 34 Nietzsche, Friedrich, Aurora, trad. Rui Magalhães, Porto, Editora Rés, s/data, p. 117 35 Deleuze, Gilles, Nietzsche e a Filosofia, trad. António M. Magalhães, Porto, 2001, p. 141 36 Idem, p. 142 37 Ibid 38 Idem, p. 138 39 Idem, p. 142 40 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. IV (1994), trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006, p. 259

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Temos o hábito de pensar o aparecimento das coisas como fins últimos, mas estes “não passam do episódio actual de uma série de submissões”.41 O presente não deriva de uma destinação oriunda de uma origem, mas sim de “diversos sistemas de submissão”42 no “jogo casual das dominações”.43 Não é a “potência antecipadora de um sentimento”44 que gera o presente mas sim um estado de forças em jogo que irrompem, lutam, combatem e entram em cena. Para lá da análise da proveniência a genealogia completa-se com a investigação da emergência. A emergência é “o ponto de surgimento… o princípio e a lei singular de um aparecimento”45, num determinado estado de forças. Por exemplo, a emergência de uma espécie ou a emergência das variações individuais produzem-se em estados de forças diferentes. A emergência refere-se ao aparecimento e é por isso um lugar de afrontamento porque estão sempre presentes determinadas forças que irrompem e entram em acção. “ Enquanto a proveniência designa a qualidade de um instinto, sua intensidade ou seu desfalecimento e a marca que ele deixa no corpo, a emergência designa um lugar de confrontação.”46 A genealogia assim constituída opõe-se à história dos historiadores. Opõe-se ao ponto de vista supra-histórico e que “lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de fim do mundo.”47 A genealogia, através do seu sentido histórico, não se apoia em nenhum absoluto e tem “um olhar que distingue, reparte, dispersa, deixa agir as separações e as margens – uma espécie de olhar que dissocia…”48 Ela “reintroduz no devir tudo aquilo tudo aquilo que se havia acreditado imortal no homem.”49 Sendo assim, Nietzsche afirma que os sentimentos mais nobres e desinteressados têm uma história e os instintos que parecem ser constantes e estar sempre em acção, são sujeitos a transformações históricas. Além disso, ele demonstra-nos que o corpo não pode fugir à história e que tem outras leis para além das da sua fisiologia, e que ele “é dominado por uma série de regimes que o constroem.”50 O corpo do homem é manipulado, intoxicado, e impelido a produzir-se. Os seus instintos são anestesiados, e tomados de assalto pelas forças da história. São-lhe impostos ritmos de vida no quotidiano que parecendo opcionais e desejados apenas têm por função individuá-lo e construi-lo segundo as relações de poder. Deste modo ele é fabricado enquanto indivíduo, “é destroçado por ritmos de trabalho, de repouso e de festas, é intoxicado por venenos – simultaneamente alimentos ou valores, hábitos alimentares e leis morais”.51 Segundo nos diz Foucault um dos traços característicos da genealogia de Nietzsche é a valorização que ele dá ao acontecimento, fazendo-o surgir naquilo que ele tem de único e singular. O acontecimento é uma relação de forças que se confrontam no acaso da

41 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. II (1994), trad. de Elisa Monteiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2005, p. 267 42 Idem, p. 268 43 Ibid 44 Ibid 45 Idem, p. 267 46 Idem, p. 269 47 Idem, p. 271 48 Ibid 49 Ibid 50 Idem, p. 272 51 Ibid

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luta. A genealogia afirma que vivemos enredados e entrelaçados num número indeterminado de acontecimentos. É a partir destas linhas de investigação acerca da genealogia de Nietzsche que Foucault vai desenvolver as suas próprias pesquisas e desenvolver a sua própria análise genealógica. Para além do texto “Nietzsche, a Genealogia, a História” (1971), Foucault pronunciou – antes da publicação do livro Vigiar e Punir (1975) – cinco conferências na Universidade Católica do Rio de Janeiro entre 21 e 25 de Maio de 1973, publicadas nos Cadernos PUC nesse mesmo ano, intituladas A Verdade e as Formas Jurídicas onde ele explana os três eixos de pesquisa em que se encontrava a trabalhar e que de certo modo seriam desenvolvidos, retomados ou transformados em Vigiar e Punir e nas suas obras posteriores. O próprio Foucault informa que todas as pesquisas que vai referir têm por base as obras de Nietzsche pois que considera o seu modelo mais eficaz e o mais actual. Daí que tenha sido analisado logo no início deste trabalho o texto de Foucault “Nietzsche, a Genealogia, a História”, pois a genealogia foucaultiana tem por base ou está relacionada com a genealogia nietzscheana. Um dos eixos de pesquisa investiga como “as práticas sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objectos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento.”52. Foucault vai mostrar como é que no século XIX se formou “um certo saber do homem, da individualidade, do indivíduo… que nasceu das práticas sociais do controlo e da vigilância.”53 O segundo eixo de pesquisa é a “análise dos factos de discurso… como jogos estratégicos, de acção e de reacção, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta.”54, Por fim, o terceiro eixo de pesquisa é a reconstrução de uma nova teoria do sujeito que “se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fecundado e refundado pela história.”55 De certo modo, todas estas pesquisas apontam na direcção de um projecto genealógico. Na primeira Conferência, Foucault afirma o papel predominante das práticas sociais na constituição dos objectos dos saberes ou práticas discursivas, e por outro lado, a sua importância na própria constituição da subjectividade do sujeito do conhecimento. Ele antecipa, também, uma das linhas que irá desenvolver em Vigiar Punir, que é a análise das práticas jurídicas ou práticas judiciárias enquanto práticas sociais, nas quais se localizam facilmente a emergência de novas formas de subjectividade e de onde nasceram os modelos de verdade. Foucault escreve que o que pretende mostrar com estas Conferências é que “as condições políticas, económicas de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento, e, por conseguinte, as relações de verdade.”56 Com esta afirmação Foucault desembaraça-se de uma certa concepção política que considerava que a relação do sujeito com a verdade era velada pelas relações sociais ou políticas que se impunham do exterior ao sujeito do conhecimento. “Só pode haver

52 Foucault, Michel, A verdade e as formas Jurídicas (1973), trad. Roberto Machado, 3ª ed., Rio de Janeiro, Editora Nau, 2005, p. 8 53 Ibid 54 Idem, p. 9 55 Idem, p. 10 56 Idem, p. 27

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certos tipos de sujeito de conhecimento, certas ordens de verdade, certos domínios de saber a partir de condições políticas que são o solo em que se formam o sujeito, os domínios de saber e as relações com a verdade.”57 Para fazer a história da verdade ele tem de livrar-se “destes grandes temas do sujeito do conhecimento… utilizando eventualmente o modelo nietzscheano.”58 Foucault pretende fazer uma história da verdade, por conseguinte uma história do pensamento. E para ele, foi a partir das práticas judiciárias que nasceram os modelos de verdade, que passaram a circular em todos os domínios da sociedade. E é para fazer a história da verdade que ele inicia a investigação que surge no livro Vigiar e Punir. Esta história da verdade, é feita a partir das análises genealógicas que nos conduzem a certas formas de subjectivação, que estão ligadas às relações de poderes e micro-poderes por meio das quais o sujeito constitui-se historicamente. Para as análises genealógicas o nível discursivo está em constante articulação com o nível das práticas sociais. Existem vários lugares na sociedade “onde a verdade se forma, onde um certo número de regras de jogo são definidas – regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjectividade, certos domínios de objecto, certos tipos de saber – e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer uma história externa, exterior, da verdade”.59 Para além desta história externa da verdade, há uma outra história interna da verdade “que se corrige a partir de seus próprios princípios de regulação: é a história da verdade tal como se faz na ou a partir da história das ciências”.60 Estas duas histórias da verdade, parecem ser indissociáveis e formarem os chamados jogos da verdade, baseados em regras que levam a que quando o sujeito diz algo acerca de um objecto isso depende da questão do verdadeiro e do falso, que predomina no regime de verdade em que ele é formado historicamente. O que significa que os modos de subjectivação, estão em relação íntima com a objectivação da constituição dos objectos de conhecimento. A partir das práticas judiciárias impôs-se a determinados indivíduos práticas regulares que se foram modificando sem cessar ao longo da história, e que geraram “tipos de subjectividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade”61 que invadiram e se impuseram em todos os domínios pessoais e sociais. É importante referir estas análises de Foucault acerca do sujeito e da verdade, pois elas são importantes, visto que o verdadeiro problema de Foucault é o sujeito, e é para chegar ao sujeito que ele analisa as relações de poder. Não há um poder, mas sim relações de poder que são produtivas, que produzem sem cessar no campo do indivíduo. E é aquilo que elas produzem que transformam o indivíduo em sujeito, com uma determinada identidade para servir as exigências dos poderes cujas linhas são dominantes porque desenvolvidas pelas micro-relações e pelos micro-poderes do regime da verdade de uma determinada forma de racionalidade vigente. Quais são os actuais processos de subjectivação que levam os sujeitos a adquirir determinadas subjectividades? Qual é o nosso actual regime de verdade? Que práticas sociais do controlo e da vigilância predominam na nossa actual sociedade?

57 Ibid 58 Ibid 59 Idem, p. 11 60 Ibid 61 Ibid

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2. Poderes e a microfísica do poder Quanto à questão do poder, Foucault se afasta das concepções jurídicas, formais e ideológicas para investigar o projecto de uma microfísica do poder. Em Vigiar e Punir surge o projecto de microfísica do poder, que é uma nova concepção de poder que enuncia novos postulados que questionam e que traçam “outras paisagens, outras personagens, outros procedimentos”62 à tradicional visão histórica do poder. Nas análises tradicionais, o postulado da propriedade considerava o poder como propriedade de uma classe que o teria conquistado, mas Foucault mostra que ele não é uma apropriação mas sim uma estratégia, cujos efeitos de dominação são atribuídos a “disposições, a manobras, a tácticas, a funcionamentos”.63 Esta microfísica do poder exerce-se “mais do que se possui, que não é o privilégio adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e ás vezes reconduzido pela posição dos que são dominados”.64 Segundo Deleuze, “esta análise funcional não nega a existência das classes e das suas lutas, mas traça-lhes um quadro diferente”65 daquele da história tradicional porque lhe retira a homogeneidade, e “define-se antes pelas singularidades, pelos pontos singulares por que passa”.66 Tradicionalmente o Estado é o local privilegiado onde o poder se exerce. Mas Foucault, opondo-se a esta visão, mostra através das análises genealógicas que o próprio Estado surge como um “efeito de conjunto, ou o resultado de uma multiplicidade de mecanismos e focos, que se situam a um nível muito diferente, e que constituem por sua conta uma microfísica do poder”.67 Portanto, o Estado deixa de ser o local privilegiado onde se exerce o poder. O poder “não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que não o têm; ele os investe, passa por eles e através deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança”.68 Segundo o postulado da subordinação, o poder ao estar identificado com o Estado, estaria subordinado à infra-estrutura e a um modo de produção. Apesar de ser possível estabelecer uma análise que relacione os diferentes modos de produção aos regimes punitivos, não é possível ver nisso uma determinação económica, mesmo que se considere a superstrutura capaz de uma reacção ou retorno. Todas as actividades económicas pressupõem mecanismos de poder, que agem a partir do interior sobre os corpos. As relações de poder não estão fora, nem no exterior, de outros tipos de relações, “não estão em posição de superstrutura… estão onde desempenham um papel directamente produtivo”.69 Para Deleuze, as sociedades e os Estados modernos são segmentarizados, e por isso, a “oposição clássica entre o segmentar e o centralizado não parece nada pertinente”.70 A

62 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa, Editora Edições 70, 2005, p. 41 63 Foucault, Michel, Vigiar e Punir (1975), trad. Raquel Ramalhete, 33ª ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2007, p. 26 64 Ibid 65 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa, Editora Edições 70, 2005, p. 41 66 Idem, 42 67 Ibid 68 Foucault, Michel, Vigiar e Punir (1975), trad. Raquel Ramalhete, 33ª ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2007, p. 26 69 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa, Editora Edições 70, 2005, p. 44 70 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, Mil Planaltos – Capitalismo e Esquizofrenia (1972), trad. Rafael Godinho, Lisboa, Editora Assírio & Alvim, 2007, p. 269

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segmentarização alimenta o Estado, e este por sua vez “se exerce sobre segmentos… e possui em si mesmo a sua própria segmentaridade, e impõem-na”71, ficando assim eliminada a oposição entre central e segmentar. O poder não tem essência, ele é operatório, assim Foucault desfaz o postulado do atributo, pois ele não distingue nem dominantes nem dominados. O poder é relação, é um conjunto de relações de forças “que passa tanto pelas forças dominadas como pelas dominantes, constituindo ambas singularidades”.72 Em qualquer lugar onde haja singularidades por mais minúsculas que sejam, há relações de forças ou relações de poder. Segundo o postulado da modalidade, o poder seria sinónimo de repressão e de violência. Também Foucault se opõe a este postulado, não porque negue que haja repressão, mas porque entende que ela “é apenas a poeira levantada pela luta”73 das forças. Foucault realça a positividade do poder em vez da sua negatividade, o poder produz, é produtor. O poder produz real e produz verdade. No postulado da legalidade, o poder do Estado está consubstanciado na lei, no seu aparelho jurídico. Deste modo, a lei delimitaria a ilegalidade. Ora nada é mais equívoco segundo Foucault do que o par lei-ilegalidade ao qual ele opõe o par ilegalismos-leis. Porque “a lei é sempre uma composição de ilegalismos que ela diferencia, formalizando-os”.74 Segundo Deleuze, Foucault “mostra que a lei não é mais um estado de paz do que o resultado de uma guerra vencida: a lei é a própria guerra e estratégia desta guerra em acto, exactamente como o poder não é uma propriedade adquirida da classe dominante, mas um exercício actual da sua estratégia”.75 A micro-análise funcional, segundo Deleuze, retira a prevalência às análises piramidais e hierárquicas, para estabelecer uma imanência em que “os centros de poder e as técnicas disciplinares formam outros tantos segmentos que se articulam uns nos outros, e pelos quais os indivíduos de uma massa, passam ou permanecem, de corpo e alma (família, escola, caserna, fábrica, ou prisão)”.76 Toda a vivência do homem é segmentarizada espacial e socialmente. Tanto a casa como a rua são segmentarizadas, uma segundo os objectivos que desejamos das suas divisões, e a outra segundo as leis da cidade. Mas nada nos deixa de segmentarizar pois “a segmentaridade pertence a todos os estratos que nos compõem. Habitar, circular, trabalhar, brincar”.77 Segundo Deleuze, “somos segmentarizados binariamente, segundo grandes oposições duais: as classes sociais, mas também os homens e as mulheres, os adultos e as crianças, etc” …e circularmente em círculos cada vez mais vastos”.78 E, por fim, somos segmentarizados em linhas rectas em que cada episódio ou processo da nossa vida representa um segmento linear. Somos processados para sempre, de processo em processo: a família, a escola, o exército, o ofício. Mas Deleuze informa-nos que “sempre estas figuras de

71 Ibid 72 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa, Editora Edições 70, 2005, p. 44 73 Idem, p. 46 74 Ibid 75 Idem, 48 76 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa, Editora Edições 70, 2005, p. 44 77 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, Mil Planaltos – Capitalismo e Esquizofrenia (1972), trad. Rafael Godinho, Lisboa, Editora Assírio & Alvim, 2007, p. 268 78 Ibid

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segmentaridade, a binária, a circular, a linear, são tomadas uma na outra, e até passam de uma para a outra, transformam-se segundo o ponto de vista”.79 O sistema político moderno segmentariza-se, através da tecnocracia, da burocracia e da hierarquia, que por sua vez se segmentarizam, fazendo deste modo com que o sistema seja um todo global, unificado e uniforme “porque implica um conjunto de subsistemas justapostos, imbricados e ordenados de tal maneira que a análise das decisões revela todas as espécies de separações e de processos parciais”80 que se prolongam uns nos outros em desequilíbrios ou deslocamentos. Deleuze distingue dois tipos de segmentaridade, uma flexível e uma dura que vai opor ao segmentar e ao centralizado. Em qualquer sociedade ou em qualquer indivíduo transitam, simultaneamente, “duas segmentaridades: uma molar e outra molecular”.81 Se se distinguirem é porque não têm as mesmas relações, mas se forem inseparáveis é porque coexistem e passam uma para a outra. Em Vigiar e Punir as relações entre o saber e o poder entrecruzam-se e apoiam-se no corpo do indivíduo, pondo em funcionamento um poderoso mecanismo de estratégias de dominação e de múltiplas sujeições e submissões. O corpo é um lugar de incessantes passagens e alojamentos de diferentes relações de estratégias de saberes e poderes. A penalidade ou os sistemas punitivos que se diferenciaram ao longo da história são fenómenos que devem ser explicados quer pelos códigos vigentes, quer pela moral social quer ainda pelos sistemas de produção. Sendo assim, as medidas punitivas têm simultaneamente o objectivo de reprimir e excluir, mas também visam efeitos úteis ligados às necessidades de produção económica de cada época. Foucault afirma que há uma “correlação estrita”82 entre os diferentes regimes punitivos e os regimes de produção. Também nas nossas actuais sociedades, segundo Foucault, os sistemas punitivos devem ser relacionados com uma certa economia política do corpo. É sempre pelas forças do corpo que passam as punições, quer os métodos utilizados sejam artesanais, sofisticados, ou violentos. O objectivo é controlar e submeter as forças do corpo para que elas se tornem dóceis e úteis. As relações de poder investem e marcam o corpo que está imerso num determinado campo de condições políticas. Elas convocam e exigem a sua presença como força de produção, e por sua vez, o corpo reage positivamente pois tem que satisfazer determinadas necessidades que as relações de poder e de dominação lhe apresentam como alternativa e opção. É um “investimento político do corpo”83 para uso económico, pois o corpo “só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso.”84 Corpo produtivo e submisso enquanto força de trabalho, mas também, submisso enquanto sujeito que aceita e reage reciprocamente aos interesses económicos. A constituição do corpo enquanto força de trabalho baseado num sistema de sujeição apenas é possível porque simultaneamente estão em funcionamento diversos instrumentos políticos cuidadosamente organizados e calculados, um dos quais é a

79 Ibid 80 Idem, p. 269 81 Idem, p. 274 82 Foucault, Michel, Vigiar e Punir (1975), trad. Raquel Ramalhete, 33ª ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2007, p. 25 83 Ibid 84 Idem, p. 25 - 26

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necessidade, que de modo complexo e recíproco fazem funcionar positivamente o sistema social e económico. Um dos modos de sujeitar um corpo de modo organizado é criar-lhe determinadas necessidades que o tornam “preso num sistema de sujeição”85, empurrando-o para a obtenção de satisfação com a sua própria submissão. Esta sujeição tanto é obtida “pelos instrumentos da violência ou da ideologia”86 como pode ser obtida directamente, fisicamente sem violência nem armas, de modo “calculada, organizada, tecnicamente pensada”87 ou subtil. De qualquer modo é sempre uma sujeição das forças do corpo. É através da “tecnologia política do corpo”88 que engloba um saber do corpo, no sentido de um conhecimento, não fisiológico nem biológico, mas de acção e reacção de suas forças, e do seu controlo, que a microfísica do poder é colocada em acção pelo funcionamento dos aparelhos e instituições vigentes. Esta tecnologia política do corpo não é localizável nem definida nos aparelhos de poder nem nas instituições, assume a forma de instrumentações muito diversas e difusas difíceis de apontar e desmontar, pois elas tomam a forma de tácticas e estratégias que não se deixam apropriar mas que envolvem de modo subtil todos os elementos de que necessitam. Os aparelhos do Estado “recorrem a ela; utilizam-na, valorizam-na ou impõem algumas de suas maneiras de agir.”89 Mas apesar disso a microfísica do poder “em seus mecanismos e efeitos, se situa num nível completamente diferente”90 entre os aparelhos de poder e os corpos. É uma zona difusa mas activa sempre em movimento, com grande potência, força, e capacidade tanto de prolongar e sustentar os poderes como de transformá-los. A microfísica não tem o poder como apropriação mas sim como estratégia, o que implica que os seus efeitos de dominação não se devem à posse do poder, “mas a disposições, a manobras, a tácticas, a técnicas, a funcionamentos.”91 O poder é exercido enquanto rede de relações num confronto permanente. Segundo Foucault, o poder é o efeito de um largo conjunto de posições estratégicas que a classe dominante exerce continuamente, pois que não pode guardá-lo enquanto privilégio, porque não é exclusivo dela, porque os dominados também manifestam e exercem esse mesmo poder. Estes em sua luta contra esse poder apoiam-se por sua vez nesse mesmo poder que se apoia neles e que os trespassa sem necessariamente lhes impor nem uma obrigação nem uma proibição. A microfísica do poder funciona “ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e dos comportamentos”92 e não se limita a reproduzir os poderes do Estado e das instituições. Não há analogia no seu funcionamento, contudo elas funcionam numa espécie de continuidade ou prolongamento devido a determinados processos, podendo um deles ser o processo de subjectivação que gera determinadas subjectividades, que transportam em si os mecanismos desta continuidade. Parece que os micro-poderes também são acelerados e postos em movimento pelos diversos dispositivos que produzem a subjectividade. E esta subjectividade gera uma microfísica do poder, que se apoia nas relações de forças dos dispositivos quer para se prolongar quer para se opor. A microfísica investiga o modo, como o poder dominante pode produzir-se tão eficazmente por toda a sociedade, sem a imposição de força nem de obrigações que directamente e ostensivamente sejam exigidas aos indivíduos e aos grupos. Como é que 85 Idem, p. 26 86 Ibid 87 Ibid 88 Ibid 89 Ibid 90 Ibid 91 Ibid 92 Ibid

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o poder dominante pode impor-se sobre aqueles que não o têm com o seu próprio acordo tácito? E mais do que concordar com esse poder estes o reproduzem continuamente na sua rede de relações mesmo quando se opõem a ele. Ambos, dominadores e dominados, estão interligados numa rede de relações estratégicas em constantes conflitos e lutas através das quais são modificadas e alteradas as relações de força de determinados indivíduos e grupos. E a microfísica demonstra que a nível individual ou de grupo há sempre a possibilidade aberta por essa luta de uma alteração de forças dentro da sociedade longe das relações do Estado com os cidadãos e alheia aos limites das classes sociais. Como a microfísica se coloca num campo difuso, livre e reprodutor, entre os grandes mecanismos e aparelhos do Estado e as próprias forças dos corpos dos indivíduos, isso gera um campo de liberdade, uma terra de ninguém, onde os indivíduos podem exercer livremente as suas estratégias e tácticas, movimentando o efeito de poder dominante. Esta microfísica, se por um lado, se baseia numa tecnologia política do corpo que de certo modo é posta em funcionamento pelos aparelhos, mecanismos e instituições do poder de Estado, por outro, ela por vezes lhes escapa e se torna de certo modo independente, e continua a agir para além da destruição das instituições que lhe deram origem. Isto significa que os micro-poderes não se podem adquirir nem destruir com uma mudança ou um novo controlo do poder dominante. Os poderes e os micro-poderes estão todos inseridos numa mesma rede de relações embora funcionem a níveis diferentes com mecanismos e modalidades bem específicas. “A derrubada desses ´micropoderes´ não obedece portanto à lei do tudo ou nada; ele não é adquirido de uma vez por todas por um novo controlo de aparelhos nem por um novo funcionamento ou uma destruição das instituições.”93 As instituições e os aparelhos do poder podem mudar radicalmente, que contudo os micro-poderes continuam a funcionar sem acusar essa mudança. E isso deve-se ao facto de o poder da microfísica instalar-se estrategicamente no corpo do indivíduo, através de uma instrumentação multiforme que está na base do seu processo de subjectividade. E esta subjectividade gerada pelos processos de subjectivação, permanece mais persistentemente, do que os poderes dominantes porque os micro-poderes que a formam se processam numa rede intrincada e entrecruzada de estratégias e tácticas quotidianas de sobrevivência. Pode-se então concluir, que não é a mudança dos aparelhos dominantes de poder, que altera as relações estratégicas dos micro-poderes que continuam a funcionar do mesmo modo, apesar de serem substituídas todas as instituições de poder. A acção desta microfísica do poder apenas pode ser confrontada, modificada e transformada através da constituição de um si, ou de uma subjectividade que afronte de modo crítico as relações do saber-poder. É portanto, através de uma análise genealógica minuciosa e crítica que se pode chegar até aos micro-poderes e transformar as suas estratégias e modos de funcionamento. O investimento político do corpo é feito através dos micro-poderes que usam a tecnologia política do corpo, as relações de poder e saber, para transformar o corpo do indivíduo num corpo político. Segundo Foucault, a microfísica do poder punitivo expande-se a todos os elementos da sociedade e não apenas restritivamente àqueles a quem se aplicam determinadas penas. Se as práticas penais são a base de investigação de Foucault, contudo as conclusões genealógica dessas práticas expandem-se, em geral, a todos os corpos e almas. Assim sendo, a microfísica do poder expande-se por todos os domínios e em todos os corpos sociais pois a rede de relações poder-saber invade toda a sociedade.

93 Idem, p. 27

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Toda a história da microfísica do poder é então uma genealogia e é nesta perspectiva genealógica enquanto atitude crítica que os corpos e as almas podem transformar-se e alterar a relação de forças, através de inúmeros pontos de resistência. O corpo político do homem é formado pela tecnologia política do poder-saber e assim é tornado objecto de saber, sobre o qual se aplicam determinadas técnicas punitivas que se apossam do corpo e da alma. “A história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da alma moderna.”94 Foucault recusa ver a alma como o resultado de um efeito ideológico, afirmando antes que ela é “o correlativo actual de uma certa tecnologia do poder sobre o corpo.”95 Segundo Foucault não se deve afirmar que a alma é uma ilusão, mas antes afirmar “que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência.”96 O corpo torna-se no elemento fundamental das relações saber-poder, pois é através dele e contra ele que, com ou sem repressão, são investidas as mais diferentes tecnologias com vista à sua sujeição e ao seu controlo. Qual a diferença entre a repressão, e a violência das tecnologias políticas sobre o corpo, para construi-lo de um modo dócil e submisso, às estratégias das relações de poder dominantes, que também o incluem nessas forças, para assim garantir a continuidade do poder-saber? O corpo é controlado em cada movimento e em cada gesto por micro-poderes, dificilmente detectáveis que reproduzem a liberdade pela qual devemos lutar, podendo ela muitas vezes ser diferentes modos de sujeição. É através da análise genealógica e crítica que se pode criar outras linhas de constituição do si dentro das forças dos dispositivos. E inclusive um Si-Próprio, uma individuação, uma estética de existência. Mas será que podemos constituir uma estética de existência fora de todos os saberes e poderes como propõe Foucault? Se o poder se define como uma relação de forças, onde quer que haja dois corpos, há uma relação de forças, e sendo o corpo uma materialidade que está em incessante relação com as forças do mundo há sempre uma relação de poder. “O poder é uma relação de forças, ou melhor, qualquer relação de forças é uma relação de poder.”97 Além disso, Deleuze afirma: “qualquer força é já relação, ou seja, poder.”98 Se a força está sempre em relação com outras forças, temos sempre presente uma relação de poder. Sendo assim, como podemos traçar uma linha de fuga fora do saber-poder? Mas o poder não é o saber nem é uma forma. O poder é constituído por relações móveis e não localizáveis, diferentes das do saber. E é para marcar esta diferença que “Foucault dirá que o poder remete para uma microfísica.”99 Mas convém acentuar, que embora de natureza diferente “há capturas recíprocas e imanência mútua.”100 As técnicas de saber e as estratégias de poder são inseparáveis na sua diferença. “O conhecimento nunca remete para um sujeito que seria livre relativamente a um diagrama de poder, mas este nunca está livre relativamente aos saberes que o actualizam.”101 Perante a expectativa da criação de um Si-Próprio fora de todos os 94 Idem, p. 28 95 Ibid 96 Ibid 97 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa, Editora Edições 70, 2005, p. 97 98 Ibid 99 Idem, p. 102 100 Idem, p. 103 101 Ibid

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saberes e poderes Deleuze afirma, que se trata de um processo que tem de ser posto a caminho, quando uma força em vez de entrar em relação com uma outra força se afecta a si mesmo. Esta dimensão do Si-Próprio não é uma determinação que se possa encontrar já acabada. Saber e poder estão directamente implicados embora sejam bem diferentes. O poder produz saber. O poder é produtivo e não meramente repressivo, pois visa a construção, por um lado, de um corpo dócil sujeito às estratégias de dominação, e por outro lado, um corpo igualmente produtivo das relações de poder. E esta construção é um processo violento no sentido em que é realizada através de mecanismos de disciplinarização e de tecnologias de sujeição. A constituição do sujeito é feita no interior da história e é “a cada instante fundado e refundado pela história”.102 “Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de forças, de pequenos enfrentamentos, microlutas…”.103 Os homens no seu quotidiano se enfrentam e afrontam nas mais pequenas situações, envolvem-se, manifestam-se, entrecruzam-se, reagem, obedecem, cumprem, resistem, fundem-se, são tudo relações de força ou de poder, microlutas, poderes e micropoderes que irrompem das relações efectivas e práticas, e que são “sempre reversíveis”104, porque não são relações absolutas Os poderes suscitam luta, as relações de poder provocam a resistência, e esta própria, é ou se torna também relação de poder. E por outro lado, a resistência obriga o poder dominante a reagir, e este para se tornar mais forte para combate-la retira-se para a retaguarda, não para fugir mas para se disfarçar, com novos métodos e técnicas mais astuciosas e imperceptíveis. Se Foucault, por um lado, reconhece que as pequenas relações de poder derivam frequentemente dos grandes poderes de Estado ou das grandes dominações de classe, por outro lado, e em sentido inverso, “uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder”.105 Em torno de cada indivíduo “há um feixe de relações de poder”106 que o fazem obedecer para cumprir os princípios da classe dominante e assim propagar sempre a sua própria dominação. As pequenas relações de poder mantêm e sustentam as grandes relações de poder, pois os indivíduos comportam-se tal como as relações sociais de classe e têm por missão comportarem-se do mesmo modo. É o indivíduo na manifestação do seu quotidiano, através das suas “pequenas tácticas locais e individuais que encerram cada um entre nós” 107 que alimenta e reforça a estratégia do poder de Estado, para manter sobre domínio o próprio indivíduo. Na actual sociedade há mais poder, mais poderes, bónus e suplementos de poder que não param de aumentar ou crescer, é uma “inflação de poder… não tem uma origem única, que seria o Estado e a burocracia de estado”108 mas tem sobretudo origem na vida quotidiana, nas relações quotidianas nas mais simples situações que marcam o

102 Foucault, Michel, Vigiar e Punir (1975), trad. Raquel Ramalhete, 33ª ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2007, p. 10 103 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. IV (1994), trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006, p. 231 104 Idem, p. 232 105 Idem, p. 231 106 Ibid 107 Idem, p. 232 108 Idem, p. 233

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indivíduo. É por esta análise que Foucault conclui: “Se queremos mudar o poder de Estado, é preciso mudar as diversas relações do poder que funcionam na sociedade”.109 Nos dias de hoje “Quem exerce o poder? E onde ele se exerce?”,110 questiona Foucault. E, responde ele, que “em toda a parte onde há poder, o poder se exerce. Ninguém, para falar com propriedade, é seu titular; e, no entanto, ele se exerce sempre em uma certa direcção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o tem; mas se sabe quem não o tem”.111 Deleuze afirma que o que lhe interessa é a realidade que se passa efectivamente em um determinado lugar, por mais que isso não seja importante nem significativo para os macropoderes. Deleuze considera que o simples interesse de um indivíduo ou de um grupo ou classe, não é suficiente para explicar o problema do poder. Daí ele colocar a questão: “como acontece que pessoas que não têm tanto interesse nele seguem, abraçam apertadamente o poder, mendigam uma parcela dele?”.112 Tem de haver mais que um simples interesse pelo poder, tem de haver investimentos de desejo mais profundos. Estes “investimentos de desejo que modelam o poder e o difundem”113 fazem com que o poder esteja presente em todos os níveis e em qualquer indivíduo, não havendo nenhuma diferença no seu exercício. É este desejo pelo poder, que está presente no indivíduo de qualquer classe e de qualquer condição, que é o garante da sustentação, ordem e propagação do poder de Estado que por sua vez vai através de diferentes métodos, técnicas e tecnologias gerar e criar no indivíduo a apetência pelo desejo de poder. Os micropoderes tornam-se portentosos, tanto na criação e manutenção de relações de força, que transformando-se perpetuam até ao limite uma determinada época histórica, quer na divulgação e na transmissão do poder dominante, quer ainda através de práticas políticas e administrativas. Estes micropoderes agindo de modo vertical, horizontal e rizomático têm por função manter uma relação de dominação e de luta, uma relação de subserviência através de práticas quotidianas de disciplina e controle. Os micropoderes geram micro-relações, que trabalham meticulosamente na invenção de grandes fabricações, que se impõem a nível do macropoder. O poder não está por detrás do discurso nem é a sua fonte, mas, o que é uma coisa muito diferente, ele “opera através do discurso”114, porque este está inserido num dispositivo de relações saber-poder. Portanto o poder está implicado em todo o discurso que “desempenha um papel no interior de um sistema estratégico”.115 O discurso liga-se e serve uma determinada estratégia de poder. Portanto o discurso enquanto saber, sempre remete a estratégias de poder, exercidas efectivamente na história. O poder não é uma coisa só, não é uno, não oprime, ele produz, não está aqui ou ali, pois está por todo o lugar que o homem conheça mesmo que nunca por lá tenha passado, porque o poder é qualquer manifestação de relações de forças. 109 Idem, p. 268 110 Idem, p. 43 111 Idem, p. 44 112 Idem, p. 45 113 Ibid 114 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. IV (1994), trad. Vera Lúcia Avellar Ribeiro, 2ª ed., Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006, p. 253 115 Ibid

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Não se pode falar de um poder, mas sim de relações de forças, de relações de poder subtis, múltiplas e de diversos níveis que passam por nossa carne, nosso corpo, nosso sistema nervoso. Devido a este carácter produtivo do poder, e ao facto de ele não ser único mas antes relacional, isto é, de existirem sobretudo relações de poder e não um poder único é que não se pode identificá-lo com opressão. Isto significa que as próprias relações de poder têm por base uma génese histórica. Estas bases, ligadas a um determinado sistema de poder, estão “actualmente escondidas sob outras produções”116 e enraizadas no nosso corpo e nos modos da nossa existência, que nem sequer nos apercebemos do seu jogo e da sua utilidade, e do modo como ainda hoje “actuam na economia actual de nossas condições”117 de vida. Este jogo manifesta-se através de micropoderes, actuantes nas relações de poder, que se confrontam com as continuidades que nos atravessam, e em nós incorporadas e que condicionam a nossa existência e as próprias relações de poder. Colocar a questão do poder é interrogar-se: “quais são, nos seus mecanismos, nos seus efeitos, nas suas relações, esses diferentes dispositivos de poder que se exercem, em diferentes níveis da sociedade, em domínios e extensões tão variados”?118 O poder é heterogéneo, ninguém é seu detentor, “não é qualquer coisa que se partilhe entre aqueles que o têm e o detêm exclusivamente e aqueles que não o têm e estão sujeitos a ele”119 pois o poder circula, nunca está aqui ou ali, não é localizado em lado algum, ele funciona em rede, exerce-se em rede, e aqui os “indivíduos não só circulam como estão sempre em posição de suportar e também de exercer esse poder”.120 Nestas redes, os micropoderes utilizam instrumentos, métodos e técnicas que são os aparelhos por onde circula o saber. O poder provoca os indivíduos, e estes reagem com poder, por isso o poder nunca pára, nem nunca se imobiliza num indivíduo, ele está continuamente em trânsito pelos indivíduos.

116 Idem, p. 156 117 Ibid 118 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 27 119 Idem, p. 43 120 Ibid

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3. Biopoder e Biopolíticas Hoje, como é que o poder se exerce? O poder são relações de forças e por isso ele passa por todas as forças da relação. Cada força tem um poder de afectar as outras forças da relação e, simultaneamente, de ser afectada por outras. A força afectada não é passiva, pelo contrário, elas estão frente-a-frente com todas as outras forças numa atitude de resistência. A resistência, numa relação de forças, é quase uma força que aparece em simultânea perante a outra força. Pode-se pois considerar que pela própria característica da relação a resistência tem a mesma persistência que a força numa relação de forças. A resistência pode ser mesmo a vida enquanto força, como sugere Deleuze. A força afectada, a receptividade, está sempre em acção pois “a força afectada não deixa de ter uma capacidade de resistência.”121 Estas forças de resistência tanto se movimentam num corpo qualquer como numa população qualquer. “O poder de ser afectado é como que uma matéria da força, e o poder de afectar é como que uma função da força.”122 Tanto a matéria como a função são puras quando não formalizadas e não formadas. Como afirma Deleuze: “As duas funções puras nas sociedades modernas serão a «anatómico-política» e a «biopolítica», e as duas matérias nuas, um corpo qualquer, uma população qualquer.”123 Para além de uma pura função disciplinar, enquanto categoria de poder, Foucault constituiu uma outra categoria que é o biopoder, que tem em vista “gerir e controlar a vida numa multiplicidade qualquer, na condição de que a multiplicidade seja numerosa (população) e o espaço extenso ou aberto.”124 O biopoder tem a vida como objecto de poder. Ele visa o seu controlo e a sua gestão através de uma biopolítica das populações. Até quase aos finais do século XVIII o poder, ou seja, as relações de poder foram analisadas por Foucault sobre a forma anátomo-política, cujo poder disciplinar exercia-se sobre os corpos dos indivíduos, através de determinadas técnicas de vigilância dentro das instituições punitivas. A partir do século XIX surge uma nova tecnologia de poder que visa governar a vida, e que se vai exercer sobre a população, e que é o biopoder que vai assentar sobretudo no racismo de Estado. Esta apropriação da vida pelo poder, é uma “tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico.”125 Mas na teoria clássica já o soberano tinha o direito de vida e de morte, o que significava que o soberano podia matar e deixar viver. Assim, a vida e a morte dos súbditos ficam enquadradas no poder político, dependem de uma decisão do soberano. Contudo este direito de vida e de morte não significa que o soberano pode deixar viver tal como pode matar. Este direito de vida e de morte, é essencialmente exercido no direito do soberano de matar. “É no momento que o soberano pode matar que exerce o seu direito sobre a vida”.126 Portanto, no poder soberano o poder sobre a vida é exercido a partir do momento que o soberano pode matar. É um direito dissimétrico porque é exercido sempre a partir do lado da morte.

121 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa, Editora Edições 70, 2005, p. 99 122 Ibid 123 Idem, p. 100 124 Ibid 125 Idem, p. 256 126 Ibid

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A partir do século XIX há uma transformação do direito político que visa “completar esse velho direito de soberania – matar ou deixar viver – por outro direito novo, que não vai eliminar o precedente, mas penetrá-lo, atravessá-lo, modificá-lo, e que será um direito, ou melhor, um poder precisamente inverso: poder de «fazer» viver e de «deixar» morrer.”127 O direito de soberania não é substituído por este novo direito, mas passam ambos a vigorar um no outro, de modo transformado e modificado mas complementares. O poder de morte apresenta-se agora como “complementar de um poder que se exerce positivamente sobre a vida, que pretende geri-la, fazê-la crescer, multiplicá-la, exercer sobre ela controlos definidos e regulamentações de conjunto.”128 O direito de morte do poder soberano não desaparece nem é substituído, ele apenas “tenderá a deslocar-se, ou pelo menos, a apoiar-se, em exigências de um poder que gere a vida, e a ordenar-se ao que elas reclamam”.129 O poder da morte do soberano fica coberto pela “administração dos corpos e pela gestão calculista da vida”.130 O direito de fazer morrer do poder soberano vai ser exercido em simultâneo com o novo sistema do biopoder. Segundo Foucault, na segunda metade do século XVIII começa a aparecer uma nova tecnologia de poder não-disciplinar que se dirige e se aplica à vida dos homens, ao homem em vida, ao homem ser vivo enquanto homem-espécie. Esta nova tecnologia de poder não-disciplinar não exclui a técnica disciplinar que se aplicava ao corpo do homem, pelo contrário, integra-a, modifica-a e reutiliza-a implantando-se nela própria. Estas duas técnicas trabalham em conjunto, não se anulando nem se suprimindo uma à outra mas, pelo contrário, elas trabalham em níveis diferentes, usando instrumentos diferentes mas complementando-se na investida que fazem ao homem enquanto corpo e enquanto espécie. Esta nova tecnologia de poder dirige-se à multiplicidade dos homens enquanto “massa global, afectada por processos de conjunto ligados à vida, processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc”.131 Uma tomada de poder massificante que se faz na direcção do homem enquanto espécie, e não na direcção do homem-corpo enquanto indivíduo. Esta “tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo”,132 enquanto homem-espécie é uma apropriação da vida pelo poder, é “uma biopolítica da espécie humana”133 que surge no seguimento da anátomo-política do corpo humano, “posta a funcionar durante o século XVIII”134, mas ambas constituem “dois pólos de desenvolvimento ligados por todo um feixe intermediário de relações”.135 É através destes dois pólos que o poder sobre a vida, o biopoder, se vai exercer. Por um lado temos as disciplinas do corpo, e por outro, as regulações, os procedimentos e as normas sobre a população. Um dos pólos é centrado sobre “o corpo como máquina: o seu adestramento, o crescimento das suas aptidões, a extorsão das suas forças, o crescimento paralelo da sua utilidade e da sua docilidade, a sua integração em sistemas de controlo eficazes e

127 Idem, p. 257 128 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 139 129 Ibid 130 Idem, p. 142 131 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 258 132 Idem, p. 259 133 Ibid 134 Ibid 135 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 141

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económicos, tudo isso foi assegurado por processos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano”.136 O outro pólo, que surge em meados do século XVIII, centra-se sobre “o corpo-espécie, sobre o corpo atravessado pela mecânica do vivo, e que serve de suporte aos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração de vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-las variar; a sua assunção opera-se por toda uma série de intervenções e de controlos reguladores: uma biopolítica da população”137 que em ligação com os problemas económicos e políticos emergentes constituíram “os primeiros objectos de saber e os primeiros alvos de controlo dessa biopolítica”.138 Estes dois pólos em funcionamento, constituem o que Foucault chama de uma “grande tecnologia de face dupla, anatómica e biológica”,139 que vai abarcar e investir em toda a vida quer individual quer da espécie “para obter a sujeição dos corpos e o controlo das populações”.140 Esta era de um biopoder, abre-se com a articulação das disciplinas com as regulações de população “sob a forma de dispositivos concretos que constituirão a grande tecnologia do poder do século XIX.”141 Segundo Foucault o biopoder foi o elemento essencial para o desenvolvimento do capitalismo. Todos os fenómenos da população começam no final do século XVIII, a ser tomados em consideração pelo poder que necessitava de mão-de-obra para o aparelho de produção, e por isso tinha de ajustar a vida da população aos interesses dos processos económicos. O desenvolvimento do processo económico necessitava, além do crescimento, da aceitação e da adaptação da população ao aparelho de produção, também de corpos controlados e dóceis capazes de serem produtivos e submissos. O capitalismo desenvolve-se, por um lado, através dos aparelhos de Estado e das instituições de poder que garantem a segurança das relações de produção, e por outro lado, através das técnicas de poder que são a anátomo-política e a biopolítica que garantem as relações de dominação e submissão. O biopoder incita à instauração de uma medicina que passará a ter como função fulcral a higiene pública, e o tratamento médico da população para evitar “a diminuição do tempo de trabalho, baixa de energias, custos económicos, tanto por causa da falta de produção como dos cuidados que podem custar.”142 Esta política derivada da racionalidade política do liberalismo tem ressurgido com mais ênfase ao longo dos últimos anos. O trabalhador deve estar apto a trabalhar mais tempo até se reformar e os custos da falta de produtividade por doença, devem ser cada vez mais suportados pelo trabalhador, que deverá comprar seguros pessoais de saúde para ter acesso à medicina do mercado evitando assim os custos políticos de manutenção de um sistema de saúde público. As biopolíticas também têm a função de manter os homens dentro do circuito de produção e de consumo sem que estes se questionem acerca do tempo que passa, ou seja do envelhecimento, e assim aceitarem o seu modo de vida sabendo de antemão que no final há instituições e mecanismos de assistência e seguros e poupanças ou reformas que assegurarão a sua vida fora da actividade do

136 Ibid 137 Ibid 138 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 259 139 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 142 140 Ibid 141 Idem, p. 143 142 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 260

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mercado. A biopolítica também intervém no caso de acidentes ou outras anomalias que retirem o indivíduo do circuito de produção. As biopolíticas geram processos de subjectivação que permitem ao sujeito subjectivar-se no sentido de tranquilizar-se e resignar-se à sua situação do presente enquanto elemento activo na produção, sabendo que pode esperar o tempo em que estando inactivo no mercado obterá a segurança da sua vida. “É em relação a todos estes fenómenos que esta biopolítica vai por a funcionar não só instituições de assistência, como também mecanismos mais subtis, mas racionais, de seguro, poupança individual e colectiva, segurança, etc”.143 Todos estes mecanismos que parecem ser criados para o bem-estar do indivíduo, e que parecem ser o reflexo de uma política social visando o desenvolvimento e a independência do indivíduo, não visam mais do que criar-lhe uma nova sujeição, e tal como os mecanismos disciplinares, mas de modo diferente, a maximizar e extrair as suas forças. A biopolítica não se vai ocupar da sociedade enquanto direito, nem do indivíduo-corpo. É o aparecimento de “um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com numerosas cabeças… é a noção de população.”144 A biopolítica trata de fenómenos colectivos que estão em ligação com os problemas económicos e políticos. Vai dirigir-se para os fenómenos aleatórios a nível individual que se apresentam ao nível colectivo numa população. Não vai modificar um fenómeno em particular nem directamente um dado indivíduo, mas vai “intervir ao nível daquilo que são as determinações desses fenómenos gerais, desses fenómenos naquilo que têm de global.”145 A biopolítica vai extrair o seu saber de todos os domínios de que se ocupa, e estabelecer o campo de intervenção do seu poder sobre “a natalidade, a mortalidade, as diversas incapacidades biológicas, os efeitos do ambiente”.146 Esta intervenção sobre estes domínios é ao mesmo tempo de saber e poder. A biopolítica torna-se assim uma nova tecnologia de poder, que vai incidir sobre a população enquanto “problema ao mesmo tempo político e científico, biológico e de poder”.147 Os fenómenos da biopolítica são fenómenos colectivos, gerais, que surgem por efeitos económicos e políticos. A intervenção faz-se através “de previsões, estimativas, estatísticas, medidas globais”148 para estabelecer mecanismos reguladores e de segurança naquilo que os fenómenos têm de global, tal como por exemplo “vai ser necessário modificar, baixar a mortalidade, alongar a duração da vida, estimular a natalidade.149 A biopolítica encarrega-se da vida e dos processos biológicos do homem enquanto espécie, assegurando “sobre eles não uma disciplina, mas uma regularização”.150 Esta regularização, visa a optimização de uma população de seres vivos, para melhor dela extrair forças que defendam e desenvolvam a produção económica e política da sociedade actual. Depois da tecnologia de poder disciplinar que se aplica directamente ao homem-corpo, aparece a tecnologia do biopoder que se aplica ao homem em vida, ao homem ser vivo. Agora cai sobre o homem um poder “contínuo, sapiente, o poder de «fazer viver»”.151

143 Ibid 144 Idem, p. 261 145 Idem, p. 262 146 Idem, p. 261 147 Ibid 148 Idem, p. 262 149 Ibid 150 Idem, p. 263 151 Ibid

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Enquanto o poder soberano podia matar e deixar viver, agora a tecnologia do biopoder, através da regularização de toda a vida biológica e viva, «faz» viver e «deixa» morrer. O poder regula a mortalidade, mas a morte está fora do seu alcance e apenas a domina estatisticamente. Sendo o biopoder, um poder sobre a vida, ele tem o seu limite na morte enquanto término de vida. Por isso o suicídio e a eutanásia são judicialmente condenáveis porque são limites ao biopoder. Ao invés, a biopolítica considera um acto de defesa da vida, o seu prolongamento para lá da morte biológica no exacto momento em que ia morrer, para entrar numa “espécie de novo campo do poder sobre a vida que consiste não só em regulá-la, não só em fazer viver, mas, no fim de contas, em fazer viver o indivíduo até para lá da sua morte.”152 Este poder não é apenas a demonstração das suas capacidades científicas, mas é “o exercício efectivo desse biopoder político posto a funcionar no século XIX.”153As biopolíticas prolongam-se até ao limite da fronteira do vivo, procurando manter o fenómeno da vida pois a morte é o limite e o fim do poder. O poder intervém para fazer viver, explicando a maneira de viver e como viver mas usurpam a morte e transformam-na em mortalidade. Segundo Foucault, “hoje o objecto do tabu é mais a morte do que o sexo.”154 Esconde-se e desqualifica-se a morte, ela torna-se o tabu das actuais sociedades de controlo, é aquilo que de mais privado existe. As biopolíticas expandem-se sobre todos os domínios da vida, passando a morte a ser “o momento em que o indivíduo escapa a qualquer poder, recai em si e se recolhe, de certo modo, na sua parte mais privada.”155 Os dois sistemas de poder, o da soberania sobre a morte e o da regularização da vida complementam-se e entrecruzam-se. Já não se mata em nome do soberano mas em nome da vida, da necessidade de viver. Agora a existência em questão já não é a da soberania mas sim a existência biológica de uma população. Por exemplo, o poder atómico coloca em jogo um poder de soberania que mata, e “um poder que é também o de matar a própria vida”. Portanto no actual poder político surge, segundo Foucault, um paradoxo, que é o de que o poder atómico exercido “efectua-se de uma forma que é capaz de suprimir a vida. E de se suprimir, por conseguinte, enquanto poder de assegurar a vida. Segundo os poderes políticos, as tecnologias de guerra têm por base a sobrevivência da população, “o poder de expor uma população a uma morte geral é o reverso do poder de garantir a outra a sua manutenção na existência”.156 Tanto a tecnologia reguladora da vida quanto a tecnologia disciplinar do corpo são ambas tecnologias do corpo, que funcionam de modo sobreposto, num caso os indivíduos são admoestados pelos mecanismos disciplinares de poder, e em outro, pela tecnologia reguladora da vida que impõe uma segurança do conjunto, através do controle dos “acontecimentos ocasionais que podem produzir-se numa massa viva”.157 Tanto o poder disciplinar quanto o biopoder não são mais do que acomodações ao poder da soberania, para flexibilizá-lo e «civilizá-lo» perante a nova realidade que era a industrialização, o aumento demográfico, e o desenvolvimento económico e político do 152 Idem, p. 264 153 Ibid 154 Idem, p. 263 155 Idem, p. 264 156 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 139 157 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 265

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capitalismo, ao mesmo tempo que se aplicavam e instalavam os mecanismos disciplinares e reguladores de poder. A mecânica do poder de soberania não tinha capacidade, nem de dominar, nem de gerir este inesperado surto de «progresso» que lhe escapava “ao nível do detalhe e da massa”158, isto é, ao nível do indivíduo e da população. “Foi para recuperar o detalhe que ocorreu uma primeira acomodação, a dos mecanismos de poder sobre o corpo individual, com vigilância e adestramento – a disciplina”.159 A segunda acomodação “incide sobre os fenómenos populacionais, com os processos biológicos ou bio-sociológicos das massas humanas”. Esta última acomodação implica uma coordenação, e uma centralização complexas, só possíveis porque a um outro nível funcionam os mecanismos de poder sobre o corpo individual, a disciplina, no quadro das diversas instituições. Estes dois conjuntos de mecanismos, disciplinar e regulador, articulam-se um ao outro e provocam processos de subjectivação que produzem subjectividades dependentes das necessidades e das exigências do poder económico e político. Os mecanismos disciplinares de controlo do corpo e os mecanismos reguladores que se aplicam à população articulam-se de modo a gerar uma normalização das condutas e a induzir comportamentos sociais conforme o estado do sistema económico, ora apelando à poupança ou ao investimento, ao crédito, aos diversos tipos de seguros para o presente e para o futuro. São ainda reguladas as regras de higiene tendo em vista a longevidade da população, e geram-se pressões sobre as famílias ao nível da procriação, da sexualidade, da escolaridade, gerando por vezes certos fundamentalismos e condutas esterilizadas alheias ao confronto do real. Os mecanismos disciplinares e reguladores ao desenvolverem a vida pessoal e social com uma maior liberdade e preocupação pelo progresso, geram, ao invés, um controlo mais vasto e intenso que se expande por todos os domínios da vida. E isto através da «norma», que “tanto pode aplicar-se a um corpo que se quer disciplinar, como a uma população que se deseja regularizar”.160 Portanto, ambas as normas, quer a da disciplina quer a da regulação, cruzam-se e articulam-se na sociedade de normalização, para obterem mais eficazmente, e espectacularmente, corpos dóceis e regulados pelo poder que se apoderou e se encarregou da vida no século XIX, recobrindo assim “toda a superfície que vai do orgânico ao biológico, do corpo à população”161, através dos “mecanismos disciplinares de poder, e através dos mecanismos reguladores de poder, dos mecanismos disciplinadores do corpo, e os mecanismos reguladores da população”162 que estão articulados entre si. Toda esta tecnologia de poder está centrada na vida através da lei e da norma das instituições judiciais, médicas, administrativas, enquanto aparelhos cujas funções são sobretudo reguladoras porque o biopoder tendo por objectivo a vida tem “necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e correctivos”.163 O poder torna-se cada vez mais normalizador e “a lei funciona cada vez mais como uma norma”.164 Na sociedade de normalização cruza-se a norma da disciplina e a norma da regulação. Este novo poder tomou conta do corpo e da vida. Tendo o biopoder a vida como objecto e como objectivo “como irá exercer-se o direito de matar e a função de 158 Idem, p. 266 159 Ibid 160 Idem, p. 269 161 Ibid 162 Idem, p. 267 163 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 146 164 Ibid

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dar a morte, se é verdade que o poder de soberania recua cada vez mais e que inversamente, o biopoder disciplinar ou regulador avança cada vez mais?”165 Por exemplo, o poder atómico coloca hoje uma questão paradoxal: “é que, no poder de fabricar e utilizar a bomba atómica, temos a colocação em jogo, de um poder de soberania que mata, mas de um poder que é também o de matar a própria vida.”166 Este recuo do poder soberano não é linear nem progressivo, pelo contrário, ele esteve fortemente activo no passado recente da sociedade nazi, e de certo modo esteve presente em todas as sociedades do século XX, e continua instalado em todas os Estados modernos, através do racismo e através do “genocídio, que é efectivamente o sonho dos poderes modernos”167, porque “a morte dos outros é o reforço biológico de si mesmo, na medida em que se é membro de uma raça ou de uma população”.168 Este aparente recuo do poder soberano é um recuo estratégico que a qualquer momento pode avançar, pois o poder soberano de fazer morrer continua a existir e a ser exercido, pois “nunca as guerras foram mais sangrentas do que desde o século XIX”169, e a ser um poder que se manifesta também no sistema do biopoder, pois o “poder de morte…apresenta-se agora como complementar de um poder que se exerce positivamente sobre a vida, que pretende geri-la, fazê-la crescer, multiplicá-la, exercer sobre ela controlos definidos e regulamentações de conjunto”.170 Foucault afirma que, se o poder de normalização quer “exercer o velho direito soberano de matar, tem de passar pelo racismo”171 e inversamente. Portanto, o velho poder soberano do direito de morte, entra em actividade num sistema de biopoder, com a instalação do racismo que se propaga nos Estados contemporâneos. Como é que o biopoder pode matar? Como pode ele fazer matar, dar ordens para matar? Como pode ele “expor à morte não só os seus inimigos como os seus próprios cidadãos?”172 Foucault afirma que foi a emergência do biopoder que inscreveu o racismo nos mecanismos do Estado moderno. O racismo introduz um corte no domínio da vida tomada pelo biopoder. É o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Fragmenta-se o “campo do biológico que o poder tomou a seu cargo”173 para que o poder possa tratar uma população como uma mistura de raças, para tratar a espécie, subdividi-la e fazer aparecer as raças. Portanto, o racismo vai fragmentar e fabricar cesuras no domínio da vida. Para além desta função do racismo, ele tem uma outra que é uma relação de tipo biológico, apelando à eliminação dos perigos biológicos que podem ameaçar a raça, tais como a anormalidade, as doenças mentais, e todas as degenerescências, para assim reforçar a sua própria espécie. Hoje em dia, diversos mecanismos disciplinares e de controlo de poder, promovem um sentimento racista, que se traduz em imagens de pureza higiénica e mental, que nos

165 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 270 166 Ibid 167 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 140 168 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 274 169 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 139 170 Ibid 171 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 273 172 Idem, p. 271 173 Idem, p. 271

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colocam numa campânula ou estrato social que são inacessíveis e intocáveis, e nos impelem a repugnar o outro, enquanto desconhecido para nós. O outro é, o inferior, o anormal, o diferente. Esta difusão quotidiana prepara silenciosamente o indivíduo para o racismo e por consequência directa para a morte, para o poder de matar. No domínio do biopoder “o velho direito soberano de matar” é exercido pelo racismo. Talvez a barbárie não esteja assim tão afastada da actualidade, e esteja presente de um modo inverso e diferente. Talvez também possamos dizer como Foucault: “ «todos temos o fascismo na cabeça»”.174 A morte do outro não é apenas uma questão de segurança, mas sim “a morte da raça má, da raça inferior, do degenerado, ou do anormal, é aquilo que tornará a vida em geral mais sã. Mais sã e mais pura.”175 A ideia de pureza e de sanidade podem ser, de certo modo, ideias de morte, pois geram ideias racistas, e o racismo no âmbito do biopoder “trata-se da condição sob a qual se pode exercer o direito de matar”.176 Todas as instituições sociais do Estado e o próprio Estado apelam para aquilo que tornará a vida mais sã e mais pura mas este apelo passa sempre pela “morte” do outro, do mau, do inferior, do degenerado, do anormal. Foucault esclarece que este «dar a morte» não passa simplesmente pela morte directa do corpo mas também por “tudo o que possa provocá-la indirectamente”177 e também pela “morte política, a expulsão, a rejeição, etc.”178 e até a desqualificação ou o desemprego. Portanto, para entendermos hoje questão do racismo numa sociedade de normalização, segundo o ponto de vista de Foucault, é preciso ter sempre presente o seu conceito de «dar a morte» que significa tanto a morte perpetrada directamente, mas também tudo o que possa provocá-la indirectamente, assim como as múltiplas «mortes» políticas ou sociais, a expulsão, a rejeição, etc. O próprio Foucault se interroga acerca da existência do jogo entre o direito soberano de matar e os mecanismos do biopoder em todos os Estados modernos. “Mas esse jogo inscreve-se efectivamente no funcionamento de todos os Estados. De todos os Estados modernos, de todos os Estados capitalistas?”179 Há indirectamente, um apelo ao racismo nas sociedades contemporâneas, ao propagarem-se normas extremas de pureza e sanidade, como uma forma desenvolvida de vida quotidiana, divulgadas tanta pelos mass media, como pelo marketing, quanto pelas diversas leis impostas pelo Estado. É também necessário ter em atenção o conceito de racismo segundo Foucault. Não se trata de um racismo unicamente étnico, mas de um “racismo de tipo evolucionista, o racismo biológico, a propósito das doenças mentais, dos criminosos, dos adversários políticos, etc.”180 Isto significa, que o racismo está instalado no interior da própria sociedade entre os seus membros. Pode-se apontar o racismo contra os imigrantes e contra os desempregados. E ainda a desqualificação a que determinadas pessoas são sujeitas pelas diversas instituições e instâncias superiores do poder. O «perigo» do biopoder é que ele surge como natural e inofensivo pois o seu poder parece visar apenas os problemas da vida, o que torna difícil pensá-lo e tomar atitudes críticas perante a sua invasão silenciosa. Os seus mecanismos invadem a vida de um modo global e encarregam-se de regulá-la em todos os domínios. E também há difusão do racismo através de conceitos como «sucesso», «beleza» ou «juventude eterna» que geram atitudes racistas aparentemente «naturais».

174 Idem, p. 44 175 Idem, p. 272 176 Idem, p. 273 177 Idem, p. 273 178 Ibid 179 Idem, p. 277 180 Idem, p. 278

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O objectivo da guerra é a eliminação do perigo biológico, e o reforço da própria espécie, e para cumprir esta ordem o próprio sistema do biopoder coloca em funcionamento o seu poder de morte. Actualmente nenhum Estado afirma que faz uma guerra para matar, todos os responsáveis políticos são unânimes afirmando que vão para cooperar no salvamento das populações. Eles criam e produzem assim numa determinada população, um sentimento de fraternidade, que justifica o envolvimento, não para a guerra, mas para salvar uma população. A guerra é feita em nome da população e já não do soberano. “As guerras já não se fazem em nome do soberano que é preciso defender; fazem-se em nome da existência de todos; erguem-se populações inteiras para se matarem umas às outras em nome da necessidade que têm de viver”.181 Na contemporaneidade as guerras transformaram-se em massacres e genocídios, todos em nome da vida, da raça, da população. Os Estados ao pretenderem regular e gerir a vida, e o biológico, e todos os fenómenos de população através do sistema do biopoder que deveria assegurar a vida, causam a morte, exercendo o seu pode de matar. No biopoder não se quer matar os adversários no sentido político do termo, não é uma relação guerreira mas sim biológica. O inimigo não é o adversário político mas sim “os perigos externos ou internos, em relação à população e para a população.”182 Tendo o biopoder por objecto e objectivo a vida, “a provocação da morte só é aceitável se tender não para a vitória sobre os adversários políticos, mas para a eliminação do perigo biológico e para o reforço, directamente ligado a essa eliminação, da própria espécie ou da raça.”183 A função de qualquer Estado é de possuir condições para “fazer morrer alguém, para poder matar os outros”184 e na plenitude da actual sociedade normalizadora, com um poder que é um biopoder, essa função exerce-se através das múltiplas formas de racismo. Este racismo moderno está ligado a mecanismos de exercício do biopoder, o que quer dizer que “o racismo está ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a servir-se da raça para exercer o seu poder soberano”.185 O biopoder está ligado ao racismo moderno, e este à guerra e ao direito de matar, porque sendo ele por definição guardião da vida não poderia de outra forma atentar contra ela a não ser através do racismo nas suas formas subtis e múltiplas, e com essa artimanha accionar o seu pendor de poder soberano. Segundo Foucault, a criminalidade para ser pensada em termos de racismo teve de ser enquadrada num mecanismo de biopoder para poder enviar para a morte ou afastar um criminoso. E o mesmo acontece quanto à loucura e quanto às diversas anomalias. Portanto através destes casos vê-se como o racismo “assegura a função de morte na economia do biopoder”186 e como coloca em acção o poder soberano do direito de matar. Para Foucault a especificidade do racismo moderno “não está ligado às mentalidades, às ideologias, às mentiras do poder. Está ligado ao que nos coloca no mais longe da guerra das raças e dessa inteligibilidade da história: a um mecanismo que permite o exercício do biopoder.”187 E

181 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 139 182 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 272 183 Ibid 184 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 139 185 Idem, p. 149 186 Ibid 187 Foucault, Michel, É Preciso Defender a Sociedade (1997), trad. Carlos Correia M. Oliveira, Lisboa, Editora Livros do Brasil, 2006, p. 275

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neste sentido Foucault interroga-se: “Como é possível fazer funcionar um biopoder e exercer, ao mesmo tempo, os direitos da guerra, os direitos para matar e a função da morte, a não ser passando pelo racismo?”188 O texto da norma da União Europeia para a Imigração aprovado em 2008 pela maior parte dos deputados do Parlamento Europeu, e que entrará em vigor em 2010, visa expulsar os imigrantes ilegais da União, estabelecendo a detenção por um período máximo de 18 meses, antes da expulsão, e a proibição de retornar à Europa por um período de cinco anos. O deputado Geraldo Thadeu, de Minas Gerais, Brasil, considerou essa lei duríssima, xenófoba e preconceituosa, dizendo que ela demonstrava a ingratidão para com os países que desde sempre receberam os europeus, os quais tinham uma dívida histórica, com países como o dele, porque contribuíram para a prosperidade económica de diversos países europeus. Geraldo Thadeu, deputado que também integra o Parlamento do Mercosul, afirmou ainda que a lei de expulsão de imigrantes ilegais poderá vir a provocar uma onda de retaliação por parte dos países considerados periféricos. Igualmente, o governo brasileiro já lamentou esta lei contra a imigração e o seu ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, assegurou que o Brasil adoptará o princípio da reciprocidade no caso de medidas contra os cidadãos brasileiros. Por sua vez o presidente do Equador Rafael Correa, defendeu a criação de um grupo activo de protesto contra esta lei, a qual qualificou como “directriz da vergonha”. Também o Arcebispo, secretário do Pontifício Conselho para os migrantes, Agostino Marchetto comentou a directiva da União Europeia afirmando que os imigrantes, não deveriam ser privados da liberdade pessoal ou serem presos por causa de uma infracção administrativa. Acrescentou ainda que os imigrantes em situação ilegal ou sem documentos não podem ser tratados como criminosos. Esta directiva da Comunidade Europeia vai tornar-se lei e entrar em vigor em todos os países da União em 2010 e vai dirigir-se para cerca de oito milhões de ilegais residentes actualmente no espaço europeu. Estamos a viver no início deste século uma situação explosiva de racismo tal como Foucault o definiu através do conceito de biopoder. Todos os anos centenas de africanos morrem afogados no mar ao tentar chegar à Europa de barco vindos do Norte de África, porque todas as outras vias legais de imigração estão fechadas para os africanos pobres. Segundo dados da organização italiana Fortress Europe nos últimos dois anos morreram afogados cerca de quatro mil africanos que vinham procurar trabalho na Europa. Todos os governos europeus descartam a sua responsabilidade nestes factos, nenhum deles se preocupa com a vida fora dos muros da Comunidade Europeia. E ninguém parece interessado em encontrar soluções. Estas mortes são dadas como naturais. A única coisa que se faz é reforçar as fronteiras marítimas e fabricar campos de detenção para aqueles que conseguirem sobreviver na travessia. Será que não se pode considerar a passividade da Comunidade Europeia perante estes afogamentos uma «guerra» racista? Não são estas mortes resultado das biopolíticas europeias? Não está a Europa no meio de uma «guerra» racista? A questão da imigração tornou-se uma mera questão de segurança do território europeu. Hoje, todas as fronteiras marítimas são patrulhadas. O racismo está a entrar no discurso e na prática de muitas políticas europeias. A França anunciou que os familiares dos

188 Idem, p. 279

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africanos que os queriam visitar têm de fazer testes de DNA para provar o seu parentesco. O facto de os governos europeus ignorarem a morte dos africanos em pleno mar antes de eles atingirem a fronteira pode ser considerado uma hecatombe, é uma morte de pessoas em elevado número, é um acto deliberado e sistemático. Este deixar morrer os africanos reiteradamente entre a terra de áfrica e a terra da europa pode considerar-se uma espécie de genocídio silencioso e permanente. E sobretudo tem uma característica perturbante e ameaçadora. O poder deixa matar, “deixa que se produzam hecatombes e genocídios: não por um retorno ao velho direito de matar, mas, pelo contrário, em nome da raça, do espaço vital, das condições de vida e de sobrevivência de uma população que se julga melhor, e que trata o seu inimigo já não como o inimigo jurídico do antigo soberano, mas como um agente tóxico ou infeccioso, uma espécie de «perigo biológico».”189 A nova lei de imigração está a motivar a construção de centros de detenção para expulsar os imigrantes da Europa, uma espécie de campos de concentração, disfarçados, que cumprem a função de separar, não misturar, e expulsar. É evidente que não há comparações entre ambos os campos, mas há alguns pontos em comum. O centro de detenção na ilha de Lampedusa, no sul de Itália, é fechado e está guardado por forças de segurança e ninguém pode entrar ou sair livremente. Marc Bernardot, do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, afirma que nos últimos vinte anos se multiplicaram pela Europa, os locais de confinamento ou campos. Localizam-se nas fronteiras da União Europeia, e agora cada vez mais perto do norte de África. Ele ainda acrescenta que esses lugares recebem nomes diferentes em cada país, mas, um factor, comum a todos, é que somente alojam estrangeiros, nunca nativos ou cidadãos europeus. Além disso, os incluídos nesses recintos não são considerados como indivíduos, mas como membros de um grupo. É uma população considerada em conjunto por ser estrangeira. Não são o senhor X ou a senhora Y, mas alguém que pertence a um grupo visto colectivamente como uma ameaça, como um risco para a sociedade. Esta é uma técnica de controlo que cada vez mais se expande nas prisões europeias onde os presos são maioritariamente estrangeiros. Para além dos campos de detenção construídos de base para servirem de prisão aos estrangeiros, Marc Bernardot afirma que existem outros centros em lugares não identificáveis. E isto porque muitos nem sequer são chamados de campos e outros carecem de nome. Alguns lugares não se parecem em nada com o que se imagina ser um campo, com vigias, corredores de segurança e cães policiais. Pelo contrário, são lugares que se confundem entre a mais normal arquitectura citadina, por exemplo, um aeroporto pode ter um espaço destes sem ninguém disso se aperceber. Mas nós nos defendemos deste problema dizendo: nós temos de manter as nossas condições de vida! É um argumento que é apresentado quase como natural. Esta ideia afirma-se de bom-senso e é aceite por toda a população. Parece ser uma ideia “civilizacional” baseada numa superioridade da raça que é mitigada e disfarçada como um argumento da sobrevivência. O argumento da manutenção das nossas condições de vida é muito difundido e defendido pela população europeia. Este argumento parece trazer em si uma certa mitigação de racismo transformado em progresso. E este argumento tanto serve para justificar a defesa das nossas vidas em relação aos estrangeiros como em relação aos restantes membros da própria sociedade. Quem

189 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa, Editora Edições 70, 2005, p. 124

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melhor do que aqueles que são privados das nossas condições de vida para poder senti-las na força do seu embate. E talvez seja a consequência da força desse impacto que revele a intensidade da energia daqueles desesperados que se lançam ao mar para chegarem até nós. A tecnologia da anátoma-política e da biopolítica, enquanto técnicas de poder, são sustentadas pelas instituições dos aparelhos de Estado e estão “presentes em todos os níveis do corpo social e são utilizadas por instituições muito diversas que operaram ao nível (tanto da família como do exército, da escola ou da polícia, a medicina individual ou a administração das colectividades), actuam ao nível dos processos económicos, do seu desenrolar, das forças que neles se exercem e os sustêm; operam igualmente como factores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre as forças respectivas de uns e de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia”.190 Portanto, esta imensa tecnologia de poder, abarca todos os campos e domínios económicos, sociais e políticos tanto ao nível macroeconómico quanto ao nível microeconómico. Estas tecnologias geram uma torrente de poder, de poderes, macro e micro-poderes que gerem e se intrometem em todos os recantos da vida. As técnicas políticas com toda a sua portentosa tecnologia invadem todos “os fenómenos próprios da vida da espécie humana na ordem do saber e do poder”.191 A vida do homem passa a ser ensinada e transmitida pelo saber, que o insere num «destino» e numa «história» divulgada em uníssono por todas as instituições de poder que dão acesso ao seu corpo. A vida biológica entra no domínio do político, da intervenção do poder e do controlo do saber. A biopolítica “faz entrar a vida e os seus mecanismos no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana”.192 A espécie-homem passa a fazer parte do jogo e das estratégias políticas, que têm a posse do homem moderno e cuja “vida de ser vivo está em causa”.193 A vida do homem enquanto ser vivo está em causa, pois as tecnologias políticas usurpam-lhe toda a possibilidade de se manifestar enquanto ser vivo. Os poderes e micropoderes produzem o homem ideal, isto é, o homem enquanto sujeito e assujeitado às biopolíticas. Esta proliferação e invasão das tecnologias políticas investem “o corpo, a saúde, as formas de alimentação e de habitação, as condições de vida, todo o espaço da existência”194 produzindo uma rede de poderes e micropoderes, que se enfeixam no homem, e que geram nele uma determinada conduta exigida pelo poder, e uma identidade conhecida e determinada.

190 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 143 191 Idem, p. 144 192 Idem, p. 145 193 Ibid 194 Idem, p. 146

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Capítulo II – As Sociedades Disciplinares: 1. As disciplinas: corpo - alma Foucault inicia o seu livro Vigiar e Punir, com dois exemplos diferentes de penas, um de suplício e outro de correcção, que medeiam entre si menos de meio século e que definem uma alteração no estilo penal. Estas mudanças no estilo penal, reflectem mudanças sociais e políticas ocorridas na sociedade europeia por volta do século XVIII e XIX. Foi o tempo das reformas do sistema penal para substituírem a justiça tradicional. O aparecimento de uma “nova teoria da lei e do crime, nova justificação moral ou política do direito de punir”195 porque as antigas leis já não serviam os interesses do poder político dominante. Há, então, uma evolução histórica da legislação penal e dos métodos e meios coercivos e punitivos. As penas enquanto suplício, deixam de incidir espectacularmente sobre o corpo, tornando-se as investidas sobre ele mais subtis e veladas, mas de profundos efeitos de moldagem, através de práticas coercivas e de procedimentos correctivos. Desde então as penas abandonam todos os castigos que marquem visivelmente o corpo, e especializam-se “numa certa descrição na arte de fazer sofrer”196 despojando de ostentação todo o castigo e, pelo contrário, colocando fora de visão da sociedade o mundo prisional. O corpo “desaparece como alvo principal da repressão penal”197, mas vai reaparecer de um outro modo como superfície e massa das disciplinas. Estas farão um novo arranjo, de correcções e coerções, sem deixar marcas que possam ser apontadas como torção praticada sobre o corpo. Adopta-se precisamente uma atitude oposta ao suplício em que o castigo era publicitado e público. Desaparece o suplício da exposição do condenado, e a punição deixa de ser uma festa pública, começando a surgir precisamente uma atitude contrária quanto à execução pública que passa a ser vista negativamente pelo poder. Após o desaparecimento do suplício enquanto castigo, evita-se que sociedade tenha conhecimento do que se passa no interior das prisões e o que é publicitado não é mais o castigo, mas sim o sentido correctivo da pena. A partir de agora “a punição vai-se tornar… a parte mais velada do processo penal”198 sai das ruas, deixa de ser vista e “entra na consciência abstracta”199 alterando profundamente a sua máquina de acção pois “a justiça não mais assume publicamente a parte de violência que está ligada ao seu exercício”.200

195 Foucault, Michel, Vigiar e Punir (1975), tradução de Raquel Ramalhete, 33ª ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2007, p. 11 196 Idem, p. 12 197 Idem, p. 12 198 Idem, p. 13 199 Ibid 200 Ibid

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A Justiça não mais se glorifica da sua força. Vai haver uma nova redistribuição da violência da pena, pela condenação e pela execução que passam a estar separadas. A publicidade da sentença continuará a marcar o delinquente, mas agora segundo o código administrativo, enquanto a execução da pena passa a ser realizada por outras instituições autónomas, que assim colocam a Justiça num plano de neutralidade, com um fim educacional, pois “o essencial da pena que nós, juízes, infligimos não creiais que consiste em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, curar”.201 A justiça separa-se da execução da pena para assim se tornar moral e exemplar: “existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de punir”.202 É certo que os suplícios desaparecem e “o sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena”,203 e que a relação castigo-corpo tal como a prisão, a reclusão, os trabalhos forçados, e a deportação que fizeram parte dos sistemas penais modernos, “não é idêntica ao que ela era nos suplícios”.204 Com as novas políticas o corpo passa a ter direitos, e a liberdade passa a ser considerada como um bem. A partir de então as penas têm por objectivo a privação de direitos. O enclausuramento e os trabalhos forçados visam reabilitar o indivíduo e “se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distancia, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um objectivo bem mais «elevado»”.205 Segundo Foucault, a mecânica da punição muda agora as engrenagens, e do castigo passamos para “uma economia dos direitos suspensos”.206 O carrasco é substituído por “um exército inteiro de técnicos”207 tais como médicos, capelães, psiquiatras, psicólogos, educadores que têm por função essencial mostrar e ilibar a justiça do mal da pena, garantindo ao condenado que para além do corpo e da dor, há outros fins da acção punitiva. “Os rituais modernos da execução capital dão testemunho desse duplo processo – supressão do espectáculo, anulação da dor”.208 Esta economia dos direitos suspensos como castigo, atinge o seu limite paradoxal no caso do condenado à morte que é privado do direito de sofrer através “do emprego da psicofarmacologia” e assim privado do próprio corpo que deixa de sentir a pena capital. Digamos que a pena é “incorpórea”209, se aplica a um corpo sem direitos e privado de sentir a sua morte. É exactamente o inverso do suplício, pois agora a pena é isenta de dor. É um outro modo atroz e cínico de violência assistida, por diversas disciplinas, que têm como objectivo retirar toda a dor física ao condenado. Tal como no suplício também na execução capital, mas de modo totalmente antagónico, todos os direitos do corpo são retirados ao condenado através do “emprego da psicofarmacologia e dos

201 Ibid 202 Ibid 203 Idem, p. 14 204 Ibid 205 Ibid 206 Ibid 207 Ibid 208 Idem, p. 15 209 Ibid

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diversos «desligadores» fisiológicos”.210 É uma execução que procura “atingir a vida mais que o corpo”211. As penas passam a aplicar-se a um sujeito jurídico detentor de vários direitos, e assim qualquer pena, seja a morte, a prisão ou a multa é sempre considerada como uma extorsão ou supressão de determinados direitos. A perda de um direito ou a perda de um bem ganham eficácia como modo de punição, porque os direitos e os bens começam a ser algo que se incorpora nas pessoas e nos seus corpos enquanto sujeitos jurídicos, e dos quais as pessoas não se querem privar. Entramos “na época da sobriedade punitiva”.212 A pena começa a dissociar-se “totalmente de um complemento de dor física”213. Nos modernos mecanismos da justiça criminal, há uma diminuição da severidade penal. Contudo, essa menor visibilidade da aplicação penal não é devida a um respeito pelos direitos nem devido ao humanismo que percorre a época, mas sim porque “há um deslocamento do objecto da acção punitiva”214 que ilude a análise dos seus mecanismos punitivos. Agora o castigo não é mais visível directamente no corpo físico, então é pois certo que encontraremos em um outro nível e em outros locais, com um outro nome o castigo, sobre o qual as acções punitivas vão incidir, pois há “um fundo supliciante”215 envolvido na “penalidade do incorporal”.216 “Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então se exerce?”.217 Os teóricos da época respondem que é a alma. Mas que personagem histórica é esta? Era o efeito de saberes e poderes, o corpo fabricado pela subjectivade e pelas técnicas e procedimentos das relações de poder. Era o coração, o intelecto, a vontade e as disposições. Este é para Foucault, um momento decisivo e importante, no aparecimento e na evolução dos modernos mecanismos punitivos, onde “o corpo e o sangue”218 das punições são substituídos pela alma. É uma nova realidade incorpórea que surge e que deixa para trás o esquartejamento do corpo para actuar “profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições”.219 A partir de agora é «a alma», que vai ser esquartejada e violentada. Como afirma Foucault: “terminada uma tragédia, começa a comédia”.220 Foucault afirma que os teóricos da época que defendiam que era sobre a alma que se deveria exercer a dura punição, “abriram, por volta de 1780, o período que ainda não encerrou.”221 Esta afirmação de Foucault trás para a actualidade este acontecimento para reflexão e crítica. Esta alma é o modo de ser e de estar do indivíduo, que vai passar a ser julgada juntamente com o objecto do crime. O elemento punível é profundamente alterado; o

210 Ibid 211 Ibid 212 Idem, p. 16 213 Idem, p. 18 214 Ibid 215 Ibid 216 Ibid 217 Ibid 218 Ibid 219 Ibid 220 Idem, p. 19 221 Idem, p. 18

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modo de julgamento do acto ou objecto punível é modificado na sua natureza e substância. O objecto do crime passa a ter uma menor importância no julgamento passando a ser preponderante na aplicação da pena os factos relativos à vida do indivíduo. É esta a substituição subtil dos objectos jurídicos, ou melhor, a mudança de foque no objecto jurídico que vai permitir desqualificar, e controlar o indivíduo através do julgamento e da forma da punição. Sem dúvida que os objectos jurídicos são definidos pelo Código, mas agora juntam-se a ele outros elementos não jurídicos que fazem parte da vida do criminoso. Como afirma Foucault: “são as sombras que se escondem por trás dos elementos da causa, que são, na realidade, julgadas e punidas”.222 Isto é, para além do objecto jurídico punível, “julgam-se também as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos de meio ambiente ou de hereditariedade”223, assim como ao punir as agressões, pune-se por meio delas “as agressividades, as violações e, ao mesmo tempo, as perversões, os assassinatos que são, também, impulsos e desejos”.224 É preciso avaliar e qualificar o condenado no acto da pena. Para isso algumas disciplinas ou saberes enquadram o indivíduo, e assim permitem que os mecanismos de poder justifiquem a sua decisão acerca da pena aplicada. Mas esta pode-se modificar em função da transformação do seu comportamento. O principal é controlar o indivíduo e conduzi-lo a uma modificação comportamental. Enquanto que na Idade Média apenas se exigia o conhecimento da infracção, do responsável e da lei, agora entram no processo de julgamento judicial todo um outro tipo de avaliações. Agora quer-se saber muito mais acerca do indivíduo criminoso, e para isso fazem-se “julgamentos apreciativos, diagnósticos, prognósticos”225, que enredados na verdade da mecânica judicial, fazem aparecer uma outra verdade que “faz da afirmação de culpabilidade um estranho complexo científico-jurídico”226 que implica sempre “uma apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma normalização possível. O juiz dos nossos dias – magistrado ou jurado – faz outra coisa, bem diferente de julgar”.227 Ao longo do processo de formação da sentença, o juiz necessita de diversas instâncias anexas extrajudiciais, que apoiem ao longo do processo penal a decisão judiciária baseada em diversos saberes extrajudiciais. Surgem assim “pequenas justiças e juízes paralelos que se multiplicam em torno do julgamento principal”.228 O poder legal de punir fica assim faccionado por “peritos psiquiátricos ou psicólogos, magistrados da aplicação das penas, educadores e funcionários da administração penitenciária”.229 E estes podem actuar para o esclarecimento do juiz antes da tomada da decisão, ou podem actuar depois da condenação, no decorrer da pena através do seu poder de avaliação, e de julgamento do comportamento do preso, podendo assim modificar e alterar o caminho da sentença. Este é o funcionamento do novo sistema penal baseado nos códigos dos séculos XVIII e XIX. A justiça passa a ter cada vez mais necessidade de outros saberes, por um lado, porque isso a requalifica, e por outro lado, porque isso permite o desenvolvimento de 222 Ibid 223 Ibid 224 Ibid 225 Idem, p. 21 226 Ibid 227 Idem, p. 22 228 Ibid 229 Ibid

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diversas saberes, que vão disciplinar e dirigir os corpos, e os comportamentos dos indivíduos. Com o aparecimento deste novo sistema penal em que “um saber, técnicas, discursos «científicos» se formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir”230 abre-se o campo para o surgimento da sociedade disciplinar. O corpo é em todas as sociedades objecto apetecível do poder. Ora para ser treinado, modelado, manipulado, ora para ser submisso, dócil, e útil. Em todas as sociedades o corpo é prisioneiro de múltiplos poderes que o cercam e o barram, o castigam e o marcam, o aliciam e o transformam e “impõem-lhe limitações, proibições ou obrigações”.231 Mas agora no século XVIII o que é que há de novo nessas técnicas? A partir de agora vão dar-se alterações nas técnicas que investem o corpo, tanto ao nível da escala como do objecto do controle. O corpo vai ser trabalhado “detalhadamente e vai ser exercido sobre ele uma coerção sem folga”.232 E o que vai ser agora o objecto do controle não é mais o comportamento ou a linguagem do corpo, mas sim a sua “economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna”.233 O que agora interessa é a coerção continuada sobre cada detalhe do corpo activo, e não mais o corpo como unidade indissociável nem como comportamento ou linguagem, mas sim como economia e eficácia dos movimentos. O tempo, o espaço e os movimentos são esquadrinhados porque a coerção se estabelece agora sobre os processos de actividade. As operações do corpo estão controladas, e as suas forças estão permanentemente submissas através desses métodos “que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, e que são o que podemos chamar de «disciplinas»”.234 As disciplinas diferem dos outros processos disciplinares, precisamente porque não visam apenas um aumento de habilidades nem uma maior sujeição, “mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente”.235 O corpo vai ser manipulado detalhadamente nos seus gestos e comportamento. Uma política de coerções vai trabalhar o corpo humano “que entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe”.236 É o que Foucault chama de anatomia política ou mecânica do poder. Esta anatomia política visa a dominação do corpo para que ele aja do modo que necessita o poder político. Não basta apenas que os corpos façam o que o poder deseja, mas que o façam também do modo que ele deseja, com a rapidez e a eficácia imposta através de determinadas técnicas. As disciplinas impõem o ritmo, segmentam o tempo, e obrigam o corpo a adaptar-se constantemente às novas técnicas justificando essa imposição com o nome de progresso.

230 Idem, p. 23 231 Idem, p. 118 232 Ibid 233 Ibid 234 Ibid 235 Idem, p. 119 236 Ibid

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O êxito da disciplina está no facto de que ela “aumenta as forças do corpo, em termos económicos de utilidade, e diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência”.237 As disciplinas dissociando o poder do corpo, transformam-no em força e numa «capacidade» que procuram que seja o mais eficaz e o mais energética possível e, simultaneamente, fazem desta força uma relação de sujeição. A disciplina desce ao pormenor, ao mais pequeno detalhe do corpo, para nele investir politicamente através de técnicas minuciosas, que fazem surgir uma nova microfísica do poder. Segundo Foucault, a disciplina para proceder à distribuição dos indivíduos no espaço, utiliza várias técnicas. Uma delas é a cerca, “a especificação de um local heterogéneo a todos os outros e fechado em si mesmo”238 tal como é o caso dos Colégios e dos Quartéis. A fábrica com o seu espaço bem delimitado, concentra e vigia as forças, para evitar percas de tempo de trabalho ou revoltas, e proteger os materiais e ferramentas. E para tirar o máximo de vantagens das forças de produção instalam-se alojamentos nas fábricas o que é “um novo tipo de controle”239 insidioso mas eficiente. Mas com a evolução da sociedade disciplinar, a cerca é dispensada por um modo mais flexível, que é trabalhar o espaço através do princípio do quadriculamento, ou seja, cada indivíduo no seu lugar, e em cada lugar um indivíduo. Com este tipo de localização imediata pode-se “a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo e sancioná-lo, portanto, são tudo procedimentos que visam conhecer, dominar e utilizar”240 cada indivíduo. Mas nas instituições disciplinares nada é deixado ao acaso, e por isso surge a regra das localizações funcionais, que define que um determinado lugar não serve só para satisfazer a necessidade de vigiar, mas que também deve ser um lugar útil. Portanto “a necessidade de distribuir e dividir o espaço com rigor”.241 Também a disciplina é a “arte de dispor em fila, e da técnica para a transformação dos arranjos”242, por isso “ela individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações”.243 Esta rede é uma rede de relação de forças, de relações de poder e micropoderes. “As disciplinas, organizando as «celas», os «lugares», e as «fileiras» criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquitecturais, funcionais e hierárquicos”.244 Estes espaços são simultaneamente reais e ideais, pois tanto a disposição dos edifícios, quanto a sua organização hierárquica, trabalha em conjunto para garantir a obediência do indivíduo, realizando a sua fixação e permitindo a sua circulação. A própria disposição das salas e dos móveis, marcam lugares e indicam valores, segmentando os indivíduos e estabelecendo ligações operatórias e hierárquicas. Esta organização do espaço pelas disciplinas, tem por base interesses económicos e políticos, pois é necessário transformar os vagabundos em mão-de-obra organizada, obediente e útil que saiba circular por entre os espaços dos edifícios e das fábricas e das hierarquias que os sustentam. Com este objectivo, as disciplinas têm de constituir

237 Ibid 238 Idem, p. 122 239 Ibid 240 Idem, p. 123 241 Idem, p. 124 242 Idem, p. 125 243 Ibid 244 Idem, p. 126

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«quadros vivos»245 que desenvolvam múltiplas operações, que vão desde arrumar ou registar até repartir, ou inspeccionar e classificar objectos, plantas, animais e homens. Para o desenvolvimento económico do capitalismo, o poder necessitava de “observar, controlar, regularizar a circulação das mercadorias e da moeda e estabelecer um quadro económico”.246 Assim tanto a vida como a economia ficam organizadas em quadros regulares, múltiplos e operatórios onde circula por entre eles “uma técnica de poder e um processo de saber”247 que tudo integra e define no movimento destes quadros. O quadro tem diferentes funções nos diversos registos. Por exemplo a táctica disciplinar, liga o singular e o múltiplo, ela permite “ao mesmo tempo a caracterização do indivíduo como indivíduo, e a colocação em ordem de uma multiplicidade dada”.248 A táctica “é a condição primeira para o controle, e o uso de um conjunto de elementos distintos: a base para uma microfísica de um poder que poderíamos chamar «celular».249 O horário é sobretudo uma forma de pressão ininterrupta realizada pela divisão do tempo. O tempo útil associa-se à ideia de tempo exclusivamente produtivo e remunerado. O tempo disciplinar impõe ritmos obrigatórios, e estes determinados gestos e posições do corpo que vão favorecer os programas de produção nas fábricas e nos exércitos e que visam o crescente controlo de todas as actividades. O tempo, agora, mais que medir os nossos gestos é a própria “trama que os obriga e sustenta ao longo de todo o seu encadeamento”.250 Todo o acto é dividido nos seus mais pequenos elementos. Todos os movimentos do corpo são definidos, determinados e temporalizados numa sucessão de tempo. É uma espécie de “esquema anátomo-cronológico do comportamento. “O tempo penetra o corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder”.251 O controlo disciplinar estabelece uma correlação entre o gesto e o corpo, para que as actividades sejam realizadas com eficiência e rapidez, assim como estabelece uma óptima articulação entre o corpo e o objecto, visando a sua manipulação. “Sobre toda a “superfície de contacto entre o corpo e o objecto que o manipula, o poder vem se introduzir, amarra-os um ao outro”252 constituindo o corpo-arma, o corpo-instrumento, ou o corpo-máquina. A disciplina organiza uma economia positiva do tempo, através da sua utilização exaustiva pois “importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis”.253 Passa a ser intensificada a utilização do tempo, sendo cada instante que passa “povoado de actividades múltiplas, mas ordenadas; e por outro lado, o ritmo imposto por sinais, apitos, comandos impunha a todos normas temporais que deviam ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendizagem e ensinar a rapidez como uma virtude”.254 Esta técnica de sujeição vai gerar um novo objecto que é o corpo natural e assim substituir o corpo mecânico. Este corpo natural é o corpo manipulado e o corpo do treinamento útil.

245 Ibid 246 Idem, p. 127 247 Ibid 248 Ibid 249 Ibid 250 Idem, p. 129 251 Ibid 252 Idem, p. 130 253 Idem, p. 131 254 Idem, p. 131

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Este corpo natural tem “a sua ordem, o seu tempo, as suas condições internas, os seus elementos constituintes”.255 É este corpo natural que se torna “alvo dos mecanismos do poder, e oferece-se a novas formas de saber”.256 O corpo descobre-se como uma individualidade natural e orgânica. A disciplina instala-se em todos os domínios da sociedade, para aumentar a habilidade e a eficácia de cada indivíduo, para extrair a sua máxima utilidade e força. E tem também sobretudo uma função autoritária e económica, pois quanto maior for a disciplina nas actividades produtivas maior serão os lucros e maior será o respeito e a submissão aos regulamentos e às autoridades. As disciplinas instalam-se nos sectores mais importantes da sociedade, desde a produção, no conhecimento, no aparelho de guerra. E isto porque “as disciplinas funcionam cada vez mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis”257 tão necessários para o funcionamento económico e social da sociedade. Para levar a cabo o desenvolvimento das sociedades no decorrer do século XVIII, as suas políticas vão executar um duplo movimento: “multiplicar o número das instituições de disciplina e de disciplinar os aparelhos existentes”.258 É o reforço e a consistência da sociedade disciplinar. A disciplina é uma modalidade para exercer o poder, sendo ela mesmo um tipo de poder “que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos”259 que procuram alcançar o mais ínfimo, o mais pequeno do corpo social, através de “uma vigilância permanente, exaustiva e omnipresente”260 tornando-se ela numa anatomia e numa tecnologia do poder. A modalidade disciplinar expande-se em todos os lugares assegurando “uma distribuição infinitesimal das relações de poder”.261 Todas a espécie de instituições se servem da disciplina, e inclusive algumas reforçam e reorganizam seus mecanismos internos de poder, por exemplo, a família que absorve desde a era clássica esquemas externos, e outras instituições, fazem da própria disciplina o seu principal princípio de funcionamento interior, como por exemplo todas as instituições administrativas, ou ela ainda “pode ficar a cargo de instituições especializadas (as penitenciárias, ou as casas de correcção do século XIX)”.262 As instituições se servem da «disciplina», mas esta não é nem se identifica de modo nenhum, com elas nem com qualquer outro aparelho. Segundo Foucault, “pode-se falar da formação da sociedade disciplinar nesse movimento que vai das disciplinas fechadas até ao mecanismo indefinidamente generalizável do panoptismo”.263 A modalidade disciplinar infiltra-se nas outras disciplinas, e serve-lhes “de intermediária, ligando-as entre si, prolongando-as, e assim levando os efeitos de poder

255 Idem, p. 132 256 Ibid 257 Idem, p. 174 258 Ibid 259 Idem, p. 177 260 Ibid 261 Idem, p. 178 262 Ibid 263 Ibid

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até aos elementos mais ténues e mais longínquos. A modalidade disciplinar assegura uma distribuição infinitesimal das relações de poder”.264 A nossa sociedade é de vigilância e “sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade”265 mantendo-se o indivíduo «livre», mas fabricado minuciosamente através de tácticas disciplinares, que passam por um treinamento e por circuitos de comunicação. Nós somos um efeito de poder, que «reproduzimos» ou alimentamos esse mesmo poder, tal como os prisioneiros da máquina panóptica. Nós, no exterior, estamos no interior de uma máquina semelhante, “investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens”.266 2. As disciplinas e o poder disciplinar Segundo Foucault, o regime disciplinar surge por volta do século XVIII e início do século XIX, quando as disciplinas se instalam de um modo coercivo e dominador sobre toda a sociedade através da anátomo-política que investe tanto sobre as instituições como sobre o indivíduo. Esta nova concepção de poder trata o corpo numa relação docilidade-utilidade e não já através do controlo do castigo e do enclausuramento. Esta mudança tem a ver sobretudo com a transformação do aparelho de produção que exige indivíduos úteis para produzir e dóceis para obedecer às forças que controlavam o sistema de produção. O indivíduo é transformado em força de trabalho pela racionalidade política da época, através de processos de subjectivação e de micro-poderes que modulam o corpo, as atitudes e o comportamento. As disciplinas, enquanto técnicas ordenam e definem as multiplicidades humanas, através de uma táctica de poder que tem em vista tornar o exercício de poder o menos custoso possível, tanto economicamente quanto politicamente, ou seja, o poder vai-se tornando cada vez mais discreto e suave, ele quase não se vê (embora ele veja tudo), o que lhe permite resguardar-se e anular a resistência que se lhe possa opor. Além disso, pelo facto de os indivíduos serem “trabalhados” pelas disciplinas, eles próprios de modo dócil, fazem a manutenção, a protecção e a renovação do sistema através dos actos e das funções da sua vida pessoal e social que são derivados das técnicas de coerção e da gestão da racionalização do tempo de trabalho e do tempo de lazer. Além disso, os efeitos de poder são intensificados e expandidos por toda a sociedade pelas tácticas do poder, contribuindo para um crescimento da fabricação do indivíduo e de todos os elementos do sistema económico e social.

264 Ibid 265 Ibid 266 Idem, p. 179

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A explosão demográfica do século XVIII, juntamente com o crescimento do aparelho de produção, leva a técnica das disciplinas a ajustar estes dois novos fenómenos segundo o princípio dominante da economia: “suavidade-produção-lucro”267 que substitui o princípio de violência da antiga economia do poder. São as disciplinas enquanto técnicas que vão ajustar “segundo esse princípio a multiplicidade dos homens e a multiplicação dos aparelhos de produção. Deve entender-se como produção não só a produção propriamente dita, mas a produção de saber e de aptidões na escola, a produção de saúde nos hospitais, a produção de força destrutiva com o exército.”268 E por isso, a disciplina deve controlar todas as forças que surgem da multiplicidade organizada dos homens, a fim de evitar a desordem que possa prejudicar ou por em causa o referido princípio da economia, assim como deve anular os efeito do contrapoder que formam a resistência. Para se oporem ás forças adversas que irrompem do interior da organização social, as disciplinas separam, e hierarquizam as multiplicidades com barreiras e redes hierárquicas, através do processo “da pirâmide contínua e individualizante”269, para anular todos os levantamentos horizontais. As disciplinas fazem crescer a utilidade singular de cada elemento da multiplicidade, através de métodos rápidos e pouco custosos, tais como os horários, os exercícios, e as vigilâncias para extrair dos corpos o máximo de tempo e de forças, assim como fazem crescer a utilidade de cada multiplicidade, através de tácticas de ajustamentos e coordenações recíprocas dos corpos e das tarefas. Portanto, é a própria multiplicidade dos homens, que organizados pelas disciplinas, cooperam e fazem a manutenção diária em cada instante do próprio sistema, assumindo o seu crescimento e evitando que este tenha custos com a sua vigilância ou confrontos com o poder. A disciplina está na própria trama da multiplicidade, e de modo subtil coloca em funcionamento as relações de poder, articulando-se com outras funções e com outros “instrumentos de poder anónimos e coextensivos à multiplicidade que regimentam, como a vigilância hierárquica, o registo contínuo, o julgamento, e a classificação contínua”.270 As disciplinas “são o conjunto das minúsculas invenções técnicas que permitiram fazer crescer a extensão útil das multiplicidades fazendo diminuir os inconvenientes do poder que, justamente para torná-las úteis, deve regê-las”.271 As disciplinas gerem a acumulação dos homens, através de métodos que usam “uma tecnologia minuciosa e calculada da sujeição”272, que se opõe às formas de poder tradicionais, e que vai permitir e acelerar a acumulação de capital que vai desenvolver o aparelho de produção. Através da disciplinas o poder retira-se da cena em palco, abandona o aparato fausto daqueles que o exercem, e opta pela cilada, de modo insidioso através de diversos instrumentos de poder que se mantém em acção contínua, pela força das disciplinas que se impõem no exercício quotidiano de vigilância. A acumulação do capital é inseparável da tecnologia minuciosa e calculada de sujeição assim como os métodos de procedimento disciplinar e de divisão do trabalho mantêm entre si relações inseparáveis. A acumulação do capital é inseparável da acumulação dos homens que são utilizados para absorver a produção.

267 Ibid 268 Ibid 269 idem, p. 181 270 Ibid 271 Ibid 272 Idem, p. 182

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O sistema capitalista para desenvolver-se e obter o máximo de lucros, necessita de uma eficaz coordenação, separação e controle das tarefas a realizar, tal como é desenvolvido pela pirâmide disciplinar, cujo esquema operatório é transferido dos grupos a submeter para os mecanismos da produção juntamente com “o quadriculamento analítico do tempo, dos gestos, das forças dos corpos”.273 A força de trabalho é composta e amplificada em grandes máquinas disciplinares, que são a projecção dos métodos militares “na modelagem da divisão do trabalho a partir de esquemas de poder”.274 Por outro lado, a técnica do processo de produção, que é decomposto e dividido, vai influenciar e entranhar-se nos indivíduos que realizam as suas tarefas no aparelho de produção. A disciplina visa maximizar as forças de trabalho, para servir o sistema de produção, e simultaneamente despotencializar o corpo, enquanto força crítica e insubmissa ao jogo do poder. Através do processo técnico da disciplina a força do corpo é “reduzida como força «política», e maximalizada como força útil”.275 Segundo Foucault, “o crescimento da economia capitalista”276 teve por base o poder disciplinar, com os seus processos de submissão das forças e dos corpos, que são postos a funcionar pelo poder político e pelos aparelhos pedagógicos, militares, industriais, médicos, e todas as instituições que operam na sociedade. O acesso ao poder da burguesia no século XVIII, trouxe consigo tanto o desenvolvimento de um quadro de liberdades formais e representativas, como simultaneamente, o desenvolvimento e a expansão dos dispositivos disciplinares. O sistema de direito e os princípios igualitários do então novo regime representativo, assentavam em sistemas desiguais e assimétricos, constituídos pelas disciplinas, que tinham por função manter a submissão dos indivíduos como corpos dóceis, para servirem os processos de produção e a classe dominante. São “mecanismos miúdos, quotidianos e físicos, sistemas de micropoder”277, as disciplinas que “garantem a submissão das forças e dos corpos”.278 Esta anátoma-política gere a submissão das forças dos indivíduos que permitiu o desenvolvimento de um regime político que se apresentou formalmente igualitário e representativo, mas que de um modo insidioso armadilhou o corpo do homem num sistema de vigilância e controlo. Aquilo em que se baseou a construção do Estado de direito, que é o contrato livre entre duas partes, tinha por base “as disciplinas reais e corporais que constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas”,279 isto é, o contrato era o fundamento ideal e publicitado do poder político enquanto o seu fundamento real, inaudível e indizível era o panoptismo, como técnica de coercção. Segundo Foucault, as disciplinas são uma espécie de contradireito que “têm o papel preciso de introduzir assimetrias insuperáveis e de excluir reciprocidades”.280 O laço disciplinar e o laço contratual são opostos, pela maneira como a disciplina é imposta, que é diferente do modo contratual, além da diferença dos mecanismos de funcionamento de uma e outra, e da desigualdade de poder e de posição dos diferentes parceiros em relação ao mesmo contrato ou regulamento. As disciplinas porque estão 273 Ibid 274 Ibid 275 Ibid 276 Ibid 277 Idem, p. 183 278 Ibid 279 Ibid 280 Ibid

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introduzidas no interior do próprio contrato, falseiam a sua independência e neutralidade, mostrando o contradireito da sua legalidade. Por exemplo, a disciplina e a hierarquia dos Serviços públicos, é um contradireito que está sempre acoplado ao contrato de direito. Portanto, há muitos procedimentos legais que introduzem assimetrias, prepotências e unilateralidade através do próprio contrato. O laço contratual - que qualifica o sujeito de direito de normas universais - tem implícito um mecanismo disciplinar que dispara sistematicamente nos procedimentos tácticos, onde a técnica das disciplinas caracteriza e classifica, hierarquiza e normaliza os indivíduos, uns em relação aos outros, podendo inclusive desqualificá-los, apesar da existência de um contrato. Assistimos assim, que nos procedimentos normais, ao lado do contrato regido pelo direito, actua, também, o contradireito da disciplina. E por mais “regular e institucional que seja, a disciplina, em seu mecanismo, é um «contradireito».”281 Ao contrário daquilo que aparentemente é evidente, as disciplinas não prolongam até a um nível ínfimo ou privado o direito universal que é consagrado nos textos jurídicos ou constitucionais, pois são as disciplinas que tomam conta do campo privado e que fazem funcionar relações limitadas, de força e de imposição, contrárias à evidencia do laço contratual. Portanto, o laço disciplinar ou o contradireito, e o laço contratual ou o direito, opõem-se na manifestação do contrato. Enquanto a sociedade moderna afirma fixar limites ao exercício do poder através do direito, o seu panoptismo tem em funcionamento ininterrupto em todos os lugares “uma maquinaria ao mesmo tempo imensa e minúscula que sustenta, reforça, multiplica a assimetria dos poderes e torna vão os limites que lhe foram traçados”.282 Isto quer dizer, como já vimos de um modo genérico, que funcionam em paralelo dois tipos diferentes de poderes que satisfazem simultaneamente as necessidades político-económicas e privadas da mesma classe dominante, ou seja, as disciplinas foram “a contrapartida política das normas jurídicas”283 universais que para além de tanto satisfazerem as necessidades de produção da classe dominante funcionam para redistribuir o poder. E além disso, as disciplinas são aparelhos que fazem de qualquer mecanismo de objectivação um instrumento de sujeição. Analisado deste ponto de vista, parece que caímos numa cilada, num «crime» perfeito e insidioso. As disciplinas ínfimas invadem o quotidiano, são “os panoptismos de todos os dias”284, com as quais não se ocupam as grandes lutas políticas, deixando isso para quem se ocupa dos pequenos processos da disciplina que assim se sente investido de poderes à imagem dos grandes aparelhos políticos. É através delas que é feita a redistribuição do poder. Por isto é que é difícil prescindirmos delas ou desembaraçarmo-nos dos seus efeitos. Parece que sem elas desabariam o equilíbrio do indivíduo e da sociedade. Por isso parecem «naturais» e evidentes, já entranhadas no corpo do indivíduo e no corpo social. Assim as disciplinas se confundem com a forma concreta “de qualquer moral quando elas são um feixe de técnicas físico-políticas”.285 E é precisamente devido à existência, por um lado, da acção do direito, e por outro, das técnicas físico-políticas, que Foucault recoloca a problemática de um dos castigos legais: a prisão com toda a sua tecnologia correctiva. Ele conclui, que o direito de punir torna-se num poder disciplinar de vigiar, e que há um treinamento útil para reabilitar o

281 Idem, p. 184 282 Ibid 283 Ibid 284 Ibid 285 Ibid

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sujeito de direito pela pena, e por fim, que o contradireito se entranha nas formas jurídicas institucionalizando-se. É por todas estas análises que Foucault conclui que aquilo “que generaliza o poder de punir não é a consciência universal da lei em cada um dos sujeitos de direito, é a extensão regular, é a trama infinitamente cerrada dos processos panópticos”.286 A penalidade no século XIX, começa a preocupar-se cada vez mais “com o controle, a reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos”287 e com aquilo que eles podem fazer, e menos com as suas infracções efectivas. Portanto, é o comportamento do preso antes, durante e após a infracção que vai começar a estar no centro das reflexões. Este controle não vai ser efectuado pela justiça mas por instituições de vigilância e correcção. Esta viragem na teoria penal, que agora se interessa pelo controle do indivíduo, vai convocar diversas instituições que vão girar em torno da instituição judiciária e “que vão enquadrar os indivíduos ao longo de toda a sua existência; instituições pedagógicas como a escola, psicológicas ou psiquiátricas como o hospital, o asilo, a polícia, etc”.288 Todas estas instituições são poderes não judiciários, que vão “desempenhar uma das funções que a justiça se atribui neste momento: função não mais de punir as infracções dos indivíduos, mas de corrigir suas virtualidades”.289 Assim, o controle penal punitivo do indivíduo é feito ao longo de toda a sua existência, pelas diversas instituições por onde passa, tornando-se a sociedade disciplinar, ela própria, uma espécie de prisão «perpétua» que visa a normalização e a adaptação a um determinado sistema vigente. Com este novo tipo de poder entra-se na idade que Foucault chamou de “ortopedia social... que é um tipo de sociedade que classifico de sociedade disciplinar por oposição às sociedades propriamente penais que conhecíamos anteriormente. É a idade de controlo social.”.290 A sociedade disciplinar, uma sociedade regulamentada e hierarquizada, tem por função a normalização das condutas e a produção de corpos dóceis A disciplina investe no corpo do indivíduo, e procura torná-lo eficiente e produtivo, respondendo assim a exigências políticas, económicas, jurídicas, médicas. Na sociedade disciplinar há um quadriculamento do espaço e o tempo é cuidadosamente distribuído num ritmo de permanente vigilância e obediência. As sociedades disciplinares, sociedades modernas, visam sobretudo construir um determinado tipo de indivíduo dócil que se submeta às estratégias de dominação, e que seja delas um reprodutor, através das disciplinas, ou seja, dos micropoderes. Pelas técnicas disciplinares o indivíduo sofre a sujeição, a subjectivação provocada pelos dispositivos das disciplinas. O corpo do indivíduo está envolvido num campo de forças político. Há um forte investimento político e económico do corpo com o objectivo de o sujeitar e dominar. Em resumo, a passagem da punição à vigilância, da sociedade soberana à sociedade disciplinar dá-se quando a economia do poder compreende que vigiar tem efeitos muito mais eficazes e produtivos do que punir.

286 Ibid 287 Foucault, Michel, A verdade e as formas jurídicas – Conferências de Michel Foucault na Universidade Católica do Rio de Janeiro de 21 a 25 de Maio de 1973 (1973), trad. de Roberto Machado e Eduardo Morais, Rio de Janeiro, Editora Nau, 2005, p. 85 288 Idem, p. 86 289 Ibid 290 Ibid

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Isto acontece a partir do final do século XVIII, com a invenção de um novo tipo de exercício de poder, ou seja, com uma nova mecânica de poder que se apoia nos corpos e nos seus comportamentos, e que age segundo procedimentos específicos, com novos instrumentos e aparelhos. Este novo tipo de poder “apoia-se no princípio que deve propiciar simultaneamente o crescimento das forças dominadas e o aumento da força e da eficácia de quem as domina”.291 Este poder disciplinar, radicalmente heterogéneo, “foi um instrumento fundamental para a constituição do capitalismo industrial”.292 Determinados procedimentos nos séculos XVIII asseguravam uma distribuição espacial dos corpos individuais nas escolas, no exército, nas fábricas e em todas as instituições. Eram políticas que visavam um fim económico e que tinham necessidade de criar divisões e segmentações nos indivíduos, para os colocar estrategicamente em determinados lugares, com funções demarcadas e com identidades submissas, exigindo-lhes a energia das suas forças ao serviço do desenvolvimento económico. O sistema de vigilância, de hierarquia, de inspecção e de relatórios têm uma função prática e estratégica. Os seus efeitos não são meramente controladores, são antes produtivos pois essas técnicas provocam efeitos quer na realidade, quer na construção e disposição das instituições, quer na fabricação dos indivíduos. Por meados do século XVIII, o poder disciplinar entranha-se nos gestos, nas atitudes, nos discursos e em todo o quotidiano do indivíduo. Este poder com as suas técnicas infiltra-se no indivíduo manobra-o e adestra-o, aumentando-lhe as forças para uma maior eficácia de utilização do tempo e do espaço. Esta mecânica do poder vai articular-se a uma nova modalidade de poder que se vai aplicar sobre a vida e a população, o biopoder, que por seu lado, se vai articular ao discurso racista e à luta das raças. Sendo a disciplina uma tecnologia de poder ela não se identifica com este ou aquele sistema de poder de Estado, nem com aparelhos nem com instituições. A disciplina atravessa todos os poderes, está presente em todos os aparelhos e instituições não se confundindo com nenhum deles. A disciplina enquanto tecnologia de poder está ainda presente nas sociedades actuais. Isto não significa que a sociedade disciplinar predomine no presente, mas contudo, além de podermos nela reconhecer fortes vestígios do poder disciplinar, ela também coexiste em diversas variantes com a actual sociedade de controlo. 291 Idem, p. 188 292 Ibid

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3. O panóptico e o panoptismo actual O Panóptico é um dispositivo disciplinar que permite que o poder possa ser exercido de modo automático seja quem for que o exerça e seja qual for o motivo. Pouco importa quem é e por que motivo está no centro da vigia, porque de qualquer modo ele fabrica sempre “293efeitos homogéneos de poder”.Os indivíduos estão no interior deste espaço, em forma de anel, que tem uma torre de vigia no centro, com janelas viradas para toda a periferia. É a partir do centro que todos os seus movimentos são vistos e controlados. É um espaço fechado e vigiado em todos os seus pontos, “onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos”.294 Também “os acontecimentos são registados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia.”295 Com o sistema panóptico, o funcionamento do poder é assegurado automaticamente pelo próprio prisioneiro, pois este nunca sabe se está a ser ou não vigiado, mas devido ao modo arquitectural do espaço ele é induzido para um estado consciente que o alerta para a possibilidade de haver ou não alguém a vigiá-lo, sem que ele possa saber se o é ou não naquele momento. Ele é visto, mas nunca vê ninguém a vigiá-lo embora saiba que isso pode acontecer permanentemente, o que obriga-o a comportar-se sempre como se estivesse a ser vigiado. É o prisioneiro que agora incorpora o próprio dispositivo e o transporta consigo em cada instante. O efeito deste sistema induz nele a certeza de estar a ser permanentemente vigiado, mesmo que isso de facto não aconteça. O panóptico “é uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder, independentemente daquele que o exerce”296, e que reproduz e assegura automaticamente o poder pelos próprios indivíduos. Esta interiorização de um poder que vigia sem ser visto, é a característica do sucesso deste tipo de modelo. Este tipo de modelo panóptico de vigilância pode ser transformado e adaptado aos processos tecnológicos para outras áreas e campos não penais mas civis. Nas actuais sociedades de controlo a torre de vigia de onde se vê sem ser visto é substituída pelas câmaras de televisão em circuito fechado. E o indivíduo é previamente avisado de que está a ser vigiado, pois o importante é que ele saiba que está a ser vigiado. Assim ele imediatamente interioriza os efeitos dos mecanismos de poder. Determinados lugares públicos podem tornar-se num imenso Panóptico, onde o indivíduo está continuamente “submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso; retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo”.297 Deste modo “a visibilidade é uma armadilha.”298 É uma vigilância permanente, omnipresente capaz de “tornar tudo visível, mas com a condição de se tornar ela mesmo invisível”.299 O panóptico é uma produção de subjectividade dentro de um dispositivo na medida em que gera uma sujeição real. Não é necessário nem impor nem obrigar. Os comportamentos exigidos pelo poder são automaticamente adquiridos pelos indivíduos pelo simples factos de pensarem que estão a ser vistos e controlados, não sendo 293 Foucault, Michel, Vigiar e Punir (1975), tradução de Raquel Ramalhete, 33ª ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2007, p. 167 294 Idem, p. 163 295 Ibid 296 Idem, p. 166 297 Idem, p. 168 298 Idem, p. 166 299 Idem, p. 176

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necessário “recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento, o louco à calma, o operário ao trabalho, o escolar à aplicação, o doente à observância das receitas.”300 E isto porque quem se sabe submetido a este tipo de controlo “retoma por sua conta as limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo.”301 O próprio indivíduo gera a sua própria sujeição e aceita-a conformado, e até pode participar e desenvolver activamente esse seu estado de submissão. A subjectividade produzida pelos dispositivos pode produzir efeitos automáticos de reprodução e desenvolvimento de poder, levando o indivíduo a comportar-se à imagem do poder, com os mesmos graus de exigência. Estas atitudes são assumidas de forma livre e independente e sem nenhuns constrangimentos. Assim o poder se propaga de modo incorpóreo por todos os elementos do corpo social e “o poder externo… pode-se aliviar de seus fardos físicos.”302 Estas situações de replicação automática do poder nos indivíduos fazem diminuir as forças de resistência e são sempre “uma vitória perpétua que evita qualquer afrontamento físico e está sempre decidida por antecipação.”303 Assim como diminui o confronto e a força da resistência com o poder pelo facto de ele se tornar difuso porque “pode reduzir o número dos que o exercem, ao mesmo tempo em que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido.”304 São os próprios indivíduos que se encarregam da transmissão do poder colocando em acção o seu exercício. Segundo Foucault o Panóptico também pode ser utilizado como máquina de fazer experiências, modificar o comportamento e treinar os indivíduos. Por exemplo, experimentar remédios e verificar os seus efeitos ou tentar experiências pedagógicas. Através do esquema panóptico pode-se controlar os indivíduos e julgá-los continuamente. O Panóptico não funciona apenas como um simples edifício físico, ele “é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal.”305 Ele é um dispositivo, uma tecnologia política que pode ser utilizado por qualquer poder e para qualquer uso sempre que se deva impor a uma multiplicidade de pessoas uma tarefa ou um comportamento. “É um tipo de implantação dos corpos no espaço, de distribuição dos indivíduos em relação mútua, de organização hierárquica, de disposição dos centros e dos canais de poder, de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas, nas escolas, nas prisões.”306 O esquema panóptico intensifica as relações de qualquer aparelho de poder sendo eficaz e económico, adaptando-se perfeitamente às exigências da racionalidade quer da política económica quer da democracia actual pois é controlado por todos os elementos da sociedade. As características do esquema panóptico conjugam-se com as necessidades quer económicas quer políticas da actual sociedade de controlo. Por um lado, evita os custos com o policiamento, e por outro lado, aumenta a aparência de liberdade reforçando o exercício do poder de modo subtil apoiando-se nos próprios indivíduos. A característica especial de qualquer instituição panóptica é de estar aberto para a visita de qualquer pessoa do exterior que poderá “constatar com os seus olhos como funcionam as escolas, os hospitais, as fábricas, as prisões.”307 E por este motivo “não há 300 Idem, p. 167 301 Idem, p. 168 302 Ibid 303 Ibid 304 Idem, p. 170 305 Ibid 306 Ibid 307 Idem, p. 171

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risco de que o crescimento de poder devido à máquina panóptica possa degenerar em tirania; o dispositivo disciplinar será democraticamente controlado.”308 A máquina panóptica, vinda das disciplinas, enquanto dispositivo, vai melhorar e funcionar em simultâneo na sociedade de controlo que exige transparência e segurança. O esquema panóptico “torna-se um edifício transparente onde o exercício do poder é controlável pela sociedade inteira.”309 Ele difunde-se por todo o corpo social, ele amplifica o poder, torna mais fortes tanto as forças sociais como as relações de poder, “ele aumenta a produção, desenvolve a economia, espalha a instrução, eleva o nível da moral pública; faz crescer e multiplicar.”310 O esquema panóptico gera uma leveza no exercício do poder, o que o adapta às exigências actuais da sociedade, pois estabelece “coerções mais subtis para uma sociedade que está por vir.”311 O modelo panóptico pode ser posto em funcionamento em diversas instituições. O panoptismo é uma forma de poder que tem por base o exame que é a constituição de um saber acerca daqueles que são vigiados. No poder panóptico há vigilância e exame ou saber. E este novo saber de vigilância e de exame, é “organizado em torno da norma, para controlo dos indivíduos ao longo da sua existência”.312 E segundo Foucault, “esta é a base do poder, a forma de saber-poder que vai dar lugar… às ciências humanas: Psiquiatria, Psicologia, Sociologia, etc.”.313 Para Foucault “a «observação» prolonga naturalmente uma justiça invadida pelos métodos disciplinares e pelos processos de exame”.314 Hoje, a prisão celular é cada mais invadido pelos “mestres da normalidade, que retomam e multiplicam as funções do juiz”315 na avaliação do comportamento do preso, tendo em vista uma alteração do fim da pena, ou simplesmente, para investigarem e ouvirem o que ele tem para dizer com vista a uma «cura» ou a uma transformação comportamental, isto é, a uma normalização. Para Foucault, a prisão celular tornou-se o instrumento moderno da penalidade “com suas cronologias marcadas, seu trabalho obrigatório, suas instâncias de vigilância e de notação”.316 E interroga-se Foucault: “devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?”.317 Isto não significa que haja uma analogia entre todas estas instituições, o que Foucault estabelece entre elas é uma identidade nos mecanismos e no funcionamento de poder. Identidade de quê? Pergunta Foucault. “É o mesmo tipo de poder, é o mesmo poder que se exerce”.318

308 Ibid 309 Ibid 310 Idem, p. 172 311 Idem, p. 173 312 Foucault, Michel, A verdade e as formas jurídicas – Conferências de Michel Foucault na Universidade Católica do Rio de Janeiro de 21 a 25 de Maio de 1973 (1973), trad. de Roberto Machado e Eduardo Morais, Rio de Janeiro, Editora Nau, 2005, p. 88 313 ibid 314 Foucault, Michel, Vigiar e Punir (1975), trad. de Raquel Ramalhete, 33ª ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2007, p. 187 315 Ibid 316 Ibid 317 Ibid 318 Foucault, Michel, Ditos e Escritos – v. IV (1994), trad. de Vera Lúcia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006, p. 74

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É portanto um poder “que obedece à mesma estratégia” 319 embora tenha objectivos diferentes. É “uma identidade morfológica do sistema de poder”.320 Como afirma Foucault “vivemos numa sociedade onde reina o panoptismo”.321 Numa sociedade panóptica, a vigilância exerce-se permanentemente, sem interrupção e totalmente sobre os indivíduos por alguém que exerce sobre eles um domínio, um poder – o director, o chefe, o médico, o psiquiatra – e que, “enquanto exerce esse poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aqueles que vigia, a respeito deles, um saber”.322 Esse saber vai determinar o comportamento do indivíduo, vai saber como o indivíduo conduz a sua vida, se é ou não consoante a regra e a norma, e qual é o seu estado de evolução no sentido da normalização. Foucault define assim o panoptismo: “é um dos traços característicos da nossa sociedade. É uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua, em forma de controlo de punição e recompensa e em forma de correcção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas. Este tríplice aspecto do panoptismo – vigilância, controle e correcção – parece ser uma dimensão fundamental e característica das relações de poder que existem em nossa sociedade”.323 Em qualquer sistema panóptico, a vigilância sobre o indivíduo se debruça para além daquilo que ele faz, sobre aquilo que ele pode fazer. Daí a importância em olhar as suas atitudes, em qualificá-las e analisá-las, para saber o que é necessário fazer para ele ser normalizado. É preciso identificar o indivíduo, dizer quem ele é. Cada indivíduo deve ficar acorrentado à sua própria identidade. Qualquer escala hierárquica, de certo modo reflecte uma atitude panóptica, porque cada indivíduo está constantemente a vigiar e a ser vigiado e olhado «sem ser visto» pelo outro, e pode informar o superior, que se segue de imediato na escala, de qualquer tipo de comportamento que não se adeqúe à norma, e este por sua vez dá conhecimento ao superior seguinte e assim sucessivamente até ao cume da escala onde se encontra o hierárquico máximo. Este, assim, tem à sua disposição uma série de vigias e de olhares sobre os outros, que não o vêem a ele, mas que sabem que ele está presente pelo olhar de cada um dos presentes, pois cada um vê o outro com os olhos do poder do máximo superior hierárquico. Deste modo, o «olhar» do hierárquico que está no topo abarca toda a periferia e todo o ínfimo pormenor. O sistema de graus hierárquicos é um poderoso meio de controlar minuciosamente todos os detalhes, e as atitudes dos indivíduos através da observação contínua. As técnicas da disciplina visam os indivíduos e a sua singularidade, e “é preciso vigiá-los durante todo o tempo da actividade e submete-los a uma perpétua pirâmide de olhares”.324 A disciplina é um poder de individualização “que implica uma vigilância perpétua e constante do indivíduo”.325 319 Ibid 320 Idem, p. 75 321 Idem, p. 87 322 Idem, p. 88 323 Idem, p. 103 324 Foucault, Michel, Microfísica do Poder (1979), trad. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Editora Graal, 2007, p. 106 325 Ibid

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Actualmente, a sociedade de controlo é uma sociedade de vigilância com modos de agir panópticos, que cada vez mais se difundem através das câmaras dos circuitos de vigilância que tudo vêem, mas que não nos permitem ver quem nos vigia. Tanto o esquema panóptico quer a sociedade de controlo utilizam o controlo contínuo e incessante. Jeremy Bentham, o autor do projecto panóptico, faz uma interpretação alargada daquele conceito não o restringindo à forma arquitectural afirmando: “é uma forma de arquitectura, é claro, mas é sobretudo uma forma de governo; é uma maneira para o espírito exercer o poder sobre o espírito.”.326 Bentham “via no Panóptico uma definição das formas de exercício do poder”.327 O Panóptico pode ser realizado pelo poder político através das instituições tal como o apresentou Treilhard: “o olho do imperador vai poder chegar até os recantos mais obscuros do Estado. Pois o olho do imperador vigiará os procuradores-gerais que vigiarão os procuradores-imperiais, e os procuradores-imperiais vigiarão todo o mundo”.328 Para Foucault uma sociedade panóptica é caracterizada pela generalização de estruturas de vigilância, cujo “sistema penal, o sistema judiciário, são uma peça assim como a prisão, por sua vez, também o é; estruturas de vigilância das quais a psicologia, a psiquiatria, a criminologia, a sociologia, a psicologia social são os efeitos.”.329 Há desde o início do século XIX, uma série de instituições que funcionaram sob o mesmo modelo, que obedeciam às mesmas regras, baseadas ou inspiradas no Panóptico de Bentham: “instituições de vigilância nas quais os indivíduos eram fixados, seja a um aparelho de produção, uma máquina, um ofício, uma fábrica, seja a um aparelho escolar, seja a um aparelho punitivo, correctivo ou sanitário”.330 A identidade do indivíduo ficava assim fixada a um aparelho através de todo um aparelho de coacções referidas a um mesmo sistema de poder. E é deste modo que o corpo, a existência e o tempo do homem são postos ao serviço do aparelho de produção. Foucault afirma: “hoje, as pessoas não são mais enquadradas pela miséria, mas pelo consumo. Tal como no século XIX, mesmo se é sob outro modelo, elas continuam a ser capturadas”331 pelos diversos dispositivos e agenciamentos de poder.

326 Foucault, Michel, Ditos e Escritos – v. IV (1994), trad. de Vera Lúcia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006, p. 72 327 Ibid 328 Ibid 329 Ibid 330 Idem, p. 66 331 Idem, p. 67

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Capítulo III – As Sociedades de Controlo 1. As sociedades de controlo Deleuze afirma que “entrámos em sociedades de controlo que já não são exactamente disciplinares332”. Já Foucault tinha afirmado que as sociedades disciplinares “são aquilo que estamos em vias de deixar para trás, aquilo que estamos a deixar de ser”.333 Isto quer dizer que o encerramento enquanto técnica principal das sociedades de disciplina deixa de ser predominante. O hospital, a prisão, a escola, a fábrica tornam-se instituições em crise que chocam com os novos tipos de sanções e com os novos modelos de educação e de cuidados de saúde. A crise da sociedade de disciplina é provocada não por um abrandamento ou tentativa de desembaraçamento dos laços coercivos, mas pelo aparecimento de novos métodos sancionatórios de vigilância e de controlo. As instituições entram em crise e inicia-se a implantação de novas soluções. O hospital expande-se com os seus cuidados até ao domicílio, e a profissão e a educação deixam de ser meios fechados “em benefício de uma terrível formação permanente, e de um controlo contínuo exercido sobre o operário-liceal ou o quadro universitário”334. As sociedades disciplinares “procedem à organização dos grandes meios de encerramento. O indivíduo não pára de passar de um meio fechado para outro, tendo cada um deles as suas leis: primeiro a família, depois a escola (“já não estás em família”), depois o quartel (“já não estás na escola”), depois a fábrica, de tempos a tempos o hospital, eventualmente a prisão que é o meio de encerramento por excelência”.335 Cada um destes encerramentos constituía uma concentração, baseada numa repartição do espaço e num ordenamento do tempo Todo este sistema é baseado na técnica das disciplinas, que “por sua vez conheceriam uma crise, em proveito de novas forças que se instalariam lentamente, e que se precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial: as sociedades disciplinares eram já o que nós já não éramos, o que nós estávamos a deixar de ser. Estamos numa crise generalizada de todos os meios de encerramento, prisão, hospital, fábrica, escola, família”.336 É o surgimento das “sociedades de controlo, que funcionam já não por encerramento, mas por controlo contínuo e comunicação instantânea”.337 Segundo Deleuze este “controlo incessante em meio aberto”338 pode bem ser mais intolerável e malévolo que as formas mais duras de encerramento. 332 Deleuze, Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Editora Fim de Século, 2003, p. 234 333 Ibid 334 Ibid 335 Idem, p. 239 336 Idem, p. 239-240 337 Idem, p.234 338 Idem, p. 235

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Para Deleuze, Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX, tendo estas, atingido o seu apogeu no século XX. Foucault apercebe-se que elas estão em transformação, que estão sendo invadidas por novas forças que se implantam a pouco e pouco e que irão substitui-las num futuro próximo. O sistema fechado das disciplinas é substituído “pelas formas ultra-rápidas de controlo ao ar livre”.339 Passa-se de uma forma de sujeição baseada no encerramento para uma forma de controlo aberto. Portanto, o indivíduo estava recluso de uma sociedade disciplinar, que lentamente começa-o a conduzir para um outro tipo de sociedade que aparenta uma maior liberdade mas que traz consigo novos “mecanismos de controlo que rivalizam com os encerramentos mais duros”.340 Para Deleuze “não se trata de perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, porque é no interior de cada um deles que as liberações e as sujeições se enfrentam”.341 Na sociedade disciplinar o indivíduo movia-se entre dois encerramentos, por exemplo ia da escola para o exército e deste para a fábrica, ele estava sempre entre dois encerramentos. Terminava um e passava para o outro. Agora, na sociedade de controlo “nunca nada acaba, a empresa, a formação”342, nunca se termina nada. E isto porque o indivíduo pode estar em diversos espaços ao mesmo tempo. Esta passagem da sociedade disciplinar para a de controlo, é comparada por Deleuze com o buraco da toupeira e os anéis da serpente. Enquanto aquele tem um espaço definível e localizável, estes ocupam vários espaços ao mesmo tempo. Na sociedade disciplinar o indivíduo passa por diferentes meios de encerramento que são independentes, e em cada um deles de cada vez recomeça do início. Com a sociedade de controlo assiste-se a uma passagem da sociedade disciplinar baseado no molde, moldes distintos, diferentes e fixos consoante cada meio de encerramento, para “os controlos que são uma modulação, como um molde auto-deformante que mudasse continuamente, de um instante para o outro, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto para outro”.343 Esta modulação implica flexibilidade, e um “deformador universal”344 que não tem necessidade de separação entre os diversos meios de encerramento porque nunca nada acaba. A empresa, a formação, o serviço funcionam como deformadores universais. E é devido à existência destes deformadores, que Deleuze alerta para o perigo das futuras formas de controlo incessante em meio aberto, terem em vista a busca de universais de comunicação, que podem levar “a formas mais duras de encerramento”345 que as do passado da sociedade disciplinar. Deleuze apresenta o exemplo dos salários na antiga fábrica e na nova empresa, para ilustrar as diferentes moldagens dos dois tipos de sociedade já referidos. Na fábrica, que corresponde à sociedade disciplinar, o salário é baixo segundo uma forma fixa, enquanto na sociedade de controlo a empresa, que vai substituir a fábrica, impõe um sistema de prémios como princípio flexível, “uma modulação de cada salário, em estados de perpétua meta-estabilidade”346 que passam por diversas actividades.

339 Idem, p. 240 340 Ibid 341 Ibid 342 Idem, p. 241 343 Ibid 344 Idem, p. 242 345 Idem, p. 235 346 Idem, p. 241

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A empresa introduz o princípio modulador do “salário por mérito” que se expande para a própria Educação que, “tal como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controlo contínuo a substituir o exame”.347 Na fábrica cada indivíduo era vigiado pelo patronato, mas a empresa adopta uma outra estratégia de controlo, através do princípio modulador do “salário por mérito”, ao motivar os indivíduos a suplantarem-se uns aos outros, e a oporem-se entre si. Esta rivalidade atravessa o indivíduo e divide-o em si próprio. Agora na empresa os custos com a vigilância são mínimos obtendo-se lucros máximos pois todos os indivíduos se sacrificam e rivalizam no trabalho a fim de serem considerados, melhores que os outros e assim serem chamados a realizarem formações contínuas, concursos e colóquios para obterem um melhor salário e fazendo com que os outros salários baixem, o que permite que a empresa obtenha maiores lucros. Segundo Deleuze uma das características da sociedade disciplinar é que ela tem dois pólos: “a assinatura que indica o indivíduo, e o número ou a matrícula que indica a sua posição numa massa”.348 É deste modo que o indivíduo é controlado neste tipo de sociedade em que o poder é simultaneamente massificador e individual. Pelo contrário, nas sociedades de controlo o essencial é “uma cifra: a cifra é uma palavra-passe”.349 O controlo é feito de cifras, palavras-passe, senhas que permitem ou não o acesso à informação. Deleuze afirma que é o exemplo do dinheiro o que melhor pode ilustrar a diferença entre estes dois tipos de sociedade. “A disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas segundo moldes que continham ouro como número-padrão, ao passo que o controlo remete para trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes moedas-amostras”.350 Mais uma vez Deleuze utiliza dois animais para fazer a comparação entre o antigo sistema monetário, que é a toupeira, o animal das disciplinas, e a “a serpente que é o animal das sociedades de controlo”.351 Esta passagem de um animal a outro não se limita à questão monetária pois ela expande-se na “nossa maneira de viver e nas relações com outrem”.352 Deleuze faz corresponder a cada sociedade um determinado tipo de máquinas porque estas “exprimem as formas sociais capazes de lhes dar origem e de se servirem delas”.353 “Mas as máquinas não explicam nada, é preciso analisar os agenciamentos colectivos dos quais as máquinas são apenas uma parte”.354 As sociedades disciplinares operavam com máquinas energéticas, ao invés das sociedades de controlo que operam com máquinas informáticas e computadores. Esta mutação de máquinas tem a ver com a mutação do capitalismo. O capitalismo do século XIX era essencialmente um capitalismo destinado à produção, ao invés do actual que é “um capitalismo do produto, quer dizer para a venda ou para o mercado”.355 Este novo capitalismo “o que quer vender são serviços, e o que quer comprar são acções”.356 Ele torna-se assim dispersivo e a fábrica, a escola, a família “já

347 Ibid 348 Idem, p. 242 349 Ibid 350 Ibid 351 Ibid 352 Idem, p. 243 353 Ibid 354 Idem, p. 235 355 Idem, p. 244 356 Ibid

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não são meios analógicos distintos que convergem num proprietário, estado ou potência privada, mas as figuras cifradas deformáveis e transformáveis, de uma empresa que já não tem senão gestores”.357 Agora o serviço de venda de uma empresa depende das conquistas de mercado, e estas “fazem-se através de tomadas de controlo”358 que passam pelo marketing, que se torna agora no “instrumento do controlo social”359 e do controlo do homem, ganhando a corrupção novas formas. Este controlo é “a curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, enquanto a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua”.360 Destes mecanismos de controlo emerge um outro homem. “O homem já não é o homem encerrado, mas o homem endividado”.361 Os actuais meios técnicos e tecnológicos com os seus sistemas de informação, ligados aos bancos de dados, difundem e expandem por todo o lugar os mecanismos contínuos de controlo social que mantêm uma visibilidade total de tipo quase panóptico. Assim são substituídos os anteriores meios de encerramento e esquadrinhamento. Este novo homem que aparece é o homem resultante da nova forma jurídica: “a moratória ilimitada das sociedades de controlo (em variação contínua)”,362 onde nunca nada termina. Este homem “é mais ondulatório, posto em órbita, num feixe contínuo”.363 Cada vez mais os mecanismos electrónicos invadem a vida dos indivíduos para melhor controlá-los e “o computador que referencia a posição de cada um seja lícita ou não, opera uma modulação universal”364, isto é, um controle que pode mudar continuamente em cada instante. Deleuze dá o exemplo de Guattari que imaginou uma sociedade em que um indivíduo podia se movimentar através de diversas barreiras usando o seu cartão, mas poderia acontecer que esse cartão fosse recusado em determinado dia ou hora. Essa recusa é feita pelo computador operando assim como um deformador universal que dispensa as separações feitas pelas barreiras. E Deleuze chama a atenção do perigo da modulação universal tornar possível que os “velhos meios, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, reapareçam em cena, mas com as adaptações necessárias”.365 Estão a surgir novos e subtis mecanismos de controlo, que estão a substituir os meios de encerramento disciplinar, provocando a actual crise das instituições e “a instalação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação”.366 Segundo Deleuze o que há por toda a parte são máquinas com as suas ligações e conexões. Máquinas e efeitos de máquinas e “não metáforas”.367 Cada um de nós tem as suas pequenas máquinas as quais aproveitamos ou adaptamos à nossa vida como se fossemos “«bricoleurs»”.368

357 Ibid 358 Ibid 359 Ibid 360 Ibid 361 Ibid 362 Idem, p. 242 363 Idem, p. 243 364 Idem, p. 245 365 Ibid 366 Ibid 367 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, O Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia 1 (1972), trad. de Joana Moraes Varela e Manuel Maria Carrilho, Lisboa, Editora Assírio & Alvim, 2004, p. 7 368 Ibid Nota: Mantenho a palavra em francês, tal como também se encontra no livro, por ser intraduzível em português.

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Entre duas máquinas há sempre fluxos e cortes. “Uma máquina-orgão está ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que a outra corte”.369 São as máquinas que nos obrigam a tomar posições sociais ou individuais e as posições derivam das máquinas. Por isso Deleuze afirma: “Tudo é máquina”.370 A natureza é um processo de produção das “máquinas produtoras ou desejantes”371 que se encontram por todo o lado. O homem e a natureza derivam ambos de “um processo que os produz um no outro, e liga as máquinas”.372 Os circuitos económicos tradicionais – produção, distribuição e consumo – não são independentes porque “a produção é imediatamente consumo e registo, o consumo e o registo determinam directamente a produção, mas determinam-na no seio da própria produção”.373 Deleuze afirma que tudo é produção: “produção de produções, de acções e de reacções; produções de consumos, de volúpias, de angústias e dores”.374 O homem e natureza são “uma só e mesma realidade essencial: a do produtor e do produto. A produção… forma um ciclo cujo princípio imanente é o desejo”.375 As máquinas desejantes, “são máquinas de regra binária ou regime associativo.”376 A máquina desejante com as suas ligações e conexões, está sempre ligada com uma outra máquina pois há sempre um fluxo produzido por uma e corte desse mesmo fluxo realizada por outra. E por sua vez, a primeira máquina está ligada a uma outra que funciona como corte de fluxo em relação a uma outra, o que faz com que a série binária seja linear em todas as direcções. Os fluxos são produzidos por objectos parciais, que por sua vez são cortados por outros objectos parciais, que produzem outros fluxos que são também cortados por outros objectos parciais. “·Qualquer objecto supõe a continuidade de um fluxo, e qualquer fluxo a fragmentação de um objecto”.377 Esta ligação do objecto parcial-fluxo pode-se traduzir em outra forma, a do produto-produzir. Isto significa que “o produzir está sempre inserido no produto – é por esta razão que a produção desejante é produção de produção”.378 Deleuze estabelece um paralelo entre a produção desejante e a produção social, mas tal paralelo “não considera nem a natureza nem a relação entre as duas produções, nem sequer a questão de saber se existem, efectivamente, duas produções”.379 Assim como as máquinas desejantes implicam um corpo sem órgãos inengendrado também as formas de produção social implicam “um estado improdutivo inengendrado, um elemento de anti-produção”380 que pode ser o capital. Mas o desejo é produtor, produz o real, a realidade. Por isso “não existe de um lado uma produção social da realidade, e de outro, uma produção desejante de fantasma”.381 Desejar é produzir no real e todo o real é possível, logo todo o desejo é possível tornar-se em real.

369 Ibid 370 Idem, p. 8 371 Ibid 372 Ibid 373 Idem, p. 9 374 Ibid 375 Idem, p. 10 376 Idem, p. 11 377 Ibid 378 Ibid 379 Idem, p. 15 380 Ibid 381 Idem, p. 32

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Sendo assim o desejo “não exprime uma falta molar no sujeito, é a organização molar que tira ao desejo o seu ser objectivo”.382 Não existe uma falta primeira sobre a qual a produção se organize para a colmatar. A falta emerge da própria produção social, é por ela organizada previamente. Esta falta gera um vazio, e este vazio torna-se numa prática da economia de mercado. Segundo Deleuze esta é a arte da classe dominante, que consegue organizar a falta na abundância de produção e “fazer depender o objecto de uma produção real que se supõe exterior ao desejo (as exigências da racionalidade), enquanto a produção do desejo passa para o fantasma (e só para o fantasma)”.383 Por tudo isto conclui Deleuze, que não se pode dizer que de um lado existe uma produção social da realidade e de outro, uma produção desejante de fantasma, pois “a produção social é simplesmente a produção desejante em determinadas condições”.384 Para Deleuze “existe apenas o desejo e o social e nada mais”.385 O desejo reproduz as forças sociais, mesmo as mais repressivas e as mais mortíferas, e é por isso que o problema de hoje é o mesmo que Spinoza formulou do seguinte modo: «Porque é que os homens combatem pela sua servidão como se tratasse da sua salvação?». E que Deleuze coloca da seguinte maneira: “Porque é que há homens que suportam há tanto tempo a exploração, a humilhação, a escravatura, e que chegam ao ponto de as querer não só para os outros, mas também para si próprios?”.386 O desejo é maquínico, produz e constrói, pois quando se deseja algo deseja-se sempre mais através de um agenciamento. Não se deseja algo isolado. Não existo eu de um lado e algo que desejo do outro. O que desejo é sempre um conjunto de coisas que vêm agenciadas com o meu desejo. Sendo assim o deseja cria territórios. Há agenciamentos maquínicos de corpos de máquinas desejantes e há agenciamentos colectivos de enunciação que dizem respeito ao social. Entre estes dois agenciamentos existe uma relação pois eles interferem reciprocamente um no outro. Desta relação surge um território e de imediato linhas de fuga que geram movimentos de desterritorialização e de reterritorialização. Segundo Deleuze as sociedades modernas civilizadas definem-se pelos processos de descodificação e desterritorialização. As actuais sociedades capitalistas têm por base a mobilidade, a flexibilidade, fluxos ininterruptos, conexões, redes, que desterritorializam o social e o individual, e os meios financeiros. Mas se existe uma desterritorialização é porque em qualquer outro lugar vai aparecer uma reterritorialização por que implica a construção de um novo território. Deleuze afirma: “O que desterritorializam por um lado, reterritorializam por outro”.387 Mesmo que o território seja menos enraizado, mais descontínuo e móvel, mas não deixa de ser, apesar de tudo, uma reterritorialização, ou seja, uma moderna territorialidade ou neo-territorialidade artificial com os seus novos agenciamentos maquínicos de corpos e colectivos de enunciação. As sociedades actuais assentam sobre fluxos descodificados e desterritorializados que vão reterritorializar inventando pseudo-códigos baseados em outros códigos. “Mas estas não-territorialidades são muitas vezes artificiais, residuais, arcaicas”.388

382 Ibid 383 Ibid 384 Idem, p. 33 385 Ibid 386 Ibid 387 Idem, p. 268 388 Idem, p. 268

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Estes arcaísmos têm contudo a função de reintroduzir de algum modo alguns fragmentos de códigos. A reterritorialização já não é propriamente uma territorialização, pois agora comporta elementos muito difusos e artificiais, trazidos pelas novas forças económicas e políticas do capitalismo. Estas territorialidades modernas correspondem ao modo actual de viver, de inovar, renovar ou compor baseado em códigos antigos. Elas são complexas e muito variadas. Umas são folclóricas, como por exemplo os jogadores de futebol, outras formam uma espécie de enclave, como por exemplo as minorias étnicas. Umas formam-se espontaneamente, no próprio movimento de desterritorialização, por exemplo as territorialidades de bairro, outras são organizadas pelo Estado, como por exemplo o regionalismo. A função do Estado moderno é regular os fluxos resultantes da descodificação e da desterritorialização do capitalismo. E o modo de faze-lo é “reterrritorializar, para assim impedir a fuga dos fluxos descodificados por todos os cantos da axiomática social”.389 Estas são as modernas funções do Estado que têm por objectivo a regulação dos fluxos de capitais e dos fluxos de financiamento que de modo contínuo se desterritorializam e se reterritorializam num movimento que faz parte do mesmo processo. O capitalismo contemporâneo vive um processo intenso e acentuado de descodificação e desterritorialização. A máquina capitalista encontra-se numa situação única relativamente às máquinas anteriores, seja a máquina territorial primitiva ou a máquina despótica, que é a necessidade de descodificação e desterritorialização dos fluxos. “A máquina social ou socius”390 tem tido sempre como preocupação “codificar os fluxos do desejo, inscrevê-los, registá-los, fazer que nenhum fluxo corra sem ser rolhado, canalizado, regulado”.391 As máquinas técnicas “remetem sempre para um socius ou uma máquina social que não se confundem”392 por isso não foi uma máquina técnica industrial que gerou a actual produção social: o capitalismo. O desejo é máquina e o seu objecto também, por isso nas máquinas desejantes o produzir insere-se sempre no produto. Estas máquinas estão sempre avariadas e o combustível que as faz funcionar são as suas próprias peças, ao invés das máquinas técnicas que apenas funcionam quando não estão avariadas. As máquinas desejantes produzem o corpo sem órgãos, que é a sua anti-produção, enquanto a anti-produção das máquinas técnicas lhe vem de condições extrínsecas e que as remete sempre para um socius. Por isto há uma diferença de base entre o corpo sem órgãos e um socius ou máquina social. As máquinas desejantes “são a categoria fundamental da economia do desejo, produzem por si um corpo sem órgãos, e não separam os agentes das suas próprias peças, nem as relações de produção das suas próprias relações, nem a sociedade da tecnicidade”.393 As máquinas desejantes são simultaneamente técnicas e sociais, mas com dois regimes diferentes. “Toda a produção social deriva da produção desejante em determinadas condições: primeiro, o Homo natura. Mas devemos dizer também, e mais exactamente, que a produção desejante é primeiramente social, e só mais tarde procura libertar-se (primeiro, o Homo historia)”.394 Então, “só existe uma produção, que é a de real”.395 O

389 Idem, p. 269 390 Idem, p. 36-37 391 Idem, p. 37 392 Idem, p. 36 393 Ibid 394 Ibid 395 Ibid

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que quer dizer, tal como já vimos anteriormente neste trabalho, que a máquina desejante produz a repressão e isso é “uma estranha aventura para o desejo, o desejar repressão”.396 As máquinas desejantes são as mesmas que as máquinas sociais e técnicas, logo os investimentos de desejo investem sobre os investimentos de interesse de uma determinada sociedade. Mas sob as razões que constituem uma sociedade “há as formas insólitas dum desejo que investe os fluxos como tais e os seus cortes, que reproduz constantemente os factores aleatórios, as figuras menos prováveis e os encontros entre séries independentes na base dessa sociedade, e que desprendem um amor «por si mesmo», amor do capital por si mesmo, amor da burocracia por si mesma, amor da repressão por si mesma”.397 Daqui ressurge de novo a questão já colocada: “Como é possível que os homens desejem a repressão não só para os outros, mas para si mesmos?”. 2. O controlo e a resistência É uma ilusão pensar-se que nas actuais sociedades de controle, o pleno direito e a norma das regulamentações esteja a substituir a política, pelo contrário, visto que “a lei e as leis…são noções vazias e complacentes”398, o importante é analisar a jurisprudência pois “é esta que é verdadeiramente criadora de direito”399 e que por isso não deveria continuar a ser entregue aos juízes mas sim funcionar através de grupos de utilizadores. E “é aqui que passamos do direito à política”.400 Perante a instalação de um novo poder é importante criar “novas formas de resistência contra as sociedades de controlo”.401 Perante o marketing que invade o social e que atravessa os corpos que espécie de resistência se pode opor? Deleuze levanta uma questão interessante ao interrogar-se sobre o que leva muitos funcionários a desejarem ser motivados através das formações e dos estágios, o que significa isso? O que é que eles pretendem servir? O que é “aquilo que os fazem servir”.402 Os sindicatos na sociedade disciplinar mobilizavam uma massa de resistência contra os encerramentos, mas agora eles necessitarão de “procurar novas armas”403 perante as novas formas de pobreza e sujeição, dominação e controle. Na contemporaneidade a comunicação e a informação tornam-se hegemónicas mantendo deste modo uma dominação pela palavra que foi invadida pelo poder económico e social e por isso talvez “tenham apodrecido”.404 A palavra viciada pelo

396 Ibid 397 Idem, p. 420 398 Deleuze, Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Editora Fim de Século, 2003, p. 227 399Ibid 400 Idem, p. 228 401 Idem, p. 246 402 Ibid 403 Idem, p. 240 404 Idem, p. 235

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poder difunde-o e propaga-o como um gás, por isso a resistência terá de ser feita por “um desvio da palavra” para criar alguma coisa diferente de comunicar, por exemplo, “vácuolos de não-comunicação, interruptores, a fim de escapar ao controlo”.405 Toda a comunicação, inclusive a minoritária, foi penetrada pelo poder económico. Deleuze propõe o desvio da palavra para as montanhas onde aquilo que parece imóvel se movimenta entre si. É preciso criar interruptores, cortar a comunicação, criar conceitos “e há nisso tanta invenção ou criação como na arte ou na ciência”406 tornando-se assim a arte e a filosofia formas de resistência. As máquinas de guerra inventariam novos espaços-tempo que funcionariam como linhas de resistência juntamente com os movimentos de arte. Os movimentos revolucionários e os movimentos de arte são máquinas de guerra que geram a minoria criadora pois esta “não têm um modelo, é um devir, um processo”407, enquanto a maioria depende de um modelo a que se deve conformidade. A potência da minoria vem daquilo que souber criar pelos seus próprios meios de modo a reunir-se a qualquer coisa da arte. “Toda a gente, sob um aspecto ou outro, se encontra tomada num devir minoritário que arrastaria cada um para vias desconhecidas, se nos decidíssemos a segui-las”.408 Deleuze fala da “vergonha de ter havido homens que foram nazis”409 e da “vergonha de ser um homem”410 nas circunstancias mais banais do quotidiano de hoje, tal como por exemplo, quando estamos “frente ao discurso de um ministro, ou ao ouvir as declarações dos que gostam da «boa vida»”. Como preservar os devires? Na actual sociedade de controlo as políticas tendem a ser globais ou hegemónicas, usurpando o espaço do poder da crítica nos espaços literários, judiciais ou políticos. “Qual seria o papel da filosofia nesta resistência a um novo conformismo terrível?”.411 Todos estes espaços são asfixiantes “porque se levanta à sua volta todo um sistema de aculturação e de anti-criação, próprio dos países desenvolvidos”412 que é tão insidioso e pervertido como a censura declarada. Segundo Deleuze a filosofia que não é uma potência, deve fazer guerrilha contra as potências que são as religiões, os Estados, o capitalismo, a ciência, o direito, a opinião, a televisão, uma vez que elas atravessam cada um de nós e isso leva-nos a abrir conversações com elas, a abrir fogo sob a forma de conceito que é algo “cheio de uma força crítica, política e de liberdade”.413 Diz-nos Deleuze que Paul Veyne fez um retrato de Foucault como guerreiro pois este está em permanente combate “e o próprio pensamento aparece-lhe como uma máquina de guerra”.414 Convém mais uma vez acrescentar que a definição de “máquina de guerra” não tem neste caso como objecto a guerra, porque deriva de “um agenciamento linear que se constrói sobre linhas de fuga”.415 Neste caso trata-se de um espaço nómada que tem por objecto o espaço liso de um nomadismo que é a combinação máquina de guerra-espaço liso. Mas Deleuze também nos adverte de um caso em que esta máquina

405 Ibid 406 Idem, p. 52 407 idem, p. 232 408 Ibid 409 Idem, p. 231 410 Ibid 411 Idem, p. 45 412 Idem, p. 46 413 Idem, p. 53 414 Idem, p. 142 415 Idem, p. 54

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de guerra pode ter por objecto a guerra que é “quando os aparelhos de Estado se apropriam da máquina de guerra que de início não lhes pertencia”.416 É através do pensamento enquanto máquina de guerra que se pode pensar mais do que já foi pensado, que se pode criticar os conceitos dominantes e criar outros novos que nos conduzirão por outros caminhos. Segundo uma fórmula de Foucault pensar é um “acto perigoso”, “uma violência que é sobre si próprio que cada um começa por exercer”.417 Apenas o indivíduo apetrechado com a máquina de guerra, que não se define de modo nenhum pela guerra mas, como diria Nietzsche, por uma certa maneira intempestiva de criar alguma coisa de novo, pode gerar linhas de fuga. E deste modo escapar do círculo produtivo fomentado e divulgado pelo próprio sistema de poder que é fazer desejar-nos aquilo que nos oprime para nos fazer crer nos libertámos. Deleuze afirma que “os poderes que submetem o desejo fazem já parte dos próprios agenciamentos de desejo”.418 Como é que o desejo pode desejar a sua própria repressão? Haverá aqui “uma desumanidade comum ao homem: a liberdade tornada capacidade para o homem de vencer o homem, ou de ser vencido”.419 Ou já que “os homens não cessam de se destruírem entre si, será talvez preferível destruir-se a si mesmo, em agradáveis condições”.420 Isto é, a receptividade como a potência de receber e de dar os golpes: uma estranha resistência”. O poder assenta sob a passividade da existência do homem que deseja “em nome dos golpes que recebe”421 aspirar a dá-los também. Os homens “lutam pela sua servidão como se tratasse da sua liberdade”.422 Deleuze analisa uma nova forma de resistência, onde não haja senão acção, acção de teoria e acção de prática nas relações de rede numa sociedade de controlo. Este novo modo de colocar esta questão já tinha surgido com Foucault com a criação do Grupo de Informação sobre as Prisões. Este modo de conceber esta acção dispensa toda a forma de representação, e rejeita todas aquelas consciências que lutam em nome da consciência dos outros. É preciso instaurar as condições para que cada indivíduo fale por si, mesmo que cada um de nós seja um “grupúsculo”423 pois, tal como sugere Deleuze, cada um “é sempre uma multiplicidade, mesmo na pessoa que fala ou que age”.424 É o apelo de Foucault e Deleuze ao poder crítico de análise genealógica do homem, numa certa linha da autonomia do pensamento proposta por Kant. Também Kant recusava os guias da consciência e apelava a que cada um ousasse pensar pela sua própria cabeça. E mesmo sendo cada um uma multiplicidade Nesta perspectiva de Foucault, secundada por Deleuze, a teoria é uma prática, ela não traduz nem aplica uma prática, ela é uma prática local e regional e jamais totalizadora. “Uma teoria é o sistema regional dessa luta.”.425 416 Ibid 417 Idem, p. 142 418 Deleuze, Gilles e Parnet, Claire, Diálogos (1996), trad. de José Gabriel Cunha, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 2004, p. 160 419 Deleuze, Gilles, Péricles e Verdi. A filosofia de François Châtelet (1988), trad. de António Marcelino Valente, V. N. Gaia, Editora Estratégias Criativas, 1997, p. 12 420 Idem, p. 13 421 Idem, p. 12 422 Ibid 423 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, v. IV (1994), trad. de Vera Lucia Avellar Ribeiro, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006, p. 38 424 Ibid 425 Idem, p. 39

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Capítulo IV – Linhas de subjectivação e a actual sociedade de controlo 1. Racionalismo e crítica: a repetição do acontecimento e a actualidade de hoje Foucault não identifica a razão com as diferentes formas de racionalidade que surgem em determinados momento e que se impõem de modo dominante “nos tipos de saber, nas formas técnicas e nas modalidades de governo ou de dominação.”426 O que ele observa são transformações múltiplas e a criação de novas formas de racionalidade e não uma derrocada da razão. Foucault afirma que não há uma bifurcação da razão mas sim “uma bifurcação múltipla, incessante, de um tipo de ramificação abundante.”427 Como é que as técnicas de si e as técnicas de produção usam o mesmo tipo de racionalidade? Segundo Foucault tanto a tecnologia de si quanto a técnica de produção são fenómenos históricos localizáveis e analisáveis. Não se trata pois de uma bifurcação da razão, mas sim de uma forma de racionalidade que o sujeito aplica a si mesmo. Neste caso as técnicas de si são comparáveis e tão exigentes quanto as técnicas de produção. Produzia-se uma subjectividade tão mais vincada e autónoma quanto mais exigente fosse a forma de racionalidade. Por seu lado, a crítica exige uma razão autónoma e sem tutelas para analisar as formas de racionalidade e as tecnologias de si que são usadas em cada momento do presente e que incrustam o homem a determinadas necessidades e exigências. O homem aplica formas de racionalidade sobre si mesmo gerando assim uma determinada subjectividade. Sendo assim a racionalidade está intricadamente ligada à criação ou invenção da subjectividade. Sendo cada uma das diferentes formas de racionalidade dominante confundida com o “status da razão”428 é sempre possível criticá-la racionalmente. Isto é, a crítica da razão é sempre uma crítica a uma determinada racionalidade dominante num determinado momento ou época. Se não há uma razão universal não pode haver nunca uma crítica da razão à razão, mas sim às diferentes formas de racionalidade. Segundo Foucault não houve “um acto fundador, pelo qual a razão em sua essência teria sido descoberta ou instaurada”429, mas pelo contrário, “há uma autocriação da razão e, por isso, o que tento analisar são formas de racionalidade: diferentes instaurações, diferentes criações, diferentes modificações pelas quais as racionalidades se engendram umas às outras, se opõem e se perseguem umas às outras.”430 Foucault afirma que “nenhuma forma dada de racionalidade é a razão”431 por isso não há nenhum perigo de ela sucumbir ou deixar de ser crítica. Incessantemente são criadas novas formas de racionalidade, e que são por vezes justapostas umas às outras. Na história o momento presente nunca é um momento de «origem», de «começo» ou de «fim», ou o momento único a partir do qual tudo será diferente. Afinal o dia de hoje “é um dia como os outros, ou melhor, um dia que jamais é realmente como os outros.”432 426 Foucault, Michel, Ditos e Escritos – II (1994), trad. de Elisa Monteiro, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2005, p. 324 427 Idem, p. 317 428 Idem, p. 316 429 Idem, p. 317 430 Ibid 431 Idem, p. 324 432 Idem, p. 325

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Foucault quer dizer que o discurso acerca do momento em que se vive “é muito interessante e exige ser analisado, decomposto, e que de facto saibamos nos colocar a questão: o que é a actualidade?”433 Ou “o que é esse nós hoje?”434 A problemática levantada pela questão da actualidade não tem apenas por função fazer a descrição ou caracterização daquilo que somos, “mas, seguindo as linhas de vulnerabilidade da actualidade, em conseguir apreender por onde e como isso que existe hoje poderia não ser mais o que é.”435 Neste sentido a questão da actualidade funciona como crítica que se debruça sobre as linhas de vulnerabilidade ou de fractura para dizer o que existe, e podendo faze-lo aparecer como ele não é. De certo modo a própria história ao gerar aquilo que é mais evidente e relativo ao momento, ofusca a questão daquilo que nós somos nesse mesmo momento. Foucault afirma que a filosofia moderna, “a dos séculos XIX e XX, deriva em grande parte da questão Kantiana: “Was ist Aufklärung?”436 O que foi esse momento histórico em que a razão aparece emancipada e sem tutela e conquista a autonomia? Segundo Foucault a questão Kantiana é inquietante e deve continuar a ser perseguida porque esta questão interroga sempre as possibilidades actuais, e os limites da forma de racionalidade, instalada enquanto poder. Porque é que uma determinada forma de racionalidade pode “reivindicar uma validade universal: ela não é apenas uma miragem ligada a uma dominação e a uma hegemonia política?”437 Segundo Foucault “a questão das Luzes está no âmago das preocupações contemporâneas”438 Isto porque são as diferentes formas de racionalidade que geram poder, sujeição e resistência. “A razão ao mesmo tempo como despotismo e como esclarecimento.”439 Em qualquer forma de racionalidade procura-se uma “saída”440, uma “solução”441 no presente, na actualidade. Não é através de uma totalidade nem através do futuro que se compreende o presente mas sim através de uma diferença: “qual é a diferença que ele introduz hoje em relação a ontem?”442 Para Kant o homem é o responsável pelo seu estado de menoridade e é ele que através do esforço e do uso da sua própria razão deve procurar sair do estado de submissão e deixar de ser conduzido pela autoridade de outrem. O homem para se emancipar deve ousar pensar autonomamente e assim alterar a relação de dependência para com a racionalidade dominante através da sua vontade. Este trabalho é uma tarefa exercida sobre si próprio que vai criar uma subjectividade específica que o lança para um modo estético de existência crítica e resistente à racionalidade dominante. Esta tarefa exige também uma crítica de si mesmo para que o homem possa encontrar as condições de emancipação e de mudança em si próprio entre os outros homens. Esta saída da menoridade implica uma atitude ética. Portanto, a tarefa proposta por Kant para o homem se emancipar ao nível da razão e a crítica genealógica de Foucault podem actualmente contribuir, embora de modo diferente, para a criação de uma linha de fuga ou de subjectivação.

433 Idem, p. 324 434 Idem, p. 325 435 Ibid 436 Idem, p. 314 437 Idem, p. 357 438 Ibid 439 Ibid 440 Ibid 441 Ibid 442 Idem, p. 337

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Por um lado, segundo Kant, a Aufklärung é “o momento em que a humanidade fará uso de sua própria razão, sem se submeter a nenhuma autoridade”443 mas para isso o homem precisa de definir o uso legítimo e ilegítimo da razão e isso determina-se através da Crítica de Kant que defende que a autonomia da razão só pode ser assegurada pelo seu uso legítimo. Por outro lado, a crítica genealógica faz um apelo à razão prática – não no sentido Kantiano – à ética e estética como domínios através dos quais o homem pode pensar-se e transformar-se segundo um modo estético de existência. Este modo estético tem por fim levar o homem a transpor a linha de forças dos dispositivos e a transpor o racionalismo dominante e a sua forma de dominação do saber e do poder. Segundo Kant este é o domínio da razão prática, portanto ilegítimo, que se opõe à razão teórica ou legítima. Ou seja, por um lado, para Kant, a razão teórica estabelece os seus limites de conhecimento, por outro lado, a razão prática permite ao homem constituir-se enquanto ser ético, logo constituindo-se enquanto ser estético através do seu modo de vida. Em função da Aufklärung, Kant situa a actualidade em relação ao movimento de emancipação da humanidade definindo assim o sentido e a finalidade do tempo e da história. Mas “simultaneamente, ela mostra como, nesse momento actual, cada um é responsável de uma certa maneira por esse processo de conjunto.”444 Portanto, Kant também defende a transformação de cada homem através da ética, cada homem deve usar de técnicas de si para se tornar um homem que se possa salvar. Há portanto um sentido de trabalho sobre si próprio, de transformação tal como com a crítica genealógica ainda que em dimensões muito diferentes. E é esta tarefa filosófica particular que Foucault realça e que é um traço de atitude de modernidade conjuntamente com “a reflexão sobre a actualidade como diferença na história.”445 Foucault a partir deste texto de Kant considera a modernidade “mais como uma atitude do que como um período da história. Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à actualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguém; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa.”446 É o assumir desta atitude que define o ser moderno. É através desta atitude que o instante presente se actualiza e mostra algo “de eterno que não está além do instante presente, nem por trás dele, mas nele.”447 Esta atitude implica a autonomia da razão e a vontade de usar tecnologias sobre si próprio para se transformar conforme a exigência racional do homem. Ou seja, exige um processo de criação de subjectividades, ou seja, um processo de subjectivação ou práticas de objectivação. A atitude de modernidade relaciona-se com o presente e consigo mesmo tal como a atitude das técnicas de si agindo sobre si próprio. Há portanto uma modernidade latente e presente no projecto proposto por Foucault quanto à transformação do homem sobre si mesmo. E existe ainda uma outra semelhança entre o projecto de subjectivação proposto por Foucault e a tarefa proposta por Kant para o homem. É que ambos realçam a razão enquanto tarefa sobre si própria. Foucault exige uma linha de subjectivação que escape ao domínio do poder para o homem se transformar a si mesmo e criar uma subjectividade estética enquanto modo de vida, e Kant exige que o homem use a sua própria razão sem se submeter a nenhuma autoridade. Há em ambos os projectos determinadas semelhanças e diferenças que marcam a sua actualidade.

443 Idem, p. 340 444 Idem, p. 341 445 Ibid 446 Idem, p. 341 - 342 447 Idem, p. 342

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Esta atitude de ser moderno implica um esforço de transformação, para fazer da sua vida uma obra de arte. Para Foucault o homem deve relacionar-se consigo mesmo e transformar-se numa linha de subjectivação que escape à racionalidade dominante. Afinal, talvez toda a problemática de Foucault se tenha enraizado na Aufklärung pois que “problematiza simultaneamente a relação com o presente, o modo de ser histórico e a constituição de si próprio como sujeito autónomo.”448 O que é que afinal tem a Aufklärung para nos ligar desta maneira a ela? E Foucault não hesita em afirmar que não é a fidelidade aos elementos da sua doutrina que nos interessa, mas sim que é “a reactivação permanente de uma atitude; ou seja, um êthos filosófico que seria possível caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico”449 Aqui está outro facto que liga o seu projecto genealógico à Aufklärung, pois ambos incitam à tomada de uma crítica permanente e ao uso da razão para nos constituirmos a nós próprios como sujeitos autónomos. A crítica toma a forma de atitude tanto em Kant como em Foucault apesar das respectivas diferenças pois a crítica Kantiana é a da experiência possível e a crítica genealógica de Foucault é a crítica da história efectiva. Mas o que interessa a Foucault não é a doutrina da Aufklärung mas sim o princípio que movimenta a sua consciência histórica: “o princípio de uma crítica e de uma criação permanente de nós mesmos em nossa autonomia.”450 Sendo assim Foucault acrescenta uma outra perspectiva à atitude Kantiana. Se a preocupação de Kant foi estabelecer as condições formais da possibilidade do conhecimento, e por outro lado, pela razão prática levar o homem a obedecer a princípios universais, Foucault transforma a questão crítica do seguinte modo: “no que nos é apresentado como universal, necessário, obrigatório, qual é a parte do que é singular, contingente e fruto das imposições arbitrárias.”451 Esta diferença de atitude que Foucault desenvolve em relação a Kant é originada pela pesquisa genealógica. Assim afirma Foucault: “a crítica vai exercer-se não mais na pesquisa das estruturas formais que têm valor universal, mas como pesquisa histórica através dos acontecimentos que nos levaram a nos constituir e a nos reconhecer como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos.”452 A crítica deixa assim de ser transcendental porque não busca mais as condições formais nem o sujeito universal, e torna-se genealógica ou histórica. Esta crítica genealógica “não deduzirá da forma do que somos o que para nós é impossível fazer ou conhecer”453, ao contrário de Kant, cujas ideias transcendentais serviam para o comportamento dos homens. E Foucault acrescenta: “a crítica genealógica deduzirá da contingência que nos faz ser o que somos a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos.”454 Segundo Kant, as condições pelas quais o homem pode sair da menoridade são éticas e políticas. Para Kant era através do uso livre e público da razão, isto é, do uso político que o homem levaria mais longe a sua liberdade pois no uso privado da razão ele deveria adaptar-se à forma de racionalidade dominante. Já para Foucault os nossos limites estavam na prática histórica e teórica do nosso trabalho sobre nós mesmos como seres livres. Mas por outro lado esta experiência “é também sempre limitada e determinada e, portanto, a ser recomeçada”455, pois, tal como afirma Foucault, nunca 448 Idem, p. 344 449 Idem, p. 345 450 Idem, p. 346 451 Idem, p. 347 452 Ibid 453 Idem, p. 348 454 Ibid 455 Idem, p. 349

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teremos acesso ao conhecimento completo e definitivo daquilo que pode constituir os nossos limites históricos. Isto significa que qualquer processo de subjectivação é sempre limitado e determinado por linhas de forças e que mesmo as linhas de fuga são limitadas pelo trabalho sobre nós próprios, tendo de ser permanentemente recomeçadas e formuladas para que se possam expandir e transpor a linha de forças. O trabalho sobre si próprio é um trabalho de sistematização, um trabalho contínuo e progressivo e não desordenado. Este trabalho além de ser “uma atitude histórico-crítica deve ser também uma atitude experimental.”456 Isto é, por um lado este trabalho deve ser realizado no domínio histórico e simultaneamente ser confrontado com a realidade e a actualidade. E é assim que se vislumbra o espaço e o modo de efectuar essa mudança ou transformação. Portanto, continuam a haver limites, não formais ou universais, mas históricos, ou seja, variáveis consoante as circunstâncias históricas. Este trabalho é assim sobretudo uma crítica permanente que tem uma função de resistência para ultrapassar as imposições e as limitações arbitrárias e criar novas condições práticas para lutar por uma subjectividade moderna. Ou seja, a crítica pretende problematizar as seguintes questões: “como nos constituímos como sujeitos de nosso saber; como nos constituímos como sujeitos que exercem ou sofrem as relações de poder; como nos constituímos como sujeitos morais de nossas acções.”457 De certo modo, as três grandes críticas de Kant que desembocam na pergunta final “O que é o homem?” têm uma certa analogia com a questão de Foucault. São questões que apontam para a finitude humana, para pensar sobre os limites que nos são colocados, para pensar sobre os nossos limites e o modo de ultrapassá-los. Esta atitude crítica e filosófica está permanentemente a reactualizar-se em nós, hoje. Mas o que poderá significar sair da menoridade? O próprio Foucault interroga-se: “não sei se algum dia nos tornaremos maiores.”458 O que nós sabemos é que “não o somos ainda.”459 O acontecimento da Aufklärung ainda não nos tornou maiores, mas poderá tornar-nos? Como defende Foucault, este acontecimento não pode ser considerado enquanto teoria ou doutrina, mas sim enquanto atitude. Este acontecimento repete-se na actualidade e como afirma Foucault continua ainda a atravessar-nos. É um acontecimento histórico que se actualiza no presente, ou seja, que se prolonga na actualidade. Mas poderá o homem sair da menoridade? E esta pergunta assemelha-se, na sua diferença, em muito à questão que levanta Deleuze: poderá o homem hoje criar novas linhas de subjectivação ou linhas de fuga? Ou conforme a preocupação de Foucault: “Quais são os novos modos de subjectivação que nós vemos aparecer hoje, que certamente, não são nem gregos nem cristãos?”460 Sapere aude! É o convite para sair do estado de menoridade que é a incapacidade de servir-se do seu próprio entendimento sem direcção de outrem, ou seja, sem a direcção do processo de subjectivação da forma de racionalidade dominante. Ora se os processos de subjectivação estão acoplados aos processos de racionalização dominante é óbvio que apenas através da crítica genealógica e da atitude de modernidade se pode partir para um processo de individuação que crie um «Si-Próprio». Kant ao ficar apenas pelo

456 Idem, p. 348 457 Idem, p. 350 458 Idem, p. 351 459 Ibid 460 Deleuze, Gilles, Deux Régimes de Fous. Textes et entretiens, 1975 – 1995, Paris, Les Éditions de Minuit, 2003, p. 324

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conhecimento dos limites da razão não questiona de modo radical o poder o que significa que qualquer subjectividade fica sempre no interior do poder mesmo quando resiste pois tem de lhe obedecer. Com Foucault a reflexão rompe as linhas de forças do poder e tenta criar linhas de subjectivação que escapem às relações de poder dominante. Ousar pensar para Foucault é um processo de transformação da relação consigo mesmo e com o mundo, para dar início a um trabalho sobre si próprio que o conduzirá a uma experiência ética que tenderá para uma estética da existência. A crítica coloca-se sempre em cada momento histórico. E ela não é uma teoria nem uma doutrina mas é uma questão prática, ética e estética, que envolve a produção do sujeito. E é a partir de uma estética de existência que o processo de emancipação continua a desenvolver-se juntamente com a produção de subjectividades que procuram recriar-se ou transpor a linha de forças das relações saber/poder. É nesta elaboração e relação contínua com nós próprios que a modernidade se actualiza em cada instante. O indivíduo conduz-se e produz-se a si próprio enquanto sujeito ético a partir de um processo de subjectivação. Este é o projecto da Aufklärung actualizado na actualidade, como diferença na história, através da genealogia, ou de uma ontologia crítica e histórica de nós mesmos, daquilo que dizemos, fazemos e pensamos. Segundo Foucault e Deleuze nós estamos no interior de diversos dispositivos heterogéneos que são mecanismos, linhas e fluxos de poder e agimos dominados ou controlados por eles. E estes são constituídos por múltiplas linhas que se entrecruzam e misturam originando e provocando outras linhas através de variações e mutações de agenciamento. Sendo assim as linhas resultantes destas variações e mutações são linhas novas, não porque sejam originais, mas porque resultam ou derivam de outras linhas pela criatividade ou o trabalho do sujeito. Portanto o novo não é o original com origem e começo desconhecido e indeterminado. O novo irrompe pelo meio, a partir da transformação de outras linhas, como actualização criativa das questões históricas colocadas pelos dispositivos. “O novo não designa a moda, mas, pelo contrário, a criatividade variável segundo os dispositivos – o que está em conformidade com a questão nascida no século XX: como é possível no mundo a produção de qualquer coisa de novo?”461 Cada dispositivo tem o seu regime de enunciados. Este regime é que é a novidade que surge com cada dispositivo. Assim, a novidade do dispositivo é dada pelo regime de enunciados que vem consigo. A novidade actualiza-se em cada dispositivo tornando-se em actual. Esta novidade através da criatividade gera no dispositivo a capacidade de ele se transformar ou auto-transformar em um outro. Mais do que passarmos de um dispositivo para um outro será que não podemos antes afirmar que não fazemos mais do que estar sempre dentro do mesmo dispositivo metamorfoseado por uma permanente actualização? O que torna um dispositivo diferente é a novidade em relação a um outro e esta novidade é a actualidade. Portanto, o dispositivo pode transformar-se pela novidade e criatividade e manter-se o mesmo diferentemente, ou, então, cria uma ruptura para um novo dispositivo. “O novo é o actual.”462 Parece que só as linhas de subjectivação se podem livrar do saber e do poder e elas são “particularmente capazes de traçar caminhos de criação, que não cessam de fracassar, mas que também, na mesma medida, são retomados, modificados, até à ruptura do antigo dispositivo.”463 Isto significa, então, que apenas as linhas de subjectivação são capazes de criar ruptura com um dispositivo. Não havendo estas

461 Idem, p. 321 462 Idem, p. 322 463 Ibid

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linhas de subjectivação ou linhas de fuga a invenção ou criação da subjectividade permanece no interior da grade do saber/poder. Estamos pois perante duas situações diferentes, uma é a actualização permanente do dispositivo e a outra é a tentativa da sua ruptura. E aqui coloca-se a questão de Deleuze: será que são todos ou só apenas alguns os dispositivos que permitem linhas de fuga? Se o actual fosse o que somos não era necessário perguntar pelo hoje, ou seja, por aquilo que somos em devir. E é por causa deste “somos em devir” que se pode colocar a questão crítica do nosso ser histórico. O que é o hoje? Isto é, o que somos em devir? Em que é que nos estamos a tornar? O que é isto em que nos vamos tornando e o que é o actual? Esta é uma questão crítica e histórica: o que é a nossa actualidade? É a novidade no dispositivo que provoca a sua actualidade. Com Foucault a crítica torna-se imanente, histórica e empírica, ela é feita a partir de um plano de imanência. 2. O plano de imanência e a tarefa ética: liberdade e resistência Segundo Espinoza existe um plano comum de imanência ou de consistência no sentido geométrico, secção, intersecção, diagrama que se opõe ao plano teológico no sentido de desígnio no espírito, projecto, programa e que diz respeito a uma transcendência ou a uma organização de poder de uma sociedade. Por seu lado, este plano de imanência em que estão todos os corpos, todas as almas, todos os indivíduos não é dado, ele tem de ser construído por quem se instala nesse plano através de um modo de vida, de uma maneira de viver. Como afirma Deleuze é assim que nós entramos pelo meio das coisas e nos conjugamos com elas, através da velocidade e da lentidão que é uma maneira de viver e deslizar por entre as coisas. Para além das relações de velocidade e repouso que definem um corpo na sua individualidade, segundo Espinoza, ele também se define pelo poder de afectar e ser afectado. É por aqui que a Ética enquanto modo de vida tanto em Espinoza como em Foucault implica uma construção de afectação ao nível dos corpos e dos pensamentos. Um homem passa a ser definido pelos afectos e pelos agenciamentos de que é capaz tornando-se esta capacidade um jogo entre liberdade e sujeição. É neste campo que também entra a noção de Deleuze de corpo sem órgãos. Tanto para Espinoza como para Deleuze um corpo não se define pelos seus órgãos ou funções nem como substancia ou sujeito. Sendo assim como pode realizar-se uma actividade de construção sem sujeito? Para Espinoza os corpos e as almas são modos. Um modo “é

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uma relação complexa de velocidade e de lentidão, no corpo, mas também no pensamento, e é um poder de afectar e de ser afectado, do corpo ou do pensamento. Concretamente, se definirmos os corpos e os pensamentos como poderes de afectar e de ser afectado, muitas coisas mudam."464 E portanto através desta capacidade de afectar e ser afectado por outros corpos e outros pensamentos é que definimos o homem que no plano imanente da Natureza agencia movimentos e afectos não subjectivados. É esta conjugação com outras coisas naturais ou artificiais que gera a construção de modos de vida e a sua possibilidade de transformação. Não se trata mais da vontade de uma transformação interior do sujeito nem de uma tentativa de novo recomeço de vida a partir do “nada”, é antes a entrada do homem a várias velocidades pelo meio das coisas enquanto maneira de viver. E isto porque o homem não é livre por aquilo que a sua vontade regula mas apenas por aquilo que decorre da sua essência. A liberdade não é vinculável à vontade, logo a vontade de transformação ou auto-transformação do sujeito no interior de um processo de racionalização é sempre limitada e não faz mais do que propagar o poder vigente. Logo o homem não pode libertar-se do domínio da subjectivação pela sua vontade. Espinoza ao denominar o homem enquanto modo dá-lhe uma essência, um grau de potência através da qual ele forma ideias adequadas das quais decorrem afectos ou sentimentos activos. “Nesse caso, o modo existente diz-se livre: assim, o homem não nasce livre, mas torna-se livre ou liberta-se…”465 É esta potência de agir que torna o homem livre e o liberta. “A Ética de Espinoza não tem nada a ver com uma moral, ele a concebe como uma etologia, isto é, como uma composição das velocidades e das lentidões, dos poderes de afectar e de ser afectado nesse plano de imanência. Eis por que Espinoza lança verdadeiros gritos : não sabeis do que sois capazes, no bom como no mau, não sabeis antecipadamente o que pode um corpo ou uma alma, num encontro, num agenciamento, numa combinação..”466 Espinoza afirmava que “não se sabe aquilo que pode um corpo humano quando se liberta das disciplinas do homem” e Foucault, por seu lado, afirmava que “não se sabe aquilo que pode o homem enquanto estiver vivo, como conjunto de forças que resistem”467 acreditando ambos na capacidade de mudança do homem nas suas inseparáveis relações com o mundo. E nesta esteira Deleuze escreve: “O interior é somente um exterior seleccionado; o exterior, um interior projectado; a velocidade ou a lentidão dos metabolismos, das percepções, acções e reacções entrelaçam-se para constituir tal indivíduo no mundo.”468 Portanto o homem não nasce livre, ele deve constituir-se, ele deve libertar-se, não a partir do começo mas a através do meio das coisas. Esta construção do plano de imanência não se trata de um desenvolvimento nem de uma organização linear mas é um processo de composição que deve ser captado por si mesmo, pelo meio das coisas, “mediante aquilo que ele dá, naquilo que ele dá.”469 Este plano é percebido “como aquilo que ele nos faz perceber, passo a passo”470, ao contrário do plano teológico que tem sempre uma dimensão suplementar para além da dimensão daquilo que é dado sendo por isso um plano de transcendência. Esta construção do plano de imanência que é pedido ao homem trata-se mais de uma capacidade de para lá ser levado ou colocado e posto em movimento ou em repouso

464 Deleuze, Gilles, Spinoza - Philosophie pratique, Les Éditions de Minuit, 1981/2003, p. 166 465 Idem, p. 114 466 Idem, p. 168 467 Idem, p. 125 468 Deleuze, Gilles, Spinoza - Philosophie pratique, Les Éditions de Minuit, 1981/2003, p. 168-169 469 Idem, p. 172 470 Ibid

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conforme a velocidade das partes do que construi-lo no sentido de edificá-lo de modo evolutivo. (eu, 134). Estas são duas concepções opostas de plano, “mesmo quando essas duas concepções se misturam e quando nós passamos insensivelmente de uma para a outra.”471 A questão que se coloca é a de como passar definitivamente de um plano para o outro ou será que sempre viveremos tendencialmente entre ambos? O plano de imanência porque “sempre variável, e que não cessa de ser modificado, composto, recomposto, pelos indivíduos e pelas colectividades”472, funciona como resistência à sujeição da organização das formas e à formação dos sujeitos no plano da transcendência. No plano de imanência há estados afectivos individuantes. Assim viveram “Holderlin, Kleist, Nietzsche, pois pensaram em termos de velocidades e de lentidões, catatonias paralisadas e movimentos acelerados, elementos não formados, afectos não subjectivados.”473 Há uma resistência ao plano da transcendência. Esta resistência é uma linha de fuga tal como a define Deleuze porque é um modo de vida que escapa à transcendência, logo é uma individuação. “Não vivemos, não pensamos, não escrevemos da mesma maneira num e noutro plano.”474 No plano teológico ou da transcendência existe sempre uma dimensão a mais, suplementar às dimensões daquilo que é dado. Este plano teológico serve de base à organização de poder de uma sociedade. Este plano pode ser estrutural ou genético, e os dois ao mesmo tempo; ele se refere sempre a formas e a seus desenvolvimentos, a sujeitos e a suas formações. E é este plano de transcendência em que há sempre uma realidade superior, seja hierárquica ou seja espiritual que dirige tanto as formas quanto os sujeitos. Esta dimensão a mais, suplementar, nunca aparece, nunca se dá e é através dela que se mantém todo um clima de dominação e subjectivação. Esta zona suplementar cria o clima propício para a difusão das exigência do poder através de processos de racionalização que geram processos de subjectivação. Este clima que não é palpável, que não se dá, que habita sempre numa zona superior, numa espécie de nebulosa, permite que a vida do poder seja imposta de modo passivo e absorvente. O poder enquanto positivo, gerador, produtivo tem a sua vida. E é esta vida do poder que é difundida através do clima da dimensão suplementar da transcendência pois é lá que se encontra aquilo que ainda não é dado, aquilo que se deseja, aquilo que sempre se espera como dado. E é esta esperança, este futuro por aquilo que ainda não é dado que gera uma passividade cada vez mais estonteante e frenética e uma sujeição que se arrasta com a própria identidade. Este clima instala-se na subjectividade do homem e gera uma determinada presunção na sua identidade incutindo-lhe determinados fins ou missões na sua vida, sejam estas missões grandes ideais ou apenas a aposição de um carimbo do chefe num documento. “As presunções, pequenas ou grandes, do líder de grupelho ao presidente dos Estados Unidos, do psiquiatra ao administrador, funcionam a golpes de transcendência.”475 É o que nos afirma François Châtelet e que é citado por Deleuze: “…renascem as instituições, isto é, os meios de domesticação, dos massacres em fogo lento.”476 Foucault de um outro modo também nos afirma o mesmo, no sentido em que o corpo é esquadrinhado.

471 Idem, p. 171-172 472 Ibid 473 Idem, p. 173 474 Idem, p. 172 475 Deleuze, Gilles, Périclès et Verdi. La philosophie de François Châtelet, Les Éditions de Minuit, 1988, p. 8 476 Idem, p. 24

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Deleuze no seu livro Périclès et Verdi afirma que a filosofia de Châtelet se instalou num puro campo de imanencia e daí que este diga que as diversas transcendências exercem ferozmente “tarefas de organização e de exterminação.”477 Com estas suas afirmações Châtelet parece corroborar a afirmação que as transcendências geram determinados processos de subjectivação e de subjectividade no sentido da dominação e da sujeição da potência do homem. E isto porque elas se impõem e transmitem através de poderes organizados que vem de cima por um plano oculto – o plano teológico - que nunca é dado mas “que deve apenas ser adivinhado, induzido, inferido a partir do que ele oferece.”478 Por seu lado, o plano da imanência devido à relação potência-acto é sobretudo político. Esta relação gera um processo de racionalização, logo toda a forma de racionalidade é um processo político. Mas não é este poder político que interessa mas sim a potência que faz com que o poder seja poder. Será a imanência defendida por Deleuze semelhante ao campo de imanência de Châtelet? O próprio Deleuze escreve em relação a Châtelet: nunca uma filosofia se instalou mais firmemente num campo de imanência. “A imanência, o campo da imanência, consiste numa relação Potência-Acto. As duas noções existem em correlação, inseparáveis.”479 Se o homem é potencia, matéria, o acto é a razão enquanto processo. E se ambas são inseparáveis logo o homem é um processo de racionalização. Se o acto é uma relação ele é político. A resistência é assim um acto político, tanto a resistência social como a resistência do homem travada contra os processos de racionalização que aportam sempre consigo processos de subjectivação. Segundo Châtelet a potência pode dizer-se também liberdade e é “literalmente falando um todo.”480 “O poder político não me seduz nada. O contra-poder, o anti-poder são a meu ver armadilhas. O que me interessa é a potência, o que faz com que o poder seja poder.”481 Esta potência significa a liberdade de eu fazer o que posso, de exercer a minha potência. Neste caso a minha liberdade ou a minha potência está limitada àquilo que eu posso fazer. E eu posso fazer consoante as minhas capacidades e consoante aquilo que me deixarem fazer. A minha potência é assim barrada pelos poderes, e também por mim próprio quando aspiro a dar os golpes que recebo caindo assim na servidão, tal como afirma Espinoza. Seria uma desumanidade: a liberdade para o homem de vencer o homem ou de ser vencido. Há uma pluralidade de processos de racionalização, “heterogéneos, muito diferentes consoante os domínios, as épocas, os grupos e as pessoas. Eles não cessam de abortar, de deslizar, de andar em becos sem saída, mas também de se recompor noutro lugar, com novas medidas, novos ritmos, novos aspectos.”482 Uma determinada época histórica gera um determinado processo de subjectivação no qual o homem oscila entre a liberdade e a sujeição permitidas ou conhecidas. Foi a pluralidade dos processos den racionalização que orientou Foucault “uma análise das relações humanas que constituiria o projecto de uma nova ética, do ponto de vista do que ele designava “processo de subjectivação”: mostrava as bifurcações, as derivações, a historicidade quebrada de uma razão sempre em estado de libertação ou de alienação nas relações do homem consigo.”483 Não há uma razão ou a racionalidade que evolua de modo

477 Idem, p. 8 478 Ibid 479 Idem, p.8 480 Idem, p. 9 481 Idem, p. 8 - 9 482 Idem, p. 15 483 Ibid

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ascendente e irreversível numa corrente contínua. Há processos de racionalização que geram processos de subjectivação que são acontecimentos singulares numa corrente quebrada. Foucult remontou aos gregos para aí “diagnostiquer peut-être la première ébauche d´un processus de rationalisation, auquel d´autres succéderaient, sous d´autres conditions et d´autres allures.”484 Um processo de racionalização não significa o mesmo que razão única ou universal nem o mesmo que faculdade humana ou faculdade dos fins do homem pois mesmo assim “nous lui maintenons une transcendance encore théologique.”485 A este vicio teológico de deslizarmos sempre para uma dimensão suplementar que nunca é dada mas apenas inferida é o que “Châtelet appele l´«outrecuidance», une sorte d´impolitesse métaphysique.”486 Num dispositivo “toutes les lignes sont des lignes de variation, qui n´ont même pas de coordonnées constantes”487 , e ele é constituido por uma multiplicidade de processos em devir. Segundo Deleuze “l´Un, le Tout, le Vrai, l´objet, le sujet, ne sont pas des universaux, mais des processus singuliers, d´unification, de totalisation, de vérification, d´objectivation, de subjectivation, immanents à tel dispositif.”488 Se Foucault rejeita os universais e a Razão ele contudo evidencia a capacidade dos processos de racionalização operarem “sur des segments ou des régions de toutes les lignes considérées.”489 Ao contrário dos pós-modernistas Foucault não coloca de modo nenhum a razão em causa, enquanto processo histórico de racionalização, ele unicamente não identifica estes processos com uma Razão enquanto universal. Deleuze afirma que Foucault disse o seguinte a Gérard Raulet: “il n´y a pas une bifurcation de la raison, mais elle ne cesse pas de bifurquer, il y a autant de bifurcations et d´embranchements que d´instaurations, autant d´écroulements que de constructions, suivant les découpages opérés par les dispositifs, et «il n´y a aucun sens sous la proposition selon laquelle la raison est un long récit qui est maintenant terminé».”490 Segundo Deleuze a objecção que é feita a Foucault segundo a qual não é possível saber “la valeur relative d´un dispositif, si l´on ne peut pas invoquer des valeurs transcendants en tant que coordonnées universelles”491 é uma questão que não faz sentido quando se utilizam critérios imanentes tais como os critérios estéticos enquanto critérios de vida. “Il y a déjà longtemps que des penseurs comme Spinoza e Nietzsche ont montré que les modes d´existence devaient être pesés suivant des critères immanents, suivant leur teneur en «possibilités», en liberté, en créativité, sans aucun appel à des valeurs transcendantes.”492 E Foucault apela para uma ética que conduza a uma estética de existência. “Foucault fera même allusion à des critères «esthétiques», compris comme critères de vie, et qui substituent chaque fois une évaluation immanente auz prétentions d´un jugement transcendant.”493 Portanto o homem tem uma tarefa crítica que o vai conduzir à ética e a uma estética de existência. O homem não nasce livre. É através dos pontos de resistência que ele forja a sua subjectividade que o conduzirá a pensar diferentemente o processo de racionalização em que ele está inserido.

484 Idem, p. 16 485 Idem, p. 17 486 Ibid 487 Deleuze, Gilles, Deux Régimes de Fous. Textes et entretiens, 1975 – 1995, Paris, Les Éditions de Minuit, 2003, p. 320 488 Ibid 489 Ibid 490 Idem, p. 321 491 Ibid 492 Ibid 493 Ibid

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3. Dispositivos, linhas de subjectivação e a relação a si Como se constituem nas actuais sociedades de controlo as técnicas de si ou as práticas de si e os múltiplos processos de subjectivação, num sistema articulado de regras, coerções e isenções, com mecanismos e dispositivos de regulação que incitam permanentemente para a criação de novos desafios e de novas práticas sociais e individuais? São todas as subjectividades fomentadas e criadas, ou instituídos e controladas pelas relações de forças da actual sociedade de controlo, que investe no homem através de uma rede intrincada de saberes e poderes, de tecnologias disciplinares e de controlo ou de tácticas e estratégias de interesses dominantes? O que “somos nós hoje?”494 E teremos nós “maneiras de nos constituir como um si-próprio?”495 Com que forças, as forças do homem poderão entrar em relação? E que novas formas poderão daí resultar? Parafraseando Deleuze acerca das forças “do silicium”496 podemo-nos interrogar: quando as forças do homem se compõem com as da mecânica quântica, o que é que se passa, e que formas novas estão em vias de nascer? “Que novas lutas com o Poder?”497 Que novas resistências e que novas linhas de subjectivação poderão ser inventadas ou criadas para além do jogo cada vez mais açambarcador e global do poder-saber? “Seremos capazes disso, pois de certo modo é a vida e a morte que nisso se jogam?”498 As questões de fundo são as seguintes: hoje “quais são os nossos modos de existência, as nossas possibilidades de vida ou os nossos processos de subjectivação”,499 e por onde passa o combate por uma nova e actualizada “subjectividade moderna?”500 Permitem os actuais dispositivos linhas de fuga? Pode irromper do interior das linhas de forças do dispositivo uma linha de subjectivação que escape às outras linhas? A linha de subjectivação é uma linha de fuga, “elle échappe aux lignes précédents, elle s´en échappe.”501 É a linha de subjectivação que produzindo uma subjectividade rompe as linhas de forças do dispositivo caso seja este o processo de individuação do dispositivo pois “il n´est pas sûr que tout dispositif en comporte.”502 Deleuze afirma que não está certo que todos os dispositivos funcionem do mesmo modo, o que levanta a seguinte questão: Será que não podemos escapar do conjunto multilinear de alguns dispositivos? Será que só alguns dispositivos permitem a fuga? Todas estas questões levantam uma outra questão mais problemática: será que os dispositivos que permitam esta fuga não são afinal mais do que actualizações ou expansões metamorfoseadas do próprio dispositivo? Não estará o dispositivo numa

494 Deleuze,Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editora Fim de Século, 2003, p. 137 495 Ibid 496 Idem, p. 138 497 Ibid 498 Idem, p. 137 499 Ibid 500 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 143 501 Deleuze,Gilles, Deux Régimes de Fous. Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Les Éditions de Minuit, 2003, p. 318 502 Idem, p. 319

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permanente expansão social e tecnológica? Neste caso as linhas de forças que se debatem no dispositivo absorveriam através de estratégias e práticas aquelas que tentassem escapar. Isto é, os sujeitos, indivíduos ou comunidades, que se constituissem com outras linhas de força ficariam automaticamente inseridos dentro dos dispositivos. Não haverá uma linha de subjectivação, uma linha de fuga? Os processos de subjectivação são muito diversos e as subjectividades podem não reflectir mais do que aquilo que é dominante da forma vigente da racionalidade. E daí que, o sujeito pode optar por posições contrárias à sua emancipação ou liberdade. Assim, o sujeito pode chegar a desejar aquilo que o oprime e entristece. Por exemplo “o escravo emancipado que se queixa (“pobre de mim…”) de ter perdido todo o estatuto social na ordem estabelecida, e que estará na origem de novos poderes.”503 Segundo Deleuze a queixa exprime um movimento de subjectivação, e “o sujeito nasce nas queixas tanto como na exaltação.”504 Hoje, que núcleos de subjectivação existem na nossa actual sociedade de controlo que nos fazem temer a emancipação e as consequências de uma análise crítica? E que subjectividades eles estão a produzir? Há sempre linhas de fuga que inesperadamente irrompem pelo meio de um campo social e político. Sobre a aparente imobilidade do dispositivo há constantes movimentos eruptivos e devires que se transformam em linhas de fuga. Segundo Deleuze os nómadas “são um devir, e não fazem parte da história; são excluídos delas, mas metamorfoseiam-se para reaparecer de outro modo, sob formas inesperadas nas linhas de fuga de um campo social.”505 É aqui que Deleuze afirma uma das suas diferença em relação a Foucault: “para ele, um campo social estava atravessado de estratégias, para nós foge por todos os lados.”506 Portanto, para Deleuze “são os devires que escapam ao controlo.”507, os devires das pessoas e dos grupos. “Falam-nos do futuro da Europa, e da necessidade de harmonizar os bancos, os seguros, os mercados internos, as empresas… mas e o devir das pessoas? A Europa preparar-nos-á estranhos devires como novos 68? O que é que vai ser das pessoas? É esta a questão, cheia de surpresas, e não se trata da questão do futuro, mas do actual ou do intempestivo.”508 Esta questão que Deleuze colocou no seu tempo, hoje, diferentemente e por outros motivos, torna-se actual. Já para ele era uma questão actual, e hoje continua a sê-lo. Os devires não têm nada a ver com a história que pensa em termos lineares de passado, presente e futuro. Por isso é que a questão colocada por Deleuze permanece actual. São os devires, grupos ou pessoas, que fazem a sua irrupção no dispositivo e fogem por todo o lado. Sendo assim pode-se defender que segundo Deleuze as estratégias e as tácticas das linhas de forças dos dispositivos nunca são suficientes para impedirem os devires ou as linhas de fugas. Então, será que todos os dispositivos permitem linhas de subjectivação do mesmo modo? Parece que nesta questão Deleuze já é mais cauteloso e defende que talvez nem todos possam permiti-lo do mesmo modo, embora não haja nenhum que tenha a capacidade de evitar a irrupção de linhas de fuga. E isto porque afinal um dispositivo é multilinear e composto de linhas muito diversas. As linhas de forças dos dispositivos apenas podem adiar mas não impedir a invenção ou a criação de processos de subjectivação que escapem às forças e aos poderes estabelecidos.

503 Idem, p. 206 504 Ibid 505 Idem, p. 207 506 Idem, p. 208 507 Idem, p. 207 508 Idem, p. 208

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Se como afirma Deleuze as linhas de um dispositivo não delimitam nem envolvem sistemas mas “suivent des directions, tracent des processus toujours en déséquilibre, et tântot se rapprochent, tântot s´éloignent les unes des autres”509 isso significa que cada linha pode variar de direcção ou pode derivar em outras linhas e se pode derivar significa que o próprio dispositivo se expande e se alarga podendo confundir-se essa expansão com uma linha de fuga ou com um processo de subjectivação autónomo quando afinal pode não ser mais que uma produção de subjectividade dentro do próprio dispositivo. Ou será que as linhas de subjectivação não são mais que “l´extrême bord d´un dispositive”510 tornando-se então a passagem de um dispositivo para o outro através da linhas de factura. Que processos de subjectivação estão presentes nas sociedades de controlo de hoje? Que variações podem ter os processos de subjectivação? O processo de subjectivação produz subjectividade que pode ser capturada por um dispositivo “pour autant que le dispositif le laisse ou le rend possible.”511 Portanto, o homem pode ser lançado numa nova subjectividade de onde retira “de nouvelles formes de pouvoir et de savoir”512 que o voltam a enquadrar dentro da rede do dispositivo. Deleuze diz-nos que há diversos tipos de “formations subjectives dans des dispositifs mouvants”513 e “des productions de subjectivité s´échappent des pouvoirs et des savoirs d´un dispositif pour se réinvestir dans ceux d´un autre, sous d´autres formes à naitre.”514 Quais são estas novas formas de subjectividade que, segundo Deleuze, hão-de nascer nas sociedades actuais? Através de que dispositivos vão surgir modernos processos de subjectivação? Que actuais dispositivos sociais e tecnológicos geram outros processos de subjectivação e outros modos de captação pois “les régimes de lumière, d´énonciation ou de domination passent par les domaines les plus divers.”515 “Les subjectivations modernes ne ressemblent pas plus à celles des Grecs qu´à celles des chrétiens, et la lumière de même, et les énoncés et les pouvoirs.”516 Hoje, por que domínios passam os regimes de luz e de enunciação? Hoje, que dispositivos geram regimes de dominação e processos de subjectivação? E que processos de subjectivação, enquanto geradores de novos saberes e poderes, geram novos dispositivos? Os dispositivos movimentam-se e também se metamorfoseiam, tornam-se de controlo aberto tornando os processos de subjectivação mais subtis e cada vez mais imperceptíveis. A resistência a tais processos de dominação também tem de ser mais penetrante e eficaz e tem de fazer “appel à des productions de subjectivité capables de résister à cette nouvelle domination…”517 O poder organiza-se e metamorfoseia-se em função das linhas de resistência e estas, por sua vez, adquirem poder de resistência. Cada dispositivo é constituído por três dimensões, sendo as duas primeiras formadas pelas curvas de visibilidade e pelas curvas de enunciação, e ambas definem regimes que

509 Deleuze,Gilles, Deux Régimes de Fous. Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Les Éditions de Minuit, 2003, p. 316 510 Idem, p. 319 511 Idem, p. 318 512 Idem, p. 319 513 Ibid 514 Idem, p. 320 515 Idem, p. 322 516 Ibid 517 Idem, p. 323

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são “machines à faire voir et à faire parler”518, isto é, máquinas ópticas ou máquinas sociais. Aquilo que é visível ou invisível dentro de um dispositivo depende do regime das suas linhas de luz. O regime de enunciados é definido pelas linhas de enunciação variáveis num determinado momento. Portanto, os dispositivos são regimes “qu´il faut définir pour le visible et pour l´énonçable, avec leurs dérivations, leurs transformations, leurs mutations.”519 Em cada dispositivo ou regime, a visibilidade e a enunciação, formam figuras e posições variáveis que dão origem a linhas estéticas, científicas ou políticas. A terceira dimensão do dispositivo, é formada pelas linhas de forças que orientam ou de certo modo, conduzem e se entrecruzam com todas as outras linhas, ganhando assim poder no interior do dispositivo. É a «dimension du pouvoir»520 que é “variable avec les dispositifs. Elle se compose, comme le pouvoir, avec le savoir.”521 A linha de forças produz-se no interior do dispositivo, e percorre e enreda-se com todas as linhas de luz e de enunciação, e passa por todos os lugares do dispositivo, de modo invisível e indizível. Foucault após analisar os dispositivos que são máquinas de fazer ver e de fazer falar, interroga-se sob a eventualidade de eles ficarem encerrados na sua própria linha de força, invisível e indizível, e assim ficar intransponível a dimensão do poder e a impossibilidade para «passer de l´autre côté».”522 Os dispositivos têm outros vectores ou tensores, por exemplo, “les objects visibles…les sujets en position”,523 que geram variações e derivações nas linhas para lhes encontrar uma outra orientação possível que transponha ou supere a sua linha de forças. A linha que vai irromper da superação da linha de forças do dispositivo é uma linha de subjectivação. Quando uma linha de forças se recurva ou “lorsque la force, au lieu d´entrer en rapport linéaire avec une autre force, revient sur soi, s´exerce sur soi-même ou s´effecte elle-même”524 a linha de forças é superada e entra na dimensão inacabada do Soi, do Si Próprio que é “un processus d´individuation qui porte sur de groupes ou des personnes, et se soustrait des rapports de forces établis comme des savoirs constitués”525, porque não é nem um saber nem um poder. Até que ponto os dispositivos e os controlos das actuais sociedades evitam ou desviam a possibilidade do homem encontrar-se com esta dimensão de Si? Será que todos os dispositivos permitem um processo semelhante ao “Soi”? E será que toda a relação a si é uma relação de resistência, que resiste aos saberes e poderes instituídos? Não poderá ser a relação a si, também, comandada pelas relações de poder para capturar a diferença no interior da sua ampla rede? A técnica e a tecnologia podem desenvolver dispositivos ou controlos que desviem o homem deste encontro ético e estético que é a dimensão do Si Próprio, através da criação de outros processos de subjectivação. Quais são as linhas que nos compõem e nos desequilibram? E seremos capazes de inventar outras? “Por exemplo, tento explicar que as coisas, as pessoas, são compostas por linhas muito diversas e que não conhecem necessariamente sobre que linha elas próprias estão, nem 518 Idem, p. 317 519 Ibid 520 Idem, p. 318 521 Ibid 522 Ibid 523 Idem, p. 316 524 Idem, p. 318 525 Ibid

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onde fazer passar a linha que estão a traçar: em suma, há toda uma geografia nas pessoas, com linhas duras, linhas flexíveis, linhas de fuga, etc”.526 Muitas destas linhas são impostas pelos saberes e poderes, outras nascem de um acaso, e as linhas de fuga temos de inventá-las e isto significa que “não podemos inventá-las sem as traçar efectivamente, na vida”.527 Um dispositivo comporta múltiplas linhas: de força, de subjectivação, de enunciação, de fissura, de fractura e de brecha, e todas elas se entrecruzam e se mistura. As linhas de um dispositivo não ficam retidas no seu interior, elas movem-se em todas as direcções atravessando-o e conduzindo-o. Para “démêler les lignes d´un dispositif… il faut s´installer sur les lignes mêmes”528, e percorre-las como num mapa indo assim numa viagem por terras desconhecidas. É esta a imagem de Deleuze para desenredar as linhas. “Em qualquer coisa há linhas de articulação ou de segmentaridade, estratos, territorialidades; mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e de desestratificação”.529 A vida do sujeito é uma vida repartida no dia pela hora e pelas tarefas por segmentos sempre limitados e contíguos, saltando de um lado para o outro, de segmento em segmento, por territórios separados mas que se podem tocar e até conjugar-se, mantendo-se contudo sempre segmentarizados. Isto “porque somos feitos de linhas”530 de linhas que se entrecruzam, linhas de vida e de carne e de outras linhas que se insinuam por entre as linhas. O sujeito vive por segmentos, de segmento em segmento, do princípio ao fim, intercalando-se com outros segmentos outros princípios e outros fins, ou então pulando de segmento em segmento onde tudo rapidamente é de novo contável e previsto. Segundo Deleuze há em tudo isto “uma linha de segmentaridade dura ou molar”531 de que a vida é feita, onde as pessoas e os sentimentos relacionando-se através de linhas, são segmentarizadas e se debatem com os grandes conjuntos molares que são o Estado, instituições e classes, o que vai reforçar ainda mais a segmentarização “para garantir e controlar a identidade de cada instância, incluindo a identidade pessoal”.532 Há “a linha de segmentaridade dura ou molar”533 e há um outro tipo de linha com fluxos e partículas que escapa das relações molares e que vão definir o presente. É uma linha de fluxos, desterritorializada e desestratificada, “uma linha de segmentação flexível ou molecular em que os segmentos são como os quanta de desterritorialização”534 Estes dois tipos de linha interferem e reagem uma na outra, alterando incessantemente a vida, e assim mantendo-a sobre controlo, num equilíbrio ou desequilíbrio, que tenta evitar a linha de fuga, ora impondo um ponto de rigidez, ora sendo atravessada por uma corrente de flexibilidade, e isto sucede simultaneamente ou contiguamente. Contudo estes dois tipos de linha têm o mesmo valor, e não são suficientes para alcançar uma

526 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, Mil Planaltos – 2 (1972), trad. de Rafael Godinho, Lisboa, Editora Assírio & Alvim, 2007, 260 527 Idem, p. 261 528 Deleuze,Gilles, Deux Régimes de Fous. Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Les Éditions de Minuit, 2003, p. 316 529 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, Mil Planaltos – 2 (1972), trad. de Rafael Godinho, Lisboa, Editora Assírio & Alvim, 2007, 22 530 Idem, p. 252 531 Idem, p. 253 532 Ibid 533 Ibid 534 Idem, p. 254

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desterritorialização absoluta que não admita nenhum segmento nem nenhum dos dois tipos de segmentos. Pode o indivíduo sair do encerramento vivo, duro e aberto das linhas de segmentarização molar que lhe impõem uma expressão, uma forma e um conteúdo? Pode-se atingir uma outra linha? Uma linha de fuga? Mas de qualquer modo parece que nunca se consegue deixar de percorrer as outras duas linhas pois “as três linhas não param, no entanto, de se misturar”.535 Para Deleuze as “linhas de fuga nunca significam fugir do mundo, mas antes a fazê-lo fugir” 536 mas, de imediato estas fugas vão ser tapadas pelo endurecimento dos segmentos, pois elas são um perigo para o sistema social que não pode evitá-las, mas apenas abafá-las, desviá-las ou controlá-las. O Estado, as instituições, a política em geral para manipular os conjuntos molares ou os segmentos duros têm de se infiltrar através da molecularização, da segmentaridade flexível e da micropolítica. A linha de fuga é uma realidade, e não uma linha imaginária, é activa e resistente, e é através delas que o indivíduo se opõe ao poder de Estado. Também “um grupo, um indivíduo funciona ele próprio como linha de fuga; cria-a em vez de a seguir”537, tornando essa linha de fuga uma resistência aos poderes molares, e por consequência também aos poderes moleculares, por onde se infiltram os poderes políticos e governamentais. Na actual sociedade de controlo, neste momento, “em cada momento, o que é que foge numa sociedade?”.538 O que se inventa sobre as linhas de fuga, por entre as linhas de segmentaridade dura ou flexível já que “a linha de fuga não vem depois, está lá desde o início”539 à espera da explosão das outras duas? Ou será que não conseguimos passar de um compromisso, e do jogo com a segmentaridade flexível, que nos vai permitindo momentos relativos e breves de fluxos desterritorializados, mas controlados, manipulados e edificados pelos duros poderes molares. O indivíduo está sujeito aos processos de subjectivação produzidos pela actual sociedade de controlo. Esta propaga-se e expande-se nas novas tecnologias, que disseminam novos objectos que encarceram o indivíduo ao ar livre, “num controlo aberto e contínuo”.540 Poderão produzir-se subjectividades capazes de resistir a esta nova dominação? Poderá haver “uma nova luz, novas enunciações, um novo poder, novas formas de subjectivação?”.541 O processo de subjectivação é fabricado pelas linhas de força dos dispositivos tornando a subjectividade dependente dos saberes e poderes do dispositivo. O sujeito é assim fabricado, objectivado, pelas tecnologias do poder sendo as suas linhas de subjetivação controladas e dirigidas. O indivíduo não consegue formar as suas próprias regras para se orientar, e contudo considera-se independente, e pode até opor-se à sujeição do poder, sendo isso mesmo,

535 Idem, p. 256 536 Idem, p. 263 537 Ibid 538 Ibid 539 Ibid 540 Idem, p. 93 541 Ibid

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ainda, uma dependência porque permitida pelo próprio dispositivo. A resistência do indivíduo pode ser assimilada pelo próprio dispositivo. Mas poderá o dispositivo permitir uma linha de subjectivação autónoma com regras facultativas criadas pelo próprio indivíduo, que fujam e que se individualizem? Será que a relação a si consegue escapar de todas as relações de poder, e evitar a sua reintegração, ou será que ela sempre baloiçará, entre uma reintegração e uma independência? Isto é, sempre baloiçará entre a moral e a ética? Ou, ela é irredutível a todas as relações de saber e poder? Sendo irredutível como é que ela se pode movimentar pelo meios das forças de individualização e modulação que o poder instaura em cada momento? Deleuze afirma que se “trata realmente de três dimensões irredutíveis, mas em implicação constante”542, e que, portanto, o Si é determinado pelo processo de subjectivação. Mas a questão que aqui se coloca é em relação ao Si-Próprio, que é uma linha de fuga que se escapa do processo de subjectivação, tornando-se um processo de individuação. Conseguirá ele escapar totalmente às forças estabelecidas, e aos saberes instituídos? E quando escapa, não é ele levado de imediato para novas relações de força, e tornado sujeito assujeitado? Não será que o Si-Próprio não está, também, sempre em implicação constante com as dimensões do saber e poder? Segundo Foucault todas estas dimensões são singularidades históricas e variam com a história, “com o modo como o problema se coloca em determinada formação histórica: que posso eu saber, ou que posso eu ver e enunciar em tais condições de luz e de linguagem? Que posso eu fazer, a que posso aspirar e que resistências opor? Que posso eu ser, com que dobras me envolver ou como me produzir enquanto sujeito?”543 As questões Kantianas são assim, actualizadas nesta problemática de Foucault. A produção de diferentes subjectividades é hoje fomentada pelo poder, como modo de antecipação à criação de linhas de fuga que ponham em risco o sistema saber-poder. As linhas de força dos dispositivos alargam-se e tornam-se mais abrangentes, incluindo no seu interior cada vez mais linhas efectivamente traçadas na vida. É assim que, determinadas produções de subjectividade, que irrompem das linhas dos dispositivos, são a pouco e pouco conquistadas pelos saberes e poderes, e integradas no seu sistema, tornando-as assim controladas e assimiladas pelo poder. Agora, são os poderes que se antecipam, e produzem subjectividades radicais que oferecem e fomentam de modo lúdico, a fim de incluí-las nos seus dispositivos e assim controlar tanto quanto possível a criação das linhas de fuga. Os dispositivos de poder estão submetidos a variações e derivações de linhas de forças, que flexibilizam e alargam a sua influência. A abertura dos dispositivos de poder, é a tomada de poder da linha quebrada, pelo exercício das forças de poder, que assim controlam os modos de existência subjectivamente diferentes. Assim, os processos de individuação, ficam capturados porque o desenvolvimento do «Si-Próprio» faz-se dentro da abertura dos próprios dispositivos. É deste modo que um processo de individuação pode ser capturado pelas forças dos dispositivos. O próprio saber/poder actual, baseado na alta tecnologia e informática, gera processos de subjectivação, ilusoriamente fora das forças e dos saberes instituídos, para capturar a subjectividade autónoma dos indivíduos, que foi fomentada ou inspirada por esses mesmos saberes e poderes. E de imediato esta subjectividade “elle est appelée par la suite à fournir de nouveaux savoirs et à inspirer

542 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p.154 543 Idem, p. 155

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de nouveaux pouvoirs.”544 Portanto, a subjectivação ilusoriamente autónoma, pode derivar de um processo de subjectivação inspirado pelo poder, envolto em novas formas de liberdade, promovidas e disseminadas pelo poder. Por um lado, a abertura e a expansão da linha de forças dos dispositivos, ao mesmo tempo que absorve e tenta neutralizar os modos de existência, que vão surgindo, depara-se, por outro lado, com novas formas de subjectivação, porque por muito que a linha de forças tente açambarcar e controlar os modos de subjectivação, jamais poderá impedir o seu fluxo, o seu aparecimento e a sua transformação em novos processos. Os processos de subjectivação são muito variáveis, quer segundo as épocas quer segundo as regras, quer porque “o poder não para de recuperá-los e de submete-los às relações de forças, ainda que eles renasçam para inventar novos modos, até ao infinito”. 545 É um jogo incessante e ininterrupto, o do poder e o da resistência, que se faz criando novos modos de subjectivação pois sem esta dimensão “não se poderia nem superar o saber nem resistir ao poder”.546 Esta confrontação de Foucault com o saber-poder conduze-lo a uma linha de fuga “que está por toda a parte onde o pensamento enfrente qualquer coisa”547e ainda segundo Deleuze essas linhas “estão para além do saber e são as nossas relações com essas linhas que estão para além das relações de poder”.548 Em Foucault, esta linha é a linha do Exterior, e que é o mais longínquo que todo o mundo exterior, e também o que é mais próximo que todo o mundo interior. Assim o próximo e o longínquo são as linhas do exterior. O pensamento não vem de dentro, vem deste exterior e a ele volta. Esta linha do exterior tem de ser dobrada, para que o indivíduo se possa alojar nela para pensar e resistir, porque senão é impossível acompanhar a velocidade do desdobrar da linha e ela tornar-se-ia inviável. E é o dobrar da linha que nos permite, ou nos constitui a viver de acordo a conseguirmos pensar, e simultaneamente, constitui as possibilidades das linhas de subjectivação. Mas a subjectivação não se trata de um simples porto de abrigo, não se dobra a força, a linha do exterior apenas para se prolongar a vida, pelo contrário, dobrar esta força é a única maneira de enfrentá-la. Esta dobra da linha exterior, é o que Foucault chama processo de subjectivação. É preciso vergar a força sobre si, e por a força numa relação consigo, para inventar os modos de subjectivação. Segundo Deleuze, a sociedade define-se pelas suas linhas de fuga, “elas fogem por todo o lado”549 e em todos os momentos se abrem e se desenham novas linhas de fuga. E Deleuze dá o exemplo da Europa, que foi uma necessidade sobretudo exigida pelo desenvolvimento económico, comercial e industrial, e que os políticos e os tecnocratas se esforçaram pela sua construção, com o objectivo de uniformizarem os regimes e os regulamentos. Mas, por entre estes vários dispositivos, irrompem linhas de fuga

544 Deleuze, Gilles, Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Les éditions de minuit, 2003, p. 319 545 Deleuze,Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editora Fim de Século, 2003, p. 137 546 Ibib 547 Deleuze,Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editora Fim de Século, 2003, p. 151 548 Ibid 549 Deleuze,Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editora Fim de Século, 2003, p. 230

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inesperadas e incontroláveis, que fazem estremecer o diagrama de poder abrindo brechas e fendas para novas resistências. É o que acontece quando, por exemplo, explode o desemprego, as assimetrias e os movimentos de migração. Estas são importantes linhas de fuga. Para Deleuze, uma sociedade define-se “menos pelas suas contradições do que pelas suas linhas de fuga.”550 Estas linhas de fuga não são de modo nenhum fugas, nem de nós próprios nem do campo social, pelo contrário, são fluxos que irrompem pelos interstícios dos dispositivos e dos controlos do campo social. E a pergunta repete-se, insistentemente: é possível transpor esta linha hoje? É possível alcançar a vida como potência do fora, ou não nos resta mais nada do que viver a vida chocando e debatendo-se com o poder? Como se transpõe ou se passa para o outro lado da linha, para o lado de fora? “Ce dépassement de la ligne de forces, c´est ce qui se produit lorsqu´elle se recourbe, fait des méandres, s´enfonce et devient souterraine, ou plutôt lorsque la force, au lieu d´entrer en rapport linéaire avec une autre force, revient sur soi, s´exerce sur soi-même ou s´affecte elle-même.”551 É na dobra das forças que se inicia o processo de subjectivação através de uma crítica incessante? Mas “o fora não é um limite fixo, mas uma matéria movediça, animada por movimentos peristálticos, dobras e dobramentos, que constituem um dentro: não uma coisa diferente do fora, mas exactamente o dentro do fora”.552 “A partir do século XIX são as dimensões finitas que vão dobrar o fora e assim constituir o interior, o dentro da vida, do trabalho, da linguagem onde o homem se aloja”.553 Este dentro é constituído ora pela “dobra do infinito, ora pelas redobras da finitude que conferem uma curvatura ao fora”.554 Esta força dobrada é a relação a si, a afectação de si por si. Estes dobramentos originam os processos de subjectivação que se fazem incessantemente, metamorfoseando-se pelas diferentes épocas históricas. Deleuze afirma que as dobras operando “debaixo dos códigos e das regras do saber e do poder”555 é que são “a causa da subjectividade, ou da interioridade, enquanto relação a si”. Elas são todas variáveis, de ritmos diferentes, e são estas diferentes variações que constituem os modos irredutíveis de subjectivação. E hoje qual é a nossa moderna relação a si? E quais são as nossas dobras? E hoje nas actuais sociedades de controlo onde o poder individualizado e modulador ganha novos modos e transmutações o “que resta à nossa subjectividade?”.556 O poder instaura e investe, quotidianamente sobre os indivíduos, processos de individualização e de modulação, através das mais diversas técnicas e tecnologias que invadem o corpo, além de que “o próprio saber é cada vez mais individuado, formando hermenêuticas e codificações do sujeito desejante, que resta à nossa subjectividade?”.557

550 Ibid 551 Deleuze, Gilles, Deux Régimes de Fous. Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Les éditions de minuit, 2003, p. 318 552 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 130 553 Idem, p. 131 554 Ibid 555 Idem, p. 141 556 Idem, p. 143 557 Ibid

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Segundo Foucault o homem enquanto força não dobra as forças que o compõem sem que o próprio fora não se dobre e não abra um Si no homem. É isto a dobra do ser. Portanto a dobra do fora constitui um Si e o próprio fora um dentro coextensivo. Hoje, nesta nossa singularidade e problemática condição deste momento histórica qual é o nosso Si, o «Si-Próprio»? Este problema é histórico e colocou-se em todas as formações históricas, e cada qual tentou responder-lhe. E coloca-se hoje na actual sociedade de controlo. Que força pode o indivíduo dobrar, que força hoje pode actuar sobre si mesma e desenvolver o Si-Próprio sem que ele caía de novo enredado pelo saber-poder? Mas o Si-Próprio enquanto linha de subjectivação não é algo feito de uma vez por todas, pelo contrário, ele se transmuta e metamorfoseia e pode por isso escapar à sua sujeição. O sujeito está sempre a fazer-se, de modo diferente, pelas dobras que o subjectivam. Depois de Foucault ter analisado as práticas discursivas que articulavam o saber, e as relações que articulavam o poder, ele desloca-se para a análise do sujeito e dos processos de subjectivação, para pesquisar “quais são as formas e as modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se constitui e se reconhece como sujeito”.558 Nesta análise, Foucault tem de se debruçar sobre os jogos de verdade, que constituem o sujeito na sua relação de si para si, de modo diferente em cada formação histórica que o pensa como uma experiência, determinada por campos de saber, estratégias de poder e formas de subjectividade. É através dos jogos de verdade, jogos entre o verdadeiro e o falso, que o saber-poder de uma determinada época cria o sujeito, isto é, os modos como ele se vê e se pensa, ou seja, que gera a sua subjectividade através de um processo de subjectivação. A produção de linhas de fuga ou linhas de subjectivação, têm de passar por um saber que assegure tanto a aquisição de conhecimentos, quanto “o descaminho daquele que conhece”.559 O que quer dizer que o indivíduo tem de exercer uma actividade crítica sobre si, uma crítica “que permite separar-se de si mesmo”560 e assim conseguir “pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê”561 a fim de, como diz Deleuze, cavalgar as possíveis linhas de subjectivação. O sujeito se constitui através de práticas e técnicas de si, é produto das formações históricas, e da tecnologia de si, isto é, o indivíduo se constitui pelas “problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam”.562 Que condições vão, hoje, agir nas linhas de subjectivação? Que variáveis e que condições se colocam hoje ao sujeito? Foucault, após analisar as dimensões do saber e do poder, pressente que os dispositivos não podem ficar circunscritos nem encerrados em forças, sem que outras forças não transponham e não ultrapassem os seus limites. Este transpor a linha, acontece quando uma força se volta para si mesma e afecta-se a si mesma. É esta a dimensão do Si-Próprio. É uma linha de subjectivação, é uma linha de fuga que escapa ás outras linhas. Esta linha é uma linha sempre inacabada, que está sempre para se fazer porque depende 558 Foucault, Michel, O Uso dos Prazeres (1984), trad. de Maria Thereza Albuquerque, Rio de Janeiro, Editora Graal, 2006, p. 11 559 Ibid, pág.13 560 Ibid, pág. 13 561 Ibid, pág. 13 562 Foucault, Michel O Uso dos Prazeres (1984), trad. de Maria Thereza Albuquerque, Rio de Janeiro, Editora Graal, 2006, p. 15

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tanto da permissão das forças do dispositivo, quanto da sua força de resistência para se desenvolver e se efectivar na vida. Sendo assim, esta dimensão da relação a si, é já um modo de resistência. Esta nova dimensão, distingue-se das relações de poder e das formas de saber. Foucault remonta aos gregos para aí descobrir “um duplo «desprendimento»: quando «os exercícios que permitem governar-se a si mesmo» se desprendem, simultaneamente do poder enquanto relação de forças, e do saber enquanto forma estratificada, como «código» da virtude.”563 Por isso “Le Soi n´est ni un savoir ni un pouvoir. C´est un processus d´individuation…”564 É com os gregos, que “a relação a si ganha independencia”565, pois a relação a si começa a derivar da relação com os outros, e a constituição de si começa a derivar do código moral. Quais são hoje, as relações do fora que se dobram e se curvam para escavarem e constituírem um dentro, numa relação a si, enquanto domínio que se exerce sobre si mesmo e relativamente aos poderes dominantes? Poderemos nós, hoje, desprendermo-nos, simultaneamente das relações de forças do poder, e do saber? Podemos efectivamente, ganhar independência relativamente aos poderes e saberes instituídos? Que relação de forças podemos estabelecer com os outros, se não tivermos domínio sobre nós? Esta relação de forças com os outros, não significa imposição de poder ou controlo dos outros, é pelo contrário, o poder ou as forças, para enfrentarmos e decompormos outras forças. Só quando a relação a si se torna independente e autónoma, e se exerce sobre si própria, é que o indivíduo pode relacionar-se com as forças dos outros, com o seu poder, e assim exercer sobre eles as suas forças, independentes das deles, para gerir de modo livre a sua existência estética, sem a influencia e a pressão das forças dos múltiplos poderes e saberes. A versão grega da relação a si, tinha por finalidade governar a si, para governar os outros. Esta é para Foucault, a novidade dos gregos: “uma relação da força consigo, um poder de se afectar a si mesmo, uma afectação de si por si.” 566 O domínio e a relação com os outros são dobrados, num domínio de si e numa relação consigo mesmo. “É necessário que as regras obrigatórias do poder se dobrem em regras facultativas do homem livre que o exerce.”567 É através de exercícios práticos, que o sujeito constitui e inventa a sua existência estética. O sujeito surge como produto desse processo de subjectivação. A constituição de si, é estabelecida segundo o modo de ser que ele deseja realizar “e para tal, age sobre sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe-se à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se.”568 Estas práticas de si, com as quais o sujeito se constitui, são modos de subjectivação que produzem nele uma determinada subjectividade. Não poderão estas formas de actividade sobre si, estarem de um modo ou outro, ligadas a determinadas perspectivas de poder, estando este mesmo ausente? Isto é, não poderão elas, estar no indivíduo, subordinadas à doutrina de uma forma de poder que se deseja mas que ainda não é vigente? Neste caso determinadas actividades sobre si, se por um lado escapam aos poderes dominantes de momento, por outro colocam-se sobre a alçada de um outro poder que espera dominar. Pode-se então dizer que a dimensão da subjectividade deriva

563 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 135 564 Deleuze, Gilles, Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995, Paris, Les éditions de minuit, 2003, p. 318 565 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 135 566 Ibid 567 Idem, p. 137 568 Foucault, Michel O Uso dos Prazeres (1984), trad. de Maria Thereza Albuquerque, Rio de Janeiro, Editora Graal, 2006, p. 28

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do poder e do saber, “mas que não depende deles.”569 De onde vêm os modelos que vão servir para a instauração e desenvolvimento das relações consigo? Estes modelos podem trazer consigo relações de forças, oriundas de poderes e saberes instituídos, ou por instituir. As práticas de si, que asseguram a subjectivação, podem afinal derivar do poder, sem nunca se conseguirem dele desprender, iludindo o sujeito na sua transformação. Isto é, a afectação das forças pode estar a ser controlada por diversos meios ao alcance do poder. O comportamento dos sujeitos, está associado às formas de subjectivação. Este comportamento, é mais ao menos autónomo, consoante o sejam também as formas de subjectivação, ou então predomina a autoridade dos códigos. Então a questão que se coloca, é a de saber se as práticas de si, se podem desprender completamente do poder e do saber, e se quando o fazem, não estão afinal a inventar algo que foi pressuposto ou incutido por outros meios, no sujeito pelo próprio saber/poder. Foucault afirma: “os indivíduos são chamados a se constituir como sujeitos de conduta moral… é a história das formas da subjectivação moral e das práticas de si destinadas a assegurá-la.”570 Quem chama os indivíduos? O que são, e de onde vêm, os modelos propostos para o desenvolvimento das relações para consigo próprio? Estes modelos podendo apresentarem-se inocentes, ou mesmo inventados pelo sujeito, podem ter no fundo, uma rede de dispositivos de poder, mascarada em liberdade, com a função de criar subjectividades subtilmente subjugadas. Que modelos de subjectividade despoleta actualmente a sociedade de controlo? Que modos de subjectivação, ou que práticas de si, ela incita e fomenta de modo directo e indirecto? Que tipo de transformações envolvem hoje a subjectivação? Que tipo de sujeito, podem criar as novas tecnologias, enquanto funcionam como extensão ou expansão do corpo? O sujeito quando abandona uma determinada exigência do poder, conquista uma outra subjectividade, ou, é ele conquistado por uma outra? Poderá este sujeito, de hoje, iniciar uma linha de subjectivação ou de fuga, ou um Si-Próprio, um processo de individuação que o leve para lá dos dispositivos tecnológicos? Cada vez mais, a sociedade de controlo, invade a subjectividade, ocupando-a e massificando-a. E cada vez mais, são menores e estão invadidos os espaços, para criar um processo de individuação. Os espaços, tanto físicos quanto efectivos, estão cada vez mais cheios, repletos de tudo aquilo que trunca um processo de individuação. O poder convida e incita à criação de subjectividades livres, e isso confunde-se com processos de individuação. O poder, incessantemente convida os sujeitos, a aceitarem o desafio de conquistarem subjectividades livres, que têm por base relações de poder e saber. Estas subjectividades livres, têm por base processos de subjectivação que assentam em fundamentos económicos e tecnológicos. Os sujeitos assim produzidos, tornam-se mais obedientes, e vigiam-se uns aos outros, através da exigência da qualidade, da segurança, da vigilância, da saúde, da educação, da moda, da tecnologia. As subjectividades livres, sem passarem por um processo de individuação, são os difusores mais eficazes e penetrantes, das relações de saber e poder. Foucault afirma: “… de que maneira, na continuidade, transferência ou modificação dos códigos, as formas da relação para consigo (e as práticas de si que lhe são associadas) foram definidas, modificadas, reelaboradas e diversificadas.”571 Hoje, de que modo a relação a si foi modificada? Que diferenças existem “nas formas de elaboração do

569 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 137 570 Foucault, Michel O Uso dos Prazeres (1984), trad. de Maria Thereza Albuquerque, Rio de Janeiro, Editora Graal, 2006, p. 29 571 Idem, p. 31

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trabalho ético que se efectua sobre si mesmo, não somente para tornar seu próprio comportamento conforme a uma regra dada, mas também para tentar se transformar a si mesmo em sujeito moral de sua própria conduta.”572 As subjectividades livres, em geral, tanto universalizam a regra da sua acção como não têm regra alguma, não conseguindo, por isso, nenhuma delas criar uma existência estética. “Não é universalizando a regra de sua acção que… o indivíduo se constitui como sujeito ético; é, ao contrário, por meio de uma atitude e de uma procura que individualizam sua acção, que modulam e que até podem dar um brilho singular pela estrutura racional e reflectida que lhe confere.”573 É por isso que Deleuze apela à luta por uma subjectividade moderna que “passa por uma resistência às duas formas actuais de sujeição, uma que consiste em individuar-nos segundo as exigências do poder, e outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas.”574 Como é que o indivíduo, se deve constituir a si mesmo como sujeito moral? Como agente ou como sujeito moral da acção? Esta questão esconde de imediato atrás dela o eixo do poder e o eixo do saber. Foucault “descobriu o impasse em que o próprio poder nos coloca, tanto na nossa vida como no nosso pensamento, nós que chocamos com ele nas nossas verdades mais ínfimas.”575 E é preciso sair dele, para encontrar a potência da vida. Sair e dobrar a força, para que se abra uma relação a Si no homem.

572 Idem, p. 27 - 28 573 Idem, p. 59 574 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 143 575 Idem, p. 130

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4. Subjectivação e resistência nas actuais sociedades de controlo Nas actuais sociedades de controlo, onde o biopoder invade cada vez mais os domínios da vida, a partir de dispositivos metamorfoseados, que cavam e se entranham no corpo, como pode o indivíduo escapar aos seus efeitos de dominação, que minuciosamente se instalam na sua existência? As relações de força do poder, trazem consigo as próprias forças, com as quais o sujeito se vai relacionar com ele. Assim, as forças de resistência são elas mesmas forças de poder, não só porque geram novas relações de poder, mas sobretudo porque são geradas e difundidas pelo próprio poder dominante. Quando o indivíduo resiste, e se opõe, ele o faz usando as forças que o próprio poder lhe disponibilizou. A liberdade não pode ser pensada fora das relações de poder, ou seja, a liberdade é uma força de poder. O contra-poder não corta o cordão umbilical do poder, porque a liberdade é uma força do dispositivo. O desenvolvimento da liberdade, não é independente das relações de poder. A liberdade é o próprio poder que se manifesta no homem livre. Por isso a liberdade não se opõe ao poder, mas sim à falta dele, porque só a presença de relações de poder manifestam as relações de liberdade. A própria liberdade semeia as relações de poder. Não se pode sair do campo da liberdade. A liberdade, é uma força das relações de forças de poder. Pela liberdade podemos ser mais livres e mais dependentes. A liberdade exprime-se em relações de poder, tal como a sua ausência. Mas isto não significa que seja a mesma coisa. A liberdade quando se manifesta como liberdade, está a afirmar positivamente a sua produção de relações de poder. A liberdade acelera as relações de poder, fazendo com que estas se intensifiquem e se multipliquem, através do sujeito livre. Assim, o poder perde as suas características autoritárias e dominadoras, para se apresentar e difundir através de vectores de preocupação, de cuidado e de preservação da vida. Os actuais dispositivos de poder, intensificam as relações de liberdade do poder. Neste sentido, a liberdade não nos torna livres, mas apenas nos dá mais liberdade. A liberdade é uma tautologia do poder. Hoje, nas actuais livres sociedades de controlo, as práticas críticas, tornam-se mais eficazes para nos distanciarmos dos poderes e saberes. A resistência, enquanto conquista de uma nova subjectividade, torna-se o espaço repensado da liberdade. Nas actuais sociedades de controlo, onde a liberdade é invocada, produzida e transmitida pelo poder, a resistência enquanto força crítica, liga-se ás acções quotidianas do indivíduo na sua luta por uma estética de existência, o que remete para processos de individuação tanto pessoais como de grupo. Nas actuais sociedades, a liberdade tornou-se o veículo privilegiado das relações de poder, enquanto a resistência, pode assumir estratégias precisas e efectivas de mudança e transformação no interior da liberdade do poder. É a resistência enquanto atitude crítica, que repensa e transforma o indivíduo, indo isso repercutir-se, quer no seu modo de existência, quer na constituição das relações de poder. Visto que a atitude crítica, é um acto de resistência, que transforma quer o indivíduo quer as forças de poder, pois ambas as forças são indissociáveis, a existência torna-se ela própria, uma permanente singularidade não necessária, pela permanente ruptura que é o presente. Os sujeitos são livres no interior de um determinada forma de racionalidade, cada forma de poder tem o seu modo de liberdade, isso não significa que o indivíduo seja livre, pois ele nunca o é na totalidade, mas sim sempre em relação a um determinado poder.

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A resistência é um poder político, como afirma Deleuze. As actuais sociedades de controlo são cada vez mais sociedades de biopoder que possuem o controlo e a gestão das populações e que têm a vida como objecto do poder. Se “o poder toma assim a vida como objecto ou objectivo, a resistência ao poder passa a invocar a vida, e volta-se contra o poder”.576 Como diz Deleuze: “A resistencia torna-se poder da vida.”577 Ela faz parte das relações de poder, de estratégias e tácticas que visam afrontar as forças do poder da vida que pretendem exercer sobre ela “controlos definidos e regulamentações de conjunto.”578 Com o biopoder, viver passa “para o campo de controlo do saber e da intervenção do poder”579 através da biopolítica que “faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana.”580 A vida é assim jogada nas estratégias políticas. “O homem moderno é um animal na política do qual a sua vida de ser vivo está em causa.”581 A estratégia da biopolítica gera assim uma bio-resistência. Isto é, agora a resistência, enquanto força em íntima ligação com o poder, vai ocupar-se também das forças da vida para despoletar estratégias políticas. A vida vai ser envolvida e distribuida por estratégias e tecnologias políticas.582 As tecnologias do biopoder vão gerar um poder normalizador. E, diz-nos Foucault, “contra esse poder ainda novo no século XIX, as forças que resistem apoiaram-se justamente naquilo que ele investe – isto é, na vida e no homem enquanto vivo.” Portanto, este novo poder, gerou uma resposta política diferente, uma nova resistência. Já não se visava uma idade de ouro e de justiça. Agora “o que é reivindicado e serve de objectivo é a vida, entendida como necessidades fundamentais, essência concreta do homem, realização das suas virtualidades, plenitude do possível.”583 A resistência torna-se numa luta política. A vida “se tornou então o valor em jogo nas lutas políticas.”584 A resistência não é mais afirmar contra o poder um outro poder, pois isso é uma ilusão e ainda mais nos amarra ao poder, pelo contrário, a resistência deve cavalgar sobre as próprias linhas de forças do poder e transpô-las, transformá-las, metamorfoseá-las. E nesta viagem a própria resistência se transforma em poder da vida. “Não será a força vinda do fora uma determinada ideia da vida…? Não será a vida esta capacidade de resistir da força?”585 Segundo Deleuze pensar adquire o sentido de extrair singularidades a partir do fora e “não há apenas singularidades integradas nas relações de forças, mas também singularidades de resistência, capazes de modificar essas relações, de derrubá-las, de alterar o diagrama instável.”586 Portanto, as singularidades de resistência estão integradas nas relações de forças. Se as singularidades de resistência ficassem fora das relações do saber e do poder, não poderiam lutar contra elas tal como acontece com as singularidades selvagens, que não estão nem integradas nem ligadas nas relações de forças. Não há resistência para lá da linha de forças? Mas, segundo Foucault pode-se superar esta linha de forças, através de uma linha de subjectivação que escapa à outras linhas. E nesta linha, não se pode encontrar outros modos de resistência,

576 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 124 577 Idem, p. 125 578 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 139 579 Idem, p. 144 580 Idem, p. 145 581 Ibid 582 Idem, p. 146 583 Idem, p. 147 584 Ibid 585 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 125 586 Idem, p. 164

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se ela não chegar a escapar totalmente? Não é afinal a invenção ou criação de uma estética de existência, um certo modo de resistir, de resistência pois que continua de certa forma a estar em contacto com as relações de forças? Tanto mais que é pouco provável que ela escape radicalmente às forças estabelecidas, e que por isso manterá com elas sempre alguma forma de resistência, porque se mantém nas relações de poder. E além disso, uma estética de existência, que deriva de um Si-Próprio, que é um processo de individuação, é uma certa forma de resistência, porque além de se opor frontalmente às forças estabelecidas, tem forçosamente de gerar novas relações de forças contra aquelas, o que sempre implica íntimos contactos com os saberes e os poderes. Assim sendo, um processo de subjectivação é também um processo de resistência, porque ele nunca está numa posição de exterioridade absoluta relativamente ao poder. “A própria relação a si é uma das origens…dos pontos de resistência…”587 Mas os próprios pontos ou centros de resistência estão em relação directa com o campo social, com o diagrama de forças. Assim sendo, a própria relação a si, é um ponto de resistência para enfrentar as mutações sociais. “As mutações do capitalismo não encontrarão um «frente-a-frente» inesperado na lenta emergência de um novo Si como foco de resistencia?”588 Como já vimos, o Si-Próprio, ou processo de individuação, também é um ponto de resistência devido à criação de uma estética de existência. A resistência é um conjunto de forças da vida. A sua energia é desconhecida pois não se sabe até onde pode ir a sua força. A resistência é assim uma força geradora de vida. Afirmar que a resistência é libertadora significa que ela é transformadora e criativa e que lança o homem numa estética da existência. “Espinosa dizia: não se sabe aquilo que pode um corpo humano quando se liberta das disciplinas do homem. E Foucault afirma: não se sabe aquilo que pode o homem «enquanto estiver vivo», como conjunto de «forças que resistem.»589 Quanto à resistência, o que Foucault nos diz é que, não existe uma essência de resistência metafísica que se oponha enquanto totalidade ao poder. Tanto mais que o poder está em toda a parte e vem de toda a parte. O poder exerce-se. E é deste modo que a resistência também se comporta, ela também está por toda a parte. Existe uma íntima relação entre o poder e a resistência. O poder só existe porque ela existe, caso contrário, seria uma obediência absoluta. Os “pontos de resistência estão por toda a parte, presentes na rede de poder”590, por isso há várias resistências de tipos muito diferentes. As diversas resistências estão incluídas nas relações de poder, mas isso não lhes retira a sua capacidade de afrontamento ao poder. As resistências são distribuídas, e disseminadas tal como o poder, são forças que se confrontam com outras forças e que podem criar simples mudanças ou rupturas profundas, que irão gerar novas relações de poder. As resistências são poder e podem erguer por vezes “grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento”591, ou “introduzem numa sociedade clivagens que se deslocam, que quebram unidades e suscitam reagrupamentos, sulcando os próprios

587 Idem, p. 140 588 Idem, p. 157 589 Idem, p. 125 590 Foucault, Michel, História da Sexualidade I – A Vontade de Saber (1976), tradução de Pedro Tamen, Lisboa, Editora Relógio D´Água, 1994, p. 99 591 Ibid

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indivíduos, recortando-os e remodelando-os, traçando neles, nos seus corpos e nas suas almas, regiões irredutíveis.”592 Assim como, as forças das relações de poder são integradas nas instituições públicas através de uma codificação e depois geridas pelo Estado, também é “a codificação estratégica desses pontos de resistência que torna possível uma revolução…”593 O poder só existe através de vários pontos de resistência que “desempenham, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de pretexto para uma intervenção.”594 As forças remetem para um fora, onde a força está sempre em relação com outras forças. Enquanto as singularidades de poder, correspondem às suas relações de poder, as singularidades de resistência estão numa relação directa com o fora. Por isso Foucault diz que “o campo social mostra mais resistência do que estratégia, e que o pensamento do fora é um pensamento da resistência.”595 Tanto as forças de poder como as forças de resistência produzem poder. Como escapar? Com que resistências afrontar as resistências? Visto que, cada vez mais determinadas práticas de resistência se acomodam e acantonam aos novos poderes tecnológicos e técnicos, que outras forças de resistência, podemos chamar para que abram efectivamente um caminho de fuga para o Si-Próprio? Estaremos nós todos encerrados em relações de poder das quais dificilmente poderemos sair? Ou como diz Foucault: “Aqui estamos, sempre com a mesma incapacidade de transpor a linha, de passar para o outro lado… Sempre a mesma escolha, do lado do poder, daquilo que ele diz ou faz dizer”.596 Foucault se interroga acerca dos diferentes modos, pelos quais na nossa cultura, os homens se tornaram sujeitos, ou seja, que ganharam uma subjectividade ou que estiveram submetidos a processos de subjectivação. E o modo de o sujeito transformar estes processos é através das lutas contemporâneas que “são uma recusa a estas abstracções… que ignora quem somos individualmente e também uma recusa de uma investigação científica ou administrativa que determina quem somos”.597 É através destas lutas contemporâneas pela resistência contra as formas de poder, que se travam as batalhas contra “o governo da individualização”.598 É necessário que os sujeitos desenvolvam na sociedade de controlo um pensamento crítico em “oposição à deformação, e ás representações mistificadoras impostas ás pessoas”.599 Diversas formas de poder, aplicam aquelas representações, categorizando o indivíduo e marcando-o “com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele”.600 Na actual sociedade de controlo, o sujeito está cada vez mais dependente pelas relações de saber-poder, assim como cada vez mais dependente de uma política global e homógenea, que se impõe economicamente sobre a vida das pessoas, através da

592 Ibid 593 Ibid 594 Idem, p. 98 595 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 121 596 Foucault, Michel, Ditos e Escritos, vol. V (1994), trad. de Elisa Monteiro e Manoel Motta, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006, pág. 127 597Foucault, Michel, O Sujeito e o Poder, M. Foucault, Uma Trajectória Filosófica, H. Dreyfus e P. Rbinow, Ed. Forense Universitária, 1995, p. 235 598 Ibid 599 Ibid 600 Ibid

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regulamentação de todos os campos de acção humana. Outra forma de sujeição, deriva do chamado auto-conhecimento, que prende de imediato o indivíduo à sua identidade subjugando-o, fazendo-o supor que é livre dos actos da sua consciência. Como diz Foucault: “Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controlo e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou auto-conhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga”.601 Nas actuais sociedades de controlo, conseguirão os sujeitos opor-se criticamente aos saberes e poderes através de formas de resistência, e conquistarem novas linhas de subjectivação ou linhas de fuga? Ou as linhas de subjectivação sempre arrastarão consigo as linha de forças do poder? Segundo Foucault, as lutas no Estado moderno ocidental contra as formas de sujeição e a submissão da subjectividade, são paralelas à luta contra as formas de dominação e exploração, contudo mantém relações muito mais complexas com outras formas. E isto porque “o poder do Estado é uma forma de poder tanto individualista como totalizadora… uma combinação astuciosa das técnicas de individualização e dos procedimentos de totalização”.602 “A luta pela subjectividade apresenta-se então como direito à diferença, e como direito à variação, à metamorfose”.603 A sociedade de controlo visa desenvolver tecnologias que se acoplem cada vez mais à vida do indivíduo. Daqui a um ano ou dois em que entrará no mercado a chamada “tecnologia transparente” que permitirá a instalação por todo o lado de câmaras de vigilância transparentes, portanto não visíveis, o que significará um panoptismo exponencial levado ao absurdo. Estas câmaras transparentes podem ser aplicadas directamente nas paredes, sem serem vistas nem identificadas. O que significa que o indivíduo, viverá uma subjectividade fictícia ininterruptamente objectivada pelo poder que o dominará na totalidade. Que linhas de subjectivação serão então possíveis? Mas actualmente “que posso eu fazer, a que posso aspirar e que resistências opor? Que posso eu ser, com que dobras me envolver ou como me produzir enquanto sujeito?”.604 “Quais são os novos tipos de luta, mais transversais e imediatos do que centralizados e mediatizados? Quais são os novos modos de subjectivação, mais sem identidade do que identitários? Que poderes se deve defrontar, e quais são as nossas capacidades de resistência, hoje, quando não podemos limitarmo-nos a dizer que as velhas lutas já não têm valor?”.605 Mas não serão as próprias mutações aceleradas da actual sociedade, que paralelamente accionem uma reconversão subjectiva “com as suas ambiguidades mas também com suas potencialidades” que despoletem outras formas de subjectivação?606 As mutações do capitalismo que despoletarão um novo Si como foco de resistência? Segundo Deleuze, o que interessa a Foucault são as variáveis do saber e a variação das relações de formas, as singularidades variáveis do poder e as variações das relações de forças, as subjectividades variáveis e a variação da dobra ou da subjectivação. Pensar é extrair singularidades vindas do fora e de novo encadeá-las, podendo ser singularidades de poder, integradas nas relações de poder ou singularidades de resistência que preparam as mutações.

601 Ibid 602 Idem, p. 236 603 Deleuze, Gilles, Foucault (1986), trad. de Pedro Elói Duarte, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 143 604 Idem, p. 155 605 Idem, p. 157 606 Ibid

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É preciso pensar, lançar os dados, dobrar, duplicar o fora com um dentro que lhe é coextensivo. O pensamento para pensar o impensado, tem de se dobrar nessa distância, isto é, duplicar o fora, e por isso fica afectado por ele. Esta afectação de si vai constituir um “espaço do dentro, que estará inteiramente co-presente no espaço do fora sobre a linha da dobra”607 o que origina um sujeito que se problematiza a si mesmo como sujeito ético. E é este sujeito ético que vai resistir. Na topologia geral do pensamento “todo o espaço do dentro está topologicamente em contacto com o espaço do fora”,608 é o dobramento do fora no dentro, portanto, o dobramento se constitui pelo dobramento do fora, as relações são homólogas e ambas estão em contacto por intermédio dos estratos, que são meios relativamente exteriores e interiores, e é a eles que cabe produzir sem parar, camadas que façam ver ou dizer algo de novo. O dentro condensa o passado, segundo modos descontínuos que o confrontam, com um futuro que provém do fora, e o permutam e o recriam. Portanto, pensar é alojar-se no estrato presente que põe em contacto o dentro e o dobramento do fora, que serve de limite: “que posso eu ver e que posso dizer hoje?”.609 Pode-se então resistir ao presente, pensar o passado contra o presente, não por um retorno, mas tornando o passado activo e presente no fora, para que aconteça finalmente algo de novo, para que pensar, sempre aconteça no pensamento. Este passado é o passado que está dentro, que está na relação consigo. Esta relação com o fora onde o dentro se encontra activamente presente, tem por função por em questão as forças estabelecidas, e “a relação a si nomear e produzir novos modos de subjectivação”.610 E é com este pensar, que poderemos procurar novos modos de subjectivação na actual sociedade de controlo, um pensar que se faz no interstício do ver e do falar, onde ambos atinjam o seu próprio limite que será o limite comum que os relaciona e os separa. A actual sociedade de controlo, permite linhas de subjectivação porque apesar do seu alto nível de dominação e sujeição do indivíduo, ela não tem meios capazes de impedir as singularidades de resistência que geram transformações, nem de impedir a força do corpo que começa a pensar. Para se aperfeiçoar, ela investe cada vez mais na manipulação publicitária, nos mass media, no saber, no biopoder, na governamentalização. Para resistir à sociedade de controlo é preciso extrair singularidades de resistência, capazes de modificar e derrubar as singularidades integradas nas relações de forças, e assim alterar o diagrama instável do poder. Estas singularidades estão sobre a própria linha do fora, onde o mais distante se torna do dentro, interior, “por uma conversão ao mais próximo: a vida nas dobras”.611 Na dobra faz-se a relação a si e é nesta zona da subjectivação que temos acesso e posse às nossas singularidades, ao nosso corpo, ao nosso pensar e à produção de novos modos de subjectivação. Para Foucault qualquer forma é um composto de relações de força. Com que forças do fora vão as forças do homem entrar em relação? As forças do homem não chegam para formar o homem, este sem entrar em relações de força não tem forma. Em cada formação histórica as forças do homem, entram em relação com outras forças, que lhe dão uma determinada forma. Portanto, para que a forma-Homem apareça

607 Idem, p. 160 608 Idem, p. 161 609 Ibid 610 Ibid 611 Idem, p. 165

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é necessário que as forças do homem entrem em relação com as forças da plenitude para que desta dobra ele apareça. As forças de finitude que são a Vida, o Trabalho e a Linguagem são forças do fora e a força no homem deve enfrentar estas forças fora de si. De seguida faz dessa finitude a sua própria finitude e toma consciência dela como a sua própria finitude, e é neste aspecto que ele introduz um elemento novo em relação ao que se afirmava antes, que defendia que era apenas pelas condições históricas determinadas que o homem tomava consciência da sua finitude. As forças no homem, dobram-se na dobra que se torna então a finitude do próprio homem. E é esta dobra que se encarna na formação histórica do século XIX e é ela que constitui a forma-homem. Que forças tem gerado esta forma na sociedade? Poderá esta forma procurar linhas de subjectivação? Não será que para resistir e criar novos modos de subjectivação esta forma terá de morrer? A forma depende exclusivamente das relações de forças, e das suas mutações, portanto a forma depende da formação histórica provocada pelas relações de força, pela dobra e pelo desdobramento. E serão estas mutações que farão com que nas dobras da finitude se constitua outra forma ou o homem, se a forma-Deus deixar de funcionar. Na actual sociedade de controlo, que não pára de estabelecer relações cada vez mais complexas e tecnológicas, gerando forças do fora até agora desconhecidas, como é que as forças no homem vão entrar em relação com estas forças para comporem a sua forma? E que nova forma poderá ser esta? Não está esta forma já em transmutação na dobra? E por isso há sempre uma nova forma relativamente à anterior que vai saindo da dobra. A sociedade de controlo, enquanto formação histórica e relação de forças, não pode impedir o aparecimento de novas formas que produzirão novas linhas de subjectivação, derivadas das formas que irromperão incessantemente das dobras e dos desdobramentos. Na actual sociedade contemporânea, em que se passa de um número finito de componentes para uma diversidade quase ilimitada de combinações, as forças do homem entram em relação não já com a infinitude ou finitude, mas sim com um finito-ilimitado que terá por mecanismo operatório a Sobredobra, e não já nem a dobra nem o desdobramento. Novas forças estão e entram em jogo, as forças no homem têm de entrar em relação com estas novas forças do fora. Que forma resulta e resultará das novas relações de força? Que forma será esta e que novos modos de subjectivação produzirá na sociedade? Permitirá a a actual sociedade de controlo esta forma? Segundo Deleuze, as linhas de desejo têm de atingir o ponto em que o desejo e a máquina, o desejo e o artifício, sejam um só, até se voltarem contra os dados ditos naturais da sociedade como por exemplo os temas da oposição homem-máquina, o homem alienado pela máquina, o que é fácil porque pertence ao desejo mais minúsculo, mas ao mesmo tempo, o mais difícil. O sujeito tem de activar a sua máquina de desejo para passar alguma coisa que escape aos códigos, são esses fluxos que são as linhas de fuga, “linhas de descodificação absoluta que se opõem à cultura”.612

612 Idem, p. 39

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Agora, o conceito deve dizer o acontecimento e não a essência, e o acontecimento se interessa pelas circunstancias de uma coisa, e pode dizer o acontecimento de modo inesperado, individuando um rio ou o vento de um acontecimento, já não se trata da individuação de uma coisa ou de uma pessoa, mas por exemplo do seu rosto e de saber porque foi produzido na sociedade. Ao mesmo tempo que a sociedade de controlo se abre ela também se fecha, é um movimento curioso, porque se por um lado ela se abre por outro asfixia e se fecha em modo aberto nas suas essências e nos seus espaços racistas e únivocos, pré-fabricados e esmagadores. As sociedades desenvolvidas geram um sistema de anti-criação que “é muito pior que uma censura”.613 As coisas e os acontecimentos são constituídos por linhas, tendo por isso cada coisa a sua geografia. As pessoas têm linhas muito diversas assim como as sociedades. As linhas de subjectivação inventam novas possibilidades de vida, mas nem todas poderão ser criativas ou livres. A sociedade de controlo encerra o homem nas suas complexas relações de poder por isso torna-se necessário uma linha de fuga para transpô-la, para procurar novas possibilidades de vida. Que possibilidades de vida ou modos de existência pode o indivíduo constituir na actual sociedade ou “quais são os que hoje se desenham, qual é o nosso querer-artista irredutível ao saber e ao poder”?614 Como pode ele, actualmente, inventar e viver a sua relação com a morte? E como pode ele relacionar a força com outras forças e a relação da força consigo enquanto obra de arte? Como pode o homem fazer a dobra da força na sua relação a si-próprio? O homem não pode deixar de criar diferentes possibilidades de vida, e a sociedade por mais poder que tenha sobre a vida não pode impedir o aparecimento de novas subjectivações. As linhas de subjectivação criam novos modos existência, e é no jorrar de fluxos destas linhas que se constitui a individuação do homem, enquanto capaz de “resistir ao poder como de se esquivar ao saber, ainda que o saber tente penetrá-las e o poder apropriar-se delas”.615 Mas não será actualmente restrita a escolha permitida pela sociedade de novos modos de existência? E não será sempre essa escolha por muito diferente que possa ser apenas aquela que as próprias relações de poder permitem e até fomentam? A própria sociedade de controlo coloca ao dispor dos sujeitos diversas alternativas de vida e até faz disso a sua “publicidade” como fundamento da sua liberdade mas todas elas estão minadas pelo poder e tornam-se caricaturas da autonomia do homem. Para evitar esta fraude de viver é que a constituição de modos de existência ou de possibilidades de vida, isto é, a subjectivação, tem de ser capaz de resistir ao saber e ao poder e de lhe opor novas dimensões da individuação. “Como transpor e atravessar a sociedade de hoje para nos pensarmos na história”616 como linha de subjectivação? Na visibilidade da actual formação histórica “o que é que somos capazes de dizer hoje, o que é que somos capazes de ver”617, por onde podemos

613 Idem, p. 46 614 Idem, p. 129 615 Ibid 616 Deleuze,Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editora Fim de Século, 2003, p. 132 617 Idem, p. 134

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fugir e que linhas podemos criar depois de procurarmos os motivos e as forças que entrecruzam e tecem a diferença e entre o ver e o dizer. Mas isso também implica “o ser da linguagem que só aparece para si mesmo com o desaparecimento do sujeito”,618 e o abandono do sujeito enquanto linguagem do seu ser e a sua identidade. É necessário ter acesso ao “pensamento que se mantém fora de qualquer subjectividade para dele fazer surgir os limites como vindos do exterior”619 e acolhe-lo no vazio onde ele se instala, espaço em que se desdobra constituindo “o pensamento do exterior”.620 Um “exterior que é mais longínquo que todo o mundo exterior, e por isso mesmo mais próximo que todo o mundo interior”621 inicia o processo de subjectivação sobre a linha do exterior, onde o próximo e o longínquo se dobram e se desdobram. O indivíduo move-se por entre as relações de poder mesmo quando o enfrenta e lhe resiste, saber e poder são inseparáveis, relações microfísicas do poder expandem-se pelo meio de todo o saber, o sujeito não existe, ou seja, não é mais que uma subjectivação da época, perante este cerco das forças estamos nós “condenados a um face a face com o Poder, quer o detenhamos, quer o soframos?”.622 Ou de outro modo interroga-se Foucault: “como transpor a linha, como superar por sua vez as relações de forças?”.623 O que é que pode permitir resistir e esquivar ao poder e virar a vida ou a morte contra o poder?624 Para superar o poder, transpor e vergar a linha de força é necessário dobrar esta força, fazer com que ela afecte a relação a si-próprio. Podem as relações de poder recuperar e sujeitar todos os processos de subjectivação? Não, e não pode porque é impossível travar os fluxos da vida e do mundo e porque também, paradoxalmente, as forças dominantes apenas conseguem mover-se porque existe uma dimensão que lhes foge e escapa, que é incerta e que pode ou não acontecer embora tudo seja previsto para que aconteça de uma determinada forma. É esta falha que permite a criação de processos de subjectivação, que se libertem e se oponham ao poder ou poderes. Sem esta dimensão da subjectivação “não se poderia nem superar o saber nem resistir ao poder”.625 Portanto, o problema das linhas de subjectivação não é o da sociedade de controlo permiti-las ou não – porque não pode nem lhe convém – porque todas as sociedades tiveram os seus modos de subjectivação e as suas linhas de fuga, o problema hoje é descobrir: “quais são os nossos modos de existência, as nossas possibilidades de vida ou os nossos processos de subjectivação”,626 e, o mais importante, descobrir que linhas de fuga nos podem constituir como um si próprio e de que modo assim a nossa força se dobra e se opõe ás forças do saber e do poder.

618 Foucault, Michelt, Ditos e Escritos, v. III (1994), trad. de Inês Barbosa, Rio de Janeiro, Ed. Forense Univeresitária, 2006, p. 222 619 Ibid 620 Ibid 621 Deleuze,Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editora Fim de Século, 2003, p. 135 622 Idem, p. 136 623 Ibid 624 Ibid 625 Idem, p. 137 626 Ibid

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Que resistências opor ao destino que na nossa sociedade “toma a força da relação com o poder, da luta com ou contra ele?”627 “O ponto mais intenso das vidas começa assim que elas chocam com o poder, se debatem com ele”628 a combater ora utilizando as suas forças ora escapando das suas armadilhas. Há vidas sem glória que apenas surgem pelo olhar do poder que as identifica e as vê e as faz falar, “vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las”629 e que as tornou indignas para sempre. Vivemos e falamos dentro de “mistos de saber-poder”630 isto é, mais ou menos encerrados “nas formações do saber e nos dispositivos de poder.”631 Sendo assim só existimos quando nos cruzamos com o poder e provocamos as suas forças. O nosso destino está traçado nas suas linhas de forças. Mas “não haverá nada «para além» do poder?” Deleuze diz-nos que esta questão foi colocada por Foucault que já na Vontade de Saber “destacava pontos de resistência ao poder.” 632 Os pontos de resistência inseridos no interior dos mistos de saber-poder entram em conflito e afrontamento com as linhas de forças do poder dominante. Ou será que o homem que resiste esbarra sempre no poder porque está encerrado em relações de poder que incluem os próprios pontos de resistência? Então neste caso a resistência faz parte deste encerramento e não nos pode tirar dele. “Então como passar para o outro lado…(…) para além do saber-poder?”633 Os pontos de resistência ao poder podem enfrentar e mudar as relações de poder, mas toda esta movimentação é feita ainda dentro da rede do saber-poder. Então, e como escapar para fora? Que forma de resistência é essa? É uma linha que já não é relação de poder, uma linha que não está nem no pensamento nem nas coisas, mas que “está por toda a parte onde o pensamento enfrente qualquer coisa…”634 Portanto continua a ser uma linha de afrontamento, só que desta vez não está incluída nas relações de poder, mas fora delas. Mas não é uma linha abstracta, é efectiva, logo, de certo modo, também se pode dizer que é uma linha de resistência pois que enfrenta qualquer coisa. Que tipo de resistência é esta? Talvez se possa falar de uma resistência infame e de uma resistência que é uma linha de fuga que se converte numa estética de existência. A resistência infame é a resistência do homem moderno quando choca e se debate com o poder num combate de forças para escapar das suas armadilhas. É neste momento que a sua vida é traçada e ele aparece à luz dos mass media que o trazem até nós. São as lendas dos homens de hoje. Eles saem das sombras devido à sua miséria, desgraça ou rotina atrofiada pelas actuais exigências do poder e são lançados para os mass media que disso fazem a sua importância e saber. São pessoas sem glória, simples, comuns, objectivamente enfeudadas ao modo de ver e falar dos processos de subjectivação dominantes que aparecem por instantes no palco da vida por causa de queixas, violências, dramas, roubos, crimes, fome, desemprego, racismo, ou seja, devido a tudo aquilo que confronte e desafie a ordem estabelecida, e é

627 Foucault, Michel, Ditos & Escritos, v. IV (1994), trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária, 2006, p. 208 628 Ibid 629 Idem, p. 210 630 Deleuze,Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editora Fim de Século, 20003, p. 150 631 Ibid 632 Ibid 633 Ibid 634 Deleuze,Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editora Fim de Século, 20003, p. 151

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neste confronto que as vidas anónimas se manifestam. Mas também existe a “falsa infâmia”635 que é a dos homens célebres, que falam e que vivem na luminosidade e no êxito, no sucesso económico ou social, e que são divulgados ou confrontados com o poder dos mass media. Esta fama é uma infâmia, ou seja, esta infâmia “é uma das modalidades da universal fama.”636 Os média tornam-se assim uma espécie de dispositivo de poder para esforçar a dizer as minúsculas e as grandes coisas do quotidiano, para confessar o que não se diz nem se sabe, e rapidamente tudo será apagado. Exaustivamente tudo querem saber e captar para nada escapar. É preciso expor tudo, confessar tudo. Dizer o infímo e o infame. Os mass media são cada vez mais um poder poderoso no interior das sociedades que se substitui e se complementa com as forças policiais. O homem moderno pode em qualquer momento “esbarrar no poder… é a sorte do homem moderno (o homem infame) e que é o poder que nos faz ver e falar”637 O homem de hoje é o homem infame, que é encerrado nas relações de poder, e marcado pelo poder que o traz à luz do poder que o faz ver e falar. Mas o homem com a sua atitude de modernidade não quer limitar-se àquilo que o poder o faz ver e falar e por isso inventa e cria uma resistência que aponte para uma estética de existência. É uma modalidade diferente de resistência, pois agora a linha que vai gerar a estética da existência não está mais ligada nem ao saber nem ao poder. Apenas é uma forma de resistência, porque a estética de existência, é um processo de individuação. Quais são as formas de resistência contemporâneas? Quais são as lutas actuais? Quais são as linhas actuais de resistência? Se o poder hoje investe transversalmente sobre a subjectividade, a resistência terá de ser feita com a transversalidade das lutas.

635 Foucault, Michel, Ditos & Escritos, v. IV (1994), trad. de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária, 2006, p. 210 636 Ibid 637 Deleuze,Gilles, Conversações (1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editora Fim de Século, 20003, p. 150

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CONCLUSÃO

Foucault, interroga e crítica a cultura e a constituição do sujeito no Ocidente. As suas análises genealógicas partem das relações de poder que ele começa a investigar em Vigiar e Punir. E aí, a sua preocupação é nitidamente a aliança entre poder e saber, apoiada no corpo. A sua preocupação é já a constituição do sujeito, e as estratégias postas em funcionamento para usá-lo e aproveitá-lo. E Foucault pretende fazer a história da “verdade” deste sujeito. O pensamento de Foucault e Deleuze estiveram inseridos numa situação histórica efectica, e depois deles as sociedades de certo modo mudaram muito, mas talvez não tanto que não permita analisar os “problemas” com a estratégia das práticas genealógicas e dos conceitos deleuzianos. É a capacidade de movimento dos conceitos de Foucault que permite que eles possam ser utilizados na análise do presente. Aliás, ele mesmo afirmou que não é obrigado a pensar sempre a mesma coisa, assim como sempre desejou que os seus leitores partissem dos seus conceitos para recriarem novas forças. Pelo facto, de Foucault se opor ao tempo da história dos historiadores e, privilegiar antes, a problematização, é que torna possível hoje na contemporaneidade pensar com os seus conceitos. Mas sobretudo o que eu tentei reter em Foucault e Deleuze foram a sua capacidade crítica, e o seu apelo para práticas críticas, o que implica utilizar as forças da resistência, pois só deste modo o homem se pode constituir como processo de individuação e ético. Um dos temas nucleares de Foucault é a produção ou constituição dos sujeitos. O sujeito, tem um duplo sentido, por um lado, sujeito que é submetido a alguém através da dependência e do controlo, e sujeito preso na sua própria identidade bem determinada, sabida e conhecida. Este trabalho pretendeu mostrar, ou por em jogo aquilo que nós somos como sujeitos para adquirirmos um conhecimento de nós próprios não através da descoberta, mas, precisamente, recusando aquilo que somos. Era esta a proposta e o problema de Foucault. E recusarmos aquilo que somos é pensarmos o sujeito, criando as suas linhas de subjectivação. E esta questão é um problema político, ético e social, daí que para inverter ou transformar este estado de forças é necessário o indivíduo recusar aquilo que é, através da sua capacidade crítica e de resistência, e criar ou inventar novas subjectividades, novos modos de individuação.

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Foucault chegou a afirmar que não era a questão do poder, mas sim a do sujeito que constituía a base das suas pesquisas. Portanto, de certo modo, o projecto de Foucault era o de compreender como o homem se transforma em sujeito e como ele pode criar novos modos de subjectivação e de individuação. E para isso ele tem de recorrer às práticas genealógicas, à autonomia crítica do pensamento e às forças de resistência para recusar aquilo que ele é, e assim recriar-se subjectivamente com outros modos de subjectivação, ou então, iniciar um processo de individuação, uma estética de existência, uma obra de arte.

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