poesia bacoca mcn

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  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    1/28

    Manuel de Castro Nunes

    Exerccios complementares

    Poesia bacoca

    2012

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    2/28

    Sob o efeito dos etlicos vapores do vinho, dizem, ter-se- escrito a mais consagrada

    poesia.

    Sendo pois Baco o mais consagrado artfice da arte potica.

    Disso convicto, durante um ano fui assduo entreguei-me dura prova das bacanais.

    O resultado foi constatar que toda a poesia bacoca.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    3/28

    O portugus compulsivo.

    Tenho medo de sorrir,

    tenho medo de chorar,fui a Alccer Quibire vim perder-me no mar.

    Tenho medo de sentirtudo em que estou a pensar,tenho medo de fugir,tenho medo de ficar.

    Tenho medo de me vir,tenho medo de te amar,tenho medo de ferir.

    Tenho medo de roubar,mas roubo para no ira um asilo parar.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    4/28

    Cruzei com um pobre na rua.

    Cruzei com um pobre na rua,quando o vi, roubei-te um beijo.Quando te vi, vinhas nua,roubei ao pobre o desejo.

    V o pobre o que no vejo,bem pode ter-te por sua,pois h no pobre um lampejoque v a verdade crua.

    Enquanto me perco num beijo,h sempre o pobre na ruaque me rouba o meu desejo.

    Pois que tudo o que no vejo,porque to s te vi nua,v o pobre num lampejo.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    5/28

    Ora me enleias no cantocom que me vens em favor,ora me encharcas no prantocomo que me feres, amor.

    Ora me causas espanto,ora me espantas com dor,ora me vens com encanto,ora te vais com ardor.

    Agora me amas tanto,com tanto, tanto calor,com a voz em tal quebranto,

    que, quando o amor se for,nem sentirei desencantode me iludir por amor.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    6/28

    O olhar qu'em ti descansopor no te poder tocar o que de ti alcanopor no poder alcanar.

    Amarga forma d'amar,amor to doc'e to manso,que por no poder mostrarse fica neste descanso.

    E s' tudo o que alcanoo teu doc'e brev'olhar,de te olhar no me canso.

    De poder assim t'amarj em mim no h descanso.Puder'assim alcanar!

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    7/28

    Estava ali, no ocaso,tu no romper da aurora,

    se te toquei, foi acaso,s uma breve demora.

    Pontas d'um ngulo raso,onde antes e agora,so agor'o mesmo caso,mesmo dia, mesma hora.

    A demora do meu passono teu passo se demora,pois na demora t'enlao.

    E tu irrompes n'auroraenquanto me despedao.Quem se engana no chora.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    8/28

    Sada maneira de escrneo.

    Loas que cantaste minha amada,serva que foste de seu segredo,no querias agora mais nadado que sepult-la em degredo.

    Adormeceste tarde por nadae por nada despertars cedo.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    9/28

    Foste marinheiro, soldado,foste ordenana e capito,vales dez reis de mel coado,

    coado no vales tosto.

    E o mundo foi o teu fadoe tu do mundo a danao,o fado teu pau mandado.e tu a sua devoo.

    Foste marinheiro, coitado.A tbua de salvao.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    10/28

    s a chuva, o vento e o sol,guas cantantes do ribeiro,a maresia e o rouxinol,o ocaso. o instante primeiro.

    D re mi f, d r mi f sol,l si, por aqui vou caminheiro.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    11/28

    Tanta vez que j particom cada um que partiu,que j ando por aquicomo as guas de um rio.

    Passei to breve por tique nem o vento me viu.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    12/28

    Dospelho, quando me vi,sabendo que no me viu,

    porta ento bati.Mas a porta no sabriu.

    Do outro lado da porta,no lado que nunca vi,h algo que me conforta

    jamais ter visto de ti.

    ospelho verdadeiro,embora seja bem tortaa imagem que, matreiro,

    me vem trazer mo mortaque no plano derradeiroaferrolha tua porta.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    13/28

    Frio teu calor meu,calor teu um desvario.Quando a pele aqueceu

    o corao sentiu frio.

    Aqueces, eu arrepio.E so corao ardeuna pele senti eu frio.Calor teu frio meu.

    O inverno maqueceue vai-me gelar o estiocom o frio que te deu.

    Caiu lume no pavio,logo gelo sacendeu,logo ganhou fogo frio.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    14/28

    E no tendo o poerta mais para dizer, lanou ao vento as palavras, que asdispersou em nexos remotos.E assim reacendeu das cinzas a poesia.

    To inteligvel quanto as palavras.

    Do lado de l do espelho, a nica partcula de ti que subsiste o teu nome,desfragmentado de ti.Tudo o resto embateu na opacidade.O nome sempre o rasto e o resto de uma imagem.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    15/28

    Onde haja luz, h corvos para a sombrearem!Quando troveja, rasgado o cu por um relmpago, levantam os corvos, em bandos,

    dos milheirais, simulando o trovo com o grasnar.Estoura o trovo e recolhem-se em silncio.Nada mete mais aterroriza a uma sombra do que outra sombra.Parecendo ser de luz, continua o mundo a ser de corvos que a sombreiam.As cores so as sombras da luz nos corpos slidos. Nos lquidos no h cor, nemnos gases, se no tiverem em suspenso ou soluo partculas slidas.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    16/28

    Aquece o sol ao frio, a massa lquida e slida do corpo toda se abrasa.Deixas de ser lonjura e ideia, para seres pele e temperatura, impulso e textura.O teu corpo de luz desoculta-se em frente dos meus olhos. s todo o horizontealcanvel.

    Para qu reprimir? Meus lbios perdem-se nas coroas tensas dos morros da tuafeminilidade, mal dissimulados e erguidos sobre o vale do externo. E mergulho noteu ventre, sondando os mistrios interiores da fornalha vulcnica.Felizmente, talvez, no ests aqui seno na imagem que resgato. Se estivessespoderias ser contaminada.Mas a sbita distenso de todos os meus msculos, quando toda a pulso enrgicase derrama em ti, a confirmao de que a imagem um mdium to habilitadoquanto a materialidade. Porque a nsia de ti tambm emulao.Ser isto o pecado ou o reflexo dele no espelho?Nada h de mais alcanado do que o inalcanvel.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    17/28

    Sendo pois um risca vida,maior risco a morte,a vida tens tu vividaat qua morte ta corte.

    Pior risco, minha vida, a nem vida nem morteque por me seres queridame veio calhar em sorte.

    Que a morte me conforte,ou roubada sejaa vidaque tanto me rouba morte.

    Maior risc pois a vidaquando um risca morte.Maior riscs tu, querida.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    18/28

    Possescrever coisas tensasartimanhas, alusesvazias, mas muito densas,de partir os coraes.

    Possescrever o que pensas,ou at o que supes.Possat lavrar-tas crenas,semear desiluses.

    Possescrever coisas densas,possarruinar razese nutrir as mal querenas.

    Possescrever pra me rir,pra semear desavenas,ou to s pra me punir.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    19/28

    Em frente, no cais, uma floresta de mastro aprumados, que uma suave ecadenciada ondulao faz emaranhar a intervalos regulares, amarrando-os unsnos outros.Bandos de gaivotas rompem deste matagal vivo, sempre que um frmito assalta a

    alma.S esta cadncia e os meus dedos que tamborilam no tampo da secretria,enquanto espero que me chegues escrita, me assinalam que continuo vivo.

    - Que recordao guardas da tua vida de marinheiro?

    - Da minha vida de marinheiro?O tampo da minha secretria onde o teu retrato navega, Amor.Na minha vida de marinheiro, nada mais navega sobre o tampo da minhasecretria seno o teu retrato.A minha vida de marinheiro a espera por ti, no tampo da minha secretria.

    De Elmano dArgus a Fernando Pessoa.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    20/28

    Antnio Damssio, o De anima e Catulo.

    Quem roubalmas, no ganha coraes.Rouba tudo, deixa quase nada,quebra os cadeados aos portesmas deixa sempre a porta fechada.

    Roubas-ma alma, ganhas iluses.

    Senhora de ti, pois, mas mal amada,queres meter-me a alma, aos empurres,dentro da porta que tenho fechada.

    Quem ganha almas, vai perder razes,quem ganha a razo fica sem nada.Roubas almas, esbanjas emoes.

    Dizem quas almas no vo nos caixese fogem de ti quandests deitada.No teu corpete faltam dois botes.

    Odeio e amo. Porqu? No sei. Sei porm como me torturo.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    21/28

    Doca mortAmor, amarga vida.To amargo quo docamorse te tiver j por despedidaquando da mort vida me for.

    Sem vida me foste cumprida,cumprido me vou mortAmor.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    22/28

    Por teu livre pensamento,por teu cativo pensar,pra meu saudoso tormentopara teu livre penar.

    Veio de noitera ventoque vinhaoitar o mar.Enquanteu me lamento,ouao longo teu cantar.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    23/28

    A rubra rosa gritavade sede no roseiral.

    Agora triste choravaentre pingos de cristal.

    Da sede, o que ficavaera orvalho matinal.E a rosa se afogavanum derrame lacrimal.

    O pranto que derramavaera uma gua lustralque at sede queimava.

    De fogo um mananciala sede lhe afagava.A sede no vem por mal.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    24/28

    Se me pudesse, Amor,reduzir ao teu regao!Uma pausa de torpor,outra pausa dembarao.

    Como so travo de vinho,revertendento taa,reencontrasso caminhoque da mo boca passa.

    Como se, Amor, o bagao,que do vinho a flore do sabor o trao,

    viesse ganhar ardorem etlico compassodo vinho com seu sabor.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    25/28

    E as horas passame os dias faltame de noite caamas horas que saltam.

    anjo das trevas,minha companhia!Ai, porque me levasas sombras do dia?

    E passam as horase teu nomadio.porque me demorasnas horas a fio.

    anjo da morteque me ds a vida!Ds-mento por sortever-te de fugida?

    Ver-te de fugidanos dias que faltam,ter-te por perdidanas horas que saltam.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    26/28

    Tudo o que me imediato,tudo o que me imperativo,tudo aquilo a que me ato,tudo o que me obsessivo.

    Tudo o que vendo por barato,tudo o que me fica cativo,tanta ordem como desacato,um anda morto, o outro vivo.

    Se na vida ando por contratoe se por tal e tal vou furtivoda vida com que a morte mato,

    nada me mais imperativodo que o lao que no desatoe com que a morte me traz vivo.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    27/28

    Sobre Damsio, ainda. E o De anima.

    - Tudo o que vs um desenho.

    - Como? Um desenho?

    - Tudo o que os teus olhos vem, fora de ti, so os teus olhos que desenham.

    - Sim, ters razo, talvez. Excepto as sombras.

    - As sombras?

    - Quando sobreponho o meu ao teu desenho, o trao coincide, o que no coincideso as sombras. O trao teu, mas as sombras o sol quem as desenha.

    - Talvez por isso a nica coisa que entre mim e ti coincide seja o trao.

    - Dizendo de outra forma, nunca deixars de ser o meu sol.

  • 7/29/2019 Poesia Bacoca MCN

    28/28

    Garsa! Se s toda a graaque da graa vem garsa,

    porque razo no me caaa graa da tua farsa?

    Garsa que me vens altiva,de teus amores sobranceira,mais do que dons cativade tua graaltaneira.

    Que o amor no me engananem o engano me ama.Nem o vento quer a canaquando por seu nome chama.