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POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS E A
CENTRALIDADE DA MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA NO ENSINO DE HISTÓRIA E
CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA
Tanise Müller Ramos1
Colégio de Aplicação/UFRGS
A partir de minha Tese de Doutorado, concluída em 2015 pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa
“Estudos Culturais em Educação”2, pude construir algumas análises a respeito da centralidade
que vem sendo conferida à mediação pedagógica quando o assunto em debate se refere ao
ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no contexto educacional contemporâneo.
Em meio às análises produzidas durante a tese, construí argumentos de que temos hoje
políticas educacionais que legislam em favor de uma educação das relações etnicorraciais na
escola, colocando em foco as práticas pedagógicas e o trabalho docente como agentes de
efetivação dessa proposta.
Em outras palavras, as políticas de educação das relações etnicorraciais tem como
um de seus efeitos conferir uma centralidade à mediação pedagógica, no sentido de colocar as
práticas docentes como responsáveis pela inclusão da história e cultura negra nas rotinas
escolares. Tal constatação pode nos levar à compreensão do potencial de produtividade da
mediação pedagógica nos processos de valorização da diversidade, de educação das relações
etnicorraciais e de promoção da igualdade etnicorracial nas escolas.
Dentre as políticas educacionais geradoras dessa proposta, destaquei a lei
10.639/2003, a qual alterou o artigo 24 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ao
tornar obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na Educação Básica
1 Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento de Humanidades do Colégio de Aplicação da UFRGS. E-mail: [email protected] 2 RAMOS, Tanise Müller. Nossos antepassados eram africanos, então somos negros também!: as intervenções pedagógicas na promoção das relações etnicorraciais e na constituição das identidades discentes. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Educação. Porto Alegre, 2015.
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das escolas públicas e particulares de abrangência nacional. Também considerei outro
documento, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais
e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, promulgadas em 2004 como
decorrências da lei 10.639. Considero que ambas, a lei e as diretrizes, podem ser pensadas em
sua produtividade de desencadear ações pedagógicas numa perspectiva antirracista e de
promoção da educação das relações etnicorraciais. Assim, considero que essa nova
abordagem legal poderia ser pensada também como a possibilidade de se criar um novo
cenário educacional, pois tais políticas vem fazendo da escola uma estratégia de combate ao
preconceito de ordem etnicorracial, preconceito este tão presente nas relações historicamente
travadas entre os sujeitos de diferentes origens e pertencimentos etnicorraciais.
Um novo contexto legal produzindo um novo cenário educacional: a educação das
relações etnicorraciais
Partindo dos pressupostos colocados pela lei e pelas diretrizes que legislam sobre
o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na escola, pude analisar como a
mediação pedagógica ocupa um lugar de relevância na educação das relações etnicorraciais,
uma vez que o combate ao racismo e a promoção da igualdade etnicorracial começaram a ser
pensados para além de um direito social e também como uma questão de ordem pedagógica,
em que o trabalho docente vem sendo visto como agente responsável pela efetivação de tal
proposta.
Tais legislações, desse modo, nos levam a enxergar um cenário de (re) adequação
da escola contemporânea aos sujeitos que se encontram presentes nessa instituição, focando
em especial a população negra brasileira, hoje assim autodeclarada em mais de 50% do total
populacional brasileiro segundo os últimos censos demográficos. Em outras palavras, tais
legislações permitem construir um projeto de educação das relações etnicorraciais e de
promoção da igualdade etnicorracial, colocando a mediação pedagógica no centro desse
processo. É preciso, pois, intervir nas práticas sociais, inclusive as pedagógicas, que regulam
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as relações entre os sujeitos, pensando e problematizando o racismo construído em meio a tais
relações.
Partindo das produções de alguns estudiosos sobre a pós-modernidade, dentre os
quais se encontra Zygmunt Bauman (2003), é possível afirmar que a escola ocidental
contemporânea vive hoje um contexto de mal-estar, em que suas práticas, saberes, tempos e
espaços se veem diante de um profundo momento de questionamentos e incertezas,
necessitando de movimentos de ressignificação capazes de adequar essa instituição aos
tempos e sujeitos pós-modernos. Nesse cenário, parece as políticas ocupar um papel central,
no sentido de propor – e talvez tornar obrigatória – a inclusão de práticas até então ausentes
na escola.
Assim, é possível afirmar que um novo contexto legal vem produzindo um novo
contexto educacional, que pode ser percebido através de algumas práticas pedagógicas
potencialmente presentes nas escolas contemporâneas, a partir da criação de certas políticas,
como é a lei 10.639. Partindo dessas considerações, apresento a seguir algumas categorias que
permitem pensar como essas novas práticas vem se materializando nas rotinas escolares
atuais, inaugurando, em muitas instituições, um trabalho de educação das relações
etnicorraciais3:
a) Práticas pedagógicas de afirmação da história e cultura africana e afro-
brasileira: as legislações promotoras da educação das relações etnicorraciais, partindo da
constatação da situação histórica de invisibilidade, silenciamento e não-reconhecimento das
culturas negras na escola, estão produzindo no cotidiano da instituição práticas pedagógicas
capazes de problematizar esse cenário, reposicionando os sujeitos em uma perspectiva de
valorização e de afirmação de suas histórias e culturas negras. Isso significa que a lei, a partir
da identificação do cenário de ausência da história e cultura negra na escola, inaugura o
trabalho pedagógico de inclusão desse tema, através da obrigatoriedade do ensino de história
e cultura africana e afro-brasileira. E tal abordagem começa a se fazer presente através da
readequação e reorientação das práticas pedagógicas, o que pode ser percebido na escola por
3 É importante considerar que essas categorias analíticas foram organizadas apenas para facilitar a discussão sobre o tema. Referem-se a processos que, no cotidiano escolar, parecem compor uma relação de interdependência, onde um produz as condições de possibilidade para a emergência de outros.
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meio da seleção do material didático, da escolha de datas significativas a serem comemoradas,
da eleição de personagens e personalidades negras a serem apresentadas em um lugar de
protagonismo (na história, nas artes, nas letras, na política), da seleção de temas pertinentes
para a formação de professores e para a discussão em reuniões de planejamento, dentre outras
ações. Observo ainda que essas novas práticas estão sendo capazes de potencializar processos
de identificação das crianças e jovens com suas ancestralidades, com destaque para as
ancestralidades negras africanas. A história e cultura negra, dessa forma, saem de um lugar de
ausência, negativização, silenciamento e inferioridade para ocuparem uma posição afirmativa
de protagonismo e autoria na formação histórico-cultural-social brasileira.
b) Práticas pedagógicas de cotidianização de repertórios de história e cultura
negra: outro efeito das políticas de educação das relações etnicorraciais vem sendo observado
através da busca pela inserção de repertórios afirmativos da história e cultura negra nas
rotinas escolares, o que pode ser traduzido na construção de material pedagógico de certa
forma inovador para a história da escola moderna ocidental. Assim, livros, bonecos, jogos,
documentários, cartazes que visibilizam a presença do negro começam a compor o cotidiano
escolar, a fim de contrapor os modelos historicamente eurocentrados, que durante tanto tempo
vinham constituindo o conhecimento considerado válido na escola. Trata-se, portanto, de uma
forma de se promover a visibilidade e o reconhecimento da história e cultura africana e afro-
brasileira, reconhecendo-as como matrizes formadoras da sociedade brasileira. Também
podemos destacar, dentre tais repertórios, a seleção de temáticas relacionadas à história e
cultura negra, além do cuidado tomado ao se pensar a composição da presença de
personalidades negras no cotidiano escolar, dentre os quais figuram professores e
funcionários, bem como convidados externos (palestrantes, oficineiros, ministrantes, etc.).
c) Práticas pedagógicas de construção de uma ambiência etnicorracial: a
partir das políticas de educação das relações etnicorraciais, é possível afirmar que a inclusão
da história e cultura africana e afro-brasileira no ensino acaba produzindo nas escolas um
trabalho de construção de uma ambiência etnicorracial. Essa ambiência se traduz na criação
de referenciais afirmativos, em que os sujeitos poderão encontrar, no cotidiano escolar,
repertórios com os quais se identificarão em suas ascendências negras, a citar materiais e
temáticas, dentre outros. Torna-se assim um desafio inserir tais repertórios no dia-a-dia
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escolar com o intuito de proporcionar práticas que não contemplem apenas referenciais de
história e cultura europeus, dentre tantas possibilidades.
O que guia esse trabalho de criação de uma ambiência etnicorracial é a
emergência de um conceito novo para a educação: as africanidades. Para Petronilha Beatriz
Gonçalves e Silva (2005), as africanidades brasileiras se referem aos “modos de ser, de viver,
de organizar suas lutas, próprios dos negros brasileiros, e de outro lado, às marcas da cultura
africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia a
dia” (p. 155). Africanidades dizem respeito, portanto, à influência africana nas produções
culturais no Brasil, constituindo-se em valores, formas de vida, de trabalho, tradições e
demais manifestações empreendidas pelos descendentes de africanos e incorporadas pela
sociedade brasileira em seus diferentes grupos etnicorraciais. Ainda segundo a autora:
As Africanidades Brasileiras vêm sendo elaboradas há quase cinco
séculos, na medida em que os africanos escravizados e seus
descendentes, ao participar da construção da nação brasileira, vão
deixando nos outros grupos étnicos com que convivem suas
influências e, ao mesmo tempo, recebem e incorporam as destes.
Portanto, estudar as Africanidades Brasileiras significa tomar
conhecimento, observar, analisar um jeito peculiar de ver a vida, o
mundo, o trabalho, de conviver e de lutar pela dignidade própria, bem
como pela de todos descendentes de africanos, mais ainda de todos
que a sociedade marginaliza. Significa também conhecer e
compreender os trabalhos e criatividade dos africanos e de seus
descendentes no Brasil, e de situar tais produções na construção da
nação brasileira. (SILVA, 2005, p. 156).
Para a autora, as africanidades brasileiras estariam compondo hoje uma pedagogia
antirracista, por gerarem práticas pedagógicas que “permitam aprender e respeitar as
expressões culturais negras que, juntamente com outras de diferentes raízes étnicas, compõem
a história e a vida de nosso país” (SILVA, 2005, p. 157). Desse modo, as africanidades
poderiam ser reconhecidas como peça-chave para subsidiar ações pedagógicas potentes para
se criar uma ambiência etnicorracial no espaço da sala de aula, produzindo nos alunos negros,
mas não só entre estes, a sua identificação também como afrodescendentes4. Como refere
Stuart Hall (1998), as identidades culturais são construções contingentes, portanto, sujeitas a
4 Para ampliar o entendimento sobre essas questões, sugiro a leitura de outras produções em que já pude
discorrer sobre o conceito de africanidades (RAMOS, 2014).
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deslocamentos e reconfigurações dependentes dos diferentes contextos sociais, o que leva a
pensar que as identidades negras dos alunos também podem ser construídas. Para Hall (2009),
a identidade negra é uma situação, que é construída em função dos múltiplos contextos
culturais, nos quais operam condições de classe, gênero, sexualidade, raça, etnia e
nacionalidade, dentre outras. Acredito, assim, que a escola funciona como um contexto
cultural produtor de identidades, dentre as quais estão as identidades negras.
Com base nessas categorias analíticas, podemos afirmar que a escola
contemporânea se vê diante da possibilidade de construir práticas pedagógicas inovadoras no
sentido de atuar como um espaço de contraposição ao racismo. Considerando o contexto
histórico vivido hoje, marcado pela crescente autoafirmação da população brasileira enquanto
negra e parda, juntamente com a ação dos movimentos sociais no campo político em busca de
novas legislações que efetivem seus direitos básicos, a citar os Movimentos Negros, a escola
parece ser chamada a inovar, no sentido de implementar práticas que sejam potentes para a
garantia da igualdade etnicorracial entre os sujeitos que se fazem presente em sua
abrangência. Significa, em outras palavras, buscar condições de permanência e sucesso
escolar de todos os alunos, a partir do reconhecimento e valorização de suas origens,
considerando que historicamente os alunos pardos e negros vêm sendo marcados como
maioria nos índices de reprovação, evasão e fracasso escolar.
Uma prática pedagógica reflexiva a respeito dessas questões é potente para
considerar que a ausência de elementos africanos e afro-brasileiros na sala de aula produz o
desconhecimento, o silenciamento e, ainda, a negativização da história e cultura negra,
excluindo e marginalizando determinados sujeitos. Uma prática pedagógica atenta a esses
pressupostos é, portanto, problematizadora, mas também propositiva, pois se preocupa com a
inclusão das africanidades na construção de uma ambiência etnicorracial, o que passa pela
cotidianização de repertórios afirmativos de história e cultura negra. E é sempre relevante
lembrar que este trabalho emergiu com maior relevância - e hoje encontra respaldo - nas
políticas promotoras da educação das relações etnicorraciais.
Práticas pedagógicas de afirmação da história e cultura africana e afro-brasileira,
práticas pedagógicas de cotidianização de repertórios negros e práticas pedagógicas de
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construção de uma ambiência etnicorracial na escola, desse modo, implicam em descolonizar
o que historicamente fora erigido nessa instituição: os saberes considerados válidos, os ajustes
espaço-temporais, a filosofia, as concepções, as metas e objetivos, a epistemologia do
conhecimento, dentre outros. Implicam também em se pensar o tema da formação de
professores, para que se possa discutir sobre as questões aqui apresentadas e para que se possa
implementar ações capazes de operacionalizar a lei 10.639. Isso tudo se torna relevante para
reorganizar a escola, produzindo – e permitindo – novas formas de os sujeitos se
posicionarem em relação a suas identidades etnicorraciais.
Referidas essas análises, passo a seguir a apresentar algumas cenas extraídas do
diário de campo que fui construindo ao longo da pesquisa de doutorado, quando pude
interagir com pequenos grupos de alunos através de práticas pedagógicas que tinham como
foco implementar a lei 10.639 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de
História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.
A centralidade da mediação pedagógica no ensino de história e cultura africana e afro-
brasileira
Considerando as produções de estudiosos do campo dos Estudos Culturais, dentre
os quais destaco Hall, podemos reconhecer a centralidade ocupada pela cultura nos processos
de produção de identidades. Diante dessa perspectiva, entendo a escola e suas ações
pedagógicas enquanto práticas culturais, potentes para a produção de identidades. Assim,
partindo do conceito de “centralidade da cultura” construído por Hall (1997), afirmo que
existe uma centralidade das práticas pedagógicas quando o assunto em questão são as
políticas de educação das relações etnicorraciais.
Isso porque a proposta de educação das relações etnicorraciais, estabelecida pelas
políticas educacionais atuais, vem colocando a mediação pedagógica no centro do problema,
desencadeando um movimento de construção de uma ambiência etnicorracial na escola,
fazendo com que as africanidades sejam afirmadas e cotidianizadas. Orientada por essas
considerações, em minha pesquisa de doutorado, organizei encontros semanais com pequenos
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grupos de alunos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, que tinham entre 6 e 12 anos,
numa escola pública situada em Porto Alegre, na intenção de colocá-los em contato com
repertórios de histórias e culturas negras, observando e analisando suas reações e
posicionamentos. Tais encontros, chamados de “oficinas”, foram descritos e analisados na
pesquisa, permitindo-me reforçar a tese de que as práticas pedagógicas possuem uma
centralidade quando se discute a implementação de políticas de educação das relações
etnicorraciais.
Nas oficinas desenvolvidas ao longo da investigação5, pude perceber essa
centralidade, através dos primeiros encontros das duas edições em que a proposta foi
oferecida. Ao chegarem aos primeiros encontros, as crianças já denotavam falas e posturas
que demonstravam o quanto suas trajetórias de vida e, especialmente, suas trajetórias
escolares haviam sido marcadas predominantemente por referenciais eurocentrados, em que
os sujeitos são produzidos em meio a narrativas de ausências da história e cultura africana e
afro-brasileira, aqui entendidas como as falas e práticas em que não se percebe a presença de
referenciais negros, produzindo preconceitos sobre tais temas, como pode ser visto no trecho
que segue:
Ao ingressarem na sala de aula do primeiro encontro, as crianças se mostraram bastante agitadas,
falando que queriam estudar a África para conhecer melhor o leão e os outros animais ferozes.
Perguntei como sabiam que na África tinha leão, ao que responderam terem visto no programa de TV
Discovery Channel. Uma das crianças observou que havia atrás de mim um mapa do continente em
questão e aproximou-se para ver melhor. Ficou eufórica ao ler a palavra “Egito”, referindo “eu não
sabia que o Egito ficava perto da África.” As demais crianças concordaram, dizendo que nem sabiam
onde ficava o Egito, ou ainda “o que é o Egito”. Referi que o Egito é um país que pertence à África,
quando um aluno falou: “Então é no Egito que nós vamos encontrar leão, macaco e outros animais! E
múmia também!” (Diário de Campo, 17/04/2012)
Tal excerto, ao evidenciar talvez o primeiro contato dos alunos com o
reconhecimento, a visibilidade e a afirmação das africanidades na escola, referenda a hipótese
inicial que justificou a minha escolha por desenvolver tal trabalho: os posicionamentos
5 As oficinas foram intituladas “Africanidades: África em todas as idades”, sendo oferecidas em duas edições
semestrais no ano de 2012.
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discentes de desconhecimento e negativização das africanidades denotam a ausência de uma
ação pedagógica sobre o tema, dentre outras causas. Em outras palavras, o desconhecimento
da África, tão presente no cotidiano escolar, é produzido e fortalecido através das práticas
pedagógicas etnocentradas que tornam ausentes as narrativas negras, inviabilizando a sua
legitimidade enquanto elemento constituinte das identidades dos sujeitos. O racismo
institucional, deste modo, é entendido também como fruto de uma opção pedagógica, pois
algumas práticas foram visibilizadas em detrimento de outras ao longo da história da escola
moderna ocidental. O racismo, pois, é resultado da ausência de uma ambiência etnicorracial
capaz de visibilizar a diversidade, pois centrada em elementos euro e norte centrados.
Ao longo das oficinas, assim, argumentei que as políticas de educação das
relações etnicorraciais problematizam a ausência das africanidades na escola, propondo a
inclusão de referenciais negros no cotidiano escolar. Estamos, portanto, diante de um
problema pedagógico, uma vez que a lei 10.639 torna obrigatório um tema que necessita de
ação pedagógica para acontecer.
Podemos perceber, portanto, que uma prática pedagógica marcada pela ausência
da história e cultura africana e afro-brasileira produz nos alunos posicionamentos de não-
reconhecimento de suas ancestralidades africanas, o que se torna um dos alvos de trabalho
pedagógico instituído pela lei 10.639. A cena que segue representa essa constatação:
T6.: O que vocês sabem sobre a África?
Aluna 1.: Ah, é um lugar muito bonito, que tem muitos bichos, como leão, elefante e girafa.
T.: E não tem pessoas lá na África?
Aluna 1.: Deve ter um moço que fica por lá para dar comida aos animais...
Aluno 2: Esse moço é um cowboy [começando a desenhar o cowboy].
T.: Mas, tem casas e escolas?
Aluno 3: Não tem nada lá, nem shopping e nem escada rolante. Só floresta.
T.: E onde vivem as pessoas?
Aluno 3: Deve ser em casas tipo de índio... [Diário de Campo, 17/04/2012]
É importante ressaltar que as práticas pedagógicas marcadas pela ausência acerca
das africanidades são também efeitos de práticas culturais da sociedade atual, nas quais o
negro está, em geral, silenciado e inferiorizado em seu protagonismo histórico e cultural,
6 T é a inicial do nome da pesquisadora Tanise.
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embora muitos elementos de matriz africana estejam presentes em nosso cotidiano,
materializando-se através das artes, da culinária, do vocabulário, etc. Quando apresentamos
outras práticas na escola, marcadas pela visibilidade, reconhecimento e valorização do negro,
observamos a ocorrência de outros efeitos, como se pode contemplar na seguinte cena
ocorrida nos últimos encontros da oficina proposta:
[...] Abri o livro “Crianças como Você”7, na sessão em que aparecem várias crianças africanas, de
diferentes países. [...] Quando abri o livro, a primeira reação das crianças foi dizer que aquelas
crianças africanas eram “muito feias”, “carecas”, “pobres”, “mal vestidas”, mas à medida em que fui
folheando o livro, e os alunos foram vendo crianças africanas muito parecidas com as brasileiras, suas
opiniões foram mudando. Disseram que não sabiam que elas eram “tão parecidas com a gente”. Fui,
então, problematizando as suas falas, em que as crianças africanas eram chamadas de “feias”.
Expliquei que uma das meninas que aparecia no livro usava o cabelo bem curto, quase raspado, porque
ela era moçambicana, de uma região onde o acesso à água potável e encanada era bem escasso, onde a
temperatura alcançava os 46ºC. Assim, o cabelo curto, mesmo para meninas e mulheres, é justificado
como uma questão de praticidade e higiene. Depois dessa minha explicação, percebi que as crianças
ficaram sensibilizadas. Um aluno, então, disse que não considerava essa menina “feia”. Li um pouco
de informações que o livro trazia, falando sobre como eram as famílias dessas crianças, o que comiam,
como e quando iam à escola, quem eram seus irmãos, do que brincavam, etc. Os alunos foram
repensando suas falas a respeito da “feiura” dessas crianças africanas. Um aluno chegou a afirmar:
“Elas [crianças africanas] não são feias. Elas são diferentes.” (Diário de Campo, 30/10/2012 - grifo
meu).
Desse modo, torna-se necessário considerar, mais uma vez, a relevância das
africanidades na escola, as quais se fazem indispensáveis quando se intenciona o rompimento
das narrativas de ausências de outras histórias e culturas além das europeias, a fim de se
propiciar a produção de práticas pedagógicas comprometidas com a construção de uma
ambiência escolar atenta à educação das relações etnicorraciais. Em outras palavras, uma
ambiência na escola marcada pela presença das africanidades parece ser uma das estratégias
para contrapor às práticas que corroboram para as ausências das histórias e culturas negras.
Significa, portanto, criar condições para produzir a identificação de todos sujeitos com suas
ancestralidades, por meio da criação de repertórios pedagógicos que conferem sentido às
histórias e culturas de todos os povos no Brasil, inclusive o negro. Interessante que tal
proposta requer também a marcação de um lugar de protagonismo para a população negra,
7 BARNABAS; KINDERSLEY. Crianças como você. São Paulo: Ática, 2006 – 6ª edição.
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que passa a ser tomada como um outro modelo cultural para a construção das identidades dos
alunos, produzindo outros processos identitários.
É possível perceber assim o potencial que possui a mediação pedagógica
intencionalmente planejada para a educação das relações etnicorraciais, em que o cotidiano
escolar acaba por intervir sobre os processos de identificação dos sujeitos, os quais estariam
nesse contexto cada vez mais se posicionando de forma antirracista. Poderia ser mais um dos
efeitos das políticas de educação das relações etnicorraciais, portanto, a criação de um lugar
de protagonismo para crianças, jovens e demais estudantes, para quem a mediação pedagógica
é pensada numa proposta de intervenção para educar as relações entre sujeitos numa
perspectiva etnicorracial.
Considerações finais
Penso ter sido possível apresentar brevemente aqui a tese de que a proposta de
educação das relações etnicorraciais estipulada pelas novas legislações trouxe uma importante
demanda pedagógica, que é a de criar práticas capazes de incluir as histórias e culturas negras
no cotidiano escolar. Em outras palavras, o estudo permite afirmar que a lei 10.639, aliada a
outros documentos legais, coloca a mediação pedagógica num lugar de centralidade para o
reconhecimento e valorização da população negra na história, na cultura e, assim, na escola.
Deste modo, a inserção das africanidades no contexto escolar pode ser tomada
como uma ação pedagógica para a promoção da igualdade etnicorracial, ao romper com o
silenciamento, a invisibilidade e o não-reconhecimento das histórias e culturas negras que nos
compõem enquanto brasileiros. Tais análises nos levam a considerar a relevância das práticas
pedagógicas para a desconstrução do racismo na escola, pois a inclusão de tais práticas passa
pela construção de ações e propostas afirmativas a respeito da população negra.
Tais considerações, juntamente com minha ação enquanto professora e
pesquisadora, permitem-me afirmar que uma prática pedagógica planejada e propositiva a
partir da história e cultura negra poderia servir de contraponto às práticas escolares marcadas
pela ausência de tais elementos enquanto constituintes dos sujeitos em seus processos de
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escolarização. Assim, o racismo presente na cultura brasileira e que também se faz presente
no cotidiano escolar, perpetuando modelos excludentes e produtores de desigualdades,
poderia ser problematizado por meio do planejamento de práticas que aqui são reconhecidas
como inovadoras, no sentido de potencializarem na escola contemporânea outras formas de
conhecer, saber e sentir dos sujeitos. Tal movimento, por conseguinte, terminaria por gerar
efeitos sobre os processos de identificação dos sujeitos em relação às suas ancestralidades,
valorizando e afirmando as ancestralidades africanas.
É daí que afirmo a relevância das africanidades enquanto estratégias para a
construção de práticas pedagógicas atentas à lei 10.639, no sentido de ampliar o conhecimento
das histórias e culturas brasileiras, com destaque para a participação negra na base formadora
de nossa ancestralidade e, portanto, de nosso contexto social e cultural contemporâneo.
Referências
BARNABAS; KINDERSLEY. Crianças como você. São Paulo: Ática, 2006 – 6ª edição.
BAUMAN, Zygmunt. A sociedade líquida de Zygmunt Bauman. Caderno Mais Folha de São
Paulo. 19/10/2003. Entrevista, 2003;
BRASIL. História e Cultura Afro-Brasileira. Lei Federal n°10.639/2003.
______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e
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HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo.
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______. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira
Lopes Louro. São Paulo: DP&A, 1998, 2ª Ed.;
______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG/UNESCO,
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RAMOS, Tanise Müller. Africanidades na sala de aula: a construção de uma ambiência para a
igualdade etnicorracial na escola. In: KAERCHER, Gládis Elise Preira da Silva; FURTADO,
Tanara Fortes (orgs.). Curso de aperfeiçoamento UNIAFRO: política de promoção de
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discentes. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-
Graduação em Educação. Porto Alegre, 2015.
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