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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Josenilde Silva Souza
DESFILE DE MODA NOS ESPAÇOS DA CIDADE
ABORDAGEM SEMIÓTICA DOS REGIMES DE VISIBILIDADE,
DE IDENTIDADE, DE INTERAÇÃO E DE SENTIDO
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
JOSENILDE SILVA SOUZA
DESFILE DE MODA NOS ESPAÇOS DA CIDADE
ABORDAGEM SEMIÓTICA DOS REGIMES DE VISIBILIDADE,
DE IDENTIDADE, DE INTERAÇÃO E DE SENTIDO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre
em Comunicação e Semiótica, sob a orientação da
Professora Doutora Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.
SÃO PAULO
2011
SILVA, Josenilde Silva. Desfile de moda nos espaços da cidade: abordagem semiótica dos regimes de visibilidade, de identidade, de interação e de sentido / Josenilde Silva Souza. – 2011. 141 p. : il. : 30 cm.
Orientadora: Ana Claudia Mei Alves de Oliveira.
Dissertação de Mestrado apresentada ao curso de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.
1. Semiótica. 2. Desfiles de Moda. I. Ana Claudia Mei Alves de Oliveira. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Comunicação e Semiótica. III. Título.
Banca Examinadora
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AGRADECIMENTOS
A Deus,
Aos meus pais, Jorge Rodrigues e Zenilde Souza,
pelo amor e exemplos de vida.
À minha orientadora, Ana Claudia Mei de Oliveira,
por depositar confiança e esperança quando eu pensei em não continuar.
A Luciano Ramos,
pelos momentos difíceis e pelo companheirismo.
Aos meus irmãos, amigos, colegas e alunos,
por fazerem parte da minha trajetória.
E à cidade de São Paulo,
pelas oportunidades profissionais – o sonho de criança do interior da Bahia.
RESUMO
Este trabalho analisa em que medida a escolha de um dado espaço da cidade
para a realização dos desfiles de moda é determinante para instaurar uma
nova configuração plástica e semântica. Na mudança do desfile de espaço
convencional, constituído por uma sala fechada, para um espaço aberto e não
convencional – por exemplo, um viaduto, uma rua ou um jardim –, investigamos
os modos de organização dos desfiles em distintos espaços, e de que maneira
estes modificam a sua estruturação, ao mesmo tempo em que redefinem a
cidade. Nessas modalidades de organização, intervêm significativamente os
parâmetros de espaço público e privado, assim como combinatórias desses
pólos com a categoria de base espaço fechado vs. espaço aberto. A semiótica
narrativa de Algirdas Julien Greimas e as conceituações de Eric Landowski são
o arcabouço teórico e metodológico para dar conta do problema de como os
modos de presença do desfile no espaço urbano agem na produção da
visualidade, da visibilidade e da identidade, bem como nos processos
comunicativos e interativos das performances. Um conjunto de desfiles foi
analisado a partir das seguintes hipóteses: 1) os desfiles constituem processos
sincréticos que articulam distintamente linguagens heterogêneas, a fim de
gerar desdobramentos comunicacionais promovidos pelo arranjo estético do
plano da expressão ao concretizar os investimentos semânticos do conteúdo;
2) as construções discursivas edificam modos de visualidade, de visibilidade e
de identidade dos criadores de moda e das marcas; 3) os desdobramentos dos
lugares da cidade produzem apreensões sensíveis e inteligíveis no público
inserido no discurso e 4) essas escolhas enunciativas são definidoras da
identidade do criador de moda e da marca, assim como do usuário e da cidade.
Registros fotográficos da pesquisadora delinearam o corpus imagético de
quatro desfiles de moda, observados no período compreendido entre 2005 e
2010: Maria Garcia (SPFW, inverno/2010), Cavalera (SPFW, verão/2010),
Fashion Mob (Casa dos Criadores/2010) e Karla Girotto (Fashion Rio,
verão/2005). O objeto deste trabalho resulta da observação direta da
pesquisadora das apresentações, destacando, entre os critérios de análise, a
experiência de ordem estética e estésica que os tipos de interação produzidos
nos espaços montam entre marca, criador de moda e público. Como conclusão
analítica, chegou-se à elaboração de quatro categorias de descrição e análise
dessa construção que faz ser o desfile, o criador de moda e a marca, as quais
poderão ser reoperadas em outros processos comunicacionais.
Palavras-chave: desfile de moda; sociossemiótica; regime de espaço; regime
de visibilidade; regime de interação e de sentido; construção de identidade.
ABSTRACT
This work analyzes to what extent the choice of a certain city space for the
performance of fashion shows is decisive to establish a new plastic and
semantic configuration. In the transition of the conventional space – formed by
an indoor room to an outdoor and unconventional space – for example, a
viaduct, a street or a garden – we investigate the fashion show’s ways of
organizations in different spaces and in what ways they modify their structuring
– and at the same time they redefine the city. In these modalities organizations
the parameters of public and private spaces significantly intervene – as much
as the engagements of these poles with the basic category open vs. closed
space. The narrative semiotics of Algirdas Julien Greimas and the postulations
of Eric Landowski are the theoretical and methodological frameworks used to
handle the problem of how the presence modes of the fashion show in the
urban space act in the production of visuality, visibility and identity, as well as
on the performances’ communicative and interactive processes. A set of fashion
shows was analyzed from the hypothesis: 1) the fashion shows compose
syncretic processes that articulate heterogeneous languages distinctly – in
order to generate communicational developments promoted by the aesthetic
arrangement of the expression plan by accomplishing the semantic investments
of the content; 2) the discursive constructions build new visuality, visibility and
identity modes of the fashion creators and their brands; 3) the city places’
unfolds produce sensible and intelligible apprehensions in the public inserted in
the discourse and 4) these enunciative choices define the identity of the fashion
creator and the brand, as much as its user and the city. Photographic records of
the researcher outlined the imagetic corpus of four fashion shows observed in
the period between 2005 and 2010: Maria Garcia (SPFW Winter/2010),
Cavalera (SPFW Summer/2010), Fashion Mob (Casa dos Criadores/2010) and
Karla Girotto (Fashion Rio, Summer/2005). The object of this research results
from the researcher’s direct observation of the performances, highlighting the
criteria for analysis - the experience of aesthetic and aesthesic order that the
types of interaction produced in the spaces build among brand, fashion creator
and public. The analytical conclusion allowed the elaboration of four description
categories and the analysis of this construction that make the fashion show, the
creator and the brand exist, which will be able to be reoperated in other
communicational processes.
Keywords: fashion show, sociosemiotics, space regime, visibility regime,
interaction and sense regime, identity construction.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Aimée Mullins desfila com próteses nas pernas para Alexander
McQueen, 1999 ............................................................................................... 16
Figura 2 – Desfile em um magazine, em 1903 ............................................... 22
Figura 3 – “Parada de manequins” estáticas num espaço aberto .................. 23
Figura 4 – Chá da tarde na Maison de Jeanne Paquin ................................... 24
Figura 5 – Desfile de Lady Duff Gordon num espaço fechado ....................... 24
Figura 6 - Desfile de Lady Duff Gordon na década de 1910 ........................... 25
Figura 7 – Manequins de Paul Poiret, em 1910 .............................................. 26
Figura 8 – Desfile num magazine, New York, em 1910 .................................. 26
Figura 9 – Chanel preparando o grupo de manequins antes de um desfile ... 27
Figura 10 – Jean Patou treinando suas modelos, em 1924 ............................ 28
Figura 11 – Desfile em um barco, em 1925, na Liverpool Week .................... 29
Figura 12 – Desfile da Maison Balmain, Palácio Pitti, Florença, em 1951 ...... 30
Figura 13 – Desfile da Câmara Sindical da Costura Parisiense em
Estocolmo, em 1959 ........................................................................................ 30
Figura 14 – Desfile de Pierre Balmain, numa adega em Londres, 1965 ........ 31
Figura 15 – Desfile Paco Rabanne, em 1968 ................................................. 32
Figura 16 – Mary Quant com modelos, em 1968 ............................................ 33
Figura 17 – Desfile numa pista de pouso de avião, em Londres, 1965 .......... 35
Figura 18 – Desfile de Miuccia Prada, em 2011, inspirado em Yves Saint
Laurent ............................................................................................................. 37
Figura 19 – desfile de Castelbajac inspirado em Courréges, em 2000 .......... 37
Figura 20 – Desfile de Castelbajac inspirado em Andy Warhol, em 1984 ...... 38
Figura 21 – Desfile espetacular de Thierry Mugler, em Paris, em 1995 ......... 40
Figura 22 – Desfile de Alexander McQueen, em 2001 ................................... 41
Figura 23 – Apresentação com holograma da modelo Kate Moss no desfile
de McQueen, realizado em Paris, em 2006 ..................................................... 42
Figura 24 – O desfile da dupla Viktor & Rolf, transmitido ao vivo pelo site
oficial da grife, em 2009 ................................................................................... 42
Figura 25 – Vídeo-desfile da coleção Outono-Inverno 2011 da Ellus,
para a SPFW, em São Paulo ........................................................................... 43
Figura 26 – Desfile da coleção “Black Hole” da dupla Viktor & Rolf,
apresentada em Paris, em 2001 ...................................................................... 44
Figura 27 – Desfile multimídia da Burberry, em Pequim, em 2011 ................. 44
Figura 28 – Modelos fazendo pose após um desfile para a Casa Canadá,
no Rio de Janeiro, em 1950 ............................................................................. 46
Figura 29 – Modelo desfilando para a Casa Canadá, em 1950 ...................... 46
Figura 30 – Cartaz de 1952 inspirado no grafismo da Semana de Arte
Moderna de 1922 ............................................................................................. 47
Figura 31 – Desfile de Jum Nakao no Phytoervas Fashion, em 1997 ............ 49
Figura 32 – Desfile de Walter Rodrigues, no Rio de Janeiro, em 2007 .......... 51
Figura 33 – Desfile da Blue Man, no Fashion Rio, em julho de 2007 ............. 51
Figura 34 – Passarela em forma de “I” desfile de Madame Vionnet, 1924 ..... 61
Figura 35 – Sala de desfile de moda do Magazine Printemps, passarela em
forma de “I”, em 1937 ...................................................................................... 61
Figura 36 – Passarela em forma de “U”, desfile de Glória Coelho, 2009 ....... 61
Figura 37 – Marina Ximenes no desfile da Maria Garcia ................................ 62
Figura 38 – Desfile de Chalayan, em 2006 ..................................................... 65
Figura 39 – Desfile de Ronaldo Fraga, 2005 .................................................. 68
Figura 40 – Passarela do desfile da marca Maria Garcia, em 2010 ............... 74
Figura 41 – Cenografia do desfile “Neutro”, de Karla Girotto, 2006 ............... 75
Figura 42 – Passarela na via expressa da cidade, desfile Cavalera, 2010 .... 76
Figura 43 – Desfile Fashion Mob, 2010 .......................................................... 78
Figura 44 – Espaço interno do Pavilhão da Bienal em SP ............................. 80
Figura 45 – Bienal de Arquitetura, em 2009 ................................................... 81
Figura 46 – Adventure Sports Fair, em 2008 ……….........……………………. 82
Figura 47 – Mapa de localização do Parque Ibirapuera ................................. 82
Figura 48 – Ambiência do SPFW .................................................................... 83
Figura 49 – Rampa que dá acesso aos pisos de desfiles do SPFW .............. 84
Figura 50 – Café localizado no primeiro piso do SPFW ................................. 77
Figura 51 – Público no pavilhão da Bienal, no SPFW .................................... 85
Figura 52 – Frente do convite que dá acesso ao Pavilhão ............................. 85
Figura 53 – Convite do desfile da marca Maria Garcia ................................... 86
Figura 54 – Começo do desfile da marca Maria Garcia .................................. 87
Figura 55 – Modelos desfilando ao longo da passarela para Maria Garcia .... 89
Figuras 56 – Ângulo do fotógrafo que está posicionado na frente da
passarela de Maria Garcia ............................................................................... 90
Figuras 57 – Ângulo do fotógrafo, posicionado na frente da passarela de
Maria Garcia .................................................................................................... 91
Figura 58 – visão do público sentado ao longo da passarela no desfile de
Maria Garcia .................................................................................................... 92
Figura 59 – Final do desfile ............................................................................. 92
Figura 60 – Desfile da Cavalera, no Rio Tietê, em São Paulo, 2008 .............. 94
Figura 61 - Mapa de localização do desfile Cavalera 2009 ............................ 95
Figura 62 – Vista aérea da parte superior do Elevado Costa e Silva ............. 96
Figura 63 – Desenho geométrico do Elevado Costa e Silva ........................... 97
Figura 64 – Elevado Costa e Silva durante a semana .................................... 98
Figura 65 – Elevado Costa e Silva no domingo, como um espaço de
convivência social ............................................................................................ 98
Figura 66 – Minhocão visto de cima para baixo .............................................. 99
Figura 67 - Convite do desfile da Cavalera, em 2009 ....................................100
Figura 68 – Desfile da Cavalera sobre o Elevado Costa e Silva ...................103
Figura 69 – O público convidado e as cadeiras vermelhas ...........................104
Figura 70 – Convidados e celebridades nas cadeiras vermelhas ................. 105
Figura 71 – Desfile da Cavalera, em 2009 .....................................................107
Figura 72 – Desfile da Cavalera, em 2009 ....................................................108
Figura 73 – Desfile da Cavalera, em 2009 .....................................................109
Figura 74 – Desfile da Cavalera no Elevado, em 2009 ..................................110
Figura 75 – Desfile da Cavalera no Elevado, em 2009 ..................................110
Figura 76 – Acessórios da grife, com estampa da bandeira de São Paulo .. 111
Figura 77– Bebê com peças estilizadas da bandeira de São Paulo ............. 111
Figura 78 – Mais um modelo com roupa estlizada da bandeira paulista ...... 111
Figura 79 – Desfile da Cavalera, em 2009 .................................................... 112
Figura 80 – Final do desfile da Cavalera, em 2009 ...................................... 113
Figura 81 – Mapa de localização do desfile Karla Girotto ............................ 114
Figura 82 – O jardim do MAM no Rio de Janeiro .......................................... 115
Figura 83 – O jardim do MAM no Rio de Janeiro .......................................... 115
Figura 84 – Convite do desfile “Neutro”, verão/2005 .................................... 116
Figura 85 – Desfile “Neutro”, verão/2005 ...................................................... 118
Figura 86 – Detalhe das camas nas paralelas .............................................. 119
Figura 87 – Detalhe da modelo colocando os sapatos na gaiola ................. 119
Figura 88 – Modelo realmente dormindo, como parte da performance ........ 120
Figura 89 – Marilyn Monroe, uma referência de beleza dos anos 50 ........... 120
Figura 90 – Modelo 1 dormindo: plano fechado ............................................ 122
Figura 91 – Modelos dormindo: plano aberto ............................................... 122
Figura 92 – Detalhe da modelo 1 calçando o sapato .................................... 122
Figura 93 – Detalhe da modelo 1 caminhando após se calçar ..................... 122
Figura 94 – Modelo desfilando uma releitura New Look, de Dior, de 1947... 115
Figura 95 – O percurso do desfile Fashion Mob ........................................... 124
Figura 96 – Painel que serve de fundo para fotografias do Fashion Mob .... 125
Figura 97 – O desfile Fashion Mob passando pela estação da Luz ..............127
Figura 98 – As modelos em fila indiana pelas ruas do centro da cidade ...... 128
Figura 99 – A quadratura axiológica ............................................................. 129
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Formantes plásticos – Elevado Costa e Silva ............................... 97
Tabela 2 – Pares de oposição relativos às partes superior e inferior do
Elevado Costa e Silva .................................................................................... 100
SUMÁRIO
1 POR UMA VISIBILIDADE DOS DESFILES DE MODA ........................ 15
2 BREVE HISTÓRICO DOS DESFILES DE MODA ................................ 20
2.1 As origens dos desfiles de moda ................................................ 20
2.2 A trajetória dos desfiles de moda no Brasil ................................ 46
2.3 Os tipos de desfile de moda........................................................ 53
3 ABORDAGEM SEMIÓTICA DO DESFILE DE MODA .......................... 55
3.1 Operacionalização conceitual ..................................................... 55
4 A ATUALIDADE DOS DESFILES DE MODA NO BRASIL .................. 72
4.1 Usos da topologia nos desfiles de moda ................................... 72
4.2 Análise dos desfiles ................................................................... 80
4.2.1 Espaço fechado/privado: Maria Garcia ............................ 80
4.2.2 Espaço aberto/privado: Cavalera ..................................... 94
4.2.3 Espaco aberto/privado: Karla Girotto ............................ 114
4.2.4 Espaço aberto/público: Fashion Mob ............................. 125
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 131
BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 135
15
1. POR UMA VISIBILIDADE DOS DESFILES DE MODA
Ao longo de sua trajetória, que acaba de ultrapassar um século, o desfile
de moda deixou de ser mero prolongamento das vitrinas, nas quais as lojas de
roupas mostravam seus produtos em eventos complexos, e se tornou um
diálogo com as artes cênicas, a performance, o marketing e a publicidade de
marca. Atualmente, o desfile ocorre em diferentes espaços e caracteriza-se
pela busca de diversas formas e maneiras de se expressar, com o intuito de
obter visibilidade para os seus produtos.
Os primeiros desfiles de alta costura do país aconteceram em 1944, no
Rio de Janeiro, com a inauguração da Casa Canadá. O objetivo era mostrar as
novas coleções para a imprensa por meio de “manequins vivos”. Contudo, em
São Paulo, em meados da década de 1920, a Mappin Stores da Praça do
Patriarca já realizava desfiles de moda com “modelos vivos” para apresentar as
roupas femininas das coleções semestrais. Se esses eventos dos primeiros
tempos funcionavam apenas como mostruários animados de roupas à venda,
com o passar dos anos, transformaram-se também em vitrinas para o trabalho
dos estilistas.
A trajetória dos desfiles confunde-se com as mudanças observadas no
próprio conceito de fashion designer, segundo o qual a figura do costureiro
passou de artesão a artista e adquiriu o status de autor ou estilista a partir dos
anos 1980. Nesse processo, aquilo que nasceu como simples recurso de
venda foi se diversificando e adquirindo cada vez mais complexidade, a ponto
de pressionar os limites de sua concepção como exibição de produtos, ao
enlaçar-se a determinadas manifestações artísticas e formas de espetáculos
que são atraentes por si mesmas e relativamente descoladas dos produtos que
lhes deram origem.
Em muitas publicações especializadas, por exemplo, vemos entrevistas
como a do estilista inglês Alexander McQueen (Londres, 1969-2010), na qual
ele declarou que usava seus desfiles para desencadear emoções traumáticas e
angústia em sua plateia. Um caso que ratifica suas palavras é o desfile Outono-
Inverno de 1999, em que a atleta norte-americana Aimée Mullins (Pensilvânia
16
1976), que teve suas pernas amputadas com um ano de idade, desfilou com
próteses nas pernas e botas especialmente desenhadas pelo estilista. A
inusitada escolha da modelo desencadeou uma comoção na plateia, ao mesmo
tempo em que proclamava o acesso à moda a outros segmentos de público
alvo.
Figura 1 - Aimée Mullins desfila com próteses nas pernas para McQueen, em 1999.
(Fonte: http://images.mitrasites.com/aimee-mullins.html)
No Brasil, em termos de inovação e distanciamento das formas
corriqueiras e habituais de desfile de moda, podemos citar os trabalhos dos
estilistas Ronaldo Fraga, Jum Nakao e Karlla Girotto, além das marcas
Cavalera e Ellus, que têm recorrido a mecanismos igualmente inusitados e
surpreendentes.
A partir da década de1960, a criação de moda que residia na alta
costura, passa gradativamente à confecção, e a isso se seguiu a necessidade
de ocupar agressivamente a mídia, por força mesmo da ferocidade da
competição entre as marcas. Nesse sentido, os desfiles (fashion shows)
tornaram-se cada vez mais espetaculares e midiáticos para garantir a
sobrevivência dos polos de arte e indústria, que se manterão em permanente
colaboração (GRUMBACH, 2010).
17
Em 1972, na revista Paris Fashion, a jornalista Hébé D‟Orsay profetizava
que costura e prêt-à-porter se assemelham cada vez mais, graças ao avanço
das técnicas de fabricação (...) [e] simplesmente a alta costura deverá se tornar
o aspecto luxuoso do prêt-à-porter. Por seu lado, Didier Grumbach postula:
A alta costura não é uma sobrevivência inútil do passado, mas um trunfo para o futuro da indústria. Nessa nova configuração, os desfiles de moda conservam a sua absoluta necessidade. Será que, para comemorar o seu aniversário de um século, eles inventarão um jeito melhor de valorizar as roupas? Poderia haver para elas um suporte tão excitante quanto o corpo humano? (Grumbach, 2010, p.141)
De fato, mesmo mantendo o desfile em seus componentes básicos −
modelo, roupa, passarela e público –, os seus modos de inserção no espaço
têm criado novas e inesperadas possibilidades, como mostraremos neste
trabalho. Para compreendermos melhor essa nova realidade da indústria da
moda, os paradoxos das aproximações entre o espaço público e o espaço
privado, que têm sidos explorados nos contextos dos desfiles de moda,
optamos por estudá-los pelo viés da teoria e metodologia semiótica de linha
francesa. Os desfiles que fazem parte do nosso corpus foram selecionados em
função dos locais escolhidos pelos estilistas e marcas para apresentar seus
produtos ao público.
Essa teoria nos permitirá tanto o estudo dos enunciados dos desfiles
como o de seus procedimentos enunciativos. Assim, nosso objeto de pesquisa
é capaz de ser abordado semioticamente à altura de suas explorações e
ocorrências diferenciadas, marcadas pela busca de distinção da concorrência.
Como veremos, muito de um desfile torna-se um tipo de ocorrência cujo
sentido é proposto ao público da moda para ser uma vivência em ato, ou seja,
um sentido que é processado na e pela duração do desfile.
Com o propósito de estudar tanto o desfile convencional como os que
têm uma nova organização, este trabalho pretende descrever e interpretar os
modos de presença dos desfiles de moda, em especial, considerando a
participação do público no mundo criado pelo desfile, que projeta distintas
formas de participação. Como essas formas estão plasmadas nas escolhas
discursivas do enunciador? Quais são as astúcias em colocar o público em
18
contato físico com a moda? O que esses modos de interação acrescentam no
sentido de tipos de construção da significação aos desfiles de moda? Como
elaborar uma tipologia que dê conta da extrema diversidade de formas e
linguagens atualmente observada no universo dos desfiles? Na medida em que
os desfiles convencionais continuam a existir na prática mercadológica da
moda, como garantir que essa tipologia possa os incluir ao lado dos não
convencionais, numa categorização capaz de abranger a totalidade dos
desfiles?
Para efetuar tal análise, esta pesquisa percorre um caminho que se
inicia numa breve história da origem dos desfiles de moda no mundo e no
Brasil. A seguir, mergulha-se na abordagem semiótica da estruturação dos
desfiles, tratando os elementos constitutivos e suas articulações sincréticas
para plasmar o plano do conteúdo. Utilizamos como pressupostos teóricos a
semiótica discursiva sob o olhar analítico de Algirdas Julien Greimas e seus
colaboradores, como Jean-Marie Floch e Eric Landowski, que substanciam a
nossa abordagem do sincretismo dos desfiles de toda ambiência visiva do
espaço comunicante, que é articulado como um todo de sentido.
Em semiótica, texto e prática podem ser analisados por seus modos de
presença, que impõem um estudo dos modos de enunciação do enunciado, o
que nos levou a recortar as contribuições das estratégias de enunciação global
de Floch.
A correlação entre esses modos de enunciar e os modos de presença é
apoiada em Landowski, no tocante à formação de um sistema em que os
regimes de sentido se articulam pelos regimes de interação, e em Ana Claudia
de Oliveira, na interpretação das “interações discursivas”.
Nossa busca na semiótica greimasiana tem como objetivo esse encontro
do melhor levantamento dos aspectos pertinentes ao nosso objeto de estudo,
pois é visualizando tais aspectos que se nos mostram os percursos de como
estudá-los. Ou seja, seria necessário identificar, num universo imenso de
opções, quais os desfiles a serem aqui analisados. De acordo com o que dizem
Kathia Castilho e Marcelo M. Martins:
19
a concretização ou figurativização desse destinador manipulador que apontamos como “desfile” pode ser realizada a partir de um estilista-criador ou de uma empresa em particular: nos exemplos apresentados, citamos Mario Queiroz, Ronaldo Loureiro, Fórum e Cavalera. Esses sujeitos, com suas respectivas construções que tratam de tendências, são, por fim a concretização do destinador manipulador da moda de passarela. (CASTILHO e MARTINS, 2005, p. 68)
Tendo essa conceituação como parâmetro, iniciou-se um processo de
seleção que levou em conta determinados critérios preliminares, tais como o
fato do desfile ter sido presenciado pela pesquisadora e a necessidade de
encontrar marcas e “estilistas criadores” que tivessem escolhido lugares bem
diversos entre si para apresentar suas coleções. Foram selecionados, então,
os seguintes desfiles: Maria Garcia (SPFW, inverno/2010), Cavalera (SPFW,
verão/2010), Karlla Girotto (Fashion Rio, verão/2005) e Fashion Mob (Casa dos
Criadores/2010), a partir do critério de uso do espaço de ocorrência do desfile.
Os ambientes e as ambientações vão especificar a sua organização
como definidores dos tipos de desfiles. Cada um desses eventos acontece num
determinado lugar da cidade, ocupado de uma forma própria: num pavilhão do
parque Ibirapuera, durante o São Paulo Fashion Week; ao ar livre, no jardim do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; no elevado Costa e Silva, em São
Paulo; e nas ruas do centro paulista. Nesse sentido, são representativos dos
quatro modos possíveis de articulação dos desfiles com o território urbano.
Com esse exercício, objetivamos propor uma tipologia de usos do espaço que
podem orientar diversos outros estudos sobre o assunto.
20
2. BREVE HISTÓRICO DOS DESFILES DE MODA
2.1. As origens dos desfiles de moda
A palavra desfilar, segundo o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2009), tem
como quarta definição “ostentar com alarde, exibir”. Essa definição vem ao
encontro do ato de desfilar, no qual estilistas, grifes e maisons baseiam e
apresentam suas criações e leituras dos anseios de uma sociedade capitalista
que busca freneticamente o novo, o inédito e o consumo. Semestralmente,
cada marca lança no mercado uma nova coleção, com a missão de seduzir o
público, fazendo-o crer que precisa e deve ter aquilo que apresentam. Assim,
temos novos produtos e estilos, novas formas de ser e parecer.
Na verdade, o desfile é apenas a segunda extremidade do processo de
produção e o espetáculo para expor o produto final. Entretanto, há uma rede de
produção, incluindo a indústria têxtil e o mercado de moda. O sistema atual de
moda, com coleções de grande volatilidade lançadas conforme as estações,
tem origem no século XIX, na França. Com a industrialização e o
enriquecimento dos Estados-nações, os burgueses e a monarquia esbanjavam
dinheiro em uma vida luxuosa. Uma das formas de exibição do status social se
fazia através das roupas, que serviam para diferenciar as classes sociais e
despertar a admiração e a inveja.
Observando o mercado, o costureiro inglês instalado em Paris Charles
Frederick Worth (Lincolnshire, 1825-1895) percebeu que, se criasse coleções
de roupas seguindo as estações, a sua clientela compraria mais das suas
peças. Ele, então, passou a lançar duas coleções por ano a partir de 1858.
Atendendo à elite social da época, ele atuava como profissional de alta costura,
comercializando roupas exclusivas, porém, seguindo os modelos da coleção
referente à estação vigente.
Para que suas clientes visualizassem suas propostas, o costureiro
passou a recorrer a modelos que desfilavam as peças. Embora Worth tenha
percebido a necessidade de elaborar peças adequadas às temperaturas, suas
coleções e seus lançamentos não eram marcados em datas pré-estabelecidas.
Segundo o sociólogo francês Gilles Lipovetsky:
21
A verdadeira originalidade de Worth, de quem a moda atual continua herdeira, reside em que, pela primeira vez, modelos inéditos, preparados com antecedência e mudados frequentemente, são apresentados em salões luxuosos aos clientes e executados, após escolha, em suas medidas. Revolução no processo de criação, que foi acompanhada, além disso, de uma inovação capital na comercialização da moda e de que Worth é ainda o iniciador: os modelos, com efeito, são usados e apresentados por mulheres jovens, os futuros manequins, denominados, na época, “sósias”. Sob a iniciativa de Worth, a moda chega à era moderna; tornou-se uma empresa de criação, mas também de espetáculo publicitário. (LIPOVETSKY, 2003, p.71)
Ao criar um sistema de produção e difusão, Worth revolucionou o
processo criativo da moda, sendo um dos primeiros criadores a perceber que a
moda não somente vende roupas, mas também cria a imagem de uma marca,
além de atender aos anseios do seu cliente consumidor. Ávidas pela novidade
e exclusividade, suas clientes foram receptivas à sua proposta de produzir e
vender duas coleções anuais, que eram apresentadas por modelos em
ambiente privado.
O estilista continua sendo reconhecido como o “fundador da alta costura”
até os dias atuais, tendo aberto caminho para outros profissionais da moda,
como os franceses Paul Poiret (Paris, 1879-1944) e Jeanne Paquin (Saint-
Denis, França, 1869-1936).
Visionário, Worth criou tendências. Segundo Georgina O‟hara, (1999, p.
290), “na década de 1860, lançou o vestido-túnica, uma veste que ia até o
joelho e era usada sobre saia longa”. Ele também lutou pela profissionalização
e reconhecimento da alta costura, participando da criação de uma associação
que defendia os interesses do mercado de moda.
Por alta costura entende-se a criação, em escala artesanal, de peças
únicas, elaboradas com produtos sofisticados e bordados exclusivos,
executadas por profissionais altamente especializados, comercializadas com
preços elevados e destinados às classes financeiramente abastadas.
Para atuar como estilista nesse tipo de produção, o profissional deveria
ser membro da “Federação Francesa da Costura, do Prêt-à-porter, dos
Costureiros e dos Criadores de Moda”, além deproduzir, a cada temporada,
trinta e cinco trajes para serem desfilados, empregar pelo menos quinze
funcionários e, de preferência, ter seu ateliê/showroom na França. Atualmente,
22
apenas onze maisons francesas (Adeline André, Anne-Valérie Hash, Chanel,
Christian Dior, Christian Lacroix, Dominique Sirop, Emanuel Ungaro, Jean-Paul
Gaultier, Givenchy, Franck Sorbier e Maurizio Galante) fazem parte da
federação, além de quatro estrangeiras (Elie Saab, Giorgio Armani, Valentino e
Martin Margiela).
O desfile de moda desempenha um papel fundamental na indústria da
moda. Segundo o semioticista Eric Landowski, em sua obra “Presença do
Outro” (2002, p.94), a moda é um princípio de organização social cuja função
essencial consiste, no máximo em classificar: instância normativa, a moda
regulariza a evolução de códigos de comportamento diferenciados.
A partir do século XX, o mercado do prêt-à-porter, seguindo o mesmo
caminho de exibição de produtos adotada pela alta costura, começava a
promover seus primeiros desfiles de moda. Utilizava mulheres como
“manequins vivos”, que se apropriavam do gestual dos manequins expostos
nas vitrinas dos magazines, em desfiles que aconteciam nas lojas de
departamentos, nas quais, inclusive, se iniciou a prática dos desfiles de moda
no Brasil, no início do século XX.
Figura 2 – Desfile em um magazine, em 1903, com a modelo mimetizando a postura de uma manequim de vitrina. Ela caminha ao som de música sobre um palco. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
Ao analisar os desfiles de moda sob uma perspectiva histórica, percebe-
se que eles significavam, inicialmente, uma tentativa dos costureiros de
quebrar a continuidade nos modos de apresentação de suas criações,
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usualmente orientados pela mera exposição em vitrinas, isto é, de imagens
paradas.
Figura 3 – Uma “parada de manequins” estáticas num espaço aberto, os desfiles eram apresentados nos jardins em 1913. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
A couturière Jeanne Paquin pode ser considerada, juntamente com
Worth, pioneira na comunicação de moda moderna. Ela tornava os desfiles
verdadeiros espetáculos apresentados em teatros. Em outras ocasiões,
mandava suas manequins passearem nos lugares de moda ou em pontos de
encontro sociais.
Alguns estilistas contratavam mulheres para exibir suas criações em
locais elegantes, com fizeram Coco Chanel (Saumur – França, 1883-1971) e
Paul Poiret, que foi o primeiro a conceber um desfile no verão e outro no
inverno, além de produzir a primeira apresentação para um fotógrafo e um
jornalista, publicada na revista “Ilustration”. Ele pode ser considerado um dos
precursores do emprego do marketing pessoal, atualmente praticado pelos
estilistas em seus desfiles. Outra prática desses criadores era ceder roupas da
sua coleção para as atrizes do cinema e do teatro ou para as personalidades
femininas formadoras de opinião.
24
Figura 4 – Chá da tarde na Maison de Jeanne Paquin, em que as manequins se misturavam às clientes do estabelecimento. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
Figura 5 – Lady Duff Gordon promovia seus desfiles nos espaços fechados para atrair mais espectadores homens do que mulheres. Não existe uma passarela fixa. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
A historiadora inglesa Caroline Evans, em seu artigo “O espetáculo
encantado” (2002), informa que a estilista inglesa Lady Duff Gordon (Londres,
1863-1935), também conhecida como Lucile, foi a responsável pela introdução
do uso de iluminação e música, bem como de um pequeno informe
descrevendo os detalhes das roupas que eram exibidas. Ela inserira seus
“desfiles de manequins” no mercado e no mundo da moda, exportando-os, com
imenso sucesso, de Londres para Nova York e Paris nas primeiras duas
décadas do século XX. Segundo definição da pesquisadora de moda Carol
Garcia:
Lucile foi a primeira a conceber a ideia de desfile como espetáculo ao enviar convites para clientes de ambos os sexos, nomear os trajes
25
sugestivamente e criar uma ambientação própria para a apresentação, detalhes esses que funcionariam dali por diante como coadjuvantes num desfile de moda. Quando as modelos entravam na passarela de Lucile, acompanhadas pela música que ritmava seu caminhar em direção à plateia, uma tensividade armava-se pela variação proxêmica entre manequim e cliente, gerando um encadeamento (de olhar, audição e tato) na continuidade ditada pelo ritmo. (GARCIA, 2005)
De modo geral, os primeiros desfiles não passavam de exibições
enfadonhas, com música de orquestra e chá para os clientes. Entretanto, logo
ganharam textos simples e cenários elaborados como em The Seven Ages of a
Woman, que foi dividido em sete atos, como numa peça teatral (EVANS, 2002).
Para compreender os desfiles na contemporaneidade, é preciso
entender suas transformações no decorrer das décadas, que incidiram nos
seus efeitos de manipulação do público-alvo. Com relação à sua duração, os
desfiles se repetiam ao longo da semana, ao contrário dos desfiles atuais, que
duram em média vinte minutos.
Figura 6 - Desfile de Lady Duff Gordon na década de 1910, num espaço fechado, aproximando as clientes, que ficam sentadas no salão com uma maior aproximação com a modelo e o produto. (Fonte: VILASECA, E. Desfiles de moda: diseño, organización y desarrollo. Barcelona: Promopress, 2010)
Evans (2002) descreve que os desfiles de Lucile duravam em torno de
três horas e eram apresentados, em média, por cinquenta modelos. Por trás do
“espetáculo encantado”, fechavam-se negócios. O fato é que, desde sua
origem, os desfiles de moda buscaram introduzir dramaticidade nas
26
apresentações, como foram pautados os desfiles de Lucile, Poiret, Patou,
Paquin e Chanel.
Figura 7 – Manequins de Paul Poiret, em 1910, no jardim de sua Maison, ainda num espaço é privado. (Fonte: GRUMBACH, D. Histórias da moda. Trad. Dorothée de Bruchard, Joana Canêdo, Flávia Varela e Flávia do Lago. Sao Paulo: Cosac Naify, 2009)
Figura 8 – Desfile num espaço fechado, num magazine em New York, em 1910. Ao lado da passarela carpetada em forma de “T”, podemos perceber a formação de filas. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
Nos anos 1920, os estilistas franceses Coco Chanel e Jean Patou
desenhavam, num lance de modernidade para seu tempo, um corpo funcional,
antidecorativo, aerodinâmico e disciplinado, que era cultuado nos desfiles. A
repetição serial das modelos na passarela recebia a influência da linguagem
estética modernista, exaltando as belezas da produção em massa (EVANS,
2002).
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Figura 9 – Chanel preparando o grupo de manequins antes de um desfile, em 1938. As manequins da época costumavam trabalhar para um só costureiro, pois cada ateliê procurava um perfil que representasse seu estilo. (Fonte: CHARLES-ROUX, E. A era Chanel. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2007).
Chanel orientava suas manequins a adotarem uma postura única da
cintura para frente, ombros caídos, um pé na frente do outro, uma mão na
bolsa e a outra gesticulando. Era um corpo-presença na passarela, imaginado
em relação à presença da mulher social. Dessa forma, a manequim começava
a se distanciar da mulher comum, assumindo a figura de um ser especial na
sociedade. Lipovetsky diz que
A moda moderna caracteriza-se pelo fato de que se articulou em torno de duas indústrias novas, com objetivos e métodos, com artigos e prestígios sem dúvida nenhuma incomparáveis, mas que não deixam de formar uma configuração unitária, um sistema homogêneo e regular na história da produção das frivolidades. A alta costura, de um lado, inicialmente chamada de costura, a confecção industrial do outro – tais são as duas chaves da moda de cem anos, sistema bipolar fundado sobre uma criação de luxo e sob medida, opondo-se a uma produção de massa, em série barata, imitando de perto ou de longe os modelos prestigiosos de grifes da alta costura. (LIPOVETSKY, 2003, p.70)
28
Figura 10 – Jean Patou treinando suas modelos, em 1924 (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
A respeito dessas cópias, em 1921,a estilista francesa Madeleine
Vionnet (Paris, 1876-1975), exasperada com o número de cópias de seus
modelos de roupas, fez um acordo com os ateliês de Eva Boëx, autorizando-os
a reproduzir suas roupas em até três exemplares por peça. Essas condições
visavam evitar a falsificação selvagem e se encaixavam no processo artesanal
de exploração da linha de costura existente (GRUMBACH, 2010).Vionnet
ganhou dois processos judiciais contra falsificadores de seus produtos e
instituiu a criação de uma nova jurisprudência que protegesse as criações de
alta costura.
Em 1930, a estilista italiana Elza Schiaparelli (Roma, 1890-1973) foi a
primeira a contratar uma empresa cinematográfica e a introduzir nos seus
desfiles temas como o circo, o conto de fadas e a Commedia Dell’arte. Tornou-
se pioneira ao usar a música de Vivaldi e Pergolesi, inserir personagens,
artistas e trupes de comediantes, além de gestuais da dança para um show de
brincadeiras e sedução.
Schiaparelli era uma profissional extravagante que gostava de interagir
com os artistas e exibir suas criações. Ela é responsável pela inclusão da cor
“rosa choque” (“Shocking Pink”) no universo da moda e por experimentar
desenhos de impressão de jornal como estampa em suas roupas. Ela mantinha
um diálogo muito próximo entre a moda e as artes plásticas, inserindo-as de
forma teatral e exuberante em suas peças. Chanel, sua maior rival profissional
na época, a chamava de “a artista italiana que faz roupas”.
29
Ao lado das estratégias criadas para dar visibilidade às criações e aos
estilistas em eventos caracterizados pelo espetáculo, a moda faz uso de várias
artes, encontrando novos caminhos para animar a comercialização dos seus
produtos em grandes magazines, galerias parisienses e em exposições
universais. Na análise de Lipovetsky (2003), seria uma tática inovadora do
comércio moderno, fundamentada na teatralização da mercadoria, no reclame
feérico e na solicitação do desejo.
Figura 11 – Desfile em um barco, em 1925, na Liverpool Week. Apesar de este evento ter sido realizado a céu aberto, o desfile aconteceu um espaço fechado pelos limites da embarcação. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
Com seus manequins de sonho, réplicas vivas e luxuosas das vitrinas
atrativas, a alta costura contribuiu para essa grande revolução comercial
sempre em curso, que consiste em estimular e em justificar a compra e o
consumo através de estratégias de encenação publicitária. Além das artes, a
publicidade e o comércio também vão se imbricar na produção de moda.
30
Figura 12 – Desfile da Maison Balmain no pátio do Palácio Pitti, de Florença, em 1951. A espacialidade deste desfile é fechada, mesmo tendo acontecido ao ar livre, numa praça pública. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
Figura 13 – Desfile da Câmara Sindical da Costura Parisiense, na prefeitura de Estocolmo, em 1959. Ainda que tenha acontecido em frente ao prédio da prefeitura, com uma passarela elevada, a espacialidade deste desfile é fechada. O desfile chega a ter duração de 1 hora e meia e um jantar era servido para o público presente, com música ao vivo. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006).
Com a quebra da bolsa de valores de Nova York, em 1929, e as duas
Guerras Mundiais, a moda, principalmente a alta costura, sofreu um grande
impacto. Na França, poucas maisons sobreviveram. Contudo, em meados de
1940, o estilista francês Christian Dior (Granville, 1905-1957) lança coleções de
grande impacto, resgatando o prestígio e a soberania da alta costura parisiense
no mundo.
A coleção New look é considerada a responsável pelo renascimento da
alta costura. Sua base são as criações inspiradas nos modelos dos anos de
31
1930 e 1940, tornando-se referência na década de1950. É um estilo
acentuadamente feminino, com ombros redondos e estreitos, cintura muito
marcada, busto e quadris acentuados. A saia é rodada com comprimento
abaixo do joelho.
Tanto as roupas quanto os desfiles de Dior contrastavam com a moda
austera da época. Assim como os de Pierre Balmain (Savoia, 1914-1982), seus
desfiles eram teatralizados e provocavam fascínio nas plateias por suas mise-
en-scènes inteiramente ligadas às encenações teatrais, além de trazer de volta
o uso de cintas, anáguas, barbatanas e luvas, acessórios que haviam sido
eliminados com o “novo corpo” configurado por Poiret. Esse resgate ao
passado e sua capacidade de transformar os acessórios em recursos cênicos
privilegia a postura da modelo em relação ao seu movimento.
Figura 14 – Desfile de Pierre Balmain, realizado numa adega em Londres, em 1965. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
Na década de 1950 e começo dos anos de 1960, os desfiles da alta
costura parisiense eram realizados no ateliê do próprio estilista ou em algum
salão de gala. Durante a temporada, eles aconteciam na parte da tarde,
apresentando duração média de uma hora e quinze minutos, com as modelos
voltando à passarela para apresentar as roupas aos clientes. Cada estilista
mantinha um grupo de modelos que desfilava para o ateliê, marcando o modo
32
de se portar e sua gestualidade, caracterizando o estilo do criador. Assim, por
exemplo, existia o estilo de desfilar de Yves Saint-Laurent (Oran, Argélia, 1936-
2008) chamado de “estilo Dior”, pois o estilista assumiu, em 1958, o cargo de
criador da marca com a morte de Dior.
Já o estilista ítalo-francês Pierre Cardin (San Biagio, 1922) recrutava
modelos orientais, enquanto o estilista franco-espanhol Paco Rabanne (Pasaia,
1934), nos anos 1960, colocava modelos negras na passarela. Em todos eles,
nota-se uma busca de individualização distintiva da marca.
Figura 15 – Desfile Paco Rabanne, num espaço fechado em 1968. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
A estilista inglesa Mary Quant (Londres, 1934) lançou, nos anos 60, uma
moda jovem e acessível, inspirada na cultura pop e com a qual teve um grande
sucesso e repercussão na mídia. Ela ainda recebeu a autoria da invenção da
minissaia ao lado do estilista francês André Courrèges (Pau, 1923). De acordo
com Evans (2002), ela fez uma turnê para apresentar sua coleção ao som do
jazz.
Repetindo a ideia para a imprensa de Londres, ela exibiu quarenta looks
em catorze minutos. Segunda as pesquisadoras de moda Carol Garcia e Ana
Paula Miranda (2005), a atividade de stylist como conhecemos atualmente, foi
inventada por Quant. Segundo Marco Sabino, o stylist é o
33
profissional que define a imagem de um desfile, catálogo ou editorial de moda. Sugere e ajuda a selecionar modelos, faz a edição das roupas a serem usadas e ajuda a determinar a maquiagem e o cabelo a serem adotados; nos desfiles, interfere na atitude das modelos e opina sobre cenário e trilha sonora. (2007, p.563)
Figura 16 – Mary Quant, à direita, com modelos, em 1968, vestindo suas próprias criações. Neste desfile, foram exibidos sessenta looks em catorze minutos. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006).
As origens dos desfiles espetaculares estão vinculadas à ascensão dos
criadores do ready-to-wear, também chamado de prêt-à-porter ou “pronto para
vestir”. São profissionais que fazem coleções de roupas para serem adquiridas
prontas e comercializadas em lojas ou magazines. Esse tipo de produção em
série iniciou-se na década de 1950, mas firmou-se e se expandiu pelo mundo
ocidental nos anos de 1960, principalmente em Londres.
Após a Segunda Guerra, o cinema se consolidou como a principal
diversão de massa e a moda, que há anos já se nutria dele para divulgar as
suas tendências, se expandiu como nunca. A maneira como astros e estrelas
se penteavam e se vestiam passou a ser copiado por milhares de admiradores.
Quando, por exemplo, Clarck Gable tirou a camisa e mostrou o peito nu em
Aconteceu naquela noite (1934), a indústria de camisetas quase faliu, porque
boa parte do público masculino se considerou livre daquela convenção.
No final da década de 1950, os jovens – que viveram e sofreram o
impacto da Segunda Guerra – começam a contrariar as determinações de uma
cultura que, para eles, era inaceitável. Uma forma de contestação dessa
geração foi rejeitar as propostas da alta costura. Nos Estados Unidos e no
Brasil, em menor escala, o movimento de ruptura contra o modelo social
34
vigente gerou novos comportamentos e novas expressões culturais, como a
“geração beat”.
Esse movimento norte-americano pregava a vida boêmia, nômade ou em
comunidade, sendo o embrião do movimento hippie. Na área da literatura, o
movimento foi bastante expressivo, celebrando a não conformidade e a
criatividade espontânea. Seu maior represente foi o escritor e poeta Jack
Kerouac, autor da obra clássica e subversiva On the Road.
Na década seguinte, entretanto, a ameaça das convocações para o Vietnã
e a possibilidade de um confronto nuclear deu-lhes as bandeiras do pacifismo,
da liberdade sexual e da contracultura que resultaram numa explosão das
manifestações públicas da juventude. Reunidos em partidos, grupos e
associações mais ou menos articuladas, o movimento jovem invadiu as ruas
em passeatas, espetáculos de massa e manifestações de protesto nas grandes
cidades. Isso influenciaria o comportamento dos jovens no mundo ocidental,
provocando inevitáveis transformações radicais no universo da moda.
A primeira ruptura a ser observada foi o desaparecimento da unicidade
das tendências que tradicionalmente se impunham como determinantes aos
consumidores. Surgiram múltiplas propostas e a forma de se vestir se tornava
cada vez mais ligada ao comportamento individual. Conscientes desse novo
mercado consumidor e de sua voracidade, as empresas desenvolveram
produtos novos e diversificados, voltados para a juventude. Essa faixa etária
passava a ter, então, a sua moda própria, diferente daquela dos mais velhos.
De certa maneira, como um sinal de libertação, a linha principal era contrariar o
que estivesse em moda no mainstream, ou seja, o que era indicado como
fashion nas grandes revistas e lojas de departamento. Nos dizeres de Oliveira,
acompanham essas mutações os anos duros em que não mais os gênios dos grandes criadores da alta costura produzem os ciclos da para um diminuto segmento de privilegiados. Com o prêt-à-porter definido pelos estilistas, que são também em maior número, a reformulação da indústria da moda, para esses tempos com outros anseios e especificações, volta-se para segmentos de público cada vez mais ampliados, abarcando o dos jovens, que exigem uma moda de baixo custo para ela ter acesso a ponto de, no final do século XX, a moda jovem atender a todas as segmentações de mercado e todos os públicos. (2007, p.33)
Por outro lado, com os astronautas pisando no solo lunar, em 1969,
apontava-se para um futuro resplandecente em termos de tecnologia, bem-
35
estar e viagens espaciais. Como reflexo disso, em 1965, o francês André
Courrèges revoluciona o design de moda com uma coleção em que
predominavam roupas de linhas retas, minissaias e botas brancas. Em sua
visão de um futuro clean e aerodinâmico, habitavam as moon girls, de roupas
espaciais, metálicas e fluorescentes.
Na mesma época, o construtivismo do pintor holandês Piet Mondrian
(Amersfoort, 1872-1944) levou Yves Saint-Laurent a criar uma nova
plasticidade para suas roupas, como a dos vestidos tubinho, enquanto o
italiano Emilio Pucci (Florença, 1914-1992) fazia sucesso com suas estampas
psicodélicas, que encontrava eco nos novos hábitos da sociedade.
Figura 17 – Em 1965, em Londres, o desfile busca novos formatos na espacialidade aberta numa pista de pouso de avião. As modelos utilizaram o avião para entra e saída na passarela. (Fonte: VILASECA, E. Desfiles de moda: diseño, organización y desarrollo. Barcelona: Promopress, 2010).
Na segunda metade da década, a indústria da alta costura parecia
encolher. Tanto era assim que, no intervalo de apenas um ano, entre 1966 e
1967, o número de maisons inscritas na Câmara Sindical dos costureiros
parisienses foi reduzido de 39 para 17. Para reagir a essa “onda”, o estilista
Yves Saint Laurent opta por uma transformação para permanecer no mercado,
lançando uma nova coleção, mais comercial, em parceria com uma rede de
butiques de prêt-à-porter de luxo. Por meio do licenciamento e de franquias,
sua marca se espalhou pelo mundo. Sobre isso, Oliveira diz:
O que circula hoje na rua, dando prova de uma republicação do gosto, em uma ruptura completa com a aristocracia da moda como
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distinção social, sai justamente da passarela dos desfiles das calçadas. Nos anos 1960, com a luz própria do dia iluminado naturalmente as passarelas das ruas, nelas circulavam contravozes de uma uniformização generalizada da sociedade promovida pela industrialização. (2007, p.34)
Nesse sentido, a moda feita na rua pode ser vista como um espaço de
difusão de ideias referentes ao universo mais amplo da moda, estabelecendo
uma ponte com as manifestações concretas da cultura jovem, já que a roupa é
um dos traços mais significativos e expressivos do estilo individual. Acrescenta-
se a ela o tipo de música preferida, as opções estéticas e gestuais, a
decoração e os acessórios. São essas as principais categorias expressivas do
indivíduo, usadas para que ele se sinta aceito na “tribo” em que quer estar
inserido e também para permitir uma demarcação das fronteiras dos grupos
sociais.
A roupa é trabalhada de maneira a construir uma identidade de grupo e
um possível reconhecimento do estilo, alimentando a inspiração de estilistas e
as passarelas da moda que mapeiam ruas, pessoas, identidades, modos de
ser e agir, cujo trabalho pode ser consumido num mercado que abrange desde
lojas de luxo até lojas de departamento.
A espacialidade das ruas cumpre o papel de difusor da moda, assim com
foi a Rua Augusta, em São Paulo, nos anos 1960, na época da Jovem Guarda,
ou as esquinas da Hight-Ashbury, em São Francisco, para o movimento hippie,
ambas nos anos 60, e a Regent Street, em Londres, para os dândis de todas
as épocas.
Nesse contexto da década de 1960, o estilo dos criadores passa a ter
mais importância no mundo do consumo e o tradicional costureiro passou a
ostentar a designação de estilista. A moda jovem e a confecção em geral iam
perdendo espaço e os empresários passavam a necessitar de um esforço
criativo para inventar novos estímulos e satisfazer o constante desejo por
novas formas de vestir.
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Figura 18 – Desfile de Miuccia Prada, em 2011, inspirado em Yves Saint
Laurent.(Fonte: http://samknowsgoodlook.blogspot.com/2011/02/fall-2011-prada-fendi-d.html)
Figura 19 – desfile de Castelbajac inspirado em Courréges, em 2000. (Fonte: SCHVVAAB, C. Talk about fashion. Trans. by David Radzinowicz. Paris: Flammarion, 2010)
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Figura 20 – Desfile de Castelbajac inspirado em Andy Warhol, em 1984.(Fonte:
SCHVVAAB, C. Talk about fashion. Trans. by David Radzinowicz. Paris: Flammarion, 2010).
O fenômeno musical e multicultural dos Beatles foi o mais avassalador de
todos os tempos em termos globais e, evidentemente, na própria Inglaterra.
Era, portanto, natural que Londres assumisse o posto de núcleo da
contracultura e das inovações, a Meca para todos os jovens do planeta, a
capital mundial da moda. Era lá que estava o que havia de mais “moderno”,
onde as diversas diretrizes do novo gosto se cruzavam, desde o rock
psicodélico e progressivo às atrações da cultura indiana. Tudo isso disponível
em lojas diferentes de quaisquer outras, como a trepidante butique Biba, em
Kensington, que era um espelho do que se encontrava pelas ruas da cidade.
No final dos anos 60, porém, o centro mundial da cultura jovem se
transferiu de Londres (Inglaterra) para São Francisco (Estados Unidos) –
cidade portuária e cosmopolita, berço do movimento hippie, que pregava a paz
e o amor como uma força alternativa ao poder do estado: flower power, black
power, gay power e women's lib. Era de lá que vinham os slogans e palavras
de ordem adotadas pela juventude do mundo inteiro.
Se os primeiros desfiles de moda coincidiram com o apogeu da alta
costura, tendo Paris como epicentro que ditava as tendências, nos dias atuais
não existe mais essa hegemonia, graças à diversificação do crescimento
econômico e ao aprimoramento expressivo da moda como elemento de
consumo e como valor simbólico.
Outras cidades cresceram, ganhando também o titulo de capitais da
moda: Londres, Nova York e Milão. Com o crescimento de novos mercados em
39
expansão no Japão, China, Turquia, Índia e Brasil, multiplicaram-se e
diferenciam-se ainda mais os desfiles de moda ao redor do mundo.
A partir da década de 1960, os desfiles começam a se tornar exclusivos
para a imprensa, formadores de opinião e lojistas, e não mais para clientes
particulares. Sendo assim, os desfiles de alta costura passam a fazer parte de
uma estratégia de marketing, ultrapassando a condição de evento voltado para
o comércio. Ou seja, o desfile passa a funcionar no mercado como um
equivalente da pré-estreia que assinala o lançamento de um filme ou da sessão
de autógrafos que antecede a chegada de um best-seller às livrarias.
Foi somente nas décadas 1970 e 1980 que os desfiles de moda se
estruturaram como eventos culturais em escala maior. O estilista japonês
Kenzo Takada (Himeji, 1939), por exemplo, substituiu a passarela por um palco
redondo, trocando a luz artificial pela luz natural. Seu compatriota, Issey Miyake
(Hiroshima, 1938), organizou um desfile para doze mil pessoas em Tóquio. Em
1984, o francês Thierry Mugler (Estrasburgo, 1948) encomendou a um
empresário de rock um show-desfile espetacular para entreter um público de
seis mil pessoas em Paris. Documentado pelo alemão Wim Wenders em A
Identidade de nós mesmos (1989), filme sobre Yoji Yamamoto, a ascensão dos
designers japoneses coincide com o fato dos estilistas de moda passarem a ser
considerados como “autores”, assim como os escritores, dramaturgos e
cineastas.
Nota-se, a partir daí, uma ênfase maior e mais explícita no chamado
“desfile-espetáculo” no qual, por sua vez, além de ligações com o cinema e o
vídeo, destaca-se o relacionamento íntimo com as artes de performance, isto é,
o teatro, o balé e a ópera. Não há uma definição precisa e unanimemente
aceita de performance, por isso, recorremos ao trabalho de RoseLee Goldberg
(2006) para três conceituações a respeito:
A arte da performance é uma arte de ação – aos criar trabalhos nos quais a plateia se confronta com a presença física do artista em tempo real – e numa forma de arte que cessa de existir no instante em que a performance acaba. [...] o meio exige uma presentividade – a presença da plateia em tempo real e conteúdo que reflita agudamente o presente. [...] A arte performática (...) desafia e viola os limites entre disciplinas e gêneros, entre provado e público, entre vida cotidiana e arte, sem obedecer a nenhuma regra. (GOLDBERG, 2006)
40
Foi nesse ponto que surgiram as experiências que dizem respeito à
localização dos desfiles. Por exemplo, o lançamento de outono de McQueen
em 1999 aconteceu num armazém de transportes, representando um
gigantesco container de plástico onde se encenava uma cena do filme O
Iluminado. De fato,
assim como nas representações de palco, os desfiles criados por designers de espetáculo exibem muito mais do que roupas. Na maioria dos casos, interpretam-se como minidramas completos, com personagens, locações específicas, peças musicais relacionadas e temas reconhecíveis. Não raro, o único elemento que separa o desfile de moda de seus correlatos teatrais é seu objetivo básico – funcionar como estratégia de marketing. (DUGGAN, 2002)
Figura 21 – Desfile espetacular de Thierry Mugler, realizado no Cirque d’hiver, Paris, em 1995. (Fonte: GRUMBACH, D. Histórias da moda. Trad. Dorothée de Bruchard, Joana Canêdo, Flávia Varela e Flávia do Lago. São Paulo: Cosac Naify, 2009)
Na Londres dos anos 1990, é importante citar os impactantes desfiles
dos ingleses John Galliano (Gibraltar, 1960) e Alexander McQueen (Londres
1969-2010). Os desfiles passam a funcionar principalmente como vitrinas para
os estilistas − não mais restritos à preocupação de apresentar produtos, mas
com a proposta de comunicar a visão criativa do designer de moda. (EVANS,
2002).
41
Figura 22 – Desfile de Alexander McQueen, em 2001, inspirada no filme Os pássaros, de Hitchcock, em 1993. (Fonte: KNOX, K. Alexander McQueen: genius of a generation. London: A&C Black Publishers Limited, 2010)
Nos anos de 1990, as imagens dos desfiles de moda começam a ser
transmitidas via satélite para o mundo inteiro através das grandes mídias: TV,
jornais e revistas. O fenômeno da moda ganha outro contexto, diversificando o
seu campo de comunicação com a discussão de outros conceitos, como
produção cultural e identidade.
Os desfiles de moda ultrapassam a dimensão de mero mecanismo
comercial para se tornar uma potência comunicativa, envolvendo espetáculo,
cultura e comércio. O teatro da roupa em encenação cede lugar a um teatro de
imagens, de intensidades com uma poética das sinestesias.
A moda, por seu lado, abre mão dos desfiles discretos dos salões de alta
costura em favor dos shows de som e de luz, do espetáculo regido pelo
imprevisível que passa a animar a espera ansiosa da nova apresentação do
criador.
Em 2005, acontece o primeiro desfile com uso de tecnologia digital. O
estilista inglês Alexander McQueen faz um desfile com o holograma, isto é,
uma imagem tridimensional com relevo e profundidade, da modelo inglesa Kate
Moss, presente no meio da passarela. Seguindo a tendência, em 2009, a dupla
holandesa Viktor & Rolf, fundada em 1993, faz seu primeiro desfile por
transmissão online no site da marca. No local do desfile não havia jornalistas,
42
celebridades e nem compradores, apenas as equipes de filmagem e fotografia
acompanharam o espetáculo no local do desfile. Os “convidados” assistiram
pela internet
Figura 23 – Apresentação com holograma da modelo Kate Moss no desfile de McQueen, realizado em Paris, em 2006. O desfile volta-se para a espacialidade fechada. (Fonte:http://oimoda.com.br/news/tag/alexander-mcqueen/page/2)
Figura 24 – O desfile da dupla Viktor & Rolf, transmitido ao vivo pelo site oficial da grife, em 2009. Desfile com formato convencional, ainda na espacialidade fechada. (Fonte: http://www.materialiste.com/en/style/viktor-rolf-printemps-ete-2009)
No Brasil, no desfile Outono-Inverno 2011, a marca Ellus realiza um
desfile inédito com transmissão ao vivo pela internet. A imprensa e os
convidados, devidamente munidos de óculos tridimensionais, foram
43
encaminhados a uma sala de cinema na Bienal para assistir ao vídeo-desfile.
Não havia modelos ao vivo, elas atuavam dentro de uma tela plana, como num
filme.
As marcas e seus estilistas observam que a internet é uma mídia que
possibilita novas configurações e formatos de desfiles, tornando-se um novo
canal de comunicação para os eventos de moda, sem eliminar o aspecto
cênico dos desfiles, mas abrindo ao público acesso imediato ao que acontece
nas passarelas.
Figura 25 – Vídeo-desfile da coleção Outono-Inverno 2011da Ellus, para a SPFW, em São Paulo. (Fonte: site da Ellus)
Os desfiles de moda do começo do século XXI se tornam um espetáculo
da mídia, partindo de um estilo minimalista utilizado por vários estilistas nos
anos 90. A dupla Viktor & Rolf choca o mundo da moda com a coleção Outono-
Inverno 2001/2002 intitulada “Black Hole”, em que todas as roupas são pretas e
os modelos são pintados da mesma cor, criando um efeito de
bidimensionalidade aos corpos. A dupla explica que, com este efeito, somente
as texturas e padrões dos materiais se tornam visíveis. “O aspecto
aparentemente liso obtém certa profundidade, mas sem perspectiva.
Queríamos encontrar maneiras de tornar visíveis formas vazias, tendo o buraco
negro como o nosso exemplo”, concluem.
44
Figura 26 – Desfile da coleção “Black Hole” da dupla Viktor & Rolf, apresentada em Paris, em 2001. (Fonte: http://www.independent.co.uk/life-style/fashion/its-show-time-viktor-amp-rolfs-catwalk-spectaculars-848771.html?action=Gallery&ino=2)
O acesso aos desfiles de moda tornou-se mais democrático graças à
internet. Um bom exemplo dessa prática é o desfile de 1999 da marca norte-
americana de lingerie Victoria’s Secret, em que o público que acompanhava o
jogo final do campeonato da Liga Nacional de Futebol, popularmente chamado
de Super Bowl, foi convidado a assistir ao desfile da marca, ao vivo pela
internet. A apresentação durou 21 minutos, atraindo 1,5 milhão de pessoas.
Outras marcas seguiram o mesmo passo, como a já citada Viktor & Rolf, a
norte-americana Ralph Lauren e a inglesa Burberry.
Figura 27 – Desfile multimídia da Burberry, em Pequim (2011). (Fonte: http://luxosimplesassim.blogspot.com/2011/04/burberry-in-beijin.html)
45
O último desfile da Burberry para o lançamento da coleção Outono-
Inverno 2011/2012 ocorreu em Pequim, capital da China, sendo transmitido ao
vivo pela internet e compartilhado por diversos sites de relacionamento, como o
Facebook e Twitter, além de sites e blogs de moda que puderem retransmiti-los
e um aplicativo exclusivo para o iPad disponibilizado em todas as lojas Apple.
Quanto ao desfile, painéis foram montados de maneira estratégica no
local, inclusive em toda a extensão do teto, com videoclipes e cinematográficos
que transmitiam de guarda-chuvas voando e de modelos virtuais e reais
desfilando e fazendo uma coreografia ao som da chuva e de uma trilha sonora
executada eclética. Ao final do desfile, um show ao vivo com a banda inglesa
Keane. Num trabalho multimídia sem precedentes, é possível identificar nos
vídeos, através da gestualidade das coreografias, filmes consagrados como A
noviça rebelde (1965) e Cantando na chuva (1952).
46
2.2. A trajetória dos desfiles de moda no Brasil
Em 1926, a Mappin Stores, loja inglesa que chegou a São Paulo em
1913, passa a realizar desfiles semestrais denominados de “paradas de
modéles vivants”, com coreografias selecionadas pelo inglês Edward Couch,
responsável pelas vitrinas do magazine. Os desfiles eram abertos ao público.
No Rio de Janeiro, a Casa do Canadá, fundada em 1929, comercializava
roupas das marcas Balenciaga, Dior e Jacques Faith, vindas diretamente da
Europa. Com as dificuldades para importação, abriram a Canadá Luxe, em
1944, considerada a primeira casa de alta costura brasileira. Logo após a
inauguração da loja, passaram a realizar desfiles, realizados a cada nova
estação, para mostrar suas criações para a imprensa local.
Figura 28 – Modelos fazendo pose após um desfile para a Casa Canadá, no Rio de
Janeiro, em 1950. (Fonte: Acervo público do estado de São Paulo)
Figura 29 – Modelo desfilando para a Casa Canadá, em 1950. (Fonte: Acervo público do estado de São Paulo)
47
Figura 30 – Cartaz de 1952, com cromatismo remetendo à bandeira brasileira, com diagramação inspirada no grafismo da Semana da Arte Moderna de 1922.
Nos anos de 1970, em Paris, Kenzo proibia os brasileiros de
frequentarem os seus desfiles. O conflito tem como origem o fato de seus
trabalhos terem sido literalmente copiados por uma grande loja de Copacabana
que, mesmo depois de interpelada na justiça, manteve o nome Kenzo Jap em
sua fachada. O fato ilustra a voracidade do mercado brasileiro que, de um lado,
não poderia consumir determinados filmes e revistas proibidos pela censura do
regime militar e, de outro, incorporava sem crítica todas as influências
sugeridas pelo contexto internacional.
Havia um predomínio do jeans e do imaginário hippie que, por sua vez,
evocava a cultura indiana, com elementos ciganos, árabes e africanos. Entre
nós, foi o momento da valorização dessa etnia, que surge em estampas tribais,
penteados e colares de contas. Os desfiles da marca Blu-blu, de Marina Valls,
por exemplo, eram verdadeiras apoteoses em que a prefeitura fechava a rua
Montenegro – atualmente Vinícius de Moraes – para emular as tradicionais
festas de largo da Bahia ao apresentar, com batucada e banda de música, a
sua linha afro para noite e dia a dia.
Naquele período, destaca-se a ousadia de Zuzu Angel, cujos desfiles
chegavam a assumir ares de manifestações de protesto porque seu filho, o
militante de esquerda Stuart, foi dado como morto pela repressão. Nas
estampas de uma de suas coleções, ela chegava a mostrar anjos negros
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crivados de balas, armas e tanques militares. Ao final da década, aproveitando
palavras de ordem como “o sonho acabou” e “paz e amor”, formava-se um
conjunto de onze criadores conhecido como o Grupo Moda Rio.
Liderados por José Augusto Bicalho, sua meta era trazer os grandes
desfiles de volta para a cidade, em eventos que associassem o jeito de ser
carioca à ideia de uma festa interminável. Tais eventos aconteciam
principalmente nos hotéis de luxo, como o Copacabana Palace e o Méridian.
As coleções inovavam em desenho e tecidos, mas fugiam de tudo que fosse
demasiadamente caro ou extravagante – no fundo, tratava-se de tomar os
parâmetros do prêt-à-porter parisiense como principal referência.
Os primeiros anos da década de 1980, portanto, são marcados por uma
hegemonia do prêt-à-porter e da moda carioca. Entretanto, com o primeiro
Rock in Rio (1985), a moda brasileira se voltou, ainda que com atraso, para o
punk, o new wave e o dark (gótico) − com todas as suas extravagâncias. Já o
desastre nuclear de Chernobyl (1986) trouxe uma grande preocupação com o
planeta e a ecologia, abrindo espaço para os tecidos naturais e para a cor
branca.
O processo de redemocratização do país e o crescente aumento da
participação popular nas decisões políticas se expressa na moda por meio da
negação do luxo, da opulência e de todos os exageros. Nos anos de 1980,
foram tantas as crises econômicas e tão galopante a inflação, que o período
veio a ser chamado de “década perdida”. Para muitos, essa apreciação vale
também para a moda, que se mostrou carente de brilho e inventividade. A força
das novelas de TV crescia tanto que os figurinistas televisivos chegam a
influenciar a moda.
Esse conjunto de fatores levou a certo retraimento na produção de
desfiles. Em certos casos, surgiram algumas novidades que resultaram
exclusivamente da carência de recursos. Organizados numa espécie de
cooperativa, a Abemoda (Associação Brasileira dos Estilistas de Moda)
organizou um desfile dentro da Fenit Verão 1984/85, realizado no Hotel
Maksoud Plaza, tendo como o tema a cangaceira Maria Bonita. Na ocasião,
49
foram desfilados 125 modelos elaborados por 25 estilistas, sem a presença da
imprensa – foram convidados apenas os confeccionistas. O passo seguinte foi
trocar os desfiles por books de tendências. Conforme citado em Braga e Prado
(2011), o presidente da entidade, José Gayegos, relata:
Por falta de recursos desistimos dos desfiles e então fizemos uma grande exposição na Galeria Artefato na Rua Hadock Lobo. Montamos uma passarela como se fosse uma final de desfile, muito bem iluminada, com manequins de vitrina e espaço para as pessoas poderem transitar entre eles.
Uma outra entidade congênere, a Associação de Alta moda Brasileira
(Aambra), também precisou inovar em matéria de desfile, como o organizado
em 1985 no SENAC. Montou-se uma passarela que se estendia até o lado de
fora do prédio, “para que as manequins mostrassem a moda para as pessoas
que não tinham acesso aos desfiles”, como diz o seu presidente Roberto Issa.
Em 1986, foi montado outro desfile na casa de espetáculos Palladium, mas a
falta de patrocínio fez com que a maioria das roupas fosse emprestada pelos
próprios clientes.
Nos anos de 1990, o surgimento do Calendário Oficial da Moda
Brasileira marcou um “novo” impulso e investimentos nos desfiles de moda. O
Phytoervas Fashion, criado em 1994, foi a primeira tentativa de fixar uma data
no calendário da moda brasileira, sob a tutela da empresária Cristiana
Arcangeli. Em sua primeira edição, participaram as marcas Walter Rodrigues,
Cia do Linho e Alexandre Herchcovitch. A oitava e última edição ocorreu em
1998.
Figura 31 – Desfile de Jum Nakao realizado no Phytoervas Fashion, em 1997 – espaço fechado. (Fonte: http://mondomoda.wordpress.com/2011/03/01/phytoervas-fashion-youtube/)
50
Em 1996 é lançado Morumbi Fashion Brasil, com iniciativa de Paulo
Borges que, em 2000, lançaria o São Paulo Fashion Week (SPFW)
consolidando o calendário da moda brasileira. A capital paulistana recria
paisagens e espacialidades a partir dos desfiles de moda que ocorrem duas
vezes ao ano na cidade. A partir do SPFW, São Paulo passou a ter visibilidade
e a se posicionar entre as principais capitais da moda mundial. Atualmente, faz
parte de um circuito internacional de moda ao lado de Paris, Milão, Londres,
Tóquio e Nova York, o que contribui para uma projeção mundial de marcas e
modelos brasileiros lançados no circuito global.
A semana de moda que, de acordo com a SPTuris, o SPFW realiza na
cidade, movimenta mais de R$ 1,8 bilhão, sendo que R$ 85 milhões
correspondem à movimentação direta em virtude do público presente ao
evento. São, aproximadamente, 100 mil pessoas, sendo que cerca de 38 mil
destes são turistas nacionais/internacionais. A moda ocupa, assim, a própria
cidade de São Paulo, que ganha cada vez mais esse traço identitário na
medida em que dados como esses comprovam o status da capital paulista de
ser a principal cidade latino-americana quando o assunto é moda. Segundo
pesquisa recente da Global Language Monitor, grupo sediado nos Estados
Unidos que rastreia a procura e a presença de palavras na mídia e na Internet.
Participam do evento, a cada edição, uma média de 150 compradores
internacionais, representantes de grandes redes de varejo oriundos da Europa,
Estados Unidos, Oriente Médio, Índia e América Latina. A média de jornalistas
e profissionais de imprensa na cobertura do evento é de mais de 2.100
nacionais e internacionais cadastrados, de dezenas de países, entre Rússia,
França, Japão, Coreia, Itália, Estados Unidos, Alemanha, entre outros.
51
Figura 32 – Desfile no Pier Mauá de Walter Rodrigues, no Rio de Janeiro, em 2007 (Fonte: BRAGA, J. PRADO, L. A. História da Moda no Brasil: das influências às autorreferências. São Paulo, Pyxis Editorial, 2011).
Figura 33 – Desfile da Blue Man, na espacialidade aberta no Fashion Rio em julho de 2007. (Fonte: BRAGA, J. PRADO, L. A. História da Moda no Brasil: das influências às autorreferências. São Paulo, Pyxis Editorial, 2011)
Cerca de 350 modelos desfilaram nas passarelas do São Paulo Fashion
Week, que recebeu um investimento de, aproximadamente, R$ 13 milhões e
atraiu mais de 1,8 milhão de pessoas ao Pavilhão da Bienal, situado no Parque
do Ibirapuera, um local emblemático de São Paulo, que aloca evento no prédio
das bienais de Artes, Design e Arquitetura, que integram a agenda global da
metrópole. As grifes e estilistas que atualmente compõem o SPFW investem
nos desfiles por volta de R$ 7,5 milhões a cada temporada, impulsionando
empregos e negócios.
A indústria brasileira da moda reúne 30 mil empresas, movimenta US$
50 bilhões/ano e emprega 1,7 milhão de brasileiros. É hoje um dos setores que
mais recebe atenção do governo federal para a criação de empregos e
investimentos, sendo responsável por 17% do PIB da indústria de
transformação no país.
52
Este estudo analisa em que medida o deslocamento dos desfiles do
espaço convencional para um espaço inusitado, como, por exemplo, rios,
jardins, viadutos, estações da cidade, é determinante para instaurar uma
fratura na programação dos mesmos (programado: espaço convencional vs.
fratura: espaço inusitado), conforme a proposta teórica de Landowski. Para
levar o público ao espaço de fratura há estratégia de manipulação e pode ou
não ocorrer uma experiência contagiosa, pois vai depender se o público irá
vivenciá-lo.
53
2.3. Os tipos de desfile de moda
Qual a plasticidade do desfile de moda? Quais as qualidades sensíveis
produzidas na sua forma de visibilidade na cidade? O espaço do desfile
começa a partir do sujeito (espectador), que é estabelecido como grau zero da
espacialidade. O público é englobado no desfile e pode se tornar participante
de distintos modos, seja como passante, como morador, como convidado a
participar do evento ou com funções especificas estipuladas para a ocasião.
Na sua constituição, os desfiles são sistemas sincréticos que, em sua
articulação de várias linguagens no plano da expressão para a concretização
do plano de conteúdo, podem gerar desdobramentos comunicativos capazes
de modificar a visualidade e as paisagens urbanas, provocando nos
enunciatários estímulos sensíveis propostos pela mediação do lugar e do
entorno em que acontecem, que deixam de ser só um palco das cenas e se
tornam constituintes do arranjo sincrético. Dessa maneira, são várias
linguagens que sustentam o plano de expressão para criar o plano de conteúdo
como uma totalidade de sentido.
Nesta dissertação, verificamos nos desfiles a existência de linguagens
visuais, sonoras, verbais, plásticas, cinéticas, gestuais, além de espaciais, que
envolvem a arquitetura e ambientação do local no contexto urbano. O cenário
que se posiciona no seio da cidade produz, com suas condições de luz, um
jogo de iluminação natural e artificial, condições térmicas, sonoras e olfativas.
Esse arranjo do destinador voltado para a criação da imagem de moda
em uma passarela diversa vai bem além de uma mera exposição de looks e
torna-se uma estratégia de diferenciação da marca.
O desfile de moda é tomado neste estudo enquanto um texto de alta
complexidade em que um enunciador pode ser configurado por sua seleção e
arranjo da plástica expressiva e do conteúdo com temáticas e figuratividades
articuladas segundo suas preferências estéticas. Este todo de sentido produz
efeitos estésicos e estéticos no seu público, que é o enunciatário instalado no
desfile. Os desfiles devem carregar em seus discursos o efeito de sentido do
novo a partir da apresentação da sua coleção na passarela.
54
Um novo texto surge quando a coleção sai do ateliê do estilista −
instaurando o espaço enunciativo para permitir ao público o acesso à
significação. A nós, analistas, cabe desvendar os procedimentos sincréticos,
temáticos e os de figuratividade para exame da discursividade que o estilista
põe em cena com o propósito intencional de manipular o destinatário,
explorando sua axiologia, gostos e volição para construir a produção de
sentidos do desfile de moda, quer para o público especializado de jornalistas,
quer para os demais difusores do novo da moda que estejam presentes.
O recorte que forma o corpus desta pesquisa seleciona os desfiles de
moda do SPFW edição primavera/verão 2009-2010, a saber: Maria Garcia
(2010), Cavalera (2010), Fashion Mob (2010) e Karlla Girotto (2005). Enquanto
os três primeiros seguem o critério temporal “ano 2010” e a realização em
espaços diversos de São Paulo, o desfile de Karlla Girotto foge dessa
normatização. Realizado no Rio de Janeiro cinco anos antes, esse desfile é
incorporado na análise como antidesfile, e nos permitira refletir sobre sua
ordenação na lógica dos demais desfiles. Com a escolha do corpus, iremos
pensar uma rede de realizações de tipos de desfiles. Primeiro partindo dos dois
deles, que se opõem na sua organização e para superar essas concepções
extremas, e dois que mantêm com esses opostos uma relação de
contrariedade.
Essa tipologia é uma construção semiótica que diagrama os tipos
possíveis a partir do universo dos desfiles realizados no país. Seu propósito,
portanto, é servir de reflexão para outros estudos de campo que pensarão os
desfiles, além de oferecer subsídios para os que buscam maior compreensão
de sua estruturação como todo de sentido, seja pelos organizadores de
desfiles, pela identidade das marcas ou, ainda, pelos que interpretam o papel
dos desfiles de moda na cultura da contemporaneidade.
Destacaremos as estratégias de encantamento usadas para alcançar um
enriquecimento estético e os modos de apresentar o desfile para produzir a
coleção, dois mecanismos organizadores do fazer-fazer e fazer-sentir o
enunciatário. Ocorre, assim, uma maior interação entre o público, o mercado,
os formadores de opinião e o estilista, além de uma ampliação de visibilidade
na mídia.
55
3. ABORDAGEM SEMIÓTICA DO DESFILE DE MODA
3.1. Operacionalização conceitual
Um desfile pode ter uma organização desencadeadora de experiências
sensíveis? Podem elas ter uma elaboração que os tornem ocorrências
estéticas na contemporaneidade? Na tentativa de respostas, tomamos como
ponto de partida a definição de experiência estética tal como concebida por
Greimas em sua obra de 1987, “Da Imperfeição”. O autor compreende
experiência estética como um acontecimento extraordinário inserido na
cotidianidade, que provoca, por conseguinte, uma ruptura de isotopia que
fratura o cotidiano modulado por intencionalidade (regime de manipulação) e
por regulações normativas. Esses procedimentos são definidos por Landowski
enquanto regimes implicados, na medida em que o procedimento de
manipulação implica no de programação.
Enquanto o destinador forte está em nível diferente do sujeito com quem
age, fazendo-o seguir uma ação independente de sua escolha, ou seja, uma
programação para que se opere a sua conjunção com objeto de valor (ov), ele
é levado a buscar sem poder escolher o procedimento de manipulação. Há um
destinador que se volta sobre o destinatário para conhecer seus valores,
gostos e volições, a partir dos quais assume uma construção com a
intencionalidade de agir sobre a volição do sujeito que pode dar seu acordo à
proposição e realizar o fazer proposto. Distinto da imposição do primeiro
procedimento, neste de manipulação a busca negociada produz um contrato de
adesão.
Além desses dois procedimentos, clássicos nos estudos entre os
parceiros da comunicação, Landowski propõe um terceiro procedimento: o do
acidente capaz de quebrar a ordem estabelecida. As três posições postas por
Landowski no diagrama das ações humanas o fizeram, logicamente ir em
busca do subcontrário do procedimento de acidente. Sigamos o esquema:
56
Procedimento da Programação vs Procedimento Acidente
Princípio de regulação Princípio de descontinuidade
Procedimento Manipulação vs Princípio de Intencionalidade
Em relação ao procedimento de manipulação, o par correlato proposto
por Landowski (2004) é o procedimento de ajustamento. Enquanto o princípio
regedor do procedimento de manipulação é a “intencionalidade”, o do
ajustamento é a “sensibilidade”, que se dá com os dois sujeitos em copresença
e os leva a descobrir juntos, na experiência sensível, um sentido descoberto
um pelo outro.
Ao assumirmos, na esteira greimasiana, a noção de experiência estética
como uma “fratura” na continuidade do percurso narrativo do sujeito que é
lançado a uma quebra dos valores estabelecidos, iremos recorrer aos
desenvolvimentos apresentados por Landowski (2005), postulados como
implicado a esse procedimento de acidente – o de fratura de ocorrência
imprevisível e extraordinária. O sujeito passa por um sentir o sentido, em uma
experiência em que o sentido flui entre os dois sujeitos no mesmo nível e pode-
se viver uma troca do que são, que é um sentir que elaboram juntos, levando-
os a descobrir algo que compartilham.
Completando assim o outro lado da gramática narrativa, a semiótica de
Greimas ganhou, com os avanços das pesquisas de Landowski, um maior
alcance, em especial para a análise de objetos complexos de valores e
universo polêmicos, como são os desfiles que fazem uso de uma dinâmica de
procedimentos no seu significar.
Os tipos de interações entre os sujeitos realizadas pelos quatro regimes
que compõem o recorte desta pesquisa possibilitam a transferência de sentidos
não apenas racionais, mas também sensoriais, afetivos e emocionais, advindos
através de dois tipos de contágio, que Landowski define como de sensibilidade
efusiva – o estado de sentir o sentido de um sujeito pela ação do outro sujeito
57
parceiro, que marca uma via sem mediações entre os dois sujeitos –, enquanto
a variante desse contagio pode ocorrer como contagio reativo dado pela
exploração das mediações dos arranjos de linguagens dominados pela
exploração do sensível que sensibiliza, mas voltado para um propósito de
convencimento. A análise do percurso dinâmico das interações propostas nas
relações sociopolíticas e culturais vai nos permitir procedimentos mais
específicos e de alcance da complexidade axiológica que vivemos.
Enraizado nos estudos sociossemióticos, Landowski mostra a
semiotização do fenomenológico viver da experiência estética e apresenta o
conceito de experiência sensível como uma possibilidade de dar conta de
análises semióticas centradas nos regimes de acidente e ajustamento. Com
essa conceituação, o autor apresenta a diversidade dos regimes de presença
do sujeito no e ao mundo, além de regimes de interação, nos quais se
inscrevem os distintos tipos de sujeitos, com o mundo e com os outros sujeitos.
Por meio desses dois regimes complementares, encontram-se meios
para detalhar a apreensão do sentido na experiência do cotidiano e até mesmo
na sua dissolução, na indiferença ou na insignificância, que é a morte do sujeito
no seu estado de busca de construção do sentido das coisas e de si mesmo,
assim como no seu estado de ruptura com o imprevisível, que tem a força pelo
excedente, no sentido de resignificar o seu viver.
Landowski propõe uma forma de análise baseada na ideia de movimento
e de mobilidade dos procedimentos de sentido empregados em uma
construção de objetos e práticas sociais complexas. Esse modelo de análise,
amplificando os regimes de sentido, alargaram as possibilidades de alcance da
semiótica como uma teoria da ação humana cujos regimes de sentido,
homologando os “regimes de interação”, vão permitir compreensão das
espécies de ação humana e de seus imbricamentos.
Assim, Landowski (2001, p.35), a partir de uma “semiótica da
experiência”, não só da experiência estética, mas de toda ordem que pode ser
denominada por ele de sociossemiótica das práticas de vida, promove uma
convocação dos demais semioticistas para refletir sobre experiências
cotidianas presentificadas na constituição de identidades, dos gêneros, dos
estilos de vida, dos gostos e dos modos de presença dos sujeitos em
sociedade. Essa reflexão é originária da captação do sentido enquanto
58
dimensão que o sujeito prova de si e do seu estar no mundo, mediante a qual
se torna possível manter um contato direto com as coisas do cotidiano, do
social e da forma de viver a experiência dialógica que faz ser o sujeito.
Embora a sociossemiótica entenda que, na maior parte de nosso
cotidiano, vivemos dentro da esfera da funcionalidade e da programação, ela
também procura captar o sentido daquilo que não se apresenta na superfície
de modo imediato, mas que, segundo o pesquisador, se apresenta de um
modo em que se opera uma forma de comprometimento entre os sujeitos, pois
é fruto de uma implicação do sujeito com o outro que se relaciona.
A captação desse sentido proposto por Landowski é realizado, portanto,
dentro dessa concepção teórica, por meio da presença do sujeito junto às
coisas ao mundo, ao outro sujeito e a si próprio, promovendo um apreender
sensível de duas qualidades plásticas (no que diz respeito aos componentes
matérico, eidético, cromático, topológico e rítmico) que, no arranjo articulado
dos traços, trazem as marcas do sentir estésico da presença do sentido.
Conforme expõe Landowski (2001, p. 53),
trabalhar na elaboração de uma semiótica do cotidiano e do vivido (isto é, da experiência e das situações) é admitir, de antemão, um forte grau de envolvimento de nossa parte enquanto que analista em relação ao real.
No entanto, ainda segundo o autor, devido aos movimentos puramente
reativos dos indivíduos ao que lhes sucede e estão expostos, assume-se
então, para análise:
uma posição complexa onde sujeito e objeto se interpenetram [...] é somente na e pela prática que se deverá, e poderá ajustar seu próprio regime de olhar a natureza do „objeto‟. Um olhar rigoroso que quer ser tão rigoroso quanto for possível, sabendo, entretanto, que a maior parte de nossos pretensos objetos só faz sentido quando sabemos reconhecer neles tantos outros sujeitos que, por sua vez, também nos olham (LANDOWSKI, 2001, p. 53).
O autor propõe, portanto, uma concepção de olhar que acompanhe a
dinâmica dos sentidos convocados e que os transmita nessa transversal do
sentir. As coisas, os objetos e outros sujeitos se mostram para ser captados,
fazem-se ver nesse seu dar visibilidade de si.
59
No campo da moda, podemos depreender que tal visibilidade vai além
de uma estratégia de marketing, pois o desfile compreende a criação do
ambiente de uma experiência tramada para ser vivida no “aqui” e no “agora”
(cf. OLIVEIRA, 2009, p.65). É como esfera da experiência que se dá no social e
que pode ser partilhada que examinaremos nosso objeto de estudo,
hipotetizando que suas complexas estruturações, com seus arranjos de
linguagens, podem ser descritas pelos regimes de sentido e de interação, de
acordo com o quadro das ideias sociossemióticas de Landowski apresentado
anteriormente.
O desfile é o ponto de entrada simbólica do designer de vestuário
(estilista) no mercado comercial. Ele compreende, portanto, a ligação entre a
produção e o consumo do produto final, obtida a partir de uma determinada
sequência organizada e apresentada durante o desfile.
No desfile, todos que estão presentes em ato querem fazer parte
daquele momento: obter informações a respeito das tendências de moda, dar
notícias e torna-se notícia, o que guarda em si a sintaxe do “ver e ser visto”,
que Landowski define como a trama da visibilidade. Inclusive, há nos desfiles
correlatos a essa trama da ideia de pertencimento a grupos ou a um segmento
distinto social (1992): o público, somente por estar na fila, na espera ou na
plateia, desenvolve o que é mais relevante nos modos de presença social.
Enquanto discurso, cada desfile procura estabelecer uma interação entre
os sujeitos, na qual o destinador-manipulador (sujeito S1, enunciador do
discurso), figurativizado pelo estilista, desenvolve um fazer cognitivo, por meio
do qual intenciona realizar a transformação de certas determinações próprias a
quem ele se dirige, no caso, o destinatário (sujeito S2, enunciatário do
discurso), figurativizado por simulacros criados em linguagens do público-alvo.
O querer desse público também é trabalhado e investido no que lhe é
oferecido como objeto de valor, correspondente à sua volição. Assim, as
imagens do criador e do público estão nas roupas e no desfile que as lança ao
social.
O desfile de moda é um recurso de marketing que dá visibilidade ao
estilista, ao mesmo tempo em que constrói as suas marcas identitárias. Ao
persuadir o enunciatário por um desejo de adquirir “novos” produtos para
acompanhar as “novas” tendências do mercado do consumo, o estilista, como
60
destinador, arquiteta a sua presença no mundo da moda. A manifestação
discursiva do desfile segue uma determinada programação, que tem quebras
por fraturas, das quais irrompe a descontinuidade em forma de novidade. Junto
aos procedimentos de manipulação e de ajustamento, o enunciado é
organizado para obter o envolvimento do enunciatário, conforme define
Oliveira:
A moda manifesta-se não somente, o que é óbvio, a partir da divulgação de suas tendências, mas também da mitificação dos seus criadores, através das coleções nos desfiles de lançamento e também nos corpos das personalidades que desfilam noutros palcos da fama ou, ainda, nos corpos anônimos, desfilando nas passarelas múltiplas da cotidianidade, afora as veiculações incontáveis na mídia impressa e televisiva especializada, assim como nos filmes, peças teatrais, revistas, programações televisivas, nos principais eventos esportivos, nas campanhas políticas, entre tantos outros nos quais a moda figura na agenda para não perder nenhuma das oportunidades de se fazer presente.” (OLIVEIRA, 2002, p. 128)
A circulação de valores de forte ascensão social no ambiente permitir
considerar o desfile examinadamente. Normalmente, o desfile acontece numa
sala fechada, com uma passarela vertical em forma de “T” (figura 8), “I” (figura
34) ou “U” (figura 36), com aproximadamente setenta metros de comprimento e
6 metros de largura. Nas suas laterais, há fileiras de cadeiras, dispostas uma
ao lado da outra, com diferentes níveis de altura, formando uma arquibancada,
na qual irão se sentar diversos tipos de convidados do desfile. Na frente, ou na
“boca da passarela”, encontra-se o local em que se concentram os fotógrafos e
os cinegrafistas dos veículos de comunicação que fazem a cobertura do
desfile. Nas laterais, estão instalados os convidados. Nos fundos, estão
localizadas as salas de apoio, chamadas de backstage, local reservado para as
modelos se prepararem para o desfile e toda a produção de evento, incluindo
roupas, acessórios e maquiagens.
61
Figura 34 – Passarela em forma de I desfile de Madame Vionnet, 1924 (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G.. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
Figura 35 – Sala de desfile de Moda do Magazine Printemps, passarela em forma de “I”, em 1937. (Fonte: GALLIERA, M.; BEAUJARD, G. Showtime: le défilé de mode. Paris: Paris Musées, 2006)
Figura 36 – Passarela em forma de “U” do desfile de moda de Glória Coelho, 2009. (Fonte: http://www.modaparausar.com/)
Tramados no arranjo do plano da expressão nas montagens da
operação tradutora dos temas na figuratividade, os valores estéticos vão
construir a aparência sensível do desfile. Tais valores são essenciais para
62
despertar interesse no público, assim, o procedimento de contágio é
processado para criar um procedimento de manipulação por sedução nos
distintos públicos que assistem o desfile. Os mecanismos de convocação do
publico compreendem as estratégias de envio do convite, dos brindes e até
mesmo dos escolhidos para ocupar a primeira fila. Todas essas ações passam
a fazer parte da identidade da marca, que se estrutura na visibilidade que é
edificada para ser vista, produzindo no outro o querer vê-la.
Entre esses mecanismos, algo que vem ganhando destaque é o convite
de alguma celebridade midiática, para que, com a sua visibilidade, ajude a
transformar o evento em notícia, como por exemplo, no caso do desfile da grife
Maria Garcia (SPFW, inverno/2010). A escolha do destinador foi a participação
da atriz Mariana Ximenes. O recurso é o empréstimo da autoridade à marca,
pois, estando no desfile, ela manifesta seu aval à marca. Na fig.37, pode-se
acompanhar como os fotógrafos invadem a passarela ainda coberta minutos
antes do desfile para captar imagens da atriz.
Figura 37 – Marina Ximenes no desfile da Maria Garcia. (Foto: Nati Canto)
Quanto aos recursos empregados para sensibilizar o enunciatário,
destacamos a utilização da trilha sonora ou de performance musical ao vivo,
que é capaz de agregar o envolvimento do público por criar uma disposição
afetiva, tal como aconteceu no desfile da Fausen Haten (SPFW,
Outono/Inverno 2006), com a participação da cantora Maria Rita avalizando
então a marca com sua identidade.
63
Acrescenta-se a esses recursos o arranjo da dimensão semiótica do
espaço, que articula a localização, posicionamento e distância entre os vários
pontos do desfile. Um campo de estudo da proxêmica envolve a posição dos
sujeitos entre si e entre o espetáculo do passado. O desenho de iluminação é
fundamental na produção desse ambiente, com foco na passarela, na
adequada composição do cenário e na utilização de efeitos cênicos. Essa luz
que ilumina o que não pode não ser visto anima-se pela rítmica dada a
ordenação global.
Essas são algumas das propriedades plásticas que vão ajudar a criar
uma predisposição comunicacional entre o estilista, enquanto destinador-
manipulador e seu público, destinatário-manipulado e sensibilizado, presente
no ambiente do desfile. Nessa ambientação, tudo é estruturado com o objetivo
de atingir o destinatário, a fim de que ele passe por uma experiência da moda
proposta e contribua para a criação e o estabelecimento do “conceito” da
marca.
Quando o desfile propriamente dito começa, em primeiro lugar, sobre a
passarela, desfilam os integrantes da ação performática: os produtos da marca,
que são apresentados enquanto coleção nos corpos dos manequins
selecionados cuidadosamente, pois, na ambientação, eles são os sujeitos nos
quais os “conceitos” da marca são inscritos como objeto de valor para serem
admirados, desejados e sentidos pelo público.
No que diz respeito à narratividade, tem-se uma história contada pela
proposição da coleção, uma sequência de estados que são transformados por
ela. Cada modelo desfila uma transformação da coleção anterior, que é
proposta compondo uma totalidade de sentido da atual coleção que, por sua
vez, é apreendida nas partes integrantes do todo. Como enunciado resultante
de uma enunciação enunciada, verificamos uma sequência narrativa construída
mediante o trabalho de edição do desfile e que corresponde, portanto, à
disposição dos produtos em partes, ordenadas a partir dos propósitos
organizadores do desfile.
Por esse arranjo, o desfile torna-se um instrumento de persuasão do
destinador-manipulador, figurativizado pelo estilista, capaz de convencer o
outro enunciatário do discurso presente no desfile e para o qual o todo de
sentido é montado. É nessa esfera que se entretecem os aspectos conceituais
64
que são interpretados e que vão fazer, ao lado das roupas, interpretações
sobre ela que corroboram para a identidade do estilista e da marca.
O destinador assume-se manipulador do destinatário e, no discurso,
delega o enunciar ao enunciador. Estamos na esfera da construção do texto e
uma interação dialógica é montada entre quem enuncia o enunciado e outro
sujeito. Esse processo, que Ana Claudia de Oliveira (2010) denomina por
“interações discursivas”, funda o tipo de processo interativo entre o enunciador
e enunciatário, que desenvolve em seu desenrolar o processamento da
significação.
O enunciador busca levar o enunciatário em um percurso de aquisição
de competência cognitiva, para que ele passe a ser integrado ao sistema de
valores da indústria de moda. Se ele já possui a competência, esta então é
então alimentada para ser mantida. O enunciatário é intencionalmente
manipulado para dever-saber, querer-saber e crer-poder-saber. Assim
modalizado, ele pode entrar em conjunção com os valores ideológicos
propostos pelo enunciador no enunciado do desfile. Desse modo, o enunciador,
além de manipular seu enunciatário – e, portanto, o potencial consumidor
dessa marca – a saber a respeito de determinada concepção de moda,
figurativizada pela “marca”, além de ter como intencionalidade a meta de
desencadear no enunciatário o desejo de compra. Dessa forma, o enunciador
opera para levar seu enunciatário a dever ou querer adquirir um determinado
objeto de valor, peça de vestuário, a fim de, pela prescrição regime de
programação ou pela volição regime de manipulação, aderir à concepção de
moda construída pelo desfile.
Do ponto de vista econômico, a indústria da moda se utiliza da estratégia
da previsibilidade para apreender antecipadamente as tendências que estarão
em voga em cada estação. O mecanismo dos desfiles, das coleções e das
tendências tem como significado fundamental o marketing das atitudes
culturais, que pode ser definido como uma tentativa de controlar o gosto do
enunciatário. Enfatizamos que se trata de uma tentativa, pois o enunciatário,
apesar de estar inserido em um sistema de coerções ideológicas do mundo da
moda, pode ou não ser mobilizado, portanto, para a tal manipulação. É de seu
livre-arbítrio o fazer interpretativo da manipulação exercida pelo destinador-
manipulador, com a posterior adesão ou não ao conceito de marca proposto.
65
Na verdade, esse mecanismo mostra-se muito mais complexo, seja pela
globalização de mercado, pelo acesso de novas classes ao consumo de luxo,
ou, sobretudo, pela interação com os novos meios de comunicação, que
apresentam estilos e informações inéditas. A moda oferece um modelo
comunicativo para a difusão de ideias, gostos e atitudes coletivas. Podemos
afirmar, assim, que a moda tece uma rede calcada na necessidade de
conformidade e de diferenciação na sua comunicação visual (VOLLI, 2007).
Em seu desfile de 2006, o cipriota Hussein Chalayan (1970) utilizou
recursos tecnológicos para produzir roupas que se metamorfoseavam na
passarela ao simples toque do controle remoto. No último look, reproduzido na
figura 38, o chapéu da modelo “engoliu” a roupa, deixando-a inteiramente nua.
Em um esforço de arriscar a previsão do futuro, o estilista procurou, com essa
estratégia, traduzir na imagem de passarela um claro desejo de se superar pela
exploração de arquiteturas mais ousadas, a ponto, inclusive, de desafiar as
formas naturais do corpo. O ato de colocar em cena tal transformabilidade da
roupa vestida no corpo que se atualiza no ato de realização em que todos
estão em presença causa impacto na plateia. Não é só o ato de mostrar a
roupa. Ao despir a modelo, é a perenidade do corpo que é posta em cena,
sensibilizando a todos com o universo de possibilidades do corpo para além da
proposição da moda. Com ênfase nas infindáveis recriações da moda.
Chalayan afirma que a criação de moda tem que se reinventar
Figura 38 – Desfile de Chalayan, em 2006. (Fonte: SEELING, C. Moda: 150 anos.
Estilistas, designers, marcas. Trad. Isabel Remelgado, Margarida Seiça. Postdam: Ullmann Publishing, 2011)
66
No capitulo intitulado, "La imagem del mundo al revés", presente no livro
Cultura e Explosão (1993), Lotman aborda a moda inserindo-a em uma
concepção de mundo que seria, na dinâmica do não dinâmico, o que, em
termos de Greimas, corresponderia à descontinuidade do contínuo e que pode
ser tomado pela dinâmica de articulações e procedimentos propostos por
Landowski enquanto regimes de sentido. A complexidade do fazer de Chalayan
atualiza o encadeamento com passagens dos procedimentos de manipulação
aos de previsibilidade, além do procedimento de programação ao de
ajustamento que encadeia uma vivencia e proposição de descobrir o novo atual
da criação de moda para o corpo do século XXI.
Lotman considera que uma realização possível desse processo seria a
moda, ao introduzir o princípio dinâmico nas esferas do cotidiano de aparência
de não dinâmica. A moda é um termômetro do desenvolvimento cultural.
Assim, para o autor, a moda é quase uma encarnação visível da novidade in-
motivada, passível de ser interpretada, seja como o domínio dos "caprichos" e
"extravagâncias" ou na criatividade inovadora. (LOTMAN, 1993, p.114)
O estilista é um criador de discurso com a aparência do novo, que o
rearranjo atesta ser uma contínua reinvenção do que já foi moda para produzir
o inesperado que, muitas vezes, não consegue obter no primeiro impacto a
compressão do público. Paradoxalmente, a moda é um fenômeno de elite e um
fenômeno de massa. É interessante observar a oposição entre o domínio do
estilista, que não é inicialmente compreendido, e o triunfo da moda, presente
na aceitação pela grande coletividade.
No âmbito social, é dominante a paixão do medo que compreende o
medo do sujeito passar despercebido por seus pares. Vemos, por conseguinte,
que a moda toma para si o papel de construção identitária, apoiando-se no
coletivo dessa insegurança para se impor e ser seguida como passaporte para
a aceitação social do individuo. Dessa necessidade humana e dessa força
econômica advém a obrigatoriedade nas agendas dos desfiles. Os desfiles são,
pois, tentativas da indústria da moda de revitalizar a sua força de construção
dos acontecimentos espetaculares que tentam ter forte repercussão nas
mídias, palco maior da espetacularização dos espetáculos.
67
Os desfiles são constituídos, essencialmente, de mudanças, podendo
ser definidos como uma sucessão de novidades e de estratégias do novo com
curto prazo. Por outro lado, as nossas práticas cotidianas podem ser vistas
como estando cheias de desfiles que se realizam diariamente fora das
passarelas: na rua, no trabalho, na igreja. Esses outros sentidos de desfilar na
vida é que estão postos na contrapartida, além de também poderem ser
explorados como recurso de sofisticação.
Portanto, dentre todos os eventos da área de moda, os desfiles são os
mais eficazes instrumentos para a promoção do varejo de moda. Caso o desfile
se dê em evento exclusivo, a eficácia aumenta consideravelmente, em
comparação a um desfile inclusivo com a presença de várias marcas, que
recebe o nome de multimarcas (SHIMID, 2004), que é mais uma variante do
desfile de moda que estamos trabalhando.
Em relação ao espaço do desfile de moda, ele é tridimensional em sua
ocorrência no ambiente em que se faz em ato para o seleto público de um
conjunto de destinatários. A seguir, estes se assumem como destinadores
tornam o desfile em mais uma mercadoria, posta em circulação na sociedade
de consumo por seus valores arranjados como objetos de desejo dos
destinatários segmentados que visam atingir. A sua tridimensionalidade,
imediatamente a seguir, é transformada em espaço bidimensional na sua
circulação midiática. Apesar do fato de acontecer na presença de apenas
alguns convidados, as imagens produzidas por esse público de especialistas
são divulgadas nas varias mídias – são esses agentes que, enquanto
destinatários, encadeiam os mecanismos de visibilidade do estilista iniciado no
circuito fechado do desfile, diversificando o seu alcance para os outros espaços
e outros sujeitos.
Assim, o desfile de moda é um acontecimento, cuja função comunicativa
está intimamente ligada à identidade da marca. Aliado a essa função
comunicativa do estilista e da concepção da marca, o desfile compreende
também uma vertente mais comercial, por meio da exposição de peças de
vestuário, que serão mais facilmente assimiladas pelo consumidor. Nesse
âmbito, existem grupos de estilistas que assinam por uma marca, como por
exemplo, Ellus e Forum. De outro lado, há a opção por um trabalho mais
pessoal, na vertente conceitual em que o estilista assina seu nome e
68
desenvolve uma identidade de marca. São exemplos brasileiros dessa vertente
Ronaldo Fraga, Lino Vilaventura, entre outros.
Figura 39 – Desfile de Ronaldo Fraga, 2005. (Fonte: FRAGA, Ronaldo. Coleção Moda
Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007).
A cada estação, o estilista procura apresentar o “novo” e superar a
coleção anterior, alimentando a construção da sua imagem individual a partir
de seu modo de apresentação na passarela. É da reiteração desse modo que
se define o estilo do criador e o gênero de sua criação de moda. Ele tece
escolhas que marcam a construção de uma imagem de moda na passarela,
pois a apresentação do desfile não se trata somente de ofertar produtos, mas,
essencialmente, de vender uma imagem, um conceito.
O estilista elabora uma lógica de desafio para realizar uma história
diferente, uma nova proposta de silhueta, tecidos com sabor de novidade. A
identidade de um estilista, na perspectiva de Landowski (2002), deve
permanecer sob as mudanças, rupturas e inovações, constituindo, portanto,
uma forma de invariância sob as variações. Essa invariante, como é reiterada,
determina a construção da identidade, que torna a descontinuidade contínua.
Seguindo essa concepção semiótica é que observamos que, nessas
manifestações, ética e estética estão interligadas. A estética compreende uma
maneira de organizar o mundo sensível, que é traduzido em linguagem, de
forma a expressar e a comunicar um sentido, um afeto, uma emoção capaz de
traduzir a visão do criador, correspondente à ética. O desfile de moda, então,
69
pode ser definido como uma experiência estética em que o estilista/criador
elabora uma maneira de ser, que é denominada éthos, que é primeiramente
experimentado pela plateia ou convidados e depois posto em circulação pelo
fazer interpretativo desses agentes para outros públicos.
Como estrutura, podemos concluir pelos argumentos desenvolvidos que
o desfile de moda é um texto sincrético, pois ele maneja várias linguagens no
plano de expressão (manifestação) para concretizar o plano de conteúdo, ou
seja, os investimentos semânticos com a atualização da axiologia da estética e
da ética. Dessa forma, verificamos nos desfiles a existência de linguagens
audiovisuais, visuais, sonoras, gestuais, musicais, espaciais e cinéticas, que
são plasmadas na arquitetura do cenário com o fazer ver da iluminação.
Todos esses recursos de expressão são articulados pela equipe de
produção, que age em conjunto com o estilista para a criação da imagem de
moda na passarela. Essa produção enunciativa coletiva é que operacionaliza a
coerência do arranjo das marcas identitárias, proposição que vai além de uma
concepção de desfile como mera exposição de looks.
Por conseguinte, graças aos mecanismos de enunciação, o desfile de
moda, por meio de seu enunciador coletivo, é tanto implícito quanto explícito no
enunciado. São criados efeitos estéticos e éticos para o seu enunciatário
(público) os sentir inteligível e sensivelmente por meio da estesia, que Ana
Claudia de Oliveira (1995) define como “condição de sentir o sentido”. O
enunciador do desfile, ao atualizar o discurso do novo a partir da apresentação
de cada uma de suas coleções na passarela, está realizando o seu percurso
narrativo, numa busca contínua por ser provocador de descontinuidades do
ciclo anterior. Assim, só a força do ato de dar descontinuidades para formar a
continuidade do seu modo de fazer é o que nomeia enquanto criador.
Cada novo texto em cada coleção surge, então, quando a coleção
desenvolvida com esses propósitos. As interpretações saem do ateliê do
estilista e, após passarem por uma edição dos looks (roupas, acessórios,
make, hair) e montagem do desfile (ambientação, casting, trilha sonora, ritmo,
gestual, cenário, iluminação), são colocadas em circulação como notícia.
Com esse conjunto de procedimentos, instaura-se a ambientação
enunciativa que permite ao público o acesso à significação dos procedimentos
sincréticos do desfile de moda. O enunciatário está posto, portanto, como alvo
70
do desfile, em um processo de comunicação que desenrola e tece um vínculo
com o público interlocutor que permanece marcado em todo seu
processamento discursivo.
Ao criar relações entre linguagens para construir os sentidos do desfile
de moda – ou sua visão de moda –, o estilista tem por objetivo sua
autoconstrução enquanto sujeito no mundo da moda. Denis Bertrand aborda
essa construção como uma questão de ponto de vista, definido como “o
conjunto dos procedimentos utilizados pelo enunciador para selecionar os
objetos de seu discurso e orientar sua focalização” (2004, p.427).
A noção de ponto de vista é, então, determinante para a criação de uma
angulação específica no desfile, bem como o modo de posicionar a coleção
para o público-alvo no mercado da moda. Esse conceito compreende a relação
modal instaurada pelo sujeito e seu objeto, segundo Bertrand, pelas
“estratégias de estruturação determinadas pelas coerções da textualização (o
que vem antes/o que vem depois, as relações entre as partes e o todo, a
passagem do particular ao geral ou inversamente, etc.)” (2004, p.428).
Seguimos no desenvolvimento dessa conceituação de desfile como a
articulação sincrética materializada na heterogeneidade de constituintes de
várias linguagens em uma ação de fazer ser o sentido, que Oliveira (2009)
define como formador do ponto de vista regedor da totalidade de sentidos. Se o
ponto de vista está inscrito nas interações discursivas, argumenta Oliveira, rege
também a atividade apreensiva do enunciador, que é delegada ao enunciatário.
É a sua sensibilidade e astúcia de conceber uma proposição de seu fazer a
presença do observador, que Bertrand define como um “sujeito cognitivo,
instalado pelo enunciador mediante debreagem, encarregado de receber
informações e transmiti-las” (2004, p.425).
Essa figura discursiva do observador é instaurada no desfile, portanto,
como um “ponto de vista sobre a ação” (GREIMAS; COURTÉS, s.d, p.29). É
esse público de seletos instalados no enunciado que reelabora, em seus
discursos, sanções positivas ou negativas ao que lhes foi comunicado.
Ao analisar alguns desfiles de moda, podemos depreender algumas
artimanhas de encantamento capazes de proporcionar uma experiência
estética, além de apresentar a ética do criador com sua visão do mundo da
moda e dos seres que vestem e circulam a moda em seus corpos.
71
Todo o modo de apresentar o desfile é pensado tendo em vista o fazer
do enunciatário, além de captar, na coleção, as imagens vivenciadas pelo
estilista. O desfile proporciona maior interação entre o público, o mercado, os
formadores de opinião e o estilista, além de ter maior visibilidade na mídia.
Essa interação pode ocorrer também pelo deslocamento dos ambientes,
ou seja, pelo deslocamento da passarela convencional para um espaço não
convencional ou pela utilização de elementos cênicos, ocasionando, assim,
uma imprevisibilidade na construção da narrativa do desfile.
De modo geral, cada evento selecionado neste trabalho será analisado
de maneira a descobrir o seguinte: nos cartazes, como eles estão se
comunicando; nas roupas, como se coloca o enunciatário de cada marca; nos
looks, como a cidade alimentou a sua criação; na cidade, como cada marca se
revela no cenário urbano e, no desfile propriamente dito, como a cidade é vista
por meio dele.
72
4. A ATUALIDADE DOS DESFILES DE MODA NO BRASIL
4.1. Usos da topologia nos desfiles de moda
O desfile de moda caracteriza-se por sua realização como um programa
narrativo (PN) completo, com começo, meio e fim definidos no âmbito da teoria
semiótica pelos regimes narrativos da junção e da união. Passamos agora à
análise do corpus da pesquisa.
Em cada desfile ocorre a entrada e a saída das modelos, que usam de
sua corporeidade e gestualidade para apresentar os produtos da marca. Essa
estruturação é invariante, apesar de serem muitos os modos de presença que
são encenados nos desfiles, seja por modelos “dormindo” em camas – como
ocorreu no desfile intitulado “Neutro”, de Karlla Girotto (Fashion Rio,
verão/2005); seja na atitude de caminhar entre as ruas da cidade – como o
Fashion Mob (Casa dos criadores/2010); seja pelo uso de trilha sonora mixada
com o ruído da cidade, tal como aconteceu no desfile da Cavalera (SPFW,
verão/2010); seja a utilização de trilha sonora composta para o desfile, como
ocorreu no desfile da Maria Garcia (SPFW, inverno/2010).
Como essa diversidade de procedimentos diferentes dos temas,
figuratividades e lugares de realizações pode formar um sistema que
represente os modos de presença dos desfiles de moda de maneira mais
ampla?
Partimos da hipótese que o que diferencia cada desfile que escolhemos
para ser analisado é a maneira como as concepções espacial, actorial e
temporal, ou seja, os procedimentos enunciativos, modificam inteiramente a
relação que vai ser instaurada entre os sujeitos dos desfiles que presenciam a
ação. Ainda consideramos que os lugares em que os desfiles são ambientados
são uma escolha de maior relevância no posicionamento identitário da marca.
Sobretudo, consideramos que os desfiles que rompem com os lugares
expositivos têm mais competência para produzir efeitos de inovação.
Passamos a caracterizar como o desfile da marca Maria Garcia,
realizado no Pavilhão do Ibirapuera em São Paulo (SPFW, inverno/2010),
posiciona-se pelos seus modos de fazer-se presente e visível no social.
73
No que concerne ao componente topológico do plano da expressão, um
desfile pode ser considerado fechado quando acontece em uma ambientação
interna que se interliga ao exterior por portas de entrada e saída. No que
concerne à categoria topológica, que distribui na superfície tridimensional os
demais constituintes do desfile, a saber: formas, cores, materialidades em
articulação, partimos da presença de uma passarela rodeada por cadeiras –um
arranjo explicitador do modo de posicionar e dar visibilidade a um número
limitado de público seleto de convidados sentados aos lados do palco, num
arranjo rigidamente hierarquizado. Segundo Landowski,
quer consideremos para as estratégias da parte observante – suscetível de se mostrar ou de dissimular como tal – ou da parte observada (quer de seu lado, em função de seu caráter mais ou menos observável da instância que o observa, pode, em princípio, regular as condições de sua própria colocação em cena) , nós tocamos agora uma ordem de problemas que ultrapassam o quadro da relação escópica no senso estrito e importam diretamente à dimensão cognitiva propriamente dita… O espaço pragmático, “objetivo”, no qual se inscrevem as relações de “visibilidade”, uma vez assim refletidas pela “consciência” que tomam reciprocamente os sujeitos, se transformam agora em campo de manobras cognitivas (fazer-saber e fazer-crer). (1992, p. 135)
A essas duas manobras cognitivas podem ser acrescentados também o
fazer-sentir, a partir dos desenvolvimentos da dimensão cognitiva em dois
outros ensaios de sociossemiótica de Landowski (2000, 2004).
Na sistemática de alocação dos convidados, aqueles considerados com
um maior status pela assessoria da marca são os que têm lugares reservados
próximos à passarela. A importância da localização espacial, marcada na
posição da cadeira numerada em relação à passarela, traz mais do que a
implicação de que os sujeitos estariam presentes nas específicas posições
para simplesmente assistirem ao desfile de moda. Mediante essa encenação
topológica, os convidados são capazes de ver um ao outro e avaliar, mediante
a disposição dos assentos, o status de cada um na indústria desse monitor de
visibilidade e hierarquia no âmbito da moda. A configuração da passarela é,
portanto, um “ator” de visibilidade, que permite aos convidados, que se
dispõem em relação à passarela, exercer o específico ritual de "ver e ser visto",
que processa a construção identitária dos sujeitos sociais.
Nessa sintaxe da visualidade, está articulada também a ocupação dos
espaços pelos sujeitos, a proxêmica, que compreende, de acordo com Greimas
74
e Courtés, a análise da “disposição dos sujeitos e dos objetos no espaço e,
mais particularmente, o uso que os sujeitos fazem do espaço para fins de
significação” (2008, p. 395). É necessário, pois, na análise dos desfiles,
verificar como essa disposição topológica possibilita os tipos de construção de
visibilidade.
A sala do desfile reúne pessoas que, normalmente, não se encontrariam.
Esses indivíduos passam a vivenciar por alguns minutos, naquela sala fechada,
algumas relações sociais de maneira concreta: no modo de olhar, de ouvir, de
falar, de se repelir, de se tocar etc. No caso do desfile da marca Maria Garcia
(2010), a sala do desfile foi montada em um ambiente fechado.
Figura 40 – Passarela do desfile da marca Maria Garcia, em 2010. A passarela é revestida de linólio com pichações e, ao fundo, uma inclinação que lembra uma pista de manobras de skate. (Foto: Nati Canto)
Os convidados do desfile Maria Garcia estão dispostos de maneira a
seguir a orientação destinada para sentar na cadeira marcada. A cenografia
espacial traz, em sua composição plástica visual, elementos que figurativizam a
cidade. Como elementos topológicos da passarela, observamos a presença de
uma pista de skates, com pichações recobrindo o piso da passarela. A
iluminação artificial, com o cromatismo entre o amarelo e o alaranjado, cria
uma sensação de um dia de verão, embora a temperatura do local não
passasse de 12°C. O limite entre passarela e público é demarcado de modo a
ser respeitado até o final do desfile. Assim, no que corresponde aos elementos
75
estésicos, podemos afirmar que, no desfile da Maria Garcia, são ativados os
sentidos do visual, térmico e sonoro.
Figura 41 – Cenografia do desfile “Neutro”, de Karlla Girotto, 2006. Nota-se a presença de camas gigantes, que estão colocadas de forma paralela, sem a presença de passarela convencional. (Fonte: site da marca Karlla Girotto)
Em uma relação de contrariedade ao desfile Maria Garcia, elegemos
considerar o desfile “Neutro”, da estilista Karlla Girotto, realizado no Jardim do
Museu da Arte Moderna (MAM), durante o Fashion Rio, em 2005. Esse desfile
acontece no espaço aberto, em um lugar de sociabilização, o jardim do MAM.
Podemos caracterizar esse desfile como de espaço aberto na medida
em que ele é aberto à circulação de outros sujeitos, indo, assim, além do
público convidado da marca. Acrescenta-se ainda a presença do transeunte, do
passante que está no parque com a intenção de aproveitar o espaço da
natureza. Dessa maneira, todos se encontram em posição de apreciação do
desfile dado pelo longe e perto de sua instalação. Não há, portanto, as
orientações pré-definidas de marcadores.
O enunciatário é levado a participar daquele momento rompendo a
proxêmica estipulada pela cena genérica de um desfile. O cenário e a
passarela são improvisados na ambientação do jardim e os presentes podem
se aproximar ao ponto de até mesmo tocar as modelos e suas roupas,
enquanto elas figuram produzindo estranhamento maior porque dormem em
uma ação outra que é a dinâmica pré-estabelecida do desfile.
76
A cenografia do desfile “Neutro”, na sua topologia, traz objetos de cena
do espaço privado, como a presença de camas, colchões, criados-mudos,
despertador, caixinhas de música, uma escada e gaiolas, que causam certo
estranhamento, pois não fazem parte do espaço do parque no qual estão
sendo apresentados. No desfile “Neutro” são ativados os sentidos tátil, visual,
olfativo, sonoro e térmico.
Essa oposição básica entre desfile em uma sala fechada – com espaço
privado – e desfile no parque – um espaço aberto e público –, nos levou a
recortar outros desfiles que preenchessem uma sintaxe de ocorrência de
possíveis desfiles pela lógica de relações do quadrado semiótico, numa
visualização de usos possíveis de alocações dos espaços dos desfiles.
Em relação a esse par de opostos “espaço fechado privado” vs. “espaço
aberto público”, por relações de contrariedade, os termos subcontrários são
“espaço fechado público” vs. “espaço aberto privado”, que passam a orientar o
nosso recorte de desfiles como diagrama posicional de suas realizações.
Figura 42 – Passarela na via expressa da cidade, no desfile da Cavalera, 2010. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Para realizar o recorte de desfiles selecionados para ocupar a base
inferior do quadrado dos modos de presença dos desfiles na cidade, temos
como exemplo o desfile da Cavalera (SPFW, verão/2010). Esse desfile foi
realizado em um espaço público, mais precisamente no Viaduto do Minhocão,
obra viária em si marcada por uma polêmica desde sua implantação na cidade
de São Paulo. Foram utilizados, em sua topologia, objetos de cena do espaço
77
público aberto ao sol, tais como cadeiras de praia e sombreiros. Observamos
também o uso de carros turbinados ao longo da passarela, deslocados da sua
funcionalidade, tal como ocorre com o lugar, a via expressa que a parte oeste a
outros pontos da cidade.
Contudo, em contrariedade com o uso do Jardim do MAM (RJ), o desfile
privatiza o espaço público. Para ter acesso ao desfile, o enunciatário deve
passar por um portão situado logo na entrada do viaduto. Corrobora esse
cerceamento a presença de seguranças e recepcionistas, que controlavam a
entrada restrita do público convidado. O espaço público é, então, modificado e
passa a ser fechado.
Assim, topologicamente, o desfile era caracterizado pelo uso de grades
que separam os elementos internos dos externos ao desfile, separando os
convidados dos não convidados. A partir do número da cadeira, o público vip
poderia ter direito a chegar ao local do desfile utilizando um pequeno carro de
golfe movido a motor elétrico com motorista, o que proporcionaria a esse
convidado vivenciar a paisagem urbana, os grandes prédios, o céu azul, de
forma a se instaurar em um clima de fantasia e não do dia a dia daquele
espaço. Entretanto, a grade de um metro de altura, capaz de separar as
laterais do público e do privado, não impossibilitava a apreciação do desfile
pelas sacadas dos prédios da vizinhança.
A marca Cavalera segue a topologia espacial da localização dos
convidados seguindo o formato do desfile convencional no que tange o
posicionamento do público/enunciatário. Os convidados estão na lateral da
passarela improvisada nas vias de tráfego do viaduto, posicionados de maneira
hierarquizada, mas com a diferença da altura das cadeiras de praia,
posicionadas a vinte centímetros do chão, que dão a sensação de estar numa
praia, a “praia Cavalera”. A relação da proxêmica do desfile da Cavalera é
respeitada.
Dessa forma, o enunciatário é convidado a vivenciar um simulacro de
comunhão com a cidade de São Paulo, fazer parte das diferentes tribos que
compõem a cidade, a partir da escolha do casting do desfile, que privilegia as
diferentes belezas que integram essa cidade: negros, mestiços, pardos e
índios, rostos que traduzem a imagem da cidade de São Paulo por meio da
utilização de maquiagem e cabelos naturais.
78
Ao caminhar na passarela, o ritmo dos modelos tem por objetivo,
portanto, privilegiar a individualização, a identidade de cada um ao desfilar, o
que torna possível a criação de temporalidades distintas na passarela. Temos,
por exemplo, um skatista que entra fazendo manobras, um motociclista
conduzindo sua Harley Davidson a 15 km/h e, na mesma passarela, a
presença de uma mulher que carrega uma criança no colo, crianças e
adolescentes gêmeos e um casal de namorados.
As qualidades plásticas do desfile Cavalera são sentidas
sinestesicamente pelo cheiro da rua, pela paisagem sonora e até pelo paladar,
pois foram distribuídos picolés de sabores variados, o que diminuía também a
sensação de calor, já que a temperatura no dia do desfile chegava a 30°C.
Figura 43 – Desfile Fashion Mob, 2010. (Fonte: site Casa de Criadores)
Para fechar a estruturação do quadrado com desfiles de moda nesse
mapeamento de tipos de realização relacionais que estruturam os pilares para
pensar os usos do espaço pelos desfiles de moda de que nos ocupamos nesta
dissertação, tem-se, em relação de contrariedade ao desfile da Cavalera, o
desfile aberto/aberto da Fashion Mob, em 2010. Esse desfile rompe com a
79
programação de um desfile comum na medida em que ocorre uma quebra de
espacialidade convencional, já que o desfile acontece nas ruas da cidade de
São Paulo.
O enunciado do desfile é estruturado para interagir com as pessoas e a
cidade, explorando os espaços e se ajustando a eles, o que gera uma maior
interação entre o enunciado e o enunciatário. A relação proxêmica entre os
sujeitos é quebrada.
Chegamos, assim, a dois pares de relações, que mantêm uma dinâmica
de relações assim grafados dos eixos das relações de contrariedade ( ) do
quadrado semiótico, designando as relações entre os termos contrários ou
subcontrários. As dêixis agrupam os termos por complementariedade ( ) e
as relações entre os termos contraditórios são marcados ( ) de forma a
visualizá-las:
Fechado fechado Aberto aberto
Fechado aberto Aberto fechado
Essas práticas significantes são capazes de abarcar as definições
modais das condições de interação do desfile com o espaço que se manifesta
e que faz fazer as realizações do público vs. privado, que sela os estados de
lugarização dos desfiles.
80
4.2. Análise dos desfiles
4.2.1. Espaço fechado privado: Maria Garcia
O desfile de moda fechado privado é aquele que se organiza num
espaço convencional. Como manifestação dessa modalidade, a marca Maria
Garcia é a segunda marca dirigida pela estilista Clô Orozco, no lançamento da
coleção inverno/2010, no dia 18 de janeiro de 2010, às 15hs. A apresentação
fez parte do SPFW (de 17 a 22 de janeiro de 2010) que, para esta edição, tinha
programado trinta e sete desfiles.
O ambiente escolhido foi o do interior do Pavilhão Ciccilo Matarazzo,
projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer em 1951, no Parque do Ibirapuera de
São Paulo. O pavilhão é marcado pelo jogo de linhas verticais e horizontais,
atenuadas por curvas sinuosas que marcam a concepção arquitetônica do
interior do grande retângulo do formato prédio. Delineia-se um aparente
labirinto de andares ligados pelas rampas, com o piso de cimento escuro
contrastando com as paredes brancas e oferecendo um ponto de fuga que
garante o caráter monumental do conjunto.
Durante o evento, essa continuidade visual é modificada pela inclusão
das diversas salas de desfile, que interrompem a visualidade original do interior
do edifício, mas sem conseguir ocultá-la ao espalhar as salas de modo irregular
pelos andares.
Figura 44 – Espaço interno do Pavilhão, com uma mostra que as intervenções para a criação do espaço do SPFW impedem a visão de suas curvas e nem altera a profundidade de
campo visual. (Fonte: http://cucadaune.blogspot.com/2009/04/bienal-de-sao-paulo.html)
81
Nos pavilhões do Parque do Ibirapuera, tradicionalmente acontecem
vários eventos culturais que se alternam, ano após ano, com outros dois
eventos de peso: nos anos pares, a Bienal de Artes, e nos ímpares, a Bienal de
Arquitetura. Nesse espaço, ainda acontecem grandes feiras e congressos,
como a Adventure Sports Fair (Fig. 46), que é a maior na área de esportes e
turismo da América Latina.
Interligados por uma longa e sinuosa marquise, todos eles apresentam
uma concepção bastante parecida, com plantas praticamente idênticas. Neles,
o acesso do público se faz por meio de rampas, que se revelaram grandes
problemas na fase de construção.
Os robustos pilotis em “V” marcam o estilo de Niemeyer nos anos 1950.
Com uma distância de 10 metros entre si, esse recurso permite a utilização do
térreo para bares e cafés. A fachada apresenta uma composição sóbria, com
cortina de vidro e brise-soleil de aço, contrastando com a riqueza formal do
espaço interno e a plasticidade da coluna da qual partem as rampas do vazio
central, perpassando a altura total da construção. Essa imponente estrutura dá
ao interior uma aparência monumental e surpreendente, compensando a
sobriedade do exterior.
Fig. 45 – Modificação harmônica da espacialidade original com a Bienal de Arquitetura
(2009. (Fonte: http://nicolevalente.blogspot.com/2009_11_01_archive.html)
82
Fig. 46 – Adventure Sports Fair (2008) torna irreconhecível a arquitetura interior do
Pavilhão. (Fonte: www.adventurefair.com.br)
O conjunto do Parque Ibirapuera foi projetado para ser inaugurado
durante as comemorações do 4º centenário da cidade, em 1954. O tratamento
paisagístico foi entregue a Roberto Burle Marx, que privilegia a interação entre
os usuários e a vegetação. É nesse local emblemático de São Paulo que, no
espaço interno e fechado do Pavilhão, acontece o desfile da marca Maria
Garcia.
Figura 47 – Mapa de localização do Parque Ibirapuera e, dentro dele, o Pavilhão que abriga o desfile fechado da marca Maria Garcia. (Fonte: Google Maps)
O Parque do Ibirapuera fica no bairro de Moema, na zona sul de São
Paulo, dentro de um polígono formado pelas avenidas Vinte Três de Maio,
Quarto Centenário, República do Líbano e Pedro Álvares Cabral. O parque
conta com ciclovia e treze quadras iluminadas, além de pistas destinadas a
cooper, passeios e locais de descanso. Todos esses locais são integrados à
área cultural. Sua área territorial é de 1,584 km², com três lagos artificiais e
interligados, que ocupam 15,7 mil m².
83
Seguindo a tradição de sediar alguns dos acontecimentos mais
importantes de São Paulo no Pavilhão da Bienal, acontece aí o primeiro grande
evento que abre o calendário anual da capital paulista: o São Paulo Fashion
Week, que reúne os nomes mais significativos da atual moda brasileira e traz
para a cidade uma verdadeira constelação de modelos para os desfiles. O
encontro acontece duas vezes por ano − em janeiro, moda outono/inverno e,
em julho, moda primavera/verão − e está incluído no calendário oficial e
mundial de moda.
Figura 48 – Ambiência do SPFW, com diversas salas fechadas, destinadas a abrigar os desfiles, interrompendo a continuidade visual interna do Pavilhão no Ibirapuera. (Fonte: FFW.com.br)
Durante o SPFW, são erguidas paredes nos três pavimentos − térreo,
primeiro andar e segundo andar −, para a separação de cinco salas nas quais
ocorrem os trinta e sete desfiles que serão apresentados durante uma semana.
Em sua modalidade topográfica, cada um deles acontece numa sala ampla,
dotada de ar condicionado e que abriga uma passarela de 30 metros com filas
de cadeiras dispostas em suas laterais. No teto estão presos os spots que
iluminam todo o trajeto das modelos na passarela. O local para os fotógrafos e
cinegrafistas se localiza na parte da frente da passarela – equivalente à “boca
da cena” na linguagem do teatro.
Em termos de cromatismo, as salas têm cor preta nas paredes e no teto.
Isso contrasta com a colorida luminosidade do exterior do saguão – uma vez
que o interior do prédio se acha separado do exterior por meio de vidraças. O
espaço do desfile é praticamente um caixote em forma de paralelepípedo,
84
limitado pelas paredes, com várias portas de entradas e saídas. Uma delas
forma uma passagem que interliga a sala principal ao camarim e bastidores −
lócus interno e privado − e a sala do desfile ao espaço do SPFW, englobando o
externo, que é o público.
Figura 49 – Rampa principal que dá acesso aos dois pisos em que são alocados os
desfiles, funcionando ainda como uma extensão coberta do espaço exterior. (Foto: Nati Canto)
Do térreo para os andares há uma grande entrada que leva a uma
rampa de acesso aos dois outros pisos, traçando um modo de adentrar e de
circunavegar o continente do SPFW. Pelas rampas, somos guiados aos
andares onde se encontram os espaços de socialização, entre eles os lounges
das empresas patrocinadoras do evento, como Fiat, Grendene e a Natura,
além de uma livraria, restaurantes e uma cafeteria, com mesas e cadeiras que
permitem às pessoas sentadas saborearem café e conversas, bem como
postar-se em um ponto ideal para contemplar os fluxos de pessoas que
circulam mais lentamente, instaurando um valor mais local, de mais
proximidade e pertencimento afetivo. A sala de imprensa fica localizada no piso
inferior. No último piso há o FWHouse – local para negócios, em que as
sessenta e seis empresas mostram suas novidades. Estima-se que o evento
movimente cerca R$ 1,2 bilhão em negócios.
85
Figura 50 – Café localizado no primeiro piso do SPFW, exercendo função equivalente
à de um lobby de teatro, de uma pracinha de bairro ou cidade do interior (Foto: Nati Canto)
Durante a semana do SPFW, toda a área interna do Pavilhão no
Ibirapuera é modificada para assumir a identidade deste que é o maior evento
de moda da América Latina − as configurações topográficas instaladas, o
cromatismo, o redesenho da configuração espacial, tudo ali desempenha a
função de dar visibilidade ao discurso do destinador SPFW. Suas
configurações topológicas são formadas pelo princípio do jogo labiríntico, uma
vez que tanto a disposição espacial quanto a cenográfica se organizam pela
justaposição de ambientes.
Figura 51 – Em pé e já antecipando a exibição das modelos, o público ocupa aquele espaço no segundo piso, contíguo a cada uma das salas de desfile. (Foto: Nati Canto)
Diante de cada sala de desfile forma-se uma espécie de antessala, na
qual o público aguarda. As experiências extracotidianas como essa, de
excitante espera pelo desfile, produzem diversos impactos nas pessoas, todas
86
elas unidas entre o global, o nacional e o local, compondo uma realidade
“caleidoscópica” em que um pequeno movimento, uma alteração qualquer,
pode promover outra conformação entre os pares.
Isso não significa que não se manifestem as programações do dia a dia,
pois elas existem e são anunciadas para cada horário, sendo inteiramente
programadas pelo agendamento do que deverá nele ocorrer. Inerente a essa
ordenação, porém, acha-se a desordem, o imprevisto em relação ao que pode
advir e surpreender, como é o caso dos tantos que para aí se locomovem à
espera da chance de conseguir entrar e obter um ingresso para estar no
desfile. Vemos que ocorre a mesma dinâmica processual da espera do
imprevisível no cotidiano, como aponta Oliveira (2008), no estudo sobre a
dinâmica relacional no Metrô de São Paulo. As pessoas se deslocam para o
espaço para serem sobressaltadas pela marca.
Trata-se aqui de chamar atenção para outros modos interacionais,
outros sentidos, como, por exemplo, o daquele não programado, que se dá por
meio das sensibilidades dispostas, potencializando o efeito de sentido de
contágio manifesto pelo processo do ajustamento (Landowski, 2005) entre
aqueles que constroem em ato os sentidos dos lugares. É o caso do SPFW no
Ibirapuera, composto de sobreposições e justaposições de muitas realidades,
tempos e espaços − lugar em que várias narrativas entrecruzam seu espaço.
Figura 52 – Frente do convite que dá acesso ao Pavilhão. A forma circular e a cor negra talvez sirvam para afastar qualquer sugestão eventual a uma das marcas envolvidas.
Para ter acesso ao Pavilhão, é necessária a apresentação de um
convite, que consiste num círculo negro de papel cartão – provavelmente para
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evitar qualquer referência a qualquer marca em particular, por meio da cor ou
da forma. Mas ter acesso a um lounge não implica também ter acesso a um
desfile. Existe uma pulseira que serve como passe livre para qualquer espaço,
e quem não a possui precisa apresentar o convite específico da marca. Na sala
de desfile, os seguranças posicionados à porta recolhem os convites
padronizados com o logo de destinador do evento e conduzem o público para
os setores ou filas.
Figura 53 – Convite do desfile da marca Maria Garcia, em sua versão impressa e na
forma sólida de uma pequena coroa de metal.
O destinador seleciona determinados convidados, que recebem um
convite personalizado, aproximando mais a marca do seu principal consumidor
(Fig. 53). Nele, vemos os formantes plásticos cromáticos com o uso das cores
preto e ocre. Na parte superior do convite, aparece o logo da marca em forma
de uma coroa e, abaixo, o programa narrativo do desfile com a sua localização.
Em seguida, a marca do SPFW com a tipografia padronizada colorida
marcando o setor e a fila que o convidado deve ocupar. Em seguida, um aviso:
“é imprescindível a apresentação deste” e, abaixo, a frase no imperativo: “Vá
de Táxi”.
88
Esse impresso faz parte da estratégia de sedução do destinador para
orientar o fazer querer ir ao desfile. Assim, o convite leva o sujeito convidado a
acreditar que ele seja diferente dos demais, uma pessoa especial, que tem o
seu lugar no ambiente.
Na categoria eidética, o formato do convite é retangular com o material
de textura fosca, natural e despojado, reiterando a proposta estética do desfile
que engloba as ideias de conforto e praticidade para se viver na cidade. Os
convidados ainda recebem um pingente em forma de coroa de metal para
sentir os valores que a marca deseja passar: com esse brindar com uma coroa,
o destinatário Maria Garcia se fortalece como marca feminina de mulheres
jovens – princesas que, no entanto, compartilham valores de simplicidade,
despojamento e praticidade em suas escolhas.
O público permanece em fila, aguardando o momento de entrar na sala.
Ali, deixam-se ver e ser vistos num jogo velado de exibicionismo, à espera que
algo aconteça. Mediante a entrega do convite, normalmente com a poltrona
numerada, o espectador é guiado por um assistente de palco até as cadeiras,
que se encontram nas laterais e dispostas em fileiras, seguindo o formato de
arquibancada construída em cinco níveis, além de um pequeno elevado ao
fundo da plateia onde ficam as pessoas sem lugar marcado para sentar.
Ao entrar na sala, o sujeito-convidado é solicitado a se sentar e esperar
pelo começo do desfile, participando, assim, de um ritual da moda em que será
apresentada uma coleção obedecendo a um programa narrativo dotado de
começo, meio e fim. A sua visão é frontal, localizada ao lado da passarela, no
formato convencional em forma de “I”.
A destinação dos locais de cada um depende do status do destinatário.
Assim, na primeira fila, ficam os blogueiros e jornalistas, celebridades e
patrocinadores. Na segunda, os convidados da marca, lojistas, fornecedores
parentes e amigos da empresa. E, da terceira em diante, os curiosos, alunos
de moda e o público em geral. A distância entre os sujeitos e a disposição da
passarela no espaço, bem como o seu uso serão de suma importância, pois
ambas são portadoras de sentidos.
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Como não poderia deixar de ser, a localização das cadeiras mais
próximas da passarela, na primeira fileira, permite uma visão privilegiada do
desfile, isto é, uma melhor aproximação dos detalhes, texturas, matérias-
primas das roupas e recortes das roupas. Seria o que Landowski (2002)
denomina “os sujeitos e objetos caracterizando-se nesse contexto como
entidades chamadas a trocar constantemente entre si suas respectivas
posições actanciais, pelo jogo que aqui se joga: o da sedução”.
Nesse cenário, o destinador enriquece a narrativa do desfile/enunciado e
o transforma em discurso, escolhendo os atores, as divisões de tempo e
espaço, os temas e as figuras, além das linguagens e recursos do plano da
expressão: gestos, trilha sonora, iluminação, cenografia, modelos, beleza,
make up, hair e montagens dos looks.
Assim, ele promoverá a venda de vários produtos envolvidos e vai
agregar valores à marca, a partir da escolha das “figuras” para cobrir os
“temas”. As figuras se destinam a criar o efeito de realidade, ou seja, o desfile
de moda quer fazer crer que o sujeito só poderá “estar na moda” ou
acompanhar a última tendência da moda se consumir determinados produtos
(da marca), seguindo a fórmula “ter para ser”.
Figura 54 – Começo do desfile da marca Maria Garcia, com modelo entrando na
passarela seguindo em direção ao lugar reservado para os fotógrafos. (Foto: Nati Canto)
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O desfile propriamente dito é organizado numa estrutura convencional,
com duração de cerca de vinte minutos, durante os quais se apresentam de
quarenta e cinco até sessenta looks. De forma frenética, todas as etapas se
articulam para permitirem ampliar a visibilidade do discurso sobre a marca.
Com os recursos instaurados na passarela e a ambiência criada, estão
figurativizam-se alguns espaços públicos da cidade. Por exemplo, por meio do
formato de uma pista de skate de cor ocre, que remete ao papel do convite, e
com pichações em tons marrons, que reconstroem o discurso da moda
contemporânea, fazendo referência à rebeldia do jovem e de grupos sociais, ao
streetwear e a outros elementos urbanos.
Também será permitido “ver”, mediante uma sequência que será
apresentada no desfile, os looks envergados por modelos pré-selecionados
para compor a imagem apresentada na passarela − além da gestualidade, do
ritmo e do movimento corpóreo que vão pontuar cada entrada em cena. O
evento é acompanhado por uma trilha sonora pré-produzida e mixada que tem
a mesma duração do desfile. Existe um compasso entre a gestualidade do
modelo e o ritmo da música.
Figura 55 – Modelos desfilando ao longo da passarela, pisando em figuras que representam as “pichações”, ou seja, os grafites que ocupam boa parte dos muros da cidade. (Foto: Nati Canto)
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Na próxima sequência, acontece o câmbio de clímax para apreensão
focalizadora da atenção do público. Para isso, há a troca da luminosidade
âmbar, em meia luz, para o foco de refletores que vai iluminar todo o percurso
da passarela, com seu piso revestido de linóleo branco, no caso uma superfície
lisa. Os modelos percorrem a passarela, movimentando seus corpos e
imprimindo um gestual, ao som frenético da trilha sonora.
Os desfiles obedecem a uma continuidade e as orientações dadas pela
articulação dos sintagmas que os compõem e constroem uma narratividade.
Isto é, a entrada e a saída dos modelos de uma extremidade da passarela, até
cumprirem a programação de ação, de movimentos e de gestualidades, e a
indispensável parada de alguns segundos, com o rodopio para a exibição aos
cinegrafistas e fotógrafos posicionados na frente da passarela (na “boca” da
passarela). São eles que terão a melhor angulação do desfile, na qualidade de
responsáveis pelas imagens captadas pelos seus aparatos fotográficos e que
deverão projetar a marca nos meios de comunicação, transformando o
acontecimento, em notícia e demais modalidades jornalísticas.
Figuras 56 e 57 – Ângulo do fotógrafo que está posicionado na frente da passarela para captar detalhes da roupa, da maquiagem e do cabelo. São as imagens produzidas por ele que vão gerar noticias e criar o efeito de sentido da marca. Assim, na sala fechada de desfile, a iluminação artificial com uma boa projeção na passarela será imprescindível para uma maior visibilidade dos produtos. (Fotos: site Maria Garcia)
A roupa que, no seu processo de feitura, é projetada em modo
bidimensional pela modelagem, é apresentada na passarela em modo
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tridimensional e as imagens de divulgação pelos fotógrafos do desfile vão
retransformar as roupas em imagens bidimensionais publicadas na mídia
impressa. Muitas peças são produzidas apenas para a passarela, tendo não
somente um sentido funcional, mas também estético, ao promover a
construção imagética do desfile. A marca Maria Garcia investe nas escolhas
dos tecidos como moletom, malha e tecido de algodão. Além disso, uma
modelagem não justa ao corpo é somada à busca de conforto e praticidade do
cotidiano, que vão afirmar o discurso de uma marca jovem, que se preocupa
com a estética e qualidade de vida do cliente.
Figura 58 – visão do público sentado ao longo da passarela (Foto: Nati Canto)
Os blogueiros, jornalistas, fotógrafos e todos aqueles que se fazem
presentes na sala do desfile estão juntos no “aqui e agora” do ato. Esses
sujeitos são notícias e, ao mesmo tempo, dão notícias; querem “ver” e são
“vistos”; irão “ter” informação de moda e “ser” informação.
Figura 59 – Final do desfile, quando todas as modelos entram seguidas da estilista, sendo possível observar o conjunto dos looks. (Foto: Nati Canto)
93
O desfile é editado numa sucessão de looks que seguem na passarela
até ser finalizado com a entrada do estilista. O desfile segue uma programação
e termina com palmas e a saída eufórica do público, apressado para entrar em
outra fila e assistir outro desfile. Uma cadência de dependência mútua se
estabelece, portanto, entre os sujeitos e os objetos. Aqueles, por vezes,
também assumem papel de sujeitos, fazendo com que o fluxo de comunicação
seja contínuo.
94
4.2.2. Espaço aberto/privado: Cavalera
Nesta categoria, selecionamos o desfile da marca Cavalera, presente na
27ª São Paulo Fashion Week (SPFW), realizado no Elevado Costa e Silva, em
junho de 2009.
Não é a primeira vez que a grife se apropria do espaço aberto da cidade
de São Paulo. Há algum tempo a marca tem utilizado a mesma estratégia de
visibilidade. Em janeiro de 2006, realizou o desfile nos jardins do Museu
Paulista, conhecido como Museu do Ipiranga. Antes do início do desfile, a
produção do evento distribuiu guarda-chuvas para que o público pudesse
assistir e acompanhar a performance, na qual as modelos caminhavam
contornando o jardim em frente ao museu.
Em julho do mesmo ano, a locação do desfile da coleção masculina
ocorreu na pista de largada do Autódromo de Interlagos e 600 lugares da
arquibancada foram liberados para o público comum.
O rio Tietê foi o cenário do desfile da marca em janeiro de 2008, com o
tema da radiação e o desastre nuclear em Chernobyl, na Ucrânia. Como parte
do espetáculo, a Cavalera incluiu um barco que transportou os jornalistas e
especialistas de moda ao local do desfile, à margem do rio.
Figura 60 – Desfile da Cavalera, no Rio Tietê, em São Paulo, 2008. (Fonte SOMMER, M. Coleção Moda Brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2008)
Todas as locações escolhidas para a realização dos desfiles foram
definidas a partir do tema da coleção, que foi o ponto de partida para a
95
definição e também para as articulações, dinâmicas e experiências estésicas
às quais o público foi exposto. O deslocamento do desfile da Cavalera para o
espaço da rua rompe, assim, o modo tradicional de um desfile ser alocado.
Passamos agora à análise do desfile realizado no Elevado Costa e Silva,
mais conhecido como Minhocão, no centro da cidade. Para uma melhor
compreensão, e por didatismo, vamos inserir dados sobre o elevado que
ajudam na compreensão da espacialidade e topologia do desfile.
O elevado liga a Praça Roosevelt, na Consolação, ao Largo Padre
Péricles, em Perdizes, passando por cima da Rua Amaral Gurgel e da Avenida
São João. Ele tem 3,4 quilômetros de extensão, ligando o centro à zona oeste
e abrangendo quatro bairros: Barra Funda, Vila Buarque, Consolação e Santa
Cecília.
Figura 61 - Mapa de localização do desfile. (Fonte: Google Maps)
Pelo mapa, observamos que, topologicamente, é possível fazer a
relação entre o alto (o viaduto) e o baixo (Avenida São João). O elevado é
dividido por duas vias, separadas por um canteiro central de cimento que serve
para o trânsito de veículos. Durante o dia, ele tem uma iluminação natural e
feixes de sombras dos edifícios próximos a ele, separados por apenas 5 metros
de distância.
No que diz respeito à questão cromática, percebe-se o predomínio do
monocromatismo acinzentado com pinceladas de beges, verdes, amarelos,
96
brancos e azuis, vindas dos prédios antigos e pichados. Forma-se uma imagem
de decadência e de desleixo, com nítidas marcas de poluição, marcados pelo
cromatismo acinzentado sobre toda a estrutura do elevado. Desse modo,
enquanto o cromatismo cinza figurativiza o elevado, as cores constituem o
universo dos prédios. Encontramos uma oposição cromática de neutro vs.
colorido, em que a imobilidade (a moradia) traz cor, ao passo que o cinza
marca a mobilidade (via de carros).
Topologicamente, o elevado se localiza entre os prédios, separando-os
pelas suas alça de acesso. Enquanto os edifícios são vistos verticalmente, o
Minhocão se impõe pela horizontalidade, criando uma dinâmica de alto-baixo-
alto que os olhos inevitavelmente seguem, constituindo, assim, a oposição
vertical vs. horizontal. No que concerne ao formato eidético, observa-se que
os prédios formam colunas eretas, retângulos, enquanto o elevado segue seu
percurso sinuoso e cortante, que dá mobilidade à paisagem. Podemos extrair
dessa categoria a oposição entre retilíneo vs. curvilíneo. Vejamos:
Figura 62 – Vista aérea da parte superior do Elevado Costa e Silva. (Fonte:
http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/kassab-anuncia-projeto-preve-demolicao-minhocao)
97
O Minhocão
prédio
Figura 63 – Desenho geométrico do Elevado Costa e Silva.
Relacionando esses antagonismos presentes em todas as categorias
plásticas, concluímos que são construtores de sentido, formando campos
semânticos distintos. Vejamos o quadro a seguir:
FORMANTES
PLÁSTICOS
MINHOCÃO EDIFÍCIOS
Topológico Horizontal Vertical
Cromático Neutro (cinza) Colorido (verde, amarelo,
azul)
Eidético Curvilíneo Retilíneo
Tabela 1 – Formantes plásticos - Elevado Costa e Silva
A sonoridade também demarca o espaço. Os prédios são cercados pelo
barulho dos carros que circulam sobre o elevado de segunda-feira a sábado,
das 6h30 às 21h00, gerando sons de buzinas, acelerações de motores, freadas
e o som da própria velocidade. Embora aos domingos e feriados seja proibida a
circulação de carros, uma massa de pessoas produz sons contínuos,
misturando-se, assim, os sons de vozes, passos e objetos sonoros. O viaduto
atua como uma caixa de ressonância que gera sons que ecoam dentro dos
prédios que o margeiam.
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Figura 64 – Elevado Costa e Silva durante a semana. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Mas a presença de pessoas muda a função do elevado, gerando novos
ânimos. A hostilidade dá espaço para a descontração; o barulho cortante e
ensurdecedor torna-se melodia e soneto; o rush desaparece para dar espaço
ao lazer e à integração sociocultural. O descontraído se sobrepõe ao austero,
ao rígido. As fileiras de carros são substituídas por pessoas caminhando,
bicicletas, patinetes, skates.
Figura 65 – Elevado Costa e Silva no domingo, como um espaço de convivência social
(Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
A amplitude do som sofre oscilações por dias e horários. Há também as
paradas tensivas, que acontecem no meio da noite e durante toda madrugada,
produzindo uma parada da continuação, das 21h01 às 6h29, durando 9h30,
correspondendo à continuação da parada. O som está relacionado ao tempo: o
barulho situa-se ao longo do dia, enquanto o silêncio se faz presente a noite.
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Há uma espera tensiva para a chegada do silêncio (parada da continuação) e
também para a chegada do barulho (parada da parada).
Na questão olfativa, o cheiro forte de dióxido de carbono exalado pelos
carros se mistura com os cheiros gerados no ambiente aberto e público que
busca invadir os espaços privados. Porém, há um invólucro que protege e
separa esses dois espaços: as janelas de vidro e as paredes dos prédios. A
tensão é simbolizada por esse elemento intermediador, que atua como
moderador. Atrás deles está o privado, acuado e intimidado; diante dele, o
público, indiferente e hostil.
Agora, vamos fazer um novo recorte no elevado, mostrando-o por baixo.
Nota-se a predominância ainda maior da decadência da zona urbana, com
pouca claridade e sendo sombreada pela via elevada. Ainda sobrevivem
algumas lojas comerciais, há vários labirintos de ruelas que se bifurcam, um
grande fluxo de carros, ônibus, motos, carroças e pessoas (trabalhadores,
moradores, visitantes, transeuntes e mendigos).
Figura 66 – Minhocão visto de cima para baixo.
(Fonte:http://www.apocalipsemotorizado.net/2009/10/13/jardim-suspenso-da-babilonia)
Visto da parte inferior, a perspectiva muda: o viaduto. Suas pistas
formam um teto, uma cobertura e até mesmo uma moradia. Encontramos
nesse patamar térreo relações humano-afetivas em que o homem atua e
interfere no meio. O elevado forma, então, dois cenários que permeiam a
experiência urbana da pluralidade, da participação do cenário privado e
público.
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O Elevado Costa e Silva
Via superior Via inferior
Céu Teto de cimento
Luminosidade Sombra
Calor Frio
Residência Comercial
Prédios Ruas e casas
Carros Carros e pessoas
Hostilidade Hospitalidade
Tabela 2 – Pares de oposição relativos às partes superior e inferior do Elevado Costa e Silva
Agora que temos dados suficientes sobre o elevado, podemos iniciar a
análise do desfile, realizado numa manhã de domingo, tendo como cenário o
Minhocão. A análise do desfile tem como ponto de partida o convite do evento.
Figura 67 - Convite do desfile da Cavalera, em 2009.
A escolha dos formantes plásticos cromáticos recai no uso do preto,
branco, cinza e vermelho (cores da bandeira paulista). Observa-se que tudo
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para o que a grife deseja chamar a atenção está inserido em blocos vermelhos
ou em escritos em vermelho:
A frase que chama as pessoas (“Save the date”) está dentro de um
retângulo vermelho, dando mais destaque à chamada imperativa.
Os meios para se chegar ao local estão em forma de ordens, grafados
em vermelho: “vá de táxi!”, “vá de metrô!”, “vá de bike!”;
Os endereços dos estacionamentos de carro na região também estão
em vermelho;
O nome da marca está dentro de um bloco vermelho, com letras
opulentas;
O símbolo da grife, uma águia de duas cabeças, toda branca, está
disposta sobre um fundo vermelho;
Por fim, um bloco vermelho sem nenhuma mensagem verbal para a cor
chama atenção.
Na categoria eidética, o formato do convite é retangular, com vários
outros retângulos inseridos no espaço, de tamanhos distintos e distribuídos,
topologicamente, nas margens, com maior concentração na parte inferior.
Ainda na questão topológica, chamam a atenção os retângulos
informativos localizados nas margens do convite. São blocos com a mesma
forma geométrica dos prédios que circundam o local. No centro, um mapa, um
percurso em curso, uma via (ou seria uma veia?) de acesso. Esse percurso
que grita em vermelho, dando mobilidade e forma é uma alça de acesso aos
demais dados, conectando-os.
Na parte superior, há uma extensa faixa retangular que vai de uma ponta
a outra, na cor vermelha. Dentro dela, há um texto em inglês, em letras de
forma, dizendo “Save the date”. A fonte da letra não tem serifa em suas bordas.
Na parte inferior, à esquerda, encontra-se um retângulo com um tipo
gráfico sem serifa, em que aparece a autoria desse comando deliberativo com
agenda e data. A marca Cavalera e seu site assumem a voz de quem faz esse
ato.
A cartela de cores do convite reitera estabelece um diálogo com a
bandeira do estado de São Paulo, em que as cores preto, branco e vermelho
se distribuem no retângulo de forma predominante. Mais adiante, veremos esse
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reforço dos formantes eidéticos com vários modelos desfilando com roupas
com a bandeira do estado nas estampas, nos acessórios e nas roupas, num
processo de estilização. E a cor cinza, de onde vem? Do céu da Pauliceia,
conhecida como a cidade da garoa e do céu acinzentado pela poluição e pelos
blocos de concreto que formam os prédios. A visão aérea da cidade pode ser
tomada como configuração de um grande bloco acinzentado, no qual ruas,
prédios e céu formam uma unidade monocromática.
Na análise do texto verbal, podemos traduzir a frase “Save the date”
como “Reserve a data”. O verbo está no imperativo afirmativo. Na verdade, não
é um convite, mas uma intimação. O convite constitui, assim, um dever-fazer.
Ele cria o simulacro do convite e da manipulação por sedução. Entretanto, na
imanência, ele institui uma ordem que manipula por intimidação o destinatário.
Seu autoritarismo é mascarado pelo aspecto estético e pelo uso de uma frase
em língua inglesa, que recorta o púbico que recebe o comando como uma
parte específica da população. Assim, a expressão verbal em inglês identifica
um público elitizado, que reconhece o chamado.
O mesmo acontece quando o convite informa como chegar ao local: “vá
de táxi!”, “vá de metrô!” e “vá de bike!”. O verbo das frases permanece no
imperativo afirmativo, seguido de exclamação, que é utilizada para indicar um
grito, uma emoção forte eufórica e mesmo para facilitar o acesso ao local ao
qual, cotidianamente, só se tem acesso de carro. Curioso observar, porém,
que, ao indicar os estacionamentos, não há a presença do verbo no imperativo
e nem o uso da exclamação, mas uma neutralidade linguística.
Podemos fazer uma leitura dessas frases exclamativas: quem não tem
carro, que se vire. O tratamento demonstra descaso. Depreende-se, assim, que
os organizadores do desfile não estão preocupados com o público que não
possui carro. Entretanto, se o enunciatário possui carro, o evento oferece três
opções de estacionamento com endereços completos, próximos ao local do
desfile. Há uma preocupação com o bem-estar do público que vai de carro.
Sendo uma via pública, o acesso é livre? Não. O convite informa que a
entrada é pela rampa em frente ao metrô Marechal Deodoro. Para passar, é
preciso apresentar o convite. Assim, processa-se uma seleção, uma filtragem,
uma discriminação, uma elitização do público, formado por jornalistas,
empresários, fotógrafos, formadores de opinião, representantes têxteis,
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atacadistas e varejistas. Isto é, somente pessoas da área de produção e
circulação econômica da moda.
Após essa filtragem, a produção do evento disponibiliza cadeiras de
praia e sombrinhas coloridas próximas à mureta do elevado, para que os
convidados se sentem e acompanhem o desfile, numa prática muito próxima
dos transeuntes de domingo que frequentam o local, embora estes não possam
estar presentes ali.
Figura 68 – Desfile da Cavalera sobre o Elevado Costa e Silva. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
O desfile segue uma programação determinada, com horário para
começar, às 12h, e número limitado de convidados posicionados nas laterais
das pistas, como coadjuvantes compondo parte da encenação. Mesmo entre
os convidados, há uma separação hierarquizada: a primeira fila é reservada à
imprensa, às celebridades e aos empresários, enquanto a segunda é para os
compradores e um público heterogêneo que agrupa curiosos, estudantes de
moda, clientes e amigos.
O que iguala as duas fileiras é que elas estão no mesmo nível da
passarela improvisada nas vias de acesso.
Como o desfile foi feito também para ser veiculado pela mídia televisiva
e pela internet, podemos considerar que o público será convertido em actante
do espetáculo, pois ele faz parte do enunciado mostrado do mesmo modo
como na transmissão de um jogo de futebol, em que o comportamento e as
reações da plateia serão importantes para o resultado final da edição.
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Figura 69-O público convidado e as cadeiras vermelhas. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
As cadeiras de praia são vermelhas, feitas de nylon e alumínio. A
estrutura não é sólida, causando certa desestabilidade do corpo ao sentar. Os
convidados sentados têm, diante de si, separados apenas pela pista, outros
convidados. Eles se veem, se observam e, topologicamente, demarcam espaço
e valor. Mas há outro público que os observa: os dos moradores dos prédios.
Sendo assim, o corpo é convocado a se expor e ser visto pelos que estão na
cobertura do desfile, o que torna essa ambientação zona de visibilidade
exponencial dos figurantes da moda.
Para os convidados da primeira fila, os considerados vips (acrônimo de
very important person), a marca reserva presentes, para que se sintam
especiais e diferentes dos demais, que não são contemplados. Cada um deles
recebe um kit-brinde contendo uma camiseta com a frase “I Love SP”, um
guarda-chuva, um release e biscoitos dos patrocinadores. A adoção de brinde
é uma estratégia de marketing que permite uma melhor aproximação com a
marca. Outra estratégia para reforçar a imagem de que a marca é a cara de
São Paulo é a camisa, que vem com uma frase, em inglês, de declaração de
amor à cidade. O público, portanto, é preparado para ser partícipe do
enunciado.
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Figura 70 – Convidados e celebridades instalados nas cadeiras vermelhas. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Mesmo com toda essa estruturação restritiva, a marca constrói o
simulacro de que todos são convidados para assistir ao espetáculo. Os que
não receberam convite, e por isso não tiveram acesso ao elevado, podem
acompanhar das sacadas dos apartamentos ou das grades colocadas ao longo
do percurso do desfile com a finalidade de demarcar e separar o espaço
público do privado.
A Cavalera faz parecer que mantém um vínculo afetivo com a cidade,
com uma atitude democrática e de inclusão social em seu desfile. Na verdade,
porém, as massas excluídas pela sociedade continuam excluídas pela grife,
fato esse que reforça o status quo da sociedade em que nos inserimos,
discriminatória e excludente. Ela ratifica, assim, o conceito capitalista de ter
para ser. Se você consome, é bem-vindo; caso contrário, fique à margem,
assim como o público sem convite ficou à margem do desfile.
Contemplar o desfile de longe não exclui, entretanto, algumas
experiências estésicas e estéticas proporcionadas pelos sentidos da visão, da
audição, do olfato e da temperatura ambiente. Para os convidados,
acrescentam-se os sentidos do tato e do paladar, pois foram distribuídos
picolés para serem saboreados. Essas experiências estésicas mostram que o
destinador instala no discurso artimanhas para propiciar boas condições para
que o destinatário alvo possa desfrutar de uma lição de moda em local público,
mas recortado pelo público privado.
No desfile, o regime de visibilidade é a “sintaxe do ver” que possibilita a
orientação das dimensões cognitivas. O desfile tem seus dispositivos para que
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a relação de visibilidade ocorra com o “fazer-se ver”: as posições das cadeiras,
localizadas ao longo da passarela/asfalto, que são ocupadas pelos convidados,
que procuram, eles próprios, a “captação do olhar” do outro, assumindo, por
sua conta, o papel de sujeito operador e observador que o plano de expressão
processa em várias instâncias. Vejamos:
a) Os corpos dos convidados sentados são acionados pelos olhos e
ouvidos para mover algumas partes do corpo: seu tronco, braços,
pescoço, cabeça e ouvidos, que devem se movimentar para
acompanhar com seus olhos os modelos desfilando ao longo do trajeto;
b) Os passantes, posicionados em pé ao longo da grade que separa a
esfera pública da privada e que transitam pela via disposta na lateral da
grade, são convocados a “ver”;
c) Os moradores locais têm uma visão de cima para baixo, pois ocupam as
sacadas, a varanda e as janelas dos edifícios da localidade;
d) Os passantes e moradores, abaixo do elevado, percebem as
modificações e quebra da rotina que acontece no elevado;
e) Os fotógrafos são espacialmente posicionados em arquibancadas diante
da passarela para captar os melhores ângulos do desfile, com o objetivo
de produzirem imagens e gerarem notícias para os veículos de
comunicação;
f) Todos os grupos enumerados acima geram suas narrativas a partir de
determinado ângulo (ponto de vista).
Vamos nos deter, então, na construção do percurso narrativo de S1, que
corresponde ao actante do desfile colocado em estado de “ser visto”, e do
actante S2, que ocupa a função do “observador”. Nesse evento, instalado na
rua, os convidados podem ser observados pelos moradores das sacadas e
pelo público comum, composto por pessoas não convidadas. Ao mesmo
tempo, o morador local visualiza de cima para baixo cada uma das arenas de
visibilidade dadas aos fotógrafos, desfile, passantes e convidados. Tanto os
convidados quanto os participantes do desfile da passarela e o público comum
são observadores, cada qual construindo seu ponto de vista.
A percepção do desfile é conduzida pelo enunciador, que está
figurativizado no enunciado pela marca Cavalera, que determina o que pode e
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deve ser visto. Apoiando-nos no sujeito observador cognitivo, debreado pelo
enunciador e que constrói um determinado ponto de vista, torna-se possível a
expansão semântica das imagens percebidas. Assim, o enunciatário, actante
S2, que apresenta a função de observador, posiciona-se no desfile para ser
tocado pelo sensível e pelo inteligível, que se apresenta na visibilidade do
desfile.
Temos assim um modo enunciativo adotado pela localização do desfile
fora do espaço convencional. O cenário abre-se para os sujeitos observadores,
para quem toda enunciação é montada. Os graus de diferenciação dos vários
observadores instaurados no enunciado, múltiplos pelas diferenças de
conhecimento e de posicionamento do que se passa no desfile de moda, fazem
com que o seu fazer interpretativo sofra o impacto da novidade do local, que é
ressemantizador na interpretação de sentidos.
A visualidade tem seu ritmo comandado pela sonorização do desfile, que
define a sua duração em torno de vinte minutos, espaço de tempo em que são
apresentados quarenta e cinco looks, isto é, visuais completos e produzidos.
Figura 71 – Desfile da Cavalera, em 2009. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
O desfile da Cavalera faz o deslocamento do espaço fechado/privado
para o espaço fechado/público e provoca várias alterações na topologia do
desfile convencional, embora o modo operante de apresentação dos seus
produtos mercadológicos seja igual aos dos desfiles convencionais. O cenário
do desfile é o espaço da cidade, com o acréscimo de alguns elementos de
cena que fazem parte da vida urbana, tais como carros, motos e bicicletas.
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A topologia da passarela, localizada entre os acentos dos convidados e
dos prédios dos não convidados, marca a centralidade para a qual convergem
todos os olhares, vindos de diferentes direções e altitudes.
Figura 72 – Desfile da Cavalera, em 2009. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Sendo um espaço fechado/público, o desfile realizado num local assim
fica vulnerável às mudanças climáticas do tempo e às intempéries do meio. E o
público sente todas essas mudanças táteis, visuais e sonoras, que alteram o
estado anímico das pessoas presentes ao evento.
A pista, palco do desfile, foi dividida em três faixas, criando um
dinamismo na apresentação. O meio fio, que divide as duas pistas de asfalto, é
usado como uma faixa de passarela, porém num nível mais elevado. A
topologia do desfile em forma de “I” se apropria da paisagem do lugar: os
postes, os acostamentos, as sinalizações no chão e as placas de
quilometragens.
O ato do desfile não segue o modelo padrão de disposição e
apresentação de um modelo atrás do outro. Pelo contrário, a coreografia é
intencionalmente desordenada, mimetizando o cotidiano dominical do elevado,
em que as pessoas caminham livremente e se expressam individualmente.
Um casting composto por modelos profissionais e também simpatizantes
da marca, que atuam como actantes comuns do dia a dia da metrópole. Alguns
andam de bicicleta, outros seguem seu percurso sobre patins ou motocicleta.
Há ainda os que simplesmente caminham ou levam seus filhos para um
passeio dominical. São vários agrupamentos sociais e com diferentes
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expressões de si e de valores que atuam no mesmo espaço-tempo, em uma
coabitação integradora.
Figura 73 – Desfile da Cavalera, em 2009. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Esse tipo de desfile em espaço fechado/público instaura o sujeito-
público, consumidor de moda, como público/privado, mas sem excluir o
público/público. O procedimento de manipulação com um “querer estar na
moda” é posto, assim, no cenário e na encenação pública como um “dever
estar na moda”.
A prescrição do habitante de São Paulo estar na moda está posta, tanto
pelo uso das vestimentas quanto pelo acesso às informações fornecidas pela
mídia. O perfil do público actorizado que a marca constrói é de uma pessoa
que se veste casual e despretensiosamente, mas que está permanentemente
informada pelos veículos de comunicação especializados das tendências de
moda e comportamento, impondo o que deve e pode ser usado.
É claro que quem dita o que se deve e se pode usar é a grife. A
imprensa funciona como um poderoso intermediador, um formador de opinião
que lança ao grande público esses dados, desenvolvendo sentidos de como
querer se apresenta no mundo.
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Figura 74 – Desfile da Cavalera no Elevado, em 2009. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Sendo uma marca que vende a imagem de jovialidade, beleza e
esportividade, a Cavalera busca símbolos culturais para ratificar essa imagem
construída. Dessa forma, a marca se faz conhecida e se aproxima de sua
clientela potencial a partir do discurso que confere um elo de sentimento de
comunhão afetiva e de intimidade com a cidade e com seus moradores, num
desfile-passeata, em que todas as bandeiras estão juntas no mesmo esforço
de embelezar-se para ocupar a cidade.
Figura 75 – Desfile da Cavalera no Elevado, em 2009 (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Retomamos agora a estilização da bandeira do estado de São Paulo.
Para reoperar o seu sentido, o convite sinaliza sua presença através dos
elementos plásticos cromáticos – as mesmas cores da bandeira paulista – e
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eidéticos – o seu formato retangular e o topológico, a distribuição dos
elementos da bandeira de São Paulo.
Figura 76 – Acessórios da grife, com estampa da bandeira de São Paulo. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Figura 77– Bebê desfilando com peças estilizadas da bandeira de São Paulo. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Figura 78 – Mais um modelo com roupa estlizada da bandeira paulista. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
No desfile, a bandeira se faz presente nas roupas de homens, mulheres
e crianças, além de acessórios. Assim como os norte-americanos e ingleses, a
Cavalera propõe que o paulistano tenha a mesma atitude de ufanismo, não em
relação ao país, mas à sua cidade, reforçado a imagem de grife paulistana, que
não atua na totalidade do país, mas na segmentação e na exclusão de público
formando a sua ilha de inclusos.
A grife se coloca no mercado de forma elitista e discriminatória, um
posicionamento arriscado caso se tenha em vista a expansão da marca para
outros mercados. O que ela propõe como “identidade Cavalera” é uma
adaptação de valores culturais de países do primeiro mundo. Vejamos:
a) Se a marca busca uma identidade própria e local, por que buscar formas
de expressão iguais a de outros países que dominam cultural e
economicamente o mundo?
b) Por que a presença de uma língua estrangeira no convite para se
comunicar com o convidado, se a língua nacional possui vocabulário
suficiente para se expressar?
c) Se a marca busca crescer mercadologicamente, por que ter sempre
como tema em seus desfiles símbolos da cidade de São Paulo? No caso
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do Elevado Costa e Silva, por que um símbolo polêmico que trouxe
decadência à região e falta de qualidade de vida aos moradores é
considerado, esteticamente, uma obra de engenharia feia?
d) Não ser paulista ou paulistano é fator excludente de pertencer à
Cavalera, já que este público não tem representação e/ou expressão
dentro da marca?
e) Poderíamos dizer que o discurso da grife propõe que, assim como os
brasileiros se espelham e se subjugam às culturas dominantes, o
brasileiro que não reside em São Paulo deve se espelhar nessa cultura
regional pelo seu papel econômico inegavelmente superior?
Retomando a encenação do desfile, vemos que ele resulta num
particular regime de visibilidade. O formante topológico, por exemplo, é a
própria cena do desfile, delimitando o percurso a ser seguido. As demais
passagens foram bloqueadas por carros antigos e coloridos, que fazem parte
da cena.
A outra estratégia adotada pela Cavalera é a manipulação por sedução
do público-alvo, pregando um discurso de que todos são bem-vindos.
Entretanto, o discurso verbal do dito não encontra veracidade nessa ação,
inclusive, se o sujeito não tem convite, não é bem-vindo, sendo barrado na
entrada. Assim, é um sujeito do querer-ser destituído do poder-ser e do
poder-ter. A ele, é reservado o espaço por detrás das grades que separam o
público do privado.
Figura 79 – Desfile da Cavalera, em 2009. Contraste entre as linhas verticais e
horizontais das filas de cadeiras com os convidados. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
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As imagens construídas pelo enunciador na atualização do discurso do
“novo” são vivenciadas nas passarelas de moda com os looks da marca, que
se rearranjam com um parecer de novidade, ruptura para continuar a ser
adotado como nova coleção a cada temporada.
A ruptura da programação do desfile convencional acontece não
somente na dimensão espacial, mas na atitude corpórea do casting que remete
aos gestos do cotidiano, sem posturas programadas nas passarelas. Os
modelos seguem um ritmo casual e descontraído, no estilo de vida das tribos
dos streetwears, skatistas, esportistas, grafiteiros, surfistas, ciclistas, mães e
bebês, crianças, músicos, motociclistas e casais de namorados.
Figura 80 – Final do desfile da Cavalera, em 2009. Os modelos desfilam em grupo como uma passeata. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Para criar esse cenário casual, o grupo de modelos selecionados foi
composto por quinze paulistanos não modelos e trinta modelos profissionais. A
inserção de pessoas comuns, incluindo na passarela pessoas não tão jovens,
como um homem de 45 anos, ratifica e reforça o discurso de diversidade e
miscigenação que a cidade de São Paulo comporta e absorve. A maquiagem,
bem natural, remete ao mesmo discurso de espontaneidade, como se fossem
pessoas do cotidiano transitando livremente pelo lugar. Há coerência e
sincronia entre o dito e o feito, gerando confiança no enunciatário.
Além disso, ao construir cuidadosa e detalhadamente uma aparente
descontração, invadindo uma via feita para circulação de automóveis, elabora-
se uma crítica e um apelo à cidade, para que ela se humanize e abra mais
espaço para as pessoas.
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4.2.3.Espaco aberto/privado: Karlla Girotto
Figura 81 – Mapa de localização do desfile. (Fonte: Google Maps)
O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro localiza-se no Aterro do
Flamengo, uma faixa de terra construída sobre as águas da Baia da
Guanabara destinada a ligar a zona sul ao Aeroporto Santos Dumont e ao
centro da cidade. Trata-se, de fato, de uma via expressa limitada, de um lado,
pelos antigos edifícios do bairro do Catete e do Flamengo e, de outro lado, por
1.301.308 metros quadrados de jardins ladeados pelo mar. Ao longo de uma
praia artificial, esses jardins foram planejados e executados por Roberto Burle
Marx e incluem playgrounds, teatro ao ar livre, restaurantes, áreas de lazer
esportivo e estacionamentos para atender o Monumento aos Mortos da
Segunda Guerra e o Museu de Arte Moderna.
O projeto do Museu foi concebido pelo arquiteto modernista Affonso
Reydi, tendo sido concluído apenas em 1968. O desenho da obra, traçado
desde 1953, procurava estabelecer um diálogo visual com a paisagem das
montanhas, da baía e do próprio Parque do Flamengo, definido pelo autor
como “uma extensa área conquistada do mar, no coração da cidade”.
De acordo com Lauro Cavalcanti (2001, p.46), a concepção monumental
do Museu inclui a noção de espetáculo e celebração da arte. Assim, segundo o
autor, o Museu:
“procurou não entrar em conflito com a natureza, optando por uma composição predominantemente horizontal, de modo a acentuar o
115
movimentado perfil das montanhas [...] e permitindo manter a continuidade dos jardins até o mar” (CAVALCANTI, 2001, p.46).
Para Laurence Fleming (1996, p.80), biógrafo de Burle Marx, essa
operação realizada ao longo da paisagem permitiu com que os antigos
edifícios, que pareciam debruçados em direção ao mar, aparecessem
dispostos em uma escala mais razoável, privilegiando a horizontalidade do
olhar.
A vegetação escolhida compreende exclusivamente espécies nativas
que, em sua proximidade com o oceano, adquiriam porte monumental, sem
reproduzir, entretanto, o adensamento de uma floresta. Burle Marx dizia que
essa era a forma pela qual ele procurava “trazer a natureza ao alcance do
homem e levar o homem de volta à natureza” (BURLE MARX, 1996, p.77).
Figuras 82 / 83 – O jardim do MAM no Rio de Janeiro. (Fonte: site do MAM/RJ)
Num continente do Jardim no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
acontece o desfile “Neutro”, como parte da programação dos desfiles de moda
da semana Fashion Rio, verão/2005. Há uma relação entre o destinador e o
destinatário, construída por meio do olhar e das sensações tácteis
proporcionadas pelo ambiente que envolvem o desfile, sendo esse, a um só
tempo, natural e construído.
Ao assistir o desfile “Neutro”, somos transportados para uma dimensão
sensível de alta complexidade: sentimos o vento e a brisa do mar, ouvimos o
murmúrio longínquo dos automóveis e aviões. Viajamos, assim, dentro dessas
experiências estésicas para um futuro simbolizado pelas formas modernistas
116
da arquitetura e, simultaneamente, regressamos para os anos 1950, quando
tudo aquilo nascera, isto é, na origem daquele ambiente e dos vestidos que por
ele desfilam. Para Landowski,
numa espécie de comunhão entre os que representam e os que assistem ao espetáculo, estes últimos se reconhecendo através dos primeiros [...] o valor do espetáculo considerado sob seus diversos aspectos, ao mesmo tempo com ação representada e como comunhão vivida (LANDOWSKI, 2002, p.186)
Aos valores de intimidade, referimo-nos ao espaço interior de uma casa,
mais precisamente, de um dormitório. Dentre os elementos que compõem
esses valores, podemos citar o aconchego e o conforto próprios daquela
concha de morada que nos permite repousar e sonhar em paz. Na casa, o
quarto protege o homem das intempéries do tempo e da imprevisibilidade da
rua, do mundo exterior. Em suma, a casa e o quarto são locais de uma vida
protegida, no limite, um simulacro do útero materno.
Figura 84 – Convite do desfile “Neutro”, verão/2005.
O convite lembra a página de um caderninho, ou ainda, de um diário
íntimo, no qual toda a donzela – especialmente a das décadas de 1950 e 1960
– registrava seus segredos na horizontalidade de suas linhas. No centro, em
caixa alta, aparece o nome da estilista Karlla Girotto. Abaixo, lemos a
localização do desfile e a sua duração. Os desenhos lembram um rascunho ou
um esboço de algo inacabado, já verificado em várias outras criações da
117
autora: a evidência de uma obra em processo, na qual o tempo se esparrama
em formas que podem ou não se definirem.
No que diz respeito ao cromatismo, a presença das cores preta, branca
e vermelha constituem escolhas do enunciador, que se referem às cores da
bandeira do Estado de São Paulo, onde a estilista nasceu. Notamos, assim,
alguns elementos que serão reiterados no desfile de Karlla Girotto:
a) a cama com uma dimensão exagerada e desproporcional ao corpo que
a ocupa;
b) uma pessoa dormindo ao lado de um travesseiro, com o seu corpo
curvado e encolhido, em posição fetal;
c) sobre uma mesinha, um sapato dentro de uma gaiola. Com relação à
figurativização do sapato preso na gaiola, podemos associar que as
imagens de segurança, conforto e luxo têm como corolário a supressão
da liberdade expressa metaforicamente pela gaiola, que, no desfile, é
dourada.
No lado direito do convite, na parte superior direita, observamos uma figura
feminina inacabada. Ainda que acordada, ela olha para o convidado, talvez
estabelecendo uma relação de intimidade determinada pelo olhar (enunciação
enunciada). Há também o registro da palavra “CÉU”, ao lado das montanhas
no canto esquerdo superior, disposto de forma oposta ao que se encontra no
canto direito inferior (que seria, portanto, a terra).
Na parte inferior direita, um corpo feminino desenhado em vermelho,
deitado no andar superior de uma cama beliche (relação explicitada de
superioridade e inferioridade). A partir dos desenhos esboçados no convite, os
convidados se tornam íntimos do sentido do dizer daquele desfile.
118
Figura 85 – Desfile “Neutro”, verão/2005. Jogo do piso horizontal e vertical e entre horizontal e vertical entre as distribuições de camas em desfile. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
O desfile tem início antes mesmo de o público convidado chegar ao
local, o que já é uma ruptura estrutural. Na primeira sequência, às oito horas da
manhã, temos um casting formado por cinco modelos, que se dirigem cada
uma para uma cama. Na segunda sequência, as modelos sentam-se nas
camas, abaixam-se e guardam seus colares de pérolas dentro de caixinhas de
música. Em seguida, as modelos tiram os sapatos e os colocam dentro das
gaiolas que estão em cima dos criados mudos, próximos das camas.
Destacamos a dimensão gigantesca das camas, construindo, portanto, uma
metáfora da oposição de categorias no nível fundamental entre liberdade e
opressão.
Na terceira sequência, elas se deitam e dormem sobre os colchões sem
lençol, viradas para a direita. O cenário nos remete à figurativização de um
quarto, no interior de uma casa, ou um dormitório de colégio interno – lugar de
repouso e proteção. Temos aqui a tensão entre o individual e o coletivo,
remetendo à experiência juvenil de partilhar o “diário íntimo”. Mas na cenografia
do desfile não existem paredes, teto ou portas, o que ocasiona, portanto, uma
dilatação das barreiras entre a vida pública e a vida privada.
As modelos dormem durante cerca de três horas e meia, com seus
corpos expostos a uma iluminação natural, com temperatura em torno de 32°C.
Em uma alusão ao mito da bela adormecida, observamos o congelamento do
fluxo da vida nessa cena. Enquanto elas estão dormindo são vigiadas por um
modelo masculino, que se encontra sentado em um banco. Disposto em uma
119
posição superior às camas, ele observa atentamente as modelos com um
despertador nas mãos. Logo atrás dele, encontra-se uma escada vermelha.
Essa escada é disposta topologicamente na verticalidade, contrapondo-se,
assim, à horizontalidade das camas. Em um curioso semissimbolismo, olhadas
desse ângulo, as camas formam as treze listras que compõem a bandeira do
Estado de São Paulo.
Figura 86 – Detalhe das camas nas paralelas. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Figura 87 – Detalhe da modelo colocando os sapatos na gaiola. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
A escada que está posicionada ao fundo das camas, nos remete a uma
relação de ligação entre a terra e o céu, sendo também a verticalidade das
paredes da casa, o que separa o exterior-público do interior-privado. Temos,
assim, a figurativização da escada que nos conduz ao céu, em um movimento
duplo de descer ou subir, em uma espécie de caminho para o sonho e para a
solidão.
120
No que toca à materialidade do piso em que se encontram as camas
com o formato retangular, salientamos as suas características plásticas:
rugoso, rústico e irregular. O piso tem por objetivo sedimentar e alicerçar a
base do quarto para as camas não afundarem, contrapondo-se, ainda, ao
jardim disposto ao redor e dominado por uma grama verde e sedosa. A
disposição das pedras, separadas por espaços intermediários, oferecem uma
continuidade até a escada no fundo.
Figura 88 – Modelo realmente dormindo, como parte da performance. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Figura 89 – Marilyn Monroe, uma referência de beleza dos anos 50. (Fonte: A Beleza do século XX, Cosac Naify, São Paulo: 2002)
Percebemos ainda uma concretização do simulacro da beleza feminina
dos anos 1950 na escolha das modelos, que têm boca marcada, cabelo loiro
121
platinado, olhos pintados com delineador no estilo “gatinha”, pinta preta no
rosto e sobrancelhas mais escuras, contrastando com a pele clara.
Pausando um estranhamento, as modelos dormem, indiferentes ao ruído
da cidade, das vias expressas próximas ao Jardim, dos automóveis, dos
aviões, das pessoas e do tic-tac do relógio, que marca a temporalidade do
desfile, o “agora”, e a espacialidade do “aqui”.
Elas permanecem embaladas em um sono profundo, enquanto os que
olham permanecem à espera de que algo aconteça. Todavia, o tempo vai
passando e as modelos continuam adormecidas, indiferentes ao que acontece
ao seu redor. Cresce nos enunciatários uma expectativa, que passa por
estágios diversos até ir se esvaziado com a inércia das modelos.
Ao contrário de um desfile convencional, essas modelos estão dispostas
em cena deitadas e com os pés nus, produzindo uma quebra que faz o público
curioso se aproximar da cena, ainda mais porque a cena se passa sob um sol
forte que incomoda o público que acompanha o desfile. O arranjo enfatiza a
oposição entre estaticidade e dinamicidade.
Com o sol mudando de posição e as sombras sendo projetadas no chão,
ao meio dia em ponto o despertador toca, depois que o público resistiu e se
manteve esperando por quase quatro horas. Algumas pessoas que
presenciavam o desfile já foram embora, outras continuaram motivados pela
curiosidade.
As modelos que são profissionais despertam de um sono profundo,
espreguiçam seus corpos de um lado ao outro da cama, sem pressa para
levantar. De maneira sequencial, cada modelo senta-se do mesmo lado em
que estão as gaiolas com os pares de sapatos. Elas abrem as caixas de joias e
uma música de caixinha de bailarina ecoa pelo ambiente, misturando-se ao
barulho externo do jardim. As modelos miram-se nos espelhos da caixa,
retocam a maquiagem, que está intacta, abrem as gaiolas, tiram os sapatos e
os calçam, ainda carregando em suas mãos colares de pérolas.
Com uma atitude entre o estado de adormecimento e de estarem
despertas, elas são cada mulher no ato de acordar para estar no mundo. É
assim que elas se levantam, uma a uma, e, seguindo uma sequência de
desfile, saem desse espaço seguindo em direção a cada gaiola, fechando as
portas de cada uma delas e que marca o encerramento do desfile.
122
Figura 90 – Modelo 1 dormindo: plano fechado. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza) Figura 91 – Modelos dormindo: plano aberto. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Figura 92 – Detalhe da modelo 1 calçando o sapato. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza) Figura 93 – Detalhe da modelo 1 caminhando após se calçar. (Foto: acervo pessoal/Jô
Souza)
Apesar de o desfile voltar-se para a apresentação de uma coleção de
verão e a materialidade das saias serem de tecidos fluidos, as quantidades de
camada de saias dão muito volume, numa tradução do New look criado por
Dior, que pode ser descrito por uma silhueta, do final dos anos 1940 e inicio
dos anos 1950, marcado pela presença de cintura marcada, casaco de fustão
bordado com flores na gola, mangas estruturadas e ombros marcados.
O que vai diferenciar o casting são as roupas, pois os acessórios
colaboram para a homogeneidade do conjunto: luvas de pelica vermelha,
sapatos com bico redondo e cor vermelha com o formato “boneca”, além da
123
peruca loira estilo “Chanel” e a maquiagem anos 50. Essa é a estratégia pela
qual o enunciador chama atenção do enunciatário para os looks de outra época
que se destacam na paisagem verde do jardim ao serem despertados dessa
temporalidade de então, a do agora.
Os acessórios são os principais elementos utilizados aqui para
representar o mundo de meados do século XX. Destaca-se o uso de luvas de
couro, muito usadas pelas mulheres daquela época para evitar manchas de sol
nas mãos, quer durante o verão, quer durante o inverno. A altura da saia fica
um pouco abaixo do joelho, apresentando os formatos godé e evasé com
plissados e balonés. Elas acumulam várias camadas de diferentes tecidos:
algodão, tafetá, cetim de seda e tule, além do uso de plumas nos detalhes. Os
primeiros looks são para ser utilizados durante o dia, ao passo que o último é
um longo para a noite.
O enunciador se coloca no discurso das imagens que ele produz no
enunciado, como um artesão de moda que domina as técnicas de modelagem.
Para isso, ele procura mostrar para o seu enunciatário o seu saber-fazer. Esse
saber-fazer é explicitado pelo enunciado pelo adequado domínio da
modelagem e pelo impecável acabamento que são enfatizados pelo
transparecer o avesso da roupa, no momento em que as modelos estão
deitadas.
Além disso, esse enunciador dá a conhecer as formas femininas, com a
valorização pela marcação do corpo em lugares erógenos, como cintura, seios,
quadris e ombros. O discurso do enunciador potencializa as formas femininas
mais redondas e circulares, bem diferentes dos corpos das modelos que
desfilam atualmente nas passarelas convencionais, obedecendo ao discurso da
beleza promovido pela mídia.
A relação de correspondência que estabelecemos se explicita nas duas
fotos em que a modelo de Dior veste uma saia godê com uma blusa spencer
de manga comprida, com a cintura bem marcada, tendo como acessórios as
luvas e um par de scarpin. Na releitura de Karlla Girotto, o mesmo look
ressurge na passarela com cores vibrantes. Veja os atributos conectados a
seguir:
124
Figura 94 – Modelo desfilando vestida com uma releitura New Look, de Dior, de 1947. Logo atrás, um fotógrafo posicionado para captar do melhor ângulo. (Foto: acervo pessoal/Jô Souza)
Com esses elementos trabalhados, chegamos ao discurso de que o
desfile “Neutro”, em sua imanência, não é neutro. Em uma relação de oposição
a esse, são neutros os demais desfiles convencionais realizados no Fashion
Rio. Um determinado partido é tomado a partir das escolhas do enunciador
para a construção plástica do desfile. E, dessa forma, essas escolhas tornam-
se determinantes para uma maior visibilidade da marca.
Assim, a intencionalidade do desfile é caracterizada pela quebra de
neutralidade, desenvolvendo, portanto, a construção do discurso pela
diferença. Enquanto os desfiles convencionais são acelerados, em um ritmo
frenético, o elemento transformador do desfile Neutro passa a ser a própria
duração do desfile, ou seja, a sua extensão, uma duração que se caracteriza
pela sua monotonia.
125
4.2.4. Espaço aberto/público: Fashion Mob
Na categoria de desfile de espaço aberto/público, se enquadram aqueles
cuja realização ultrapassa os limites da passarela, em uma sala
fechada/privada e ganha as ruas, portanto, o espaço público da cidade, como é
o caso do desfile de moda Fashion Mob, que invadiu a cidade de São Paulo,
ocupando seu espaço público sem que fossem estabelecidas fronteiras. Ao
contrário, promovendo uma interação corpo a corpo com os transeuntes, que
foram assim confrontados com uma outra prática significante, diversa daquelas
habituais de seu viver.
Como sujeitos, os passantes podem ser ativos, na medida em que se
dirigiram voluntariamente para o local com a intenção de observar o evento. Ao
lado desse grupo, enquadram-se ainda convidados, parentes, amigos,
organizadores, patrocinadores, jornalistas etc. Há também os espectadores
passivos, que não imaginavam ver o que estavam assistindo. Como uma forma
de cortejo, esse acontecimento inusitado ocorre em vias centrais de
acessibilidade da cidade, em suas passagens com um tipo de escolha de
espaço para alocar o desfile que surpreende os habitantes pela
imprevisibilidade.
Figura 95 – O percurso do desfile, entre o Largo do Arouche (A) e o Parque da Luz (B) cruza a região mais degradada do centro de São Paulo, beirando a “Cracolândia” até a Estação da Luz (Fonte: Google Maps).
126
A ocorrência do desfile também era captada pelos passantes que
estavam de carro, de moto, de ônibus ou a pé. Ele se iniciava no Largo do
Arouche e seguia em direção ao Parque da Luz, com a participação de setenta
e um criadores apresentando seus trabalhos num desfile que era também uma
competição, uma vez que os escolhidos por um júri concorriam a prêmios.
Desse grupo, faziam parte desde jovens estudantes de moda a costureiras de
bairro e figurinistas, incluindo criações conceituais e trabalhos de viés
sustentável, como um vestido feito de nylon de guarda-chuva.
O evento reuniu centenas de pessoas e era seguido por um trio elétrico.
A sua duração era imprevista, pois dependeria dos acontecimentos que se
sucederiam no trajeto – como a sua passagem por semáforos, fluxos de
pessoas e automóveis, chuva ou todo o tipo de situação não programada que
enfrentaria na sua ocorrência em ato na vida da cidade e seus habitantes. À
primeira vista, esse tipo de desfile poderia parecer um carnaval fora de época
que utilizava roupas criadas pelos estilistas em lugar de fantasias.
Consideramos que a passarela desse desfile é um percurso por uma
parte de São Paulo, com a quebra da “quarta parede” do espaço formal dos
desfiles de moda. Ele é instaurado no “aqui” e “agora” e no “eu” e “tu” desse
encontro urbano e permite, com a sua narratividade de transformação do
estado do lugar a construção de sua visibilidade. O que é dado a ver é a
participação dos sujeitos com sua intensidade corpórea pelo deslocamento de
fluxos da cidade, ao qual ele se interpõe como uma ruptura. A sua ocorrência
em ato interpõe-se no fazer comunicativo como uma novidade. A trilha sonora
é construída pelos tecidos sonoros da cidade, justapostos e sobrepostos:
buzinas, barulhos, ruídos, vozes, sons de motores e mixada ao som do DJ no
trio elétrico que acompanha o desfile. Segundo o site FFW,
dividida em duas imensas filas indianas, a turba formava um cenário alegórico e arrancava palmas e comentários pelo caminho. Nas mesas de bares, lotadas, os clientes não poupavam palavras, tanto parar elogiar as garotas, quanto para comentar algo da “esquisitice”. Nos ônibus, todos os olhos se voltavam para o acontecimento, enquanto um pastor cercado de 5 ou 6 pessoas profetizava aos gritos: “Jesus irá salvá-los”. A movimentação também teve fã cativo: Um morador de rua que seguiu dançando todo o percurso, desferindo seus comentários: “Mulher minha não usava roupa assim, mais de jeito nenhum!”.(novembro de 2010)
127
Em outros termos, ao produzir, dessa forma, comentários do público do
lugar, o evento está dando a sua contribuição para a democratização da cultura
de moda, investindo numa linha oposta ao elitismo que tradicionalmente
acompanha essa atividade. A escolha do local também é fruto dessa
preocupação, pois o local é a área mais polêmica da cidade, para a qual, há
anos, é discutida uma ação de recuperação prometida pelas autoridades aos
habitantes do local e da cidade.
Figura 96 – Painel para servir de fundo para fotografias dos participantes do evento. (Foto: Mainá Pilos)
O destinador Fashion Mob não faz uma seleção de destinatários para
enviar o convite do evento. O público é convocado a participar do desfile pelas
mídias sociais e pelo noticiário da impressa. Existe um discurso de evento
democrático, a ideia de uma moda que esteja ao alcance de todos, a partir da
escolha do local em que acontece o desfile e dos estilistas convidados,
selecionados pelo Fashion Mob.
O convite individual para a participação é substituído por um banner com
o formante cromático rosa metálico, de formato retangular, medindo cerca de
cinco metros de altura por quatro metros de largura, instalado no centro da
praça. Em termos de distribuição topológica, em sua parte superior esquerda
está o logo do evento e o ano da sua realização e, na parte superior direita, o
logo da Prefeitura de São Paulo. Ali, os transeuntes são convocadas a parar,
tirar uma foto e interagir com o evento. O destinatário é, assim, inserido no
convite a partir do ato de fotografar-se tendo como pano de fundo o logo do
evento. Coloca-se na foto como alguém que desfila no Fashion Mob. Dessa
128
maneira, ao se posicionar ali para as fotos, marca a sua presença como se
fosse uma celebridade.
Figura 97 – O desfile Fashion Mob passando pela estação da Luz: o público acompanha como se fosse uma procissão. (Foto: Mainá Pilos)
Em fila indiana, o desfile se mistura à paisagem urbana. Ele segue uma
programação com hora para começar, deixando indeterminada a hora do
encerramento, que depende das surpresas e acontecimentos ao longo da
trajetória. O desfile Fashion Mob promove um vínculo afetivo com a cidade,
assumindo uma postura de socialização. Não existe nenhum tipo de exclusão:
toda a população é convocada a participar. São suas características gerais:
a) os corpos são convocados a se mobilizarem, acionados pelo ritmo do
desfile. Não permanecem sentados, mas participam intensamente do
acontecimento, fazendo parte do ato de desfilar;
b) os passantes pedestres são convocados a ver e a participar da quebra
de rotina;
c) os fotógrafos não estão posicionados em qualquer espaço determinado,
mas se deslocam conforme o andamento do desfile para captar o melhor
ângulo, ora se aproximando, ora se distanciando;
d) a polícia e os seguranças privados acompanham o desfile com a
intenção de evitar algo que saia da programação.
129
Figura 98 – As modelos em fila indiana pelas ruas do centro da cidade. (Foto: Mainá
Pilos).
O desfile Fashion Mob desenvolve o discurso de que a moda também
acontece nas ruas, e não apenas nas passarelas de formato convencional. É
um evento que está sujeito às variações climáticas, que podem ou não interferir
no andar rítmico dos modelos, e à superfície, por vezes rugosa e irregular do
asfalto, que é transformado numa imensa passarela. Não há uma narrativa pré-
estabelecida ou construída em função dos looks. O desfile não segue a
programação de entrada e saída de modelos da passarela, mas todos
caminham em fila indiana, às vezes, irregular, mas sempre com um modelo
atrás do outro. As pessoas que desfilam são convocadas a atuarem como
modelos, já que não são obrigatoriamente profissionais.
No desfile da Cavalera de espaço fechado/público, toda a movimentação
do público e dos modelos era rigidamente planejada, como num roteiro teatral,
concentrando-se num único local em que, numa via pública temporariamente
desativada, se reproduzia a tradicional dualidade palco e plateia. Trata-se de
uma operação semelhante à que aconteceu no carnaval do Rio de Janeiro –
depois, repetida em São Paulo –, com a substituição de uma avenida central da
cidade pelo sambódromo, como espaço a ser ocupado pelos desfiles das
escolas de samba.
Por sua vez, o Fashion Mob, com sua ocupação de espaço
aberto/público, lembra a descontração dos antigos carnavais de rua, em que os
blocos desfilavam em fila indiana, mas andando, desfilando de forma livre, sem
marcação de um desfile convencional, interrompendo o trânsito e o cotidiano
130
das ruas. Em seu planejamento, não há uma história previamente concedida a
ser contada, como no desfile Karlla Girotto, nem uma situação urbana a ser
encenada, como no desfile da Cavalera. Há apenas a proposta de uma série
de looks em fila indiana, destinada a cruzar um trecho do centro da cidade.
131
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises desenvolvidas neste trabalho levaram à descrição e à
construção de quatro diferentes modos pelos quais os desfiles de moda podem
se realizar, pensados pelo universo as sua dinâmica de relações. Do eixo da
oposição de base espaço fechado/privado vs. espaço aberto/público por
relações de contrariedade, o eixo da oposição subcontrária espaço
fechado/público vs. espaço aberto/privado, que implica nos polos de oposição
de base.
Esse diagrama das oposições sintáticas, com os seus investimentos
semânticos, mostra os percursos da dinâmica relacional entre os polos, o que
nos possibilitou encontrar, nos desfiles brasileiros, exemplos que ocupam
essas posições lógicas.
Espaço fechado / privado Desfile Maria Garcia
Espaço aberto / público Desfile Fashion Mob
Espaço fechado / público Desfile Cavalera
Espaço aberto / privado Desfile Karlla Girotto
Figura 99 – A quadratura axiológica
Como um trânsito relacional entre essas polaridades, outros desfiles
poderiam ser posicionados, mas a nossa proposta não é cobrir a totalidade dos
modos de manifestação dos desfiles. Conforme o nosso objetivo central,
guiamo-nos por identificar as caracterizações modelares que identificam uma
tipologia para se estudar os desfiles. A partir do jogo de percursos entre as
posições contrárias, contraditórias e implicativas, outros desfiles poderão ser
situados no diagrama e trabalhados em suas estruturações significantes para a
compreensão da significação que produzem.
Com essa sistematização, acreditamos ter contribuído para oferecer aos
estudiosos dos processos comunicacionais dos desfiles de moda, enquanto
132
processos interativos e de sentido, um arcabouço de descrição e análise. O
resultado a que chegamos com essa tipologia pode abarcar todos os possíveis
desfiles em sua ampla diversidade, os quais podem ser pensados pelas
relações para serem enquadrados na dinâmica relacional.
A partir desse estudo categorial dos desfiles de moda, podemos afirmar
que as invariáveis dessa manifestação performática seriam (1) os looks
apresentados na coleção; (2) a iluminação, que pode ser natural ou artificial; (3)
a passarela, que pode ser uma superfície lisa – em um espaço fechado e
privado – ou improvisada na rua, espaço aberto e público; (4) um percurso de
programação, com horário para começar e terminar, incidindo na quebra dessa
regulação as suas diferenciações; (5) a cenografia monta uma ambientação no
espaço em que o desfile se realiza e pode acontecer em um espaço aberto,
como uma rua ou jardim, ou em um espaço fechado, como uma sala; (6) a
trilha sonora que acompanha o desfile pode ser uma música composta
especialmente para ele ou de uma trilha improvisada a partir de outras trilhas
ou de interferências sonoras, como os sons e ruídos da cidade; (7) o casting
formado pelas escolhas das modelos, que podem ou não ser profissionais, é
pensado a partir da proposta significante do criador de moda – assim, nos
desfiles estudados, essas diferenças produzem sentido: enquanto as modelos
de Maria Garcia e de Karlla Girotto são profissionais, no desfile da Cavalera
mesclam-se modelos profissionais com não profissionais e, no Fashion Mob,
são todas não profissionais.
Quanto às variantes, essas não estariam na base estrutural do desfile,
mas relacionadas às escolhas particulares dos espaços de alocação e da
duração do desfile. Quando, por exemplo, o desfile deixa de ser realizado no
espaço fechado e é apresentado num espaço aberto, estará sujeito às
mudanças climáticas ou a um acontecimento qualquer que modifique a sua
construção inicial planejada. Esse é o caso da Fashion Mob, que, para
atravessar de uma rua para outra, dependia da sinalização das ruas, das
intervenções dos passantes e do fluxo de tráfego, ou seja, da imprevisibilidade
das ocorrências que o caracterizam.
133
Os desfiles são uma mídia que produz visibilidade da marca e do criador
e tem forte espetacularização no contemporâneo da sociedade globalizada.
Seu formato de apresentação, avaliamos, está ligado à organização da escolha
do espaço, da disposição dos convidados − de maneira hierárquica ou não, do
posicionamento da passarela reta para desfilar os looks que aparecem numa
sequência rítmica cadenciada, quer por trilha sonora ao vivo ou executada por
um DJ, ou pela sonoridade urbana.
Supomos que esse foi um processo de indução pelo qual chegamos a
uma tipologia que pode abarcar todos os possíveis desfiles, em sua ampla
diversidade. Julgamos que todo e qualquer desfile possa se enquadrar em uma
ou outra das quatro categorias aqui descritas.
135
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