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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
LÚCIA HELENA FERREIRA LOPES
Lexicultura: construção desconstrução reconstrução
da identidade do brasil(eiro) – entre projeções e
planificações de projetos coloniais
DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
São Paulo 2016
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
LÚCIA HELENA FERREIRA LOPES
Lexicultura: construção desconstrução reconstrução
da identidade do brasil(eiro) – entre projeções e
planificações de projetos coloniais
DOUTORADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Língua Portuguesa, sob a
orientação da Profª. Drª. Jeni Silva Turazza.
São Paulo 2016
Banca Examinadora
Autorizo, para fins exclusivamente acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese de Doutorado por processos fotocopiadores ou eletrônicos.
Ass__________________ 30 de abril de 2016.
LOPES, Lúcia Helena Ferreira. Lexicultura: construção desconstrução reconstrução da
identidade do brasil(eiro) – entre projeções e planificações de projetos coloniais. Tese de
Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
RESUMO
Esta tese tematiza a gênese da construção da identidade do povo brasileiro, concebida como processo dinâmico que se explica por conhecimentos arquivados na memória do longo, do médio e do curto prazo por pressupostos culturais, ideológicos e utópicos. Nesse contexto, a identidade foi focalizada por uma perspectiva historiográfica, considerando a linguagem como fundamento e fundação desse processo e o texto escrito como lugar que faculta a sua compreensão e reinterpretação. Os fundamentos teórico-metodológicos que propiciaram o desenvolvimento do tema proposto foram aqueles da linguística textual-discursiva da vertente sócio-cognitivo-interacional, numa interface com aqueles da Lexicologia, de modo a facultar movimentos de leituras e releituras das/nas fissuras dos textos da História oficial brasileira pela leitura e releitura do texto literário Cartas Chilenas. Os resultados obtidos, em consonância com o objetivo geral – compreender os processos de construção da identidade do povo brasileiro por meio de narrativas da História que tratam dos sentidos inscritos em dois projetos: um relacionado à colonização do território brasileiro pelo povo português e outro, à independência política da colônia brasileira – possibilitam concluir que: a) a narratividade é trabalho lento e gradual, orientado e organizado pela criação ou reinvenção de velhas histórias; uma produção cultural por meio da qual se identificam, nas fissuras do tempo vivido, o acontecimento, o acontecido e o acontecível: alicerce para a construção das utopias; b) as projeções sobre as terras antípodas, situadas no imaginário dos povos antigos e representadas sob a forma de ilha conservou as representações herdadas da mitologia, da religião e da ciência e, após a descoberta do quarto continente, implicou um ato mental de reconstrução da cartografia terrestre; c) o descobrimento da América, nele implicado o achamento da Ilha de Vera Cruz, por um lado, comprovou as projeções do imaginário humano e, por outro, possibilitou a planificação do projeto português de expandir as suas terras para além dos limites da velha Europa; d) o projeto português de ocupação, uso e posse das terras coloniais, foi orientado por pactos e contratos firmados, sobretudo, com os línguas que responderam pelas estratégias de destribalização e desterritorização e pelo desenvolvimento de um importante mercado econômico informal que – com a colaboração dos negros de Guiné –, de forma lenta e gradual, financiou vários empreendimentos coloniais, dentre eles a descoberta das minas de ouro: projeções imaginadas. Nesse cenário local, destacam-se os mazombos e o projeto de independência política e econômica da Colônia dos escorchantes tributos impostos pela Coroa: tema do discurso da história e, também, do discurso da literatura do Brasil Colonial. Desse e por esse cenário global, conclui-se que a identidade do povo brasileiro é uma construção inscrita nos matizes da história dos povos nativos da América, tecida e entretecida àqueles da história de povos europeus ocidentais e àquela de africanos subsaarianos: uma construção da história do mundo moderno implicada na reinterpretação da história do mundo antigo.
Palavras-chave: Lexicultura, Identidade, Narratividade, Os línguas, Mazombos
LOPES, Lúcia Helena Ferreira. Lexicultura: construção desconstrução reconstrução da
identidade do brasil(eiro) – entre projeções e planificações de projetos coloniais. Tese de
Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.
Abstract
This paper focuses on the genesis of the establishment of the identity of the Brazilian people, perceived as a dynamic process explained by the knowledge stored in the long-term, medium-term and short-term memories by cultural, ideological and utopic assumptions. In this context, we focused on identity through a historiographical point of view, considering language as the basis and the ground of this process and considering the written text as a means that enables understanding and reinterpreting the language. The theoretical and methodological grounds that allowed developing the subject studied herein derived from the text/discourse-related linguistics within the social-cognitive-interactive branch, interfacing with those found in Lexicology, so as to enable the reading and re-reading of/in the gaps of the Brazilian official history by reading and re-reading the Chilean Letters. The results obtained, in line with the general goal – understanding the processes that led to the establishment of the identity of the Brazilian people through History texts that address the meanings described in two projects: one concerning the colonization of Brazil by the Portuguese people and another one concerning the political independence of the Brazilian colony – lead to the following conclusions: a) the narrative is a slow, gradual process, guided and organized by the creation or reinvention of ancient stories; a cultural production through which the event, past events or future events can be identified in the gaps of past: the basis for building utopias; b) the projections about the antipodes, part of the imagination of ancient people and represented as an island, preserved the representations inherited from mythology, religion and science, and, after the discovery of the fourth continent, they represented a mental work of reconstruction of the Earth‟s cartography; c) the discovery of America, including the finding of Island of the True Cross therein, on the one hand, served as proof of the projections imagined by the people, and, on the other hand, enabled the planning of the Portuguese project of expanding their lands beyond the borders of Old Europe; d) the Portuguese plans for the occupation, use and possession of colonized lands was guided by agreements and arrangements made in special with the indigenous people responsible for the strategies of dismantling tribes and the territories and the development of a significant informal market, which – with the cooperation of people from Guinea – financed, slowly and gradually, several colonial undertakings, including the discovery of goldmines: imagined projections. In this local context, multiracial people stand out, along with the plans of political and economic independence of the Colony from the high taxes levied by the Portuguese: foundations of the history narrative and also the literature of Brazil as a Colony. Considering this global context, one can conclude that the identity of Brazilian people is a process inserted in the history of native American people, influenced by the history of Eastern European people and Sub-Saharan Africans: the establishment of the history of the modern world as reinterpreted by the history of the ancient world.
Keywords: Lexiculture, Identity, Narration, Indigenous people, Multiracial.
A minha família muito amada
Ao meu filho, Lucas
Aos meus alunos.
AGRADECIMENTO
A Deus, pelo dom da vida e pela força para alcançar esta que é uma grande
conquista pessoal e profissional.
Aos meus pais, José Inez e Helena; meus irmãos, José Eduardo, Hélcio e Aroldo;
meu esposo, José Geraldo; meu filho, Lucas; minha sogra Terezinha; meus
sobrinhos, Janaina, Ricardo, Thais, Rodrigo, Sarah, Gabriel, Brenda, Samuel,
Fernanda, Pedro, André, João Pedro e Filipe; meus cunhados e cunhadas, pelas
ausências, pelo apoio, pelo incentivo e, também, pelas muitas críticas...
A grande amiga Simone Beatriz, pela ajuda incondicional em todos os momentos,
inclusive nos mais difíceis vivenciados nesta jornada.
A minha tia Lúcia, pelas palavras de conforto e pelo apoio emocional.
A minha Vó Judith, que sem ter “consciência” de sua força, foi a grande força que
me fez chegar até o final...
Aos alunos, professores e direção da Faculdade Triângulo Mineiro e da E.E.
Governador Israel Pinheiro pelos ensinamentos diários.
A CAPES, pelo aporte financeiro.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa, pela
contribuição na planificação deste projeto.
A Banca Examinadora, pela contribuição para a finalização deste trabalho.
Em especial, a professora Drª Jeni Silva Turazza, pela orientação paciente, pela
acolhida generosa, pelo convívio enobrecedor, pela imensa responsabilidade com o
ensino de Língua Portuguesa brasileira, com a cultura brasileira e, principalmente
com o desenvolvimento das habilidades de leitura-escrita proficiente do povo
brasileiro.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES - FIGURAS
Figura 1: Mapa de Martin Waldssemüller, publicado em 1507 ............................................. 48
Figura 2: Concepção da Terra pelos hindus......................................................................... 55
Figura 3: Concepção da Terra pelos egípcios ...................................................................... 56
Figura 4: Representação do Universo ptolomaico e coperniano .......................................... 61
Figura 5: Deus e sua criação (1530) .................................................................................... 66
Figura 6: Mapa de Günther Zainer ....................................................................................... 68
Figura 7: Mapa de Teodósio Macróbio ................................................................................. 69
Figura 8: América (1662), de Johannes Bleau. .................................................................... 76
Figura 9: Alegoría de lãs cuatros partes del mundo (Sebastin Cubero – 1682) .................... 80
Figura 10: Carta de Andreas Bianco (1436) ......................................................................... 85
Figura 11: Representação da linha imaginária do Tratado de Tordesilhas ......................... 107
Figura 12: A rota da esquadra cabralina ............................................................................ 111
Figura 13: Representação do Tempo da Viagem de Cabral ............................................... 113
Figura 14: Cena enunciativa da Carta de Caminha ............................................................ 120
Figura 15: Síntese das representações dos ocupantes da Ilha de Vera Cruz .................... 130
Figura 16: Síntese da representação da Ilha de Vera Cruz ................................................ 131
Figura 17: Estratégias de Ocupação, uso e posse do Território Colonial ........................... 164
Figura 18: Cenas enunciativas de Cartas Chilenas ............................................................ 176
Figura 19: Síntese das representações do Fanfarrão Minésio ........................................... 184
LISTA DE ILUSTRAÇÕES – QUADROS
Quadro 1: Síntese dos gestos de linguagem: navegadores e nativos. ............................... 129
Quadro 2: Micro atos de fala das Cartas Chilenas ............................................................. 183
Sumário
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 13
A IDENTIDADE: UMA CONSTRUÇÃO DE FUNDAMENTOS .............................................. 23
1.1 A Tese na Dinâmica da Construção de Representações Identitárias ......................... 23
1.2 A Representação: a Dinâmica da Relação CivilizaçãoCultura ................................ 27
1.3 A Representação: a Dinâmica da Relação SignificadoSentido ............................... 29
1.4 A Representação: a Dinâmica na (Re) construção dos Sentidos Históricos ............... 33
1.4.1 A representação do imaginário: utopiaideologiacultura ................................. 34
1.4.2 As representações de identidades no espaço da História .................................... 37
1.5 Os Contratos e os Pactos entre Identidades Reais e Imaginárias .............................. 39
1.6. As narrativas de histórias entre os pactos e os contratos sociais .............................. 42
HISTÓRIAS DE PROJEÇÕES DO CONTINENTE AMERICANO: ENTRE OS MITOS E A
CIÊNCIA MODERNA ........................................................................................................... 45
2.1 Considerações Iniciais ................................................................................................ 45
2.2 O Continente Americano no Espaço das Projeções: projetos e trajetos ..................... 48
2.3 As Rupturas de Eventos Ordinários por Eventos Extraordinários ............................... 51
2.3.1 As travessias na concepção do mundo cotidiano do longo tempo ....................... 52
2.4 A Projeção da Sociedade Moderna pela Desconstrução da Sociedade Teocêntrica .. 73
2.5 Algumas Considerações Finais .................................................................................. 82
A CONSTRUÇÃO DO PROJETO IBÉRICO PORTUGUÊS NO CONTEXTO DAS GRANDES
NAVEGAÇÕES: O ACHAMENTO DO BRASIL PELA DESCOBERTA DO CONTINENTE
AMERICANO ....................................................................................................................... 87
3.1 Considerações Iniciais ................................................................................................ 87
3.2 A Planificação do Projeto Português: o cenário das grandes navegações ibéricas .... 92
3.2.1 A formação do Estado Português pelo Império Mercantil Salvacionista ............... 95
3.3 O Cenário da Descoberta e seus Episódios: antecedente e consequentes .............. 109
3.3.1 O cenário da descoberta: a cena da travessia entre dois portos ........................ 111
3.3.2 O cenário da descoberta pela construção da cena enunciativa .......................... 115
3.4 Algumas Considerações Finais ................................................................................ 132
A DESCONSTRUÇÃO DO AMERÍNDIO, DO AFRICANO E DO EUROPEU PELA (RE)
CONSTRUÇÃO DO BRASIL (EIRO) – UMA HISTÓRIA DE CASCALHOS ABANDONADOS
.......................................................................................................................................... 136
4.1 Considerações Iniciais .............................................................................................. 136
4.2 Ordens e Desordens sobre o Processo de Ocupação, Uso e Posse do Território
Brasileiro: resgates e perspectivas ................................................................................. 139
4.2.1 O marco fundador do discurso mazombo: estratégias da colonização indígena 146
4.2.2 O marco fundador do discurso dos mazombos: estratégias da colonização
escravocrata ............................................................................................................... 156
4.3 O Poder dos Contratos Oficiais pelo Poder dos Pactos Culturais: a formação do
Mercado Interno Informal ............................................................................................... 159
4.4 O poder dos Pactos e a Expansão do Mercado Interno Informal: a descoberta das
minas de ouro ................................................................................................................ 165
4.5 Rupturas de Contrato pelos Pactos: entre delações, degredos e morte de
Inconfidentes .................................................................................................................. 168
4.6 As Cartas Chilenas entre o Discurso da História e o da Literatura ............................ 171
4.6.1 Os rituais dos atos de fala e a representação do Fanfarrão ............................... 177
4.7 Algumas Considerações Finais ................................................................................ 185
CONCLUSÃO .................................................................................................................... 188
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 193
Romance XXIV ou da Bandeira da Inconfidência
(...)
Atrás de portas fechadas, à luz de velas acesas,
uns sugerem, uns recusam, uns ouvem, uns aconselham.
Se a derrama for lançada, Há levante, com certeza. Corre-se por essas ruas? Corta-se alguma cabeça?
Do cimo de alguma escada, Profere-se alguma arenga? Que bandeira se desdobra? Com que figura ou legenda?
Coisa da Maçonaria, Do paganismo ou da Igreja?
A Santíssima Trindade? Um gênio a quebrar algemas?
Atrás de portas fechadas,
À luz de velas acesas, Entre sigilo e espionagem, Acontece a Inconfidência. E diz o Vigário ao Poeta:
“Escreva aquela letra Do versinho de Virgílio...”
E dá-lhe o papel e a pena. E diz o poeta ao Vigário,
Com dramática prudência: “Tenha meus dedos cortados,
Antes que tal versos escrevam...” LIBERDADE AINDA QUE TARDE,
Ouve-se em redor da mesa. E a bandeira já está viva, E, sobe na noite imensa.
E os seus tristes inventores Já são réus – pois se atrevem
A falar em Liberdade (Que ninguém sabe o que seja).
(...)
Liberdade – essa palavra Que o sonho humano alimenta:
Que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!)
Romanceiro da Inconfidência – Cecilia Meireles
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INTRODUÇÃO1
Esta investigação – desenvolvida como projeto de Tese de Doutorado no Programa
de Estudos Pós-Graduados em Língua Portuguesa da PUC-SP – está situada na
interface das linhas de pesquisa Historiografia, História e Descrição da Língua
Portuguesa, Texto e Discurso e privilegia os pressupostos teóricos da Lexicologia.
Tais estudos tematizam a gênese da construção identitária do povo brasileiro e
estão fundamentados, desde a Antiguidade Clássica, no fato de os homens se
qualificarem como animais eminentemente relacionais, interagentes e, por essa
razão, seres sociocultural-históricos e políticos. Esse pressuposto, segundo os
estudiosos da teoria do conhecimento, possibilita compreender a linguagem como
um processo complexo, articulado por um conjunto de ações que desencadeia a
construção de representações por meio das quais os homens expressam suas
próprias palavras-imagens, ou vice-versa, ao interagirem uns com os outros e
consigo mesmos.
A complexidade desse processo heteróclito, no âmbito dos estudos linguísticos,
impossibilita a seus estudiosos reduzi-lo à dimensão dos sons e/ou dos sinais
gráficos, dos gestos, das palavras isoladas ou inseridas apenas na moldura das
frases, visto que esses elementos de caráter linguístico funcionam apenas como
meios pelos quais a linguagem se manifesta como expressão dos saberes
produzidos pelos humanos. Compreendidos esses processos como inerentes à vida
psicofísico-social – o que torna possível a aquisição e o uso efetivo de uma dada
língua pelo exercício de atividades da fala – a língua se faz criação, fundamento e
fundação da linguagem tanto quanto a linguagem se faz criação, fundamento e
fundação da língua. Segundo Slama-Cazacu (1970), é por essa indissociabilidade,
inscrita na reciprocidade da relação entre ambas, que a linguagem só pode existir,
desenvolver-se e manifestar-se como expressão do pensamento humano pelo fato
de o homem haver aprendido a usar uma dada língua e, pelo exercício das
atividades da fala, dar tangibilidade ao que é produzido pelo pensamento. Essa
produção incessante e reiterativa permeia toda a existência humana e perpassa
todos os processos interativos desencadeados pelos homens.
1 Observa-se que em todos as citações diretas manteve-se a grafia original.
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Nesse sentido, as relações necessárias entre pensamento linguagem língua
fala são aspectos, ou dimensões diferentes, mas jamais opostos de um único e
mesmo fenômeno dinâmico que se tipifica como sócio-interativo-cognitivo. Para
Sebastian (1983), embora pensamento e cognição sejam indissociáveis, tem-se
diferenciado o primeiro da segunda, pois as atividades cognitivas – objeto de
estudos da psicolinguística sobre os processos mentais circunscritos à percepção, à
atenção, à aprendizagem e à memória – podem ser postas à prova. Assim, a
psicolinguística cognitiva tem-se ocupado com os estudos de processos mentais
mediante os quais o homem transforma, reduz, elabora, recupera as informações de
mundos identificadas em suas interações e estende modelos de organização de
conhecimentos. Segundo a autora, o primeiro movimento desencadeado pela teoria
da ação de que resultam as atividades comunicativas de linguagem e,
necessariamente, a produção e a transmissão de conhecimentos sociocultural-
históricos e/ou sentidos tem como fundação as interações com o meio em que os
homens estão inseridos. Por conseguinte, o que é percebido, apreendido,
codificado-descodificado como informação nova está em contínua transformação,
assegurada pela compreensão de novos saberes que têm como ancoragem
reinterpretações de velhos conhecimentos. Entende-se, portanto, que
(...) uma sociedade é produzida pelas interações entre indivíduos e essas interações produzem um todo organizador que retroage sobre os indivíduos para co-produzi-los enquanto indivíduos humanos, o que eles não seriam senão dispusessem da instrução, da linguagem e da cultura. (...) o processo social é um círculo produtivo ininterrupto no qual, de algum modo, os produtos são necessários à produção daquilo que os produz. (MORIN, 2007, p.182).
Nesse e por esse movimento de ações e retroações, a identidade se faz uma
construção dinâmica que tem os significados sócio-individuais das formas léxico-
gramaticais da língua-histórica – e não da língua sistema – inscritos na variedade e
na variação de seus múltiplos e diferenciados usos. Esses significados, focalizados
pela dinâmica acima pressuposta, não facultam aos indivíduos fixar quaisquer
sentidos a eles atribuídos pelas práticas discursivas, no fluxo das interações sociais;
razão pela qual os significados das palavras são vagos e fluídos, na medida em que
são continuamente ressemantizados porque situados entre os homens. Apesar do
esforço despendido para fixar e delimitar tais significados e, assim procedendo,
estabilizar suas identidades, esse processo de ressemantização impede a
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estabilidade e o controle perseguidos, pois eles sempre se fazem modulados pelos
ecos de diferentes e variadas vozes que ressoam num espaço, vindas de diferentes
lugares e de variadas temporalidades.
Nesse sentido, a ancoragem dos processos de significação é assegurada pelo
princípio da cooperação. Lévi-Strauss (1968) apud Silva (1994, p. 62), ao tratar do
processo de cooperação e, sem deixar de atribuir relevo ao de representação,
pondera que esse processo de representação por imagens-palavras é simultâneo.
Essa simultaneidade se refere a movimentos de deslocamentos que podem ser
compreendidos, se comparados a uma viagem de piroga, visto que ela implica certa
duração e
(...) exige, pelos menos, dois passageiros que cumpram funções complementares: um impulsiona a embarcação, o outro a governa. O último senta-se na retaguarda e, para equilibrar a embarcação, é preciso que o primeiro esteja na frente. Durante a viagem nem um e outro podem se mexer, ou sequer deslocar-se, sem imprimirem à piroga um movimento brusco, que poderia fazê-la virar-se. Portanto, em nenhum momento, os dois passageiros podem estar demasiado perto um do outro, mas associados num empreendimento comum, também não podem estar demasiado longe. O espaço bem medido da piroga e as regras estritas da navegação conjugam-se para manter a boa distância, juntos e separados simultaneamente...
Trata-se, portanto, do exercício de papéis sociais que exigem dos passageiros
conhecimentos dos lugares, delimitados no espaço da piroga, a serem ocupados por
cada um deles e que implicam modos de proceder orientados por ações
complementares, concomitantes e simétricas. Esses modos de proceder são
qualificados pela perspectiva construída pela posição diferenciada de tais lugares,
implicadas no movimento e na força com que cada um dos remos é deslocado para
dentro e para fora da água para assegurar o deslocamento da piroga: quando um
sobe, o outro desce em direção contrária. Por conseguinte, para exercer um dado
papel social, não basta conhecer o lugar social a ser ocupado e as ações previstas
para o seu exercício, também é necessário saber como realizá-las por diferentes
perspectivas traçadas pela posição que nele se ocupa, ou poderá ser ocupada.
A identidade, nesse contexto de considerações, tem sido objeto de investigações
variadas, desenvolvidas por diferentes áreas das ciências sociais ou do homem e,
dentre elas, situam-se aquelas voltadas para o tratamento de linguagem que são
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extensivas à língua e à fala. Esses estudos, desde as décadas de 60 e 70 do século
XX, aproximadamente, vêm sendo submetidos a sucessivas revisões de que
resultou a reinterpretação de teorias que focalizavam as línguas humanas por
princípios da lógica matemática, concebendo-as como sistemas sociais, mas de
caráter atemporal e a-histórico. Nesse sentido, tratava-se de um sistema imanente,
que reservava aos seus usuários, concebidos como sujeitos ideais, a função de
selecionar os elementos previstos por esse sistema e combiná-los por regras finitas
de modo a construir infinitos enunciados frasais.
Assim, a produção de novas significações também era prevista por tais enunciados
de modo a contradizer o pressuposto, segundo o qual, o homem é produtor de
sentidos atribuídos aos mundos que se integram ao universo da vida. Segundo
Silveira (1998), esse processo de reinterpretação é resultante dos estudos sobre a
linguagem, até então reduzidos à língua sistema, terem sido deslocados para a
dimensão da fala, incorporando o homem como sujeito sócio-histórico-cultural,
responsável pelos fatos de linguagem e, necessariamente, pelos sentidos que
produz ao fazer uso da língua em situações de contextos reais e não ideais desses
mesmos usos.
Esses estudos, de caráter unidisciplinar no campo dos estudos linguísticos, se
fazem extensivos às outras áreas da Ciência Social ou Humana, de sorte que esse
processo de revisão, a partir dessa mesma época, voltado para a busca de uma
posição inter- e multidisciplinar, tem orientado reinterpretações de pressupostos
teóricos ou conceitos que serviram de ancoragem para os estudos circunscritos a
princípios da lógica cartesiana: fundamento do paradigma científico que reduziu os
estudos da linguagem à concepção de língua sistema, dela excluindo os estudos da
fala. Essas reinterpretações da concepção de identidade, por uma perspectiva multi-
e interdisciplinar, serão objeto de abordagem nos capítulos que integram os registros
da pesquisa, cujo propósito é contribuir para a compreensão da concepção segundo
a qual a identidade se constrói por meio da, ou na língua, compreendida como
instituição histórica, segundo paradigma contemporâneo, por um lado. Por outro, ela
está compreendida como recurso léxico-gramatical que – integrado às tipologias de
gêneros ou de textos, a estilos, a modelos de atos de fala, a modelos de interação
comunicativos, etc. – funciona estrategicamente para expressar as diferentes e
variadas representações humanas.
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Para Morin (2007), as representações são fundadas e fundamentadas na
compreensão e na interpretação que um povo tem de sua história e, assim sendo,
não se qualifica apenas por um conjunto de ações ordenadas na linha do tempo por
antecedentes e consequentes. O processo de representação é uma surpreendente e
gloriosa sombra aventureira de procedimentos humanos capazes de desvelar
movimentos desencadeados por ações que rompem os limites dessa lógica da razão
pura. Tais rupturas, inscritas em relações complexas – “com + plexus”:
conhecimentos que, embora sejam diferentes, foram tecidos juntos, por serem
interdependentes e necessariamente inseparáveis, quando se busca construir uma
unidade significativa: o textum – qualificam-se pelo princípio da ordem e da
desordem que exige ações capazes de desencadear movimentos de reordenação
dos processos que respondem pela significação das histórias das “coisas nos
mundos” e desses mesmos mundos articulados entre si.
Essa articulação entre conhecimentos de mundos – que sempre implica a
construção de uma-outra nova ordem, assegurada por procedimentos de
composição que têm a linguagem como fundação e os conhecimentos prévios como
fundamento – precisa se fazer legível para assegurar a compreensão significativa
dos processos históricos, de modo a garantir a interpretação de tais processos,
quando comunicados. Para tanto, postula van Dijk (1992), não se pode
desconsiderar que a recomposição desses conhecimentos interdisciplinares precisa
assegurar, por um lado, grau significativo de coerência local e global. Para esse
autor,
(...) em um contexto transcultural mais amplo (...) o discurso e a comunicação terão diferentes propriedades em diferentes culturas (...) visto que os atos de fala e as interações estão intimamente relacionados com os contextos e com os marcos sociais (....) assim como os tipos de discursos que existem nessas culturas e em que marcos das cognições sociais podem ocorrer (...) Sabemos que certas categorias de participantes (as crianças, as mulheres, os inválidos, etc.) só podem falar em certas culturas sob certas condições e que os tipos de ações disponíveis para elas são às vezes limitados. Assim, de modo geral, não se permite a um invitado em nossa cultura fazer certas petições, muito menos dar ordens. Queremos estabelecer que ritos discursivos – sequências estereotipadas (marcos) de discursos de vários participantes – existem em uma cultura particular... (cf.p. 113)
Essa legibilidade dos processos de composição de conhecimentos precisa ser
assegurada por referências ao contexto local e global do denominado “marco das
cognições sociais”, inscrito nos registros da memória do curto e do longo prazo da
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humanidade; logo, da memória histórica. Assim, os graus de legibilidade que
asseguram a descodificação significativa dos acontecimentos históricos, dentre
outros, é proporcional à compreensão e interpretação que têm por ancoragem
conhecimentos inerentes à aprendizagem destes modelos de contextos situacionais
dos quais se participa de modo interativo, ou seja, essa gradação é proporcional aos
conhecimentos prévios mobilizados por aquele que responde por esses processos
de composição, em língua escrita.
Por conseguinte, a complexidade dos fatos históricos se inscreve na complexidade
das relações humanas, implicadas nas práticas sociais cotidianas – ações e
relações que as pessoas e os grupos humanos mantêm entre si para passar as
normas de vida, de manutenção. A transformação dos modelos ordenadores das
formações sócio-histórico-culturais não é o fundamento da história, mas dela faz a
revelação aos homens que a constroem por uma dialogia, muitas vezes
desenfreada, pois a história sempre carrega consigo o jogo duplo, incerto e aleatório
que, muitas vezes, representa o jogo do contraditório entre o progresso e o
regresso, da desorganização do que está ou parece estar ordenado, da degradação
do que lhe era anterior. Nesse movimento de complexas tensões, as aquisições
herdadas do passado remoto são conservadas e renovadas, tanto se ganha como,
ao mesmo tempo, se perde; pois, na complexidade dos processos históricos, entre
os movimentos de ações transformadoras implicadas nas relações das desordens e
das novas ordens, que não são excludentes, é preciso saber recuperar os detritos,
sem ignorar a possibilidade de perdas de fragmentos irrecuperáveis, pois
As grandes transformações são morfogêneses, criadoras de novas formas (...) toda ação entra num jogo de inter-retro-ações que modificam, desviam ou mesmo invertem o curso dela: escapa assim da vontade do seu autor e pode, até mesmo, voltar-se contra ele (MORIN, 2007, p.212).
Fundamentando-se em Coseriu (1967), para quem a variedade de normas expressa
a mentalidade de um povo, seja quanto às suas práticas religiosas, políticas,
econômicas, artísticas, etc. Turazza e Côrrea (2008) diferenciam, sem opor, a língua
estrutura e a língua função, da língua histórica, tendo por parâmetro a concepção de
não se poder dissociar estrutura de arquitetura. Afirmam que a função primacial da
estrutura é possibilitar a construção de diferentes arquiteturas, de sorte a se
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poderem considerar os idiomas como arquiteturas da língua sistema. Uma estrutura
imanente do sistema linguístico do português, deslocado por meio de navegantes,
degredados, governadores gerais, donatários de capitanias, colonos e aventureiros
que migraram da Europa Ibérica para as terras do Novo Mundo. Agora, em contato
com línguas indígenas e africanas subsaarianas, idiomatizaram-se pelo marco sócio-
histórico-cultural dos povos ameríndios e africanos subsaarianos e, por esse
processo, construíram uma história comum e, pelo hibridismo dessas três
populações, outro-novo povo e outro idioma: o português brasileiro - diferente na sua
variedade com a singularidade da estrutura dessa mesma língua falada pelo
português ibérico, pelo asiático e por outros povos africanos subsaarianos.
Os idiomas, assim concebidos, tipificam-se por repertórios culturais – de tipos de
texto, de gêneros do discurso, de atos de fala, de registros, de estilos, etc., dentre os
quais estão aqueles referentes a recursos léxico-gramaticais – historicamente
construídos-reconstruídos por usuários de diferentes línguas; logo, uma construção
que implica o bilinguismo e/ou o plurilinguismo e, consequentemente, o inter- e
multiculturalismo.
Por conseguinte, os idiomas não são monossistemas, visto que cada um deles
carrega consigo um polissistema. Se o idioma português ibérico traz consigo marcos
linguísticos culturais dos celtas, dos árabes, dos egípcios, dos gregos, dos
romanos..., o brasileiro o reconstruiu/reconstrói pelos monossistemas das diversas
línguas dos indígenas e dos africanos, bem como dos holandeses, dos franceses e
dos imigrantes de todos os continentes do mundo que aqui vivem e convivem.
Entende-se que nos idiomas se inscreve a complexidade da relação indissociável
entre língua-história-cultura e sociedade, sem excluir a ideologia e,
consequentemente, a relação entre as ações do “nomear” e do “dizer”. Em síntese,
os idiomas são novos desenhos arquitetônicos de um sistema linguístico e essa
arquitetura se sustenta por processo de idiomatização das unidades lexicais, que,
arquivadas na memória semântica de longo prazo, organizam os conhecimentos de
mundo por modelos socioculturais inscritos nos matrizes dos significados da história
vivida por comunidades que habitam um dado território.
Nessa dimensão, o “nomear” para “dizer” ou o “dizer” para “nomear” o desconhecido
pelo conhecido, quando compreendidos pela teoria da ação e pelo princípio da
20
complementaridade, remetem, necessariamente, por um lado, o pesquisador às
relações indissociáveis entre o léxico e a gramática: à palavra e sua sintaxe e à
sintaxe dos enunciados frasais que têm por ancoragem as palavras. Por outro lado,
o “dizer” – assegurado por esse processo de nominalização – remete o pesquisador
às relações sócio-cognitivo-interativas, inerentes aos processos de interlocução,
assegurados pelo exercício da fala. Nessa acepção, o “dizer” explicita-se por uma
dupla dimensão: aquela inscrita no processo de nominalização e, ao mesmo tempo,
nas atividades do falar. É por esta razão que os homens falam uns com os outros,
quando estão ou buscam estar em companhia dos mesmos, para dizer a eles quem
são e como são, por aquilo que dizem. Para tanto, o conteúdo desse dizer – o
“objeto” nominalizado é expresso na/pela materialidade dos sinais sonoros ou
gráficos, articulados em consonância com as normas de usos da língua adequados
às mais diferentes situações de uso.
A busca pela caracterização da identidade do povo brasileiro, por uma perspectiva
linguística, exigiu desta pesquisadora um movimento de leituras e releituras das
fissuras de textos oficiais preenchidas pelas leituras e releituras de textos literários
com o propósito de compreender o processo de ocupação, de uso e de posse das
chamadas “terras portuguesas da América do Sul” e a sua relação com o processo
de idiomatização do português brasileiro. Assim procedendo, parece-nos possível
considerar que: a) todo e qualquer povo constrói a sua identidade pela singularidade
de suas vivências, inscritas nos matizes da pluralidade das raízes de histórias,
construídas pelos princípios, modos de ser, agir ou proceder da sua própria
humanidade; b) a identidade do povo brasileiro é uma construção histórica de
matizes sociocultural-ideológicos, tecidos e entretecidos nas raízes de histórias da
Antiguidade Clássica, sob a forma de projeções imaginárias e utópicas referentes à
origem de outro-novo homem de um-outro novo continente da Terra; c) a identidade
do povo brasileiro é uma construção inscrita nos matizes da história dos povos
nativos, tecida e entretecida àqueles da história de povos europeus ocidentais e
àquela de africanos subsaarianos: uma construção da história do mundo moderno
implicada na reinterpretação da história do mundo antigo.
Nessa e por essa dimensão, esta pesquisa tematiza a construção da identidade do
povo brasileiro por uma perspectiva historiográfica que – inscrita em registros de
textos escritos dos primeiros séculos da história da “descoberta, da ocupação, do
21
uso e da posse” das „terras da América do Sul – responde pela extensão territorial
dos reinos europeus da Península Ibérica e asseguram a construção e a
sistematização do Estado Moderno Português. Delimitada ao território brasileiro, a
investigação, desenvolvida por meio desses textos, busca identificar a teia dos usos
e costumes, da cultura e das tradições quanto às suas permanências que – inscritas
em mudanças ou transformações, no longo tempo, como produto de um trabalho
coletivo – têm a linguagem como fundamento e fundação desse processo identitário
e o texto escrito como lugar que faculta a sua compreensão. A delimitação proposta,
quanto à perspectiva territorial, também se faz extensiva à temporalidade, cujo
marco final estará circunscrito a acontecimentos que tipificam os séculos XVII e
XVIII: este último concebido como um tempo de construção do Estado Nacional
brasileiro, já projetado no século a ele anterior por sentimentos de pertença ao
território colonizado pelo Estado Ibérico Português.
Sob essa perspectiva, selecionou-se para corpus desta investigação, por um lado,
textos da História oficial brasileira, escritos em território colonial por padres e
viajantes europeus que aqui estiveram nos primeiros séculos de formação. Por
outro, a obra Cartas Chilenas, cuja autoria é atribuída a Tomás Antônio Gonzaga,
um magistrado a serviço da coroa portuguesa, na Colônia setecentista, no período
que coincide com o movimento de insurreição contra a administração ibérica.
Assim, o objetivo geral desta tese é contribuir para a compreensão dos processos de
construção da identidade do povo brasileiro por meio de narrativas da História que
tratam dos sentidos inscritos em dois projetos: um relacionado à colonização do
território brasileiro pelo português e outro, à independência política da colônia
brasileira. Esses registros, em língua escrita, desvelam e revelam as projeções e as
realizações desses povos nas suas diferenças e semelhanças pelos marcos da
História oficial e pelos marcos da literatura brasileira nos primeiros séculos de
descoberta, ocupação e posse do Brasil.
A metodologia adotada para o desenvolvimento da pesquisa é o percurso teórico-
metodológico, de modo que, em função dos objetivos específicos propostos, os
resultados da pesquisa estão organizados, além da Introdução e da Conclusão, por
quatro capítulos, a saber:
22
a) Um Primeiro Capítulo, cujo propósito é apresentar a organização dos
fundamentos teóricos que, orientados pelos princípios da narratividade,
devem facultar a construção desta tese sobre a identidade do povo brasileiro,
tecida e entretecida por narrativas da História, cujos sentidos permansivos se
inscrevem na transitoriedade das mudanças referentes às transformações
sociocultural-históricas.
b) Um Segundo Capítulo no qual se busca, por um lado, resgatar, por um
procedimento historiográfico, as projeções sobre as terras antípodas, situadas
no imaginário dos povos europeus, asiáticos e africanos para além dos
continentes por eles ocupados e representados sob a forma de ilha,
concebida como terra da juventude, habitada por riquezas e prazeres. Por
outro lado, verificar como elas se inscrevem nos registros do projeto referente
às grandes navegações ibéricas do século XVI.
c) Um Terceiro Capítulo no qual se propõe ampliar e reordenar conhecimentos
da História oficial sobre a descoberta do Continente Americano e o
achamento do Brasil inscritos em documentos que facultam a construção do
cenário por meio do qual as grandes navegações ibéricas serão
representadas, no corpo desta pesquisa.
d) Um Quarto Capítulo o qual se busca pontuar e qualificar as estratégias
implicadas na(s) mudança(s) de estado(s) e, necessariamente, de posições
por meio das quais: a) o homem indígena submeteu-se ao processo de
ocupação de seu território; b) o homem negro, ao de escravização e c) o
português ibérico – na condição de náufrago, traficante ou degredado –, a de
“um língua” que, sem deixar de ocupar o lugar por ele conquistado e ocupado
entre as tribos indígenas, contribuiu com a administração colonial para a
institucionalização do poder e do controle dos colonizados.
Ressalta-se, ainda, que tal organização visa a responder à seguinte pergunta: Em
que medida a leitura significativa de Cartas Chilenas, obra de Tomás Antônio
Gonzaga, possibilita projetar o Brasil independente e republicano pelo Brasil
colonial, tendo por parâmetro o marco fundador que assegura a identidade do povo
brasileiro, na sua esfera político-administrativa herdada em tempos de colonização?
23
CAPÍTULO I
A IDENTIDADE: UMA CONSTRUÇÃO DE FUNDAMENTOS
“... e Deus criou o homem porque gostava muito de ouvir histórias.” (Eli
Weisel)
1.1 A Tese na Dinâmica da Construção de Representações Identitárias
A pesquisa realizada sobre a construção da identidade do brasileiro, delimitada à
História da formação Colonial do território brasileiro, teve o seu tema orientado por
fundamentos referentes aos estudos sobre a narratividade, de modo a assegurar o
desenvolvimento da seguinte tese: a identidade de um povo, assim como as
narrativas de histórias, é permissiva na transitoriedade das mudanças referentes às
transformações sociocultural-históricas. Assim, a identidade é/está entretecida nas
raízes da história da formação de um povo que, ao mesmo tempo, é continuamente
transformada, reinterpretada pelo marco dos matizes culturais humanos e esses
sempre são enlaçados a valores ideológicos, indissociavelmente, entrelaçados à
utopia. Nessa e por essa tríade de laços e entrelaços se formam os nós que
asseguram as relações entre homens distintos, de sociedades distintas, organizadas
e ordenadas em diferentes temporalidades de variados lugares. Esses modelos de
organização e ordenação, delimitados ao espaço de convivências e/ou interações
entre esses homens, qualificam-se ao longo de diferentes temporalidades como
lugares ocupados por modelos diferenciados de formações sociais, sempre
semelhantes nas suas diferenças (RICOUER, 2002; BOSI, 2009).
Pontua-se que essas transformações que implicam reinterpretações, ou vice-versa,
têm por referência conceitos ou ideias, práticas e valores, crenças, hábitos e
costumes, sejam as mudanças por elas desencadeadas conscientes ou
inconscientes; contudo, elas sempre incidem sobre as tradições recebidas como
legado de nossos antepassados. Esse legado, em se tratando da língua falada ou
escrita por um povo de uma nação, qualifica-se como um bem inalienável e,
24
transmitido pelo exercício das práticas sociais de linguagem, impossibilita aos
herdeiros compreender o que foi recebido como totalmente idêntico àquilo que foi
doado – bens culturais formalizados por uma língua comum – como se fossem
iguais aos dos seus antepassados. Logo, a identidade do que foi recebido, quando
comparada àquela do que foi produto do legado, sempre implica mudanças, visto
que as tradições não são estáticas, mas continuamente reinterpretadas,
reconstruídas, recontextualizadas para se adaptarem a outras-novas situações,
outros tempos e lugares ocupados pelo homem no espaço sociocultural-ideológico.
Nessa e por essa acepção, ao longo da pesquisa realizada, tem-se por pressuposto
que a(s) identidade(s) sempre foi/foram é e será/serão um trabalho lento,
intermitente e gradual de reconstrução da história, recebida como legado de outras
gerações, outros povos, outras civilizações humanas: aquelas que nos antecederam
e nos antecedem na Terra. Esse trabalho de reconstrução de heranças recebidas
não se explica, contudo, por um ato de revelação do processo de recepção
qualificado pela passividade dos seus herdeiros, pois as investigações
desenvolvidas no campo dos estudos linguísticos de caráter historiográfico – a partir
da segunda metade do século XX, extensivas àquelas do nosso atual século XXI –
desvelam o caráter dinâmico que tipifica ou qualifica os processos de recepção.
Essa revisão da estaticidade do conceito de recepção levaria os linguistas e os
historiadores, dentre os estudiosos de outras áreas afins, a reverem os fundamentos
da História Oficial e aqueles da linguística estruturalista, orientando-se por
indagações referentes à logica por meio da qual se dá a apropriação e o uso de
outras-novas ideias ou concepções dos mundos criados ou inventados pelos
homens.
Descobrir esses meios de apropriação ou assimilação de novos inventos, saberes
ou conhecimentos que orientam as práticas de linguagem no exercício dos mundos
da vida cotidiana do homem comum, por um lado, implicou colocar na cena dessas
outras-novas investigações o que fora lido e/ou ouvido ou propagado, reiterado e/ou
massificado, no espaço da esfera pública por diferentes gêneros textuais
discursivos, ao longo de vários e inúmeros séculos. Por outro lado, não se poderiam
ignorar os modos ou as maneiras por meio das quais esses textos – agora
qualificados como documentos históricos – revelavam modos ou formas de dizer,
sob as quais se ocultavam aquilo que não era, ou não podia ser dito sobre os modos
25
ou formas de ocupação do espaço onde suas cenas ganhavam/ganham vida, ao se
desenvolverem na linha de diferentes temporalidades, sempre presentificadas pelo
exercício de suas práticas de leituras.
A comparação entre diferentes textos ou documentos produzidos em diferentes
lugares, delimitados a uma temporalidade ou época, mas que incidiam sobre um
mesmo tema, comparados entre si, passa a revelar aos seus leitores a possibilidade
de descobrir que aquilo que o dizer que se faz oculto em alguns deles é,
gradativamente, desvelado em outros. Assim, a revisão de relatos de narrativas da
História Oficial por leitores atentos e proficientes, ou pesquisadores, possibilitou
considerar que o acesso aos diferentes territórios geopolíticos da Terra, onde essas
narrativas ocupam lugares, como formas de representações de suas respectivas
histórias oficiais, embora semelhantes, guardavam significativas diferenças entre si.
Essa atividade contínua e intermitente de renovação ou de reconstrução de velhas
histórias herdadas, compreendida como um trabalho, é um ato de produção cultural
de que resulta a própria civilização, onde se inscrevem as identidades humanas.
Logo, os matizes culturais que asseguram a identidade cultural de qualquer povo e,
em especial do povo brasileiro, é o produto de uma construção dialógica inter-povos
que, delimitada ao período de colonização do continente Sul-americano, tem o seu
marco fundador tecido e entretecido por matizes culturais de povos das civilizações
indígena, da africana e da europeia. Esses matizes têm os seus antecedentes
inscritos na memória histórica do longo tempo dos próprios processos civilizatórios
humanos e, deles, são testemunhos os registros de textos escritos, ou mesmos
orais, que herdamos dos nossos antepassados.
Os estados que qualificam esses processos civilizatórios vivenciados por esses e
outros povos do mundo, segundo Arendt (2009), nunca foram e/ou são
homogêneos: alguns se diferenciam por graus de distanciamentos ou de
proximidades que os tornam semelhantes por suas diferenças, ou vice-versa, mas
jamais se qualificaram, ou se qualificam como iguais. Assim, quando e correlaciona
a identidade humana a processos civilizatórios para serem comparados entre si, no
espaço ocupado pelos humanos, em quaisquer recortes de uma dada
temporalidade, é preciso considerar que essas formações sociais jamais possuíram
26
grau de equivalências unívocas, pois são diferentes quanto às suas respectivas
unicidades. Todavia e dentre eles, apenas aqueles que têm por referência
conhecimentos sobre a civilização europeia, por carregarem consigo a história
desses modelos, registrada em língua escrita, possibilitam a reconstrução dessa(s)
história(s) das formações sociais, a(s) única(s) inscrita(s) em registros de textos
escritos. Rememorados por práticas de leituras significativas, esses textos se
qualificam por processos de compreensão, interpretação e recontextualização, razão
por que essas práticas são culturais. Por conseguinte e considerado o fato de as
sociedades indígenas e africanas serem ágrafas, elas não oferecem ao pesquisador
dos tempos modernos registros textuais em língua escrita, ou seja, recursos que a
ele facultam reinterpretar e recontextualiza seus matizes culturais, suas ideologias e
utopias referentes ao período investigado.
Pontua-se, assim e no fluxo da evolução sociocultural-histórica, que os textos que
tematizam a história dos processos de que resultaram a descoberta, a ocupação e a
posse do território brasileiro não serão considerados apenas como subprodutos de
ações linguístico-comunicativas, mas como lugar constitutivo de conhecimentos
complexos dos quais esses textos são testemunhas da história vivida, em tempos
remotos. Neles, a voz do sujeito que enuncia o que percebe, vê, ouve e sente –
quando está, viaja ou fica entre homens indígenas que falam línguas para ele
incompreensíveis; habitantes de um território distante, mas ele estranhos, o que
impossibilita a comunicação entre ambos – registra nos seus enunciados, sob sua
própria perspectiva, sentidos que aprendeu a produzir no espaço ocupado pelo
modelo de formação sociocultural-histórico do seu lugar de origem.
Assim, fala sobre o seu outro, “o estranho”, dialogando com aqueles que são seus
semelhantes e pertencem à comunidade europeia, na condição de habitantes da
sociedade ibérica portuguesa, delimitada ao Estado moderno português: fala para
homens letrados, dialoga com seus semelhantes. Os diferentes, nesse caso,
inscritos nos enunciados que produz, são aqueles de quem esse enunciador fala: o
não sujeito, afirmaria Benveniste (1989, 1995), o “ele(s)”, o tema ou o assunto de
que se fala – o desconhecido que, situados em um espaço territorial também
desconhecido, representa o cenário onde é situado o próprio quadro desse modelo
de enunciação, delimitado entre os séculos XVI e o final do XVIII. Nesse cenário em
27
que se situam as cenas vivenciadas por esses estrangeiros – aqueles que falam e
escrevem e aqueles que apenas falam, sendo os segundos objetos dos discursos
dos outros, que também escrevem.
Nessa acepção, ignoramos como os nossos indígenas e os nossos negros
representavam os brancos, quando interagiam entre si, por meio do uso da língua
oral e, à semelhança do português europeu, não se pode afirmar que eles não
representavam seus invasores (visitantes?) estranhos, quando dialogavam entre si,
pelos usos de suas respectivas línguas. Assim e ao longo desse tempo, considerado
o fato de os humanos também falarem por gestos, atitudes e comportamentos e, por
essas outras modalidades de falas, construírem representações uns dos outros, não
é possível afirmar que esses outros povos não se davam a conhecer, quando em
companhia uns dos outros. Trata-se, portanto, de práticas de leituras da história
reconstruída por esses registros escritos: aquelas que têm as formas linguísticas
como fundamento e fundação.
1.2 A Representação: a Dinâmica da Relação CivilizaçãoCultura
A civilização está/foi concebida na sua indissociabilidade com a cultura; esta, como
resultado do trabalho de pessoas que se ocupam com a produção dos processos de
interpretações e recontextualizações de velhos saberes resultantes da produção de
outros-novos conhecimentos de mundos. Aquela resultante da propagação,
sistematização e institucionalização desses novos saberes, inerentes aos processos
de comunicação por meio dos quais esses mesmos saberes são socialmente
compartilhados entre os membros de uma dada comunidade. Nessa acepção, a
cultura está qualificada como lugar que, no espaço do universo sócio histórico dos
humanos, está e sempre esteve ocupada com a criação ou reinvenção de velhos
significados pela produção de novos sentidos; a civilização, pela aceitação, uso,
institucionalização e valorização dos significados referentes aos fatos culturais:
aqueles que têm por referência bens não materiais e materiais desses mesmos fatos
culturais. Ambas, cultura e civilização, têm por referência um conjunto de ideias, de
concepções, de hábitos, de costumes, de crenças ou valores socialmente
partilhados entre os membros de uma comunidade humana e está e sempre esteve
28
organizada por formações sociais, sob a forma de tribos, de impérios, feudos ou
estados.
É nesse sentido que os estudos antropológicos, ao tematizar sobre modos ou
modelos de formações sociocultural-históricas das comunidades indígenas das
Américas, atribuem relevo ao modelo de formação dessas “nações indígenas” ou
“africanas” serem organizadas sob a forma de “sociedades tribais”. No entanto,
quando se fala dos modelos de organização das comunidades europeias, fala-se em
“estados” dos tipos imperial, feudal, e/ou “estado moderno”. Nesse contexto, o
vocábulo “comunidade”, segundo os semanticistas, tem os seus significados
inscritos nos processos de derivação dos sentidos que apontam para “o que é
comum”, socialmente compartilhado entre aqueles que participam desses modelos
comunitários de agrupamentos humanos, socialmente organizados ou ordenados
sob a forma de “tribos”. Na condição de sociedade tribal, os membros dessas
comunidades se organizam em grupos de indivíduos que exercem papéis sociais
diferenciados entre si: coletores, pescadores, caçadores, guerreiros, construtores de
suas habitações, etc. No exercício do papel de agricultores, por exemplo, ocupam-se
com o preparo do terreno, com a abertura de covas, mas jamais plantavam ou
espalhavam as sementes: o plantio e a colheita era papel desempenhado pelas
mulheres e pelas crianças. Dentre outros papéis sociais desempenhados pelas
mulheres da tribo estava aquele em que a ela cabia a responsabilidade em preparar
os alimentos.
Para Ribeiro (2006), a vida tribal dos indígenas brasileiros era orientada pelas forças
da natureza e estava associada aos significados atribuídos aos quatro elementos
que respondem por suas ações transformadoras. Assim, a relação dos homens com
as forças transformadoras do “ar” e da “água” sobre Terra por onde vagavam regia a
vida dos homens dessas tribos, razão por que a eles cabia zelar pelas florestas, por
suas plantas, árvores, rios e por tudo que nos lugares desse espaço fosse
produzido. Entretanto, embora os homens preparassem o terreno a ser plantado –
capinassem, roçassem o mato e abrissem as covas para o plantio – apenas as
mulheres e crianças respondiam pelo depósito das mudas ou sementes e por suas
respectivas coberturas, visto que essas ações femininas eram regidas pela força
reprodutiva e transformadora da Terra e do fogo. Trata-se, segundo o autor, da
29
identidade desses papéis orientados por essas forças naturais, compreendidas
como ordenadoras das atividades dessas sociedades tribais. São significados
simbólicos que identificam a mulher como símbolo da fertilidade e dos processos de
reprodução por meio dos quais ela também se transforma, modifica-se para
assegurar a perpetuação da espécie humana na Terra. Já o significado dos papéis
sociais masculinos tem por referência a preservação das matas e dos rios, ou seja,
as fontes dos alimentos por meio dos quais assegurava o sustento das famílias
tribais.
O vocábulo “estado”, por sua vez, tem os seus significados inscritos na
transitoriedade dos modos de agir e/ou de proceder, resultantes das transformações
ou “dos fazeres transformadores” que alteram, modificam um estado em outro, ou
seja, aquele que antecede e aquele que sucede aos fazeres transformadores
Turazza (2002). Assim, o modo como se vive em comunidade não equivale ao
modo como se vive em uma sociedade, ou seja, a vida em comum do homem
comunitário difere da vida do homem socializado, ainda que as comunidades se
organizem em sociedades, segundo Gorz (2004). Essas diferenças são observadas
nas/pelas semelhanças de significados marcados pela transitoriedade desses
estados, em tempos diferenciados que – inscritos nos registros de enunciados,
organizados por suas formas vocabulares, empregadas pelos usuários da língua
comum, no fluxo do tempo de suas atividades de fala – sempre se qualificaram
como sociais ou discursivos. Assim, fez-se necessário considerar a diferença entre
discurso e práticas discursivas para melhor pontuar os processos de produção de
sentidos cujos produtos são os discursos.
1.3 A Representação: a Dinâmica da Relação SignificadoSentido
Nesse contexto de fazeres transformadores que diferenciam um estado de outros,
pontuou-se que as representações identitárias não só se qualificam por serem
comuns aos membros de uma dada comunidade humana, mas também por serem
organizadas e ordenadas em/por redes de significados, sob a forma de campos
semânticos, inerentes à construção dos discursos. Tomaram-se, como ponto de
partida, os pressupostos da teoria do conhecimento que tematiza a identidade pelo
30
princípio da alteridade, ou seja, todos os elementos ou “coisas situadas nos mundos”
têm a alteridade como fundamento primeiro e, por ela, diferenciam-se entre si e, ao
mesmo tempo, assemelham-se. Entretanto, apenas os humanos são capazes de
expressar suas diferenças pelo exercício de suas próprias práticas sociais
discursivas: lugar onde registram, no fluxo do tempo, suas semelhança pelas suas
diferenças (ARENDT, 2009). Assim sendo, situam os discursos como produtos dos
modos agir ou de proceder para “dizer” e “expressar” conhecimentos de mundos.
Esses sempre são materializados por formas léxico-gramaticais das línguas por eles
usadas – aquela(s) falada(s) pelos membros de uma dada comunidade de usuários.
O discurso, compreendido como produto de práticas textuais discursivas – sempre
desencadeadas por ações de linguagem – carrega consigo sentidos
institucionalizados, mas não totalmente permansivos, solidificados ou cristalizados
pelos diferentes e variados usos de recursos linguísticos, de sorte que os
significados linguísticos dos textos são flexíveis. Essa flexibilidade assegura aos
recursos linguísticos – formas léxico-gramaticais de uma dada língua – a
possibilidade de eles serem usados como formas mais ou menos estáveis. Segundo
Bakhtin (2011), para compreender os enunciados como conjunto de palavras,
empregadas na construção de frases articuladas entre si pelas ações de linguagem,
é preciso postular que os enunciados carregam consigo as representações de vozes
articuladas em situação (ões) dialógica(s), mas sempre revestida(s) de significações
sociais. Por conseguinte,
Os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem são autossuficientes; conhecem-se uns aos outros, refletem-se mutuamente. São precisamente esses reflexos recíprocos que lhes determinam o caráter. O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior da esfera comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera: refuta-os, confirma-os, completa-os baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles. (BAKHTIN, 2011, p. 316)
Para esse autor, embora seja difícil pensar a existência de um primeiro falante, é
preciso pressupor que os enunciados não surgem do nada, pois eles sempre
antecederam e antecedem às atividades dos atos de fala dos quais eles são
produtos estáveis, mas sempre flexíveis. Assim, pode-se considerar que os
31
significados das formas léxico-gramaticais das línguas, em situações de usos, são
variáveis de pessoa para pessoa, de grupo para grupos, de comunidade para
comunidade e de sociedade para sociedade. Embora institucionalizados, a
permansividade dos seus significados sempre são singulares na pluralidade de suas
vozes, unos na diversidade de seus diferentes usos, dinâmicos com tendência à
estabilidade. Portanto, a institucionalização se explica por processos de que resulta
a condensação de várias vozes, inscritas nos registros dos significados desses
enunciados que se fazem monofônicos; mas, a cada novo uso, a esses enunciados
agregam-se novas-outras vozes, qualificando-os como polifônicos por processos de
ressemantização desses mesmos significados de que resultam os sentidos textuais
discursivos.
Essa tendência à permansividade, inscrita na dinâmica das práticas sociais de
linguagem, responde pela pluralidade dos sentidos dos enunciados, ou seja, sempre
revela para onde eles apontam, em situações de interlocução. Essas situações,
inscritas no espaço de uma dada temporalidade, sempre fazem remissões, por um
lado, a modelos de contextos sociocultural-históricos referentes ao longo tempo e,
por outro, ao curto tempo de um dado presente em que se inscrevem as
representações de acontecimentos que, ao serem reinterpretados, projetam
possibilidades de mudanças, ou seja, de recontextualizações desses mesmos
modelos de contextos sociocultural- históricos pelos processos de reinterpretações.
As práticas textuais discursivas, nessa acepção, desmobilizam-mobilizam-
remobilizam velhos sentidos que, cristalizados pela frequência de usos, são
institucionalizados sob a condição de significados, ou seja, sentidos que têm a sua
permansividade inscrita no tempo dos lugares de um dado espaço social.
Consequentemente, é no espaço de diferentes temporalidades que as práticas
discursivas de linguagem se qualificam como lugar onde convivem permanências e
rupturas. Pelas permanências, os produtores de velhos enunciados identificam seus
significados, pelas próprias rupturas dos seus sentidos, ou vice-versa. Hoje, por
exemplo, somos capazes de identificar que o significado da forma vocabular
“pedófilo”, enunciada nos discursos que circulavam na sociedade grega, fazia
remissão à palavra que denominava “o melhor amigo da criança”. Entretanto, os
sentidos sociais que ela carrega consigo, nos discursos que circulam na nossa atual
32
sociedade moderna, denominam o significado de ser o pedófilo “o pior inimigo da
criança”, embora a sua forma vocabular permaneça a mesma. Trata-se de
significados contraditórios que distanciam os velhos significados gregos da
sociedade brasileira dos tempos modernos.
Essa transmudação de significados de que resultou a institucionalização de sentidos
contraditórios aponta para mudanças de modelos de interações entre os adultos e
as crianças, bem como a mudança de posição social para o exercício do papel do
homem adulto no espaço da sua interação social com a criança. E, pelo ato da
pedofilia, a criança deixa de ser representada pelo modelo de sociedade grega: um
novo homem a ser educado por um adulto que, por ter sabedoria, respondia pela
sua formação, ou educação na condição de ser humano; o amigo de quem sempre
se esperava boas ações. A inversão de amigo para inimigo, pelo modelo de
sociedade moderna, tem por representação a criança como fonte de prazer sexual
para esse tipo de adulto. Para a criança, ele é representado como um adulto
perigoso, de quem ela deve desconfiar e se afastar. Se, para os gregos, todos os
adultos respondiam pela educação de todas as crianças de sua comunidade, para
os homens dos tempos modernos, essa representação carrega consigo um falso
argumento, pois apenas alguns poucos homens são por ela responsáveis, aqueles
que não são pedófilos: o principal inimigo da criança. Logo, essa forma vocabular é
mantida ao longo da distância temporal que identifica o homem grego ao homem
moderno; contudo, esses significados contraditórios os distanciam pelas diferenças
entre os modos de ser e de agir em relação à criança do mundo grego e a do mundo
moderno.
Situados esses sentidos – no distanciamento entre o longo e o curto tempo que
separam os significados e mantêm a mesma forma desses dois modelos de
sociedades citadinas – podemos afirmar que os discursos orientam a reprodução
das práticas sociais cotidianas de uma dada sociedade e respondem pelos
processos de institucionalização desses velhos significados por novos sentidos, por
um lado. Por outro, essa conversão de significados em sentidos e vice-versa resulta
de um processo lento e gradual, às vezes, de forma imperceptível. Tais mudanças
são índices das permanências inscritas nas transformações dos modos de proceder
e de agir dos homens em sociedade, de que resultam seus estados transitórios,
33
situados na própria permansividade de outros estados. Assim, é possível
compreender a identidade como o plural que se qualifica pelo singular; a unidade
pela multiplicidade, ou vice-versa, em que se inscreve história dos homens, sempre
sinalizada por essas permanências e rupturas. Para Morin (2007), é nessa acepção
que a construção das identidades sempre foi e é desvio bem sucedido da Historia da
Humanidade.
1.4 A Representação: a Dinâmica na (Re) construção dos Sentidos Históricos
Nesse contexto de fundamentações teóricas, a formação histórica da identidade do
brasileiro está compreendida por rupturas dos significados da história do português
europeu, do escravo africano e do indígena americano, dos quais a história da
identidade do brasileiro é um desvio da história de todos eles. Tal posicionamento
está fundamentado, ou orientado, pela teoria psicossociológica das representações
que, segundo Jovchelovitch (2000), não se dissociam de modelos mentais
organizados em redes por campos semânticos discursivos e esses sempre mantêm,
entre si, constantes e intermitentes relações com os sentidos históricos das
sociedades de onde eles são originários. Para a autora, as representações sociais
fazem a história dos homens e essas inscrevem seus sentidos nos matizes dos
significados das interações cotidianas. Assim, as representações dos processos de
interação articulam significados do longo tempo àqueles do curto tempo, tendo por
ancoragem um dado tempo presente, do qual se projeta o tempo futuro e por ele tais
significados fazem remissão aos sentidos – outro-novo novo ponto de vista, por meio
do qual tais significados são reinterpretados, recontextualizados, respondendo pela
produção de sentidos. Logo, os sentidos emergem como lugar do espaço ocupado
pelo imaginário sociocultural-ideológico de um povo; por conseguinte, no imaginário
convive a ideologia, articulada à utopia por meio de laços analógicos continuamente
tecidos e entretecidos pelos matizes da cultura, presentificados na história
textualizada das sociedades humanas, no caso desta Tese, sob a forma de textos
escritos.
34
1.4.1 A representação do imaginário: utopiaideologiacultura
Ricouer (2002) pontua para seu leitor que para tematizar questões referentes à
história, em cujas raízes situam-se os matizes da cultura, faz-se necessário
relacionar expectativas futuras às tradições herdadas do passado e às iniciativas do
presente. A ruptura entre essas relações, segundo DaMatta (1997), inviabiliza a
construção de narrativas de histórias e desloca o homem para o campo dos relatos:
aquele onde as representações têm por referência eventos ordinários, próprios da
rotina do mundo cotidiano. Esses são planejados, pré-estabelecidos, mas
destituídos de ponto de vista crítico-reflexivo, pois as narrativas de relato não
projetam outro/novo mundo possível e, por isso, deixam de reinterpretar, de
recontextualizar os próprios conhecimentos do cotidiano. Embora tais narrativas
focalizem problemas vivenciados no dia a dia, não apresentam para eles quaisquer
soluções, visto não projetarem um ponto de vista alternativo por meio do qual tais
problemas possam vir a ser solucionados; razão pela qual elas se tipificam como
registros do que é vivenciado no cotidiano, organizados pelo princípio da ordem.
As narrativas de história, ao contrário, postula Da Matta (1997), têm por referência
eventos extraordinários: aqueles cujas representações se tipificam por rupturas com
o cotidiano, ao colocarem em foco aspectos diários, corriqueiros da vida social;
contudo, por um ponto de vista crítico-reflexivo. Assim, as ações ritualísticas do
cotidiano são subvertidas quanto aos modelos de representação da ordem; nelas, o
evento extraordinário se qualifica pelo princípio da desordem e, por ela, o fato do
mundo natural – que desencadeia as desordens – sempre projeta a possibilidade de
outra-nova ordem. Por conseguinte, as narrativas de histórias facultam a construção
de um ponto de vista alternativo: aquele por meio do qual o cotidiano é
reinterpretado, recontextualizado, reinventado por projeções. Nessa acepção, elas
não só colocam em foco problemas vivenciados no cotidiano, mas também
apresentam possiblidades para que eles sejam solucionados. Por essa razão, o
relato de histórias sempre carrega consigo o que permanece; as narrativas de
histórias, o que permanece naquilo que muda, ou poderia mudar: elas se qualificam
por outro modo de agir ou de proceder, outro modo de ser homem, no espaço
sociocultural-histórico. É nessa acepção que elas são organizadas pelo princípio da
dramaticidade, da subversão que possibilita ao bandido ocupar o lugar do mocinho,
35
mas desde que ele assuma a posição, o papel e o discurso do mocinho; pois,
quando se aprende a usar o discurso do mocinho, mas não se é capaz de mudar a
posição de bandido, o papel social por ele exercido tem por referência as narrativas
de história de vilões, de fanfarrões. Segundo DaMatta (1997), ao contrário dos
relatos de histórias, as narrativas de histórias – à medida que possibilitam o retorno
ao cotidiano, depois de projetarem possiblidades para reordenar suas desordens
para instituir uma/outra-nova ordem – renovam velhas esperanças e criam
condições para a construção da consciência de identidade.
Nesse contexto, Ricouer (2002) afirma que para se compreender a distância entre
narrativas de relato e de histórias faz-se necessário considerar que o imaginário
sociocultural se qualifica por uma dupla perspectiva; pois, ao mesmo tempo, ele atua
sob a forma de ideologia e de utopia. Essa duplicidade, segundo esse estudioso,
merece a atenção dos educadores, dos políticos, dos sociólogos, dos etnólogos e,
principalmente, dos estudiosos das teorias do conhecimento e/ou dos filósofos, pois
é essa duplicidade do imaginário, inscrita na sua unicidade, que possibilita
compreender o conflito que habita e tipifica o imaginário humano e responde pelas
dificuldades de compreender a ideologia pela utopia, ou vice-versa. Esse conflito é
desencadeado sempre que um desses polos é compreendido individualmente e se
cancela a correlação necessária existente entre ambos e se atribui a um desses
termos um valor positivo e, ao outro, um valor negativo, ou seja, uma função
construtiva e outra destrutiva.
É nessa acepção que alguns desses estudiosos se ocupam em conceber a ideologia
como um processo de distorções e de dissimulações, por meio dos quais os homens
se ocultam de si próprios e dos diversos e diferentes grupos aos quais pertence. O
mais grave é o fato de a ideologia ser assimilada a uma ilusão protetora do estatuto
social – com todos os privilégios e injustiças que essa ilusão inclui. Outros,
estudiosos da utopia afirmam ser ela não mais do que uma fuga do real, um tipo de
ficção, principalmente, no campo da política, razão por que concebem a ideologia
como uma maneira de sonhar a ação, evitando reflexões sobre as condições da sua
inserção nas situações atuais ou contemporâneas.
36
Ricouer (2002), contrapondo-se a esse contexto de cisões, se propõe a rever essas
concepções antagônicas que foram sistematizadas principalmente pela teoria
marxista. Pontua ser a ideologia um conjunto de valores conservadores que se
contrapõe a mudanças que podem ameaçar a ordem social estabelecida. Por
conseguinte, ela se qualifica como modelo de representação simbólica, cuja função
prioritária é assegurar os sentidos institucionalizados, referentes à manutenção ou à
reprodução de ações capazes de assegurar a continuidade das relações de coesão
existentes entre os grupos sociais de uma dada formação, por meio da qual as
comunidades se organizam. Logo, a ideologia sempre foi e é reprodutora e
perpetuadora das relações sociais existentes; razão por que ela se qualifica como
fato de civilização e representa um meio que faculta aos atores sociais enunciarem
seus desejos, sonhos e projetos com vistas à transformação da própria sociedade.
Logo, a identificação do que permanece só se faz possível pelas projeções do
imaginário, ou seja, pelas utopias, necessárias aos processos de interpretativos.
A utopia, considerada na/pela sua relação com a ideologia, é inovadora quando o
seu propósito é a criação de um sistema de representação que não está em
conformidade com as ideologias pré-estabelecidas. Trata-se de um modelo de
representação simbólico possível de ser vivenciado em outro tempo, outro lugar que
ultrapassa os limites do presente e carrega consigo a dinâmica do trabalho de
possíveis reinterpretações de velhos valores atribuídos a sentidos
institucionalizados, sedimentados pela frequência de usos, ou seja, pela cultura.
Nessa acepção, ela é o fundamento e a fundação dos processos de renovação dos
fatos arraigados às raízes da história onde são entretecidos os matizes da cultura
que, conforme já enunciado por Bosi (2009), dependem do trabalho de
recontextualizações de velhos conhecimentos, o que faz com que as utopias sejam
representadas pelo distanciamento crítico, sob a forma de posições que focalizam os
fatos do tempo presente como passíveis de discussões, de desconstruções, como
possibilidade de ele ser reinterpretado, reconfigurado. Trata-se da função que busca
subverter transformar o próprio presente e por essa sua função subversiva também
é possível situar a fragilidade da utopia, na medida em que ela se reveste do poder
de ficção própria dos mundos imaginados, construtora de um lugar que, distante, se
faz ou parece ser inexistente.
37
Ricouer (2002) se refere ao processo acima enunciado, denominando-o “consciência
histórica”, compreendida como um processo complexo inerente à imaginação que,
qualificada por uma perspectiva sócio individual, ou vice-versa, pressupõe não só
relações entre o passado e o futuro, o acontecido e o acontecimento, mas também
um lugar no espaço do imaginário onde são continuamente tecidos e entretecidos os
fios das ideias, dos conceitos sociocultural-históricos pelos indivíduos, membros de
uma dada comunidade, forma intermitente do acontecível. A esse trabalho de
tessitura elaborado pelos indivíduos, com o propósito de reconstruir, reelaborar,
conhecimentos herdados de seus antepassados, com vistas a reinterpretá-los para
se adequarem às mudanças, às transformações do modelo de organização e de
ordenação de suas respectivas sociedades, esse autor denomina “cultura”: um
trabalho de reinterpretações, de recontextualização, e não de produção totalmente
inédita de modelos, à semelhança de Bosi (2009).
1.4.2 As representações de identidades no espaço da História
As investigações sobre estudos que tematizam questões identitárias dos variados
grupos sociais humanos, cujas comunidades se organizam por modelos de
formações sociocultural-históricas diferenciadas, ao longo da história da
humanidade, têm suas origens em estudos que incidem sobre o espaço público,
delimitado a lugares ocupados socialmente por membros ou grupos de tais
comunidades. Embora esses lugares não deixem de pressupor o fato de as esferas
da vida pública sempre terem estado e estarem em intersecção com aquelas da vida
privada, quando o propósito é focalizar a identidade de um povo, o foco dessas
investigações incide sobre as facilidades inscritas nas dificuldades desses processos
de identificações das esferas públicas e por elas se organiza e/ou produz a
consciência histórica.
As pesquisas realizadas sobre esse tema têm incidido sobre as consequências
trágicas que qualificam as representações nas esferas do espaço ocupado por
práticas sociais cotidianas, vivenciadas pelo povo brasileiro. Tais práticas
representadas e expressas por formas linguísticas registradas por discursos, onde
os significados da vida da esfera pública são tecidos e entretecidos com aqueles da
38
esfera privada. Essas formas linguísticas respondem pela construção de discursos
referentes às narrativas de histórias e por elas é possível revelar e desvelar a
tragicidade de histórias vivenciadas pelos brasileiros. Para os estudiosos dos
processos identitários de um povo, dentre as diferentes e variadas formas
discursivas, além de essas narrativas não só expressam as experiências vivenciadas
pelos humanos de todos os tempos e lugares, elas sempre estiveram e estão
presentes no mito, nas lendas, fábulas, comédias, tragédias, dramas, contos,
romances, na pintura, na escultura, no cinema, em vitrais etc.; enfim, nunca houve
povo destituído de narrativas.
Para Barthes (1993), elas são e estão presentes na própria vida; razão por que elas
são transacionais, transculturais assim como é a vida que por elas são contadas e
se deixam contar, pois os homens sempre tiveram e têm necessidade de contar o
que aconteceu. Assim procedendo, ordenam os sentidos dos significados por eles
experienciados e manipulam a cadeia de eventos que dão forma à sua vida social e
individual.
Segundo Bakhtin (1981), as narrativas sempre viveram e vivem além e aquém dos
contadores de história, visto nascerem e crescerem com os discursos das praças
públicas, das ruas, das cidades, vilas e vilarejos, ou seja, dos discursos produzidos
por grupos sociais de cada época, de cada geração; logo, elas pouco têm a ver com
capacidades individuais do saber contar histórias. Bartlet (1995), por sua vez,
pondera que as narrativas de história são constituídas por múltiplas e variadas
relações com os contadores de histórias e as preocupações dos grupos sociais da
comunidade de narradores e, nesse sentido, elas arrastam consigo as relações
sociocultural-históricas e ideológicas da comunidade dos humanos. Por conseguinte,
elas não só produzem, como também propagam as representações sociais visto
serem elas que dão vida aos significados dos próprios mundos vividos, por meio da
própria estrutura formal dos seus conteúdos narrativos.
As representações organizadas e ordenadas por narrativas de histórias são
inerentes a quaisquer grupos humanos sejam ou estejam eles situados no espaço
de civilizações arcaicas, antigas ou modernas, onde sempre estiveram/estão
situados, desempenham papéis significativos e constroem histórias. Por elas são
39
projetadas as expectativas futuras, tendo por sistema de referenciação o que foi
signifeito de suas vivências passadas e transmitido como herança a seus
predecessores, de modo a que eles também possam construir histórias. Nelas e por
elas, todos se mantêm vivos e, ao mesmo tempo, dizem quem foram por aquilo que
fizeram, legando àqueles que ficam na Terra a responsabilidade para preservarem
tanto o que já foi feito quanto o que ficou por fazer, de modo a não interromper
episódios da história já narrada.
As histórias, portanto, têm o passado como ancoragem das tradições que, herdadas,
orientam as iniciativas de um dado tempo presente e projetam o futuro: vivem e
sobrevivem da memória humana, dos “jatos”: modelos que habitam o imaginário
humano onde se situam “por-jectus” que visam a realizar o que “ficou por fazer”
entre os feitos já realizados ou consumados. Logo, os projetos têm por referenciação
objetos ou acontecimentos possíveis de serem criados, inventados, de virem a
acontecer: são construções resultantes de um ponto de vista traçado por um olhar
antecipador e, nessa acepção, é um “vir a ser”. Os sentidos dessas projeções,
entretanto, são assegurados pela conciliação entre os limites do modelo que
organiza e ordena as representações de conhecimentos de mundos do passado e
daquele que ordenará e organizará os do futuro e orientarão outras novas ações.
São esses “pro-jectus”, realizados ao longo de diferentes e variados tempos, que
asseguram as relações interpretativas das vivências comunitárias, organizadas
pelas relações sociocultural-históricas por meio das quais as comunidades se
organizam em sociedades.
1.5 Os Contratos e os Pactos entre Identidades Reais e Imaginárias
A concepção de comunidade, inclusive a de comunidade interpretativa, para alguns
pesquisadores da teoria do conhecimento, é uma noção enganadora; entretanto,
estudiosos da área da historiografia ponderam ser difícil, senão impossível, trabalhar
sem ela no campo das ciências do homem. Dentre eles, Burke (1997) reafirma ser
ela sempre perigosa por fazer com que se esqueçam ou se minimizem as diferenças
individuais e/ou de opiniões; razão pela qual essa é uma noção indispensável para
40
nos lembrar sobre o que é socialmente partilhado entre os homens, pondera esse
autor.
Gorz (2004), por sua vez, pontua para o seu leitor, ao longo de seus estudos, que a
sociologia do nosso tempo moderno não pode deixar de valorizar as relações entre
os agrupamentos comunitários humanos; entretanto, nos adverte sobre a
necessidade de se compreender que não se vive em comunidade da mesma
maneira que se vive em sociedade; pois as comunidades são regidas por pactos; as
sociedades, por contratos. Para assegurar a compreensão desses e entre os modos
de viver nesses lugares ocupados do espaço sociocultural-histórico, afirma que, em
comunidade, a união entre seus membros é assegurada pela solidariedade vivida
entre pessoas concretas, reais, que sempre tiveram e têm um fundamento “factual
comum”.
Essa factualidade está no que é reconhecido, compartilhado, identificado por todos
os membros de uma comunidade, independente do lugar social diferenciado que
eles ocupam nas instituições sociais de que são membros, visto serem essas
instituições que sistematizam o que eles compartilham entre si. Assim, não só na
condição de povo de um Estado-nação, mas também dos grupos sociais de que eles
socialmente participam, seus conhecimentos comuns são assegurados na/pela vida
em sociedade - inclusive do grupo de dirigentes de uma Nação-estado. Trata-se do
fato de cada um deles se (auto) reconhecer como homens que têm “algo em
comum”: partilham e compartilham de uma comunidade e por ela todos são
responsáveis. Assim, a comunidade – na sua indissociável e indissolúvel relação
com a sociedade – é o lugar do espaço ocupado por todos os membros do espaço
social “porque dela todos comungam” e, nela, todos situam interesses que visam ao
“bem comum”.
A comunidade, originalmente, se qualifica por relações associativas de cooperação
mútua, pois todos os seus membros dela compartilham, por nascimento, pela cultura
e língua comum falada por todos. Nesse caso, dir-se-á “comunidade de origem ou
constitutiva”, ou seja, nacional, pois:
41
(...) o laço entre os membros de uma comunidade não é um laço jurídico nem um laço institucionalizado, formalizado e institucionalmente garantido, nem tampouco um laço contratual, mas um laço vivido, existencial, que perde seu atributo comunitário a partir do momento em que é institucionalizado, codificado: pois (...) o elo adquire uma existência objetiva automatizada que, para perpetuar-se não precisa mais do engajamento afetivo, da adesão vivida de todos os membros. (GORZ, 2004, p.131)
Os contratos sociais, embora tenham por alicerce os pactos que orientam e ordenam
as formações das sociedades humanas, são conjuntos diferenciados e bastante
complexos para que as relações entre os membros de uma comunidade possam se
deixar reger e regrar de modo comunicacional espontâneo, afetivo. A pertença a
uma comunidade implica o fato de os humanos serem vistos, concebidos,
qualificados e representados como pessoas; razão por que pertencer a uma
sociedade é ser representado como indivíduo e, por isso, pessoa.
Todavia, é apenas na condição de pessoas “reais” que somos capazes de trilhar ou
fazermos travessias por caminhos comuns, de nos identificarmos como pessoas;
contudo, na condição de cidadãos, as pessoas se tornam entidades “irreais”,
imaginárias, seres abstratos definidos na universalidade por direitos e deveres,
juridicamente formalizados e politicamente garantidos pelo poder do Estado. Nessa
acepção, não há entre os cidadãos uma comunidade concreta – aquela qualificada
por uma solidariedade e afetividade imediata e/ou vivida – mas sim uma comunidade
política, distanciada ou separada de contextos empíricos, afetivos em que se possa
situar a universalidade das pessoas. Assim, se a vida em comunidade assegura a
formação da pessoa, a vida em sociedade assegura a formação de indivíduos que
se associam uns a outros por interesses comuns. Por essas relações que conjugam
essas duas esferas do universo da vida situam-se os significados atribuídos às
identidades sociocultural-históricas de um povo, segundo Gorz (2004).
O modelo de formações sociocultural-históricas do mundo moderno deste nosso
tempo presente, neste contexto de reflexões, confere aos membros dessas
sociedades uma identidade fundada e fundamentada por “contratos” políticos, por
meio dos quais eles se tornam identificados e reconhecidos juridicamente como
“cidadãos”. Já os “pactos” fundam e fundamentam a identidade cultural das pessoas,
nos/pelos laços comunitários que regem todos os aspectos da vida cotidiana,
42
(...) inclusive as relações entre marido e mulher, entre pais e filhos, onde não existe distinção entre esfera pública e esfera privada, por relações jurídicas que não sejam aquelas do “direito natural” entre indivíduos emancipados. (....) A “grande sociedade”, portanto, apresenta uma certa deficiência de comunidade, compensada (mas de modo algum sanada) pela solidariedade abstrata que institui e institucionaliza a cidadania econômica e social. (GORZ, 2004, p.132) (grifo nosso)
Assim, quanto maior o grau de proximidade entre os modos de proceder e de agir –
sempre inscritos no espaço ocupado por modelos de representações do universo da
vida, articuladas por relações necessárias àquelas das esferas dos mundos
sociocultural-históricas – menor será o grau de distanciamento entre as normas
culturais, que têm os significados dos pactos como referência. Já maior grau de
distanciamento entre os modos de proceder e de agir entre essas esferas das
relações sociais implicará a valorização de regras que organizam a vida em
sociedade e têm os significados dos contratos como referência primeira,
sobrepondo-se aos pactos.
1.6. As narrativas de histórias entre os pactos e os contratos sociais
Nesse contexto, afirma DaMatta (1997) que – por essa relação de contrariedade
entre o viver em comunidade e, ao mesmo tempo, em sociedade, situados entre os
limites da individualidade e da sociabilidade que qualifica a identidade da pessoa –
vivenciamos diferentes papéis sociais que representam os modos como agimos no e
sobre os mundos. São esses modos de agir que facultam a identificação de quem
somos, de como procedemos ao exercer papéis que, embora sejam comuns a todos
os homens, ao mesmo tempo são diferenciados, compreendidos e interpretados por
marcos dos matizes da cultura global e local de cada sociedade. Assim, esses
papéis variam de cultura para cultura, de país para país, de nação para nação, mas
são eles que formam ou fabricam as pessoas que, por sua vez, afetam, modificam o
exercício desses papéis; razão por que eles são significativos e fundamentais para
se discutirem temas complexos como é o caso das identidades. Dentre esses temas
situam-se aqueles que tematizam a democracia, as competições políticas, o
autoritarismo, a burocracia, etc., e que orientam ou asseguram estabelecer
distinções entre os atores e o modo como eles representam seus papéis sociais, na
condição de pessoas.
43
Segundo esse autor, os contratos – quando focalizados pela teoria dos papéis
sociais – desnaturalizam as pessoas na medida em que para exercê-los elas
constroem suas identidades como indivíduos que se organizam em grupos. Eles não
são exclusivos, visto que todos os humanos desempenham ou tentam desempenhá-
los, embora esse desempenho seja diferenciado; entretanto, queiramos ou não,
todos os que se denominam brasileiros, por exemplo, exerceram o papel de
colonizados e, hoje, todos somos eleitores por coerção social – o que é mais
autoritário do que qualquer lei – todos falamos a língua portuguesa que nos foi
imposta por decreto, e não a francesa, a holandesa e tampouco a língua geral.
A concepção de cidadania para DaMatta (1997), mesmo considerada no espaço da
sociedade moderna, foi e é construída por uma dupla perspectiva: uma delas cuja
ancoragem é a ideia de caráter ideológico e individualista; outra de caráter social e
igualitário, traduzida na obediência pactuada e consentida pelo Estado, cuja
ancoragem é a consciência de um conjunto de regras que têm valor universal. Esse
valor de universalidade se faz presente em qualquer espaço social instituído pelo
poder Estatal, mas por um grau de liberdade e de igualdade contidas. Trata-se,
segundo esse autor, de um modelo de cidadania que foi construído no espaço das
lutas sociais e de transformações políticas ocorridas nos séculos XVII e XVIII na
Europa Ocidental da qual somos herdeiros e que, no Brasil e em outros muitos
Estados, senão em todos eles, existem tantas cidadanias quanto são os diferentes
segmentos, as classes ou grupos sociais.
Ainda pontua Gorz (2004) para seus leitores ser necessário considerar – por essa
escala de sentidos contrários, atribuídos a significados de formas vocabulares, como
é o caso de cidadania, por exemplo – graus de sentidos contraditórios devido à
distância entre valores a eles atribuídos. É entre sentidos contrários dessa escala
que, no Brasil – ora ampliada, ora reduzida a distância entre os significados de
comunidade-sociedade, pessoa-indivíduo –, são representados como sinônimos de
ações próprias do espaço privado por aquelas do espaço público, ou vice-versa, ou
seja, os pactos são usados para interpretar os contratos ou estes para interpretar os
pactos. Tais deslocamentos respondem por intensivo grau de distanciamento entre
as próprias concepções de sociedade-comunidade, pessoa-indivíduo, implicadas no
exercício dos papéis sociais de que resultam sentidos contraditórios que contrapõem
44
essas concepções entre si. São elas, inscritas nos sentidos contraditórios, e não nos
contrários, que revelam tendências à manutenção dos pactos que, embora inscritos
em velhos contratos, apontam para a manutenção de tendências que revelam e
desvelam a resistências de grupos sociais que insistem em fazer permanecer velhos
significados os quais estão habituados a produzir. Assim procedendo, ignoram a
necessidade de reinterpretar, de recontextualizar velhos pactos por novos contratos,
de modo a assegurar a permansividade de velhas histórias que carregam consigo
velhos significados inscritos nos registros das práticas discursivas humanas,
produzidas pelos brasileiros.
Nesse contexto de intersecções, de significados contrários em que se inscrevem
sentidos contraditórios, busca-se registrar a pesquisa realizada com vistas a
comprovar ou complementar a tese sobre a identidade do brasileiro: um povo cujo
território continental situa-se abaixo da linha do Equador; “um país tropical
abençoado por Deus e bonito por natureza”.
45
CAPÍTULO II
HISTÓRIAS DE PROJEÇÕES DO CONTINENTE AMERICANO:
ENTRE OS MITOS E A CIÊNCIA MODERNA
O nome do Brasil representa um símbolo, vem de uma lenda antiquíssima, tem atrás de si uma longa tradição cartográfica. O nome da América é roubo à glória de outrem e exprime somente um indivíduo: Amalrich, Amelrich, Amalaricus, Amalárico, Amaury, Américo.
(Gustavo Barroso)
2.1 Considerações Iniciais
O processo de construção da identidade do povo brasileiro, alocado no Continente
Sul-Americano, tem o seu marco inicial inscrito na memória semântica de longo
prazo de nossos mais longínquos antepassados, enraizado no velho continente
europeu, sob a forma de projeção da extensividade de terras antípodas que estariam
situadas para além dos limites da Europa, da Ásia e da África. Resgatar, por um
procedimento historiográfico, essas projeções e verificar como elas se inscrevem
nos registros do projeto referente às grandes navegações ibéricas do século XVI:
objetivo deste Capítulo.
Tal objetivo, conforme investigações desenvolvidas, abarca fatos referentes à
descoberta, à ocupação, ao uso e à posse dessas terras antípodas que, a princípio,
foram concebidas sob a forma de “ilha” e, pós-descoberta, foram identificadas como
“Ilha de Vera Cruz”, posteriormente, como “Terra de Santa Cruz”, “Terra dos
Papagaios” e, por fim, “Brasil”. Tratava-se de uma nova terra em que o homem
europeu plantaria as sementes da velha civilização europeia e que daria origem ao
novo homem da civilização do mundo moderno: uma terra de desconstruções-
reconstruções, de interpretações-reinterpretações, de contextualizações-
recontextualizações ou de inovações-renovações do velho e já explorado continente
ou mundo europeu. A terra da juventude: um mundo povoado por prazeres onde a
força do pecado, herdado da Idade Média, não ocuparia lugar, principalmente na
porção territorial dessa “ilha-terra-continental”, situada abaixo da linha do Equador.
46
A planificação dessas projeções, registradas ao longo deste Capítulo, é extensiva a
uma longa história que abarca milhares de anos e não se qualifica, como não se
qualificava, pela imobilidade ou estagnação; pois, segundo Morin (2007, p. 212),
A história avança, não de frente, como um rio majestoso, mas por desvios que suscitam acontecimentos (...). É um curso incessantemente perturbado, modificado e contrariado (...). Qualquer evolução é fruto de um desvio bem sucedido, cujo desenvolvimento transforma o sistema de onde é oriundo: desorganiza-o e reorganiza-o, transformando-o. (...)
O desvio de uma história, portanto, à semelhança daquele de um grande rio,
somente poderia ser identificado e compreendido por um leitor capaz de retroceder
no tempo para romper não só os limites do passado imediato que habita quaisquer
dos tempos de um dado presente, mas também com o futuro imediato que se
inscreve nesse mesmo tempo presente em interseção com esse passado. Assim,
compreendido pela indissociabilidade entre o passado e o futuro, o presente esteve
e está articulado à concepção de lugar onde foram/são alocadas as personas,
personagens da história que não só desencadeiam ações como são alvos dessas
mesmas ações que sobre elas incidem.
A identificação dessas ações, sempre situadas pela perspectiva da temporalidade e
implicadas pelas/nas relações de um olhar que se dirige para o horizonte, não pode
dispensar e não dispensa a perspectiva da verticalidade. Por ela, seus estudiosos
precisam ultrapassar os limites do solo por onde pisam e aprender a escavar suas
profundezas, pois é pela escavação que se pode identificar a composição do
subsolo ocultado por planícies, rios, lagos, minas ou olhos d‟água, montes,
montanhas, serras, cavernas, etc.
O olhar atento e minucioso do escavador tem apontado para os estudiosos do
cenário terrestre que a história das camadas do subsolo da terra carrega consigo,
sob a forma de detritos, a história, inclusive, dos desvios que foram enterrados ou
soterrados nas entranhas do seu solo. Para Baitello Júnior (2006), a história
moderna tem se recusado a tratar dos detritos depositados nas diferentes camadas
do subsolo e, assim procedendo, tem privilegiado uma abordagem horizontal dos
estudos históricos da própria história e abandonado a sua perspectiva vertical. Essa
recusa pela recuperação dos detritos do lixo histórico cancela a espessura e o
47
próprio movimento de profundidade que a concepção de espaço precisa carregar
consigo para assegurar a força das ações, a extensividade e a dimensão da
propagação que a elas assegura compreensão e interpretação.
Proceder à semelhança de um arqueólogo implica não só escavar e encontrar esse
lixo soterrado, mas se voltar para o seu estudo e, assim, compreender a história do
mundo moderno, postulando que, nem mesmo os desvios podem ser pensados
(...) sem suas raízes e seus efeitos de sentidos, principalmente quando se focaliza a comunicação pela sua dimensão tecnológica. Então, se se tem que pensar no passado e em suas raízes, é preciso sair do tempo presente e ir para o tempo profundo (as camadas mais profundas) que nos ensina a pensar, a reinterpretar as camadas que se situam na superfície do solo. É esse tempo profundo que, por um lado, nos ajuda a sair do olhar comum e de uma concepção linear por meio do qual se enxerga o ápice da complexidade existente na contemporaneidade. Isso porque o tempo profundo é o tempo de construção do tempo arcaico e que nos afasta do mundo da simplicidade. (BAITELLO JUNIOR, 2005. p. 122 )
Nesse contexto de intersecções entre o longo e o curto tempo, qualificado pelos
tempos profundos das camadas do subsolo e do solo, situados na memória do longo
e do curto prazo, buscamos pensar, compreender e reinterpretar os lugares da
densidade e das espessuras do espaço no qual estiveram situadas as Histórias que
antecedem o descobrimento da América. Por/desse descobrimento, em 1492, tem-
se o descobrimento do Brasil, em 1500, oito anos depois de Cristóvão Colombo
desembarcar nas Antilhas, acreditando haver chegado à Ásia – litoral extremo do
oriente da Terra – e sete anos depois que o cartógrafo Martin Waldsemüller registrou
em seu mapa-múndi a quarta parte do mundo, denominada América: Terra de
Américo, em homenagem ao navegador Américo Vespúcio, autor da obra Mundos
Novos, conforme registrado no mapa abaixo.
As considerações acima registradas orientaram a identificação dos desvios da qual
resultou a revisão da história da descoberta, da ocupação, do uso e da posse das
terras do Brasil; registrado sob a forma de ilha, separada da Europa, da Ásia e da
África. Esses atos estão compreendidos como produtos da planificação de grandes
projetos que implicaram a formação do povo americano. Nessa/por essa formação
identitária, buscou-se situar e privilegiar aquela do brasileiro. O ponto de referência
48
teórico, inicialmente, incidiu sobre a teoria do imaginário, proposta por Castoríades
(2000).
Figura 1: Mapa de Martin Waldssemüller, publicado em 1507
Fonte: O´Gorman, 2003, p.106
2.2 O Continente Americano no Espaço das Projeções: projetos e trajetos
O significado do termo “projeto”, compreendido como produção do imaginário
humano, tem o vocábulo „projectus‟ – particípio passado do verbo „projecere‟, em
língua latina – como ponto de referência e mantém esse mesmo significado na
língua portuguesa, qual seja: “jato lançado para frente”, para além dos limites do
tempo presente; logo, uma produção do imaginário. São esses “jactus” que, segundo
Machado (2004), traçam representações de possíveis trajetos que, quando
percorridos pelo homem, no espaço ocupado por suas ações futuras, constroem os
caminhos da sua própria história. Esses trajetos, ao serem convertidos em
caminhos, em um dado tempo presente, deslocam-se do tempo futuro para se
situarem no passado, inscrevendo-se nos registros da memória histórica por meio de
mapas que desvelam o trajeto desse caminhar: são desenhos de uma memória
longínqua (MACHADO, 2004).
49
Nesse contexto, o imaginário, concebido por Castoríades (2000) como fonte de
incertezas e na sua relação com o passado – compreendido como fonte de certezas
porque já experienciado – também é qualificado pelo futuro, pelo porvir: uma
projeção possível daquilo que ainda não se deixou ver e/ou viver, mas que não se
caracteriza como se fora mero reflexo ou cópia da realidade. Contudo, produzido
pela imaginação ele é sempre a criação e a criatura, a produtora e o produto da
realidade incessante e essencialmente indeterminada, afirma o autor para quem a
própria sociedade é o fundamento e a fundação ou fonte criadora da imaginação:
uma construção coletiva que tem a memória como sua fiel depositária.
Observa ainda que a função da memória não equivale àquela da simples
“construção”, pois aquele que constrói copia, reproduz algo que já existe, enquanto a
“criação” tem por referência o novo-outras-formas que ainda não existem, mas estão
por existir; logo, aquelas desenvolvidas pela potencialidade criativa do homem.
Assim,
cada sociedade define e elabora uma imagem do mundo natural, do universo onde vive, tentando cada vez fazer um conjunto significante, no qual certamente devem encontrar lugar os objetos e seres naturais que importam para a vida da coletividade, mas também esta própria coletividade, e finalmente uma certa „ordem do mundo‟ (CASTORIADES, 2000, p. 179).
Nessa acepção, o imaginário constrói novos “projectus” necessários para uma
coletividade humana e, ao mesmo tempo, possibilita lançar modelos passíveis de
assegurarem outra-nova ordem que pressupõe outro modelo de organização social
daquilo que é por ele projetado. É pela/em sociedade que as instituições, as leis, as
crenças, as tradições, os símbolos, as alegorias, os ritos, os rituais e os
comportamentos são imaginados e expressos em uma dada língua socialmente
instituída e institucionalizada. A referência própria desse processo de
institucionalização, socialmente denominada, propagada e partilhada, explicita-se
como produto da imaginação qualificada por significados histórico-cultural-
ideológicos e utópicos, sempre criados pelo imaginário de um povo ou nação, ao
longo de sua história.
Pontua-se que a concepção de imaginário, acima pressuposta por Castoríades
(2000), foi concebida desde a década de 1960 e nos anos a ela subsequentes, pelos
50
cientistas sociais – dentre os quais se situam os estudiosos da linguagem – para
denominar a “criação incessante e essencialmente indeterminada (...) de figuras /
formas / imagens a partir das quais é possível falar-se de alguma coisa” (p. 13). Dela
se diferenciam proposições pressupostas por estudos desenvolvidos por algumas
vertentes da psicologia que concebem o imaginário como imagem refletida ou
simples reflexo inscrito no olhar do outro, visto que tanto o espelho quanto a imagem
refletida são obras, produções do próprio imaginário. Por conseguinte, segundo o
autor, o imaginário não se explica por imagens, mas como criação constante e
indeterminada de formas simbólicas que facultam aos homens falarem para
expressarem o conteúdo de seus dizeres, ou seja, a racionalidade da realidade por
eles construída é produto do imaginário.
Nesse contexto em que o imaginário é concebido como construção de uma projeção
possível, compreende-se que a função das projeções é antecipar o curso das ações
com o propósito de transformar uma dada situação-problema em projetos que
deverão ser planificados sob a forma de objetivos e de metas a serem alcançados.
Essas metas se tipificam tanto em termos de transformações de experiências
pessoais, quanto coletivas, vivenciadas no espaço privado ou público. É nessa
acepção que a palavra “projeto” se refere a “jato”, o que é lançado para frente pela
força da pressão do passado-presente.
Na Teoria do Conhecimento, essa capacidade de antecipação de ações, sempre
associada à necessidade de eleger continuamente metas, tem por parâmetro o
quadro de valores sócio-histórico-cultural; pois, se destituídos desse quadro de
referências, os projetos se assemelham a sonhos noturnos, pesadelos que se
limitam a reproduzir conteúdos arcaicos (HABERMAS, 1987). Nesse caso, a matriz
fundadora dos projetos tem por ancoragem apenas correlatos de uma consciência
retrospectiva, voltada para suas origens, pois ela se torna fonte de fantasias e não
abarca o pensamento dialético: fundamento do dialogismo, conforme proposto por
Bakhtin (2000). Nesse sentido, o significado etimológico da base vocabular da
designação “projeto” se inscreve no quadro do pressuposto fundador da
historiografia linguística, segundo o qual a própria vida é interpretada como projeto e
o seu significado se articula àqueles de “problema” e de “programa”.
51
A forma vocabular “programa”, por sua vez, aponta para sentidos referentes “ao que
já foi dito, falado ou escrito” e abarca o significado do “já feito” ou “já dito”; logo, o
experienciado e que já se ofereceu como objeto de reflexão crítica. Problema, por
seu turno, tem a sua significação associada a uma situação emblemática, visto fazer
referência a um ser ou objeto representado de modo abstrato, ou seja, não
objetivados, não planificado. Por conseguinte, problema designa uma situação
controversa que, ainda, não foi resolvida satisfatoriamente; razão por que ele se faz
o eixo desencadeador dos objetivos a serem alcançados por aquele que projeta.
O significado da forma vocabular “trajetus” se faz extensivo ao sentido de “caminho
percorrido ou a percorrer” por aquilo que foi lançado de “dentro de” pelo seu
projetista e, de repente, se vê exposto “diante de” o objeto por ele imaginado. Nessa
acepção, esse caminho não é aquele das estradas já construídas, por meio da
planificação de um dado programa de metas e ações. Essa referência ao futuro –
sempre orientada pelo passado e compreendida como possibilidade da imaginação
– faz do projeto planificado e realizado objeto de travessias entre o ontem e o
amanhã. Dessa relação identitária, construída num dado tempo presente por
relações capazes de entretecer conhecimentos entre os saberes do passado, o
conhecido, e o futuro, o desconhecido, mas não impossível de vir a acontecer, tem-
se o tempo das projeções. Este último funciona como se fora uma ponte entre o
passado-presente e o presente-futuro e, por ela, será possível assegurar as
travessias por meio das quais ocorrem as rupturas de ações cotidianas, estendendo-
as para além do “aqui” e do “agora”.
2.3 As Rupturas de Eventos Ordinários por Eventos Extraordinários
As grandes navegações, concebidas como “jactus” de um projeto e compreendidas
como evento extraordinário por meio do qual os eventos ordinários – aqueles que se
qualificam por “fazeres cotidianos” explicitados por movimentos reiterativos,
desencadeados por ações previstas e realizadas todos os dias – sofrem rupturas e
dão origem a uma desordem, implicam e exigem uma nova ordem, hoje, são
compreendidas pelos historiadores como o marco mais significativo do mundo
moderno, senão o principal.
52
Os eventos extraordinários, segundo Da Mata (1997), sempre são qualificados como
momentos revestidos por significados especiais de convivência entre os homens e
não são totalmente dissociados daqueles referentes à rotina da vida diária. Contudo,
eles se apresentam sob a forma de rupturas com esse mesmo cotidiano, desde que
colocados em “close up”, em primeiro plano, de modo a se destacarem e a se
diferenciarem desse mesmo cotidiano, mas sempre projetando outro modo ou
mundo possível de ser e/ou de se vivenciar essas ações cotidianas. Por
conseguinte, os eventos extraordinários arrastam consigo os significados do que
permanece, articulados àqueles que mudam, transformam-se; razão pela qual esses
eventos tanto se referem ao que permanece quanto àquilo que muda e, por essa
concepção, são eles que reinventam, reconstroem o mundo real, ou cotidiano, por
aquele imaginado.
2.3.1 As travessias na concepção do mundo cotidiano do longo tempo
Focalizar as rupturas das quais resultou a planificação do projeto das grandes
navegações, fundamento dos tempos de construção do denominado mundo
moderno, implicou o deslocamento para o espaço de tempos imemoriáveis e, por
meio de diferentes e variadas travessias sobre grandes pontes que ligam o passado-
presente-futuro, possibilitou compreender a construção da concepção de universo.
Essas travessias, num primeiro momento, deslocaram o pesquisador para além do
tempo em que viveram os descobridores das Terras da América e,
consequentemente do Brasil, para quem a imagem do universo era representada
como produto da criação de Deus, da sua bondade infinita. Trata-se de um recuo
que, situado além dessa interpretação religiosa – sustentáculo da Idade Média e
que, ainda hoje, se mantém como crença religiosa no nosso mundo moderno –
ultrapassou os limites desse modelo religioso de organização da sociedade medieval
para incorporar as narrativas lendárias que antecederam e marcaram a civilização
do oral da Idade Antiga.
Esses movimentos digressivos, orientados pela leitura da bibliografia selecionada,
facultou que se compreendessem três diferentes concepções da forma vocabular,
referentes à designação “Planeta Terra”, a saber: uma concepção mítica, outra
religiosa, ambas asseguradas pela (re) interpretação de uma terceira de caráter
53
científico. Essas concepções, por um lado e necessariamente, implicaram a revisão
da concepção de “Universo”: lugar onde se situam as estrelas, os planetas e, dentre
os quais, a Terra é um deles. Por outro lado, são concepções entrelaçadas, visto
não se poder dissociá-las, na medida em que a primeira é reinterpretada pelas
outras duas respectivamente, de modo que elas sempre convivem no mesmo
espaço do tempo histórico, mas sempre uma se sobrepondo às outras.
É no espaço ocupado por essas concepções que se situam as mudanças ou
transformações dos modelos de formações socioculturais históricas. Esses modelos
são dinâmicos, contínuos e intermitentes; razão pela qual a desorganização de um
deles tem por fundamento a criação de outro: aquele que será sucessivo ao anterior.
Trata-se da desconstrução de uma ordem pela reconstrução de outro modelo de
ordenação das sociedades humanas. Assim, por exemplo, os deuses de Roma
foram reinterpretados pelo Deus cristão; mas, retomados pelo antropocentrismo,
mostraram-se gigantescos atores históricos, conforme as epopeias renascentistas.
Todavia, afirma Morin (2007, p.216),
(...) esses deuses foram se enfraquecendo ao longo da ascensão de uma civilização laica e de um novo mito religioso, o Estado-nação. (....) O mito e a religião infiltrados na razão e na ciências transformaram-nas em entidades providenciais, garantindo o progresso da humanidade, o qual também se tornou providencial. (...) Nossa época hipertécnica é comandada por um quadrimotor de aparência puramente material. Mas ele é alimentado por uma hubris em que os mitos providenciais da ciência, da técnica, do progresso, da indústria e do mercado são ativos nos economistas e nos técnicos da megamáquina. Sempre há, por toda parte do planeta, a força motriz dos mitos e das religiões.
2.3 1.1 A interpretação do universo pelo mundo mítico
Os mitos são compreendidos como as primeiras formas de organização e ordenação
do pensamento humano, capazes de representar o denominado “mundo real”, por
meio de narrativas de histórias que têm a função de explicar a origem do cosmos, do
homem, das doenças, do fogo, da água, da terra, do ar; enfim, do universo. Trata-se
do discurso fundador dos primeiros conhecimentos humanos por meio dos quais se
buscava responder às mais diferentes e variadas situações problemáticas que se
colocavam para o homem em um tempo que antecede ao desenvolvimento do
pensamento filosófico, do religioso e do científico. Trata-se das primeiras práticas
54
discursivas sobre ações referentes aos modos de agir e/ou de proceder,
representadas por seres naturais e/ou sobrenaturais dos quais se origina a
concepção de totalidade do Cosmos. Elas estão associadas à tradição dos povos e
carregam consigo referências identitárias que persistem até os nossos dias e podem
ser descobertas quando se busca a origem da própria Filosofia, da História, da
Antropologia e de outras teorias científicas que tratam da evolução do homem na
Terra.
Os primeiros mitos que povoavam o imaginário dos nossos mais remotos
antepassados, segundo Cândido (1997), representavam a Terra como se fora uma
ilha plana e sustentada por quatro elefantes, cujas patas estavam apoiadas sobre o
casco de uma tartaruga gigante. Protegidos por uma imensa serpente que
representava a água e envolvia a superfície plana dessa ilha, ela simboliza o deus
Vishnu da cultura hindu. Para Chevalier e Gueerbrant (2002), esse réptil tem como
referência simbólica o eixo do mundo terreno encerrado em seus anéis, associando-
se ao desenvolvimento de processos inerentes à reabsorção cíclica das forças vitais
desse mesmo mundo terreno. Nesse sentido, são essas forças que, por um lado, a
ela possibilitam garantir a estabilidade do mundo e, por outro, expressar a
agressividade e a força do grande deus das trevas que ela, universalmente,
representa. O habitante desse mundo terrestre não poderia ultrapassar os limites
dessa ilha que tinha a serpente como guardiã; pois, se assim procedesse,
despareceria para sempre na escuridão do caos, onde sua existência seria extinta.
Observa-se que o elefante é símbolo de estabilidade e de imutabilidade estabelecida
pelo poder real e, assim sendo,
(...) Em certas mandalas tântricas, o elefante aparece quer nos pontos cardeais, quer nos pontos colaterais (....) ele significa a dominação do centro real sobre as direções do espaço terrestre (....) evoca ainda a imagem do conhecimento (...). Assim como o touro, a tartaruga, o crocodilo e outros animais, o elefante também desempenha o papel de animal-suporte-do-mundo: o universo repousa sob o lombo de um elefante (CHEVALIER E GUEERBRANT, 2002, p. 359).
A tartaruga, por sua vez, seja ela macho ou fêmea, tem o seu simbolismo extensivo
a todos os domínios do imaginário; pois, por um lado, a sua carapaça, redonda
como o céu, na parte superior, tem a forma arredondada, à semelhança de uma
55
cúpula e, por outro lado, a sua parte inferior, plana como a Terra, representa o
universo. Seu peso e força fazem remissão à ideia de poder e suas quatro patas,
curtas e plantadas no solo, remetem-se às colunas do templo sagrado: lugar que
serve ou funciona como apoio do trono divino. Outra relação associativa simbólica é
aquela existente entre a tartaruga e as águas da terra nascente; pela sua função de
“suporte do mundo” e pela estabilidade, ela é identificada com as mais altas
divindades de várias culturas. A leitura, acima registrada, tem a sua representação
apresentada no quadro abaixo:
Figura 2: Concepção da Terra pelos hindus.
Fonte: Cândido, 1997.
Convive com essa crença hindu, aquela da cultura egípcia, na qual a Terra é
interpretada pelo deus Keb, irmão gêmeo da deusa Nut que representa a abóbada
estrelada do céu; ambos são filhos do deus Shu, personificação do ar, e da deusa
Tefnuit, personificação do orvalho; logo Keb e Nut são netos do deus Sol. É preciso
ressaltar que Keb e Nut, num abraço ininterrupto fizeram amor e, por isso, foram
castigados. Separados pelos seus pais, por ordem do avô, Nut passou a representar
a abóbada do céu e Keb, prostrado abaixo dela, tornou-se o rei da Terra e, desse
modo, o Sol, o ar, o orvalho, o céu e a terra deram origem ao Cosmos. Keb é
56
representado deitado sobre o solo, com uma das mãos voltadas para o chão e um
dos joelhos flexionados, simbolizando as montanhas e os vales da terra. Seu pai, o
deus Shu, é visto ao seu lado com as mãos erguidas para o alto, sustentando o céu:
representação da deusa Nut, sua filha, cujo corpo está coberto de estrelas. Pontua-
se ainda que, no entorno do corpo da deusa, há dois barcos que navegam de modo
a representarem os movimentos sucessivos e ininterruptos do dia e da noite:
símbolo da força de tempos contrários, mas complementares. Nesse contexto situa-
se a leitura significativa do texto mitológico, tendo o Sol como criador do cosmos,
conforme representado no quadro abaixo:
Figura 3: Concepção da Terra pelos egípcios
Fonte: http://desmanipulador.blogspot.com.br/2014/07/nut-e-gebmitologia-egipcia.html. Acesso: 26
ago. 2014.
.
2.3.1.2 A forma da Terra: interpretações do mundo mítico pelo mundo clássico
Pontua-se pelas informações, acima registradas, que a concepção de “Terra” –
como se fora uma forma quadrada – é contígua àquela da água e da atmosfera bem
como da relação indissociável e complexa entre elas de que se origina a concepção
de universo. Esse universo também é compreendido e interpretado pelos
movimentos do dia – presença de luz – e da noite – escuridão, ausência de
57
luminosidade, ou lugar onde reina a desordem e o vazio: o caos. Para Chevalier e
Gheerbrant (2002), o caos simboliza uma situação anárquica que, observada no seu
início, precede a qualquer manifestação das formas e, no seu fim, manifesta a
decomposição de toda e qualquer forma. Nessa acepção, o globo terrestre,
compreendido como lugar povoado ou habitado por formas, completa-se e, ao
mesmo tempo, contrapõe-se àquela de universo que não pode ser dissociado das
formas terrestres, visto que nele e por ele essas formas se diluem ou se
decompõem. Assim, o universo não se reduz apenas a Terra, visto estender-se para
além dela e incorporar a ideia de espaço ocupado pelo caos: lugar da desordem.
A compreensão da concepção acima, reinterpretada pelos clássicos da antiguidade
greco-romana levaria os povos europeus, africanos e asiáticos – três continentes
interligados entre si – a se autodesignarem habitantes de uma única terra,
denominada “Ilha da Terra”; por conseguinte, a concepção de “ilha” era atribuída à
própria Terra. Entretanto, afirma Barroso (2000) que nesse tempo que antecede à
descoberta do Continente Americano, esses mesmos povos também projetavam a
possibilidade de existirem outras ilhas, qualificadas como “antípodas”, por estarem
situadas em lugar diametralmente oposto à Ilha da Terra, aquela por eles ocupada e
habitada. Essas ilhas eram cercadas pelas águas do “Mar Tenebroso” que, à
exceção do Mar Mediterrâneo, não fora até então navegado e, por isso, não
explorado, desconhecido. Imerso na escuridão das trevas, aquele era um mar
desprovido de claridade e, dentre as várias ilhas nele existentes, havia aquelas
habitadas por “demônios” que provocavam terríveis tempestades e essas eram
vivenciadas “por homens da mais rija têmpera e da mais fria coragem”; razões pelas
quais o mar dessas ilhas provocava horror e medo ao homem desses antigos
continentes.
Afirma Barroso (2000, p. 36) que, segundo a antiga geografia, deviam existir no
Oceano Atlântico várias ilhas misteriosas e lendárias, mas de difícil identificação e
sem comprovação de suas reais existências, sendo algumas delas identificadas
como:
58
Antilia, Stocafixa, Royllo, Man Satanaxio ou Mano Santanaxio, de Salomão, Mariéniga, Drogeo, Não Encontradas, de São Brandão, de Oro, Cabreira, da Ventura, Górgadas, Eternas, Sanzorzo ou São Jorge, do Corvo Marinho, Yma, do Homem e da Mulher, Fortunadas, das Sete Cidades, Essores, Montorio, dos Pombos, Verde, Tibias, Tausens, Maida, Cerné (...) e do Brazil ou Brasil (também conhecida como ilha movediça).
Dentre essas ilhas situava aquela denominada “ilha do Brasil” também conhecida
como ilha movediça, representada como Paraíso, um Éden, onde os seus habitantes
viveriam em perfeita harmonia cercados por ouro e pedras preciosas. Desse
contexto por onde os demônios circulavam e o Éden também se fazia presente,
emerge a lenda da Atlântida, representada sob a forma de uma grande ilha situada à
Oeste da África do Norte e da Espanha, no Mar de Sargaços – onde teria vivido um
povo feliz, com alto grau de civilização o que a eles permitiu, inclusive, utilizar metais
preciosos e autogovernarem-se por sábias leis. Entretanto, o profundo processo de
corrupção vivenciado por esse povo os teria levado à decadência de que resultaria
sua própria destruição por meio do fogo e da água. Assim, a gloriosa Atlântida,
situada do Mar de Sargaço, teria sido levada para a profundeza de suas águas e
seus restos ali depositados teriam desparecidos, há cerca de 11.500 anos, corroídos
por terremotos e erupções vulcânicas. Afirma Barroso (2000, p.13) que, nessa
(...) grande ilha, vivia uma população civilizada e empreendedora; havia grandes cidades, esplendidos palácios, templos com teto de ouro, um intricado sistema de canais que fornecia irrigação para campos férteis e movimentados portos (...).
Essas informações, inscritas nos dois diálogos de Crítias e Timeu, escritos por
Platão, registram a descrição, a localização e o destino da Atlântida cujo nome está
estritamente relacionado ao Oceano Atlântico. A lembrança dessa ilha-continente
desaparecida, no entanto e por um lado, não deixou de se tornar objeto de
discussões ao longo de inúmeros séculos, remetendo-se a teorias que não deixaram
de negar a existência da Atlântida, convertendo-a em imagens visionárias e míticas.
Entretanto e por outro lado, há estudiosos que aceitam a sua existência e postulam
que ela foi a contribuição maior que motivaria a descoberta, pelos povos ibéricos, do
Novo Mundo. É nesse sentido que Plutarco, em “De Facie In Orbe Lunae”, menciona
uma terra ocidental: a Ogigia, ilha de Vênus, regida por Cronus. Sêneca, por sua
vez, parece ter previsto a América no ato II de Medeia, quando afirma que “(...)
tempo virá, no decurso dos séculos, em que o oceano alargará a moldura do globo
59
para descobrir ao homem uma terra imensa e ignota; o mar nos revelará novos
mundos e Tule não será mais o limiar do Universo.” (BARROSO, 2000, p. 36)
Essas lendas e mitos da civilização do oral, muitas delas transcritas em textos
escritos pelos inventores desse sistema gráfico, não se diluem ao longo da
civilização da escrita, conforme os registros acima. O autor ainda afirma que
Numa viagem ao Egito, o legislador ateniense Sólon teria ouvido de sacerdotes egípcios a história de que há nove mil anos antes havia vivido num vasto país do Oceano, para lá das colunas de Hércules, povos felizes de brilhante civilização, que empregavam metais preciosos e se regiam mediante sábias leis, governados por soberanos descendentes de Atlas, filho de Clito e de Posseidon. Esses povos haviam conquistado as margens de Tirrênio e colonizado o Egito, mas recuaram batidos pelos primitivos atenienses (Barroso, 2000, p.34)
Essa informação parece comprovar que essas lendas e mitos ultrapassavam as
fronteiras da velha Europa e eram extensivas a povos de outros continentes da
época para quem essas ilhas antípodas já seriam habitadas.
2.3.1.3 A forma da Terra pela interpretação cosmológica aristotélica
Nesse contexto da antiguidade clássica, situam-se estudos sobre a Astronomia entre
os babilônios: povos que antecederam, há dois mil anos a existência de Cristo na
Terra e já interpretavam o destino dos homens, conjugando-o à força do movimento
dos astros celestes. Os gregos, segundo O‟Gorman (2003), por sua vez, buscam
explicações racionais para os movimentos desses astros, mas com o propósito de
compreender a natureza do cosmos pela beleza dos seus movimentos perfeitos e
uniformes, sempre idênticos e, por isso, imutáveis e eternos. Esses movimentos
circulares não têm início e tampouco fim e sempre se voltam sobre si mesmos, sem
qualquer mudança; logo, o círculo é a representação da forma perfeita que limita o
universo e seus astros, satélites e planetas.
O universo é representado, ao longo da história, desde então, como uma imensa
esfera, formada por duas zonas concêntricas: uma denominada “celeste”, em cujas
orbitas situam-se as estrelas e os planetas – Mercúrio, Vênus, Marte e Júpiter – a
Lua e o Sol. Nessa zona, os astros se movimentavam em círculos perfeitos e
regulares, qualificando essa região como um lugar imune à corrupção. Na outra
60
zona, qualificada como “sublunar”, também havia órbitas que abrigavam quatro
outros elementos: o fogo, o ar, a água e a terra. Assim, essa zona sublunar se
qualificava por movimentos irregulares e nela reinava a corrupção da qual se
originaram todos os seres vivos, destinados a perecerem, após um dado tempo de
seus respectivos ciclos vitais. Por essa concepção, o globo terrestre, espaço da
existência do homem, não era concebido como planeta, mas tão somente como a
massa da matéria mais pesada que, imóvel – incapaz de movimentos regulares e
também irregulares – permanecia no centro do universo com os demais corpos
celestes girando em círculos perfeitos e regulares ao seu redor. Trata-se de uma
concepção geofísica do universo.
Essa concepção de caráter geocêntrico tem como marco os estudos aristotélicos,
deduzida de observações diretas sobre a natureza, considerados os seguintes fatos:
a) a sombra da Terra projetada na Lua, quando observados os eclipses lunares; b)
os navios desaparecerem, gradativamente, quando cruzavam a linha do horizonte
ou as suas velas serem as primeiras a aparecerem na linha do mesmo horizonte
quando esses navios navegavam em direção à praia. c) algumas constelações não
poderem ser observadas de uma única vez em diferentes latitudes da Terra; razões
pelas quais Ela não era quadrada, mas curva.
Observa-se que o astrônomo-matemático Aristarco de Samus (310 a.C-230 a.C.),
orientando-se por essas mesmas deduções aristotélicas, irá se contrapor ao modelo
geocêntrico de Ptolomeu e, necessariamente, projetar uma concepção heliocêntrica
do universo. Contudo, somente no final do Século XV e início do XVI, o sacerdote e
astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473 a 1543), por meio de estudos
dedicados ao cálculo, retomou a proposição de Aristarco de Samus para postular
que aquilo que vimos é apenas o movimento aparente dos astros. O movimento real
é o da Terra e demais astros girando em torno do Sol. Logo, tanto o Geocentrismo
quanto o Heliocentrismo são concepções originárias do período Clássico.
Apresenta-se, abaixo, a representação do universo ptolomaico e do universo
coperniano: interpretações sistematizadas das deduções aristotélicas. (ARANHA;
MARTINS, 1993, p. 145)
61
Figura 4: Representação do Universo ptolomaico e coperniano
Fonte:
http://www.notapositiva.com/trab_estudantes/trab_estudantes/historia/historia_trab/alargcopreensnatu
r.htm Acesso: 08 set. 2014.
O modelo de universo, pela representação geocêntrica, pôs fim à crença antiga,
segundo a qual o mundo era um plano sustentado por quatro grandes elefantes e
tornou-se ponto de referência da sistematização dos primeiros estudos geofísicos da
Grécia Clássica. Esse sistema perduraria por dezoito séculos e garantiria a sua
permansividade ao longo da construção da Alta e da Baixa Idade Média: a primeira
responderia pela propagação e pela sistematização do cristianismo que, conjugado
à construção da concepção teocêntrica de universo, asseguraria a formação do
modelo de sociedade medieval e teria a sua estabilidade mantida entre os séculos V
e XI.
Nesse último século, a construção da segunda, ou da Baixa Idade Média, já se faz
sentir o seu processo de fecundação que, gestado entre os séculos XII, XIII e XIV,
sob a forma de racionalismo, teria o seu nascimento no século XV: tempo em que o
Teocentrismo cede lugar ao Antropocentrismo, o Geocentrismo ao Heliocentrismo e
o monoteísmo cristão é reinterpretado pelo racionalismo laico ou científico. Desses e
por esses deslocamentos, a concepção aristotélica de espaço organizado sob a
forma de lugares hierarquizados, progressivamente, será substituída por aquela de
62
espaço em que os lugares não possuem um ponto de referência fixo; portanto,
destituído de relações estáticas, pré-estabelecidas e, portanto, hierárquicas entre as
coisas e lugares. Nesse sentido, observado o universo pelo ponto de vista
heliocêntrico, o Sol não se converteu em outro-novo ponto fixo – ao contrário da
Terra – pois o seu deslocamento deve ser compreendido apenas como o primeiro
passo de um processo de descentralização e expansão da concepção de mundo.
2.3.1.4 A representação teocêntrica do Universo pela organização da sociedade
medieval
Os estudos desenvolvidos por Le Goff (1995) sobre a organização social da
comunidade humana, de que resulta a formação da sociedade medieval, tipifica-se
por um esquema hierárquico tripartido referente à ordenação de seus grupos sociais,
assegurado pelo domínio econômico exercido pelos senhores feudais sobre os
trabalhadores da época; domínio político exercido pelos guerreiros sobre os homens
desarmados e pelo domínio espiritual que a Igreja exercia sobre o conjunto dos
leigos. Esse modelo organizacional desvela a estrutura de uma sociedade que, por
um lado, assegurava o exercício da função religiosa, da função econômica e da
militar, de modo a se configurar como estágio evolutivo das formações sociais
primitivas. Por outro lado, essa estrutura aponta para o fato de sempre haver entre
os grandes e os pequenos, os intermediários, respectivamente, representados pelos
sacerdotes ou clérigos, pelos guerreiros e pelos servos camponeses que, embora
distintos, complementavam-se. Nesse contexto, o Rei – situado entre os homens da
Terra – deveria ter homens de oração: os clérigos, cuja função era proteger os
reinos contra as forças malignas espirituais; os homens de cavalo: os nobres ou os
guerreiros, cuja função era proteger o reino das forças malignas terrestres; os
homens de trabalho: os servos, cuja função era produzir elementos essenciais à
sobrevivência do reino.
Esse modelo de formação sociocultural medieval é assegurado pelo sistema político
descentralizado de suserania e vassalagem, cuja economia se qualifica pela
suficiência de cada feudo e pela descentralização política, contrária à dos antigos
Estados Imperiais do período Clássico, de sorte que o enfraquecimento do poder
central se contrapõe ao desejo de unidade do poder e a restauração da unidade
63
perdida. Esse espaço vazio será ocupado pela Igreja que, durante a Idade Média,
representará o ideal de Estado Universal e por ele Ela construirá o modelo de gestão
política do Estado Eclesiástico Medieval, assegurado pelo fato de o cristianismo
haver se tornado a religião oficial, o que legitimava o poder estatal e a ele se atribuía
uma origem divina. Assim, essa união entre o poder político e o poder religioso,
representado por duas espadas, tinha por referência o sentido simbólico do poder
temporal terreno dos reis e do poder espiritual referente aos valores eternos da
religião; razão pela qual o poder dos reis estaria subordinado àqueles do Papa:
chefe supremo do catolicismo. Segundo Aranha e Martins (1993, p. 230-231),
Mesmo em se tratando de poderes separados, o papado, representante do poder espiritual, intervinha muitas vezes nos assuntos do Estado, por se considerar de ordem superior (...) o papa Gregório VII excomungou Henrique IV, rei da Germânia, e o depôs, na medida em que obrigou os súditos deste do dever de fidelidade (...) No século XIII, os choques entre Frederico II e o papa Inocêncio IV e, no final do mesmo século, entre Felipe, O Belo, da França, e o papa Bonifácio, mostram as tentativas dos reis de recusarem a interferência religiosa.
Nesse outro-novo contexto e segundo a teoria do conhecimento, os homens sempre
tiveram dificuldades em conceber seu próprio corpo por um olhar destituído de
preconceitos, tendo herdado dos estudiosos clássicos a explicação de ele ser uno
ou único, mas formado ou composto, integrado por dupla lateralidade: um corpo
material e uma alma imaterial, ou espiritual e consciente. Platão já postulara que a
alma vivia da contemplação do mundo das ideias e tudo ela pode conhecer por
intuição: conhecimento direto e imediato. A reinterpretação desses pressupostos
pelos teóricos medievais seria revestida de outro peso e/ou valor pela necessidade
de a alma ter de se reencarnar; fosse por necessidade natural ou pela expiação de
culpas e por essas últimas ela só poderia vir a se degradar, visto ser o corpo a sua
prisão. Assim, essa alma era também concebida por uma dupla lateralidade, a alma
intelectualizada, superior e a alma irracional, de natureza inferior, compreendida por
significados duais: uma irascível, impulsiva, localizada no peito ou no coração; outra
localizada no ventre, voltada para os desejos de bens materiais e apetites sexuais.
A tentativa de domínio da alma superior sobre a inferior sempre foi considerada
objeto de perturbação do conhecimento verdadeiro e, conforme postulado por
Platão, a primeira, por ser escravizada pelo mundo sensível, resultará na produção
64
de opiniões não verossímeis e levará ao erro. Já observava esse teórico ser o corpo
objeto de corrupção e de decadência moral, na medida em que se a alma superior
não controlar as paixões e os desejos, os homens serão incapazes de assumir um
comportamento moral. Também o amor sensível deverá estar subordinado ao
intelectual e é no período da adolescência que predomina o amor pela beleza física,
embora o discípulo de Eros amadurecesse com o tempo e descobrisse que a beleza
da alma é mais preciosa do que a do corpo. Esse amadurecimento levará à
valorização da educação e da ginástica na formação escolar dos jovens para
assegurar a posse da saúde física e para manter o equilíbrio entre o corpo, os
sentidos e a mente sãos, visto que o desenvolvimento físico saudável impede a
fraqueza ou o desequilíbrio da vida do espírito superior.
Esses fundamentos racionalistas platônicos, resgatados durante a Alta Idade Média,
servirão de suporte para reinterpretações religiosas que – focalizadas à luz das
revelações cristãs – serão intensificadas por posições críticas ocorridas com a
dissolução dos costumes romanos. Essas críticas são desferidas, principalmente,
por monges que fogem do convívio das pessoas e buscam refúgio na fé, procurando
as cavernas e os desertos para se entregarem às práticas de purificação do espírito
ou ascese. Acreditavam que o exercício espiritual os levaria à virtude e à plenitude
da vida moral e, para tanto, buscavam controlar seus desejos mortificando a carne
de seus corpos pelo jejum e pelo flagelo, disseminando a crença de ser o corpo a
fonte de pecados e, portanto, lugar de desagregação do espírito superior. Essas
interpretações religiosas, na Alta Idade Média, serão sintetizadas e registradas por
Santo Agostinho (354-430, d.C) que vivenciou o período final do Império Romano; já
na Baixa Idade Média, o modelo interpretativo será aquele de Santo Tomás de
Aquino, voltado para os estudos aristotélicos.
Pode-se, portanto, afirmar que a reinterpretação da teoria do conhecimento clássico
produzida por esses dois filósofos gregos orientaram, por um lado, a travessia entre
a Idade Antiga e a Idade Média e, por outro, entre a Idade Média e a Moderna. São
eles que também respondem pela construção do alicerce teórico por meio do qual
será fixado o modelo de estrutura capaz de assegurar a formação da sociedade em
que eles viveram, nos seus respectivos tempos. O primeiro, Agostinho, pela sua
formação platônica, argumenta a supremacia do espírito sobre a matéria para
65
defender a hipótese de que a alma teria sido criada por Deus para reinar sobre o
corpo, conduzindo o homem para a prática do bem. Essa representação do
comportamento social de conduta humana é assegurada pela concepção
geocêntrica do universo, interpretada pelas forças contrárias do bem e do mal, em
incessante luta entre elas, de modo que a inversão dessa relação faz o corpo
assumir o governo da alma. Nesse caso, a concepção de liberdade é assegurada
pela harmonia das ações humanas associadas à vontade de Deus; o inverso seria o
prazer do pecado e da sua prática resulta a escravidão humana.
O segundo, Tomás de Aquino, pela sua formação aristotélica, cria um conjunto de
argumentos por meio dos quais explica a fé cristã, orientando-se pelos princípios da
racionalidade humana, implicada no raciocínio lógico e analógico. Enfatiza a
importância da realidade sensorial, embora pressuponha que o vir a ser não é
autodeterminado, mas tem a sua origem em Deus: aquele que é concebido de modo
geral e, respectivamente, pela sua plenitude. Assim qualificado, Deus é a força do
primeiro motor que coloca em movimento todos os corpos existentes no universo,
inclusive o humano e esses corpos, quando não se movimentam em consonância
com a força divina, tornam-se pecadores. É por essa concepção aristotélica
racionalista que a concepção de universo será reinterpretada pelo movimento da
Terra impulsionado pelo primeiro motor do universo; logo, a Terra deixa de ser
representada pelo princípio da estaticidade, girando em torno do Sol.
Nesse contexto, instituído ao longo da Idade Média, o exercício do papel social de
pecador e não pecador era avaliado pela observação cuidadosa do olhar Deus que,
do alto do Céu, dirigia o foco do seu olhar para aqueles que estavam alocados
abaixo de si – os homens que habitavam a Terra. Esses, por sua vez, deveriam
orientar suas ações pelo foco desse olhar divino e, sempre atentos e obedientes,
dirigir o foco dos seus olhares para cima, de onde Deus comandava as obras de
suas criaturas humanas, conforme representado no quadro abaixo.
66
Figura 5: Deus e sua criação (1530)
Fonte: http://numinosumteologia.blogspot.com.br/2011/09/biblia-de-lutero-e-o-canon-dentro-do.html.
Acesso em: 13 set. 2014.
Nesse contexto, a visão dos humanos, direcionada para o alto, não incidia sobre o
sentido horizontal da vida, limitando os seus significados a um conceito de
espacialidade destituído de valores de sentidos de horizontalidade. O modelo de
organização social também se fará, hierarquicamente, ordenado pelo sentido vertical
por um esquema tríplice ou tripartido – os sacerdotes, os nobres e os servos,
submetidos ao poder do Rei e do Papa – de modo que a sua identificação, entre os
séculos X e XI, já assegurava o exercício equilibrado das funções religiosa, militar e
econômica.
67
Observa Le Goff (1995) que esse modelo de formação sociocultural-econômica
medieval, gradativamente, daria origem ao chamado “terceiro estado” que, se por
um lado, não se confundia com os servos propriamente ditos, por outro, não se
circunscrevia apenas ao grupo clerical do estado eclesiástico e tampouco com
aquele do “estado laico”. Para esse autor, a identificação de esse “terceiro estado”
somente será mais bem configurada e sistematizada no século XVIII, entre 1789 e
1799; contudo, sem se confundir com os plebeus e tampouco com nenhum dos
outros dois grupos representados por aqueles que pertencem à classe mais rica e
mais instruída do campesinato. É nesse tempo, já extensivo ao Período Moderno,
referente aos movimentos sociais de que se originaria a Revolução Francesa, que
essa massa de trabalhadores da Idade Feudal será identificada com os mais pobres
– aqueles que farão uso da força de seus braços e das habilidades de suas mãos
como a principal ou única ferramenta por eles usada no mundo do trabalho. Os
artesãos começaram a ceder lugar no espaço por eles ocupado para o trabalhador
das fábricas que surgiram no século XIX.
2.3.1.5 A reinterpretação do continente americano entre o mundo medieval e o
moderno
O ponto de vista religioso, registrado nos itens que antecedem a este, segundo
O‟gorman (2003), assegurava que a Terra não era propriedade do homem, mas de
Deus e para Deus, e na sua constituição predominava o elemento “água”. Ordenada
a se movimentar por um ato de fala divino, essa água já deixa de cobrir uma porção
contínua de terra: uma ilha, cedida ao homem para nela fazer sua habitação, na
condição de inquilino “aquele que reside em terra alheia” (BOSI, 2009, p.11). Esse
inquilino, também criado por Deus à sua imagem e semelhança, resultou da
produção de um boneco de barro, chamado Adão, a quem presenteou com um
sopro de vida e, das costelas de Adão, fez-lhe uma companheira: Eva, e incumbiu a
ambos de povoarem a “Ilha da Terra”, segundo o livro dos Gênesis do Velho
Testamento bíblico. No entanto, aborrecido com a devassidão e com a corrupção
que se apossou dos descendentes de Adão e Eva, Deus provocou um dilúvio, que
durou 40 dias e 40 noites, do qual se salvaram somente Noé e seus descendentes.
Quando as águas baixaram, havia se formado três grandes ilhas – a Europa, a Ásia
e a África. Noé, orientado por Deus, distribuiu-as entre seus filhos e, sendo assim,
68
“Sem”, o primogênito, herdou a Ásia; “Cam”, o filho do meio, herdou a África e “Jafé”,
o caçula, a Europa. Essa representação tripartida, orientada pelo modelo dos
matizes da cultura cristã, predominou até o Renascimento Carolíngio, no século VIII
e dela se tem, ainda no século XII, a seguinte representação, conforme Günther
Zainer, de1472:
Figura 6: Mapa de Günther Zainer
Fonte: http://www.historyofinformation.com/expanded.php?id=1754. Acesso: 10 set. 2014.
A leitura do mapa de Günther Zainer, de1472, não deve ignorar a representação da
forma em “T” e “O” para identificar a imagem da terra dividida em três continentes,
sob o domínio dos filhos de Noé, cruzados por dois cursos de água em forma de T,
rodeados por um anel oceânico: o “O”.
Segundo O‟Gorman, (2003; p. 148), esse modelo de representação tripartida era
interpretado, alegoricamente, pela seguinte perspectiva:
Se vio em ella (división tripartita), ya el símbolo geográfico de la Santísima Trinidad, ya el fundamento histórico de la repartición de la Terra entre los hijos de Noé e el de la bella leyenda de la adoración del niño Jesús por los três reyes magos, ya, em fin, uma ilustración de ciertos pasajes del Evangelio o um reflejo de la perfección mística del número tres.
69
Nesse tempo, impulsionada pelos conhecimentos adquiridos por grandes
navegantes medievais, surge a tese segundo a qual a Ilha da Terra era mais
extensa do que se supunham os conhecimentos construídos e acumulados até
então. O homem da época passou a postular a existência de outras ilhas habitáveis
que, sancionadas pelo pensamento religioso, eram separadas e distantes daquelas
três primeiras, conforme registros em documentos cartográficos da época, referentes
à releitura dos clássicos greco-romanos. Produto dessas releituras é o mapa
cartográfico de Teodósio Marcróbio, do ano 1483, representado a seguir.
Figura 7: Mapa de Teodósio Macróbio
Fonte: O‟Gorman (2003, p. 160)
Segundo a representação do mapa, o globo era circundado por um oceano (Alveus
Oceani) que, situado na zona tórrida, corria em duas direções contrárias. Ao leste e a
oeste dessa zona equatorial central, esse oceano se dividia em dois braços: um fluía
para o norte e o outro, para o sul, separando as regiões austrais das setentrionais.
Dessas duas zonas temperadas, apenas a setentrional (norte) era habitada, pois a
austral era desconhecida e, segundo estudos de Cícero, nela habitavam os
70
“antípodas” que, separados dos povos do norte por essa zona tórrida central, jamais
se deixaram conhecer2.
A existência dessa quarta ilha antípoda, no entanto, foi negada por Santo Agostinho
e, embora Santo Isidoro de Sevilha admitisse, de acordo com a tradição clássica, a
possibilidade de haver uma grande terra localizada abaixo do Equador, negou ter
sido ou estar ela habitada. Essas negativas asseguravam a permanência dos
princípios religiosos, ordenados por três grandes premissas: 1) o gênero humano, os
inquilinos da terra orbis, era procedente de uma mesma família, originária de Adão e
Eva, pois os três continentes eram interligados, contínuos; 2) os ensinamentos de
Cristo e de seus apóstolos, contidos nos textos sagrados, já haviam chegado aos
confins de toda a terra; portanto, 3) a existência de uma quarta parte, ou uma outra
nova ilha, pressupunha um quarto filho de Noé e, nesse caso, a América, separada
das demais partes, não poderia ser habitada por descentes de Adão e Eva, salvo se
assegurada a existência de outro filho de Noé, mas na condição de bastardo.
Outra versão de caráter religioso defende a origem celta no nome Brasil, tema ainda
pouco explorado por estudiosos brasileiros. Todavia, Barroso (2000) apresenta uma
versão segundo a qual, no ano de 556 a. C., o monge São Brandão saiu da Irlanda
em busca de um suposto paraíso terrestre, perdido para além das costas do seu
país. Acompanhado por 14 monges a bordo de um pequeno barco de madeira e,
guiado pela Estrela Polar, teria chegado a uma ilha movediça, denominada Hy-
Brasil, situada no ponto central do Oceano Atlântico.
Pode-se considerar sob a forma de síntese – pontuados os avanços e os recuos de
fatos ocorridos em relação àqueles projetados, ao longo desses tempos narrados,
ora tão distanciados do presente ou dele tão próximos, complementares, ora tão
contrários ou tão contraditórios – que a existência do Continente Americano já
habitava o imaginário dos povos que buscavam compreender o mundo da vida na
Terra por uma perspectiva: a) mítica, representando esse mundo pela força do poder
natural; b) racionalista, marcada pelos estudos cosmológicos que passaram a
2 Os mapas de Ambrósio Macróbio têm o mérito de conservar para as gerações futuras estruturas
muito simples, mas sem ignorar aspectos da ciência clássica, mesmo quando eles reproduzem concepções originais que se fazem esquecidas dos homens modernos.
71
representar o universo como algo ordenado, harmônico e previsível, no qual a Terra
ocupava um lugar privilegiado; um cosmo finito dividido em dois planos: o céu e a
terra; c) religiosa, representando esse mundo por uma perspectiva monoteísta-
teocêntrica, em oposição à politeísta.
2.3.1.6 A representação antropocêntrica do Universo pela organização da sociedade
moderna
A essas diferenciadas projeções e retroprojeções tem-se a perspectiva
antropocêntrica por meio da qual o mundo será representado por uma visão da
lógica racionalista: marco do Renascimento que será objeto de sistematização ao
longo dos Séculos XVII e XVIII, do Período Moderno, gestado nas entranhas da
Baixa Idade Média, pelo princípio da racionalidade humana. Essa racionalidade, cujo
marco é o Renascimento, embora o seu grau de visibilidade seja identificado no
século XVI, ele já se deixava entrever no século XII por traduções na língua dos
árabes de obras clássicas, principalmente aquelas de Arquimedes, Hero de
Alexandria, Euclides, Aristóteles e Ptolomeu. O ponto de vista panteísta dos matizes
da cultura árabe, embora refutado pelos matizes do catolicismo cristão predominante
na Europa central, passariam a conviver com aquele das traduções dos leitores de
São Tomás de Aquino.
Ressalta-se, nesse contexto, a criação das primeiras universidades europeias nos
séculos XI e XII, embora fosse mantido o baixo número de exemplares que os
monges copistas eram capazes de produzir na época, acrescido do pequeno
número de tradutores: uma atividade profissional que seria identificada como
necessária após a invenção da imprensa. Essas traduções, por sua vez, não tinham
como ponto de partida os textos originais dos greco-romanos: eram traduções de
outras traduções que, antes de serem traduzidas para a língua latina, geralmente,
eram traduzidas na língua falada pelos sírios de que se originavam as traduções dos
árabes. Ainda é preciso ressaltar que as traduções árabes eram fontes para a
tradução desses mesmos textos em hebraico: fonte de que se originavam as
traduções latinas que, somente a partir do século XIII, passam a conviver com as
interpretações aristotélicas de São Tomás de Aquino, no latim medieval.
72
Segundo Aranha e Martins (1993), São Tomás, em seus trabalhos de tradução dos
originais dos textos gregos para o latim, não aristoteliza o cristianismo, mas
cristianiza Aristóteles, colocando em relevo as relações de sentidos entre a fé e a
razão. Para tratar das categorias de classificação dos conhecimentos das “coisas”
nos mundos da Terra e, pelos princípios da teoria da ação, situa Deus como Sujeito
uno ou o único capaz de representar a força criadora e ordenadora do Universo pelo
poder da sua palavra, pelo movimento transformador desencadeado pela ação do
verbo: fonte da criação do próprio Universo e de todas as coisas que nele existem,
seja nos mundos do Céu – habitado pelos anjos, pelas almas, pelas virtudes e pela
vida eterna – ou da Terra, habitado pelo homem e por todas as coisas dos mundos
animados ou inanimados, criados por Ele. Essa interpretação dos saberes
aristotélico alinha opiniões divergentes por uma posição teórica que coloca em
relação de equilíbrio a lógica das relações entre as coisas desses mundos pela
analogia que qualifica a racionalidade humana. No espaço dessa relação mediada
por uma posição da lógica simbólica, cujo ponto de referência é a lógica da razão
sígnica, situa a verdade da fé como guia do movimento da razão laica.
Essa relação de equilíbrio necessário entre as funções da dialética, cuja ancoragem
tem o raciocínio lógico como fundamento de procedimentos analógicos, foi
assegurada no fluxo da Idade Média pelo baixo grau de desenvolvimento e
sistematização dos estudos experimentais orientados pelos princípios da lógica
matemática. Segundo Santos (2001), a ciência medieval era de caráter não
experimental e, somente ao longo da Baixa Idade Média, as proposições referentes
a essa nova perspectiva da lógica matemática serão reconfiguradas e
sistematizadas, favorecendo o desenvolvimento de procedimentos experimentais. O
universo, desde então, terá a dimensão dos seus sentidos horizontais e verticais
proporcional ao grau de profundidade dos conhecimentos lógicos mensuráveis pela
extensionalidade dos conhecimentos produzidos pela racionalidade humana.
Nesse contexto, os homens reabrem o grande livro do universo e, pela sua releitura,
passam a diferenciar e a qualificar conhecimentos como verdadeiros ou falsos.
Assim procedendo, reinterpretam os velhos saberes sobre os mundos, orientando-se
por procedimentos descritivos de fenômenos observados e analisados pelos
princípios da lógica matemática. Os caracteres resultantes dessa reinterpretação
73
serão triângulos, losangos, quadrados, circunferências, etc. que, quando
desconhecidos, impossibilitam(vam) a compreensão de palavras por meio das quais
o homem da nova formação sociocultural moderna passou a se expressar.
Entretanto, aquele que deixou ou deixa de compreender os sentidos dessas
palavras, expressas por esses novos caracteres, vagou e continua vagando, no
obscuro labirinto desse outro-novo universo, por desconhecer a língua
“geometrizada” por meio da qual a sociedade moderna começava a se expressar.
Santos (2001) afirma que, embora os períodos de transições sejam difíceis de
entender e de serem percorridos, a revolução científica do século XVI, construída
pelas mãos de Copérnico (1473-1543), Bacon (1561-1626), Galileu (1564-1642),
Descartes (1596-1650) e Newton (1642-1727), gradativamente, implicou a
dissolução da noção de cosmos. Assim, todas as considerações orientadas por essa
concepção, implicada na representação de uma estrutura finita e hierarquicamente
ordenada, foram substituídas ou reformuladas pela concepção referente à
geometrização do espaço, ou seja, um universo aberto, indefinido e infinito, unificado
e governado pelas mesmas leis: aquele em que todas as coisas pertencem à
mesma dimensão ou nível do ser, do existir no mundo físico. É nesse/por esse outro
novo modelo de representação do universo que a sociedade medieval será
reordenada e reorganizada; logo, esse outro ponto de vista espacial responderá por
outro modelo de representação de uma nova sociedade: a moderna.
2.4 A Projeção da Sociedade Moderna pela Desconstrução da Sociedade
Teocêntrica
Nesse contexto em que Deus, representado como “Senhor todo poderoso”, criador
do Céu e da Terra, terá o seu lugar ocupado por um geômetra: aquele dotado de
conhecimentos matemáticos usados para medir, demarcar e dividir o mundo
terrestre em figuras geométricas, organizadas e ordenadas pelo movimento da força
do equilíbrio, a Terra deixará de ser o foco do olhar divino e os homens deixarão de
ser por Ele vigiados. O deslocamento de esse poder divino para a racionalidade do
homem, nutrida pela ciência da razão, resultará na reorganização e na reordenação
do espaço geopolítico do território europeu, segundo os teóricos do conhecimento.
Trata-se de um modelo científico globalizante que, em sendo global, também será
74
totalitário: uma qualidade da ciência do mundo moderno e de suas tecnologias, cujo
marco está situado entre os séculos XII e XIII, estendendo-se por aqueles a eles
subsequentes, de modo a responder pela sistematização da estrutura da sociedade
moderna, no século XVIII.
Nesse tempo de desconstrução da sociedade medieval inscrita na construção da
sociedade moderna, é preciso ressaltar a retomada dos territórios conquistados
pelos mouros que professavam a religião muçulmana, na Península Ibérica, por
longas batalhas ocorridas entre os séculos VIII e XV. Ao longo desse processo de
expulsão, situa-se a aculturação pela miscigenação entre o povo ibérico e o povo
árabe, visto que os árabes procuravam esposas entre a população local e, casados,
ensinavam às suas esposas e seus filhos sua língua, seus rituais religiosos e seus
costumes em geral. Assim, desse processo de miscigenação entre povos de matizes
culturais diferenciados emergem novas gerações de nativos românicos que,
diferenciados dos demais habitantes da Península invadida, passam a ser
denominados moçárabes. A essa mudança genético-cultural-linguística é preciso
considerar aquela referente à propagação e à aquisição de conhecimentos
tecnológicos referentes à cavalaria de guerra – as selas de montaria, os estribos, a
ferradura, os freios, as armaduras e as armas – que transformariam saqueadores
das sociedades rurais artesanais em guerreiros invencíveis do exército das
Cruzadas. Ao longo desse tempo das lutas pela Reconquista, as ordens religiosas
se tornaram mais ricas e mais poderosas do que a nobreza, tendo a Igreja como
herdeira da maior parte de terras reconquistadas dos infiéis.
A junção de recursos econômicos, o salvacionismo e o empenho antirreformista do
Estado Romano contribuíram para a estruturação do poder aristocrático clerical que
regeria o destino dos povos ibéricos e garantiria a absorção da tecnologia da
revolução mercantilista, voltada para o aperfeiçoamento de conhecimentos, no
campo do processo industrial de fundição de ferro e maior aprimoramento das armas
de fogo, dos moinhos de vento, da bússola magnética, de aparelhos ópticos, de
mapas, de cronômetros, de máquinas hidráulicas, de ligas metálicas, do quadrante,
do astrolábio, das cartas celestes e outros inventos. É nesse e por esse contexto de
inovações que a velha Europa passou a reorganizar e reordenar suas antigas
fronteiras feudais e, sob a regência de novas monarquias, emergiram os atuais
75
Estados nacionais, desde então, assegurados pela formação cada vez mais
sistematizada do Império mercantil salvacionista. Desse novo-outro modelo de
formação destacam-se as monarquias ibéricas que assumiram papel de relevo no
campo das navegações de que resultou a descoberta do quarto continente da Terra:
a América.
A representação terrestre, estendida a sua espacialidade delimitada por outro lugar
referente ao novo continente, agora implicará a reconstrução das cartografias já
existentes que, até então, orientavam os trajetos e trajetórias por onde os homens
da época se deslocavam pela terra e pela água. Assim, a hipótese ilustrada por
Macróbio – (cf. Cartografia de 1483, Teodósio Macróbio; item 2.3.1.5 deste Cap. p.
54) – que postulava existir um hemisfério meridional, compreendido como uma
enorme massa de terra antípoda, exigiu dos cartógrafos a representação desse
outro hemisfério meridional. É nesse sentido que, entre os séculos XVI (1581) e
XVIII (1774), essa outra/nova representação se frz bastante diversificada, por meio
de variados suportes gráficos, a saber: pinturas, desenhos, mapas e esculturas e
incidirá, mais especificamente, sobre a representação de “A América” e dentre elas
se destaca a de Johannes Bleau, de 1662. Segundo Certeau (2007), a América só
passou a existir quando começou a ser representada de forma simbólica ou
alegórica, o que faculta afirmar ter sido a representação, abaixo, aquela que
predominou no imaginário da sociedade europeia do século XVII.
76
Figura 8: América (1662), de Johannes Bleau.
Fonte: Oliveira, 2014, p. 9
77
Observado o fato de as representações alegóricas, segundo Alleau (2001), sempre
funcionarem como formas simbólicas, sejam elas expressas por discursos orais ou
escritos, gráficos ou iconográficos, elas sempre têm outros discursos de um dado
campo do saber por ancoragem, visto que as representações alegóricas se
qualificam como um discurso que sempre reinterpreta esses outros. Assim,
transcorridos dois séculos da descoberta de novo continente, suas terras incógnitas
ainda povoavam e habitavam o imaginário dos homens de épocas remotas como
uma região fantástica e exótica, fazendo-se tema comum nas conversas de
marinheiros em quaisquer das tavernas sempre lotadas à beira dos portos do Mar
Mediterrâneo e nos salões da nobreza de todas as cortes europeias. Logo, essas
histórias vão se intensificando com os relatos de viagens e com as histórias orais de
degredados e navegadores que por aqui estiveram, passaram e daqui retornaram
para contá-las e propagá-las àqueles que para cá não vieram, nem viriam.
Nessas e por essas inúmeras fabulações, a América se fazia representar aos
homens daquela época pelas práticas dos discursos orais que, proferidos pelos
homens dos mares e dos salões das cortes, qualificavam-se como fatos
contraditórios, em relação àqueles por eles vivenciadas nas terras da Europa.
Coube, portanto, ao desenhista-pintor condensar essas situações contraditórias,
reordenando esses discursos do senso comum no texto pictográfico, acima, para
instituir entre eles similaridades de sentidos que se estendem para além da
categoria que instaura uma oposição entre essas situações contraditórias. É no
encontro entre essas similaridades, situadas além das contradições aparentes, que
a América é representada alegoricamente de modo a apontar caminhos para além
de interpretações conflitantes.
O quadro, acima, que reproduz a gravura colorida, retrata a América perpassada por
três planos, quais sejam: a terra, o mar e o céu de onde a luminosidade intensa dos
raios solares que aquece um rotineiro dia da região dos trópicos, e incide sobre as
águas do mar, sobre a extensão da terra no seu entorno e sobre as nuvens do céu.
Essa luminosidade organiza as figuras que compõem o quadro que tem no seu
centro uma altiva e exótica mulher indígena, símbolo do novo continente, à
semelhança dos outros continentes representados também por figuras femininas.
Topicalizada nas suas qualidades ou características a ela inerentes, essa indígena,
78
embora mantenha em suas mãos arco e flechas – armas usadas para identificar os
caçadores das sociedades tribais que habitavam o novo Continente – segura-os com
a delicadeza e singeleza próprias dos gestos das sociedades dos civilizados.
Situada de costas para o mar, o seu olhar fixo, revelador de tensão e preocupação,
se estende na direção do horizonte à sua frente: à terra que abre em toda a sua
extensão para o interior. Seu rosto, moldado por nariz e boca bem feitos é
emoldurado por uma longa cabeleira negra que se estende por suas costas,
destacando a cabeça enfeitada por um grande cocar de penas coloridas, mesmo
material usado na confecção da tanga que cobre as partes íntimas do seu corpo e
no acabamento das flechas, armazenadas na aljava presa às suas costas por uma
alça que lhe cruza o dorso. Esse dorso desnudo deixa à vista os firmes seios que
aludem tanto à fertilidade dos povos americanos, quando a sua sexualidade
associada ao seu caráter selvagem. Descalça, a rainha indígena apoia o pé direito
sob a cabeça de um homem branco colonizador; degolada e trespassada por uma
de suas flechas: símbolo da beligerância, da barbárie e do canibalismo – práticas
que povoavam o imaginário europeu sobre a representação do novo homem da
nova terra.
Segundo Oliveira (2014), nas representações pictóricas da América são frequentes
os registros de exóticos animais dos quais se tinham notícias povoavam a nova
terra: enormes jacarés, lagartos, tatus, papagaios ou araras. Nesse texto pictórico,
em específico, um grande lagarto acompanha essa mulher indígena e seu aspecto
feroz e ameaçador está voltado para a cabeça degolada. À frente dos pés da
América ainda estão depositadas algumas barras de prata: representação das
grandes riquezas dessa terra que, embora perigosa, deveria ser conquistada e
colonizada para a grandeza econômica da velha Europa. À esquerda e ao fundo da
gravura, negros africanos misturam-se aos nativos e, ambos na condição de
escravos, estão envolvidos nas atividades de mineração. Juntos fazem uso de
bateias e outros instrumentos rudimentares de extração por meio das quais retiram
grande quantidade de minérios das minas encravadas no solo e transforma-os em
barras que serão transportadas para os reinos ibéricos. Essa prática extrativista –
atividade econômica do setor primário – abastecerá o mercado europeu com as
riquezas naturais transportadas e transferidas a bordo do navio que, ao fundo,
ancorado na baia, espera esse precioso carregamento. Ainda próxima à praia,
79
observa-se uma feitoria colonial que, rodeada por coqueiros, fecha a perspectiva do
traçado da terra em direção ao mar: símbolo do modelo de ocupação, de uso e de
posse da nova terra descoberta (ALLEAU, 2001).
No plano celeste, no seu centro, sentado nas nuvens está um Deus louro que
segura uma grande cruz e olha de forma piedosa para as figuras à sua direita, onde
estão representados: a) um indígena, identificado pelo cocar colorido que traz na
cabeça e pelo sorriso estampado na sua face; ele faz a oferta de uma cabeça
humana para esse Deus; b) um colonizador que identificado como soldado ou pirata
– por trajar uma capa esvoaçante azul sobre uma camisa vermelha com detalhes
amarelos nas mangas e, com a cabeça protegida por um chapéu ou capacete do
tipo medieval, enfeitado por um penacho vermelho – está de costas para o Deus
louro, todavia, tem o dedo indicador da sua mão esquerda apontado para ele e, com
a mão direita, empunha uma espada que está sendo desferida sobre um anjo caído;
c) um anjo caído, identificado pela tradição judaico-cristã como um ser intermediário
entre o homem e Deus, que vencido na batalha travada no céu, afasta-se do plano
divino, convertendo-se em um espírito do mau. Esse anjo está assim representado
por um par de asas semelhantes à dos morcegos, vestimenta negra e os seus dedos
longos e finos assemelham-se a garras afiadas: alegoria do paganismo combatido
na América pelo poder da espada do colonizador.
À esquerda do Deus e no canto superior direito da figura, dois anjos de asas
coloridas, representados por duas crianças rechonchudas e virtuosas, têm a
perspectiva de seus olhares voltados para a indígena que, de costas para o espaço
celeste, tem à sua direita o anjo caído para onde aponta a sua seta, muito embora
esteja alheia ao que acontece no céu. Essa sua posição – estar de costas – também
impede que ela veja a faixa vermelha estendida entre as mãos dos dois anjos,
mensageiros de Deus, onde se lê “AMERICA”, grafada em letras maiúsculas e
douradas. O traçado construído pelo olhar “do alto para o baixo” fecha a perspectiva
por meio da qual o colonizador e o indígena, cada um a seu modo ou consoante
seus matizes culturais diversos, fazem suas oferendas a Deus, enquanto a América
Indígena, iluminada pelo mesmo Sol, tem sobre si a proteção do bem e do mal,
embora ainda incapaz de lançar o olhar para o alto, para o simbolismo da cultura do
colonizador e do modelo de interpretação do continente por ele descoberto.
80
Abaixo reproduzido, o quadro de Cubero que retrata, em 1682, vinte anos após o
quadro de Bleau, a América na sua correlação com a África, a Ásia e a Europa.
Figura 9: Alegoría de lãs cuatros partes del mundo (Sebastin Cubero – 1682)
Fonte: O‟Gorman (2003, p. 148)
81
Pontua que o novo Continente – inculto, selvagem e exótico, conforme descrito
acima – passou a ocupar espaço terrestre no Universo. Nele e por ele, identifica-se
a Europa com as insígnias de sua realeza, ao lado das outras três partes do mundo
terreno, todas identificadas por figuras femininas, ao redor da grande esfera
terrestre. As duas primeiras – a Europa e a Ásia – se sobressaem por ocuparem o
primeiro plano do quadro, representadas por duas mulheres ricamente vestidas em
contraposição à negra africana e a índia americana; ambas seminuas e
posicionadas em segundo plano, atrás das duas primeiras figuras. A figura feminina
europeia é identificada pela coroa que traz na cabeça; pelo cetro, na mão direita e a
mão esquerda apontada para um brasão com insígnias reais. A seus pés, está um
vaso, sob a forma de chifre de onde transbordam frutos e, ao lado do mesmo, têm-
se uma tiara e outros objetos de ouro. A figura feminina asiática é identificada pela
guirlanda de flores que ornamenta a sua cabeça; suas mãos vazias estão erguidas
para o alto e aos seus pés está um vaso, sob a forma de chifre, de onde
transbordam flores e um incensário. Observa-se que esses respectivos vasos
simbolizavam, outrora, a fertilidade e a riqueza; hoje, são emblemas da agricultura e
do comércio, fonte da abundância e da felicidade.
A África e a América assumem posições contrárias àquelas das imagens europeia e
asiática: a africana segura no ombro uma presa de marfim do elefante: símbolo da
força do maior animal terrestre e da riqueza daquele continente. A imagem da
América traz, à cabeça, um cocar de penas coloridas e suas mãos seguram um arco
e uma flecha: símbolo da caça, dos costumes e dos hábitos exóticos desse outro
novo povo. Segundo O‟Gorman (2003), o quadro já expressa uma hierarquia entre
os povos desses Continentes: a Europa situa-se no seu topo, não por razões de
riqueza ou abundância, por ser considerada o lugar mais perfeito para a realização
plena dos valores e da cultura do pensamento cristão que orienta ou governa a vida
humana. Assim, ela mantém a posição de território continental que sempre
assumira, assumiu e assume o destino imanente e transcendente da humanidade;
portanto, capaz de manter a autenticidade do paradigma de valores e crenças
capazes de assegurar o equilíbrio das outras três partes do mundo. Essa alegoria,
portanto, qualifica simbolicamente a Europa como senhora do mundo e dos povos
82
que ocuparam a Terra, dentre elas a de Vera Cruz ou Brasil, dentre outras dos
outros continentes.
2.5 Algumas Considerações Finais
A construção do modelo de contexto pelas interseções entre o curto e o longo tempo
possibilitou identificar os tempos profundos das camadas do subsolo da memória de
outros povos, na organização deste Capítulo, registradas sob a forma de
documentos cartográficos e iconográficos ou diferentes tipos de textos – produzidos
por mitólogos, filósofos, literatos, astrônomos, geógrafos, antropólogos e
historiadores – cujas leituras foram orientadas por fundamentos da teoria do
conhecimento. Esses fundamentos facultaram identificar os matizes das raízes,
onde se inscreve a história do descobrimento do Continente Americano, extensiva à
do descobrimento do Brasil, como projeções do imaginário que, ainda qualificadas
como utopia, foi concebida como o principal evento extraordinário da própria História
da Humanidade.
Esse procedimento deslocou o pesquisador para lugares do espaço, marcados por
diferentes e variadas temporalidades, possíveis de serem escavados pelo propósito
de neles encontrar e identificar o marco referente à construção da concepção de
universo, bem como suas reinterpretações. Essas reinterpretações explicitam-se por
um conjunto de significações de todas as coisas que existiram, existem ou se crê
existirem e, organizadas de forma articulada entre si, por leis próprias, das quais
resulta num todo harmônico: o cosmos. Nessas e por essas escavações da longa
temporalidade foi possível identificar a construção da representação de „cosmos‟,
num primeiro momento, pelos egípcios e pelos hindus e, posteriormente, pelos
primeiros cientistas da Europa Ocidental que retomam e reinterpretam a cosmologia
hindu pelo princípio da esfericidade da Terra. Esse processo de reinterpretação
implica a recontextualização da mudança de ponto de vista de um olhar que incide
sobre o politeísmo que, gradativamente, passa a incidir sobre o monoteísmo: outro
olhar que reinterpreta e condensa a diversidade de mitos no mito do Deus único e
esse, por sua vez, é recontextualizado pelo mito da ciência. O marco desse último
processo referente à concepção de cosmos – implicado na construção do modelo de
83
representação da Terra, concebida como forma esférica, terá os estudos
aristotélicos como fundamento e como fundação dos estudos científicos do mundo
moderno.
A sistematização dos pressupostos assegurados pelo marco da teoria da ação,
concebida por Aristóteles como origem da força por meio da qual os corpos se
movimentam no espaço, levaria Ptolomeu a representar a Terra como uma esfera
imóvel que, destituída da força produtora de movimentos, se torna ponto de
referência em torno do qual se movimentam os demais astros, de forma regular. A
revisão da teoria ptolomaica por Copérnico mantém a concepção da forma do
movimento dos astros; contudo, desloca o planeta Terra do lugar central por ele
ocupado pela representação geocêntrica para nele situar o Sol e realocar a Terra
como o terceiro planeta que, junto com os demais, gira em torno do astro solar.
Desse e por esse deslocamento da posição estática, para aquela em que ela se
movimenta em torno do Sol à semelhança dos demais planetas, tem-se a
reinterpretação da teoria geocêntrica pela heliocêntrica e, desde então, a
representação esférica da Terra se torna um saber científico socialmente
compartilhado por todos os povos do globo terrestre.
Nesse contexto, pode-se observar que os modelos pelos quais o cosmos foi
representado possibilitaram a compreensão do universo como um sistema de
elementos articulados entre si pela força dos movimentos dos astros. Dentre essas
interpretações situa-se aquela que era assegurada pela compreensão de ser o
universo uma esfera incomensurável, composta por duas zonas ou regiões situadas
no entorno de um único centro. Uma denominada zona celeste, onde situariam as
estrelas e os planetas, identificados pela cosmologia aristotélica por Mercúrio,
Vênus, Marte, Júpiter, o Sol, a Lua; outra; denominada por região sublunar, abrigaria
a terra, a água, o fogo, o ar. Na zona celeste reinava o equilíbrio dos movimentos
perfeitos e regulares dos astros, imunes à corrupção, já na zona sublunar reinava o
desequilíbrio dos movimentos imperfeitos e irregulares dos seus elementos; era uma
zona de corrupção de que se originavam todos os seres vivos.
A Terra, inscrita nesse e por esse processo de interpretação, é compreendida como
um lugar desse espaço povoado pelas impurezas, devido às imperfeições daqueles
84
que nela habitavam e, como consequência, dos modos de agir e de proceder desses
seres imperfeitos, chegava-se a um estado excessivo de corrupção que levaria Deus
a provocar o dilúvio. Resultado desse castigo divino está na destruição da vida
terrena, exceção feita à família de Noé e a um único exemplar de cada uma das
espécies animais, de modo que, após o dilúvio, entre as águas, surgem três grandes
ilhas – Europa, África e Ásia, doadas por Noé a seus três filhos, respectivamente:
Jafé, Sem e Cam.
Nesse e por esse processo de interpretação mítica, o renascer da vida, pela
preservação de cada espécie dos seres que habitava a Terra, implicará, por um
lado, o seu repovoamento ao longo dos séculos e, por outro lado, a reconstrução de
sua forma com ilhas interligadas e cercadas por grande quantidade e água que as
distanciavam de uma quarta cuja existência era possível. Ao contrário das três
primeiras habitadas pela população pós-diluvianas, essa outra seria habitada por
antípodas; homens cujos pés eram voltados para trás e, por isso, seus rastros eram
enganosos, faziam crer que caminhavam em sentido contrário ao dos povos das
outras ilhas, mas, na verdade, os sentidos de suas caminhadas eram semelhantes
àqueles dos homens das três outras ilhas.
Em síntese, poder-se-ia considerar, conforme dados registrados neste Capítulo, que
a razão de o Continente Americano ter sido concebido pelo imaginário como uma
ilha levaria Colombo, por um lado, a crer que ele havia aportado, primeiramente, nas
“Antilhas” e, por outro lado, Cabral rebatizaria as Terras de Santa Cruz por ele
descobertas por Ilha de Vera Cruz. Tal procedimento perpetua a crença registrada
na antiga Cartografia de Andreas Bianco, de 1436, conforme documento registrado
abaixo, em que se destaca a Ilha do Brasil.
85
Figura 10: Carta de Andreas Bianco (1436)
Fonte: Barroso, 2000, p. 39
Assim, os resultados das escavações da história da humanidade apontam que, ao
longo do tempo – embora suas concepções de universo, cosmos e Terra tivessem
sido reinterpretadas por estudiosos ou pesquisadores e estivessem registradas em
língua escrita – o imaginário da população da época conservou e conservará as
concepções herdadas da mitologia, da religião e da ciência. Entretanto, o avanço
lento dos conhecimentos humanos, considerados como descobertas de outras-
novas concepções ou interpretações de outros-novos saberes favoreceram e/ou
favoreceriam o desenvolvimento de outras-novas tecnologias. Segundo os
86
etnolinguistas, é preciso considerar ser a descoberta um ato de conscientização de
algo existente, contudo, ainda não percebido. Desse modo, a descoberta do quarto
continente, por exemplo, implicou um ato mental que, embora alimentado pelo
imaginário, sob a forma de uma ilha movediça, era diferenciada dos três outros
continentes.
Após a descoberta, fez-se necessário, por um lado, manter o conceito da Terra
como um dos planetas do sistema solar e, por outro, estender a concepção
geográfica de ser ela composta por três continentes e uma ilha. A descoberta de um
quarto continente, não mais concebido como uma ilha movediça, habitada por
antípodas, implicou um ato mental de modificação, substituição e reconstrução da
cartografia terrestre.
87
CAPÍTULO III
A CONSTRUÇÃO DO PROJETO IBÉRICO PORTUGUÊS NO
CONTEXTO DAS GRANDES NAVEGAÇÕES: O ACHAMENTO DO
BRASIL PELA DESCOBERTA DO CONTINENTE AMERICANO
(...) a existência de um território desconhecido (...) parcela perdida da humanidade que não se sabia como classificar, entender e nomear. (...) O encontro com a América seria o feito mais grandioso da história moderna Ocidental (...) (Schwarcz; Starling)
3.1 Considerações Iniciais
A articulação entre as concepções de cultura, ideologia e utopia, conforme
considerado por Ricouer, já registrado no Capítulo I (cf. p. 32), incide sobre as
pontas dos laços que, amarrados entre si, formam os nós dos laços que entrelaçam
os fios dos episódios da História Oficial sobre o Descobrimento do Continente
Americano (1492) e do Brasil (1500). Esses nós se fazem cada vez mais frouxos e
terão os seus fios – que asseguravam até então a representação da concepção de
ilha – gradativamente esgarçados com a descoberta desse outro-novo Continente.
Assim, a reinterpretação da concepção de ilha pela de continente terá o seu marco
inicial em 1507, na cartografia ou Planisfério de Martin Waldsemüller: primeiro
documento que representa a quarta parte do mundo, de sorte a comprovar que
Colombo descobrira o Novo Continente terrestre e não uma ilha como era até então
pressuposto (Cf. p. 46). Observa-se ainda que, em 1436, o cartógrafo Andreas
Bianco divulga uma carta geográfica onde destaca a Antília e, dentre várias outras
ilhas, pontua a “Ilha do Brasil”. Nessa(s) ilha(s), agora continente, também, não
habitava um povo “ilhéu” que se diferenciava dos europeus, dos asiáticos e dos
africanos por serem antípodas.
Nessa acepção, as projeções construídas ao longo da história, que antecede tais
descobertas, referentes ao ponto de vista mítico e religioso, passam a ser refutadas
por um ponto de vista perspectivizado por observações científicas que deixam de
confirmar hipóteses assumidas e defendidas pelos navegadores daquela época.
88
Tais projeções estão inscritas no documento denominado “Mundos Novos” 3 que,
redigido por Américo Vespúcio, tematiza a viagem realizada por esse navegador
italiano a serviço do rei de Portugal, D. Manuel, quando percorreu grande parte do
litoral americano e verificou que o referido território não se fragmentava em ilhas.
Vespúcio, por isso, afirmou se tratar, na verdade, de um novo continente, outro-novo
mundo e, conforme os seguintes dados redigidos de próprio punho por esse
navegador, em 1503, informou aos homens do velho mundo daquela época que:
No dia 17 de agosto de 1501 surgimos na costa daquela terra, agradecendo a Deus com solenes preces, e celebrando uma missa cantada, a qual terra reconhecemos não ser ilha, mas sim um continente
4 pois corremos ao longo
do seu litoral, sem a rodear, e era povoada de inúmeros habitantes e muitas sortes de animais silvestres, que não se encontram nos nossos países, e muitas outras coisas nunca de nós vistas (...) (RIBEIRO; MOREIRA, 1992, p.103)
Pondera Fonseca (2004) que, em razão das informações acima citadas, justifica-se
o fato de esse novo continente se chamar, desde então, América, em homenagem
àquele que comprovou não ser ele uma ilha – ainda que Cristóvão Colombo tenha
sido o seu descobridor, em 1492. Portanto, o equívoco de Colombo em sua viagem
inicial bem como o de Cabral os levou a deduzir que não se tratava de uma nova
Terra, mas da já conhecida Índia. Por conseguinte, a representação que ainda
habitava o imaginário dos comandantes dessas expedições, embora eles já se
beneficiassem das invenções resultantes do desenvolvimento do conhecimento
científico, era orientada pelos matizes da cultura e da ideologia cristãs que negavam
a concepção de ser o mundo terrestre formado por quatro continentes. Tal
procedimento assegurava a ambos os navegadores manterem a concepção triádica,
reiterando o modelo da interpretação teológica de conhecimentos (cf. Cap.II, item:
2.3.1.5, p. 66) que organizavam e ordenavam a formação sociocultural-ideológica
gestada e mantida pela Igreja Católica Romana.
3 Esse foi um dos documentos mais célebre dos primeiros anos da conquista da América. Entre 1503
a 1512, teve treze edições latinas, dez alemãs, inúmeras versões italianas, além de muitas outras feitas na França e na Holanda. Essa notoriedade deu-se em função de que, pela primeira vez, um navegante registrou a unidade territorial de centenas de léguas do Novo Mundo que se vinha somar aos continentes já conhecidos como Europa, Ásia e África. 4 Os grifos desse fragmento são de responsabilidade deste pesquisador e não do autor.
89
Nesse contexto, voltado para a reinterpretação da história do longo tempo em
diálogo com a história do médio tempo, pondera Morin (2002), a necessidade de se
considerar as inter-relações entre estruturas desestruturas reestruturas das
velhas e das novas formações socioculturais. São essas que respondem por novos
modelos de representação da formação social do mundo moderno. Por esse
movimento dinâmico de relações interativas, pode-se pontuar, por exemplo, que os
valores ordenados pela cultura politeísta de caráter mítico sofreram transformações
que levaram a sociedade daquela época a uma desordem. Essa desordem – que já
carregava em suas entranhas outra ordem emergente – daria origem ao modelo de
formação sociopolítico medieval, ordenado pelo marco da cultura monoteísta: aquela
de caráter teocêntrico. Assim sendo e ao longo desse período da formação da
sociedade moderna – implicado na ordenação-desordenarão e reordenação desses
dois modelos de formação sócio-político-cultural-ideológicos –, gradativamente,
ordena-se um terceiro modelo de formação sociopolítico-cultural-ideológico: aquele
estruturado por valores da sociedade científica do mundo moderno: uma sociedade
de caráter antropocêntrica ou racionalista. Logo, as desordens e as ordens, inscritas
no modelo de sociedade monoteísta, serão intensificadas ao longo dos Séculos XIII,
XIV e XV pelo desenvolvimento de uma nova-outra ordem, fundada na revisão de
produções científicas e de tecnologias herdadas das sociedades politeísta e
monoteísta.
Segundo Morin (2003, p. 228), essa nova ordem emergente, inscrita em desordens,
e vice-versa, sempre assegurará o devir, a inovação, a criação, a evolução e o
desenvolvimento do novo-outro modelo de sociedade. A ordem e a desordem,
portanto, são duas faces de um mesmo e único fenômeno: a primeira é o que
desencadeia a constância, a regularidade, a repetição; a segunda é o que
desencadeia a previsão, a angústia da incerteza diante do incontrolável, do
imprevisível e do indeterminável: a irregularidade, o turbilhão, a agitação, o desvio,
ou seja, as projeções do futuro incerto. Afirma esse autor que
(...) uma sociedade composta de pura desordem é tão impossível quanto um universo de pura desordem. Uma sociedade composta de pura ordem não é menos possível. O sonho demente de ordem social pura é traduzido pelo campo de concentração e é punido com a desordem infinita do assassinato. (MORIN, 2003, p. 228)
90
Nessa acepção, é preciso observar que os nós a que nos referimos, à medida que
esgarçam os fios e afrouxam os laços que entrelaçam cultura, ideologia e utopia, em
um modelo de formação social instável, vão sendo retecidos por outros laços que
reentrelaçam novos-outros matizes da cultura emergente e novos valores da
ideologia projetados pela utopia. Esse movimento gera incertezas quanto ao novo
modelo de formação sociopolítico-econômico emergente, ou seja, aquele que
responderá por valores dessa outra formação sociocultural-histórica, como sempre
foi e será a reinterpretação daquelas que a antecedem.
Por conseguinte, a sociedade do mundo moderno, entre os Séculos XV e o XVIII,
estará voltada não só para a expansão do conhecimento científico e para a
reinterpretação de velhas tecnologias, mas também para profundas transformações
orientadas por esses novos conhecimentos nos campos sócio-político-econômicos,
sempre adaptados às novas condições, situações ou circunstâncias qualificadas por
esses novos conhecimentos. Denominado Século das Luzes, o Século XVIII
responderá não só pela sistematização das produções científicas fecundadas ao
longo da civilização humana, gestadas nas entranhas da Baixa Idade Média, de
modo a assegurar o nascimento da sociedade científico-tecnológica que será
desenvolvida a partir do Século XIX, extensiva aos Séculos subsequentes que não
exclui aquele do nosso Século XXI.
As considerações acima pontuadas orientaram a organização das pesquisas
registradas neste Capítulo, cujo objetivo foi o de ampliar e reordenar conhecimentos
da História oficial sobre a descoberta do Continente Americano e o achamento do
Brasil, inscritas em documentos que facultam a construção do cenário por meio do
qual as grandes navegações ibéricas foram ou estão sendo representadas, no corpo
desta pesquisa. Essa história tem os seu registro em documentos que incidem sobre
textos informativos capazes de assegurar a produção de sentidos que apontam para
as rupturas inscritas nas permanências do modelo de formação sociocultural-
ideológico referente à compreensão dessa mesma história. Instituído e
reinterpretado por esse modelo de compreensão, essa velha história responderá
pela compreensão interpretativa e sistematização dos impérios mercantis
salvacionistas: fundamento e fundação do sistema político-econômico dos novos
Estados colonizadores da velha Europa, dentre os quais estão o Estado Ibérico
91
português que arrasta consigo a fertilização, a gestação e o nascimento do Estado
Brasileiro – tema desta investigação.
Os resultados da pesquisa registrados neste Capítulo deverão assegurar
reinterpretações dessa História oficial por meio da qual a identidade do povo
brasileiro foi desconstruída-construída-reconstruída de modo a desvelar os
processos de reinterpretações de um modelo dos matizes culturais politeísta-pagãos
– aqueles que orientaram a formação das sociedades tribais indígenas e africanas –
por aqueles do modelo de matizes monoteísta-cristãos que qualificavam e/ou
qualificam os matizes da cultura teocêntrica monoteísta das sociedades modernas
da nova-velha Europa. Essa sociedade moderna, nos seus encontros e
desencontros com essas sociedades tribais, transforma as primeiras e são por elas
transformadas ao longo do tempo de vários e diferentes encontros de vivências
comuns, por meio das quais aprendem a conviver e a se tornarem respectivamente
outros-novos homens.
Nesse e por esse espaço, marcado pelo fluxo do tempo e ocupado por essas
convivências, esses homens aprendem a ser semelhantes por suas diferenças, ou
vice-versa; mas para tanto, ocupam-se de compreender e reinterpretar suas
diferenças pelos marcos de suas semelhanças. A história, nesse sentido, têm por
referenciação os lugares onde estão depositados os detritos dessas vivências que
vão sendo enterrados no subsolo e quando descobertos pelos arqueólogos-
historiadores – aqueles que não só descobrem, mas também reinterpretam suas
descobertas num dado presente – os restos desses detritos orientam os marcos
do(s) modelos de compreensão de conhecimentos desse passado remoto.
Trata-se, portanto, de processos de ressemantização de velhos cenários históricos
por meio de projetos sobre os quais implicará a ocupação de outros-novos lugares
para o exercício de papéis sociais das esferas do espaço público – bem como do
privado – contudo, por meio de outras posições e dos exercícios de outros papéis
sociais. Essas posições para o exercício de outros-novos papéis implicaram e
implicam mudanças de atitudes e ou de comportamentos sociopolítico-culturais e
ideológicos, ou seja, de hábitos, costumes, tradições, ideais, crenças, etc.
(RIBEIRO, 2006; DaMATTA, 1997), à medida que se dá o processo de formação e
92
de institucionalização do próprio Estado Nacional Ibérico português. Toma-se, para
tanto, como marco desse processo de ressemantização a planificação do projeto
das grandes navegações pela reinterpretação desse cenário histórico, onde se
inscreveram as cenas da descoberta dessas novas-terras, nelas situado(s) o(s)
encontro(s) e desencontro(s) entre o novo e o velho homem.
3.2 A Planificação do Projeto Português: o cenário das grandes navegações
ibéricas
O cenário no qual se inscreve o projeto ibérico português, na curta temporalidade
dos estudos registrados por esta pesquisa, explica-se pelo entrelaçamento dos
acontecimentos ou fatos da longa temporalidade em interseção com aqueles da
média temporalidade, nele implicado o enlace e o desenlace dos nós de que
resultam desconstruções reconstruções de velhas ordens, onde e quando as
desordens sócio-político-econômicas estavam em processo de reordenação. Trata-
se, portanto, do tempo e lugar ocupado pela formação e sistematização dos novos
Estados Modernos europeus, ou seja, da média temporalidade, quando focalizada
pelo homem dos tempos modernos do Século XIX, XX e XXI, por exemplo. Todavia,
quando focalizada pelos homens dos Séculos XV e XVI, por exemplo, equivaleria a
curta temporalidade: aquela em que os fatos ocorridos são representados pelo
passado-presente a eles contemporâneos – um tempo que, encrustado no passado
próximo, não se dissocia do futuro presumido, projetado. Por conseguinte, à medida
que o templo flui e nos distanciamos do marco desse presente, que sempre carrega
consigo o acontecido nas malhas dos fios do acontecível, o passado-presente se faz
objeto do médio tempo e, nesse e por esse movimento de distanciamento, o
passado remoto mais se dilui em lembranças de fatos que foram representados
como aqueles do médio tempo. Considerado por essa perspectiva, o cenário se
reveste do dinamismo das interações entre essas temporalidades, conforme
apontam os estudiosos sobre esse tema.
As considerações, acima pontuadas e orientadas pelos estudos de Braudel (1989)
têm como fundamento os processos de representação da história da humanidade,
seja sob a forma de acontecimentos reais ou imaginários – o acontecido, o
acontecimento ou acontecível. Afirma Braudel (1989) que a compreensão e a (re)
93
interpretação dos acontecimentos históricos, seja sob a forma de eventos ordinários
ou extraordinários, apenas se deixam representar quando situados no espaço da
curta, média e longa temporalidade. Para esse estudioso, é por/na interseção entre
essas três dimensões temporais que os acontecimentos se revestem de
significações e se fazem compreensíveis, de modo a facultar contínuas
interpretações ou reinterpretações de fatos vivenciados no passado por
acontecimentos do tempo presente, além de projetar o futuro.
Assim sendo, as significações referentes à transmudação do modelo de organização
da comunidade europeia, sob a forma de sociedade religiosa, governada e
administrada pelo estado eclesiástico, para o modelo de sociedade laica, terá a
identificação dos seus sentidos primeiros no Século XI5. No espaço ocupado por
esses sentidos primeiros, está implicado o renascimento comercial e urbano de que
resultou o início de novas relações sutilmente identificadas entre as posições e
papéis sociais exercidos por aqueles que representavam os diferentes grupos da
sociedade daquela época.
Le Goff (1995) – ao situar seus estudos nesse mesmo cenário, construído por esse
modelo de reorganização e reordenação, para nele situar os diferentes grupos
sociais que interagem no espaço dessa formação sociocultural-ideológica – afirma
aos seus leitores que, nos primeiros Séculos da Idade Média, esses grupos ainda
conservavam muitos dos matizes ou traços culturais dos grupos sociais que
asseguravam a estrutura e o funcionamento da sociedade romana. Nesse sentido, é
possível considerar, por um lado, a existência de um esquema múltiplo e
diversificado de práticas sociais que representavam certo número de categorias
sócio profissionais, a saber:
5 A identificação desse marco transformador implicaria, não só a construção das primeiras
universidades do século XII, orientadas pela produção de pesquisas e saberes, mas também a revisão da teologia de Santo Agostinho substituída por aquela de São Tomás de Aquino, ou seja, por uma interpretação teológica perspectivizada por pressupostos aristotélicos, cujo grau de aceitação levaria à sobreposição dos princípios da racionalidade humana.
94
(...) os civis, os militares, os artífices, os médicos, os mercadores, os advogados, os juízes, as testemunhas, os procuradores, os patronos, os mercenários, os conselheiros, os senhores, os escravos ou servos, os mestres, os alunos, os ricos, os medianos, os mendigos. Nesta lista, encontramos as especializações das categorias profissionais e sociais características da sociedade romana, que teria, talvez, sobrevivido em certa medida na Itália do Norte. (LE GOFF, 1995, p. 11)
Nesse tempo e além da Itália do Norte, ou seja, em outros lugares do espaço da
Europa, por outro lado, é possível identificar um modelo de ordenação e organização
de grupos sociais de caráter dual: os clérigos e os leigos, os poderosos e os fracos;
os grandes e os pequenos; os ricos e os pobres, os homens livres e os não livres.
Dentre esses grupos, identifica-se uma minoria que monopoliza as funções político-
econômica e espiritual e uma maioria desses grupos que se sujeitam aos primeiros.
Entretanto, entre os Séculos VIII e o XI, essa mesma sociedade, já estava
organizada por um modelo triádico: o rei deveria ter homens de oração, os
sacerdotes; os homens de cavalo, os guerreiros, e os homens de trabalho, os
camponeses. Articuladas entre si, essas categorias ordenadoras dessas três
classes, embora diferenciadas, exerciam papéis sociais complementares de modo a
reinterpretar as relações harmônicas e simbólicas, inscritas no episódio bíblico,
referente aos três filhos de Noé.
Afirma Le Golf (1995) que, a partir do Século XI, é possível identificar rupturas no
modelo tripartido da sociedade feudal que possibilitaram reconhecer processos de
laicização do capitalismo ascendente, ou seja, as profundas transformações desse
modelo triádico de formação sociocultural ideológico por meio das quais é possível
reconhecer o surgimento de um esquema quadripartido como modelo de
organização de outra-nova sociedade. Esse novo modelo, mais flexível do que o
anterior, funcionaria como marco transformador de uma economia de mercado que
se fechava sobre si mesma para o de uma economia aberta que assumiria posição
de relevo na organização do poder da sociedade moderna: os mercadores ou
burgueses.
Trata-se de outro-novo grupo social que, naquela época, já não se predispunha a se
submeter ao poder dos grupos clericais ou militares; embora seus membros se
fizessem responsáveis pelo desenvolvimento urbano e pela crescente divisão do
trabalho. Observa-se que os membros desse grupo serão identificados como
95
“desmancha-prazeres”, conforme fragmento de um sermão inglês do Século XIV:
“Deus fez os clérigos, os cavaleiros e os lavradores; mas o demônio fez os
burgueses e os usurários” (LE GOFF, 1995, p. 16). São esses “demônios” que
passarão a ocupar o lugar de poder e prestígio dos reis, dos clérigos e dos militares,
despois de expulsá-los de suas posições político-social.
É nessa e por essa desconstrução inscrita na reconstrução desse novo cenário
equivalente a um novo modelo do contexto histórico em que o curto e/ou médio
tempo dialoga com o longo tempo (cap. II), de modo a articular as projeções futuras,
que se situa o projeto ibérico português, fundado ou orientado pela construção do
Império Mercantil Salvacionista: marco das grandes navegações.
3.2.1 A formação do Estado Português pelo Império Mercantil Salvacionista
O Império Mercantil Salvacionista – desenvolvido a partir do Século XV – a princípio
e, segundo Ribeiro (1968), é um desdobramento dos Impérios Despóticos
Salvacionistas – de 1000 d. C. a 1440, pelos árabes, otomanos e visigodos na
propagação do Islamismo e do Catolicismo – que asseguraram uma nova onda de
expansão da sociedade pastoril, em razão do uso de outras ou novas tecnologias
que favoreceram o aprimoramento e a invenção de armas, cuja matéria-prima era o
ferro. Esse desenvolvimento tecnológico favoreceu a ampliação da cavalaria de
guerra e intensificou a força do poder político atribuído a esse grupo social, formado
por homens guerreiros: representantes do papel social que era exercido na esfera
das crenças religiosas de caráter messiânico, de modo a assegurar a proteção dos
detentores do poder do próprio sistema feudal. A associação entre forças político-
religiosas e tecnológicas, cujas primeiras manifestações datam dos Séculos II e VI a.
C., no Oriente, apresentava poder
(...) aliciador de todas as energias étnicas de sua população para a destinação sagrada de impor ao mundo a verdade divina de que eram depositários. A essa missão divinal aliam-se naturalmente, os interesses econômicos em que importava sua transformação em senhorios de um mundo reordenado de conformidade com a palavra do profeta (RIBEIRO, 1968, p.121).
96
As estratégias essenciais de expansão e de aculturação desse império estiveram
voltadas para a conquista de novos territórios, seguida da dominação opressiva e
arbitrária de seus habitantes nativos que, fundamentadas num modelo político-
colonizador e asseguradas por práticas escravocratas, estiveram orientadas e
ordenadas pela imposição da doutrina religiosa. É no espaço ocupado por esse
outro modelo de formação sociocultural que, no fluxo do tempo de sua constituição,
por um lado, resultaria na substituição dos estratos dominantes que subjugavam os
grupos sociais desfavorecidos por estratos formados por grupos de burocratas.
Outra implicação significativa dessa transmudação, por outro lado, seriam os
processos de miscigenação que dariam origem ao novo homem cujo pai será o novo
estado conquistador e cuja mãe6 será a conquistada.
Tais mudanças referentes a essa outra-nova ordem político-social instituída, por um
lado, serão denominadas por Império Despótico Salvacionista pelos estudiosos dos
modelos de formação das sociedades humanas. Esse Império Despótico, por outro
lado e focalizados por uma perspectiva voltada para o desenvolvimento econômico,
implicará rupturas ou reinterpretações do sistema econômico feudal e será
denominado Império Mercantil Salvacionista. Trata-se, portanto, de um modelo de
formação sociocultural, cujo sistema político está orientado por processos de
reinterpretações dos antigos modelos políticos imperiais das sociedades da
civilização antiga, cuja fundação foi edificada pelos matizes do comércio e
ultrapassou os limites do simples sistema de trocas, ou escambo, que, iniciado pelos
mercadores da antiga região da Mesopotâmia, agora, instituíram a moeda como
valor do sistema financeiro.
6 Segundo Laraia (1988), Ribeiro e Moreira Neto (1991) e Caldeira (2006), as sociedades tribais eram
interpretadas pela concepção de serem as crianças filhos apenas de seus pais, ou seja, apenas fecundadas pelos homens. Nesse contexto, o útero materno das mulheres indígenas, por exemplo, era representado como um simples “saco”, cuja função seria a de proteger e guardar, ao longo de nove meses de gestação, o embrião fecundado apenas e somente pela “injeção dos sêmens paternos” e, sendo assim, ao nascer, o novo ser seria apenas “filho do pai”. Essa reinterpretação da cultura indígena pela cultura religiosa do branco europeu levaria o colonizador a batizar esses seus filhos, frutos de relacionamentos com as índias, como brasileiros; e, ainda que tivessem os nomes das mães cancelados dos batistérios, eram por elas criados e, por isso, aprendentes de suas respectivas línguas maternas. A alguns poucos era dado o privilégio de aprender a ler e a escrever a língua falada pelos seus pais nas escolas dos padres catequistas, tornando-se padres.
97
Afirma Ribeiro (1968) que o Império Mercantil Salvacionista surgiu no continente
europeu, mas em duas áreas distintas do seu território: uma mais oriental e outra
mais ocidental: contudo, formadas por comunidades socioculturais distintas, isso, é,
em território russo e no ibérico7. Essas duas comunidades tiveram propósitos
comuns: mobilizarem-se para expulsar os árabes que haviam conquistado e
apossado de suas terras, assim procedendo, para ampliar seus respectivos
territórios. O resultado dessas guerras de reconquistas, em se tratando dos ibéricos,
por um lado, foi o restabelecimento de uma estrutura de poder aristocrático-clerical
cuja consequência foi o abandono de tecnologias de irrigação e de adubação,
dominada pelos árabes.
Essas práticas tecnológicas propiciavam a produção de excedentes no campo da
alimentação e permitiam o aumento do número de agricultores aliciáveis para outras
tarefas como, por exemplo, a construção e/ou aprimoramento de obras hidráulicas
necessárias à irrigação em alta escala. Expulsos os árabes da Península Ibérica, os
lavradores voltam a viver em estado de mendicância uma vez que não aprenderam
com os árabes a produzir alimentos necessários para alimentar a si e aos rebanhos
de que dispunham. Essa mudança de estado se deve ao fato de serem os
mulçumanos aqueles que dominavam os conhecimentos sobre a estrutura e
funcionamento das atividades no campo da engenharia hidráulica, principalmente
das regiões áridas, onde vivia uma densa população. Assim com a expulsão dos
árabes, os produtivos campos agrícolas foram transformados em campos de
pastagem para a criação de ovelhas, ou seja, os lavradores não foram capazes de
assimilar e manter a cultura da irrigação nas terras onde viviam.
Consequência desse retrocesso – implicado no retorno ao estágio sociocultural que
qualificava a revolução agrícola, marcada pela lavoura e pelo pastoreio: a primeira,
voltada para produção de tubérculos e cereais; a segunda, pela domesticação e
criação de animais – foi a mendicância em lugar da fartura de outrora e a fome em
7 Os impérios mercantis salvacionistas surgem na passagem do século XV ao XVI, em dois territórios
ocupados pelos árabes. A Ibéria avança sobre o Atlântico e lança-se à conquista e à subjugação de
novos mundos no além-mar. A Rússia estendeu-se sobre a Eurásia continental, acabando também
por chegar à América com a ocupação do Alasca, nos confins do seu território. Assim, é a Europa –
herdeira tanto das invenções tecnológicas como dos princípios institucionais do patrimônio muçulmano – que
lança as bases da primeira civilização mundial (RIBEIRO, 1998, p. 167).
98
lugar da abundância de víveres, de que resultaria a diminuição da população no
campo e nas cidades. Os povos da Península, por outro lado, instrumentalizaram-se
para a Reconquista e capacitaram-se para absorver e generalizar a tecnologia que
responderia pela Revolução Mercantil e a eles possibilitaria avançar sobre o
Atlântico e lançar-se à conquista e à dominação dos povos e terras do novo mundo,
engajando-se à expansão salvacionista.
Nesse cenário de construção-desconstrução e reconstrução, de rupturas e
permanências inscreve-se a história da formação do Estado Moderno português, sob
a forma de território independente do reino espanhol de Leão e Castela, ou seja, do
Estado Moderno Espanhol, ambos situados nas terras peninsulares da Ibéria, no
Século XI.
3.2.1.1 A Reconquista: marco da formação do Estado Português
A expansão do Império Romano implicou, segundo Mattoso (1998), a colonização da
Península Ibérica, ao longo de sete séculos subsequentes ao Século III a. C. e dela
resultaria a implantação da língua latina e do catolicismo como língua e religião
oficiais, por um lado. A propagação do cristianismo e a invasão daquele Império
pelos bárbaros, extensiva a todas as regiões por ele conquistadas, por outro lado,
levaria à decadência do referido Império. Desse modo, as terras peninsulares foram
divididas em dois reinos: o dos suevos, cuja capital é Braga e dos visigodos, cuja
capital é Toledo. A invasão árabe ocorreu no Século VII e se fez extensiva até o
Século XI, quando os ibéricos buscaram reintegrar a região Norte àquela do Sul, por
meio da unificação territorial dos antigos condados de Porto Cale e de Coimbra,
formando o “Condado Portucalense”.
A administração desse Condado foi entregue ao conde Henrique de Borgonha, sob a
forma de dote pelo seu casamento com D. Teresa ou Tareja, filha ilegítima do rei
Afonso VI de Leão e Castela, em 1096. No entanto, somente em 1139, o filho
legítimo de Henrique de Borgonha e D. Teresa de Portugal – após a morte do rei
Afonso VI, seu avô – expulsa a sua mãe do condado por ele administrado e se
autoproclama “Rei de Portucale”. Assim procedendo e com o propósito de repovoar
99
e ampliar a extensão daquele território português, agora um território autônomo,
contraria a posição de D. Tareja para quem o Condado Portucalense deveria
manter-se subordinado ao Rei de Leão e Castela, continuando aquela região
dependente da Espanha.
Segundo Mattoso (2001), D Afonso Henriques I, valendo-se do poder político
centralizador, redefiniu as fronteiras territoriais, formou um exército nacional para
cuidar da segurança desse novo Estado, criou cargos públicos para auxiliar a
administração monárquica, unificou os sistemas legais e monetários, manteve os
pactos e os contratos entre o clero e a nobreza, além de construir uma sólida aliança
com a burguesia. Observa-se que os povos peninsulares, da época desses dois
reinos, falavam o galego-português – idioma formado a partir do Século IX na antiga
província da Galícia, ao norte de Portugal e da Espanha, e a ele incorporou o léxico
dos povos castelhanos, dos bascos, dos germânicos e dos provençais: idiomas que
asseguravam a comunicação oral entre esses diferentes povos peninsulares.
O latim propriamente dito, ensinado nas escolas sob a forma de registro escrito, terá
o seu uso assegurado pelo discurso religioso e circunscrito aos “homens doutos” da
época, bem como a língua usada pela diplomacia, pela literatura e pelo comércio.
Assim, a implantação do português como língua oficial do Estado Ibérico seria um
projeto planificado pelo rei D. Dinis I, O Lavrador, mas a sua descrição gramatical só
seria feita, em 1536, por Fernão D‟ Oliveira e por João de Barros, em 1540. Por
conseguinte e, à semelhança de outros novos Estados do Continente europeu que
estiveram ocupados em sistematizar uma política linguística para assegurar suas
respectivas unidades políticas, o português será usado como instrumento de
controle, poder e acesso pelo Estado colonizador em terras da África, da Ásia e do
Brasil. Reitera-se, assim, a estratégia usada pelo Estado Imperial de Roma na
condição de invasor e/ou colonizador das terras europeias, por meio do uso político-
administrativo da máxima: Para onde vai o Estado, vai a sua Língua Oficial,
conforme pontuava Nebrija, primeiro gramático da língua espanhola
(AUROUX,1992).
É nesse contexto que os feitos de D. Afonso Henriques I e seus sucessores
asseguraram a criação, a redefinição e a sistematização das fronteiras geopolíticas,
100
assim como D. Dinis asseguraria o traçado das fronteiras linguísticas entre os limites
o Estado de Portugal e o da Espanha. Contudo, a extensão e a consequente
ampliação do território português – para além dos limites dessas suas fronteiras
peninsulares do Continente europeu, previsto pelo projeto desse primeiro monarca
português – somente seria planificado pelo Infante D. Henrique, o navegador, quinto
filho do rei D. João I, da dinastia de Avis que reinou no período de 1385 a 1433.
3.2.1.2 O Estado Português pelos limites da consciência feudal
Afirma Mattoso (2001) que a formação de um Estado político nacional não se
sustenta apenas pela delimitação de suas fronteiras geográficas, cujos limites
marcam o “até onde” o poder de um rei ou chefe se faz extensivo, sendo a fronteira
o limite de suas ações político-administrativas que incidem sobre os habitantes da(s)
comunidade(s) por ele governada(s) e administrada(s). Isso significaria que, além de
uma dada fronteira geográfica, a população do novo Estado também poderia estar
sujeita e assujeitada ao poder de outro rei ou governante.
Pontua esse autor que, embora no Século XIII e naqueles a ele subsequentes, os
historiadores afirmem que as tropas e as populações do novo Estado de Portucale
circulassem pelos/nos limites geográficos do novo território, esse fato não garantia e,
ainda, não garante o sentimento ou a consciência de identidade dessas
comunidades como membros efetivos de uma mesma nação estatal. Portanto, ao
longo desse tempo, Portugal se fizera capaz de se construir como outro-novo Estado
dentre muitos do velho Continente europeu, contudo, ainda não se fizera capaz de
se construir como nação. Logo, a construção dessa consciência nacional ainda não
envolvia simultaneamente todos os sujeitos ou membros dos diferentes grupos
constitutivos daquele Estado, visto que a construção da nacionalidade é um
processo lento que se faz extensivo à história do longo e não do curto tempo da
formação de um povo.
Observa-se, assim, a reinterpretação da noção do espaço ocupado na passagem da
formação social organizada sob a forma de feudos para aquela dos Estados
nacionais. No que se refere aos feudos, a administração do senhor feudal
101
possibilitava a presença e a materialização de sua pessoa entre os seus vassalos; a
administração política dos Estados, por sua vez, não mais assegurava a
possiblidade de o rei estar presente entre os membros da população do seu reinado,
principalmente daquelas populações distantes da corte. A ampliação desse novo
espaço territorial, agora, ultrapassava os limites das muralhas dos antigos castelos
feudais e estendia-se até os limites das fronteiras geográficas que davam início ao
poder de outro chefe do novo estado. Essas mudanças, como todas aquelas
relacionadas ao processamento de novas informações não ocorrem ao mesmo
tempo e no mesmo lugar vivenciado e ocupado por todos os habitantes dos antigos
feudos, alocados em outros lugares. Assim, o sentimento de pertença desses
habitantes ainda não havia sido reinterpretado pelo modelo das relações sociais
instituídas e institucionalizadas pelo novo modelo estatal, mas por aquele modelo
por meio da qual a sociedade era organizada em feudos.
Exemplo significativo desse modelo de representação – por meio do qual a
concepção de “estado-nação” é construída para além e aquém do curto e do médio
tempo que ultrapassa os limites da construção de um estado moderno – é registrada
por Mattoso (1998, p. 14), por uma anedota sobre o rei D. Luís I, “O Popular”, que
reinou entre 1861 a 1889. Estando a passeio, a bordo do seu iate, ao cruzar com
um barco de pescadores, a eles perguntou se eram portugueses e obteve a seguinte
resposta: Nós outros? Não, meu Senhor! Somos da Póvoa do Varzim! Nesse
sentido, para que o governante não seja um vigilante longínquo, quase ideal, um
desconhecido porque dele só se ouve falar, é preciso que ele faça, construa
histórias, “dando relevo a episódios vitoriosos, aos perigos, ameaças e sofrimentos
de onde os reis, chefes ou governantes sempre saem triunfantes, para transmitirem
intacto aos seus sucessores o reino que receberam dos seus antepassados”.
A nação, por conseguinte, vive, alimenta-se de eventos extraordinários por meio dos
quais o passado cria e recria o modelo de representações de um dado tempo
presente. A história da Idade Média é aquela do rei e dos seus cavaleiros; a
moderna, precisa estender a heroicidade do rei àquela dos seus próprios súditos,
dos seus governados. Assim procedendo, a representação dos reis ou do corpo
administrativo de um Estado incide sobre seus reis, seus reinos e reinóis, sejam eles
102
súditos, vassalos ou governados, pois todos devem viver e conviver para e pelo
bem comum.
Nesse contexto, os cronistas que passam a registrar as histórias dos reinos e de
seus reis terão papel relevante na construção da nacionalidade dos estados
modernos, ainda que cancelassem do corpo desse seu trabalho,
As guerras civis, as contradições e as lutas internas (...) geralmente ocultadas, a não ser, em alguns casos, para contar histórias de traições sempre vencidas e castigadas. Assim, através dessa imagem ideal dos reis, perpassa implicitamente a noção de que a continuidade do poder garante a segurança do conjunto dos seus vassalos. (MATTOSO, 1998, p.22)
Contudo, essa prática social exercida por um cronista-historiador somente terá início
no reinado de D. Duarte I8, “O Eloquente”– filho primogênito de D. João I, “O de Boa
Memória” – irmão do Infante D. Henrique, “O Navegador”, fundador da Escola de
Sagres, em 1417.
Nesse tempo de dificuldades para desencadear ou promover mudanças nos
processos de representações, capazes de transformar as condições e,
consequentemente, os estados ou modos de pensar e de agir, o infante D. Henrique
retoma o projeto do primeiro rei do Estado de Portucale para planificar outro de seus
objetivos: estender suas fronteiras territoriais para o “além-mar”. Aquelas que
separavam geograficamente o Estado Português do espanhol, já haviam sido
traçadas, estabelecidas; todavia, o Infante Navegador se defrontava com um
obstáculo milenar: o modelo de representação mítica que os navegantes da Ibéria
construíram sobre o “Mar Tenebroso” e ainda habitava seus respectivos imaginários
(cf. Cap. I, item 1.4.1, p. 32).
Outro grande desafio era o abastecimento do reino e da sua população, pois a
quantidade de terras férteis daquele Estado era bastante reduzida e o domínio de
tecnologias que favoreceram o desenvolvimento agrícola, com a expulsão dos
mouros, não permaneceu entre os colonos ibéricos, conforme já registrado neste
Capítulo (cf. item 3.2.1, p. 93). Essa necessidade se fazia extensiva à produção de
8 Coube a Fernão Lopes, primeiro cronista e historiador de Portugal, nomeado por D. Duarte como
guarda-mor da Torre do Tombo, escrever, sob a forma de crônicas, as histórias dos antigos reis, orientando-se pela leitura de documentos arquivados na Biblioteca da referida Torre.
103
riquezas para sustentar o novo reino, voltada para o comércio de especiarias
produzidas no oriente: uma exigência do novo modelo econômico que estava sendo
implantado pelos burgueses.
Observa-se que a situação acima é intensificada pelo bloqueio da rota comercial
marítima do caminho do Mar Mediterrâneo, por onde circulavam as valorizadas
especiarias orientais, transportadas e negociadas na Europa, entre 1453 a 1566.
Esse acontecimento dificultou e reduziu o comércio português, por um lado; mas,
por outro, incentivou o desenvolvimento da velha tecnologia naval que
impossibilitava a navegação para além da costa do “Mar Tenebroso”. É nesse e por
esse cenário que a ultrapassagem desses obstáculos poderia assegurar o
fortalecimento e a valorização do poder real e do próprio povo: um marco
significativo para a construção da nacionalidade portuguesa e de uma história
gloriosa.
3.2.1.3 A expansão do Estado Português pelo marco da Escola de Sagres
A ultrapassagem dos obstáculos, acima registrados e vivenciados no final da
dinastia Afonsina, ocorre com o reinado de D. João I, na dinastia de Avis, em 1385,
quando Portugal reunia condições favoráveis para empreender um novo tipo de
negócio – aquele relacionado às navegações marítimas, pois, já: a) tornara-se um
país com fronteiras definidas e o poder político unificado; b) dispunha de condições
geográficas favoráveis para realizar esse novo negócio – situava-se nas fraldas do
Oceano Atlântico, denominado “as lentes do mundo”, por sua posição estratégica; c)
formara uma classe mercantil mais dinâmica que a velha nobreza feudal que
facilitaria a modernização da monarquia d) contava com o apoio de um grupo de
investidores burgueses com grandes interesses pelos negócios marítimos.
São essas novas condições que asseguram a planificação do projeto de D.
Henrique, “O Infante Navegador” que, ao retornar vitorioso pela conquista de Ceuta,
passa a se ocupar dos recursos ou meios de que necessitava para poder assegurar
o controle das rotas comerciais que começavam a ser abertas pelas águas do Mar
104
Tenebroso: aquele que, depois de navegado, passa a ser reconhecido por Oceano
Atlântico.
Afirma Ribeiro (1992) que o príncipe D. Henrique – homem situado entre duas
civilizações: a religiosa e a científica, embora fosse temente a Deus, era crente nos
saberes dos avanços científicos da sua época – incumbiu seu irmão D. Pedro, de
visitar todas as bibliotecas europeias em busca de livros, mapas e quaisquer outras
informações que contribuíssem para o desenvolvimento do seu projeto
expansionista. Reuniram-se, assim, na vila de Sagres, os melhores e mais
experientes pilotos, astrônomos, matemáticos, cartógrafos e construtores de navios
da época, vindos, sobretudo, de Gênova e Veneza – cidades cujos habitantes se
dedicavam à navegação e às práticas comerciais do Mediterrâneo. Agrupados em
Sagres, passaram a associar novos-outros conhecimentos a tecnologias, herdadas
dos chineses e dos árabes e, desse modo, construíram a nau dotada de leme-fixo,
da bússola magnética, do astrolábio, da vela chamada latina, de cronômetros, de
cartas celestes e canhões que assegurariam e asseguraram as travessias
oceânicas.
O primeiro resultado dessa travessia foi o mapeamento de toda a extensão da costa
africana, onde instalaram feitorias, cuja função era servir como entrepostos
comerciais capazes de favorecer a captura e o aprisionamento de milhares de
negros – a princípio, levados para Portugal como escravos e, posteriormente,
negociados nas costas da América portuguesa. O segundo resultado dessa
travessia foi o descobrimento do Continente Americano, complementado por aquele
do Brasil, quando Colombo buscava encontrar o oriente, navegando pelo ocidente, e
Pedro Álvares Cabral, segundo a História Oficial, desembarca “por acaso” nas terras
da “Ilha do Brasil”.
Os recentes estudos historiográficos bem como os etnolinguísticos, orientados pela
leitura de documentos antigos, datados de um período anterior à descoberta oficial
desses navegantes, por um lado, possibilitam considerar a função comercial dessas
feitorias e, por outro, afirmar que os descobrimentos de Colombo e de Cabral não
foram obras do acaso. Um desses documentos é a Bula Romanus Pontifex, de 8 de
janeiro de 1454, emitida pelo Papa Nicolau V, por meio da qual legaliza e
105
sacramenta a expansão europeia, fato que asseguraria ao Rei português, por um
lado, apropriar-se e colonizar as terras conquistadas no continente africano. Essa
autorização se fará, por outro lado, extensiva ao direito de escravizar os negros lá
aprisionados, conforme atesta o fragmento a seguir:
(...) concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras, de invadir, conquistar, subjugar quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo aplicar em utilidade própria e dos seus descendentes (...) (RIBEIRO; MOREIRA NETO, 1992, p. 65-66).
E assim sendo, Portugal se torna senhor e proprietário dessa região terrestre da
costa africana e de todos os bens rentáveis nela existentes. Mas, seis meses após
Colombo haver chegado à América, novo documento equivalente a esse primeiro é
emitido e promulgado pelo Papa Alexandre VI: a Bula Inter Cetera que, para
assegurar o peso e valor dessa partilha entre o reino português e o espanhol,
estende ao segundo o domínio e posse exclusiva sobre as terras e povos
encontrados por Colombo na “Ilha do Oriente”, conforme fragmento abaixo:
(...) sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhas sobreditas, e os moradores e habitantes delas, e reduzi-los à Fé católica (...) todas (essas) ilhas e terras firmes achadas e por achar, descobertas ou por descobrir (...) a Vós e a vossos herdeiros e sucessores (Reis de Castela e Leão) pela autoridade do Deus onipotente a nós concedida em São Pedro (...) vo-las doamos, concedemos e entregamos com todos os seus Domínios, Cidades e Fortalezas, Lugares, Vilas, direitos, jurisdições e todas as pertenças. E a Vós e aos sobreditos herdeiros e sucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos por senhores das mesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição (...) (RIBEIRO; MOREIRA NETO, 1992, p. 66-8).
Ressaltado o fato de que Colombo – embora tenha tido a sua viagem financiada
pela coroa espanhola – fizera uma escala em Lisboa onde se encontrara,
primeiramente, com D. João II e o informara sobre o fato de que havia chegado às
terras do Oriente, navegando pelo Atlântico. Esse fato levaria o rei português –
apoiado por estudiosos da Escola de Sagres – a não atribuir valor de veracidade à
informação recebida devido ao pouco tempo gasto por Colombo na sua viagem de
travessia. Não acreditando na sua chegada à Índia e diante essa outra Bula de
1493, envia uma proposta ao rei espanhol, sugerindo-lhe que o paralelo das
Canárias fosse o limite das navegações entre esses dois povos. Se assim fosse
acordado, as terras mais meridionais, onde se encontravam as terras brasileiras,
106
pertenceriam a Portugal e não apenas à Espanha. Após vários desacordos e muitos
estudos realizados, com a assessoria de cosmógrafos e estudiosos do tema, as
cortes de Portugal e de Espanha decidem, em Tordesilhas, em 05 de junho de 1494,
firmarem o Tratado que concedeu aos portugueses o limite do Oceano Atlântico e
aos espanhóis, o Pacífico e as Índias, conforme o fragmento a seguir:
(...) para o bem da paz e da concórdia e pela conservação da afinidade e amor que o dito Senhor Rei de Portugal tem pelos ditos senhores Rei e Rainha de Castela, de Aragão, etc., praz de suas Altezas, e os seus ditos procuradores em seu nome, e em virtude dos ditos seus poderes, outorgaram e consentiram que se trace e assinale pelo dito mar Oceano uma raia ou linha direta de polo a polo; convém a saber, do polo ártico ao polo antártico, (...) como dito é, a trezentas e setenta léguas das ilhas de Cabo Verde em direção à parte poente, por graus ou por outra maneira, que (...) tudo o que até a que tenha achado e descoberto, e daqui em diante se achar ou descobrir pelo dito senhor Rei de Portugal e por seus navios, tanto ilhas como terra firme desde a raia direita e a linha dada na forma supracitada (...) fique e pertença ao dito senhor Rei de Portugal e aos seus sucessores, para sempre. (RIBEIRO; MOREIRA NETO, 1992, p. 69-74)
Esse terceiro documento implicaria a anulação da Bula Inter Cetera, seguida da
elaboração e propagação de nova Bula: a Dudumsiquidem, datada de 26 de
setembro de 1493. Ressalta-se que o Tratado é firmado após um ano da descoberta
da América por Colombo e em um tempo que antecede por seis anos e dez meses a
descoberta do Brasil, em 1500.
Nesse novo contexto em que se inscreve esse primeiro contrato internacional –
firmado por esses dois estados ibéricos e voltado para as negociações das terras
ultramarinas descobertas e por descobrir, devidamente reconhecido pelo poder
eclesiástico papal – situam-se conflitos provocados por outros estados europeus que
foram excluídos do Tratado de Tordesilhas; embora eles também já participassem
dos negócios das navegações para a África, as Índias Orientais ou a América por
meio de investimentos.
107
Figura 11: Representação da linha imaginária do Tratado de Tordesilhas
Fonte: http://www.trabalhosescolares.net/viewtopic.php?f=37&t=2056. Acesso em: 20 fev,
2015.
Assim, embora todos esses documentos resguardassem direitos de posse, uso e as
heranças desses reinos transferidas, respectivamente, aos sucessores daqueles que
viriam o ocupar o poder real desses dois reinos, eles não impediriam a invasão do
território americano e a prática do comércio exploratório que nele ocorreria pelos
países que foram excluídos dos registros dessa documentação. Os franceses, por
exemplo, e desde o início do Século XVI, fizeram várias incursões no litoral brasileiro
e, em 1555, invadiram a região do Rio de Janeiro e fundaram uma colônia francesa
chamada França Antártica. Em 1612, na segunda tentativa de invasão, fundaram a
França Equinocial, na região do Maranhão. Em ambas tentativas, foram expulsos
pelos portugueses. Os holandeses, por sua vez, invadiram as terras brasileiras duas
vezes: no ano de 1624, tomaram Salvador e, 1630, invadiram Pernambuco com o
objetivo de comercializar o açúcar, sendo expulsos, em 1645, deixando várias
benfeitorias na capital pernambucana.
Outra consideração relevante faz remissão “às terras e ilhas descobertas e por
descobrir” nos documentos oficiais que antecedem à Carta de Caminha e, por meio
dos quais, é possível identificar o cancelamento do qualificativo “novas” atribuído à
108
designação “terra”, no que se refere à primeira bula papal; contudo, no segundo
desses documentos, o uso desse qualificativo já se faz presente – fato que
justificaria a posição do reino português, em consequência de saber da existência
das terras que oficialmente precisariam ser descobertas, e a exigência de formalizar
um tratado com o reino espanhol.
Pressupõem os historiadores investigados e os leitores do quadro por eles traçados,
referentes aos limites desse cenário, que os espanhóis não refutaram as condições
impostas pela primeira bula papal, segundo a qual era direito dos portugueses
invadirem e se apropriarem das descobertas situadas ao Norte do Território
Africano, bem como de seus habitantes naturais, reduzindo-os à condição de
escravos. Todavia, Portugal se contrapõe aos direitos atribuídos pelo papa ao rei da
Espanha, inscritos na Bula Inter Cetera, seja por saber ou ter indícios suficientes
sobre a existência de ilhas ou terras firmes, para além do Mar Tenebroso, seja pelo
uso do qualificativo “nova terra por descobrir”, pois o grau de probabilidade de que
elas de fato existiam era muito alto, senão o da certeza de suas existências: uma
posição, agora compartilhada com o reino espanhol.
Faz-se necessário salientar que, enquanto os reis portugueses buscavam atingir as
Índias, navegando pelos oceanos Atlântico e Índico, Colombo tinha a pretensão de
atravessar o Oceano Atlântico em direção ao extremo ocidente para unir a Europa
com a Ásia e, embora a reação oficial e a científica tenham compartilhado a crença
de que ele, de fato, teria alcançado a Índia, o seu ponto de chegada fora a América,
em 12 de outubro de 1492, na ilha de Guanaani, em San Salvador, região batizada
de Antilhas ocidentais, dois anos antes da assinatura do Tratado de Tordesilhas.
Essa confusão de Colombo parece ter facilitado o projeto português de apossar-se
das terras brasileiras.
É nessa acepção que os acordos de que resultaram o Tratado de Tordesilhas
sempre foram assessorados pelos estudiosos da nova cartografia da época, quando
coube ao reino português tornar-se o senhor das terras cujas costas marítimas eram
banhadas apenas pelas águas do Mar Tenebroso ou Oceano Atlântico. E, assim
combinado e registrado, o Estado Português se fez senhor absoluto das Terras
africanas por ele conquistadas, invadidas e possuídas tanto quanto aquelas do
109
Brasil, no Continente Americano: colônias gestadas pelo sistema sociopolítico
econômico colonialista, cujo sistema de produção seria assegurado pelos
investidores desse modelo capitalista e pela escravatura do modelo mercantil-
salvacionista. (O´GORMAN, 2003).
3.3 O Cenário da Descoberta e seus Episódios: antecedente e consequentes
A construção do cenário onde são representadas as cenas sobre a descoberta do
Brasil, tecidas e entretecidas entre si de modo a organizar os fatos, situa-se no
espaço pela linha da média temporalidade e está registrada em documentos oficiais,
conforme acima mencionado, sob a forma de bulas e um tratado. Esses documentos
antecedem, no tempo e espaço, aqueles das navegações que visavam às
descobertas das terras e ilhas propriamente ditas que, no curto tempo da memória
das personagens históricas – aquelas que planificavam e executavam as ações cujo
propósito era ampliar as fronteiras de seus respectivos estados ibéricos – ainda
estavam por descobrir, conforme se buscou registrar. Logo, eram projeções que,
embora habitassem o imaginário dos homens daqueles estados, sob a forma de
projetos, deles exigiam um plano de ações para serem vivenciadas e encontradas.
A esses documentos acrescentam-se as “cartas pessoais” que serviram para trocas
de informações entre os reis portugueses e seus emissários, dentre as quais se
destaca aquela enviada por Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel, em 1500,
informando-o sobre a travessia entre a costa marítima portuguesa e a brasileira,
bem como sobre a chegada à terra nova9. Trata-se de um documento de autoria de
um escrivão da armada cabralina que fora incumbido de nela embarcar por ordem
real, pois o monarca português sabia que, em razão das circunstâncias favoráveis
que impulsionavam a economia e o comércio do seu tempo, fora possível a abertura
de caminhos marítimos costeiros: resultado de usos de novos conhecimentos
científicos e de suas tecnologias marítimas. A prova desse sucesso fora a primeira
viagem às Índias Orientais que, comandada por Vasco da Gama, em 1497, não só
transpôs o Cabo da Boa Esperança, como retornou a Portugal com as especarias a
serem comercializadas na Europa.
9 Dentre tantas versões e edições da Carta de Caminha, para as análises desta tese, optou-se pela
edição de 1943, de autoria de Jaime Cortesão.
110
Nesse cenário do médio tempo, precedido do episódio acima sintetizado que, por
decisão do Rei D Manuel, o Venturoso, ao armar uma segunda frota para a Índia a
ser comandada por Pedro Álvares Cabral, projeta nela embarcar com seus
tripulantes não só o escrivão Caminha, mas também o experiente astrônomo, o
Mestre Johan Faras, incumbido de informá-lo sobre a natureza ou posição
astronômica da nova terra. Assim e juntamente com a “Carta” sobre a viagem e o
descobrimento da nova terra, as informações, abaixo, são enviadas a D. Manuel por
meio de um navio que retorna a Lisboa, no dia 1º de maios, enquanto o restante da
frota segue viagem para as Índias Orientais. Faras registra os seguintes dados para
informar a exata localização da terra descoberta:
(...) tomamos a altura do sol ao meio-dia e achamos 56 graus, e a sombra era setentrional pelo que, segundo as regras do astrolábio, julgamos estar afastados do equinocial por 17 graus, e ter, por conseguinte, a altura do polo antártico, em 17 graus, segundo manifesto na esfera. (RIBEIRO; MOREIRA NETO, 1992, p. 91-92).
Segundo leitores proficientes dos dados acima, referentes a medidas que situavam a
nova terra pelos parâmetros da astronomia, conforme marco estabelecido pelo
Tratado de Tordesilhas e pela Bula Dudumsiquidem, outra informação significativa
foi o primeiro registro da constelação do Cruzeiro do Sul:
(...) Somente mando a Vossa Alteza como estão situadas as estrelas do Sul, mas integral está cada uma, não o pude saber, antes me parece ser impossível, no mar, tomar-se a altura de nenhuma estrela (...). (...) as estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as de Carro, e as estrelas do pólo Antártico ou sul, é pequena como a do Norte e muito clara, e a estrela que está em cima de toda a Cruz é muito pequena (RIBEIRO; MOREIRA NETO, 1992, p.92).
O episódio referente ao embarque desses dois profissionais por ordem real parece
comprovar o esforço do rei português em assegurar as negociação e elaboração do
Tratado de Tordesilhas por saber da existência de terras e ilhas por descobrir e
sobre elas garantir suas respectivas posses. Observa-se, pelas cartografias, abaixo,
o trajeto da viagem da esquadra cabralina, considerando a linha imaginária
estabelecida pelo referido tratado e representada na figura 12.
111
Figura 12: A rota da esquadra cabralina
Fonte: http://www.salvadorcentral.com/guide/index.php/culture/salvador-history. Acesso em: 20
fev.2015.
3.3.1 O cenário da descoberta: a cena da travessia entre dois portos
Os dados registrados no mapa acima orientam a identificação do tempo e do lugar
por onde a esquadra de Cabral transitou, observado o fato de que esse trajeto foi
descrito por Caminha, de forma condensada, nos primeiros seis parágrafos da sua
Carta para retomar os 43 dias navegados. O ponto de partida foi o Porto de Belém
de onde a esquadra navegou em direção ao Sul da Costa Africana, dela se
afastando parcialmente em direção às Ilhas Canárias e Cabo Verde. Esse
afastamento em linha perpendicular, gradativamente vai se ampliando, ora de forma
mais rápida, ora mais lenta em razão da intensidade do vento e da força das
correntes marítimas.
No sétimo parágrafo, o autor se desloca entre esse tempo condensado da travessia
da esquadra onde se encontrava para situar o tempo expandido e vivido dia a dia,
nele inclusa a ancoragem das naus em terra firme. Esse relato diário tem por marco
112
inicial o dia 21 abril, quando são identificadas ervas do tipo “botelho” e aves
denominadas “fura-bucho”: indícios de estarem próximos a uma região costeira da
terra e não mais em alto mar; no dia subsequente, avistam um “grande monte, muito
alto e redondo” – o Monte Pascoal e “a terra chã com grandes arvoredos” que seria
denominada Terra de Vera Cruz – e, por fim, no dia 23, lançam âncora “em frente à
boca de um rio. E chegaríamos a essa ancoragem às dez horas pouco mais ou
menos”. (CORTESÃO, 1943, p. 201). Assim, os dez dias subsequentes são
descritos de forma pormenorizada ao longo das 25 páginas que se seguem às duas
primeiras desses sete parágrafos.
Nesse contexto, por meio do qual se fez o confronto dessa cartografia com a Carta
de Caminha, é relevante considerar que, desde os primeiros trajetos costeiros
marítimos de sucesso – implicados na descoberta e colonização das Ilhas Canárias
(1336), Madeira (1419), Açores (1427), Cabo Verde (1458), assim como São Tomé e
Príncipe (1471), também, o fato de Bartolomeu Dias dobrar o Cabo da Boa
Esperança (1488) e chegar ao Oceano Índico – segundo Cortesão (1943, p. 67), em
todas essas viagens os escrivães de ofício nelas tinham papel definido: registar, sob
a forma de relatórios, “bens a bordo e distribuição de presas e mantimentos, termos
de falecimentos e bens do defunto” bem como compras e vendas negociadas
durante esses trajetos. Caminha, na sua condição de escrivão, ao produzir ao esse
seu documento, deles se diferencia pela sua curiosidade científica e cultura literária:
uma composição textual discursiva por meio da qual descreve, sob a forma de diário
de bordo, os acontecimentos relevantes do percurso navegado. Apresenta-se,
abaixo sob a forma de síntese, o deslocamento no tempo do trajeto dessa viagem
cabralina, para pontuar a descoberta do novo território no trajeto entre dois lugares:
aquele da partida – o Porto de Belém – e aquele da chegada a Calicute, na Índia. É
ao longo de um desvio de rota desse caminho, que estará situado esse outro-novo
lugar, conforme registrado abaixo:
113
Figura 13: Representação do Tempo da Viagem de Cabral. Fonte: Acervo do pesquisador.
Contudo, a descrição das cenas, inscritas no cenário dessa sua viagem, não se
restringe ao simples olhar perspectivizado pela objetividade daquele que produz
documentos oficiais de caráter simplesmente informativo, pois a subjetividade do
seu olhar se sobrepõe à objetividade dos documentos produzidos naquela época. O
relato dessa viagem está revestido de sentidos que deslocam suas descrições para
o campo da subjetividade que, ao se sobrepor àquele da objetividade, faz da sua
Carta um documento histórico-literário.
É nesse sentido que a Carta de Caminha se faz um gênero original da literatura
portuguesa: as crônicas de viagem por meio das quais se tem o registro dos
primeiros confrontos entre a cultura europeia e a ameríndia – um marco do esforço
para compreender o diferente, o não familiar pelo familiar. A originalidade desse
gênero do tipo crônica implica outro-novo processo de composição historiográfica,
qualificado pelo princípio da subjetividade, em contraposição àquele da objetividade
que qualificava esse tipo de composição dos demais escrivães da época. A ruptura
114
com a estabilidade desse gênero de época é resultante da perspectiva de um olhar
que, à semelhança de um historiador de uma vasta região ainda inexplorada,
descentraliza o ponto de vista do senso comum, consciente de que, diante das
descobertas do seu tempo presente, estará transformando, reinterpretando os
eventos do passado-presente por aqueles que habitam o passado remoto, inscrito
em sua memória do longo prazo.
Exemplo significativo desse processo de reinterpretação de eventos vivenciados no
médio tempo da história da formação do Estado político português são fragmentos
descritivos sobre a topografia da terra descoberta, formada por terra chã, propícia à
agricultura. Essa terra confrontada com aquelas de Portugal – cujo relevo
montanhoso ocupa 42% do seu território nacional: um obstáculo natural à
intensificação da agricultura (cf. p.10) – trata-se daquela que “em se plantando, tudo
dá”. Nessa acepção, na terra descoberta se poderá planificar o projeto de D. Afonso
Henriques: reduzir ou excluir a mendicância da população portuguesa pela
recuperação da fartura produzida no tempo da invasão moura – uma informação que
acrescida de “as águas são muitas: infindas (...) querendo-a aproveitar, dar-se-á
nela tudo, por bem das águas que tem” (CORTESÃO, 1943, p.240).
Logo, essa produção agrícola não demandaria o domínio da tecnologia de irrigação,
usada pelos árabes, mas não herdada pelos portugueses, após a Reconquista e, à
primeira vista, não necessária para o cultivo de alimentos na nova colônia: um
retorno ao tempo de abundância de bens comestíveis, de fartura: argumento que
subjaz à descrição de Caminha. Por conseguinte, trata-se de um texto documental
cujo quadro enunciativo desvela para o seu enunciatário a posição de um autor-
enunciador que representa não só o papel social de relator, pois ao relatar faz
conjecturas e registrar suas próprias impressões ou opiniões sobre o modo como o
Rei poderá fazer uso das terras “achadas”10 pela esquadra de Cabral.
10
Segundo Cortesão (p. 79), o vocábulo “achamento”, repetidamente utilizado por Pero Vaz de Caminha, refere-se ao descobrimento da ilha de Vera Cruz como algo natural e dentro de uma rota prévia e seguramente traçada e percorrida. Esse vocábulo já era usado por seus contemporâneos para designar, por exemplo, a intencional descoberta da índia pelos portugueses. O vocábulo “ilha”, à semelhança do vocábulo “Terra”, é usado em acepção bastante ampla: o primeiro faria remissão ao topônimo “Terra de Vera Cruz”, o segundo, para designar a terra firme de um continente.
115
Essas projeções, portanto, têm por ancoragem aquelas registradas no imaginário
daqueles reinóis que, após a expulsão dos árabes, levou os seus camponeses ao
retorno do estado da mendicância; mas agora e com a nova terra voltariam a ter a
fartura em suas mesas. Trata-se da retomada do projeto do primeiro rei português,
ainda não implantado, acrescido da possibilidade de a terra ter ouro, prata e outros
produtos comercializáveis, conforme imaginado, de modo a intensificar a
participação comercial daquele novo estado.
Pontua-se que a referida carta expressa de modo quase poético cenas do cotidiano
da terra descoberta cujo marco é a memória histórica do cronista e, por ela, esse
modelo de prática textual-discursiva será incorporado por viajantes e jesuítas que
para cá vieram ou por aqui passavam, dando origem à denominada Literatura de
Viagem a qual se refere Bosi (2009) e Coutinho (1988)11 sobre a origem da nossa
literatura: a brasileira.
3.3.2 O cenário da descoberta pela construção da cena enunciativa
A prática textual discursiva implicada no processo de composição da Carta de
Caminha não só explicita o papel social do documentarista-cronista, mas também o
de testemunha ocular que deverá se ocupar em representar em língua escrita o que
viu e/ou assistiu ao chegar à Terra “achada” – e há muito imaginada e procurada –
conforme a ela se refere Caminha. No exercício desse outro papel social, desloca-
se para a posição de escritor-redator e, desse outro lugar e sem ignorar a sua
posição de súdito, precisa informar a D. Manuel, seu Rei e Senhor, sobre o referido
achamento e, assim procedendo, cumprir a função para a qual fora designado.
Observa-se que esse deslocamento da posição de súdito de um governo
monárquico – conforme organização social de estruturação do poder político-estatal
11 De acordo com Coutinho (1988), se a crônica, em sua origem renascentista portuguesa ligava-se
a um gênero histórico (Cronos = tempo), relacionada ao relato cronológico dos fatos sucedidos em
algum lugar, no Brasil, assumiu uma forma literária de valor estético requintado. O cronista atual
assumiu uma posição solitária de quem tem ânsia de comunicar-se, sem a pretensão informar ensinar
ou orientar. Assim, na atualidade, despareceu o conteúdo original, transmudando esse gênero em
pequenos textos em prosa “de natureza livre, em estilo coloquial, provocadas pela observação dos
sucessos cotidianos ou semanais, refletidos através de um temperamento artístico” (p. 306),
publicado em jornais.
116
europeu das sociedades daquela época, agora, na condição de homem letrado –
orienta a seleção e o uso das formas vocabulares do seu texto que necessariamente
deverá marcar essa distância social entre aquele que escreve e aquele a quem a
carta será endereçada.
Nessa acepção, a seleção e o uso da forma vocabular “Senhor”: um substantivo
adjetivado que, ao mesmo tempo em que denomina aquele que tem autoridade de
rei, por ser “imperador, o chefe soberano” do povo do Estado Português, expressa
de forma respeitosa e cerimoniosa a relação necessária que marca o distanciamento
entre as posições sociais dois interlocutores. Os significados desse distanciamento,
instituídos pelo exercício desses papéis sociais – Rei súdito – por um lado, são
retomados por relações anafóricas que, ao longo do referido documento, estão
registradas pelo uso do pronome de tratamento Vossa Alteza: paráfrase de
“Senhor”. Assim, ao longo da composição escrita por Caminha, os usos desses
vocábulos se contrapõem àquele da expressão linguística “Beijo a mão de Vossa
Alteza”, registrada como as últimas palavras redigidas pelo escrivão ao término de
sua carta. Trata-se da representação do ato de despedida, revestido pelo significado
de reverência daquele que, ao encerrar seu diálogo a distância com seu interlocutor,
procede como se estivesse em sua presença: curva-se diante do seu senhor para
beijar a sua mão: atitude de subserviência, de servilismo daquele que se submete ao
poder de uma autoridade real. Ao se curvar, o servo diminui a sua estatura e
assume a sua posição social de subalterno.
O uso dessas formas vocabulares consideradas, por outro lado, nas suas dimensões
textual-discursivas, quando passa a funcionar como vocativo, ficará oculto na
impessoalidade do conceito do nome ou substantivo próprio “Senhor”: aquele que
exercerá o papel social de “leitor do texto”. Trata-se de uma presença em ausência:
aquela que retirada do campo do olhar do escritor autor, por essas marcas de
impessoalidade, integra-se aos seus atos de fala, por deixar um traço decifrável
nesse espaço vazio. É a decifração desses traços que assegurará a identificação do
exercício do papel social daquele a quem à carta será dirigida e, ao abri-la e iniciar a
sua leitura, exercerá o papel de coautoria dos sentidos a serem atribuídos aos esses
registros: o Rei-leitor no exercício do papel social de enunciatário.
117
Observa-se que esse trabalho em língua escrita, à medida que o texto progride,
possibilita ao analista identificar o uso reiterado dos vocábulos “Senhor”, 12 vezes, e
“Vossa Alteza”, 26 vezes; entretanto, o uso do nome próprio D. Manuel não
apresenta nenhum registro, intensificando apenas as posições referentes às reações
entre o súdito e o seu Rei e definindo as vozes das presenças que fundam a origem
dos sentidos a serem atribuídos ao texto. Segundo os analistas do discurso, a
construção dessa polifonia enunciativa, organizada pelo uso do substantivo
adjetivado “Senhor” – aquele que possui, é o dono e o proprietário e, por isso,
exerce o pleno domínio sobre si, sobre uma situação por ter autoridade de Rei – é
retomada pelo pronome de tratamento “Vossa Alteza” e faz referência não só ao
título honorífico, mas também àquele cujo poder de mando implica o distanciamento
de qualquer sentido referente a situações de intimidade e igualdade com aqueles
que não têm posse ou poder: os seus súditos.
No distanciamento entre esses dois lugares, modalizados pelo cenário social do
tempo das navegações, tem-se a construção da polifonia enunciativa que instaura a
enunciação, qualificada pelas cenas registradas na Carta em língua escrita. Trata-se
da função de endereçamento, aquela dá forma à presença do interlocutor-
enunciatário que, embora ausente, faz-se presente no quadro da enunciação pelo
exercício do papel de interlocutor-ouvinte e, por um lado, orienta o modo de falar e
de dizer do interlocutor-descritor e, posteriormente e por outro lado, o de leitor do
conteúdo desse modo de dizer, quando a ausência em presença será a do
interlocutor-descritor. Trata-se, assim, dos protagonistas que dão origem ao
processo de enunciação que funciona como ancoragem para o desenvolvimento do
tema – a descoberta da terra e do homem que nela habita: “o diferente, o estranho,
o desconhecido”, cujo grau de semelhança, de identidade, será construído pela
convivência dos séculos que se seguem a essa descoberta.
Nesse e por esse convívio, o semelhante será o resultado de uma construção que
implicará na fecundação, na gestação e no nascimento de outro-novo homem, ao
longo do tempo de ocupação e de uso dessa terra fértil: o brasileiro. Esse, em sendo
o novo, tem os seus matizes nas raízes dos velhos homens europeus e dos
desconhecidos-ignorados africanos e indígenas e, por eles, vêm ao mundo do
Império Mercantil Salvacionista com as descobertas dos navegantes. E, desde
118
então, esses homens colonizados e colonizadores colocaram na cena do cenário da
sociedade renascentista aquele que, para Ribeiro (2006), será “um ninguém”: não é
branco, não é negro e tampouco amarelo e, ao mesmo tempo, é um branco-negro-
amarelo. Mas como denominar esse povo caldeado? Brasiliano? Brasiliense? Ou
apenas o trabalhador da nova colônia estatal europeia, ou seja, o brasileiro?
Segundo Mário de Andrade, “Macunaíma” – um índio negro “nascido no fundo do
mato-virgem”; para José de Alencar, “Moacir” – o filho da dor alimentado pelo
sangue materno da sua(s) “Iracema(s)”, anagrama de América: a quarta parte do
Mundo que tem a sua natureza desmatada e dominada pelo invasor para abrir
espaço para a refertilizar, com seu húmus, a terra e o mundo dos negócios da velha
Europa; para Gonçalves Dias, o “Marabá” – o filho da mistura do Deus que guiou os
representantes do Império Mercantil-Salvacionista à terra de Tupã e, para cá,
também trouxeram os filhos de Ogum. Nesse sentido, talvez o brasileiro, hoje, seja
um politeísta: o novo homem que, gestado sob a Cruz da Primeira Missa do Frei
Henrique de Coimbra, cresceu e se desenvolveu sob a proteção de Tupã e de
Ogum, filhos de Iemanjá: a deusa das águas salgadas que banham as costas
marítimas do nosso Continente e de Iansã: a deusa das águas doces dos nossos
rios e das nossas cachoeiras que irrigam as terras do nosso país. Abençoados por
Nossa Senhora de Aparecida e por Nosso Senhor do Bonfim, recebem os passes
energizantes nos templos de Alan Kardec, sem esquecer o poder da cabocla Jurema
das nossas matas e cachoeiras. Somos, talvez, um povo que, politeísta, nos
encontramos no monoteísmo de um só oráculo e nele sempre nos reunimos por
sabermos que, embora múltiplos, precisamos ser unos, pois Deus, em sendo
brasileiro, nos ensinou que mesmo diferentes, aqui, nos tornamos semelhantes em
busca de um lugar onde precisamos e podemos sobreviver ou viver, sem
mendicância.
3.3.2.1 O cenário da descoberta pela construção dos “Eles” pelo “Nós”
A construção do cenário da descoberta onde se inscreve a cena da enunciação –
acima pontuada e qualificada pelo “tempo do achamento” e do “lugar procurado e
encontrado” – explicita-se pelas/nas relações sociointerativas entre o Eu (produtor-
119
autor-enunciador: Caminha) ---- o Tu (produtor-leitor-enunciatário: Senhor e
Vossa Alteza). É nessa e por essa relação que estará implicada a construção do
objeto sobre o qual se fala: o “texto”, propriamente dito, ou seja, a Carta onde são
representados, em língua, o “Ela”, a terra e o(s) Ele(s), isto é, aquela “gente” ou os
ocupantes dessa outra-nova Terra. Observa-se pela inserção do Ela + ELES a
complementação da projeção da cena enunciativa que se inscreve no cenário da
descoberta da nova terra (=ELA): “muito extensa (...) chã (...) graciosa e formosa (...)
com grandes arvoredos, muito bons ares frescos e temperados, infindas águas (...)”
– e de seus habitantes, o povo da floresta (=ELES): gente esquiva, bestial e de
pouco saber, que ninguém entende, de boa e bela simplicidade e inocente”.
(CORTESÃO, 1943).
Esses homens dessa Terra tanto quanto a Terra desses homens – eles e ela
outros – serão qualificados, ao longo do texto, por segmentos ou sequências
descritivas por meio das quais o interlocutor-enunciador coloca em relevo as
diferenças e as distâncias entre a “gente nossa” – o Rei e os seus súditos – e a
“gente” que, a princípio, é destituída de qualquer qualificativo, equivalendo a “Ele(s)”:
os nativos. Observa-se que o uso dos pronomes “Ele(s)”, aquele(s) de quem se se
fala e “Nós”, aqueles em nome de quem o escrivão cronista fala e entre os quais se
inclui, é reiterado pelo uso do pronome “gente” no singular e no plural, sendo o
“Eles” pluralizado como marca da diferença identitária entre os dois grupos.
Nessa acepção, o(s) Ele(s) o Nós outros, súditos do Rei D. Manuel – aqueles que
chegaram pelo mar são homens, cujas terras estão alocadas além e aquém do Mar
Tenebroso, na sua outra costa europeia, encontraram-se no dia 22 de abril de 1500.
Esse encontro desvela, por um lado, diferenças inscritas em semelhanças, ou vice-
versa, por outro lado, visto que o „eles‟ mantém alto grau de similaridade com o „nós‟
que parecem ser e não são semelhantes aos “eles”, conforme gráfico registrado na
página seguinte.
Há, portanto, significativos graus de estranhamentos quanto às formas de cobrirem
os seus respectivos corpos, aos modos de falarem, de agirem uns com os outros, de
interagirem entre si e com a própria natureza: esta, também, estranha. Diante desse
cenário local nada habitual, torna-se necessário ao escrevente encontrar um meio,
120
um ponto de ancoragem entre o que observa, percebe pela visão, mas com grande
dificuldade de enxergar e identificar para saber o que é e como é o “Ela” e, também,
são e como são “os eles” e, assim procedendo, conhecer para dizer ao Rei do que
se tratam o que ainda não é conhecido. Para tanto, o recurso utilizado por Caminha
incidirá sobre modelos de designações que têm por ancoragem a expansão daquilo
que ele conhece ou passou a “saber o que é” por aquilo que ele desconhece, e “não
sabe o que é”.
Figura 14: Cena enunciativa da Carta de Caminha. Fonte: Acervo do Pesquisador.
Essa dificuldade será superada por meio do uso de um conjunto de estratégias pelas
quais o produtor, no exercício do papel de interlocutor-enunciador, busca projetar e
identificar o que ele e seu interlocutor conhecem, aproximando àquilo que
desconhecem; por exemplo: a) x sombreiro, cabeleira e carapuça de pena “(...)
121
um sobreiro de penas de aves, compridas com uma copazinha de penas vermelhas
e pardas, como de papagaio” cocar (1727); b) “(...) traziam os beiços furados
e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha” ou
“beiços furados, muitos com os ossos neles” ou “beiços de baixo furados e metidos
nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de
um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador (...)” e, ainda, “mentem-nos
pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é
feita a modo de roque de xadrez” botoque (1584); c) inhame mandioca “ (...) e
que lhes deram de comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras
sementes que na terra dá, que eles comem”.
Esse esforço para denominar o desconhecido pelo conhecido terá por ancoragem o
uso de estratégias de comparação, conforme acima exemplificado, nela implicadas
projeções cujo propósito é transferir esquemas de compreensão sobre aquilo que se
sabe e, por meio deles, identificar algumas características comuns, compartilhadas
entre o já conhecido e o desconhecido. Observa-se que tais estratégias qualificam
os graus de complexidade inerentes aos processos cognitivos implicados nas ações
de linguagem que, desencadeadas pela prática de composição textual-discursiva do
nosso escrevente, terá por ancoragem a comparação: fundamento e fundação do
tipo de texto-descritivo por ele produzido. Nessa mesma acepção, foi possível
considerar que, ao longo da Carta, “o desconhecido” não se dá ou se deixa
conhecer por designações de formas vocabulares como: “índio” (sec. XV), “cocar”
(1727), “piroga” (1844) ou “canoa” (1533), “cuia” (1584), botoque (1584), “tacape”
(1781), mandioca (1549) e “urucum” (1782), por exemplo. Observa-se que tais
vocábulos serão incorporados ao vocabulário da Língua Portuguesa,
respectivamente, entre os séculos XV e XVIII, conforme Houaiss e Villar (2009), de
modo que, ao se referir ao uso de armas como o arco e flecha pelos nativos, o uso
de flecha é substituído por “setas”, ao longo da Carta do escrivão.
Processo semelhante ocorre sobre o desconhecimento dos vocábulos indígenas
“cocar” “urucum” e “botoque”, o primeiro nomeado como “carapuças, cabeleira de
pena e/ ou sombreiro de penas”; o segundo como “grãos vermelhos, pequeninos
que, esmagando-se entre os dedos se desfaziam na tinta muito vermelha de que
andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.”; o
122
último como “espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha.” Assim
procedendo, projeta o desconhecido pelo conhecido e identifica pela comparação
por meio de relações entre objetos e, no caso específico de “cocar”, embora tenham
funções distintas, assemelham-se tão somente pelo lugar que ocupam no corpo para
revestir ou enfeitar a cabeça. O capuz, para proteger do frio; o sombreiro, do sol, e
cocar como adorno – se considerados os matizes culturais que distanciam esses
homens entre si. Logo, a descrição por comparação é o único recurso de que
Caminha dispõe para representar o inusitado para o seu Rei e Senhor, ou a “nossa
gente”, visto que essa “outra tanta gente”, ou simplesmente “gente” – animais
monteses, gente bestial e aves alimárias montesinas (em 23/04, quando avistam os
primeiros índios) – com quem os navegantes se defrontam na praia, desconhecem a
língua portuguesa tanto quanto os portugueses desconhecem a(s) sua(s). É esse o
fato essencial e primeiro que inviabiliza os processos mediados por atividades de
linguagem desencadeadas por ações verbais, inscritas em atividades de fala, o
primeiro grande problema da descoberta.
3.3.2.2 Os rituais das cenas enunciativas por gestos de linguagem
Os gestos de linguagem funcionam de modo a dar tangibilidade ao pensamento e
podem ser expressos por meio de uma língua comum e, quando na sua ausência,
por meio rituais prototípicos dos processos referentes à comunicação humana, que
se fazem significativos, principalmente aqueles que são universais: sinais visuais
e/ou sinestésicos. As práticas de linguagem, portanto, abarcam e/ou implicam
movimentos do corpo, especialmente das mãos braços e da cabeça, acompanhados
de expressões faciais “básicas”, como movimento da boca, dos olhos e da testa que
funcionam como significante de significados como “enjoo, rejeição, raiva, medo,
tristeza, enfado ou incomodo, surpresa, alegria, aceitação, espanto, etc.” – por meio
dos quais os homens se comunicam, mesmo quando falam línguas diferentes.
Esses gestos referentes à comunicação humana se fazem significativos,
principalmente aqueles que são universais.
A inviabilidade de interação verbal “face a face” mediada por uma língua comum
entre “nossa gente” e “essas gentes” – aqueles que têm um “Senhor (...) a quem
123
obedecemos” (p. 17) e aqueles que não têm “Fé, nem Lei, nem Rei” 12 – entretanto,
desde o primeiro encontro e ao longo dos sete dias subsequentes, esses estranhos
convivem e interagem, então, por meio da leitura de sinais gestuais. Expressos,
esses sinais em concomitância com movimentos corporal-fisionômicos e modos de
agir e proceder, respectivamente significativos, possibilitam identificar a seguinte
observação de Caminha: “Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos
estorvavam no que havíamos de fazer" (p. 18). Nesse e por esse contexto de
pequenas facilidades de usos de um modelo elementar de interação – construído
gradativamente entre os dias 23/04: primeira vez em que se avistam uns aos outros,
e 30/04, dois dias antes de os portugueses partirem para Calicute – os nativos são
requalificados pelo interlocutor-enunciado como: “gente boa e de bela simplicidade e
gente inocente”. Ao longo desse pouco tempo transcorrido tem-se a mudança do
modelo de representação e de avaliação do nativo e, assim sendo, essa outra nova
gente, dessa nova-outra terra são agora, segundo a Carta, os objetos de pertença
do Rei português, conforme limites estabelecidos pelo Tratado de Tordesilhas.
Essa mudança de perspectiva do foco do olhar por meio do qual o interlocutor-
enunciador apreende de modo diferente os objetos de que fala ao Rei, situada no
tempo de sete dias de convivência com os nativos, ocorrem em diferentes
circunstâncias e situações que se tipificam por nove encontros entre eles, quais
sejam:
21 e 22 abril (terça-feira) (quarta-feira)
Primeiros sinais de terra avistados: “botelho”; “rabo-de-asno”; “furabuchos”, “Monte (Pascoal)” e da “Terra (de Santa Cruz)”.
12
Gândavo (1574: p.33) – História da Província de Santa Cruz - A língua de que usam toda pela costa é uma [...] Carece de três letras, convém a saber, não se acha nela f, nem l, nem r, cousa digna de espanto, porque assim, não têm Fé, nem Lei, nem Rei.
124
23 de abril (quinta-feira)
Durante a Ancoragem = Primeiros sinais visuais dos homens da terra na praia: “eram pardos”; “andavam nus”; “carregavam arcos e setas”, cerca de sete ou oito. a) PRIMEIRO ENCONTRO, após a ancoragem, na praia – cerca de 18 ou 20 nativos situados à distância: “co-presença” pela percepção visual um do outro – a.1) Ato: “pedir X atender” – contato verbal em co-presença por sinais da interação mediada entre: a.1.1) navegantes “pedir” para colocar arcos e setas no chão X nativos “atender” pedido dos navegantes = colocar os arcos e setas no chão; a.2) interagentes situados face a face: reduzir grau de distanciamento. Iniciar sistema de trocas: a.1.2) navegantes “oferecer” um barrete vermelho, uma carapuça de linho e um sombreiro preto X nativos “aceitar” e “dar” um sombreiro de penas vermelhas e pardas e um ramal grande de continhas miúdas e navegantes “receber”. LOGO: início do “ritual de troca de presentes” ó sinal de “aceitação mútua dos estranhos” expresso por ato de “troca mútua” de presentes ó receber com boa vontade o que é oferecido = significado simbólico: simpatia e aceitações recíprocas.
24 de abril (sexta-feira)
b) SEGUNDO ENCONTRO: Na praia – cerca de 60 ou 70 nativos situados em presença dos navegantes: b.1) Atos: “escolher e levar” para encontrar capitão dois homens – beiços furados, cabelos corredios, cabeleiras de pena e com arcos e setas. Na Nau Capitania: Capitão preparar-se para o exercício do papel de anfitrião; b.1.1) procedimentos dos recepcionados e dos recepcionantes expressos por: b.1.2.) nativos desconhecer atitudes de cortesia: “não falar e não cumprimentar ninguém ignorar deferência aos anfitriões, próprias daquele que é convidado – b.2) Ato: nativo “apontar”, respectivamente, para o grande “colar de ouro do Capitão”, para o “castiçal de prata” e para a “terra = navegante interpretar sinais como “haver na nova terra ouro e prata”; b.2.1) Anfitriões intensificarem conversação por linguagem dos sinais: expor ao olhar dos indígenas outros pertences – b.2.2) alguns animais: um “carneiro”, uma “galinha” e um “papagaio”; mas nativos ignorar o primeiro; espantar diante do segundo, expressar familiaridade com o terceiro e apontar para a terra ó apenas a galinha é animal estranho ao habitat do nativo (posteriormente nele introduzida); b.3.) Ato: “oferecer” aos nativos: b.3.1) alimentos – pão, peixe cozido, confeitos, farteis, mel e figos passados – seguido de Ato: “refutar” = provar e jogar fora = significado de depreciação, não aceitação ó rejeição de hábitos alimentares do anfitrião; b.3.2) bebidas: vinho em uma taça = experimentar e cuspir; água em um pote de barro (abarrajada): nativos usarem para lavar a boca e tirar o gosto do vinho); b.3.3) nativos mudarem de posição diante dos anfitriões: b.3.3.1) estirarem-se de costas no chão da nau e dormirem sobre uma alcatifa (tapete) e ali permanecer durante à noite ó sentir-se à vontade em companhia dos outrora estranhos navegantes – para quem já haviam empunhado arco e seta (1º encontro, acima); b.3.3.2) anfitriões, a mando do capitão, cobrirem os nativos = não ficar com “suas vergonhas fanadas expostas” (não eram circuncisados, ou seja, não eram membros da cultura judaica) e colocar travesseiros (coxins) sob suas respectivas cabeças “eles consentiram” e dormiram ó ato de aceitação, pois nativos aceitam coberta e travesseiro. Na manhã do dia seguinte - Saída dos convidados da Nau: para retornar à terra: b.4) Ato: “ordenar”: nativos voltarem à terra e levarem consigo arcos e setas e juntamente um degredado para colher informações sobre como viviam b.5)
125
Ato: “presentear” e “vestir” nativos com camisa e carapuça vermelha e dar a eles rosário de contas brancas de ossos; cascavéis (tipo de chocalho pequeno) e campainha (pequena sineta) = presentes do anfitrião.Logo, nesse tempo de convivência: nativos nada beberam e nada comeram, mas dormirem bem ó ato: “refutar” = alimentos não funcionam para assegurar contingências necessárias ou mútuas para favorecer a coleta de novas informações, exceção feita à possibilidade de haver ouro e prata na terra descoberta + reiteração do ato de presentear e começar “a vestir os nativos” = português-navegante receber e propiciar conforto aos nativos.
25 de abril (sábado)
c) TERCEIRO ENCONTRO, pela manhã, na praia – cerca de 200 homens nus com arcos e setas nas mãos – os nativos retornarem a terra: c.1) reiteração de Ato: “acenar e pedir” para aqueles que estavam na praia se afastarem e pousarem os arcos: os da praia pousarem os arcos, mas não se afastarem muito (ato parcialmente realizado); c.1.1) os nativos que dormiram na nau e os que estavam na praia correrem para a mata e nela encontrarem com outros nativos; c.1.2) grupo retornar à praia; mas os dois recepcionados pelo Capitão estarem sem as camisas e sem as carapuças; c.1.3) alguns tomarem cabaças e barris para transportar água do rio e ajudarem os portugueses a abastecer os batéis ó c.2) Atos: “colaborar”, seguido de ato: “pedir para ganhar” objetos ó “colaborar para receber presentes”; c.3) Ato: “presentear”: navegantes distribuírem cascavéis e manilhas; nativos oferecer arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho, ou qualquer outro objeto. c.3.1) nativos fazerem algazarra com presente ó estarem empolgados e falarem muito, mas navegantes não os entenderem: c.4) Ato: portugueses “acenarem para nativos irem embora” e “levarem consigo degredados” = eles obedecerem parcialmente = irem embora, mas mandarem os degredados retornarem à praia. Logo = atos: pedir ó aceitar parcialmente: sujeição parcial = abaixar arcos e se afastarem X arcos abaixados, não apontados em direção aos portugueses, mas não se afastarem; reiteração do ato: trocar objetos por abastecer navios de água ó Ato: “trocar” arco e seta (moeda de troca do nativo) por camisa, sobreiro, carapuça, cascavéis, manilhas + colaboração (serviço) = informação nova.
126
26 de abril (domingo de Páscoa)
d) QUARTO ENCONTRO, pela manhã, no ilhéu – cerca de 200 outra tanta gente com arcos e setas, pouco mais ou menos, como a de ontem – navegantes construírem pavilhão com altar e nativos folgarem = andarem um lado para o outro, mas não colaborarem com a construção: d.1.) Ato: “celebrar” primeira missa: atitude dos portugueses = muita devoção X atitudes dos nativos = “imitar” navegante ó sentarem durante o sermão; ajoelharem durante o sacramento e ficarem em pé para receberem a bênção, mas em silêncio = d.2) Ato: “imitar”. Após a missa: Ato: “pregar” frei Henrique prega sobre a história do evangelho: atitude dos portugueses: sentarem na areia da praia para ouvir a pregação X atitude dos nativos: levantarem, tocarem instrumentos sonoros, saltarem e dançarem ó d.2) Ato: “retribuir”: apresentarem um ritual nativo aos portugueses. Saída do ilhéu e na terra: d.3) Ato: “reiterar” pedido para nativos pousar arcos: alguns atenderem, outros não – posição dos portugueses: não forçarem os que deixaram de atender ao pedido, não reagirem, não obrigarem, “Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem – para os bem amansarmos!” – intenção dos navegantes = ser obedecido, posteriormente = projeção do descobridor. Navegantes retornam a terra; índios dançam entre si “sem se tocar”; d.4) ato: “aceitar” gaiteiro português se aproximam e dançam com os nativos = tomar pelas mãos ó interação pela dança d.5) Ato: “festejar” ao som da gaita, folgar, rir, andar, divertir ó descontração: gaiteiro exibir: fazer voltas ligeiras, andar no chão, dar salto real = nativos espantarem ó alto grau de interação por meio da dança ao som da gaita: d.7) Ato: capitão “indagar” um idoso sobre existir ouro na terra ó ninguém compreender ninguém – o velho, aos navegantes; os navegantes, ao velho ó alto grau de interação pela música e dança e nenhuma interação pela(s) língua (s). Término da festa: portugueses colhem palmito e nativos se afastam e vão embora; portugueses insistem em mandar degredados acompanharem nativos, mas nativos devolverem os degredados, não se deixarem acompanhar por eles = ato: “recusar”. Logo: as cenas acima possibilitam compreender: a reiteração do ato de trocas; alto grau de interação pela dança ó baixo grau de interação pela língua; reiteração da negação de aceitação da presença do degredado na aldeia ó aceitação da presença dos portugueses fora da aldeia, mas exclusão da possibilidade de estarem com eles em suas moradias após o anoitecer = degredados retornar para as naus.
127
27 de abril – (segunda-feira)
e) QUINTO ENCONTRO, pela manhã, em terra, o número de nativos era menor que dos dias anteriores – nativos trazerem consigo poucos arcos e setas. Atitude do nativo: inicialmente, manter um pouco afastados, mas pouco a pouco se misturar aos navegantes: e.1) ato: “abraçar”, “brincar” = situação de descontração; expressão de aceitação e intimidade: expressão de afetividade; e.2) Ato: “reiterar” troca objetos = arcos por papel, carapucinha velha ou qualquer coisa; e.3) Ato: capitão “ordenar” a navegantes, principalmente, o gaiteiro que os divertira muito, a andar, brincar e acompanhar os nativos aonde fossem; e.3.1) chegam às moradias = aldeias e serem recebidos pelos nativos – dez casas compridas como uma nau, de madeira, cobertas de palha, sem repartição; não havia cama, pois dormiam em redes – e.4) Ato: “ofereceraceitar” alimentos dos nativos = muito inhame e outras sementes que a terra produz; e.5) ato: “restringir” nativos não permitir navegantes pernoitar na aldeia; mas querer acompanhar navegantes na viagem de volta; e.6) ato: “refutar” navegantes não aceitar; e.7) Ato: “trocar” cascáveis e outras coisinhas de pouco valor por papagaios vermelhos, grandes e formosos e um pano de pena avaliado por Caminha como muito bonito.Logo: Reiteração do ato de aceitação: os nativos estão menos armados, abraçam os navegantes e os recebem em suas casas, dando-lhes de comer e os presenteando; reiteração do ato de partilhar alimentos e de trocar de objetos; reiteração do ato de recusa da permanência de degredados em sua aldeia, seguido do ato de refuta dos navegantes: não permitir que nativos os acompanhem até as naus.
28 de abril (terça-feira)
f) SEXTO ENCONTRO, pela manhã, em terra, primeiramente, uns 60 ou 70 e depois cerca de 200 nativos – Atitude: nativos se aproximarem naturalmente, sem esquivar, e “sem arcos e sem nada” = desarmados: expressão de confiança; misturarem-se com os navegantes = nativo se sentir à vontade; f.1.) Ato: “colaborar”, ajudar a fazer e carregar lenha para os bateis, de modo natural e com muito prazer; Atitude de observação: a) nativos observarem dois carpinteiros construírem uma grande cruz de pau com ferramentas de ferro = as ferramentas dos nativos eram construídas com paus e pedras, feitas com cunhas metidas em um pau entre duas talas = instrumento rudimentar da Idade da Pedra Lascada = estágio civilizatório dos nativos; b) conversar muito entre si e atrapalhar o trabalho dos navegantes; f.2) Ato: capitão “mandar” dois degredados e Diogo Dias à aldeia e recomendarem para passar a noite com os nativos; f.3) Ato: “refutar”, pois os nativos são devolvidos à noite.Logo: Reiteração do ato de aceitação com a intensificação do grau de confiança nos portugueses = deixar o uso das armas, misturar-se com naturalidade aos navegantes; manter naturalmente atitude de colaboração + observar atentamente ferramentas da Idade do Ferro, usada pelos portugueses = tecnologias deles desconhecidas + conversar muito entre si (provavelmente, sobre as diferenças com as suas); reiteração do ato de recusa: não permitir que degredados permaneçam em suas aldeias à noite.
128
29 de abril (quarta-feira)
g) SÉTIMO ENCONTRO, pela manhã, na praia, perto de 300 nativos – os navegantes não foram à praia, com exceção de Sancho de Tovar que, ao retornar, recolheu entre os nativos que queriam ir com ele, dois mancebos e levá-los para passarem a noite na sua nau: e g.1) ato: “mandar” tratá-los bem: g.1.1) nativos comeram toda a vianda (qualquer espécie de alimento, comida, quitute) que lhes deram; g.1.2) dormiram em cama de lençol; g.1.3. alegram muito na companhia dos navegantes.Logo: reiteração do ato dos nativos não permitirem a presença dos navegantes em suas moradias, mas manifestarem desejos de visitarem as “moradias” dos navegantes e, também, reiteração da boa e cortês recepção de nativos nas naus.Na nauNa manhã seguinte, antes de os navegantes saírem para a terra em busca de mais lenha e água, Sancho de Tovar senta-se à mesa com os dois nativos: mesa coberta com toalha; g.2) Ato “ofertar”: “serviraceitar alimentos” (vianda + tudo que lhes foi servido: lacão cozido, frio e arroz), mas o vinho não foi servido; g.3) Ato: “presentear” os nativos antes de levá-los para a praia = reiteração: g.3.1) uma armadura grande de porco montês = nativo colocar no beiço; g.3.2) cera vermelha que colocou no beiço: estado de grande felicidade como se tivessem ganhado joias.
30 de abril (quinta-feira)
h) OITAVO ENCONTRO, na praia – cerca de quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta nativos – alguns com arco e setas, reiteração h.1) Ato: “trocar” = dar tudo em troca de carapuças ou qualquer coisa que lhes davam; h.2) Ato: nativos “comer e beber” com os navegantes; h.2.1) os nativos comiam do que lhes davam; h.2.2) alguns bebiam vinho. h.3) Ato: nativos “andar” dispostos, galantes = estar à vontade, mansos entre os estranhos; h.4) Ato: “transportar” lenha com muito boa vontade para os batéis. h.5) Ato: o capitão “ordenar” que os navegantes fossem até a cruz, fincada para a missa de sexta-feira, e h.5.1) ajoelhar e beijar a cruz; h.6) Ato: “acenar” para que os nativos os imitassem. h.6.1) os nativos imitarem os navegantes = ajoelharem e beijarem a cruz - sinal de acatamento e obediência; h.7) Ato: nativo “bailar” ao som do tamboril; h.8) Ato: navegantes “levar” cinco navegantes para as naus: h.8.1) agasalhá-los bem; oferecer-lhes comida e colocá-los para dormir em colchões = atitude para amansá-los.Logo: como os nativos parecem ser pessoas de tal inocência e obediência, os navegantes discutem a importância de ficarem degredados para aprenderem a fala dos nativos = estabelecer interação por meio da língua dos nativos. O propósito explicitado é torná-los cristãos (implicado nesse propósito estava a intenção de usar a mão de obra dos nativos já que eles parecem carregar água e lenha em troca de objetos de pouco ou nenhum valor para os navegantes e, ainda realizarem com prazer essa atividade = embora os navegantes tenham constatado que os nativos não plantavam os alimentos que comiam, nem criavam animais domésticos, como bois, porcos, carneiros e galinhas (conforme já mencionado nesta análise seriam incorporados à cultura nativa posteriormente) = alimentam de frutos produzidos pela terra; de carne de animais que são caçados na floresta. Reiteração: a) do ato de receber com hospitalidade os nativos (servir alimentos em mesa coberta com toalhas, assentá-los em cadeiras, colocá-los para dormir em colchões cobertos com lençóis = atitude para amansá-los; b) do ato de trocar objetos = adereços, ornamentos com que os nativos muito se identificam e usam nos lábios, principalmente; c) do ato de colaborar; d) de obediência = ajoelhar e beijar a cruz.
129
01 de maio (sexta-feira)
i) NONO E ÚLTIMO ENCONTRO, pela manhã, na terra – cerca de 70 ou 80 nativos. i.1) Ato: os nativos “colaborarem” com os navegantes na atividade de “fazer uma cova” para chantar uma cruz, ao pé da qual seria erguido um altar e rezada uma segunda missa. i.1.1) os demais portugueses caminharem com a cruz em procissão, cantando junto com os religiosos e sacerdotes para o local da cruz; i.2) Ato: Frei Henrique “celebrar” missa; i.2.1) aproximarem mais cerca de 150 nativos e, desse total, 50 e 60 ficarem “assentados todos de joelhos”, como os navegantes, assistindo à missa. i.3) Ato: “imitar” = durante o evangelho: os navegantes ficaram de pé com as mãos levantadas até o fim e, em seguida, sentarem e nativos agirem da mesma forma; i.3.1) navegantes ajoelharem com as mãos levantadas e nativos os imitarem; i.3.2) durante a comunhão: alguns nativos levantaram e outros permanecerem sentados diante da cruz; i.3.3) um nativo, com cerca de 50 anos, permaneceu com os navegantes e incentivava os demais nativos a ficarem atentos e, também, chamava outros para participarem como os navegantes; i.3.4) esse nativo acenava para o altar e para o céu = navegantes concluírem que dissesse alguma coisa de bem; 1.4) Ato: os navegantes “darem” a uma nativa um pano para se cobrir durante a missa = ela não conseguir manter-se coberta. Acabada a missa, i.5) Ato: o padre “pregar” o evangelho: i.5.1) alguns nativos comportarem-se como os navegantes = ficarem quietos atentos à pregação do padre (ainda que não conseguissem entender os ensinamentos da pregação do padre); i.5.2) uns irem; outros virem = não ficarem atentos à fala do padre. Terminada a pregação: i.6 Ato: Nicolau Coelho “distribuir” cruzes de estanho com crucifixo atado a um fio para os nativos i.7) Ato: Frei Henrique “fazer” os nativos, um por um, beijar o crucifixo, levantar as mãos e colocá-lo no pescoço. Terminado todo o ritual, os navegantes foram às naus comer e i.8) Ato: “levaram” consigo o velho e um seu irmão: i.8.1) os navegantes receberam muito bem os dois nativos; i.8.2) deram uma camisa mourisca a um e uma camisa destoutras ao outro. Acabado tudo isso, 1.9) Ato “despedir”: i.9.1) os navegantes beijarem a cruz e retornarem às naus, preparando-se para a continuação da viagem para Calicute.Logo: neste último encontro, os navegantes “despedem” da terra e dos nativos e, para essa despedida, fincam uma cruz, celebram uma missa e, reiteram o ato de presentear (= dar aos nativos crucifixos) e esperarem a conversão desses nativos ao catolicismo por meio de atos de devoção. Desses nove encontros resultam algumas conclusões de Caminha, seguidas de orientações para novos procedimentos do Rei: deixar degredados para conviverem com os nativos e iniciarem o processo de exploração da terra com o propósito de verificar a existência de materiais preciosos – ouro e prata.
Quadro 1: Síntese dos gestos de linguagem: navegadores e nativos.
Os dados acima, considerados os diferentes atos de fala possíveis de serem
identificados na carta do enunciador-autor escrivão, impossibilitam afirmar a
ausência de interação entre os navegantes e os indígenas da nova Terra. As
representações registradas no referido documentos podem ser assim sintetizadas –
“Eles essas gentes, os ocupantes da Ilha de Vera Cruz” são:
130
Figura 15: Síntese das representações dos ocupantes da Ilha de Vera Cruz. Fonte: Acervo do Pesquisador.
131
A terra, a Ilha de Vera Cruz, a Terra nova do Rei D. Manuel” é:
Figura 16: Síntese da representação da Ilha de Vera Cruz. Fonte: Acervo do Pesquisador.
132
3.4 Algumas Considerações Finais
A revisão dos documentos oficiais possibilitou, por um lado, ampliar e reordenar os
conhecimentos referentes à História oficial sobre a descoberta do Continente
Americano e, por outro, situar o Tratado de Tordesilhas como marco do achamento
do Brasil; pois, se não fosse esse Tratado, a história poderia ter sido outra e não
aquela do descobrimento de um segundo território, abarcado pelo primeiro; ambos
situados na quarta parte do mundo e concebidos, a princípio como “ilhas”.
No cenário do longo tempo referente às projeções que batiam à porta do presente,
vivenciado pelo marco fundador da Renascença – aquele considerado no corpo
desse Capítulo pelo médio tempo, em relação ao tempo da pesquisa realizada, o
presente-passado – foi situado o projeto ibérico português como uma necessidade
de expansão desse novo Estado, dentre outros do território europeu. A construção
desse cenário do médio tempo exigiu uma retrospectiva que possibilitasse a
compreensão do desenvolvimento do Império Despótico Salvacionista (1000 d. C. a
1440), bem como a sua decadência e, ao mesmo tempo, nele implicada a gestação
e a ascensão do Império Mercantil Salvacionista, sistematizado e instituído ao longo
do século XV.
Esse novo império tem por marco a conquista de novos territórios e a imposição aos
povos nativos da doutrina religiosa medieval por outros Estados europeus. Desse
outro-novo Império emerge, portanto, a ruptura do modelo de organização tripartido
da sociedade feudal, organizado por homens de oração, de cavalo e de tralho – que
exerciam papéis sociais complementares e sustentavam o modelo de sociedade
medieval – pela ascensão de uma nova classe: dos mercadores ou burgueses.
Nesse contexto, fez-se necessário ressaltar o fato de os Impérios Despóticos
Salvacionistas terem assegurado a expansão da sociedade pastoril por meio do uso
de tecnologias que, aprimoradas pelas novas invenções científicas, favoreceram não
só o reconstrução das velhas tecnologias como também, o desenvolvimento de
outras e dentre elas, aquelas que facultariam o aperfeiçoamento da engenharia
náutica e impulsionariam a implantação do Império Mercantil Salvacionista.
133
No espaço desse cenário de uma nova ordem político social-econômica – implicada
na reinterpretação do modelo Despótico pelo Mercantil e nele, a formação do Estado
Ibérico Português –, as projeções expansionistas de seus reis e os resultados
obtidos do trabalho daqueles que planejaram e edificaram a Escola de Sagres foram
situadas as navegações financiadas por esse mesmo Estado. Dentre elas, atribuiu-
se relevo àquela comandada por Pedro Álvares Cabral da qual resultou a
descoberta do Brasil. Por essa descoberta, tem-se, por um lado, a desmistificação
do imaginário que fazia do Oceano Atlântico um “mar tenebroso” e, por outro, a
concretização do projeto do primeiro rei de Portucale, Afonso Henriques I: a
ampliação do território português nela implicado o retorno à fartura e à abundância
que garantiriam a representação de uma nação cujo Estado se tornaria capaz de
assegurar alimento para o seu povo.
Esses dados – tecidos e entretecidos àqueles do longo tempo pelo afrouxamento
dos nós das desordens a serem reamarrados por novas ordens – facultaram a
identificação do cenário das grandes navegações, inscritas no médio tempo,
perspectivizado por aquele do longo tempo. Nessa e por essas perspectivas do
traçado do olhar desse pesquisador que, no curto tempo da investigação realizada,
tornou possível redesenhar as cenas referentes: à partida da esquadra cabralina; à
travessia do Mar Tenebroso: ao desvio da rota original; ao encontro da nova terra e
ao encontro com o nativo desconhecido, à estadia, ao longo de nove dias na Terra
de Vera Cruz, bem como à chegada da esquadra a Calicute, após cinco meses de
viagem entre a Nova Terra e o destino final da viagem.
Essas cenas, a princípio, identificadas como aquelas registradas por documentos
cartográficos, foram conferidas e puderam ser confirmadas e expandidas pela leitura
significativa da Carta de Pedro Vaz de Caminha, enviada ao Rei Português, D.
Manuel – o Venturoso – observado e considerado o fato de o escrivão ser o seu
autor por ordem e determinação desse mesmo Rei. Trata-se do cumprimento de
uma ordem daquele que embarcara o seu vassalo na esquadra cabralina com tal
propósito – fato registrado por meio de análises do papel social em que se
inscrevam as posições assumidas pelo autor-enunciador, topicalizado na/pela
relação de interlocução com o seu enunciatário, o Rei. Tais posições, qualificadas
pelo processo de referenciação, foram comprovadas pela seletividade léxico-
134
gramatical que sinaliza a ocupação de lugares sociais diferenciados, bem como o
distanciamento entre os interlocutores.
No distanciamento imposto pela representação desses diferentes papéis sociais,
esse cronista renascentista faz uso da estratégia da comparação para pontuar as
semelhanças inscritas nas diferenças entre as velhas terras do novo reino e aquelas
recém-descobertas, bem como entre os habitantes de ambas. Assim procedendo,
esforça-se por ler as diferenças e por elas encontrar nos elementos observados
semelhanças que possibilitem a ele (Caminha) e, posteriormente, ao seu Rei
identificarem o novo pelo que é familiar para aquele que vivencia os fatos e aquele
que não os vivencia. Para isso, seleciona dentre os repertórios culturais de tipologia
textual-discursiva, um modelo de organização das informações por ele registradas: o
descritivo. Tal procedimento implica a seleção e uso das expressões “nossa gente” e
“essa gente”, sinalizando a proximidade entre os homens do reino português,
situados além-mar, e dos novos homens, situados aquém desse mesmo mar.
Essas representações contrárias incidem de forma reiterada sobre as diferenças e
muitas delas vão sendo retomadas por semelhanças identificadas ao logo de nove
dias e nove encontros – razão por que “o eles” qualificados a principio como bestiais,
esquivos, desprovidos de cortesia, semelhantes a animais monteses,
posteriormente, são qualificados como inocentes, simples, belos, colaboradores,
dotados de bons corpos e obedientes.
As presenças e as ausências de traços e comportamentos inscritos em um desses
grupos vão sendo minimizadas, por um lado, e, por outro, intensificadas, à medida
que os encontros entre eles são reiterados em situações ou circunstâncias
diferentes, quando interagem por meio de sinais gestuais e ou sinestésicos. Esses
sinais – postura, expressões faciais, movimento dos olhos, da boca, das mãos –
compreendidos como atos de fala expressos por meio de gestos, vão possibilitando
a identificação de informações – surpresa, alegria, aceitação, espanto, rejeição,
colaboração, etc. conforme os atos de fala descritos no Quadro 1. Essa linguagem
não verbal antecede a fala e funciona como elemento de identificação cultural de
modo a assegurar certo grau de proximidade entre o indígena e o branco, ou vice-
versa, e faculta a comunicação entre ambos. Assim a interação face a face ocorre,
135
contudo, ainda não mediada por uma língua comum, mas é por essa modalidade de
interação que ambos buscam saber o que veem e, ao mesmo tempo, a descobrir o
„que são‟ e o „que não são‟ por aquilo que „cada um deles não é.
Os fragmentos descritivos referentes à terra são revestidos de sentidos que a
qualificam como um espaço habitado por homens e mulheres nus entre os quais não
existe qualquer sentimento de bem ou mal. A terra é chã, com muito bons ares, pois
o seu clima é temperado e as suas águas doces são infinitas. Todavia, não é
possível afirmar a existência de ouro ou quaisquer metais preciosos, mas é possível
encontrar palmito, inhames – na verdade “mandioca”, pois o inhame será introduzido
pelos africanos que aqui chegarão posteriormente – muitos papagaios coloridos.
Enfim, “querendo a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”, ao
contrário, de parte do solo português.
É nesse sentido que a Carta projeta a possibilidade de ocupação, uso e pose pelo
Estado Português: um novo projeto para nela implantar a Lei e a Fé – um trabalho
do Estado associado à Igreja, sob o domínio do Rei do presente-futuro. O objetivo
de Afonso Henriques foi alcançado 400 anos e 14 reinados depois e, em sendo
assim, a Carta facultará a construção de planos de ações cujo marco é o ano de
1532, quando Martin Afonso de Sousa inicia a primeira expedição colonizadora,
enviada a Terra “achada” por D. João III, com os seguintes propósitos: iniciar o seu
povoamento e a sua exploração econômica e proteger o seu litoral contra possíveis
invasões estrangeiras. A esse marco inicial, segue-se, em 1534, a distribuição de
extensas faixas de terras a donatários da corte real, sob a forma de capitanias
hereditárias que, devido à escassez de mão de obra, fracassaram, de modo que a
colonização não se concretizou, conforme planejado por D. João III. Novo plano de
ocupação foi colocado em curso: instalação na colônia de governadores gerais;
todavia, com o falecimento de D. João III o trono do Estado Português é assumido
por D. Sebastião que morre na batalha de Alcácer-Quibir e, sem deixar herdeiro,
será substituído pelo seu tio avô D. Henrique I. Esse, ao falecer em 1580, e também
não tendo herdeiro, possibilita a União Ibérica, ou seja, os Estados ibéricos passam
a ser governados por D. Felipe II: rei da Espanha, até o ano de 1640, quando o
Estado Português voltará a ser restaurado pela dinastia de Bragança. Mas a
colonização se fará extensiva ao longo dos séculos seguintes.
136
CAPÍTULO IV
A DESCONSTRUÇÃO DO AMERÍNDIO, DO AFRICANO E DO
EUROPEU PELA (RE) CONSTRUÇÃO DO BRASIL (EIRO) – UMA
HISTÓRIA DE CASCALHOS ABANDONADOS
“O mineiro é (...) uma gente boa – porque considera este Mundo
como uma faisqueira, onde todos têm lugar para garimpar.”
(Guimarães Rosa)
4.1 Considerações Iniciais
A leitura dos documentos sobre os fatos referentes à descoberta das terras do Brasil
deslocou, por um lado, o pesquisador para a identificação de textos – alguns ainda
pouco divulgados ou conhecidos, embora oficiais – sobre versões referentes a
acontecimentos históricos que tematizam a descoberta, ocupação, uso e posse da
Ilha de Vera Cruz, Terra dos Papagaios, Mundos Novos, América, Terra do Brasil e,
por fim, Brasil. A esses textos, por outro lado e de forma complementar, situam-se
aqueles de caráter não oficial que também focalizam esses mesmos conhecimentos
por uma perspectiva que não se qualifica como se fora o avesso do real – ou seja,
da História oficial – mas por ser uma reinterpretação dessa mesma história, contudo,
fora dos quadros da sua oficialidade. Essas são interpretações que circularam e/ou
circulam no espaço público das praças públicas, das ruas, das cidades, das vilas,
dos vilarejos e dos caminhos por onde grupos sociais de cada época, de cada
geração, se deslocaram ou transitaram, afirma Bakhtin (2008, pp. 4-5). São as
leituras dessas interpretações que estão na origem da história da literatura, para
esse autor, de modo a oferecer “uma visão alternativa de mundo, do homem e das
relações humanas totalmente diferentes, deliberadamente não oficiais.”
Pesavento (1998), nesse mesmo sentido, afirma que a narrativa da História oficial se
reveste de uma função criativa, por selecionar documentos, ocupar-se da
composição de um enredo, para desvendar uma intriga e por ela recuperar
significados sociais institucionalizados a ela atribuídos ao longo do tempo de
137
ocupação, uso e posse. Trata-se de um trabalho historiográfico de reconstrução do
real sofre o crivo da testagem e da comprovação e, embora seja um olhar entre
outros, ele sempre é ou deve ser possível de ser comprovado pelos fatos narrados
e, nesse sentido,
a história (oficial) só se realiza no campo da representação, tanto de quem participou dos eventos passados e deles deixou um registro, quanto de quem, no presente, busca recuperar aquelas fontes e delas fazer uma releitura. Nesse sentido, a história teria a tarefa de reimaginar o imaginado, oferecendo uma leitura “plausível” e “convincente” do passado. (PESAVENTO, 1998, p. 20)
A narrativa da história literária, segundo a autora, também é um produto do
imaginário, mas as suas histórias não visam à comprovação, pois elas visam à
verossimilhança e, sem exclusão dos nexos entre suas fontes primárias, cria
harmonia entre fatos, ideias fantásticas, imaginárias, que são determinantes na
construção da coerência dos seus textos. Entretanto, essas narrativas não visam e
tampouco exigem a comprovação da veracidade dos fatos por elas narrados e,
sendo assim, está liberta da testagem exigida pela História oficial. Ainda que o texto
literário comporte explicações do real e guarde preocupações de reconfiguração
temporal, compartilhada com os fatos narrados pela História oficial, suas fontes
primeiras são as palavras mágicas ou míticas e não as palavras retóricas, próprias
de atos de criação dessas outras histórias. Os significados míticos e mágicos
inscrevem-se nos conteúdos do dizer expressos pela voz das personagens das
fábulas e dos mitos, dos apólogos, das parábolas, das novelas, contos e romances –
todas narrativas alegóricas ou literárias, pondera Bakhtin (2008), para quem elas
também circulam no espaço público, mas não oficial.
Nessa acepção, afirma Ricouer (1993) que o discurso ficcional ou literário deve ser
compreendido como “quase história”, pois os acontecimentos sobre os fatos
narrados não exigem comprovação, mas funcionam como se houvessem ocorrido:
são, portanto, modos de narrar, de interpretar o acontecido pelo acontecível. Nesse
sentido, tanto a História oficial quanto a literária concedem ou dão voz ao passado
remoto: contribuem para a construção-desconstrução-reconstrução do ontem e do
hoje; entretanto, é a segunda que sempre projeta em maior grau os sentidos do
amanhã, do mundo possível do vir a ser. A primeira, portanto, focaliza com maior
138
intensidade o ontem para fazer compreender o hoje; a segunda retoma a primeira e,
tomando-a como ancoragem, estende os sentidos compreendidos para além dos
limites do aqui e do agora para situá-lo no amanhã e projetar o “porvir”. Nessa
acepção, busca-se identificar em que medida a leitura significativa de Cartas
Chilenas, obra de Tomás Antônio Gonzaga, possibilita projetar o Brasil independente
e republicano pelo Brasil colonial, tendo por parâmetro o marco fundador que
assegura a identidade do povo brasileiro, na sua esfera político-administrativa
herdada em tempos de colonização.
Nesse contexto, pontuados os fundamentos registrados acima, este capítulo incide
sobre a leitura compreensiva dos documentos oficias sobre duzentos e oitenta anos,
aproximadamente, de colonização referente à ocupação, ao uso e à posse das
terras “achadas” no Continente Americano, por duas perspectivas. Uma primeira
incidiu sobre o resgate da história, pela leitura de documentos oficiais, fartamente
divulgados, e outros pouco divulgados, de modo a favorecer maior grau de
compreensão dos processos referentes à interpretação desses documentos. A
segunda incidiu sobre o texto literário “Cartas Chilenas”, de Gonzaga, de modo a
ampliar os processos de compreensão que orientaram reinterpretações sobre
episódios que se cruzavam e entrecruzavam-se nas/pelas linhas e entrelinhas de
tempos vividos. Por esses cruzamentos e entrecruzamentos buscou-se desvendar a
trama inscrita no espaço ocupado e delimitado por lugar(s) habitado ou povoado por
conflitos inerentes às relações entre homens – a história narrada pelo autor-
narrador.
Entre os fios da tessitura desse tecido, buscaremos identificar os nós que formam o
desenho da rede de intrigas da História do Brasil Colonial e, entre eles situar o tema
de Cartas Chilenas. O desenho dos nós da composição dessa rede estará
compreendido como/pela construção do cenário global dos processos da
colonização neles implicados os <<fazeres transformadores>>, orientados pelo
propósito de ocupar o novo território para dele se apossar e fazer diferentes e
variados usos proficientes de suas ou dessas novas terras. As principais estratégias
ordenadoras desses <<fazeres>> precisavam ser identificadas pelo pesquisador
para orientar a leitura significativa de Cartas Chilenas, tendo por ancoragem os
documentos historiográficos. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo foi pontuar e
139
qualificar as estratégias implicadas na(s) mudança(s) de estado(s) e,
necessariamente, de posições por meio das quais: a) o homem indígena submeteu-
se ao processo de ocupação de seu território; b) o homem negro, ao de
escravização e c) o português ibérico – na condição de náufrago, traficante ou
degredado – a de “um língua” que, sem deixar de ocupar o lugar por ele conquistado
e ocupado entre as tribos indígenas, contribuirá com a administração colonial para
a institucionalização do poder e do controle dos colonizados.
4.2 Ordens e Desordens sobre o Processo de Ocupação, Uso e Posse do
Território Brasileiro: resgates e perspectivas
O poder, à semelhança das línguas humanas, sempre foi organizado e ordenado por
uma gramática que funcionou e funciona como instrumento de coerção e de controle
social pelo Estado, seja ele imperial, eclesiástico ou laico. Afirma Mello (1986) que,
em qualquer tempo ou lugar, o Estado sempre foi e é sustentado pelo terreno sólido
da cultura, embora jamais seja dela um produtor, mas dela Ele faz uso estratégico
para assegurar o exercício desse seu poder, inscrito nessas modalidades de
práticas gramaticais. Ribeiro (1968; 1992) por sua vez, não nega o fato de o Estado
nunca ter sido um produtor de bens culturais, razão pela qual, faz uso seletivo e
qualitativo desses matizes da cultura que sempre são produzidos pelo povo. Têm
suas origens nas/pelas invenções e estão entrelaçados aos processos referentes
aos modelos de diferentes e variadas formações civilizatórias, extensivas à própria
existência do homem na terra. Seus primeiros matizes culturais, identificados ao
longo de alguns milhares de anos, têm por marco o período pré-agrícola.
Afirma esse autor que essas formações qualificam-se por invenções e descobertas,
sempre implicadas, entrelaçadas ou articuladas aos: a) biofatos – elementos da
própria natureza, como a descoberta e o domínio do fogo; b) manufatos – elementos
produzidos em série resultantes da produção de artefatos, como alguns
instrumentos que compensavam suas carências físicas, funcionando como meios de
ataques e defesas, bem como para o aumento da eficiência produtiva; c) os
sociofatos – extensivos aos modelos de formações ou organizações sociais, como o
desenvolvimento de instituições reguladoras da vida grupal, familiar ou não familiar;
d) psicofatos referentes à construção de modelos cognitivos que facultam a
140
construção e o desenvolvimento de esquemas mentais que respondem pelos
processos de compreensão e interpretação humanas.
Esses estudos antropológicos de caráter historiográficos pontuam o fato de a
revolução urbana ser precedida pela revolução agrícola: aquela que sucede à pré-
agrícola, ou seja, quando os humanos se organizavam socialmente em pequenos
grupos ou bandos, que se movimentavam e sobreviviam da coleta de raízes, dos
frutos, da pesca e da caça, negociando o excedente desse sistema de coleta pela
prática do escambo ou troca de mercadorias entre si. Trata-se de um modelo
bastante rudimentar de formação sociocultural das comunidades humanas,
organizadas em unidades e/ou sociedades tribais, produtoras de tecnologias,
também, bastante rudimentares – “não têm Estado, não têm classes sociais, não
têm escrita, comércio, mas têm cultura”, afirma Aranha (2006, p. 34).
Ao longo desse processo sucessivo, a revolução agrícola iria fixando o homem a
terra e, em alguns desses núcleos, como consequência de observações e
experimentos, surgiram as primeiras formas de agricultura e de domesticação de
animais de que se originaria um outro-novo processo produtivo. Assim, o domínio
das áreas de caça, pesca e coleta das sociedades tribais, relacionado à produção de
novas tecnologias – enxada e arado, associadas ao pastoreio e à montaria, por
exemplo – facultariam a criação de grupos sociais extrafamiliares, por um lado e, por
outro, o enriquecimento da dieta humana por meio do consumo da carne e do leite,
bem como a utilização da pele para produção de vestimentas. Acrescenta-se, ainda,
ao estágio desse processo civilizatório a invenção, a produção e o uso da cerâmica,
que possibilitará o consumo de alimentos cozidos; das técnicas de fiação e de
tecelagem que substituiria as vestimentas fabricadas em couro, até então.
Ao longo desse processo de invenções – sempre implicadas no aperfeiçoamento e
na criação de novas tecnologias – teve-se a construção gradual do modelo de
formação sociocultural urbano que, gestado nas próprias entranhas desses outros
modelos de formação sociocultural agrícola funcionariam como ancoragem da
sociedade moderna a nós contemporânea. Destacam os historiadores antropólogos
que o suporte desse outro modelo de formação social teve a sua ancoragem
sustentada pela aceleração de outras-novas formas do sistema de produção e de
141
distribuição de alimentos, a ele associada à invenção e o uso de sistemas de
adubagem do solo e da incipiente irrigação das lavouras e, ainda, pela invenção da
roda. Generaliza-se, nesse período, o uso do arado e de veículos de tração animal,
bem como os barcos à vela, capacitados para a navegação costeira, associados ao
surgimento de formas cada vez mais complexas da divisão e da distribuição do
trabalho. Tem-se, ainda, a especialização do trabalho artesanal bem como da
comercialização de seus produtos como origem primeira dos núcleos urbanos e,
neles estarão implicadas outras novas tecnologias voltadas para “a fabricação de
tijolos e ladrilhos, a arte da vidraria, a metalurgia do cobre e do bronze, aos silos (...),
o calendário e a arquitetura monumental”, etc. (ARANHA, 2006, p. 66).
É nesse e por esse mesmo contexto que surgiriam duas outras tecnologias criadas
para atender ao novo modelo de gestão de outras necessidades administrativas do
mundo dos negócios: a invenção do sistema numérico e a da escrita – essa última, a
princípio ideográfica e, posteriormente, alfabética – será indissociável da invenção
do modelo de formação sociocultural do mundo moderno, carregará consigo a
edificação da estruturação do sistema administrativo estatal, até hoje, vigente.
Assim, o alicerce fundador desse modelo de sociedade moderna seria desenvolvido,
interpretado, reinterpretado e/ou aprimorado ao longo da história da humanidade e,
ainda hoje, assegura a formação sociocultural-histórica do nosso mundo moderno,
cujas regras se assentam na gramática do poder administrativo do Estado Moderno.
Trata-se de regras inscritas na produção-reprodução do sistema econômico-
financeiro-administrativo de uma economia local e, ao mesmo tempo, global.
É preciso ressaltar que o ensino dessa gramática do poder estatal se faz extensivo
ao espaço ocupado por essas mesmas instituições, principalmente as escolares;
razão porque a manutenção e a preservação da máquina do estado, desde então,
sempre exigiram e exigem uma classe de funcionários especializados, capazes de
exercerem funções administrativas e legais, cujos registros escritos e/ou controlados
pelo sistema numérico ou quantitativo se fizeram imprescindíveis, desde então. É
nessa acepção que a aprendizagem da escrita escolar será a leal companheira do
Estado, tornando o ensino desses dois sistemas obrigatórios (EPSTEIN, 1993).
142
Observa-se que o baixo, pouco ou não domínio das regras referentes às normas de
condutas desses sistemas de ordenação das sociedades modernas, interligados
entre si, responderam e ainda respondem pela construção arquitetônica das cidades
organizadas por dois lugares do espaço urbano: o centro e a periferia. No centro
estiveram e estão alocadas as instituições das principais sedes do poder
centralizador do Estado, representadas pela arquitetura palaciana – palácio real,
palácio da justiça – ou casas reais onde funcionavam e funcionam a câmara, o
senado, a casa da moeda, bem como a catedral, as escolas e, em alguns casos, as
cadeias ou presídios. A periferia, nesse contexto, qualifica-se como lugar ocupado
pela população, constituída ou formada por funcionários públicos e outros grupos
que têm maior acesso “ao centro desse poder estatal”. Esses, por sua vez, também
se distanciam dos lugares habitados por trabalhadores analfabetos ou
semianalfabetos, ou seja, aqueles cujas condições de sobrevivência são mais
precárias, embora sejam eles os construtores das edificações do centro.
É nesse e por esse contexto por onde as regras da gramática do poder Estatal
passam a circular, tendo por ancoragem esses lugares instituídos e
institucionalizados, que a força coercitiva do poder político-econômico do Estado
Português, de caráter laico-religioso, se fará uma constante presença em ausência,
em terras do Brasil. Segundo Torres (1973), esse Estado ibérico firmaria a presença
nessas suas terras D‟Além Mar às avessas, iniciando sua ocupação, uso e posse
pelo fim e, desse modo, essa terra colonial passará a ter uma Coroa antes de ter
povo, visto que a concepção de povo será formada ao longo de três séculos do
processo colonizador.
Para esse autor, é no espaço de tempo delimitado pelo século XVIII que essa
concepção, organizada e sistematizada sob a forma de significado, terá a sua
inserção no vocabulário daqueles que aqui habitavam. Esse significado será
expresso pela designação “mazombo” vocábulo de origem africana por meio da
qual é designado o filho do português nascido no Brasil. Embora essa fosse uma
designação que condensava sentidos depreciativos e injuriosos para se referir a
uma categoria social a que ninguém quisesse pertencer, é usado por Tiradentes
para se autodesignar de modo a afirmar que “nós, os mazombos, também valemos e
sabemos governar”, para se referir à consciência de que “os homens nascidos no
143
Brasil não eram, apenas, súditos do rei de Portugal, mas uma gente de
nacionalidade própria” (TORRES, 1973, p. 29) e que, portanto deveriam ser
governados por leis e governos próprios. Todavia, a expressão “povo brasileiro”- já
criada e usada por essa forma vocabular “mazombo” - excluía do seu campo
semântico o “ser filho do homem indígena e do homem africano”. Trata-se da origem
primeira do processo de exclusão por meio do qual, os Inconfidentes traçam o seu
projeto de liberdade de uma capitania capaz de governar uma nova nação, desde
que excluídos do seu poder político-administrativo os filhos dos indígenas e dos
africanos. A essa concepção de nacionalidade subjaz aquela de corresponder a um
Estado Nacional um povo formado por uma só etnia: aquela constituída por
brasileiros de origem europeia, dele excluídos os mamelucos, os cafuzos e os
mulatos – a força do poder a ser instituído e institucionalizado apenas pelos
mazombos.
A interpretação do discurso político desse nosso Inconfidente – filho do português
Domingos da Silva Xavier e da portuguesa Maria Paula da Encarnação Xavier,
nascida na Colônia – desvela os sentidos dos significados primeiros que serão
institucionalizados, de modo a orientar as escolhas daqueles que deveriam governar
o Brasil Republicano, pelo marco do modelo colonial. Essa projeção, pós-
proclamação da Independência, mais especificamente da República brasileira,
tornar-se-á critério de escolha de seus governantes, de sorte que o filho natural do
índio com o português, os “mamelucos”; os “cafuzos”, filhos dos indígenas com os
africanos; bem como “mulatos”, filhos do português com os africanos, serão
excluídos da esfera do poder político-administrativo desse nosso Estado Nacional.
Nesse sentido, a proposta política dos Inconfidentes se fez uma realidade nacional:
tornou-se uma regra cujo valor morfológico, imposto pela gramática do poder estatal,
estabelece, desde então, a seleção do esquema de organização dessas categorias
ou classificação dos elementos mórficos, bem como a ordem inscrita na sintaxe
combinatória que, construída e instituída ao longo desse período de colonização, se
tornará revestida de alto grau de permansividade. Sedimentada pelo uso dos
discursos político-administrativos do Estado colonizador português será deixada
como herança ideológica para a formação do Estado político-administrativo
brasileiro. Assim, esses discursos – ancorados por um ponto de vista hierárquico
organizado pela escala valorativa dos biofatos por meio da qual o colonizador, agora
144
mazombo, nela ocuparia posição de maior relevo e prestígio politico – manteriam
esses homens miscigenados pelo caldeamento de três povos distintos, submissos à
força do poder político-administrativo dos mazombos, de modo a manter a
sobreposição do homem europeu nas terras do novo Continente.
Trata-se de um sociofato resultante da interpretação do caldeamento dos processos
de miscigenação desse novo-outro homem que, agora, já não se deixava identificar
como branco, negro ou amarelo, ou seja, um biofato até então desconhecido. Esse
evento extraordinário, gestado nas entranhas do poder do império mercantil
salvacionista, responderá pela organização e pela ordenação de velhos
conhecimentos de mundos na memória histórica do brasileiro. Compreendidos como
sociofatos, suas construções serão orientadas por esquemas cognitivos qualificados
como psicofato, de sorte a assegurar a organização de novos-outros conhecimentos
de mundos por um critério de classificação dual: “ser ou não ser branco ou
mazombo” para ocupar posição social, nas esferas do poder. São sentidos
enraizados nesse e por esse esquema classificatório dessas nossas heranças –
aquelas inscritas na própria ideologia dos processos de colonização, talvez até os
dias de hoje.
Assim, esse esquema cognitivo – fundado e fundamentado em critérios biológicos –
ainda exclui os processos de miscigenação prototípicos da história da nossa
formação étnica, por meio da qual somente “os mazombos” podem e devem exercer
o papel social de administradores do nosso Estado brasileiro. Aos mamelucos,
cafuzos e mulatos cabe exercerem o papel social de administrados, de
trabalhadores braçais ou não braçais, mas que outrora cortaram, toraram e
transportaram o pau-brasil da floresta para o mar, pescaram o peixe, caçaram os
animais e plantavam alimentos para sua própria subsistência e a do colonizador. Os
africanos e seus descendentes, por sua vez, também plantaram, colheram e
moeram a cana, mexeram os tachos da garapa transformada em rapadura que,
transportadas para a Europa, eram convertidas em açúcar, etc. Desse modo, a
brancura e a docilidade do açúcar consumido pelo mercado europeu ocultam a
amargura sombria implicada nos processos da produção dessas manufaturas a que
se dedicavam os mamelucos, os mulatos e os cafuzos.
145
Essa crença que sustentará o poder dos mazombos se fará extensiva ao modelo de
administração do Brasil independente, do republicano e mesmo do país dos nossos
dias atuais, denominado um Estado Moderno em de todos que parecem partilhar,
mas não partilham das riquezas de sua economia moderna como seu povo. São,
portanto, discursos que ocultam as práticas colonizadoras de um modelo
administrativo, sistematizado pela gramática do poder estatal mercantil-salvacionista,
implantado nas Terras do Brasil que, ainda hoje, se faz presente no campo da
política e da nossa economia nacional (SIMAN e FONSECA, 2001).
Pondera Torres (1973) que, entre o funcionamento significativo dos matizes culturais
e suas avaliações ideológicas – sempre inscritas nas práticas social-históricas
permeadas ou perpassadas por valores afetivos, inerentes a esse matiz ideológico –
os fatos descritos pelas práticas sociais discursivas, no campo das ciências sociais,
desvelam para seus leitores ser esse um país que tivera uma coroa, um rei e, antes
mesmo de ter povo. Começara a sua existência nas malhas do tecido da força do
seu poder estatal, quando D. João III, nomeia Tomé de Sousa “Governador Geral do
Brasil” e, embora esse nobre lusitano fizesse o seu desembarque
(...) no espaço vazio, chegando primeiro que seus governados e constrói no mato a sua capital. (...) chegou à Bahia, trazendo uma espécie de Constituição para o país, um ministro da Justiça (o ouvidor-mor), um ministro da Fazenda (o provedor-mor), o poder espiritual, no clero, soldados, e fundou a cidade de Salvador, que passou logo a ter, inclusive, uma câmara municipal. Era o estado do Brasil, que nascia com todos os órgãos que um governo que se preza deve ter. Notava-se, apenas, uma ligeira ausência, uma sombra no conjunto: não havia povo. (...) Não havia o Brasil que o governador geral deveria governar – um litoral mal conhecido, com algum ponto de povoamento, alguns postos de contrabandistas, e no interior, a mataria selvagem e desconhecida – e índios ferozes. (TORRES, 1973, p. 28).
Assim sendo, nesses e por esses lugares institucionalizados que, desde então,
passam a ser ocupados por representantes do Rei distante, a sua presença foi
mantida em ausência, a partir do momento em que sob a sua ordenança,
(...) um governo completo que chegou à Bahia – nele vinha a Rainha D. Maria I, agora afastada do governo pela doença, o regente de Portugal, D. João e toda a corte. Começava novo paradoxo: o Brasil passava a sede da monarquia portuguesa – o antigo território metropolitano passava a província da antiga dependência ultramarina. E como confirmação deste estado de coisas, afinal é o Brasil feito Reino Unido a Portugal. (TORRES, 1973, p. 29-30)
146
São esses representantes que, no tempo antecedente ao ano de 1808, exerceriam o
papel social delimitado por esses lugares institucionalizados, no espaço do poder
real do Estado Português, pois foram eles que responderam pelo cumprimento das
regras coercitivas da gramática do distante poder estatal ibérico: homens da
administração em nome do poder real. Esse modelo gramatical, assegurado pela
força do poder administrativo colonizador, teve por referência normas de conduta,
modos de ser e de agir desses administradores nas suas interações com os
governados: aqueles que deviam aceitar e cumprir essas normas pela imposição
dessas regras estatais. Assim, elas passariam a ser propostas e instituídas de forma
a não se tornarem distantes dos hábitos, dos costumes, das crenças e/ou das
tradições dos colonizados. Esse seria o trabalho pelo qual e, juntamente com os
jesuítas, os súditos-funcionários dessas instituições seriam responsáveis.
4.2.1 O marco fundador do discurso mazombo: estratégias da colonização indígena
A extensão da bibliografia, para além dos limites do discurso da História Oficial,
possibilita compreender as estratégias de ocupação, de uso e de posse dos bens
materiais e não materiais existentes no novo território ou nele cultivados pelos
ibéricos portugueses. Esse processo de cultivo implicou rupturas quanto aos modos
de proceder, de agir e de ser da civilização indígena que responderam, a princípio,
pela gestação e pelo nascimento dos mamelucos e dos cafuzos e, posteriormente,
dos mulatos. Essas rupturas são explicitadas por meio de estratégias do poder e
controle dos membros das comunidades nativas para favorecer a transferência da
posse do novo território das mãos dos indígenas para as dos colonos, denominadas
por estratégias de destribalização e desterritorização. Afirma Bosi (1993) que essas
estratégias são explicadas por princípios da dialética que organizou e ordenou esse
modelo de transferência, extensivo ao longo dos primeiros séculos de ocupação da
nova terra. Hoje, tais rupturas são compreendidas pela reinterpretação de normas
socioculturais cujos sentidos exigem o resgate, por um lado, do significado do verbo
latino “colo” e, por outro, do modelo de contexto situacional que faculta e
recontextualização tais significados.
147
Pondera o autor que esses processos de recontextualização, implicados na
produção desses outros-novos sentidos, não deixaram de ser convertidos em
significados, à proporção em que foram sendo socialmente compartilhados e
reiterados, dando origem à outra comunidade: a brasileira, formada por novos-outros
grupos sociais. Esses outros grupos responderão pela formação de outra-nova
sociedade que edificou, entre o século XVI e XX, o alicerce que viria a sustentar os
pilares da estrutura, da organização e da ordenação de um novo Estado latino-
americano: o do povo brasileiro. Esse contexto, observadas essas estratégias por
um ponto de vista sociocultural-histórico e ideológico, abarca a compreensão dessas
rupturas de regras que, impostas pela administração do Estado colonizador ibérico,
devem ser reinterpretadas pelo resgate dos significados atribuídos ao verbo latino
“colo”, considerado os sentidos nele implicados, extensivos às suas formas
intransitiva e transitiva.
Trata-se, segundo esse autor, dos valores atribuídos a esses usos condensados por
sentidos socialmente compartilhados por essas formas verbais, mas representados
por significados distintos. Como intransitivo esse verbo condensa sentidos sociais
referentes aos significados de “íncola”: <<aquele que mora na mesma terra de que
seus antepassados foram proprietários para nela habitar, de modo a cultivar hábitos
já enraizados e, assim, assegurar a permansividade de práticas, ideias, a serem
deixadas como herança às gerações futuras>>. Nessa acepção, o íncola é o
hospedeiro da cultura e dos valores de seus antepassados – dos colos –, também,
responsável pelas reinterpretações capazes de garantir a formação e as
reinterpretações das gerações futuras. É nesse sentido e por um lado, que os
significados do vocábulo “íncola” se inscrevem e se fazem extensivo aos sentidos
das palavras „cultura‟, „culto; já „colonização‟, quanto ao seu uso intransitivo,
referente ao particípio passado de cultus e àquele referente ao futuro, o de culturus.
A essas significações genéricas, entretanto, pode-se também identificar o significado
desse mesmo verbo, “colo” que, empregado como transitivo tem por parassinônimo
as palavras “colônia e colono”, cujos significados se referem a <<passar a morar em
terra alheia – na colônia – aquela que se tornou propriedade de outrem, e nela será
preciso aprender a cultivar os hábitos do seu proprietário: o índio>>. Todavia, o
íncola, no contexto desse campo semântico, passará a exercer o papel social
148
daquele que será alvo da ação do recém-chegado outro, do branco, agora,
proprietário da terra que, outrora, a ele pertencia. Assim procedendo, esse outro-
novo agente exercerá um conjunto de ações por meio das quais deslocará o outrora
sujeito de suas próprias ações para a posição de objeto: aquele sobre quem incidirá
as ações do colonizador e, sobre ambos, o branco e o indígena, as ações
administrativas do Estado Português.
É por meio da tessitura dessas outras-novas ações que o significado da forma
vocabular “colônia” deve ser compreendido como lugar, agora, ocupado por um povo
de quem os antigos proprietários se tornam submissos, assujeitando-se à força do
poder desses outros mandatários. Subservientes se veem obrigados a aprender
novos hábitos: o colono português a cultivar uma terra de abundâncias, ao contrário
da sua; o índio a ingressar na revolução agrícola-pastoril e, ao mesmo tempo,
submeter-se aos parâmetros do novo Estado Moderno de uma sociedade mercantil-
salvacionista e, para tanto, ser catequizado e passar a produzir excedentes
agrícolas para o Estado colonizador.
É nessa acepção que o “colonus ibérico” – aquele que vem de outras terras, é
acolhido pelo estrangeiro-nativo e dele recebe agasalho, pousada e teto – ao longo
de curto tempo, por ter passado a residir, a viver e partilhar do mesmo espaço dessa
nova-outra hospedaria, vai não só ocupando lugares por onde apenas o hospedeiro
percorria, mas alterando, modificando a estrutura e a arquitetura da sua hospedaria.
Gradativamente e ao longo desse tempo, o estrangeiro torna-se o senhor da
hospedaria e o seu antigo dono torna-se o hóspede: um estrangeiro na sua própria
terra. Assim, esse sentido subverte a ordem direta, pré-estabelecida, em ordem
indireta, outra nova-ordem, nela implicada a subversão de relações dos papéis de
sujeito-objeto, marcada pela mudança de funções implicadas nos significados do
verbo “hospedar”, como transitivo direto e transitivo indireto, de modo a fazer
remissão à mudança de posição referente ao exercício dos papéis sociais exercidos,
reciprocamente, pelo “hóspede” e pelo hospedeiro‟, em dois tempos: antes da
descoberta e pós-descoberta do Brasil.
149
Nesse e por esse contexto de ordens-desordens-reordenações implicado no
processo de desterritorização estão implicados, segundo Pesavento (1998), aqueles
referentes aos de destribalização.
4.2.1.1 Estratégias de desterritorizaçãodestribalização da sociedade indígena: o
papel social de “os línguas”
O processo de desterritorização nele implicado, reciprocamente, aquele de
destribalização teve início quando a esquadra de Cabral içou suas velas para
retomar a viagem em direção às Índias e, aqui, deixou dois degredados e dois
grumetes. O propósito desse ato de abandono era que, aqui permanecendo, seriam
obrigados a conviver com os nativos, de modo a conhecer as suas formas de vida,
seus costumes e, ou suas maneiras de agir para “bem aprender suas falas e os
entenderem” (Cortesão, 1943, p. 233); portanto, passariam a mediar a comunicação
entre os novos colonos que viriam aqui aportar. Sobre esse episódio, afirma Bueno
(1998; p. 112) que, aqueles aqui deixados, puseram-se a chorar “em tão altos
brados que até os selvagens se comoveram profundamente, chorando junto a eles”.
Esse choro indígena, entretanto, difere daquele descrito por Jean de Léry, em 1578
(RIBEIRO e MOREIRA NETO, 1992, p. 159), quando se refere às cerimônias por
meio das quais os tupinambás demostravam cordialidade com os estrangeiros que
os vão visitar,
(...). Esse choro cordial tem por referência o fato de um viajante, ao chegar à habitação do mussacá, sentar-se em uma rede e, em seguida, as mulheres reunirem-se em roda dessa rede e, acocoradas ao chão, prantearem as boas-vindas, dizendo coisas em seu louvor como „Tiveste tanto trabalho em vir ver-nos. És bom. És valente‟.
Nesse caso, descrito por Léry, o choro é um comportamento por meio do qual o
nativo demonstra sua cordialidade e hospitalidade com o estrangeiro. No caso
descrito por Bueno (1999), entretanto, os nativos interpretam o choro como um ato
de oferta de solidariedade aos degredados tristes e abandonados pelos demais
navegadores. Esse choro requer, sobretudo, a empatia – capacidade que implica um
alto grau de identificação, de responsabilidade, de compromisso com a preservação
da vida do outro – expressão por meio da qual se busca confortar, oferecer apoio
150
àqueles que aqui ficam. Nesse sentido, as lágrimas desse choro significam a adoção
dos abandonados por aqueles que com eles permanecerão e deles cuidarão.
Trata-se, portanto, de um ato de aceitação daqueles que aqui ficam e aos quais se
somarão os náufragos e os aventureiros que chegariam ao Brasil e, conhecidos e
denominados “línguas”, passarão a exercer um novo papel social: o de tradutores ou
intérpretes das línguas e cultura indígena e, respectivamente da língua portuguesa
para favorecer a comunicação entre ambos. São eles que assegurarão, por um lado,
a travessia entre o mundo dos significados da cultura pagã e aqueles do mundo dos
significados da cultura cristã. Essa travessia, ao mesmo tempo, deslocará “os
línguas” do lugar social por eles ocupados no modelo espacial que qualificou a
formação sociocultural-histórica da sociedade europeia, do século XVI, e os alocou
no modelo de formação sociocultural-histórico de uma sociedade colonial pré-
agrícola. Nela, eles deixaram de exercer o papel social de náufragos, de
desterrados, de degredados, de desertores ou daqueles que foram,
estrategicamente, aqui deixados ou abandonados para viverem entre os nativos e
conhecerem os seus modos de agir, de proceder e de conviver entre si, tornando-se
um deles:
Esses europeus se adaptaram bem à nova situação, tornando-se quase índios. Andavam nus, comiam mandioca, aprendiam os nomes das plantas, a época certa do cultivo, a língua nativa. E geravam filhos, os primeiros brasileiros: identificados com o pai poderoso, mas herdeiros dos costumes da mãe. Criados no cruzamento da cultura materna e das informações paternas, de modo a constituir a base, o alicerce sobre o qual se assentaria o modelo de estrutura de colonização. (CALDEIRA, 1997, p.23).
Imerso e submerso nesse outro espaço sociocultural-histórico, a ocupação, o uso e
a posse nesse tempo – quando se passa a conceber o encontro entre diferentes
etnias pela perspectiva de um ponto de vista por meio do qual “as raças inferiores”
poderiam e deveriam ser submetidas à raça superior - a ocupação do Brasil seria
assegurada pelo casamento.
Segundo Caldeira (2009) a entrega da mulher indígena a um estranho como penhor
de uma aliança funcionou, mesmo antes da chegada dos europeus, como um modo
de organizar a transição da produção comunitária – aquela destinada à satisfação
das necessidades básicas dos membros da família – para aquela da produção de
151
excedentes para tocas. Com a chegada do europeu, por um lado, as trocas desses
excedentes passaram a funcionar como suporte ordenador e organizador do
escambo ou permuta recíprocas de mercadorias ou serviços por seus respectivos
donos. O casamento indígena com os línguas, por outro lado, será interpretado
como ancoragem de um novo empreendimento, um novo modo de organização da
estrutura familiar tanto da sociedade indígena quanto da europeia. Nesse sentido, a
produção de excedentes, transportados para a Europa nos porões dos navios a
cada nova viagem, passa a ser trocada pelos artefatos de ferro, assegurando, por
um lado, o desenvolvimento inicial do processo da economia mercantil. O
casamento de uma indígena com um europeu implicaria a subversão do modelo de
casamento europeu, visto que pelos costumes tupis-guaranis, ao desposar um
estranho que chega de fora, ele não levava a mulher indígena, ela não abandonará
sua casa de nascença para acompanhá-lo. O marido era imediatamente acolhido
pela tribo e passava a viver com sua esposa, juntamente, com os sogros, com os
cunhados, sobrinhos, etc. Seus filhos não eram simples e naturais produtos de
justaposição, mas da fusão entre dois modelos distintos de formação sociocultural,
próprios da mistura de fluidos corporais, de produção econômica com todas as suas
qualidades reais ou imaginárias, avaliadas como positivas e/ou negativas.
Nesse e por esse processo de adoção do europeu, o indígena, herdeiro natural ou
dono da hospedaria vai cedendo – ao longo dessa temporalidade de vivências
comuns onde se situa a fecundação do mameluco: o primeiro marco do processo de
mestiçagem – o seu lugar e essa sua posição social àquele que, a princípio era
apenas um estranho, seu hóspede, conforme já pontuado por Bosi (1993); os
línguas, agora, também se tornam, pelos laços do casamento, parentes dos
indígenas e os indígenas seus cunhados.
4.2.1.2 DesestruturaçãoReestruturação de representações socioculturais,
econômicas e religiosas: o novo papel de “os línguas”
O novo significado da expressão “os línguas” originário desse processo de
destribalização, nele implicado naquele de desterritorialização, resulta do
apagamento dos sentidos atribuídos aos desordeiros, condenados e degredados por
diferentes crimes cometidos na metrópole, bem como aos aventureiros e náufragos.
152
Dentre os agora denominados “empreendedores coloniais”, destaca-se João
Ramalho: um náufrago que aqui se estabelecera, por volta de 1513, na condição de
fugitivo de um navio, ou mais provavelmente como degredado, visto que deixara sua
esposa em Portugal, mas jamais retornou ao seu país, segundo Nóbrega (RIBEIRO
e MOREIRA NETO, 1992, p. 290). Na colônia, afirma esse jesuíta, ele era pai de
(...) muitos filhos e mui aparentados em todo este sertão, e o mais velho deles levo agora comigo ao sertão por mais autorizar o nosso ministério. Porque é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais homens desta Capitania, e todos estes filhos e filhas são de uma índia, filha dos maiores e mais principais desta terra. De maneira que, nele, nela e em seus filhos, esperamos ter em grande meio para a conversão destes gentios.
Em outro momento, o jesuíta afirma ser João Ramalho, também, o símbolo mais
representativo de outro modelo de procedimento, considerado “escandaloso” e que,
à semelhança de uma “pedra”, faz com que nela os representantes da Igreja
tropecem, visto não poder ser ele tomado como exemplo de procedimento da família
cristã europeia, pois “(...) tem muitas outras mulheres” – por conseguinte já não se
refere apenas à sua família com a índia Bartira. Assim tanto ele quanto seus filhos
“andam com irmãs e têm filhos delas e, tanto o pai como os filhos, vão à guerra com
os índios e as suas festas são de índios e assim vivem andando nus como os
mesmos índios”. (RIBEIRO e MOREIRA NETO, 1992, p. 290).
Segundo Ribeiro e Moreira Neto (1992, p. 290), a disseminação desses hábitos e
costumes escandalosos, entre os colonos da nova terra, – que tanto incomodavam
os jesuítas – na verdade e, por um lado, não só funcionaram como uma “pedra onde
a Igreja tropeçava”; mas também e por outro lado, como “ponte”, uma construção,
uma passagem entre duas culturas distanciadas entre si por estágios de processos
civilizatórios distintos. Por ela, os representantes do Estado colonial transitavam
entre as suas duas margens separadas pela depressão de um terreno por onde
corria o curso das águas de um rio que se fazia caudaloso pela junção de dois de
seus principais afluentes. Neles e por esses afluentes os matizes culturais indígenas
escorriam no fluxo contínuo e intermitente das águas dos matizes culturais
europeus, ou vice-versa. Logo, para os administradores, “os línguas” não são
representados como obstáculo – não são pedras e tampouco o precipício criado pela
depressão de um terreno separado por montanhas intransponíveis – mas homens
153
capazes de ocupar o espaço vazio entre os matizes de culturas que, a princípio
distintas entre si, gradativamente, tornam-se comuns, vão sendo cunhadas,
marcadas, moldadas umas nas/pelas outras (CHEVALIER e GUEERBRANT, 2006,
p. 729). João Ramalho representa, assim, o modelo fundador por meio do qual
construíra essa ponte que fora capaz de a ele assegurar a vida em terra dele
desconhecida: o cunhadismo foi a estratégia por meio da qual o colono português
identificara o modo de caminhar e/ou transitar por entre os dois lados de uma nova-
outra estrada, e o indígena um modo de ascender às novas tecnologias do sistema
mercantil-salvacionista.
Nesse contexto, aos membros do pontificado – aqueles que deveriam construir a
ponte entre a Terra e o Céu, resgatando os homens indígenas do fundo do
precipício terrestre, para deslocá-los e situá-los entre no espaço celeste, por uma via
de sentido vertical – caberia ensinar os nativos a caminhar em direção ao alto:
transferi-los do mundo do pecado em direção àquele do “não pecado, da salvação”,
desde que não se perdessem no cruzamento entre as margens daqueles dois rios,
ou na travessia da ponte construída pelos línguas. É por esses e/ou nesses
cruzamentos que o processo de descolonização será o ponto de conflito entre a
política do colonizar e aquela dos catequistas e implicará, após duzentos anos, a
expulsão dos jesuítas do Brasil colônia.
Aos olhos de Anchieta – planificador do processo de evangelização dos nativos (cf.
Informação dos Índios do Brasil), na segunda metade do Século XVI (RIBEIRO e
MOREIRA NETO, 1992, p.33) – as mulheres indígenas, amancebadas com os
portugueses eram obtidas nas praças das
(...) aldeias dos índios (...) porque para os índios não era isso pejo nem vergonha, e lhes chamavam „Temericó‟ a mulher de N., a eles de genros, e os portugueses aos pais e mães delas, sogros e sogras, e aos irmãos cunhados, e lhes davam resgates, ferramentas, roupas, etc..
São, portanto, os línguas que responderão pela produção das primeiras sementes
de que se originaria a consciência de um novo homem: o mameluco brasileiro de
cujo pai herda o poder do Estado Nacional português e de cuja mãe herda a cultura
materna: aquela que, com o consentimento da sua própria tribo, se faz uma
154
“temericó”: a esposa indígena do português. Nesse e por esse papel social , ela
responderá pela preservação da vida de seus filhos, de modo que, seguindo a
tradição indígena, ao se engravidarem de “os línguas” ou mesmo de um homem
indígena, afirma d‟ Evreux apud Ribeiro e Moreira Neto (1992, p.152), abstêm-se da
companhia deles e, tão logo sentem as dores do parto, retiram-se para a floresta
onde, após o nascimento, cortam o cordão umbilical da criança e o devoram cozido,
juntamente com a placenta e as membranas que são expelidas do seu útero.
Yves d‟Evreux, apud Ribeiro e Moreira Neto (1992), pontua, ainda, no que se refere
aos cuidados com os recém-nascidos, que esses, imediatamente após o
nascimento, são lavados e colocados em uma pequena rede de algodão, tendo os
seus membros toda a liberdade porque ficam despidos – ao contrário dos colonos
europeus que eram enfaixados e agasalhados em cueiros. Alimentavam-se com o
leite da mãe e com grãos de milho assados na brasa que, após serem mastigados
na boca da mãe, reduzidos à farinha e misturados com saliva, eram transferidos
para bocas dos recém-nascidos. Informa ainda que “ninguém bate nem chicoteia
essas crianças, que obedecem aos pais e respeitam os mais velhos” (p.153).
Encerra a sua carta reiterando o fato de os pais educarem seus filhos, pautando pelo
exemplo, pelo respeito e pela gratidão aos mais velhos com a certeza de que,
também ao envelhecerem, receberiam exatamente o respeito e a gratidão que seus
pais a eles dispensaram.
Nessa acepção, o pai europeu, na condição de símbolo do poder político estatal,
deve ser respeitado pelo marco dos princípios da lealdade: aquele que assegura a
honra e a probidade, a honestidade, a retidão do caráter íntegro, recebidos como
herança pelos seus filhos. A mãe indígena, na condição de símbolo da força do
poder da sua nação, é aquela que deve ser constantemente respeitada pela
constância de seus hábitos, dos seus costumes, de suas atitudes e de seus
sentimentos, pois é ela quem deveria assegurar a continuidade da vida de seus
filhos – símbolo do zelo, do cuidado, do respeito e do compromisso com a
preservação da vida na sua terra e do seu povo, agora, terra de seus filhos, com o
seu povo, sua nova nacionalidade, inscrita nos registros da sua maternidade.
155
Desse contexto de uma nova paternidade-maternidade, construída e moldada por
parâmetros de distintos matizes sociocultural, emerge outra-nova sociedade cuja
edificação preserva o alicerce, pilares e vigas, herdados de seus antepassados.
Entretanto, essa estrutura apresentará um novo modelo da organização e ordenação
de seus elementos, agora revestidos por argamassa, de onde emerge uma nova
arquitetura, um novo desenho, cujo colorido está entre o amarelo, o negro e o
branco: nos matizes do cafuzo, mameluco e mulato, tem-se o marco fundador da
nacionalidade da sociedade brasileira, formatada pelos processos de
destribalização, incrustrados naqueles de desterritorização, e vice-versa. É nesses e
por esses processos que ficam implicados os pactos e os contratos que orientaram e
orientariam as ações dessa nova sociedade, a princípio registradas na língua geral e
na língua portuguesa de outro-novo povo que se acredita capaz de construir outra
nação administrada por seus mazombos, deles excluídos os elementos que
formaram as ligaduras dessa nova sociedade mestiça.
Ressalta-se por fim que esse processo complexo – extensivo ao longo desses
trezentos anos, aproximadamente, conforme documentos analisados – tinha por
referência aquele de caráter oficial, sob a forma de leis, decretos, cartas (de
doações de terras, sentenças de morte, etc.). Registrados na língua escrita do
colonizador, eles eram traduzidos para a língua geral, antes de serem enviados a
todos os administradores das terras da colônia. Esse trabalho de tradução, por um
lado, antecede àquele de propagação da voz jurídico-administrativa do rei, distante
dos seus colonos, principalmente daqueles que foram sendo gerados na nova terra,
onde aprendiam a língua de suas mães e, na escola jesuítica, a língua geral – esta
seria substituída pela aprendizagem escolar obrigatória da língua portuguesa, a
partir de 1758.
Assim, nesse território plurilíngue onde eram faladas cerca de cento e setenta
línguas indígenas e vários dialetos africanos, a língua portuguesa facultaria o
contato entre todos os seus diferentes, de sorte que, no Século XIX, embora 95% da
sua população fossem analfabetos, ela passaria a responder pela uniformidade
linguística de uma comunidade cujos grupos sociais monolíngues já ocupavam uma
área territorial de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Por outro lado, no contexto
desse espaço ocupado pelo plurilinguismo, situam-se os pactos culturais que
156
garantiriam a criação de um mercado informal em terras do Brasil colônia,
consequência dos processos de destribalização e desterritorização, pontua Caldera
(2015).
4.2.2 O marco fundador do discurso dos mazombos: estratégias da colonização
escravocrata
A experiência vivenciada desde 1432, quanto à ocupação e ao uso das terras das
Ilhas da Madeira e dos Açores, levaria os colonizadores do Estado Português a
iniciar e intensificar, em meados do século XVI, o tráfico negreiro também para o
Brasil. Nesse tempo, já haviam compreendido que os indígenas, “negros da terra”,
por não terem ainda ingressado no processo civilizatório da agricultura e do
pastoreio – nessas terras não havia cavalos e/ou gado (bois, cabras, ovelhas) e
sequer galinhas para serem domesticados – não eram capazes de trabalhar num
mesmo lugar, em tarefas repetitivas, cujo propósito lhes era destituído de quaisquer
sentidos. Ao contrário dos “negros da Guiné”, que já conheciam e dominavam as
tecnologias da revolução pastoril e agrícola e, por isso, capazes de operar os
engenhos e a mais avançada tecnologia, para a época, fato que deles fazia a mão
de obra especializada de que necessitavam os portugueses donos ou senhores de
grandes quantidades de terras cultiváveis.
Conforme análise sistemática e intensiva de documentos redigidos por Benci (1700),
Andreoni (1711) e Pyard (1611), ponderam Ribeiro e Moreira Neto (1995) ser fato
incontestável, por um lado, a inserção do negro de Guiné nos processos de
produção da economia colonial, considerado as mãos e os pés dos senhores de
engenho e, por outro, esses documentos funcionavam como guia, verdadeiro
manual da pedagogia escravista em terras do Brasil. Dirigidos aos proprietários dos
engenhos se referem diretamente a orientações sobre procedimentos eficazes a
serem adotados pelos patrões em relação ao uso proficiente da força de trabalho de
seus respectivos escravos. Essa pedagogia pressupunha ser o “castigo por meio de
açoites ou a ferro” a punição a ser aplicada pelos “senhores discretos e prudentes
de qualquer nação do mundo” (p.347 e 348), pois
157
Os açoites são medicina da culpa; e se os merecem os escravos em maior número do que de ordinário se lhes devem dar, dêem-lhes por partes, isto é, trinta ou quarenta hoje, outros tantos daqui a dois dias , daqui a outros dois dias outros tantos; e assim dando-se lhes por partes, e divididos, poderão receber todo aquele número, que esse o recebessem por junto em um dia, chegariam a ponto ou de desfalecer dessangrados, ou de acabar a vida.
Assim sendo, torna-se senso-comum a afirmação por meio da qual se propaga a
crença de que, no Brasil, não é possível ter ou aumentar fazendas, tampouco ter
engenhos capazes de funcionar de modo adequado, sem fazer uso da receita acima
prescrita. Essa receita previa o uso diário de três substâncias ou elementos dosados
e misturados entre si: o “pau” para os castigos referentes a causas pressupostas,
comprovadas ou não, por meio de açoites, quando os negros eram presos a
correntes de ferro ou a um tronco, para serem chicoteados ou mesmos marcados
em suas faces; o “pão” deveria ser a eles servido, cotidianamente, mas apenas em
quantidade necessária para o sustento de cada um; contudo, sem deixar de evitar
que usassem a aguardente para trocá-la13 por batatas, aipim, feijão e farinha; o
“pano”, também reduzido a uma quantidade estritamente necessária, apenas para
cobrirem seus próprios corpos. Essas atitudes evidenciam que, em uma escala
comparativa, os patrões deveriam atribuir maior valor aos seus cavalos do que a
seus escravos, embora ambos respondessem pela força bruta de trabalho;
entretanto, “sabendo que o cavalo é sempre bem servido, pois tem quem lhe busque
capim, tem pano para o suor, além de sela e freio dourado” (cf. p. 349).
Observa-se que o convívio entre homens cujas vivencias se qualificam por estágios
distintos do processo civilizatório humano – o índio, no pré-agrícola; o africano, no
agrícola e o europeu, no mercantilista – tornaria os dois primeiros subjugados e
engajados no sistema de dominação criado e instituído, ao longo do tempo, por
povos que alcançaram um estágio civilizatório qualificado por tecnologias que
superam aquelas usadas por esses dois primeiros. Essa superação sempre
favoreceu a expansão sob a forma de dominação desses núcleos avançados sobre
13
Nesse caso, o hábito do sistema de trocas – prática comum nas negociações entre colonos europeus e os nativos – mantém-se frequente no trato e nas relações instituídas entre os negros de Guiné e aqueles colonos que se ocupavam da economia de subsistência bem como outras atividades voltadas para o abastecimento dos próprios colonos da Terra. Segundo Caldera (2009), pela produção de excedentes respondia uma primeira geração de homens livres de todo tipo (colonos, posseiros ou moradores do sertão ou índios) e não apenas grandes proprietários de terra responsáveis pelo desenvolvimento e criação de um mercado interno voltado para o abastecimento da população local que daria origem a uma economia informal em Terras do Brasil.
158
aqueles “atrasados” que perdem o comando de seus próprios destinos, tornando-se
condenados à dependência daqueles que invadem e ocupam seus territórios,
afirmam Ribeiro e Moreira Neto (1992). As vivências implicadas nesses estágios
diferenciados do processo civilizatório responderão pela mão de obra escrava que
assegurará o estabelecimento do modelo escravocrata e, por ele, o Estado
Português implantará na sua nova colônia o sistema administrativo de uma
economia agrícola formal, voltada para a exportação comercial. O negro responderá
pela sua produtividade em alta escala; o índio – pela manutenção e pela
permanência do colono português na terra colonial, apossando-se do conjunto de
tudo que nela havia e era essencial à manutenção das suas respectivas vidas –
respondia pelo abastecimento de suas famílias, ou seja, garantia os alimentos
necessários à vida do próprio colono.
É nesse sentido que o indígena, por meio de sua cultura nômade, exercerá o papel
social de guia das bandeiras e entradas, orientará os colonos a caminharem pelas
matas em direção às nascentes dos rios, a abrir estradas em direção aos sertões,
desbravando o interior do território. São essas estradas que, por um lado, farão a
ligação entre o litoral e o interior e, por outro, garantirão a descoberta do ouro e das
pedras preciosas: marco fundador do ciclo econômico da exploração de minérios, no
Século XVIII. Trata-se de um marco que qualificará o processo civilizatório
colonizador do Brasil e favorecerá a sociedade moderna ingressar na era da
revolução industrial. Faz-se necessário ressaltar que, em meados do século XVI, o
açúcar brasileiro foi a principal mercadoria de exportação, mantendo os acordos
firmados entre o clero e o reino até o ano de 175914, quando Pombal expulsou os
jesuítas dos domínios de Portugal.
Nesse contexto, observa Caldera (1997) que as discordâncias entre e os jesuítas
tiveram início quando D. José sofreu um atentado e Pombal ampliou seus poderes
na administração lusitana, buscando colocar em execução os seus planos para
14
Segundo Maxwell (2005), a política administrativa pombalina representou um esforço para tornar mais eficiente a administração régia na Colônia – até então administrada de forma mais efetiva pelos jesuítas que mantinham um bom relacionamento com os nativos, incluindo a comunicação facilitada pelo uso da língua geral. Assim, dentre as medidas implementadas por Pombal, a mais polêmica foi a expulsão dos jesuítas de Portugal e seus domínios, em 1759, e o confisco de todos os bens da ordem, como parte do projeto de subordinação da Igreja ao Estado português.
159
modernização de Portugal. A implicância de Pombal contra os jesuítas manifesta-se
de forma desvelada quando os religiosos se tornaram os principais suspeitos do
atentado contra o Rei. Assim, “os batinas pretas” foram expulsos das terras coloniais
e, com eles, tem início o processo de silenciamento da Língua Geral e, desde então,
a Língua Portuguesa irá se sobrepondo a ela para melhor se ouvir a voz instituída
pela administração do Estado Colonial. Fato significativo para a compreensão do
contexto sociocultural-histórico da literatura brasileira do século XVII, antecedida por
aquela da literatura dos viajantes como marco da fundação da literatura brasileira
(cf. Cap. III) e não a dos jesuítas.
4.3 O Poder dos Contratos Oficiais pelo Poder dos Pactos Culturais: a
formação do Mercado Interno Informal
Para a compreensão de outro-novo contexto socioeconômico, situado entre “as
misérias do presente e as riquezas do possível”, faz-se necessário considerar que a
gestação da comunidade nacional brasileira, ao longo dos séculos iniciais da sua
formação, não se qualificava por laços jurídicos, instituídos e formalizados,
tampouco por meio de contratos entre seus membros. Esses laços se inscreviam
nas vivências afetivas entre seus membros – compadrio e cunhadismo – que, em
sendo institucionalizadas, perderiam sua existência subjetiva para ser revestida de
sentidos objetivos e automatizados, excluindo o engajamento afetivo que garantia a
união entre seus membros, pois:
A institucionalização tem precisamente por função garantir a persistência do elo, independentemente da persistência do engajamento afetivo de cada membro: ela transforma a adesão vivida em obrigações determinadas. A vida comum e as práticas comuns, regulando-se „comunicacionalmente‟ e intuitivamente, cedem o passo a uma prática regida por regras jurídicas. (GORZ, 2004, p. 131)
Assim, as relações comerciais gestadas pelo compadrio-cunhadismo já sustentavam
um sistema econômico informal que, por um lado, antecede à chegada do primeiro
Govenador Geral, em 1553, e, por outro, se faria extensivo a todo o território da
nova colônia, de modo a funcionar como alicerce do sistema de trocas não mediado
pelos valores da moeda – objeto desconhecido das nossas civilizações indígenas e
africanas.
160
Nesse contexto, entre o controle e o não controle da coroa, de acordo com Caldera
(2015), situava-se a esfera administrativa colonial, identificada em documentos
referentes às instalações de Câmaras Municipais pelos governadores gerais cujo
propósito era organizar e controlar as vilas e cidades que se desenvolviam ao longo
do território costeiro colonial. Assim, desde a chegada da primeira expedição de
colonização, comandada por Martim Afonso de Sousa (1530-32), tem início a
implantação dessas “Câmaras” e a escolha de seus oficiais recaía sobre “os homens
bons” desses povoados – pessoas ricas e influentes, geralmente “os línguas” que já
havia se tornado grandes proprietários de terras e de grande influência local, hoje,
denominados vereadores. Assim, a autoridade que responderia pelos seus
comandos não emanava da vontade e determinação do Rei, mas de pactos firmados
entre seus moradores que os elegiam para compor a Câmara.
No espaço de 21 anos que compreende a saída de Martim Afonso de Sousa e a
chegada de Tomé de Sousa, as eleições eram regulares e os eleitos tomavam
posse para um mandato de um ano, ao fim do qual, transferiam os seus poderes a
seus sucessores. Governar para os eleitos implicava o exercício, concomitante, de
três poderes: escreviam as leis, comandavam sua aplicação e chefiavam a aplicação
da justiça. Assim, em todo período colonial, não houve vila no Brasil, com ou sem
autoridade real presente, em que as eleições deixassem de ser realizadas
regularmente; não há notícia de casos de ditadura local, tampouco de usurpação
continuada dos poderes reservados aos eleitos.
Essa mesma relação entre o formal e o informal, desenvolveu-se no campo da
economia colonial, por um lado, desenvolve uma economia formal, voltada para o
abastecimento da metrópole lusitana, conforme já registrado, faz-se presente desde
o Século XVI e que se intensifica ao longo daqueles que a ele são subsequentes e,
por outro, situada à margem da administração colonial, desenvolveu uma economia
informal sobre a qual a Metrópole jamais teve qualquer controle. Afirma Caldera
(2015) que essas relações produtivas de caráter informal não resultavam da
exploração da madeira das grandes propriedades coloniais, tampouco da
monocultura da cana de açúcar, ou mesmo da escravidão indígena e da negra. A
base desse sistema foi a aplicação de dinheiro como capital em negócios de
161
empreendedores que, situados à margem do sistema financeiro instituído pela coroa
portuguesa, facultou o acúmulo de grandes fortunas em algumas regiões da colônia.
Essa prática empreendedora, denominada desde então “economia informal”, é
identificada por historiadores antropólogos que – investigando um conjunto de
documentos referentes a testamento e inventários, pequenos contratos, cadernetas
de negócios comerciais, confissões de dívidas em testamento, ou mesmo nos
chamados “Livros de Razão”, voltados para o registro dos movimentos contábeis de
grandes comerciantes – identificam-na a partir da década de 1660, na Capitania de
São Paulo. Esse o modus operandi assegurou, desde então, o acúmulo de grandes
fortunas concentradas nas mãos de novos colonos: comerciantes da corte que
optaram por investir nos negócios do sistema financeiro colonial por sua conta e
risco.
Um dos representantes dessas práticas de economia informal, referentes às grandes
fortunas, construídas à margem da economia formal, tem como exemplo
procedimentos do Padre Guilherme Pompeu de Almeida (1656-1713), cognominado
“fiador dos pobres” ou “banqueiro do sertão”, em Santana do Parnaíba. Iniciou seus
negócios com o arrendamento de uma forja de um ferreiro, treinou vários escravos
na fundição de ferro e desenvolveu um vasto empreendimento tecnológico com a
fabricação de vários objetos de ferro – facas, machados, cunhas e anzóis,
negociando-os com moradores livres de toda e qualquer espécie – que negociava
com proprietários de grandes porções de terras, escravos, índios e mesmo distantes
poceiros e moradores do sertão. Tais pessoas recebiam esses instrumentos do
trabalho diário sob a forma de crédito e, posteriormente, pagavam seu fornecedor
por meio de vários outros tipos de mercadorias por eles produzidas.
Observa-se que em razão, por um lado, de o pacto colonial proibir a produção de
qualquer tipo de manufatura em solo colonial e, por outro lado, a impossibilidade de
circulação de moedas do sistema econômico português, em suas terras coloniais, os
negociantes asseguraram o exercício dessas suas práticas comerciais por meio do
princípio da lealdade e da confiança, inscrita nos significados do verbo “fiar”. Assim,
a confiança, o crédito atribuído à palavra empenhada entre os comerciantes, crentes
da sinceridade das intenções uns dos outros, tornou-se a única moeda de troca que
162
daria origem aos primeiros comerciantes que jamais negociaram diretamente com a
metrópole, não acumularam terras, não investiram na monocultura como principal
negócio econômico e não se ocuparam do exercício de cargos administrativos ou
eletivos, em nome da coroa. Todavia e desde então, acumularam um imenso capital,
favorecendo, por exemplo, o Padre Guilherme Pompeu de Almeida se tornar o
primeiro banqueiro do sertão, a se ocupar de investimentos para financiar, por meio
do fornecimento de ferro, as empreitadas sertanejas, ao longo do tempo das
primeiras as entradas dos colonos paulistanos, em direção ao sertão do interior da
Colônia. (CALDERA, 2015)
Nesse espaço denominado sertão – uma terra de leis especiais, distanciadas e
ignoradas pelas leis dos contratos firmados em língua escrita – os significados
atribuídos ao verbo “fiar” são expandidos por aqueles atribuídos ao substantivo “fio”
<<uma fibra comprida e delgada de matéria usada para fabricar algo enredando,
entrelaçando fios>>. Neste caso, os fios das ideias para construir uma trama, ou
seja, um enredo pelo conjunto desses fios que se cruzam, de modo a compor outra
história; outra-nova textura. É, portanto, no e pelo tecido dos fios do cunhadismo,
sustentado pelos casamentos entre povos de culturas distintas, entretecidos no
espaço vazio entre os nós dos fios de uma economia formal, que se torna possível
identificar, de modo tênue, os elos de uma corrente que vai sendo construída pelos
pactos, ou seja, pelos “fios do bigode” dos mamelucos, dos mulatos e dos mestiços.
Aliados à prática de fiar, outros procedimentos de financiamentos movimentaram a
economia interna colonial que, independente dos fluxos comerciais que abasteciam
a economia externa, a interna contribuiu para o crescimento da população de
homens livres e, consequentemente, para o crescimento de um variado mercado em
que se destacaram: pecuária, alimentação, vestuário, transporte, siderurgia,
confecção e vários outros artefatos, resultantes de ciclos completos de produção. A
relação que orientou essa economia foi fundada e fundamentada no uso da palavra
empenhada que, segundo Caldeira (2009, p. 312), era usada para selar esses
contratos de uma cultura da civilização do oral,
163
(...) cuja única garantia era o hábito de arrancar um fio de bigode como símbolo de palavra empenhada. E tinha de ser dessa forma, já que a imensa maioria dos contratos assim celebrados não recebia a proteção da lei: quase todos esses contratos informais se referiam a acordos incobráveis na justiça, ou que tivessem qualquer garantia paralela.
Por conseguinte o “fiado” tem por referência relações econômicas entre
empreendedores desprovidos de valores de capital material a quem esses primeiros
empresários garantiam o adiantamento de mercadorias, pouco importando suas
posições sociais, o grau de suas respectivas inserções sociocultural e a forma de
eles organizarem seus respectivos trabalhos. O fundamental era a capacidade de os
primeiros fornecerem retorno do investimento aplicado, sob a forma de fiado,
devolvendo a eles as mercadorias que lhes foram emprestadas. Até mesmo os
escravos eram merecedores de crédito; podiam guardar seus ganhos, ao longo do
tempo, tornando-se empreendedores.
Nesse contexto sócio histórico traçado por leituras de documentos oficiais – alguns
amplamente propagados; outros redescobertos por estudiosos da historiografia
atual, por meio de pesquisas desenvolvidas no campo da história da vertente social
reinterpretada pela perspectiva da antropologia – e conforme desenvolvido ao longo
dos itens por meio dos quais se buscou expandir o recorte temático deste capítulo –
apresenta-se, a seguir, um quadro síntese das estratégias de ocupação, uso e
posse do território colonial do Brasil, delimitadas ao século XVIII.
164
Figura 17: Estratégias de Ocupação, uso e posse do Território Colonial. Fonte: Acervo do Pesquisador
165
O esquema, acima, implicou a reconstrução do cenário histórico-político-cultural que,
inscrito na memória referente ao modelo das instituições estatais do Brasil colônia,
por um lado, as aproximavam daquelas do reino português pelos contratos jurídico-
comerciais e, por outro, as distanciavam daquelas desse mesmo reino pelos pactos
do compadrio e do cunhadismo. Essas relações, conforme pontuado no esquema,
são desencadeadas pelas práticas sociais do fiado e as do fio do bigode cuja
ancoragem é o sistema do “toma lá, dá cá”, assegurado pelo princípio da lealdade e
da fidelidade, modalizado pela confiança, fundada e fundamentada nas qualidades
ou na crença de que uma pessoa é confiável, ou capaz de cumprir com a palavra
empenhada. Trata-se, portanto, de relações entre parceiros do mundo dos negócios
que, pela confiança mútua, institui e garante o crédito pelo “fiado”.
4.4 O poder dos Pactos e a Expansão do Mercado Interno Informal: a
descoberta das minas de ouro
O cenário construído pelas instituições estatais e reinterpretado pelos línguas, nos
séculos XVII e XVIII, deslocaria o olhar de alguns comerciantes, principalmente
daqueles descendentes dos línguas, para o interior da terras coloniais, contrapondo-
se ao àqueles que mantinham seus olhares para o mar de onde partiam os navios
carregados de pau-brasil, de rapaduras para serem manufaturas na Europa, ou
chegavam os navios carregados de negros da Guiné.
Segundo Caldera (2009), nesse cenário formado pela implantação do mercado
econômico colonial, fez-se necessário conhecer as terras em direção às regiões do
interior da colônia para ocupá-las e explorá-las. Para tanto, foram organizadas
“Entradas” e “Bandeiras”: as primeiras eram expedições oficiais compostas por
soldados portugueses e brasileiros, organizadas e financiadas pelo governo
português com o objetivo de mapear o território brasileiro de modo a oferecer à
Coroa informações que possibilitassem uma política de colonização dessa região
interiorana. As segundas, denominadas “Bandeiras”, eram expedições organizadas
e financiadas por particulares, mais especificamente por comerciantes paulistas,
possuidores de boa fortuna, cujas famílias eram compostas por diferentes membros,
principalmente filhos, genros e cunhados, além de agregados: os mamelucos,
mulatos, cafuzos e brancos pobres. Ao contrário das Entradas, a finalidade era
166
adentrar o sertão para descobrir jazidas de ouro e pedras preciosas; razão pela qual
coube aos Bandeirantes a aventura de desbravar regiões desconhecidas, habitadas
por índios e animais ferozes, vencerem barreiras de elevadas montanhas, como o
Itatiaia15, florestas virgens, matas mal penetradas, atravessarem rios caudalosos até
avistarem dois enormes blocos de pedra – o Itacolomi16. Ao longo desse percurso de
buscas, esses aventureiros, ao tomarem água no Tripuí17, rio que serpenteia essas
pedras, num primeiro momento, se depararam com pedrinhas de cor escura e,
posteriormente, com pedras de ouro que passaram a ser exploradas. São esses
garimpeiros que erguem às margens desse mesmo rio o arraial de Nossa Senhora
do Pilar de Ouro Preto, posteriormente Vila Rica e, atualmente, Ouro Preto (LUCAS,
1988).
A notícia da descoberta das minas foi silenciada por um período ao longo do qual os
Bandeirantes exploraram, principalmente, o ouro de aluvião – aquele que se
apresentava misturado às areias e ao cascalho dos leitos e das margens dos
córregos e rios daquela região. À medida que as informações sobre a descoberta de
ouro começaram a se tornar públicas, enormes contingentes populacionais foram
atraídos para a região e, em menos de 30 anos de exploração, Vila Rica já contava
com cerca de 30.000 habitantes, vindos do Reino e de outras partes da Colônia,
para uma aventura cuja lei era não ter lei, pontua Ab‟saber (2003). Para alimentar
esses aventureiros exploradores que se aglomeram na região das minas, é
intensificada a produção agropecuária do mercado de subsistência em várias
capitanias – criação de mulas, de gado, a plantação de trigo, erva mate, milho,
feijão, a produção de toucinho, farinha e charque, etc. Já a população da capitania
mineira, em 1776, ela chegaria a 319.769 habitantes, sendo que os mestiços
equivaliam a 77,9% em contraposição a 22,9% de mazombos e, segundo Souza
(2004), é possível identificar, nesse tempo a formação de outro-novo povo, os
desclassificados do ouro em contraposição aos mazombos.
Nesse novo contexto regional das vivências coloniais, a Coroa portuguesa, para
controlar a extração do ouro e o comércio que alimentava o desenvolvimento do
15
Penhasco cheio de pontas. 16
Filho da montanha. São duas pedras: uma maior e outra menor que fazem lembrar mãe e filha. 17
Água de fundo turvo.
167
mercado informal, de modo a ter acesso e exercer rígido controle fiscal-
administrativo sobre os bens dessa economia informal, institui um conjunto de
medidas administrativas, quais sejam: 1) as datas: regulamento que tornava
propriedade da Coroa toda e qualquer área onde o ouro fosse encontrado; 2) a
criação das casas de fundição; 3) o quinto: imposto que incidia sobre todos os
metais extraídos das minas em favor do Rei a quem cabia a remessa mínima de 100
arroubas de ouro por ano; 4) a capitação: obrigação atribuída a cada minerador
referente ao pagamento de uma taxa por cada cabeça de escravo - fosse ele
produtivo ou não; 5) a derrama: tributo per capita que tinha a função de
complementar os valores das dívidas que os mineiros acumulassem junto ao
governo português, cuja arrecadação era feita por meio do confisco de bens e/ou
propriedades do devedor, desde que essas fossem do interesse da Coroa; 6) as
entradas: cobrança de tributos sobre toda e qualquer mercadoria que entrasse na
região das minas. Esse controle administrativo, regulado por contratos, favoreceu e
intensificou a prática do contrabando, fosse pelo Caminho Velho, fosse pelo
Caminho Novo: aqueles por onde circulavam tropas de muares, comboios de
escravos, boiadas, alimentos e mercadorias para a região mineradora e por onde
era escoado o ouro (SANTOS, 2001).
Esse rígido e intenso sistema de tributação e de fiscalização que passa a incidir
sobre a exploração do ouro e de todas as mercadorias que entravam e saíam da
região das minas, aliados aos altos preços de gêneros manufaturados oferecidos por
Portugal, impulsionaram conflitos e revoltas na região mineradora, como a Guerra
dos Emboabas (1707-1709), a Revolta de Felipe dos Santos (1720) e o movimento
conhecido como a Inconfidência ou Conjuração Mineira (1789). Os Inconfidentes
pretendiam cortar os laços político-administrativos com a Coroa portuguesa e instituir
uma república independente, governada durante três anos, por Tomás Antônio
Gonzaga, conforme a constituição elaborada pelo próprio Gonzaga, ouvidor da
Coroa durante o governo de Rodrigo José de Meneses, conjuntamente com o
advogado Cláudio Manuel da Costa e o Cônego Luís Vieira. A esse objetivo
separatista estava agregado o cancelamento da cobrança excessiva de altos
impostos que incidiam sobre a extração do ouro, cuja produção já se encontrava
escassa na segunda metade do Século XVIII. (RESENDE; VILLATA, 2007)
168
4.5 Rupturas de Contrato pelos Pactos: entre delações, degredos e morte de
Inconfidentes
O contexto local, delimitado ao evento extraordinário da Conjuração Mineira
vivenciado no cotidiano administrativo do Brasil Colonial, desencadeado pelos
Inconfidentes mineiros – conforme se buscou delinear no item anterior – está
compreendido como um dos episódios da trama da história dos processos de
colonização de essa nossa Terra. Dele não se excluem os processos de
destribalização e desterritorialização que qualificaram o contexto global de um
desvio de rota da história da civilização europeia, nela implicada a mudança do
papel social dos náufragos e degredados para o de “línguas”, bem como aquele
vivenciado pelos “cunhados”, pelos genros e pelos “comerciantes e financiadores”
dos navios negreiros e das Bandeiras. No e pelo exercício desses papéis,
inscrevem-se os contornos de um primeiro projeto político-administrativo
transformador, o republicano inconfidente, cujo propósito visava à construção de um
“estado independente” da coroa portuguesa, denominado por nossos historiadores
por Inconfidência Mineira, de 1789. Sua planificação é desvelada pelo traçado de
ações a serem estrategicamente desencadeadas pelos “mazombos” tão logo fosse
implantada a Derrama, a mando da Rainha de Portugal. Todavia, a delação
premiada de Joaquim Silvério dos Reis – português que exercia o cargo de Coronel-
comandante do Regimento de Cavalaria auxiliar, contratador de entradas, fazendeiro
e proprietário de minas que, devido à carga tributária excessiva, estava falido – fora
negociada sob a forma de carta denúncia em troca do perdão de sua dívida, dirigida
ao Governador da província, Visconde de Barbacena. Trata-se, portanto, do
exercício de outro-novo papel vivenciado pelos descendentes de “os línguas”: o de
revolucionários coloniais.
O modelo situacional, referente aos acontecimentos desse contexto imediato, situa
os mazombos – em geral homens letrados e qualificados para o exercício das
práticas administrativas coloniais – que, conforme dissera Tiradentes, eram capazes
de governar de forma democrática uma república independente: a Capitania das
Minas Gerais. Parte desses mazombos inconfidentes eram administradores de
várias minas, padres e bacharéis em Direito, que, após se formarem em Coimbra,
retornavam à Colônia para exercerem altos cargos na administração do governo
169
português. Essas práticas administrativas vivenciadas no período pombalino, devido
a um vasto programa de reformas políticas e econômicas, por um lado, levaria
Portugal a vivenciar transformações sócio-político-econômicas que possibilitaram
qualificá-lo como um Estado Moderno e, por outro, tornaria mais eficiente o seu
relacionamento com a sua Colônia de exploração.
Entretanto, ponderam os historiadores, essa nova política propiciou o envolvimento
de membros da plutocracia colonial nos órgãos administrativos e fiscais do governo:
comerciantes e homens de negócios foram atraídos para as seções administrativas
da Fazenda Real e nomeados para as intendências coloniais do ouro,
transformaram-se, assim, em funcionários fiscalizadores, além de serem estimulados
a assumirem postos de liderança das instituições militares da colônia. Os grandes da
magistratura, também, recebiam benéficios régios, sendo indicados para influentes
posições judiciais onde tinham amplos interesses financeiros – este foi o caso de
Alvarenga Peixoto, nomeado para o cargo de Ouvidor da comarca do Rio das
Mortes, zona onde nascera. Condição semelhante foi vivenciada pelo Padre José da
Silva de Oliveira Rolim, filho do Primeiro Caixa da Real Extração dos Diamantes, que
se ocupava, pessoalmente, da garimpagem em áreas proibidas, acrescentando a
essa atividade aquela voltada para importação ilegal de escravos.
Esses acontecimentos de interesses conflitantes vivenciados entre os colonizados
da terra, os mazombos, qualificava o cenário administrativo, em que os potentados
compunham uma verdadeira oligarquia, inserida na administração colonial. Todavia,
em 1777, tão logo assume o trono, D. Maria substitui o Ministro de Ultramar –
nomeia Martinho de Melo e Castro, excluindo o Marquês de Pombal de suas funções
governamentais – que, por um lado, deverá assegurar a arrecadação do quinto real
e, por outro lado, afastar da administração famílias que conquistaram privilégios na
administração de Pombal.
Nesse contexto político, voltado para outra nova ordem administrativa e nele
implicada a mudança de lugar na escala hierárquica, bem como a posição e o
exercício de papel social, D. Maria, princesa do reino de Bragança, passa a falar aos
seus súditos como Rainha de Portugal e nomeia D. Rodrigo José de Meneses
governador da Capitania de Minas Gerais, em 20 de fevereiro de 1780. Segundo
170
Vasconcelos (1999), um homem de espírito largo e empreendedor que foi capaz de
compreender que as medidas tomadas pelo Reino facilitavam a mineração ilegal, a
corrupção e os desmandos, pois a região era pouco conhecida e, para desbravá-la,
fez várias viagens pelo interior da capitania das Minas Gerais. Outro traço marcante
da administração de D. Rodrigo foi tornar-se amigo da “nobreza da terra” e dos
letrados, principalmente de Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Para
Souza (2004), D. Rodrigo deixou em Minas Gerais um retrato das relações azedas,
ácidas e, ao mesmo tempo, adocicadas desencadeadas pelo seu governo para
conciliar as partes conflitantes com as ordens da rainha. Dessa forma, disfarçava a
firmeza dos seus mandos, sob a aparência da temperança e da concórdia com os
interesses dos habitantes locais. Assim, em 1783, seria transferido para a Bahia e
chegaria a Vila Rica – para ocupar o cargo de Governador, transferido da Capitania
de Goiás – Luís da Cunha Meneses cuja política administrativa não só contrariaria
os interesses dos mazombos locais, além de ignorar aquelas do reino.
Os dados acima registrados, indiciadores da situação de desordem administrativa do
modelo pombalino, implicados na revisão dos termos contratuais impostos pela
metrópole à sua colônia, em razão da imposição de novas ordens, dariam origem ao
projeto planificado pelos Inconfidentes. Será ele aquele que permanecerá na
memória histórica do povo colonial como projeção de um mundo possível que,
embora idealizado e planificado, não foi realizado, vivenciado. Trata-se do aborto de
um projeto local que, por um lado e cem anos depois, em 1889, será revisado pelo
poder militar instituído na colônia de modo a estender o poder republicano a todo o
território imperial e, por outro lado, esse mesmo poder, transformará o papel social
de “inconfidente traidor”18 – representado, na/pela história colonial por Tiradentes –
em “herói nacional”.
18
“Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes Alferes que foi da Tropa paga da Capitania de Minas a que com o baraço e o pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nella morra de morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Villa Rica aonde em lugar publico dela será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregados em postes pelos caminho de Minas no sitio da Varginha e das Sebolas aonde o Réu teve as suas infames práticas e os mais nos sítios (sic) de maiores povoações até que o tempo os consuma...” (manteve-se a grafia original)
171
Ressalta-se, portanto, que nesse outro-novo cenário local histórico-cultural-
ideológico, desvelado pelos estudos acima registrados, destaca-se o projeto dos
Inconfidentes das Minas Gerais cujo objetivo, conforme já apontado, incidia sobre a
conquista da liberdade, ainda que tardia. Afirma Torres (1973) ser esta a narrativa
de um episódio da história, projetada, planificada e vivenciada pelos mazombos e
nela Tomaz Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa falavam em nome do
poder judiciário, pelo exercício da magistratura colonial; Joaquim José da Silva
Xavier, o Tiradentes, dentre outras atividades profissionais – dentista, tropeiro,
minerador, comerciante, etc. – falava em nome do destacamento dos “Dragões da
tropa da Capitânia de Minas Gerais”; portanto, em nome da força do poder militar. A
eles estavam agregados, também, aqueles que falavam em nome do poder
eclesiástico como o Padre Rolim. Esses, dentre outros mazombos, mentores do
movimento da Conjuração Mineira, tornaram-se “Inconfidentes”: homens nos quais a
Coroa não mais podia confiar. Pondera Torres (1973) ser preciso considerar a não
adesão dos mulatos, dos mamelucos e dos cafuzos a esse movimento de
insurreição e, portanto, a não participação, a não ser como expectadores: marco
político dos governos instituídos nas colônias, mesmo depois de libertadas, “os
grupos de o poder político instituído desde então, formados pela oligarquia” – não se
consideravam povo, à semelhança dos mazombos.
4.6 As Cartas Chilenas entre o Discurso da História e o da Literatura
Situamos as análises sobre Cartas Chilenas que incidiram no espaço do curto tempo
dos acontecimentos que antecedem a prisão (1789), bem como o degredo de
Gonzaga (1792), visto que elas foram escritas durante o governo de Luís da Cunha
Menezes na Província de Minas Gerais, ao longo do quadriênio de 1783 a 1786,
segundo Oliveira (1972). Essas análises incidiram – à semelhança da Carta de Pero
Vaz de Caminha (cf. Cap. III) – sobre os atos de fala por meio dos quais foram
institucionalizados, em língua escrita, os diálogos entre Critilo e Doroteu, sobre o
governo do Fanfarrão Minésio. O pseudônimo “Critilo” – personagem criado pelo
espanhol Baltazar Gracian, em „El Criticon19‟ – por um lado, funciona
19
El Criticon narra a história de Critilo que, viajando de Goa para a Espanha, cai no mar, mas consegue se salvar na Ilha de Santa Helena, onde encontra o jovem Andrênio e, juntos partem para a busca de Felisinda (a Felicidade). Critilo é um homem talentoso e criterioso, segue o caminho do
172
estrategicamente como recurso para ocultar a identidade do enunciador-redator da
Carta: Tomas Antônio Gonzaga, identificado no campo dos estudos historiográficos
e literários, como o Ouvidor-mor do reino português na Capitania de Minas Gerais20.
O pseudônimo Doroteu, por outro lado, identificado como seu leitor enunciatário,
representa Cláudio Manuel da Costa: membro da magistratura colonial no exercício
do papel de advogado – o seu Andrênio – ocultado no criptônimo „Doroteu‟: forma
masculina de „Doroteia‟ que, em grego, condensa o sentido de <<dádiva de Deus>>,
anagrama de „Teodora‟, „Teodoro‟ <<dado por Deus, a dádiva de Deus>>. Assim, ao
referir-se a Cláudio Manuel da Costa como „Doroteu‟, fica explicitada a relação
profissional e de cumplicidade de amigos entre ele e Gonzaga e, nessa dimensão,
na referência a „Teo‟, fica implicado o sentido de “grande sábio” como este último era
conhecido entre a elite intelectual de Vila Rica. Aquele de quem o enunciador fala ao
seu enunciatário – o sujeito dos enunciados do texto poético, registrado sob a forma
de 3.964 versos decassílabos brancos; o “ele” – é o governador da Capitania das
Minas Gerais: Luís da Cunha Meneses21, o Fanfarrão Minésio. Consideradas as
significações atribuídas ao vocábulo “fanfarrão”, “o ele” está qualificado de modo a
identificar aquele que <<conta bravatas, que alardeia coragem sem ser corajoso>>
(cf. Houaiss, 2009) e, segundo Bluteau (1728), “o ele” é <<aquele cujo ar de
arrogância expressa façanhas que jamais realizou, veste-se de forma bizarra e, com
empenho e interesse expressa orgulho exagerado de si próprio, ostentando
pretensos e exagerados méritos e conquistas dos quais se vangloria>>.
centro, a justa medida, fugindo de quaisquer excessos. Ao longo do caminho, Critilo e Andrênio passam por várias provações até chegarem ao fim da jornada e concluírem que “se todos buscam Felisinda é porque ninguém a tem. A felicidade apenas pode ser encontrada em outro mundo, se acaso alguém souber merecê-la neste” (OLIVEIRA, 1972, p. 15-6). 20
Observa-se que esse ouvidor, embora já houvesse redigido uma representação contra o governador Luiz da Cunha Menezes, dirigida à Rainha dona Maria sobre os poderes ilimitados desse governador, bem como a usurpação no campo da jurisdição Civil e Criminal, esta fora totalmente ignorada pelo reino distante: “Nem me atrevo a representar coisa alguma a êste Exmo. General, por conhecer o seu notório despotismo. Êle tira os padecentes do patíbulo; ele açoita com instrumentos de castigar os escravos as pessoas livres, sem mais culpa ou processo do que uma simples informação dos comandantes; ele mete os advogados e homens graves a ferros; êle dá portarias aos contratadores para prenderem a todos os que êles querem que lhes devam; êle revoga os julgados ainda o mesmo das Relações. Enfim, Senhora, ele não tem outra lei e razão mais que o ditame de sua vontade' e dos seus criados” (cf. Ferreira, 1986, p. 42) 21
Afirma Eulálio (1983) que o Fanfarrão Minésio faz referência ao soldado „Miles Glorious ou o Soldado Fanfarrão, de Plautus, adaptação da comédia grega “Alazon”
21. Minésio, por sua vez, resulta
de um jogo fonético como „Meneses‟, nome da família de Luís da Cunha.
173
A cena enunciativa, conforme pressuposto por Charaudeau e Maingueneau (2008),
Charaudeau (2010) e Maingueneau (2013), foi compreendida como a representação
que o discurso faz da sua própria situação de enunciação, identificada em Cartas
Chilenas pelo uso de estratégias de ocultamento dos interlocutores, de modo a
legitimar o conteúdo do dito. A encenação trata da posição assumida pelos
interlocutores para representar o(s) papel(is) social(is) de amigos confidentes que
conversam entre si sobre acontecimentos vivenciados pelo povo chileno, durante a
gestão administrativa de um governador fanfarrão da colonização espanhola da
América do Sul.
Todavia, a composição da obra de Gonzaga não se reduz apenas a essas treze
cartas, pois elas são antecedidas por:
a) uma “apresentação” do tema da obra para se referir “aos sucessos de todo o
Governo do Fanfarrão Minésio, general do Chile” (p. 23);
b) uma “dedicatória” dirigida aos grandes de Portugal com quem fala por meio de
uma linguagem formal – Ilmo., e Exmo. Senhores, repetição de V. Ex.a cinco vezes –
para expressar de forma respeitosa e cerimoniosa àqueles a quem o interlocutor se
dirige de modo a marcar a posição necessária de distanciamento do lugar ocupado,
na sociedade da época, entre o autor-enunciador e seus leitores-enunciatários. Esse
mesmo grau de distanciamento é reiterado na despedida, quando afirma: “Beija as
mãos” e “De V. Ex.ª. o seu menor criado”. Assim procedendo, informa àqueles a
quem “os nossos soberanos costumam fiar os Governos de nossas Conquistas para
que possam se instruir na arte da administração”; pois, se assim deixarem de
proceder, tais governantes serão qualificados por “ações indignas”, de modo a incitar
o aborrecimento de os cidadãos, ao se verem representados por “monstros cobertos
de horrorosos vícios”;
c) um “prólogo”: para informar ao leitor-enunciatário, qualificado como sendo ele
seu “amigo”, o enunciador autor um simples tradutor das cartas escritas em língua
espanhola, adaptadas ao gosto do falante de língua portuguesa. Esclarece que
essas cartas foram por ele encontradas em meio a outros manuscritos que lhe foram
confiados por um mancebo que vinha das Américas Espanholas e se arribou a certo
porto do Brasil; trata-se de uma estratégia semelhante àquela usada por
174
Montesquieu, ao produzir as suas Cartas Persas, publicadas em 172122. Nesse
período, conforme afirma Starobinsk, no prefácio às Cartas Persas
(MONTESQUIEU, 2009), a maioria dos escritores se fazia passar por simples
editores que recebiam papéis interessantes e os entregavam ao público para sua
informação. A estratégia de ocultamento de autoria verificada em Cartas Persas e
Cartas Chilenas faculta ao enunciador forjar um distanciamento autoral e espacial
para melhor desvelar hábitos, costumes, paixões, perigos, desventuras, virtudes,
negligências, poder, curiosidades, vaidades, intolerâncias, ignorância, injustiças,
hipocrisias, etc. comuns na sociedade francesa e chilena (mineira) da época.
d) uma “epístola” dirigida a Critilo, em resposta às múltiplas interpelações feitas ao
longo das treze cartas redigidas por Doroteu e a ele enviadas. Aqui Doroteu assume
o papel de enunciador, deslocando Critilo para a posição de enunciatário, para a ele
assegurar o grau de veracidade dos acontecimentos representados sob a forma de
narrativa. Faz uso da estratégia da comparação, à semelhança de Critilo, para a ele
asseverar que tais representações tão bem pintadas nos versos do amigo
dificultaram a ele decidir “qual seja a cópia. Qual seja o original”.
Essas vozes plurais, inscritas no discurso de Cartas Chilenas são monofonizadas
por um autor dissimulado que reinterpreta pelo discurso literário o discurso da
história de um governante cujos vícios, defeitos e indecências são desvelados a
seus interlocutores-leitores. É nesse e por esse contexto de posições e exercício de
diferentes papéis sociais, conforme acima registrado, que se podem considerar as
seguintes cenas enunciativas em Cartas Chilenas, apresentadas na página seguinte.
É nesse e por esse contexto que, por um lado, o discurso literário faz uso de
estratégias de ocultamentos de identidades das posições sociais que, assumidas
pelos interlocutores no espaço da esfera da vida pública administrativa do modelo de
contexto colonizador, as qualificam pelo papel de Ouvidor e advogado do Rei, no
espaço ocupado pelo discurso oficial da história colonial. Esse ocultamento implica,
por outro lado, a criação ou a invenção de outra-nova posição social de onde esses
atores continuam a falar sobre os acontecimentos que vivenciam no espaço público
22
O autor de Cartas Persas também informa seu leitor ter se alojado em um mesmo lugar com dois viajantes persas, Usberk e Rica, com quem travou estreita relação e esses lhe passaram um conjunto de cartas com relatos sobre o reinado de Luís XIV.
175
administrativo, instituído na colônia. Agora, situados no espaço da vida privada –
lugar de onde falam por meio do exercício do papel social que qualifica a intimidade
necessária para o exercício do papel social de amigos – conversam em voz muito
baixa, sob a forma de sussurros murmurantes e em tom sarcástico e mordaz, para
agredir aquele de quem falam: o representante do poder político administrativo
colonial.
176
Figura 18: Cenas enunciativas de Cartas Chilenas. Fonte: Acervo do Pesquisador.
177
Esse matiz sonoro predominante da tonalidade dessas suas vozes tem o propósito
de evitar que outros – aqueles que eram colabores e submissos à voz do atual
comando do governador da Capitania das Minas Gerais – ouvissem e propagassem,
no espaço da esfera pública, o que diziam entre si, no espaço da esfera privada, ou
seja, os conteúdos daquilo sobre quem falavam: o Fanfarrão. Assim procedendo,
buscam evitar represálias e punições, visto que o tom dessas suas vozes colocava
em relevo o modo de agir e proceder desse governador que provocava não só o
riso, mas também o desdém, o menosprezo e a indignação desses dois amigos.
4.6.1 Os rituais dos atos de fala e a representação do Fanfarrão
Nesse e por esse cenário do espaço privado, acima identificado, que o autor-
enunciador situa a(s) cena(s) enunciativa(s) das 13 Cartas enviadas ao seu
destinatário, onde narra as suas vivências representadas como fatos extensivos dos
quais participam outros inconfidentes semelhantes àqueles também vivenciados na
Chile do Fanfarrão, com quem compartilha suas projeções. Essas incidiam sobre
mudanças, modos e condições necessárias para administrar a vida pública colonial
brasileira. São esses recursos linguísticos, inerentes a essa modalidade de
enunciação, qualificadas por esses modos de dizer, que caracterizam o gênero
satírico, específico do discurso literário cujo propósito é se referir à identificação ou à
punição de pessoas por meio da crítica do discurso.
O uso estratégico de elementos linguísticos selecionados para se referirem aos
conhecimentos não linguísticos visa a provocar o riso pela construção do referente:
a personagem disforme por meio da qual o produtor enunciatário atribui relevo aos
modos como ela procede ou se comporta de forma estereotipada, no exercício do
papel social da sua função de governador colonial – o representante da coroa
portuguesa europeia. Essa deformidade está representada por meio de segmentos
textuais descritivos que incidem sobre atitudes constrangedoras, desrespeitosas,
arrogantes, fingidas, inúteis, fúteis, etc. qualificadas pela presunção, vaidade ou
orgulho inútil, de um governante despudorado, cujas ações são intensificadas por
práticas ilegais extensivas a todas as instituições que regem a vida colonial na sua
esfera pública ou privada.
178
A criticidade dessas atitudes agressivas contra o poder e a ordem pré-estabelecida
funciona no exercício das práticas textuais discursivas das Cartas como recurso
polifônico por meio do qual a realidade é articulada à imaginação e povoada por
imagens reais que contém, por um lado, uma perspectiva agressiva da
representação dos fatos vivenciados na esfera do cotidiano e, por outro, uma visão
fantasiosa desses mesmos fatos. O coro dessas vozes polifônicas, monofonizadas
pelo enunciador-autor são abstraídas do mundo real para expressar sentidos
contrários às virtudes humanas, referentes aos vícios e as imperfeições humanas
marcadas pela tonalidade do seu dizer. Esse processo de inversão de regras
sociocultural-históricas de cortesia, pré-estabelecidas e partilhadas por meio de
pactos ou contratos socializantes e sociabilizados, é o principal recurso por meio do
qual se assegura a produção do discurso qualificado pelo gênero satírico. Esse tipo
de discurso tem a função de provocar o prazer da sua leitura e, ao mesmo tempo,
ensinar divertindo, castigar rindo, ao deslocar o seu leitor para o espaço de um
modelo de representação de uma personagem que é rebaixada do mundo das
virtudes para o mundo das misérias humanas pelos seus vícios e pecados contra
Deus e contra o Rei. (HANSEN, 1991)
Tal procedimento amplia o espaço dos conhecimentos de mundos pela observação
minuciosa que o produtor autor julga correta para direcionar o olhar do seu leitor
para os fatos que dele são desconhecidos ou estão encobertos pelo manto da
mentira e da hipocrisia. Esse olhar atento do autor satírico do texto literário responde
pela mudança do ponto de vista em relação ao que é observado pela criticidade do
seu olhar. Para tanto, dirige-se ao seu interlocutor ouvinte e, por meio de um ato de
fala ilocucional (AUSTIN, 1976), ordena a ele que ouça com atenção, de forma
compreensiva e reflexiva, o conteúdo daquilo que a ele quer dizer “Escuta a história
de um moderno Chefe, / que acaba de reger a nossa Chile, / ilustre imitador a
Sancho Pança.” (GONZAGA, 2006, p. 37). Para tanto, coloca em relevo a história
registrada na obra da literatura universal “D. Quixote” de Miguel de Cervantes,
presumidamente conhecida pelo seu enunciatário e, por ela, situa em primeiro plano,
a personagem que representa o papel social de fiel escudeiro do “cavaleiro da triste
figura” que enlouquecido caminha pelo mundo em busca de justiça, sempre em
companhia desse seu escudeiro: Sancho Pança. Entretanto, esse companheiro fiel
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– ingênuo, teimoso e dotado de cérebro reduzido – sofre inúmeras consequências
das ações desencadeadas pelo seu amo, crente de que ele seria recompensado, ao
final da jornada insana, pela posse de uma ilha da qual se tornaria seu único
“senhor”. Segundo Bakhtin (2008, p. 31), Sancho, pela sua deformidade – seu ventre
crescido, seu apetite, suas abundantes necessidades naturais – exemplifica o
grotesco, cujo traço marcante é o rebaixamento que provoca o riso. Logo o grotesco
é “tudo o que se aparta sensivelmente das regras e estéticas correntes, tudo que
contém um elemento corporal e material nitidamente marcado e exagerado”.
O produtor-autor-enunciador, por pressupor que o seu leitor-enunciatário conhece
Sancho, será capaz de projetar suas qualidades, de sorte a identificá-las com
aquelas do Fanfarrão, ao comparar os modos de agir, de proceder para serem
escudeiros de seus respectivos amos. Ao cancelar as diferenças entre ambos e
colocar em relevo os atributos que os assemelham, transfere as qualidades do
primeiro para o segundo e, assim procedendo interpreta os sentidos atribuídos aos
significados inerentes à história narrada e ouvida para aquela que está sendo
vivenciada em Cartas Chilenas: o grotesco, “o louco cavaleiro do rei”, como é
designado o governador das Minas Gerais, Luís da Cunha Menezes.
Assim, essas estratégias de produção de outros-novos sentidos, propostas por
Morin (2011), implicadas nas reinterpretações de velhos conhecimentos, explicam-
se pela analogia. Afirma o autor que a analogia sempre foi e é construída pelas
categorias: “projeção, identificação e transferência”, compreendidas como
fundamento e fundação dos processos que qualificam e diferenciam os textos das
narrativas oficiais da História institucionalizada – aquelas ensinadas-aprendidas nos
bancos escolares, pelo poder estatal –, das narrativas literárias – aquelas
ensinadas-aprendidas nos bancos das escolas da vida. São essas reinterpretações
que deslocam o observador do espaço de onde ele podia apenas ser capaz de ver
parcialmente os acontecimentos como um pequeno detalhe e não como um conjunto
de acontecimentos globais.
O uso dessas estratégias globais aplicadas pelo enunciador recupera a história da
humanidade – por meio de referências a imperadores romanos, narrativas da
mitologia greco-romana, episódios bíblicos, entre outros gêneros textuais discursivos
180
– e exige alto grau de conhecimento enciclopédico dos leitores enunciatários de
Cartas Chilenas. A reinterpretação de todos eles exigiu habilidades interpretativas
pelo princípio da analogia, e por esse procedimento, foi possível condensar os
diferentes e variados micro atos de fala que, ao longo da textualidade discursiva,
articulados entre si, qualificam o macro ato de fala pela ruptura das normas de
cortesia, de modo a expressar “o que é um governo fanfarrão”: aquele cujas atitudes
são antiéticas e antiestéticas, conforme abaixo apontadas e exemplificadas:
Critilo fala para denunciar que o Fanfarrão: Não é cortês; não é educado ou elegante, porque pratica ações indignas e feias, conforme síntese abaixo: - VESTE-SE DE FORMA INADEQUADA PARA UM GOVERNADOR “Já lá vai, Doroteu, aquela idade, / Em que os próprios mancebos, que subiam / À honra do governo, aos outros davam / Exemplos de modéstia até nos trajes”; - NÃO RETRIBUI O CORTEJO, CONSTRANGER E TRATA DE FORMA DESRESPEITOSA “Os Grandes do País com gesto humilde/ Lhe fazem, mal o encontram, seu cortejo;/ Ele austeros recebe, e só se digna (...) pôr nas abas do chapéu os dedos.”; “Não fala, não corteja, não despede”. - É ARROGANTE “Chegou-se o dia da funesta posse: (...) A que ele assiste, desta sorte inchado: / Entesa mais que nunca o seu pescoço, / Em ar de minuete o pé concerta / E arqueia o braço esquerdo sobre a ilharga / Eis aqui, Doroteu, o como param/ Os maus comediantes, quando fingem/ As pessoas dos grandes, nos teatros. - FINGE SER JUSTO E TER COMPAIXÃO “(...) finge que tem uma alma amante da virtude… manda, pois, aos ministros lhe deem listas / de quantos presos as cadeias guardam: / faz a muitos soltar, e aos mais alenta / de vivas, bem fundadas esperanças”; “Mal se põe nas Igrejas de joelhos, / abre os braços em cruz, a terra beija ... e executa outras macaquices ... onde o mundo as veja ... procura mostrar-se compassivo .... passa a dar-nos da sua compaixão maiores provas.” - NÃO PUNE OS CRIMINOSOS, REVOGA SENTENÇAS ●) decide casos que não são de sua alçada “Não pune como deve (...)”; “(...) um soldado por vários crimes convencidos e preso (...). então o Chefe compassivo manda tirar os ferros de seus braços; dá-lhe um salvo-conduto...”; “Caminha à forca um negro, conforme as Leis do reino bem julgado (...) por um simples Despacho manda o Chefe, que o triste padecente se recolha...” (...) “Decide os casos todos, que lhe ocorrem,/ ou sejam de Moral, ou de Direito,/ ou pertençam também à Medicina...” - QUER SE IMORTALIZAR ●) manda construir uma cadeia, consumindo o dinheiro do senado e usando a violência contra o povo “Pretende, Doroteu, o nosso chefe/ Erguer uma cadeia majestosa, (...)/ Para haver de suprir o nosso chefe/ Das obras meditadas as despesas,/ Consome do senado os rendimentos/ E passa a maltratar ao triste povo/ Com estas nunca usadas violências”: ●) elege o Tenente que fica rico ao castigar e submeter os forçados às mais humilhantes situações na construção da cadeia “Era um triste pingante, que só tinha/ O seu pequeno soldo; agora veio/ Para inspetor das obras e já ronca,/ Já empresta dinheiros, já tem casas,/ Já tem trastes de custo e ricos móveis” ●) explora toda a população para as soberbas obras – “Não bastam, Doroteu, galés imensas,/ São outros mais socorros necessários/ Para crescerem as soberbas obras./ Ordena o grande chefe, que os roceiros/ E outros quaisquer homens, que tiverem/ Alguns bois de serviço, prontos mandem/ Os bois e mais os negros que os governem,/ Durante uma semana e trabalho. ●) para sustentar os forçados, paga os mantimentos quando pode e por preço menor e não paga os tropeiros – “Para se sustentarem os forçados/ Os gêneros se compram, com bilhetes/ Que paga o tesoureiro, quando pode; E sobre esta fiança inda se tomam/ Por muito menos preço do que correm./ As tropas, que carregam mantimentos./ Apenas descarregam, vão, de graça,/ À distante caieira, com soldados/ Buscar queimada pedra. Daqui nasce/ Os tropeiros fugirem e chorarmos/ A grande carestia do sustento”. ●) não isenta Cristo de um imposto e manda o carro com os bois, da Ermida do Senhor de Motosinhos comprado com esmolas, servir nas obras da cadeia – “Quando lembra ao bom chefe o que decretam/ Os cânones da igreja, que concedem/ Que, para se fazerem obras pias,/ Até os sacros vasos se alienem./ Infere daqui logo que este carro/ Não goza de isenção, porque, suposto/ Se possa numerar nos bens da igreja,/ Conforme as Decretais até podia,/ Neste caso, vender-se, por ser obra/ Mais pia do que todas, a cadeia”. ●) manda para o açoite não somente os culpados vadios, mas também o devedor, o que olhou para a mulher alheia, o pobre, o que não quis emprestar um negrinho para a construção da cadeia. “As santas leis do reino não concedem/ Ao magistrado régio, que execute, No crime, o seu julgado e o nosso chefe/ Quer que deem as sentenças sem apelo (...) as leis do reino Só mandam que se açoitem com a sola/ Aqueles agressores, que estiverem nos crimes
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quase iguais aos réus da morte: (...) que os açoites só se dão por desprezo nas espáduas.... Mas antes com tais queixas se duplica/ A raiva dos tiranos...”. - ORDENA QUE SE PREPARE UMA FESTA, À MODA ESPANHOLA, PARA COMEMORAR O CASAMENTO DO REAL INFANTE ●) as despesas pagas pelo senado e pelo povo, ameaçados caso não aprovem as despesas – “Chegou à nossa Chile a doce nova/ De que real infante recebera,/ Bem digna de seu leito, casta esposa./ Reveste-se o baxá de um gênio alegre/ E, para bem fartar os seus desejos/ Quer que, a despesas do senado e povo,/ Arda em grandes festins a terra toda./ Escreve-se ao senado extensa carta/ (...) E nela se lhe ordena, que prepare,/ Ao gosto das Espanhas, bravos touros;/ Ordena-se, também, que, nos teatros,/ Os três mais belos dramas se estropiem.” ●) durante os festejos, ofende o bispo e desrespeita a religião – “Todos correm/ Com rostos de alegria ao santo templo./ Celebra o velho bispo a grande missa,/ Porém o sábio chefe não lhe assiste/ Debaixo do espaldar, ao lado esquerdo:/ Para a tribuna sobe e ali se assenta. (...); Acaba-se a função e o nosso chefe/ À casa, com o bispo se recolhe. /(...) Aqui, meu Doroteu, o chefe mostra O seu desembaraço e o seu talento! (...) Vai passando por todos, sem que abaixe/ A emproada cabeça, qual mandante/ Que passa pelo meio das fileiras”; ●) desrespeita o ritual de saírem procissão ao lado da bandeira – “Caminha o nosso chefe, todo Adônis,/ Diante da bandeira do senado;/ Alguns dos rigoristas não lho aprovam,/ Dizendo que devia, respeitoso,/ Da maneira que sempre praticaram / Os seus antecessores, ir ao lado,/ Por ser esta bandeira um estandarte/ Onde tremulam, do seu reino, as armas”; ●) fica, no camarote, acompanhado de pessoas que compraram esses lugares que deveriam ser ocupados pelos magistrados e pelo nobre corpo do Senado – “À direita se assenta o nosso chefe;/ Os régios magistrados não o cercam,/ Nem o cerca, também, o nobre corpo./ (...) Os postos, Doroteu, aqui se vendem,/ E, como as outras drogas que se compram,/ Devem daqueles ser, que mais os pagam.” ●) não retribui o cortejo dos cavalheiros – “Chegam-se, enfim, as horas do festejo;/ Entra na praça a grande comitiva;/ (...) Seguem-se os cavaleiros, que cortejam/ Primeiro ao bruto chefe, logo aos outros/ (...) Não há quem o cortejo não receba/ Em ar civil e grato; só o chefe/ O corpo da cadeira não levanta, Nem abaixa a cabeça”; ●) é arrogante e faz ar de majestade – “O bruto chefe Aceita a oferta em ar de majestade; À maneira dos amos, quando tomam As coisas que lhes dão os seus criados” ●) manda iluminar de forma diferente as janelas do palácio e aquelas do Senado – “Quando, prezado amigo, nas janelas/ Do nosso Santiago se acendiam/. Em sinal de prazer, as luminárias;/ Ardem, pois, nas janelas de palácio/ Duas tochas de pau, e sobre a frente/ Da casa do Senado se levanta/ Uma extensa armação, a quem enfeitam/ Quatro mil tigelinhas”. ●) ordena que se prepare um „passeio‟, fingindo largas ruas, onde são praticadas ações devassas = Sodoma e Gomorra – “Aqui lascivo amante, sem rebuço/ A torpe concubina oferta o braço/ Ali mancebo ousado assiste e faia/ A simples filha, que seus pais recatam;/ A ligeira mulata, em trajes de homens,/ Dança o quente lundu e o vil batuque,/ E, aos cantos do passeio, inda se fazem/ Ações mais feias, que a modéstia oculta”; ●) somente se diverte com a imitação dos outros – Chega-se, Doroteu, defronte dele / Um máscara prendado: não estima/ Os discretos conceitos, nem se agrada/ De ver executar vistosos passos./ Manda, sim, que arremede o nosso bispo,/ Que arremede, também, o modo e o gesto/ De um nosso general. São estes momos/ Os únicos que podem comovê-lo/ No público a mostrar risonha cara”; ●) Fanfarrão desperdiça os foguetes – “Não se veem, dos foguetes, os chuveiros/ Não se veem as estrelas, nem as cobras/ Mas ele os deixas arder, e gasta a noite/ Contente com ouvir alguns estalos”; ●) obriga, no dia da tourada, um músico, cuja mulher falecera, toque a doce rabequinha naquela mesma tarde e o paga com confeitos grandes (balas) – “No dia. Doroteu, em que se devem/ Correr os mansos touros, acontece/ Morrer a casta esposa de um mulato,/ Que a vida ganha por tocar rabeca;/ Dá-se parte do caso ao nosso chefe/ (...) Ordena que ele escolha ou a cadeia/ Ou ir tocar a doce rabequinha”; ●) comanda com parvoíces a tourada – “Lá se estende na areia, e o bravo touro/ Lhe dá, com o focinho, um par de tombos/ Nem deixa de pisá-lo, enquanto o néscio (...) Agora sai um touro, que é prudente./ Se o capinha o procura, logo foge./ (...) Manda soltar-lhe os cães, manda meter-lhe/ As garrochas de fogo, que primeiro/ Quem rompam do ligeiro bruto/ Nos destros dedos do capinha estalam”. - PRATICA ATOS ILEGAIS ●) fica rico às custas dos contratos que vende – “Os nossos generais, pelo contrário,/ Quando estas quintas fazem, logo embolsam/ Uma grande porção de louras barras; (...) Que, para o tal Marquésio entrar de posse,/ Largara ao grande chefe, só de luvas,/ Uns trinta mil cruzados; bagatela!/ Os mesmos maldizentes acrescentam/ Que o pançudo Robério fora aquele/ Que fez de corretor no tal contrato (...) “Mal acaba Marquésio o seu triênio,/ Outro novo triênio lhe arremata”; ●) recebe mesadas trimestrais de Silverinho pelas mãos de Matúsio – “Por isso nos confessas que tu ganhas/ A graça deste chefe, porque envias,/ Pela mão de Matúsio, seu agente/ / Em todos os trimestres, as mesadas”; ●) permite que Silverino prenda e castigue quem o deve, contrariando as Leis do Reino – “A sábia lei do reino quer e manda/ Que os nossos devedores não se prendam./ Responde agora tu, por que motivo/ Concede o grande chefe que tu prendas/ A quantos miseráveis te deverem? /Por que, meu Silverino?/ Porque mandas presentes, mais dinheiro”; ●) cobra com rigor e violência aqueles que devem tênues somas ao Rei e de forma leve os contratadores que devem grandes somas – “Envia bons soldados às comarcas,/ E manda-lhe que cobrem, ou que metam,/ A quantos não pagarem, nas cadeias (...) Não se recebem só, prezado amigo,/ Os créditos alheios, para embolso/ Das dividas fiscais. O soldadinho/ Descobre um ramo, aqui, de bom comercio:/ Aquele que não quer propor demandas/ Promete-lhe a metade, ou mais, ainda,/ Das somas que lhe entrega, e ele as cobra/ Fingindo que as tomou em pagamento/ Das dividas do rei”; ●) Manda prender injustamente Ribério - “Exclama o bom Ribério que não pode,/ Pois todo o cabedal, que tem cobrado,/ Ou está, nas
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demandas, consumido,/ Ou tem entrado, já, no régio erário./ E, para bem mostrar esta verdade,/Suplica ao grande chefe, que lhe escolha/ Um reto magistrado, que lhe tome,/ Da sua comissão, estreita conta. /Pois isto, Doroteu, não vale nada: /Sem contas lhe tomarem, manda o chefe/ Que gema na cadeia, até que pague”; - SUBVERTE A ORDEM NA ADMINISTRAÇÃO DAS TROPAS ●) protege seus soldados e não permite que eles sejam punidos – “Não há, não há distúrbio nesta terra,/ De que mão militar não seja autora./ (...) o nosso chefe/ É muito compassivo, sim, bem pode/ Oprimir os paisanos inocentes/ Com pesadas cadeias, pode, ainda,/ Ver o sangue esguichar das rotas costas/ À força dos zorragues, mas não pode/ Consentir que se dê, nos seus soldados,/ Por maiores insultos que cometam,/ A pena inda mais leve...”. ●) Não cumpre as leis, mas faz que todos as conheçam – “Não manda que se cumpram as leis santas/ Que, aos delitos, arbitram justas penas./ Manda, sim, um cartaz, aonde inova/ Que, todos os domingos, na parada,/ Se leia o militar regulamento. (...) Indigno e bruto chefe, de que serve/ Que se leiam as leis, se os malfeitores,/ Do que mandam, não veem um só exemplo”. ●) vende patente de capitão – “Morreu um capitão, e subiu logo/ Ao posto devoluto, um bom tenente./ Por que foi, Doroteu? (...) Foi só porque largou três mil cruzados! (...) Reforma um capitão e, no seu posto,/ Encaixa, sem vergonha, a Tomazine,(...) Também tu, ó Padela, te distingues/ Na corja dos marotos. Tu conservas/ De capitão o cargo, mas tu logras/ O soldo de maior, e mais as honras.(...) Ultrajas aos ministros e proteges/ A todos os tratantes, que exercitam/ O furto e o contrabando. Tu, piedoso”; ●) Alista o povo inteiro na tropa auxiliar – “Alista o povo inteiro, e, dele, forma Inda mais de quarenta regimentos,(...) Nem lhe obsta, Doroteu, que os seus soldados/ Meninos inda sejam; que eles crescem,/ E cresce, com os corpos, igualmente,/ O santo amor das armas. Muitos, muitos,/ Quando vão para a igreja receberem/ As águas salvadoras do batismo,/ Já vão vestidos com a curta farda”. ●) desobedece as Leis do reino e alista míseros paisanos, com farda curta e descalços, nas Tropas de Infantaria – “Que as leis do nosso reino não consentem/ Que estas montadas tropas se componham/ De membros, que não tenham certas rendas,/ Com que possam manter os seus cavalos.(...) Ora ouve, Doroteu, quais são as posses/ Dos míseros paisanos, que se alistam/ (...) Eu topei Doroteu, por várias vezes, Atrás de um regimento, os rapazinhos/ Em veste e mais descalços: fina ideia/ Em que deram os cabos, para verem/ Se, à força de vergonha, se fardavam”; ●) permite que a polícia seja formada por pessoas de origem humilde – “Daqui saem os torpes malfeitores,/ Os vis alcoviteiros, os perjuros,/ Os famosos ladroes; numa palavra,/ A tropa insultadora de vadios./ A este corpo imenso de milícia/ Concede Fanfarrão as regalias /Que as nossas leis não dão aos bons vassalos,/ Que chegam aos empregos mais honrosos,/ Em paga de proezas e serviços”; ●) Fanfarrão protege, concede indultos e regalias a seus soldados porque lhes vende a altos preços os postos – “... nesta terra,/ Sem licença do chefe, não se citam/ Os negros, os crioulos e os mulatos,/ Mal vestem a fardinha e, muito menos,/ Mal cingem, na cintura, honrosa banda. (...) Se diz o suplicado ao suplicante/ Que não lhe deve nada, foi-se embora/ O sólido direito, que a policia/ Do chefe não consente que se ponha/ Aos seus oficiais, inda que sejam/ Velhacos e ladrões, no foro, um pleito”; ●) não permite que os zelosos juízes punam as suas injustiças – “Os zelosos juízes punir querem/ A injúria da justiça: formam autos,/ Procedem às devassas, pronunciam,/ E mandam que estes nomes se descrevam/ Nos róis dos mais culpados (...) O chefe onipotente logo envia/ Atrevidos soldados, que, chegando/ À casa do escrivão, os nomes riscam/ Do rol dos delinquentes e lhe arrancam/ Da fechada gaveta os próprios autos (...) O chefe, Doroteu, só quer dinheiro,/ E, dando aos militares regalias,/ Podem os grandes postos, que lhes vende,/ Subir à proporção, também de preço”.●) manda, para vingar a Junta, embargar os presos na cadeia e ordena o meirinho a sustentá-los –“Manda embargar aos presos na cadeia/ Do nosso Santiago, e manda ao pobre/ Do condutor meirinho que os sustente/ Assistindo, também, aos que enfermarem,/ Com médicos, remédios e galinhas./ Acaba-se o dinheiro que lhe deram/ (...) lhe ordena/ Que assista, como dantes, aos culpados/ De todo o necessário, na enxovia;/ Que, a faltar-lhe o dinheiro para os gastos,/ Ou que o peça, ou que o furte”. ●) envia vários soldados para o distrito, sem necessidade, e ordena que eles sejam sustentados pelo povo “...manda um corpo/ De ousados militares, que conduzam,/ Ao magistrado, a carta, e lhes ordena/ Que fiquem nesta vila sustentados/ A custa, Doroteu, do aflito povo”. ●) cobra uma mesma conta duas vezes “Manda pois, Doroteu, o grande chefe/ Que Albino se recolha na cadeia/ E more com os negros na enxovia,/ Enquanto não pagar a Silverino/ Outra tanta quantia, quanta Mévio/ Depositou, doloso, por que houvesse/ Entre os dois acredores um litígio”. ●) ordena a prisão injusta do licitante Brandúsio “Ao lanço do Brandúsio ninguém chega,/ Informado o juiz, ordena e manda/ Que o prédio se remate; então se chega/ O porteiro risonho ao licitante,/ E lhe diz – "que lhe faça bom proveito"/ Ao mesmo tempo que lhe entrega o ramo./ Parte logo o soldado e conta ao chefe/ O sucesso da praça. O bruto monstro,/ Julgando profanado o seu respeito,/ Manda lançar no pobre licitante/ Um pesado grilhão e manda pô-lo,/ Ajoujado com um despido negro, A trabalhar nas obras da cadeia”. - PERMITE A LASCÍVIA NO PALÁCIO ●) abre, à noite, a porta do palácio para a luxúria – “Apenas, Doroteu, a noite chega (...) A casa aonde habita o grande chefe/ Parece, Doroteu, que vem abaixo./ Fingindo a moça que levanta a saia/ E voando na ponta dos dedinhos,/ Prega no machacaz, de quem mais gosta,/ A lasciva embriagada, abrindo os braços;/ Então o machacaz, mexendo a bunda,/ Pondo uma mão na testa, outra na ilharga,/ Ou dando alguns estalos com os dedos,/ Seguindo das violas o compasso,/ Lhe diz – "eu pago, eu pago"– e, de repente,/ Sobre a torpe michela atira o salto”; ●) diverte-se com as histórias sobre a libidinosa mulher do lacaio “Entrou nele a mulher do teu lacaio;/ Um só, senhor, não houve que, lascivo,/ Com ela não brincasse; todos eles,/ De bêbedos que estavam, não puderam/ O intento conseguir; só eu, mais forte...”/ Apenas isto diz o vil criado,/ O chefe as costas vira e
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lhe responde,/ Soltando um grande riso: “fora, fracos!”; ●) dá mostras de estar pagando com dinheiro público as contas da amante “Aqueles que carregam cal e pedra,/ Só ganham, por semana, meia oitava;/ Aqueles que trabalham de canteiro,/ Ao menos ganham, cada dia. um quarto./ Tem, pois, certa mocinha, quatro negros/ Que apenas são serventes, mas o chefe/ Ordena que, na féria, se lhes pague/ A quarto os seus jornais, e creio, amigo,/ Que ainda não consente se descontem/ Os muitos dias que nas obras faltam”. ●) premia a sua amásia com casa e casamento “Entende Fanfarrão que não devia/ Deixar ao desamparo a sua dama;/ (...) O nosso chefe, manda que ele ampare As mesmas, que na fama já têm nota,/ Contanto que isto seja à custa alheia./ Chama, pois, o bom chefe a um peralta,/ Que era cabo de esquadra, e lhe comete/ A glória de casar com uma dama (...) Da mais distinta, mais soberba raça”... - COMETE DESORDENS MAIORES ●) ordena uma apresentação de teatro para arrecadar dinheiro para um velho mulato e obriga Robério e o velho venderem ingressos a altos preços “Robério assim o faz; supõe, coitado,/ Que prometeu pedir alguma missa./ E, junto c‟o mulato, vai entrando/ Em uma e outra casa, aonde deixa/ Ou selado papel, para a plateia,/ Ou, com tábua pendente, a velha chave”; ●)) obriga o mulato pedir esmolas na porta do teatro “Vai-se pôr, com o traste do mulato/ Na porta da plateia, e, quando acaba/ A primeira jornada, também corre/ Os cheios camarotes: fina ideia!/ Para ver se os tolinhos, assim, largam,/ Na copa do chapéu, que a esmola apanha,/ Embrulhos de mais peso!”; ●) organiza um grande festejo para um santo, mas embolsa todo o dinheiro arrecadado “Que sábias intenções, que fins tão santos!/ Celebram-se os festins e não escapa/ Um camarote só, que não se alugue;/ Mas deste rendimento não se sabe,/ Que a compra se meteu, de todo, à bulha”. ●) manda Ribério prender Ludovino e sua escrava “Roubou um seu criado a certa escrava (...) Passados alguns tempos, Ludovino/ Encontrou, uma noite, a sua escrava/ E à casa conduziu do bom Saônio/, Aonde, em hospedagem, se abrigava/ (...) Atrevidos soldados já se aprontam,/ Mas não para prenderem a Ribério,/ Sim para conduzirem, entre as armas,/ Ao pobre Ludovino e à sua serva” ●) destrata um médico e o ameaça de prisão “A este bom doutor estimam todos, / Por sua profissão, por seus talentos,/ Por seu afável modo e, mais que tudo,/ Pelas muitas virtudes que respira./ Curava o nosso sábio a certo enfermo/ E, vendo a vária febre e os mais sintomas, / Ordena que ele tome um copo d‟água/ A que dá de Inglaterra o povo o nome./ Manda-lhe o boticário uma botelha,/ Que já servido tinha; o sábio, atento/ A que ela poderia ter perdido/ A força natural, a não aprova/ E passa a receitar outro composto,/ Que possa produzir o mesmo efeito./ Chorando, o boticário sobe ao chefe/ E diz-lhe que o doutor a rejeitara./ (...) Então, então o chefe, enfurecido,/ Ordena ao ajudante que, ali mesmo,/ Avise ao professor que ele tem ferros, / Cadeias e galés, com que reprima,/ Se neles prosseguir, os seus excessos”. Quadro 2: Micro atos de fala das Cartas Chilenas
Essa representação estereotipada do “Ele”, compreendida pelo produtor-
enunciatário das cartas que tematizam o comportamento insolente e arrogante por
meio do qual o Fanfarrão é retratado de forma caricatural.
184
Figura 19: Síntese das representações do Fanfarrão Minésio. Fonte: Acervo do Pesquisador
185
Essa mesma representação é reiterada por Marxwell (2005, p. 120) para quem,
Luís da Cunha Meneses era um homem de estilo duro, porém cercava-se de cortesãos servis e parasitas. Era um homem que concebia suas prerrogativas como supremas e não admitia oposição a seus caprichos e autoridade, ou de seus favoritos. Seu gosto pelas aparências e pela lealdade de seus íntimos superava seu senso de justiça. Anteriormente, governador de Goiás, não se dera ao trabalho de disfarçar seu desdém pelos brancos nascidos na terra. Em Vila Boa os brasileiros tinham sido removidos, sem qualquer cerimônia, dos postos lucrativos para ceder lugar aos seus amigos. Pródigo distribuidor de patentes militares – processo lucrativo para seu secretário pessoal – ofendera as suscetibilidades raciais da sociedade colonial ao nomear oficiais pardos.
Na confluência entre o discurso literário e o historiográfico, ambos – por meio de
recursos linguísticos – fazem referência a traços ou qualidades comuns de um
modelo de governança cujas fragilidades qualificavam a sociedade colonial
brasileira.
4.7 Algumas Considerações Finais
O objetivo que orientou a construção deste Capítulo esteve voltado para a
identificação das principais estratégias que orientaram a construção do Brasil
Colônia pelos princípios da Gramática do Poder, conforme pressuposto por Epstein
(1993). Esses princípios facultaram considerar as regras impostas pelas instituições
estatais de caráter laico religioso que, transpostas para a Colônia, orientavam
procedimentos, a princípio estranhos, entre os modos de agir e proceder do
colonizador e do colonizado indígena, posteriormente, extensivos àqueles do
escravo africano. A frequência e imposição de usos dessas regras referentes a
atitudes ou comportamentos eram orientadas pelo propósito de assegurar a ordem
necessária voltada para a implantação de normas de condutas sociais ou modelo de
produção de bens materiais em benefício da Coroa.
Nesses e por esses procedimentos normativos instituídos pela força do poder das
instituições estatais com vistas a manter o controle sobre todo e qualquer bem
material na esfera da produção econômica, segundo Caldera (2009) e ao longo da
formação da identidade do povo brasileiro, é possível identificar a origem de um
186
mercado paralelo, de caráter informal que manteria ativo e em franco
desenvolvimento no decurso da formação da própria sociedade brasileira que, até
hoje, nela se faz presente. Sua origem foi e está assegurada, conforme registros
neste Capítulo, por diferentes razões que inviabilizaram a implantação da ordem
sócio-política-econômica prevista no/pelo projeto colonizador português,
considerada a extensividade ou quantidade de terras a serem desbravadas e
ocupadas na Colônia, comparada àquelas do reino e à quantidade de homens de
que se necessitaria para assegurar a posse pela ocupação e uso dessas mesmas
terras.
Assim, a planificação do referido projeto se faz extensiva durante os séculos da sua
ocupação, por um conjunto de ações, continuamente ordenadas e reordenadas por
um trabalho qualificado pela intermitência de acordos e desacordos entre três
grupos que assumiram o poder político-administrativo colonial: “os línguas”; “os
administradores do rei” e “os jesuítas”. Dentre eles, os resultados obtidos desvelam
ser a posição sociocultural-histórica de os línguas: a) severamente criticada pelos
representantes da Igreja quanto à mudança de seus hábitos e costumes no convívio
com os indígenas; contudo, indispensável para a realização dos trabalhos de
evangelização; b) aceita como parcerias indispensáveis e necessários dos
administradores reinóis, pois o trabalho de aculturação de que eles se ocuparam,
segundo Pesavento (1998) fora projetado, planificado desde a viagem da descoberta
cabralina, fazendo-se extensivo ao longo das viagens de reconhecimento da costa
do território, quando eles eram deixados na condição de degredados ou de
náufragos, para exercerem a função de tradutores, facilitando a interação entre
esses povos estranhos entre si.
É nessa acepção que os línguas se fazem os sustentáculos primeiros dos contratos
e dos pactos do processo de colonização e respondem pela implantação do
mercado informal, pelo modelo de formação da família brasileira, pela gestação e
proliferação dos primeiros mestiços – os mamelucos – seguidos pelos mulatos e
cafuzos – e, durante os processos dessa miscigenação, situam-se os mazombos:
aqueles que não se deixaram miscigenar, embora eles fossem nascidos na Colônia
e alguns eram ou foram educados no reino, bem como aqueles que eram mestiços
filhos de prósperos comerciantes: membros dos grupos responsáveis pelo exercício
187
do poder político-administrativo colonial do qual sempre foram excluídos os homens
“desraçados naturais da terra”.
Nesse contexto de desconstrução do ameríndio pelo português ibérico,
posteriormente pelo africano, nela implicada a própria desconstrução do próprio
europeu e do africano – por meio de estratégias de destribalização e
desterritorialização – foi inscrita a formação da identidade do brasileiro: um
trabalhador da nova terra colonizada. Nessa sua condição, ele se faz um produtor
das riquezas econômicas, mas delas é excluído, como também o é da administração
por meio do apagamento de sua voz. O resgate dessa sua voz, ainda que sob a
forma de murmúrios, calados pela força das regras da gramática do poder político
administrativo colonial, está implícito nos conteúdos dos diálogos sussurrados por
Critilo ao pé do ouvido de Doroteu para não serem propagados no espaço público,
mantido sob o poder e o controle da administração colonial da época: um segredo a
ser guardado a sete chaves em Cartas Chilenas.
Esse segredo desvelado pela sátira implicou a necessidade de o seu leitor
reinterpretar os fatos da história oficial e aqueles da literatura brasileira e, à medida
que cavava nos seus subsolos, neles identificados os detritos sob a forma de
cascalhos, pudesse projetar outra nova história vivenciada pelos Inconfidentes. Essa
história registrada no túmulo da memória histórica, habitada por tênues e esparsas
lembranças insistentes, tem por referência um projeto de subversão, abortado pela
delação premiada; todavia, ele será reavivado e implantado pela força do poder
militar do Estado Independente brasileiro com a Proclamação da sua República; mas
dela “os não descendentes dos ricos comerciantes coloniais”, mazombos, mestiços,
cafuzos e mulatos ou trabalhadores, denominados “povo”, se manterão excluídos.
Contudo, essa será uma outra interpretação que ultrapassa os limites da leitura de
Cartas Chilenas, de Gonzaga, bem como de outros fanfarrões minésios.
188
CONCLUSÃO
A construção da identidade do povo brasileiro, tema desta pesquisa de Doutorado,
foi orientada e organizada pelos princípios da historiografia linguística e seus
fundamentos incidiram sobre pressupostos da linguística textual-discursiva da
vertente sócio-cognitivo-interacional, numa interface com aqueles da Lexicologia, de
modo a facultar a leitura significativa do texto Cartas Chinelas, de Tomas A.
Gonzaga, tendo por ancoragem aqueles da História Oficial do Brasil Colônia.
Para o desenvolvimento deste tema, foram necessárias transposições incessantes
dos limites entre o Estado das Minas Gerais e o de São Paulo, em um movimento,
cuja direção se opunha àquela trilhada pelos Bandeirantes que seguiam rumo ao
Sertão da Farinha Podre, pela travessia das mesmas margens do Rio Grande. À
imagem e semelhança desses homens que, no Século XVII, buscavam as riquezas
que povoavam seus imaginários – o paraíso perdido: a Atlântida – esta
pesquisadora fazia essa travessia, em sentido inverso, em busca de outro tesouro
perdido: a cidadania de uma professora mineira cuja identidade implicava o resgate
da sua própria história, inscrita naquela do seu próprio povo “os desclassificados do
ouro”.
Entre esse ir e vir, o ponto de chegada e das partidas semanais era e foi a PUC-SP:
o veio de um grande e caudaloso rio por onde foi possível aprender a usar a bateia
de modo a identificar os filões de onde se passou a extrair, pelas atividades do
garimpo, o conhecimento de que necessitava para estender o grau de compreensão
de documentos ou monumentos históricos que inviabilizam a propagação de vozes
do passado continuamente abafadas na/pela lógica de seus processos de
divulgação, pinçadas aqui e acolá do esquema discursivo canonizado pela história
oficial. Essa identidade, entretanto, só poderia ser encontrada nesses dizeres que
ocultavam a possibilidade do vir a saber, daquilo que se buscava identificar pelo
saber e, para tanto, os fios pinçados passaram a ser tecidos e entretecidos àqueles
do discurso literário, amarrados entre si pelo discurso científico do longo tempo, em
diálogo com aquele do curto tempo que favorece a interpretação do acontecimentos
do tempo presente, ao mesmo tempo que possibilita projeções futuras. Dessa
relação entre o acontecido e o acontecível, que favorece a compreensão de um
189
acontecimento, situamos a construção da identidade, concebida como um processo
dinâmico que se explica por conhecimentos arquivados na memória do longo e do
curto prazo por pressupostos culturais, ideológicos e utópicos: três dimensões
entretecidas pelo princípio da narratividade, segundo Ricoeur (2002).
No espaço dessa dinamicidade pressuposta pela narratividade, resgata-se o objetivo
geral de modo a compreender os processos de construção da identidade do povo
brasileiro por meio de narrativas de histórias cujos sentidos incidem, por um lado,
sobre o projeto português de ocupação, uso e posse das terras coloniais e, por
outro, sobre o projeto de mazombos e filhos da elite econômica colonial brasileira,
de conquistar a independência política da Colônia. Nesse sentido, pôde-se verificar
a história de sucesso de planificação e implantação do projeto português e, por seu
turno, a história de decadência implicada no fracasso do projeto de independência
colonial, ainda que passados quase trezentos anos.
Para a se alcançar o objetivo geral, foram traçados os objetivos específicos que
orientaram o desenvolvimento dos capítulos que compõem esta Tese. Assim o
objetivo proposto para o desenvolvimento do tema do Capítulo I voltou-se para a
organização dos fundamentos teóricos que, orientados pelos princípios da
narratividade, facultaram a construção desta Tese sobre a identidade do povo
brasileiro, tecida e entretecida por narrativas da história, acima pontuadas, cujos
sentidos permansivos se inscrevem na transitoriedade das mudanças referentes às
transformações sociocultural-históricas. A narratividade foi compreendida como um
trabalho lento e gradual, marcado como um legado de heranças de outras gerações,
outros povos ou civilizações, herdadas de nossos antepassados e, continuamente,
reinterpretadas para se adaptarem a outros novos tempos do espaço, ocupados
pelas novas gerações. Trata-se, portanto, de um trabalho orientado e organizado
pela criação ou reinvenção de velhas histórias que desvelam outros modos ou
formas de dizer, presentificadas pelo exercício das práticas de leitura da História
oficial: um trabalho de produção cultural por meio do qual se identificam as fissuras
do tempo vivido que projetam o que não foi vivido: alicerce para a construção das
utopias.
190
O objetivo que orientou o tema do segundo Capítulo possibilitou identificar as
projeções sobre as terras antípodas, situadas no imaginário dos povos europeus,
asiáticos e africanos para além dos continentes por eles ocupados e representados
sob a forma de ilha, concebida como terra da juventude, habitada por riquezas e
prazeres. A análise de documentos cartográficos, iconográficos e diferentes tipos de
textos facultou identificar os matizes das raízes do descobrimento do Continente
Americano, extensiva à do descobrimento do Brasil, como projeções do imaginário
que, ainda qualificadas como utopia, foi concebida como o principal evento
extraordinário da própria História da Humanidade. Essas projeções asseguram a
construção de várias narrativas que, ao longo dos tempos, de nós distantes,
implicaram diferenciadas concepções sobre o mundo. Das primeiras
representações, organizadas sob a forma de narrativas míticas, sob a forma de
contos orais reproduzidos e propagados entre os povos dos três continentes, o
desenvolvimento do conhecimento humano assistiu às explicações aristotélicas que,
por um lado, colocaram fim às concepções míticas e, por outro, apresentaram a
concepção de forma esférica do universo e o geocentrismo, segundo a qual em
torno do globo terrestre giravam todos os corpos celestes.
Ao longo da Idade Média a concepção Geocêntrica assegurou a construção da visão
cristã Teocêntrica e, nesse e por esse tempo, o homem deveria orientar suas ações
pelo olhar do divino, do celestial. O avanço científico- tecnológico contrapôs a Alta
Idade Média à Baixa Idade Média, onde foi gestado o Renascimento, nele implicado
o resgate da concepção Heliocêntrica que orientou a sobreposição da visão
Antropocêntrica àquela Teocêntrica e facultou a execução do projeto ibérico de
expansão das terras ibéricas para além das fronteiras do estado português e do
espanhol. Assim, embora as concepções de Universo, Cosmos e Terra tivessem
sido reinterpretadas ao longo da história da humanidade, o imaginário da população
conservou as representações sobre as concepções herdadas da mitologia, da
religião e da ciência. Logo, a descoberta do quanto continente, não mais concebido
como uma ilha movediça, habitada por antípodas, implicou um ato mental de
modificação, substituição e reconstrução da cartografia terrestre.
O terceiro Capítulo voltou-se para o objetivo de ampliar e reordenar conhecimentos
da História oficial sobre a descoberta do Continente Americano e o achamento do
191
Brasil. Nesse contexto, destacou-se a formação do Estado Português, pós-
descolonização do Estado Romano, e a necessidade de ampliação de seu território,
pela travessia do Mar Tenebroso, dilatando seus limites mercantil-econômicos. Essa
necessidade orientou o projeto do Príncipe D. Henrique, nele implicada a criação da
Escola de Sagres e o desenvolvimento das navegações que, situadas no cenário do
Império Mercantil Salvacionista, possibilitaram Colombo chegar à Terra que deveria
levar o seu nome, todavia, tornou-se Terra de Américo; América. O achamento da
Terra de Vera Cruz, obra empreitada por Cabral e registrada por Pero Vaz de
Caminha, comprova, por um lado, as projeções do imaginário humano e a
planificação eficiente do projeto português; mas, por outro lado, outro-novo projeto
sobre a ocupação, uso e posse do novo território começa a ser planificado, pois a
terra descoberta não era habitada por monstros exóticos, mas por homens nus,
iguais nas diferenças e diferentes nas semelhanças com os seus hóspedes que, ao
longo do processos de interação, tornariam os donos da hospedaria Brasil.
No quarto capítulo que encerra esta Tese registram-se as impressões e ações dos
portugueses sobre/na terra de Santa Cruz. Como parte das ações de ocupação e
posse das terras coloniais, foram aqui deixados degredados,
traficantes, acrescidos a náufragos: um grupo de homens que passaram a exercer o
papel social de “línguas” ou tradutores” e, num primeiro momento, responderam
pelos processos de destribalização e desterritorização – uma ponte entre o Império
Mercantil Salvacionista e aquele da tardia civilização pré-agrícola americana. Coube,
também, a esses línguas o desenvolvimento de um mercado econômico informal
que, distante da contabilidade do Rei, movimentava e fazia girar uma grande riqueza
colonial. Esse mercado informal financiou as bandeiras que buscaram as riquezas
do imaginário humano às margens do Ribeirão do Carmo, ouro preto que tornaria o
metal amarelo nas barras fundidas enviadas à corte portuguesa. A tributação que
incidia sobre a produção aurífera foi o estopim para uma série de revoltas
mazombas contra a administração portuguesa colonial, dentre elas a Inconfidência
Mineira, gestada no governo de Luís da Cunha Menezes, na Capitania das Minas
Gerais, traída por Joaquim Silvério dos Reis, seu delator. A administração fanfarrona
desse governo – os seus mandos e desmandos – contribuem para a compreensão
da identidade do brasileiro, no período colonial.
192
Diante da extensividade dos conhecimentos da pesquisadora pela escavação dos
detritos que compõem o cenário do longo e do curto tempo da história da
humanidade e da reinterpretação desses detritos no curto tempo desta investigação,
retomam-se as premissas concebidas para o tratamento desta Tese:
a) todo e qualquer povo constrói a sua identidade pela singularidade de suas
vivências, inscritas nos matizes da pluralidade das raízes de histórias, construídas
pelos modos de ser, agir ou proceder da sua própria humanidade;
b) a identidade do povo brasileiro é uma construção histórica de matizes
sociocultural-ideológicos tecidos e entretecidos nas raízes de histórias da
Antiguidade Clássica, sob a forma de projeções imaginárias e utópicas referentes à
origem de outro-novo homem de outro-novo novo continente da Terra;
c) a identidade do povo brasileiro é uma construção inscrita nos matizes da história
dos povos nativos da América, tecida e entretecida àqueles da história de povos
europeus ocidentais e àquela de africanos subsaarianos: uma construção da história
do mundo moderno implicada na reinterpretação da história do mundo antigo.
Logo, o brasileiro é o velho-novo homem das terras da América: um antípoda que
caminha em sentido contrário, mas não contraditório àquele por onde caminham os
homens da velha e antiga história da humanidade. A nossa história é uma história de
projeção: inscrita, por um lado, na memória de nossos longínquos ancestrais
europeus, asiáticos e africanos e fundamento do projeto expansionista político-
econômico português. Por outro lado, essa projeção gestaria o primeiro projeto de
independência da Colônia, planificado 100 anos depois, não assegurando,
contudo, a “Liberdade” que motivou a sua elaboração.
.
Nesse contexto de finalização, compreende-se que, pelo discurso literário, inscrito
em Cartas Chilenas, Gonzaga desvela, na figura do Fanfarrão Minésio, o cenário, as
cenas e as personagens que a História Oficial obliterou: o povo. Esse povo que, por
um lado, foi explorado, usado, por Minésio para construções e comemorações
colossais – a cadeia de Vila Rica e o casamento do Infante – por outro, começa a
atuar como coadjuvante na encenação da administração portuguesa colonial. Não
obstante a tímida participação, esse povo esteve excluído da Inconfidência Mineira.
193
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