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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rodrigo Giacomeli Nunes Massud
NORMATIVIDADE DOS PRECEDENTES E LEGITIMIDADE DA TRIBUTAÇÃO
COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA NO CPC/2015
MESTRADO EM DIREITO TRIBUTÁRIO
SÃO PAULO
2016
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Rodrigo Giacomeli Nunes Massud
NORMATIVIDADE DOS PRECEDENTES E LEGITIMIDADE DA TRIBUTAÇÃO
COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA NO CPC/2015
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título
de MESTRE em Direito Tributário, sob a
orientação do Professor Dr. Tácio Lacerda Gama.
SÃO PAULO
2016
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Folha de aprovação
Rodrigo Giacomeli Nunes Massud
NORMATIVIDADE DOS PRECEDENTES E LEGITIMIDADE DA TRIBUTAÇÃO
COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA NO CPC/2015
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título
de MESTRE em Direito Tributário, sob a
orientação do Professor Dr. Tácio Lacerda Gama.
Data de aprovação: ___/___/____
Banca Examinadora:
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NORMATIVIDADE DOS PRECEDENTES E LEGITIMIDADE DA TRIBUTAÇÃO
COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA NO CPC/2015
RODRIGO GIACOMELI NUNES MASSUD
RESUMO: Dois grandes fatores se destacam numa síntese temática do trabalho: (i) a
revolução dos estudos da linguagem (linguistic turn) e sua grande repercussão em matéria
de interpretação e constituição da realidade jurídica, com ápice na proposta de isolamento
cognitivo do ser, o chamado abismo do conhecimento; e (ii) a valorização dos precedentes
na conformação das relações jurídico-tributárias e na construção dos sentidos normativos,
com a projeção para as legítimas expectativas futuras, racionalizando-se a prestação
jurisdicional por meio de sua mecanização programada e, com isso, distanciando-se das
particularidades fáticas dos casos em concreto. Aliando os fenômenos decorrentes destes
eixos categóricos, procuramos realizar uma integração jurídico-filosófica e dogmática no
estudo da coisa julgada e da rescisória em matéria tributária por alteração de
jurisprudência, à luz do Código de Processo Civil de 2015, tendo como contraponto
metodológico as orientações veiculadas e difundidas pelo Parecer PGFN n.º 492/2011.
PALAVRAS-CHAVE: Legitimidade da tributação – Sistema stare decisis – Precedentes
judiciais – Particularidades fáticas dos casos concretos – Coisa julgada e Ação Rescisória
em matéria tributária – Parecer PGN 492/2011 – Positivismo – Pragmatismo – Confronto e
adequação metodológica – Integração jurídico-filosófica e dogmática.
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PRECEDENT USED AS LAW AND TAXATION LEGITIMACY
RES JUDICATE AND RESCISSION IN TAX MATTER UNDER THE NEW
BRAZILIAN CIVIL PROCEDURE CODE
RODRIGO GIACOMELI NUNES MASSUD
ABSTRACT: Two major factors should be highlighted for a thematic overview of this study:
(i) the revolution of language studies (linguistic turn) and its great repercussion on the
interpretation and establishment of a legal reality, having its peak with the proposal for
cognitive isolation, the so called abyss of knowledge; and (ii) the appreciation of legal
precedents in shaping the legal-tax relations and in the construction of the normative
senses, with the projection for the legitimate future expectations, rationalizing the
jurisdictional rendering through its programmed mechanization and thereby distancing
from the factual particularities of concrete cases. A combination of the arising phenomena
of these categorical axes, a legal-philosophical and dogmatic integration in the study of res
judicata and rescission in tax matters by alteration of precedent cases was accomplished, in
light of the Brazilian Civil Procedure Code of 2015, having its methodological
counterpoint on the guidance disseminated by the Legal Opinion PGFN nª 492/2011.
KEY-WORDS: Tax Legitimacy – Stare decisis system – Judicial Precedent – Factual
Particularities of concrete cases – Res judicata and Tax Rescission Legal Procedure –
Legal Opinion PGN 492/2011 – Positivism – Pragmatism – Confrontation and
Methodological Adequacy – Judicial-Philosophical and Dogmatic integration.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 1. Problematização em concreto...........................................................................................
2. Problematização em abstrato............................................................................................
3. Considerações metodológicas: fenomenologia jurídica e a semiótica.............................
PARTE I
DA ESTRUTURA FILOSÓFICA AO SENTIDO DOGMÁTICO
Capítulo 1. “Ontologismo” jurídico e indeterminação do direito..................................
1. Dedução mecânica versus indução e abdução orgânica...................................................
2. Os antecedentes da escola positivista: mecanicismo, dualismo cartesiano e causação...
2.1. O empirismo lógico (ou simplesmente positivismo)....................................................
2.2. Positivismo jurídico e a relação ser/dever-ser...............................................................
2.3. Posturas aglutinante e isolante no Direito tributário brasileiro.....................................
Capítulo 2. A busca de finalidade.....................................................................................
1. Do pragmatismo filosófico ao pragmatismo jurídico.......................................................
1.1. Método pragmatista no direito e a teoria estruturante de Muller: intersecções............
Capítulo 3. O sentido comum............................................................................................
1. Unidade, coerência e completude. Para quem?................................................................
2. Objeto dinâmico e imediato, evento e fato: do positivismo ao pragmatismo..................
3. Norma jurídica (ou normatividade jurídica): incidência, aplicação, confusão................
PARTE II
SISTEMA STARE DECISIS E A INCIDÊNCIA DOS PRECEDENTES
Capítulo 4. Conceitos fundamentais.................................................................................
1. O sistema stare decisis: precedente como fonte do direito?............................................
1.1. Decisão, jurisprudência e precedente............................................................................
1.2. Elementos do precedente (ratio decidendi e obter dictum)...........................................
1.3. Distinguishing (distinção), overruling (superação ou revogação), drawing of
inconsistent distinctions (distinção inconsistente), sinaling (sinalização), transformation
(transformação) e overriding (adequação)...........................................................................
Capítulo 5. Semiose processual......................................................................................... 1. Segurança jurídica através da legitimação processual democrática.................................
2. Forma versus conteúdo....................................................................................................
PARTE III
FUNÇÃO NORMATIVA DO PRECEDENTE, COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA
Capítulo 6. Valorização dos precedentes no sistema brasileiro: implicações...............
1. Normatividade jurídica e decisões normativas: os juízes criam direito?.........................
2. Evolução reformadora no CPC/1973 e a racionalização do contencioso.........................
2.1. Valorização da jurisprudência no contencioso tributário administrativo......................
3. Segurança jurídica, fundamentação, extensão da coisa julgada e o tempo jurídico.........
4. Uma primeira síntese: a mudança na compreensão e construção do Direito tributário a
partir da valorização dos precedentes...................................................................................
Capítulo 7. Coisa julgada e rescisória com referibilidade em matéria tributária........
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1. Panorama e inovações da matéria no CPC/2015..............................................................
1.1. Coisa julgada tributária e o Parecer PGFN n.º 492/2011: crítica metodológica...........
1.2. Os novos regimes rescisórios incorporados pelo CPC/2015.........................................
1.3. Análise jurisprudencial do tema e atualização da Súmula 343 do STF........................
1.4. Quadro sintético dos regimes rescisórios......................................................................
1.5. Pela releitura metodológica do Parecer PGFN n.º 492/2011: fechamento estrutural,
confiança no tradutor e controle das interpretações.............................................................
2. Incidência do precedente e juízo de adequação: identidade x similitude jurídica............
3. Uma segunda síntese: variáveis processuais e condicionantes materiais da coisa
julgada e da rescisória tributária...........................................................................................
CONCLUSÕES.......................................................................................................................
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................
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INTRODUÇÃO
Evidenciando e explicitando desde logo nossas predileções gnosiológicas,
iniciamos enfatizando o aspecto pragmático da doutrina de PAULO DE BARROS
CARVALHO, que em geral costuma ceder espaço às suas análises lógico-sintáticas e
analíticas do direito positivo. Destacamos, então, que “uma ordem jurídica não se realiza
de modo efetivo, motivando alterações no terreno da realidade social, sem que os
comandos gerais e abstratos ganhem concreção em normas individuais."1
Dessa forma, é na base da pirâmide normativa, em especial a partir das normas
sancionatórias, que encontramos o retrato dos atos da vida, onde travamos contato mais
próximo com a experiência social e, a partir dela, construímos as significações ou
interpretações jurídicas, direcionando as condutas futuras.
Até porque, como já insistia LOURIVAL VILANOVA: “norma primária e
norma secundária (oriunda de norma de direito processual objetivo) compõem a
bimembridade da norma jurídica: a primária sem a secundária desjuridisciza-se; a
secundária sem a primária reduz-se a instrumento, meio, sem fim material, a adjetivo sem
o suporte do substantivo.”2
Ao mesmo tempo, vale o registro, mais a frente explorado, de que não existe
sistema jurídico sem hierarquia, nem hierarquia sem unidade, o que não implica uma
ordenação dedutiva dos conteúdos normativos abstratos, um fluxo unidirecional que
caminha de cima para baixo, senão uma constante inversão, ascendente e descendente, dos
processos interpretativos. Assim compreendemos a ideia de pirâmide.
1 “Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 141.
2 “Causalidade e relação no direito”, 4ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 190.
9
Por essa razão, especialmente quando se fala de normatividade de precedentes
e coisa julgada, ganha relevância as denotações concretas dos antecedentes normativos, já
que são os responsáveis pela conformação das relações intersubjetivas. É assim que
trataremos e caminharemos nas investigações que compreendem o tema deste trabalho.
Por isso, mais que responder a questões sobre “o que é o direito”, mas também
não ignorando as suas estruturas formais, direcionaremos nossas atenções para “como o
direito funciona”, ou “para que serve o direito”, fato esse que, ao lado da teoria analítica da
norma jurídica, nos impõe um tom pragmatista, incrementado por teorias argumentativas.
Sob tais concepções, pretendemos revisitar a categoria coisa julgada, com
enfoque nas discussões de índole tributária, sua tendência generalizadora a partir de casos
concretos, consequências e reflexos no processo tributário, sobretudo diante do novo
Código de Processo Civil (CPC/2015)3.
Para atingir os objetivos propostos, partiremos da identificação de problemas
práticos relacionados ao contencioso tributário, contrapondo-os com os aspectos teóricos
que envolvem a valorização dos precedentes jurisprudenciais, seu impacto na formação e
revisão da coisa julgada, na construção e (des)estabilização das expectativas normativas.
1. PROBLEMATIZAÇÃO EM CONCRETO
Na experiência tributária contenciosa, sobretudo a judicial, é comum o
sentimento de que nossos tribunais acabaram se acomodando no julgamento apenas de
teses jurídicas, delimitadas tão somente pelo pedido formulado pela parte e fixadas no
3 Lei n.º 13.105/2015, atualmente na vacatio legis, com vigência prevista para março de 2016.
10
dispositivo do julgado (princípio da congruência), daí sobressaindo a qualidade do trânsito
em julgado (a sentença é imutável nos limites do dispositivo).
Muitas vezes deixa-se de lado, em contrapartida, o adequado tratamento e
enquadramento dos fatos, o que não raramente empurra para o limbo diversas lides que,
após anos de discussões, num exaustivo e demorado processo, são encerradas já de
maneira desatualizadas ou, o que é pior, acabam não sendo corretamente resolvidas por
conta da dinâmica e peculiaridade das atividades desenvolvidas pelas pessoas atingidas, ou
mesmo das complexidades fáticas do caso, insuficientemente enquadradas. Há, assim, um
vácuo prescritivo que continua não solucionado pela coisa julgada.
Exemplificativamente, podemos citar algumas discussões nas quais se fixou e
decidiu a tese, porém sem considerar adequadamente o conjunto da postulação, as questões
principais e os fundamentos determinantes (para utilizarmos os termos tão presentes no
novo compêndio processual), que só podem ser obtidos a partir dos aspectos dinâmicos dos
fatos, deixando, com isso, as matérias em aberto. Vejamos:
(i) alargamento da base de cálculo do PIS/COFINS pela Lei n.º 9.718/98, onde
se decidiu o conceito de faturamento (a tese), que equivaleria ao conceito
contábil de receita bruta (produto da venda de mercadorias e/ou da prestação de
serviços), mas não se atentou para a análise e evolução dos atos de comércio e
das atividades desenvolvidas pelas empresas. Assim, a decisão ficou indefinida
para as instituições financeiras e seguradoras, bem como para as locadoras de
bens imóveis, que continuam a discutir a extensão do conceito de faturamento4;
(ii) IRPJ devido no Brasil por empresas nacionais, pelos resultados de suas
controladas e coligadas no exterior (tributação universal), tese que em
11
julgamento conjunto5 orientou, apenas, que não incide o tributo quando se
tratar de coligada localizada em país não considerado paraíso fiscal, bem como
que incide o tributo quando se tratar de controlada localizada em paraíso fiscal,
ficando em aberto todas as demais questões (coligada em paraíso; controlada
em não paraíso; controladas e/ou coligadas em países com tratado contra a
bitributação assinado pelo Brasil; incidência sobre as variações cambiais), que
só podem ser analisadas a partir da dinâmica fática da tributação em cada país e
peculiaridades de cada caso;
(iii) ISS sobre locação de bens móveis, tendo sido afastada a pretensão fiscal6
com base no critério diferenciador entre obrigação de dar e obrigação de fazer,
mas não se avaliando, por exemplo, as hipóteses de prestação de serviços
concomitantes ao fornecimento do bem (caso da locação de guindaste com o
fornecimento do operador), não se definindo, assim, os critérios aptos a aferir a
prevalência do serviço como atividade meio ou fim;
(iv) ICMS-Importação, tendo sido considerado inexigível o tributo nas
importações via leasing7, não tendo sido analisada a dinâmica das diferentes
espécies e modalidades de leasing e negócios praticados pelas empresas, nos
quais não raramente há a transferência de domínio do bem importado (por
exemplo, compra de bem no exterior por empresa controlada e subsequente
formalização de leasing operacional à controladora brasileira);
4 RE n.º 609.096, com repercussão geral (instituições financeiras); RE n.º 400.479 (seguradoras e corretoras);
RE n.º 599.658, com repercussão geral (locadoras de bens imóveis). 5 ADIN n.º 2588, RE n.º 611.586 e RE n.º 541.090.
6 Repercussão geral reconhecida no AI-RG n.º 766.684 e julgada no RE n.º 626.706, ensejando, inclusive, a
edição da Súmula Vinculante n.º 31. 7 Repercussão geral reconhecida no RE n.º 540.829.
12
(v) a infindável discussão do conceito de insumo para creditamento de
PIS/COFINS8, que necessariamente passa pela análise de cada atividade;
Enfim, existem muitos outros casos, mas a ideia não é traçar uma análise da
evolução jurisprudencial das teses, identificando e apontando suas inconsistências, rupturas
e insuficiências cognoscitivas, mas apenas introduzir o pano de fundo deste trabalho: a
normatividade dos precedentes e a coisa julgada em matéria tributária no CPC/2015.
Veja-se que tais vácuos decisórios são absolutamente comuns, mas passam a
trazer danos concretos ao sistema com a valorização dos precedentes e produção, cada vez
maior, de julgamentos generalizadores que ampliam e expandem objetiva e subjetivamente
os limites da coisa julgada9, até porque, “no final das contas, o direito se constrói na
experiência, no entretecer paulatino das expectativas normativas envolvidas nos múltiplos
conflitos de interesse, filtrados em linguagem competente e submetidos à apreciação de
órgãos credenciados pelo ordenamento.”10
O que ocorre, a partir de então, são problemas de subsunção, ou de
racionalidade subsuntiva, na medida em que incorporamos técnicas consuetudinárias de
produção do direito, mas, ao mesmo tempo, não possuímos uma cultura consuetudinária,
tornando nossos precedentes absolutamente insuficientes e inapropriados para a resolução
de casos concretos: um claro dilema de incidência normativa.
8 Repercussão geral reconhecida no ARE n.º 790.928, tendo sido fixado o conceito de receita tributável para
PIS e COFINS em sede de repercussão geral nos RE’s n.ºs 586.482/RS e 606.107/MG. 9 Não por outra razão, recentemente tivemos a veiculação da PEC 33/2011, arquivada em janeiro de 2015,
por meio da qual se pretendia submeter as súmulas vinculantes e as decisões em controle concentrado de
constitucionalidade à prévia aprovação do Congresso Nacional. 10
CARVALHO, Paulo de Barros. “Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses,
2011, p. 209.
13
Parece paradoxal, pois se até então combatíamos a morosidade jurisdicional,
muito por conta da desvalorização dos precedentes; agora enfrentaremos problemas de
incidência jurisdicional, por conta da valorização dos precedentes.
Com a ineficiência e ineficácia evolutiva dos conceitos legais abstratos frente à
rapidez das transformações sociais, valoriza-se e racionaliza-se o contencioso: justiça em
massa para todos. Com a massificação da distribuição da justiça, voltamos ao problema da
ineficiência e ineficácia evolutiva dos conceitos legais, um círculo vicioso.
Em outras palavras, para a solução da morosidade legislativa outorgamos
eficiência à jurisdição. E agora, com a massificação jurisdicional passamos por uma
abstrativização das decisões individuais e regressamos à ineficiência jurisprucencial, mas
ainda assim acompanhamos a expansão, cada vez maior, da força vinculante dos julgados.
Desse modo, pensamos que as atuais alterações legislativas em nossa
codificação processual fornecem instrumentos e ferramentas que nos permitirão superar
tais distorções de decidibilidade e incidência do precedente ao caso concreto,
direcionando-nos para uma maior previsibilidade e adequação das condutas futuras.
Dentro dessa dinâmica, conceitos como propósito negocial, substância
econômica, essência sobre a forma, critérios de validade de planejamentos tributários, entre
outros assuntos muito debatidos nos julgamentos, passariam a vincular e direcionar as
condutas dos julgadores e contribuintes, oferecendo segurança jurídica em concreto.
Imersos nesse ambiente, trataremos dos impactados na coisa julgada, sua
formação e revisão, com repercussão nas relações jurídico-tributárias continuativas e
Súmula 239 do STF; ação rescisória de decisão inconstitucional, Súmula 343 do STF e
Pareceres PGFN n.ºs 492/10 e 492/11, temas que serão enfocados no trabalho.
14
2. PROBLEMATIZAÇÃO EM ABSTRATO
Do ponto de vista jurídico-estrutural11
, a tributação é atividade expropriatória
exercida pela produção de cadeias normativas, nas quais se concatenam e se processam as
semioses do direito que, ao final, conformam as significações normativas (sentido) e
apontam para a direção dos hábitos de conduta (função).
Tem-se, então, o sistema de Direito12
tributário, aqui compreendido como a
união das normas de direito material e de direito processual tributário13
(sistema primário
mais o secundário14
), responsável por ao mesmo tempo permitir a consecução dos
objetivos estatais como, também, proteger as liberdades individuais dos contribuintes.
A normatividade tributária, portanto, procura conformar as relações sociais de
índole econômica e financeira, imprescindíveis para o desenvolvimento do Estado, em
especial quando pautado no regime democrático de direito humanitário, regido pela
solidariedade, fraternidade e igualdade.
Como síntese mediadora entre forma e conteúdo, encontra-se o material
empírico, os casos concretos, onde encontramos e retratamos, nos antecedentes normativos
concretos, o substrato responsável pela construção e atualização dos sentidos semânticos
11
Com esse termo procuramos nos referir, de modo mais amplo, à estrutura normativa do direto, mais do que
ao mero arranjo sintático das normas, que se ocupa com a organização lógica, simplesmente formal
(abstração formalizadora), dos enunciados prescritivos. 12
Utilizaremos Direito em letra maiúscula quando nos referirmos à ciência do Direito, e a letra minúscula
quando nos referirmos ao direito positivo. 13
As peculiaridades do subsistema de Direito material tributário nos permitem falar, na linha da moderna
doutrina, numa teoria geral do processo tributário. Desse modo, o sistema tributário é integrado não apenas
pelo conjunto de normas que regulam, direta ou indiretamente, a instituição, arrecadação e fiscalização dos
tributos, como também por aquelas que regulam a aplicação e controle jurisdicional desse substrato
normativo. Afinal, processo é instrumento, indissociável do produto. 14
Utilizamos o termo sistema secundário nos referindo à acepção de norma secundária adotada por Kelsen,
seguida por Lourival Vilanova e Paulo de Barros Carvalho, de modo a nos remeter às relações jurisdicionais
de índole tributária. Portanto, a diferença entre a norma jurídica primária e secundária não está na sanção (já
que a norma primária também pode ser sancionatória), mas sim na necessidade ou não de intervenção do
Estado-Juiz, ou seja, na natureza da relação (se jurisdicional ou não).
15
do Direito tributário, sendo precisamente a partir daí que se desenvolvem as disputas pelos
conceitos, fomentando e concretizando as diretrizes tanto da consultoria como do
contencioso tributário.
É a experiência jurídico-tributária, em sua função normativa, que movimenta e
atualiza as estruturas e os sentidos do Direito tributário, permitindo sua evolução.
Conforme já nos ensinava LOURIVAL VILANOVA15
:
“(...) estudando tão-só estruturas formais, à lógica não compete indicar
que proposição normativa válida no sistema do direito positivo é a
acertada e justa para enquadrar o fato como correspondente ao tipo
normativo. Nem lhe compete, num argumento em que o juiz chega à
decisão do caso controvertido, selecionar as proposições normativas
aplicáveis, qualificar normativamente o dado e dizer qual a sua
conclusão. O momento formal do argumento judiciário reside na
estrutura inferencial, que se limita a determinar que dadas tais
premissas, delas decorre tal conclusão. Mas, o factual-social e o
valorativo saturam as estruturas de raciocínio e deles tomar
conhecimento fica para além das análises formais.
Nem cabe à lógica jurídica decidir quando se empregue a inferência
indutiva, ou a inferência analógica, ou a via do argumento a contrario
sensu. A decidibilidade de qualquer um dos possíveis métodos para
encontrar a solução justa é problema nitidamente extralógico.”
Ou ainda, conforme MIGUEL REALE16
:
“(...) a Lógica Jurídica não tem por fim dar resposta às múltiplas e
sempre renovadas exigências da ciência jurídica: ela esclarece
rigorosamente a estrutura do juízo de ‘dever-ser’ ou da proposição
normativa, mas não o seu repertório: não envolve, nem poderia envolver,
o momento decisivo da normatividade, que é o da sua atualização como
conduta, isto é, como comportamento do juiz, do administrador, dos
indivíduos, e dos grupos a que ela se destina.”
Daí a relevância dos precedentes tributários e da coisa julgada, saturando a
experiência e demarcando as inferências jurídicas para a resolução de casos futuros.
Ao mesmo tempo, aqui encontramos o primeiro problema enfrentado neste
trabalho, pois como conciliar um sistema pautado na tradicional unidade, coerência e
15
“As estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, p. 55. 16
“O direito como experiência”, 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 191.
16
completude, com as constantes e crescentes mutações e evoluções das demandas sociais e
da experiência jurídico-tributária?
Parece inconciliável. De um lado temos um objeto de estudo – direito positivo
– pronto e acabado, integralmente pautado e norteado por juízos a priori destinados, de
forma antecipada, a cobrir todo o tecido social, conferindo, assim, segurança jurídica e
pacificação às relações: aqui a segurança jurídica é abstrata, uma garantia através da qual
não-contradição, terceiro excluído e identidade são postulados gerais.
Por exemplo: se faturamento é o resultado da venda de produtos e/ou prestação
de serviços, e se locação de bens imóveis não correspondente nem a uma venda, nem a
uma prestação de serviço, então a conclusão lógica é a de que não é possível incidir, sobre
a receita dessa atividade, tributos que tomem por base de cálculo o faturamento. Em outras
palavras, não haveria que se falar em PIS e COFINS, no sistema cumulativo, sobre a
receita de locação de bens imóveis, simples assim. Mas não é isto que vemos na prática
interpretativa da nossa jurisprudência17
.
De outro lado, temos a expansão e crescimento da realidade econômica, dos
atos de comércio e das discussões tributárias, fruto do aumento das demandas sociais, do
fortalecimento do acesso à justiça e da valorização dos precedentes, evidenciando, muitas
17
No sentido da expansão do conceito de faturamento inicialmente fixado pelo STF: “(...) PIS/PASEP E
COFINS. LEI N. 9.715/98 E LC N. 70/91. CONCEITO DE FATURAMENTO. (...) 2. No julgamento do RE
585.235/MG, o Supremo Tribunal Federal apreciou o recurso extraordinário submetido a repercussão geral
e definiu que a noção de faturamento deve ser compreendida no sentido estrito de receita bruta das vendas
de mercadorias e da prestação de serviços de qualquer natureza, ou seja, a soma das receitas oriundas do
exercício das atividades empresariais consoante interpretação dada pelo RE n. 371.258 AgR (Segunda
Turma, Rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 03.10.2006) e pelo RE n. 400.479-8/RJ (Segunda Turma, Rel.
Min. Cezar Peluso, julgado em 10.10.2006). 3. Essa mesma noção de faturamento tem sido acolhida por
este STJ, inclusive porque coincidente com aquela definida no art. 3º, da Lei n. 9.715/98 e art. 2º, da Lei
Complementar n. 70/91, conforme demonstram os seguintes precedentes: EDcl no REsp 929.521 / SP,
Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 14.04.2010; REsp 776705 / RJ, Primeira Seção, Rel. Min.
Luiz Fux, julgado em 11.11.2009; REsp. n. 1.201.689-RJ, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell
Marques, julgado em 11.02.2014; AgRg nos EDcl no REsp 1427892 / SE, Segunda Turma, Rel. Min.
Humberto Martins, julgado em 16.04.2015; AgRg no REsp 1461557 / CE, Segunda Turma, Rel. Min.
Humberto Martins, julgado em 16.09.2014; REsp 1432952 / PR, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro
17
vezes, o abismo da legislação tributária, incapaz de pacificar as relações jurídico-
tributárias, impulsionando mudanças normativas jurisdicionais: aqui a segurança jurídica é
concreta, um fim, de modo que não-contradição, terceiro excluído e identidade são
possibilidades individuais (a posteriori), porém generalizáveis a partir de casos concretos.
Tomando o mesmo exemplo acima, temos que o conceito de faturamento não
seria imutável, mas, pelo contrário, dependeria das atividades de cada empresa, não
havendo que se falar em identidade e terceiro excluído (uma mesma receita poderia não ser
faturamento para uma empresa, mas poderia ser para outra), por isso, para a correta fixação
da tese em julgamento, o importante seriam os antecedentes normativos concretos18
.
O pensamento a priori, desta feita, é responsável por formular hipóteses, ou
pela formalização do raciocínio, enquanto o pensamento a posteriori seria o teste empírico,
responsável por confrontar as hipóteses com o objeto que pretende representar (estratégia
indutiva). Trata-se, portanto, do embate, se é que existe, entre forma e conteúdo.
Esse é o ambiente atual do contencioso tributário, no qual os precedentes estão
sendo produzidos de acordo com uma lógica universal, uma síntese da tese, abstraídos das
particularidades de cada caso e, ao mesmo tempo, estão sendo aplicados generalizada e
subsuntivamente, a partir do dispositivo do julgado, a casos individuais.
Dessa forma, o desafio que se apresenta, e que se encontra mediado pela coisa
julgada, pode ser assim sintetizado: como conciliar segurança jurídica e generalização de
precedentes com a atualização e evolução das relações tributárias?
Campbell Marques, julgado em 25.02.2014; REsp 1176749 / PR, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux,
julgado em 20.04.2010. (...).” (REsp n.º 1.496.085/SC, DJ 10/06/2015 – grifos nossos). 18
Isto não significa o afastamento integral do pensamento lógico, ou da formalização do raciocínio, que
continua muito útil na análise da sintaxe da gramática. Não propomos, portanto, o abandono da lógica
clássica, mas sim sua flexibilização e compatibilização com a realidade atual.
18
Em outras palavras, como tratar a tradicional imutabilidade da coisa julgada
com a mutabilidade das atividades econômicas e financeiras, especialmente diante das
recentes mudanças processuais que, cada vez mais, privilegiam a força normativa dos
precedentes, a cooperação entre as partes e a democratização do processo?
Nesse cenário, e já adiantando parte de nossas conclusões, as expectativas
normativas são desenvolvidas e estabilizadas a partir dos casos concretos, não podendo ter
um caráter estático, imutável e inflexível no tempo. Afinal, uma mera coleção de
individuais não se confunde com a totalidade dos gerais (crítica à postura nominalista).
Por isso, considerando a confluência unificadora de estrutura, sentido e função
na experiência jurídico-tributária, ou seja, na solução dos casos concretos, pretendemos
analisar a produção do precedente tributário e sua semiose no processo gerador de sentido,
compondo e integrando a racionalidade generalizadora de um sistema de stare decisis,
verificando as repercussões na coisa julgada, sua estabilização e desestabilização.
3. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS: FENOMENOLOGIA JURÍDICA E A SEMIÓTICA
A partir das diversas metodologias científicas que levam em conta as formas
gnosiológicas de aproximação dos diferentes objetos de estudo, seguiremos metódica que
amplie e concilie a análise das múltiplas regiões ônticas19
manifestadas pelo direito.
Até porque, de acordo com PAULO DE BARROS CARVALHO:
“Já se pode falar, hoje, numa vivência concreta, efetiva, rica de
variações e de alternativas, na existência de cada um dos tributos
19
Sobre as regiões ônticas (objetos naturais, ideais, culturais e metafísicos), e os respectivos métodos de
aproximação, remetemo-nos à obra da Professora Maria Helena Diniz, “Compêndio de introdução à ciência
do direito”. São Paulo: Saraiva, 1988.
19
brasileiros, principalmente dos impostos. Estes não representam mais,
como outrora, meras construções de linguagem, à espera do longo e
penoso processo de concretização. Vemo-los, agora, integrados numa
realidade vivida e construída pela sociedade brasileira, portanto, por
isso mesmo, dotadas de respeitável carga pragmática e que, agregada às
outras duas instâncias semióticas, poderá propiciar uma visão mais
ampla e fecunda da linguagem jurídico-tributária.”20
Apesar de se apresentar como produto cultural, o direito positivo não deixa de
traduzir formas ideais que representam, em seu interior, objetos naturais, por isso mesmo
podemos falar em predominância, mas não exclusividade do fenômeno da cultura.
O que é, por exemplo, a tabela NCM de classificação de produtos, as
parametrizações digitais dos deveres instrumentais (SPED: NF-e, ECD, EFD, ECF), ou as
equações para a quantificação dos preços de transferência, senão fórmulas lógicas ideais
que representam coisas, objetos e relações? Qual o objeto de uma inspeção judicial?
Enfim, logo se evidenciam as diferentes manifestações do jurídico e a inclusão,
na composição ontológica do direito, dos diversos aspectos que derivam na sua
complexidade cognoscitiva, por isso a fenomenologia jurídica exige a integração de
diversos métodos de investigação, sobretudo porque a linguagem idiomática é veículo de
manifestação do jurídico, mas não detém sua exclusividade constitutiva.
Por oportuno, mostram-se pertinentes as observações de TÁREK MOYSÉS
MOUSSALLEM21
, para quem:
“Nem tudo no mundo é linguagem. Se por um lado a linguagem instaura
uma realidade dentro do sujeito cognoscente, por outro ela não cria o
mundo. Há fatos que existem independentemente da linguagem, v.g. a
árvore, o sol, a lua, os astros, etc. Nada obstante, há fatos dependentes
da linguagem: o romance, a pintura e o direito.
Quando se utiliza a frase: ‘A linguagem cria a realidade’ deve-se
entender: a linguagem instaura uma mundivisão no sujeito
cognoscente.”
20
“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 209. 21
“Fontes do Direito Tributário”, 2ª edição. São Paulo: Noeses, 2006, notas à segunda edição, p. VII.
20
É claro que dentro de uma perspectiva linguística, o direito manifesta-se
através de uma convenção simbólica, mas a linguagem não se limita aos símbolos. Numa
visão semiótica22
o que existe são predominâncias, razão pela qual conciliaremos, na
aproximação e análise do jurídico, os métodos racional-dedutivo e empírico-indutivo, ao
lado do empírico-dialético, implicando o teste e confronto do resultado da experiência.
Até porque, inclusive os símbolos exercem um papel ontológico na cognição,
representando, na linha de PEIRCE, a realidade da terceiridade. Por oportuno, vejamos a
seguinte passagem de RODRIGO VIEIRA DE ALMEIDA23
:
“O caráter ontológico do símbolo, cabe agora notar, consiste justamente
em que, numa representação, o símbolo deve sempre incorporar uma
forma e, ao fazê-lo, representar o objeto de maneira a expor a sua
cognoscibilidade. O que equivale a dizer que o aspecto ontológico do
símbolo envolve, na verdade e pela verdade, os três tipos de relações que
o símbolo exibe, tanto que um símbolo não pode violar, para ser
verdadeiro, nenhuma das leis formais derivadas dos três tipos de
relações que ele exibe (...).
Em última instância, para Peirce, o símbolo em seu caráter ontológico
estava assentado no fato de que, além do mundo interno (o mundo da
memória) e o mundo externo (o mundo dos objetos e factual) existia o
mundo lógico, coextensivo com os outros dois, de modo a não haver
nenhum tipo de separação. (...)
Uma experiência, portanto, é uma determinação de uma ideia
arquetípica, de modo que Peirce também define a lógica como ‘a ciência
das leis da experiência em virtude de estas serem uma determinação da
ideia, ou, em outras palavras, como a ciência formal do mundo lógico.’
(W 1:169). Como tais leis são leis da experiência, o estudo de suas
características internas, ou seja, um estudo que visaria exibir como o
intelecto trabalha ao pensar, seria nada mais que uma investigação de
suas características externas.
Esse é o ponto crucial: um símbolo pode, ontologicamente, exibir o modo
de ser da realidade. (...)
Aquilo que uma ideia possui de verdade é o que, sendo simbolizável, se
encarna no mundo por meio dos interpretantes contínuos dessa mesma
22
Utilizaremos a matriz semiótica americana de Charles Sanders Peirce, mais abrangente do que a mera
linguística, e assim o faremos com base em: ARAÚJO, Clarice von Oertzen de. “Semiótica do Direito”. São
Paulo: Quartier Latin, 2005; SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. “Curso de Semiótica Geral”. São
Paulo: Quartier Latin, 2007; e SANTAELLA, Lúcia. “O que é semiótica”. São Paulo: Brasiliense, 2006. 23
“Algumas reflexões sobre o aspecto ontológico do símbolo e sua relação com a cognoscibilidade de Deus
no interior da metafísica religiosa de Charles Sanders Peirce”, in “Cognitio: Revista de Filosofia”, vol. 15,
número 2, julho/dezembro de 2014. São Paulo: Educ, p. 213/241.
21
ideia, revelando a sua força evolucionária em direção ao crescimento da
razoabilidade concreta. (...)
(...) o símbolo é a expressão e encarnação de uma conexão real
inteligível, sendo esse o seu peculiar aspecto ontológico.” (grifos nossos)
Em resumo, conforme PEIRCE “nós estamos no pensamento e não o
pensamento em nós.”24
Por isso, os símbolos não se limitam aos atos predicativos de fala
do direito, à análise formal do discurso, vale dizer, eles não estão em nós, não existindo
uma separação entre mundo interior e exterior. Os símbolos, nessa concepção semiótica,
compreendem a linguagem natural.
Nesse sentido, não se nega que o direito é composto por textos, mas estes (os
textos), não são meras coleções arbitrárias de individuais. Esclarecendo o sentido atribuído
ao termo texto, recorremo-nos às lições de GABRIEL IVO25
e 26
:
“O Direito é composto por textos. Textos jurídicos, do direito positivo, e
textos da realidade social sobre a qual incide. Mas não se deve confundir
texto apenas com texto escrito. Uma passagem de GREGORIO ROBLES
é bem interessante para retratar essa situação:
‘El Derecho no sólo está en los textos escritos sino también en los
textos de la realidade social. Es más, el texto escrito casi nunca es un
texto completo, sino que su comprensión integral solo suele ser
posible se se le conecta con su parte no escrita. Uma regla jurídica
escrita no puede ser entendida si no se la conecta hermenéuticamente
con la realidade social a la que va dirigida, integrando dicha
realidade como parte del texto completo de la regla en cuestión.’
Portanto, toda a realidade social que é suscetível de compreensão e de
interpretação pelos homens consiste num texto. E é assim que a
expressão texto é utilizada por PAULO DE BARROS CARVALHO: ‘Não
é de hoje que os estudiosos no campo da semiótica vêm tratando a figura
do ‘texto’ como conceito de abrangência maior que a formulação escrita
d’uma ideia em expressões idiomáticas. Texto, na acepção que venho
considerando em meus trabalhos, extrapola tal definição estreita para
abranger tudo aquilo que se possa interpretar.’”
24
CP 5.289; CP 7.364. 25
“O Direito e a inevitabilidade do cerco da linguagem”. In CARVALHO, Paulo de Barros (coord).
“Constructivismo Lógico-Semântico”, vol. I. São Paulo: Noeses, 2014, p. 89/90. 26
“Para os efeitos que pretendemos, importa discernir o texto, enquanto instância material, expresso em
marcas de tinta sobre o papel ou mediante sons (fonemas), com sua natureza eminentemente física, do plano
do conteúdo, do contexto, seja o linguístico, seja o extralinguístico.” CARVALHO, Paulo de Barros.
“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 191/192.
22
Desse modo, na linha de GADAMER, temos que tudo aquilo que puder ser
interpretado é texto. E, retomando às lições de PAULO DE BARROS CARVALHO27
:
“Cada porção do real representa uma incisão profunda, mas abstrata,
imposta pelo ângulo de análise que satisfaz o interesse do sujeito do
conhecimento. Este, por sua vez, não ignora a natureza contínua e
heterogênea do mundo que o envolve, procurando, enquanto sujeito
transcendental, romper aquela continuidade extensiva e intensiva para
extrair o descontínuo homogêneo sobre o qual fará incidir o feixe de
suas proposições descritivas. Mas é evidente que o objeto de tal maneira
recortado reivindica um meio próprio de aproximação e de exploração
cognoscitiva, em outras palavras, um método. Daí a insistente asserção
segundo a qual a cada ciência corresponde uma metodologia, ainda que
um único método admita técnicas diferentes de implantação e de
operação. A via racional-dedutiva, por exemplo, utilizada para a
intelecção dos objetos ideais, não pode substituir o processo empírico-
indutivo, empregado na explicação generalizadora das ciências naturais,
em virtude de razões que provêm da própria ontologia objetal (...). os
métodos racional-dedutivo (adequado ao plano dos objetos ideais) e
empírico-indutivo (objetos naturais) não convém à investigação dos
objetos culturais, sempre valiosos, positiva ou negativamente. Aqui, o ato
cognoscente já é outro – a compreensão – e o caminho a ser percorrido
é o método empírico-dialético.”
Aliás, em sua teoria sociológica, PONTES DE MIRANDA28
já afirmava que:
“Nem a ciência é puramente empírica e intuicionista, nem somente
racional e abstrata: a indução e as provas experimentais conciliam as
duas tendências, as duas fases mentais, uma, a em que o espírito
reconhece o geral, e a outra, em que abusa dos processos que lhe
serviram para abstrair e generalizar.
Nas ciências do espírito e da sociedade é ínfimo o papel da dedução.
Que podem obter os processos dedutivos no dédalo de tão abstrusas
complexidades? Muito pouco.”
Assim, mantendo o cuidado de não misturar irrefletidamente correntes
filosóficas tomadas ao acaso, partiremos do positivismo lógico, revisitando temas centrais
como os da unidade, coerência e completude do sistema, mas pretendemos conciliá-lo com
o pragmatismo jurídico, utilizando-nos, para esse fim, dos referencias fornecidos pelo
27
Obra citada, p. 81/82. 28
“Introdução à Sociologia Geral”, 1ª edição. Campinas: Bookseller, 2003, p. 70.
23
constructivismo lógico-semântico29
, no qual não se esgotam os instrumentos e as bases
teóricas fundadas nas chamadas categorias analíticas (teoria da norma, lógica jurídica,
teoria dos atos de fala, teoria das classes e das relações), havendo a intersecção dos
métodos hermenêuticos e da axiologia, com recursos da filosofia e da semiótica.
A semiótica, como disciplina que estuda todos os aspectos da linguagem
(portanto mais abrangente do que a linguística), exercerá papel importante no trabalho,
pois nos permitirá analisar a forma como as cadeias de precedentes, ou semioses
jurisdicionais, ocorrem, fornecendo as ferramentas para a compreensão dos julgados.
É de certa forma consenso que o direito está em evolução, em crescente
adaptação, determinando e impondo novas formas de aproximação para o seu estudo, até
porque o objeto determina o método, não o contrário.
29
Em recente escrito, Paulo de Barros Carvalho deixa claro que o constructivismo lógico-semântico é
método, e não projeto filosófico, motivo pelo qual admite e convive com diferentes correntes filosóficas e,
com isso, diferentes racionalidades e métodos científicos. Nesse sentido: “O Constructivismo Lógico-
Semântico é, antes de tudo, um instrumento de trabalho, modelo para ajustar a precisão da forma à pureza e
à nitidez do pensamento; meio e processo para a construção rigorosa do discurso, no que atende, em certa
medida, a um dos requisitos do saber científico tradicional. (...) Apesar de suas origens e das concepções
que estão bem caracterizadas na plataforma inferior de suas bases, dista de ser um projeto filosófico: de
método é seu estatuto. (...) O presente volume foi concebido com objetivos bem definidos: (...) ii) reiterar as
possibilidades de diálogo com outros métodos, sem cair no indesejado sincretismo metodológico.” “Algo
24
PARTE I
DA ESTRUTURA FILOSÓFICA AO SENTIDO DOGMÁTICO
Capítulo 1. “Ontologismo” jurídico e indeterminação do direito
As considerações introdutórias, desde logo, carregam uma série de
questionamentos que colocam em evidência, de um lado, o conceito de direito e sua
multiplicidade conformativa; e de outro, os sintomas diagnosticados a partir do
contencioso tributário, levando os seus operadores a lidar com problemas reais que, em
busca de superações, demandam uma incursão às suas origens históricas.
O direito enquanto objeto de estudo, vimos acima, compreende tanto as normas
jurídicas como as relações sociais e suas diferentes formas de representação, apontando
para variadas regiões ônticas, em graus diferenciados de complexidade no contexto
comunicacional, possuindo, por isso, diferentes status ontológicos. Desse modo, as
abrangentes dimensões significativas do direito impedem falarmos em sua absoluta
determinação, assim como das relações por ele reguladas e suas múltiplas normatividades.
Estas são as precisas lições de PAULO DE BARROS CARVALHO:
“Em momento algum, todavia, o fenômeno jurídico é reduzido à singela
expressão das normas que integram a sua ontologia. A opção pelo
tratamento semiótico da linguagem normativa é decisão de cunho
metodológico, que se projeta na cognição do processo ontológico do
objeto de conhecimento em que atua o homem pelo sistema lógico da
linguagem. Eis o apontamento e o surgimento de um método científico
que toma por base as evoluções nos campos da filosofia, epistemologia e
teoria comunicacional destes últimos dois séculos. Habitar o espírito do
nosso tempo, como diria G. Vattimo é, de certo modo, participar desse
sobre o constructivismo lógico-semântico”. In CARVALHO, Paulo de Barros (coord). “Constructivismo
Lógico-Semântico”, vol. I. São Paulo: Noeses, 2014, p. 4 e 10 (grifos nossos).
25
mundo de incertezas, acatar essa multidiversidade que a todo instante
nos deixa admirados, escapando, minutos depois, do nosso controle; é
tomar consciência do extraordinário salto tecnológico havido no setor
da comunicação, com informações que se cruzam e entrecruzam em
múltiplos sentidos, acrescentando outras e inesperadas combinatórias ao
tecido já hipercomplexo das sociedades atuais.”30
Por isso, para que possamos adequar nossos métodos de trabalho e, dessa
forma, integrar os paradigmas em que estamos inseridos, mostra-se essencial uma análise
histórica do fenômeno jurídico, a partir das suas influências filosóficas no tempo.
1. Dedução mecânica versus indução e abdução orgânica
Analisando o tema da dedução x indução, no direito positivo, podemos
sintetizar a questão da seguinte forma: as normas gerais e abstratas (“leis gerais”)
conformam infalivelmente as normas individuais e concretas (“leis individuais”), ou os
casos particulares é que conformam, falivelmente, as leis gerais? De um lado as inferências
necessárias (dedutivas), de outro, as inferências prováveis (indutivas e abdutivas). Não sem
razão, os métodos dedutivos e indutivos estiveram no centro das mais variadas disputas
filosóficas e científicas desde o Século XVI.
O problema da indução, com origem em DAVID HUME31
, levou ao
positivismo determinista32
. Posteriormente, PEIRCE e outros pensadores pragmatistas
30
“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 207/208. 31
Para quem, mesmo depois da experiência vivida, a conexão entre causa e efeito continua arbitrária.
“Causalidade. (...). O pão que eu comia antes me alimentava; isto é, um corpo com certas qualidades
sensíveis era dotado de forças secretas naquele tempo. Mas então será lícito concluir que um outro pão deve
nutrir-me também em outro tempo e que qualidades sensíveis semelhantes devam ser sempre acompanhadas
por idênticas forças secretas? A consequência não parece absolutamente necessária.” (in ABBAGNANO,
Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 128). 32
“Determinismo. (...). O determinismo vincula-se, por isso, ao mecanicismo, que é a tendência dominante
da ciência do séc. XIX, assim como da filosofia correspondente a essa fase da ciência. Determinismo é a
crença na extensão universal do mecanicismo, ou seja, na extensão do mecanicismo ao homem.”
(ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 245).
26
falavam em falibilismo33
, ao mesmo tempo em que KARL POPPER desenvolveu o
princípio da falseabilidade34
, atacando frontalmente o determinismo.
A dedução utiliza-se de abstrações lógicas (processos de formalização),
enquanto a indução utiliza-se de abstrações isoladoras (processos de generalização), de
modo que uma desformalização não se confunde com uma individualização35
.
Dentro desse contexto, um pouco do que dissemos e observamos nas notas
introdutórias identifica, muito bem, os desdobramentos práticos de escolhas dogmáticas
que, por sua vez, possuem pautas filosóficas mais ou menos claras no curso do tempo.
Os problemas do contencioso tributário a partir da valorização dos precedentes,
da generalização dos julgamentos de teses jurídicas e da subvaloração dos contornos
fáticos do caso concreto, acarretando as lacunas decisórias e reflexos na coisa julgada
revelam, com clareza, o descasamento e insuficiência das orientações dogmáticas que
norteiam o nosso direito positivo, uma incompatibilidade evolutiva entre teoria e prática.
Evolução nem sempre é sinônimo de melhora, mas é analisando os momentos
históricos que conseguimos compreender as diferentes fases do pensamento jurídico e, com
isso, caminhar em direção ao futuro.
Nesse sentido, citando PAULO DE BARROS CARVALHO36
, vale lembrar:
“(...) que o direito é algo extremamente complexo, abrangendo, a um só
tempo, (i) uma linguagem prescritiva, (ii) um substrato sociológico
expresso pela vida comunitária que manifesta seu consentimento em
33
De acordo com o falibismo de Peirce, o universo encontra-se em expansão, nunca sendo integralmente
esgotado por qualquer tipo de representação e, por isso, todo o conhecimento é falível. Sutilmente diferente
da falseabilidade, o falibilismo não se refere, diretamente, às proposições científicas, mas sim à experiência. 34
Segundo o qual as proposições científicas são válidas até que evidências verificáveis demonstrem o
contrário (os universais estão na experiência). Com isso, Popper afirmava que a verdade científica é sempre
provável e, portanto, provisória. 35
Sobre a formalização e a generalização no direito positivo, remetemo-nos a VILANOVA, Lourival. “As
estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, Capítulo I. 36
“Princípios e sobreprincípios na interpretação do direito”, in Revista da FESDT n.º 7, Porto Alegre, 2011,
p. 136. Disponível em: http://www.ibet.com.br/download/Princípios%20PBC.pdf, consulta em 05/05/15.
27
relação àquela linguagem e (iii) um aspecto axiológico, sua dimensão de
idealidade, imanente à natureza de objeto cultural. Nem sempre, todavia,
se mantém o isolamento metódico entre esses três lados do problema do
direito. Ora se misturam conceito e valor, como no jusnaturalismo
clássico; ora se suprime o dado axiológico e se focaliza apenas a
existencialidade, como no empirismo positivista (positivismo jurídico,
positivismo sociológico etc.); ora, enfim, se cortam o valor e a base
sociológico-histórica, o que dá em conseqüência um formalismo
exacerbado, do tipo kelseniano ou um logicismo formalista, à moda de
Schreier.”
Assim, com o intuito de promover o diálogo comparativo em busca de uma
conciliação, faremos breve escorço do positivismo clássico e subsequente neopositivismo,
com enfoque em HANS KELSEN, desde logo lembrando a diversidade de formas na
apresentação desses diferentes movimentos no Direito.
Em seguida, abordaremos alguns pontos do pragmatismo jurídico,
referenciados em BENJAMIN NATHAN CARDOZO e GEORGE BROWNE REGO,
amparados, ainda, em WILLIAM JAMES, JOHN DEWEY e CHARLES SANDERS
PEIRCE, precursores do pragmatismo filosófico.
2. Os antecedentes da escola positivista: mecanicismo, dualismo cartesiano e causação
Numa síntese muito bem construída da história da filosofia e da percepção
científica no tempo, FRITJOF CAPRA37
percorreu a visão de mundo predominante entre
os séculos XVI e XVIII, por onde tem origem as raízes do positivismo. Tal empenho
também é realizado por ALDA JUDITH ALVES-MAZZOTTI e FERNANDO
GEWANDSZNAJDER, quando analisam a evolução dos métodos nas ciências sociais38
.
37
“O Tao da Física”, 1ª reimpressão da 2ª edição. São Paulo: Cultrix, 2013, tradução José Fernandes Dias. 38
“O método nas ciências naturais e sociais”, 2ª edição. São Paulo: Pioneira, 1999.
28
E, fazendo os paralelos com estes momentos históricos, CLARICE VON
OERTZEN DE ARAÚJO39
aborda as influências e desdobramentos dos respectivos
pensamentos no fenômeno da incidência jurídica.
Desse modo, até o Século XVI, na Idade Média, prevalecia uma concepção
orgânica de mundo, onde imperava a interdependência dos fenômenos espirituais e
materiais, sendo a estrutura científica assentada em duas autoridades: Aristóteles e a Igreja.
Entre os séculos XVI e XVII, na chamada Idade Moderna, contudo, a visão de
universo e o sistema de valores mudaram radicalmente, prevalecendo a noção de mundo
como se ele fosse uma máquina, com fenômenos absolutamente determinados, tudo em
razão das então alterações revolucionárias na física e na astronomia, baseadas nas
realizações de COPÉRNICO, GALILEU e NEWTON.
Foi GALILEU que combinou a experimentação científica com o uso da
linguagem matemática para formular as leis da natureza e dos corpos por ele descobertas, o
que lhe atribuiu a alcunha de pai da ciência moderna.
Por sua vez, FRANCIS BACON foi o primeiro a formular uma teoria clara do
procedimento indutivo, prezando pela construção de conclusões gerais a partir de
experimentos, desconsiderando projeções mentais subjetivas (como o cheiro, a cor, o som,
o sabor). O método de investigação, portanto, compreendia a descrição matemática da
natureza e a forma analítica de raciocínio.
Em seguida, envolvido nessa “revolução científica”, a filosofia de RENÉ
DESCARTES pretendeu conferir à ciência a característica de completa certeza,
prometendo a unificação de todo o saber, através de uma completa ciência da natureza,
rejeitando todo e qualquer conhecimento provável.
39
“Incidência Jurídica, Teoria e crítica”. São Paulo: Noeses, 2011.
29
Tanto é que o ponto fundamental de seu método é a dúvida. Ou seja, só
podemos acreditar naquelas coisas perfeitamente conhecidas e sobre as quais não se pode
ter dúvidas, até chegar ao famoso “penso, logo existo.”
Todavia, foi apenas com mecânica de ISAAC NEWTON que houve a
combinação do método matemático de descrição da natureza e o raciocínio analítico. Nas
análises de FRIJOF CAPRA, foi quem realizou, através do cálculo diferencial, uma grande
síntese das obras de COPÉRNICO, KEPLER, BACON, GALILEU e DESCARTES.
Em resumo, NEWTON combinou as descobertas de KEPLER sobre o
movimento planetário (pautadas em estudos de tábuas astronômicas) e de GALILEU sobre
as leis da queda (pautadas em seus experimentos), formulando as leis gerais do movimento
de todos os objetos no sistema solar – das pedras aos planetas –, criando a lei da gravidade.
Daí o termo mecanicismo40
, atrelado a essa ideia de um mundo-máquina, sendo
então considerado como “uma concepção filosófica do mundo, um método ou princípio
diretivo da pesquisa científica”41
, no qual impera o determinismo, representado pelo
conceito de causalidade necessária, ou causação eficiente42
. Vê-se, aqui, o método
dedutivo operando na lógica da inferência necessária.
A formação científica que se sucedeu a partir de então, durante os Séculos
XVII, XVIII e XIX, adotou o padrão mecânico na pesquisa e desenvolvimento de toda e
qualquer ciência, sendo encampada a causalidade absoluta na análise de todos os
40
“Os pilares da cosmovisão mecanicista foram construídos com a teoria matemática de Isaac Newton, a
filosofia de René Descartes e a metodologia científica proposta por Francis Bacon.” (ARAÚJO, Clarice von
Oertzen, obra citada, p. 88). 41
ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 654. 42
“Causalidade. (...). A noção de uma ordem causal do mundo (às vezes remetida a Deus como primeira
causa), segundo o conceito neoplatônico e medieval, forma ainda o pressuposto e o fundamento dos
primórdios da organização da ciência, com Copérnico, Kepler e Galileu. Essas bases são expressas em
termos mecanicistas por Hobbes e, em termos teológicos, por Spinoza, mas são sempre as mesmas. (...) A
causa é o que dá a razão do efeito, demonstra ou justifica sua existência ou suas determinações. (...) A
30
fenômenos naturais, inclusive nas ciências sociais, ao ponto de alguns filósofos
proclamarem o descobrimento de uma física social, como se verifica na concepção
atomística da sociedade de JOHN LOCKE, baseado em THOMAS HOBBES.
É exatamente isso que caracteriza o dualismo do pensamento cartesiano43
, no
qual se separa o mundo em dois reinos distintos e incomunicáveis: de um lado a matéria, a
natureza, o corpo, o natural, onde tudo se move de forma cega, de maneira absolutamente
determinada através da causação necessária, sem nenhuma influência do homem e sem
qualquer finalidade; de outro, a mente, a cultura, o espírito, o cultural, onde tudo é criado
pelo homem e qualquer desvio de regularidade é atribuível ao sujeito cognoscente44
.
Trata-se, portanto, de uma postura nominalista, que separa um mundo interno e
outro externo, independentes, encarando os fenômenos da natureza como uma sequência
de fatos particulares sem finalidade, de modo que os princípios de regularidade seriam
formas sem comprovação empírica (por exemplo, a lei da gravidade não estaria na
natureza, senão no pensamento). Portanto, todo o ser é reduzido ao pensamento, não
existindo nada no conceito de corpo que pertença à mente, e nada na ideia de mente que
pertença ao corpo. Com isso, as categorias universais seriam apenas mentais.
Tem-se então o problema da causação, através do qual, em sua concepção
inicial, o universo das coisas, dos fenômenos, é absolutamente determinado, havendo uma
relação dedutiva, automática e infalível, entre causa e efeito, sem espaço para desvio.
relação causal é uma relação de dedução” (ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 126). 43
DESCARTES, René. “Discurso do método, regras para a direção do Espírito”. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2003, tradução Pietro Nasset. 44
“(...) são dualistas os que afirmam a existência de duas substâncias, a material e a espiritual, em contraste
com os monistas, que não admitem mais de uma. A tendência é chamar dualista a toda e qualquer doutrina
metafísica que suponha a existência de dois princípios ou realidades irredutíveis entre si e não
subordináveis, que sirvam para a explicação do universo.” (MORA, José Ferrater. “Dicionário de filosofia”,
4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, p. 194/195).
31
Em grande síntese, é o conjunto dessas ideias que dá origem ao que se chamou
de empirismo lógico, doutrina que então se expandiu a partir do Círculo de Viena.
2.1. O empirismo lógico (ou simplesmente positivismo)
Envolvidos nesse contexto científico, e partindo do princípio unificador
linguístico das coisas, ganhou corpo no século XX (ou seja, em meio à transição que tinha
início na idade moderna), o empirismo lógico do Círculo de Viena, representando os ideais
de um grupo de cientistas liderados por MORITZ SCHLICK.
Acreditava-se, então, que as proposições referentes a um dado fenômeno
deveriam ser traduzidas objetivamente em termos observáveis e testadas empiricamente
para verificar a sua veracidade. Ou seja, a observação estava, ao mesmo tempo, na origem
e na verificação do conhecimento verdadeiro.
Suas influências vão desde GOTTLOB FREGE, passando pelas grandes obras
de BERTRAND RUSSEL45
, LUDWING WITTGEINSTEIN46
e EDMUND HUSSERL47
,
autores cujos textos dão origem à fenomenologia e à filosofia analítica, duas correntes
predominantes no século XX.
Desse modo, estendendo os métodos então dominantes nas ciências naturais às
ciências sociais, a lógica e a matemática eram utilizadas como instrumentais a priori que
estabeleciam as regras da linguagem científica, empiricamente lógica, na medida em que
certo número de observações era generalizado e formalizado sob a estrutura de uma lei
45
“Principia Mathematica.” 46
“Tractatus logico-philosophicus.” 47
“Investigações lógicas.”
32
formal que, dedutivamente, deveria ser aplicada a todos os fenômenos. Assim, repetindo-se
os mesmos procedimentos, deveríamos chegar aos mesmos resultados.
Com isso, qualquer falha ou desvio na experiência era atribuído ao homem, ao
observador, já que os gerais, nesta concepção, estariam no sujeito, não na natureza.
Com o progresso e desenvolvimento das investigações científicas, seguiam
sendo formuladas teorias cada vez mais amplas e abrangentes, dotadas de maior poder
explicativo para o universo: ainda a síntese do “mundo-máquina”.
Os postulados desse movimento ficam claro no manifesto intitulado “O ponto
de vista científico do Círculo de Viena”, produzido por RUDOLF CARNAP, HANS
HAHN e OTTO NEURATH, reconhecidamente influenciados pela primeira grande obra
de LUDWING WITTGENSTEIN (“Tratactus lógico-philosophicus”).
Em resumo, o campo filosófico foi reduzido à epistemologia (ciência do
conhecimento), e esta à semiótica (de origem europeia, que dava ênfase à linguística, aos
atos predicativos de fala), razão pela qual a linguagem era o instrumento/método por
excelência do saber científico.
Os dois atributos essenciais do manifesto, portanto, refletiam que: (i) todo o
conhecimento fica circunscrito ao domínio do conhecimento empírico; e (ii) a
reivindicação do método de análise lógica da linguagem.
A partir de então, a linguagem passou a ser objeto de estudo e constitutiva da
própria realidade, o que se evidencia na clássica frase de WITTGENSTEIN, de que “os
limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo”, presente em quase todas
as obras que adotam a linguística como método de estudo.
33
Com efeito, a ausência de linguagem passou a negar não só o acesso ao real
como, muitas vezes, ao o próprio real (postura niilista). Por isso, exigia-se a rígida
observância dos princípios da identidade, não-contradição, terceiro excluído, objeto único
e homogêneo, ou seja, buscava-se o ideal cartesiano da certeza absoluta do conhecimento,
transpondo-se as exigências formais do pensamento para os fenômenos da realidade.
Temos, portanto, o positivismo, como esse movimento acabou ficando
genericamente conhecido, passando-se pelos três momentos da metafísica ocidental, cujas
referências filosóficas são bem expostas por DARDO SCAVINO48
, sendo eles:
(1º) o princípio unificador das coisas é a união de seus predicados, essa é a causa de
ser das coisas (racionalismo de PLATÃO);
(2º) o princípio unificador que permite constituir as coisas são as sensações, de
modo que se abandona a filosofia do “ser”, adotando-se a filosofia da
“consciência”. Ou seja, o princípio unificador não está nas coisas, mas no sujeito, o
que caracteriza o empirismo de LOCKE e BACON; e
(3º) o princípio unificador não é superior (Divino) e nem antropológico (do
Homem), senão linguístico (da palavra), conciliando racionalismo e empirismo.
Esse princípio unificador linguístico é característico do positivismo e, como
dito, predominou no século XX. A partir daí, se difundiu uma tradição hermenêutica da
filosofia onde há a primazia da interpretação sobre os fatos, sendo muitas vezes
identificada com certo niilismo (não há nada fora da linguagem, fora das interpretações) e,
com isso, a interpretação é infinita, livre e inesgotável, não possuindo limites.
48
“A Filosofia Atual: Pensar sem certezas”. São Paulo: Noeses, 2014, tradução de Lucas Galvão de Britto.
34
O poder constructivo dessa capacidade da linguagem, portanto, passou a
justificar e fundamentar, com impressionante aceitação, a formação, alteração e extinção
de realidades então inquestionáveis, até mesmo de objetos físicos.
2.2. Positivismo jurídico e a relação ser/dever-se
O paradigma mundo-máquina e seu sistema matemático de descrição do
universo foram capazes de explicar o movimento dos planetas, luas e cometas nos mínimos
detalhes, assim como o fluxo das marés e diversos outros fenômenos relacionados com a
gravidade, por essa razão transformou a física clássica no modelo para todas as ciências. A
física, assim, tornou-se naturalmente a base de todas as ciências.
Tem-se, então, que o direito positivo de matriz romano-germânica foi
influenciado e desenvolvido sobre essas bases metodológicas, adotando a codificação, a
unidade, coerência e completude a priori como forma de conferir segurança jurídica.
Analisando exatamente esse contexto evolutivo, citamos as seguintes
observações de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR49
:
“Na verdade, na tradição liberal mais antiga da doutrina romanística da
segurança, o conceito de segurança, atado ao princípio da legalidade,
pressupunha e exigia que as normas legais fossem gerais, isto é, gerais
pelo conteúdo (ações típicas abstratas) e gerais pelo destinatário
(destinadas a todos, donde o preceito da igualdade perante a lei). A
generalidade pelo conteúdo exigia segurança em termos de certeza; a
generalidade pelo destinatário exigia segurança em termos de igualdade,
igualdade de todos perante a lei. Assim, por força dessas duas variáveis
– certeza e igualdade – havia na exigência de segurança certa
ambiguidade. De um lado, a presunção de que o ordenamento jurídico
constitui um sistema de conteúdos certos, mediante diretrizes
homogêneas capazes de garantir uniformidade a uma pluralidade de
conteúdos sujeitos a interpretação: donde, para controle da 49
“O direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014, p. 116.
35
segurança/certeza, a subsunção como método e a hipótese do legislador
racional, como pressuposto. De outro, que esse sistema constitua uma
hierarquia de competências dotadas de alguma margem de
discricionariedade, que assegura uma flexibilidade de interpretação dos
conteúdos como garantia da igualdade de tratamento: donde, para o
controle da segurança/igualdade, a exigência do devido processo legal,
o habeas corpus, mas também o princípio da independência do juiz.”
Nessa ordem de ideias, os problemas do direito passaram a ser tratados como
os físicos, ao ponto de PONTES DE MIRANDA50
dizer que:
“A regra jurídica foi a criação mais eficiente do homem para submeter o
mundo social e, pois, os homens, às mesmas ordenação e coordenação, a
que ele, como parte do mundo físico, se submete. Mais eficiente,
exatamente porque foi a técnica que mais de perto copiou a mecânica
das leis físicas.”
Também a tradição semiótica pautada na linguística de FERDNAND
SAUSSURE, de origem aristotélica, é igualmente mais explorada nesse tipo de
ordenamento, prevalecendo a análise dos atos predicativos e o dualismo ser e dever-ser.
Segundo ANDRÉ-JEAN ARNAUD51
, as notas gerais que caracterizam o
positivismo jurídico são, em resumo, as seguintes:
“(...) a. não há direito natural e só o direito positivo existe (A. Ross); b. o
direito é um conjunto de regras, que são mandamentos, um produto da
vontade humana ou da autoridade (auctoritas non veritas facit jus”); c.
esses mandamentos emanam do Soberano ou do Estado (Austin); d. eles
são associados a sanções, que garantem a aplicação do direito pela
força; e. eles formam um sistema fechado, completo e coerente; f. a
atividade dos juízes é uma atividade lógica porque toda decisão pode ser
deduzida das regras previamente emitidas pelo Soberano, sem referência
aos fins sociais ou às regras morais.”
Esses ideais são trabalhados na obra de HANS KELSEN52
, ao criar um objeto
único (é direito aquilo que a pessoa competente diz que é) e homogêneo (tudo que é direito
pressupõe sanção). Nessa visão, direito é o conjunto de normas jurídicas válidas,
50
“Tratado de Direito Privado”, Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p. 09. 51
“Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do Direito”. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, tradução de
Patrice Charles F. X. Willaume, p. 607. 52
“Teoria Pura do Direito”, 8ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2014, tradução de João Baptista
Machado.
36
organizadas hierarquicamente a partir do dogma da norma hipotética fundamental, que dá
fechamento e unicidade ao sistema jurídico.
O dualismo metodológico de HANS KELSEN, no seu isolamento ser e dever-
ser53
, aproxima-se do dualismo cartesiano que isola corpo e mente (não há nada no
conceito de corpo que pertença à mente) e acaba criando um vácuo entre a perspectiva
descritiva e a prescritiva, em sua função de regular as condutas humanas intersubjetivas,
como se não houvesse inter-relação entre os planos.
Mas devemos fazer um esclarecimento, de aspiração constructivista, na medida
em que esse isolamento ser/dever-se ocorre apenas em termos de estrutura, daí porque se
fala em homogeneidade sintática das normas, não se sustentando no processo gerador de
sentido, em termos semântico e pragmático, onde se encontra o conteúdo das normas.
Conforme LOURIVAL VILANOVA54
:
“(...) os modos normativos diferem dos modos digamos fácticos, para
isolarmos um dos ângulos abordados por Von Wright. No âmbito da
teoria pura do direito: do ser não provém o dever-ser, do meramente
factual não provém o normativo, porque as modalidades são irredutíveis,
muito embora na composição do fato objetivo da cultura, que é o direito,
haja inter-relacionalidade entre os modos.”
Criticando a fórmula idealizada por KELSEN (“Se A é, então B deve ser”),
LOURIVAL VILANOVA observa que o dever-ser tem várias funções, nem sempre muito
bem distinguidas na obra de KELSEN.
Segundo VILANOVA, em KELSEN, o dever-ser tem vários usos, sendo um
deles o relacional R, ou seja, o de relacionar e disciplinar as condutas intersubjetivas, cujos
valores são: obrigatório (O), proibido (V) e permitido (P). E quando KELSEN contrapõe o
dever-se à causalidade (imputação jurídica), está tomando o dever-ser como forma de
53
De um lado estariam as leis da natureza (síntese do ser), submetidas à causalidade física, e de outro as leis
jurídicas (síntese do dever-ser), articuladas pela imputabilidade deôntica.
37
síntese em sua função epistemológica: uma forma gnosiológica de relacionar os dados da
experiência. Assim, esse dever-ser coloca-se no nível da ciência do Direito em que se
descreve o dever-ser no nível da norma jurídica, mas ocupam dois planos inconfundíveis,
de modo que a fórmula “Se A é, então B deve ser” descreve o dever-ser da norma jurídica
como forma de relacionar os dados da experiência.
Vejamos o seguinte trecho de LOURIVAL VILANOVA55
:
“Se simbolizarmos a proposição-hipótese por p e a proposição-tese por
q, e a relação implicacional por “”, a fórmula do primeiro membro da
proposição jurídica seria “D (p q)”, onde D é o functor (o
sincategorema que indica a operação deôntica) incidente sobre a
relação interproposicional. Essa colocação do functor, abrangente da
relação formal, evita que se construa formalmente a proposição-hipótese
na fórmula: “p D (q)”, isto é, como sendo uma proposição-
antecedente descritiva, implicando a proposição-conseqüente de caráter
prescritivo.”
Enfim, se nos limitarmos ao nível do direito positivo, a fórmula “Se A é, então
B deve ser” deve ser reformulada, pois o A não é, ou seja, A também é um dever-ser que
implica B, permeando toda a fórmula lógica, de modo que, em termos formais: D (p→q)56
.
O que estava em destaque na obra de LOURIVAL VILANOVA, importa
observar, era a análise da lógica jurídica, ou seja, a formalização da linguagem deôntica,
que não poderia ser reduzida à lógica do ser, da linguagem alética.
Com isso, em que pese a separação das duas lógicas, ao mesmo tempo fica
claro que, no âmbito semântico e pragmático (responsáveis pela composição do direito), há
inter-relação, ou intertextualidade entre os dois planos (ser e dever-ser).
54
“As estruturas Lógicas e o Sistema de Direito Positivo”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, p. 56. 55
Obra citada, p. 59. 56
Conforme Paulo de Barros Carvalho: “quando usado, e não simplesmente mencionado, o dever-ser denota
uma região, um domínio ontológico que se contrapõe ao território do ser, em que as proposições implicante
e implicada são postas por um ato de autoridade: D (p→q).” (“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª
edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 124).
38
É o que afirma PAULO DE BARROS CARVALHO, quando sustenta que “os
neopositivistas lógicos, na procura da depuração discursiva, outorgaram uma importância
muito grande à sintaxe e à semântica, em detrimento do ângulo pragmático (...),
construíram um paradigma linguístico empobrecido no plano pragmático (...).”57
Relativizando os preceitos que nortearam o empirismo lógico do movimento
positivista58
, podemos dizer que as alterações nas relações sociais, o movimento da
economia e o fluxo financeiro, por exemplo, alteram, influenciam, determinam,
conformam e atualizam as prescrições normativas tributárias: possuem normatividade.
No contexto deste trabalho, o que estamos afirmando é que o quadro fático
retratado na fundamentação dos julgados, necessariamente é elemento que integra e
atualiza os consequentes normativos abstratos e o julgamento das teses jurídicas.
E aqui já antecipamos uma primeira crítica ao modelo normativo de
precedentes, como vem sendo utilizado, sob uma racionalidade dedutiva, onde Súmulas e
dispositivos do julgado são tratados como leis universais, com premissas maiores (teses)
que causam as premissas menores (casos), desconectados dos fatos e dos fundamentos
jurídicos que determinam e são determinadas pelas particularidades fáticas.
Ou seja, do ponto de vista da unidade e completude do sistema jurídico (mas
veja, atendendo ao enfoque estrutural (sintático) e à perspectiva interna (de quem é
57
Obra citada, p. 28. Ressalta-se, ainda, que a riqueza do plano pragmático é melhor explorada na chamada
“Filosofia da Linguagem Ordinária”, objeto da obra “Investigações filosóficas” de Wittgenstein e seus “jogos
de linguagem”, pois não opera com modelos artificiais. 58
Segundo pontua Bustamante: “Foi durante esse breve período positivista que se acentuaram as diferenças
entre o common law e o civil law. A dicotomia rigorosa entre um Direito inteiramente ‘codificado’ e um
Direito inteiramente ‘jurisprudencial’ é um dos resíduos da forma de pensar positivista, que – como veremos
com mais detalhe no próximo capítulo – considerava o Direito apenas como um objeto estático a ser
analisado e previa para a teoria jurídica apenas uma dimensão analítica e descritiva, cujo método
fundamental era um certo conceptualismo e um apelo a classificações e dicotomias tais como Direito
positivo/Direito natural, norma válida/inválida, ser/dever-ser, norma/proposição jurídica, Direito
subjetivo/obrigação jurídica, ciência do Direito expositória/censorial, etc.” BUSTAMANTE, Thomas da
Rosa de. “Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo:
Noeses, 2012, p. 95.
39
obrigado a interpretar e decidir), como veremos mais adiante), esse modelo positivista não
admite vaguezas e ambiguidades, que no direito positivo correspondem às lacunas e
antinomias, pressupondo um sistema jurídico amplo e isolado.
Por fim, quando falamos do positivismo em geral, há que se destacar os
diferentes momentos e escolas aos quais é frequentemente envolvido e aproximado. Como
observa ANDRÉ-JEAN ARNAUD59
, temos que:
“Segundo Bobbio, não existe, entre os três aspectos que ele distinguiu,
uma relação necessária (seja lógica, seja causal). O positivismo como
abordagem do direito não acarreta, necessariamente, e não implica a
teoria positivista do direito, nem uma ideologia positivista da justiça
(Giusnaturalismo e positivismo giuridico, pág. 104). Ele formula, então,
dois princípios metodológicos: identificar um jurista como positivista em
razão de sua abordagem do direito não significa que ele seja igualmente
positivista em sua teoria e sem sua ideologia; a aprovação ou a
condenação de um dos aspectos não implica aprovação ou condenação
de outros. Essa observação parece ser completada de duas maneiras:
a. não existe relação necessária entre as diversas proposições da teoria
do direito chamadas ‘positivistas’, nem entre as diferentes ideologias
positivistas;
b. mas não se pode excluir a existência de relações entre certas
proposições das teorias do direito chamadas ‘positivistas’ e certas
ideologias positivistas, nem entre alguns princípios metodológicos do
positivismo e algumas proposições das teorias do direito positivistas.”
Portanto, devemos ressaltar que não há uma vinculação direta de uma ou mais
posturas positivistas aos variados campos de cognição. No Direito, em especial, diferentes
propostas teóricas transitam sobre perspectivas metodológicas e/ou filosóficas que
eventualmente confluam para determinadas posturas positivistas em particular, em que
pese divirjam, em outros pontos, do chamado positivismo jurídico.
O próprio constructivismo lógico-semântico, não raramente, costuma ser
taxado de positivista (no sentido crítico), mas esquece-se que seus alicerces repousam e
convergem na perspectiva hermenêutica e interpretativa do fenômeno comunicacional,
59
“Dicionário enciclopédico de teoria e sociologia do Direito”. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, tradução de
Patrice Charles F. X. Willaume, p. 609.
40
encampando a teoria dos valores e assumindo o dialogismo entre ciência do Direito e
direito positivo, num intercâmbio linguístico e filosófico de mútuas influências.
2.3. Posturas aglutinante e isolante no Direito tributário brasileiro
Dentro dessa perspectiva histórica, é possível identificar, na doutrina tributária
nacional, a corrente de pensamento que de algum modo percorre a visão e o ideal
positivista, claramente demarcado pelo movimento isolante que encontra em ALFREDO
AUGUSTO BECKER seu maior expoente.
Foi através de sua clássica obra “Teoria Geral do Direito Tributário” que
BECKER delimitou as fronteiras do Direito tributário, excluindo de seu campo
epistemológico as influências sociais e as consequências financeiras da tributação.
Nesse contexto, a própria grade curricular da matéria sofreu mudanças, sendo a
cadeira de direito financeiro praticamente eliminada do ensino jurídico-tributário. Assim,
aspectos econômicos, contábeis e sociais foram retirados da análise da composição fiscal.
Trata-se, portanto, de clara marca do dualismo do pensamento cartesiano, no
qual se separa o mundo em dois reinos distintos e incomunicáveis (visão isolante).
Não se trata, de modo algum, de uma crítica, na medida em que aquele
momento político e institucional do Brasil, na transição para a democracia e ainda sem a
plena garantia de acesso a uma jurisdição independente, carecia de segurança jurídica e,
por isso, precisava de instrumentos que permitissem o controle do avanço exacional
arbitrário, destituído e descolado de uma rígida teoria que o acompanhasse.
41
A tributação não podia continuar sendo movida, de forma indiscriminada e sem
uma pauta teórica muito clara, por interesses arrecadatórios descontrolados e justificados
por posições ideológicas de determinados governos.
Seguiu-se então nesse movimento isolante, em grande síntese espelhada nas
doutrinas tradicionais60
dispersadas nas grandes obras e textos de GERALDO ATALIBA,
JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, PAULO DE BARROS CARVALHO, ROQUE
CARRAZA, dentre outros, com seus traços marcantemente caracterizados pela valorização
da segurança jurídica a partir dos conceitos constitucionais abstratos, adotando uma
unidade formal verticalizada do sistema, amparada em seus laços sintáticos e analíticos.
Trata-se, insistimos na ressalva, de eixos dogmáticos preponderantes nas
principais obras, sem que isso implique colocar em sintonia ou em oposição, aspectos
doutrinários que em muitos pontos encontram-se em desencaixe ou franco embate.
Em contraposição às doutrinas isolantes, encontramos a postura aglutinante
que, por sua vez, visualiza o Direito tributário dentro de um fenômeno maior, encontrando
sua raiz em PONTES DE MIRANDA e alcançando expoentes como ALIOMAR
BALLEIRO, MISABEL DERZI, IVES GANDRA DA SILVA MARTINS e SACHA
CALMON NAVARRO COELHO.
O paradoxo entre essas duas concepções é muito bem descrito por TATHIANE
DOS SANTOS PISCITELLI61
, sendo que, atualmente, percebemos uma valorização
crescente da postura aglutinante, talvez pela consolidação de nossa democracia e também
pela recondução imposta pela própria jurisprudência, onde os julgamentos das teses
tributárias cada vez mais buscam fundamento nas repercussões sociais e econômicas.
60
Fica aqui o registro de que muitos destes autores já adotam discursos inclusivos que admitem a conciliação
de novos paradigmas, encampando, de alguma forma, uma análise aglutinante do fenômeno jurídico. 61
“Argumentando pelas consequências no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2011.
42
Não pretendemos, e nem nos caberia, traçar ou classificar perfis filosóficos de
cada doutrina (jusnaturalista, positivista, neopositivista, realista, nominalista, etc.), até
porque cada uma cumpriu e cumpre seu papel na construção de nosso Direito tributário.
Observação interessante é que a postura isolante adota um enfoque estrutural e
uma perspectiva interna, ou seja, o sistema do direito positivo é único e completo,
expandindo essa artificialidade para as relações sociais. Já a postura aglutinante adota um
enfoque funcional e uma perspectiva externa, introduzindo para o interior do sistema as
incertezas (lacunas e antinomias) presentes na complexidade social.
Tem-se, então, o problema da unidade e completude do sistema, que não passa
de uma dicotomia de enfoque (estrutural ou funcional) e perspectiva (interna e externa).
Não obstante, essa análise cumpre papel importante no percurso deste trabalho,
impedindo que misturemos irrefletida e desmedidamente diferentes premissas e modelos
teóricos, sem as devidas adaptações, permitindo o controle de nossas conclusões.
Seja como for, fato é que as discussões tributárias cada vez mais são
direcionadas para os efeitos da tributação, suas consequências nas políticas públicas e na
segurança jurídica, sendo essa, aliás, a premissa que permite e autoriza falar em modulação
de efeitos das decisões judiciais no controle de constitucionalidade.
É por isso que TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR sustenta que “hoje, a
sensação é de uma espécie de crise desse paradigma, o paradigma do direito legislado e
‘codificado’62
, o que pode ser observado mediante algumas percepções do trabalho
cotidiano do jurista. (...). Em consequência, passamos da centralidade da lei para a
centralidade da jurisdição, jurisdição entendida em sentido amplo: os tribunais judiciais,
62
“Em curso comum sobre teoria da argumentação jurídica (FERRAZ JR., Tercio Sampaio; BARBOSA,
Samuel. Disponível em: http://manoleeducacao.com.br/), Samuel Barbosa cunha o termo ‘cultura do código’
para designar o estilo do pensar jurídico herdado do século XIX.”
43
tribunais de arbitragem, agências administrativas com poder judicante (com tribunais e
conselhos administrativos), órgãos da administração direta (que dizem o direito por meio
de sentenças, acórdãos, decisões interlocutórias, resoluções, pareceres normativos). Se,
ao tempo de Bismarck, ainda era possível perguntar como eram feitas as leis (...), hoje
talvez interesse menos saber como elas são feitas, mas, como elas são aplicadas.”63
Lidamos, em número crescente, com os efeitos práticos das decisões judiciais
nos casos concretos, ao mesmo tempo em que buscamos conferir racionalização à
distribuição da justiça, consolidando o acesso ao judiciário sem torna-lo irracional,
movimentado de forma cega. Esse é, pensamos, o nosso atual momento, o que fica claro
quando analisamos as discussões tributárias no âmbito do STF, que cada vez mais passam
a abordar os impactos das teses jurídicas nas contas públicas, a destinação financeira dos
tributos, a repercussão social e econômica, e assim por diante.
Capítulo 2. A busca de finalidade
A concepção dualista que concebe um mundo inteiramente determinado por
leis mecânicas, nega qualquer inteligência operando em busca de uma finalidade,
limitando, pois, o papel do homem em sua existência, como parte inserida nos
acontecimentos naturais que os circundam, o que se contrapõe à ideia de integração e
influência recíprocas.
É certo, todavia, que os pensamentos produzem alterações materiais, ao mesmo
tempo em que são por elas alterados (nós estamos no mundo, não o mundo em nós), num
63
“O Direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014, Prefácio, XIV, XV e XVII.
44
constante intercâmbio que se direciona para uma adaptação evolutiva. Não estamos, pois,
envolvidos num universo cego, que cresce e se expande sem qualquer finalidade, fato esse
que nos aponta para diversas posturas pragmatistas64
, como passaremos a analisar.
1. Do pragmatismo filosófico ao pragmatismo jurídico
De modo mais natural, ao menos para os olhos de um modelo de direito com
ascensão românico-germânica, o pragmatismo jurídico parece assimilar melhor as
mudanças impostas pela própria física na visão de mundo e das demais ciências.
Com efeito, a física clássica que pautou todas as ciências entre os séculos XVI
e XVIII, projetando consequências até o século atual, foi radicalmente incrementada com
os estudos dos fenômenos elétricos, o conceito de campo de força (o qual tem sua própria
realidade e pode ser estudado sem qualquer referência a corpos materiais), a exploração do
mundo subatômico e o surgimento da física quântica65
.
A partir de então, fenômenos absolutamente conhecidos cederam espaço para a
indeterminação, para o meramente provável. Foi o que demonstrou ALBERT EINSTEIN
no estudo dos campos eletromagnéticos, os quais não podem ser explicados
64
“A revolução empreendida pelo Pragmatismo encontra-se, certamente, ao se deslocar da origem à
finalidade, na busca da clareza. A clareza das idéias ou dos conceitos, para Peirce e para quem vier adotar
o método pragmatista, não consiste na evidência ou no imediato com que ambos deverão se apresentar à
mente, mas no aprimoramento constante da representação dos efeitos concebíveis deles decorrentes. (...)
Fundamentalmente aconselha a que tenhamos os olhos voltados para o futuro, quando tentarmos esclarecer
nossos conceitos. Para tanto, devemos antecipar imaginativamente as consequências práticas possíveis de
serem derivadas daquela representação. O elenco dessas consequências constituirá a própria concepção do
objeto e, consequentemente, a definição menos equívoca possível do conceito.” SILVEIRA, Lauro Frederico
Barbosa da. “Curso de Semiótica Geral.” São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 183 e 186. 65
Por meio da física quântica, “verificou-se a existência dos átomos; a seguir, foram descobertos seus
componentes (os núcleos e os elétrons) e, por fim, os componentes do núcleo (prótons e nêutrons) e inúmeras
outras partículas subatômicas.” CAPRA, Fritjof. “O Tao da Física”, 1ª reimpressão da 2ª edição. São Paulo:
Cultrix, 2013, tradução José Fernandes Dias, p. 65.
45
mecanicamente, de modo que “as leis da física quântica não governam o comportamento
de objetos particulares no tempo, mas as variações da probabilidade no tempo.”66
Desse modo, com essa transformação a física saiu de sua fase mecanicista e
constitui-se como ciência da previsão provável, sendo inevitável admitir as vaguezas e
ambiguidades, já que as leis naturais estão em constante evolução, sujeitas ao acaso, na
medida em que os fenômenos ora podem ser matéria (massa), ora energia (onda), sem que
isso infirme a verdade do objeto de estudo.
Assim, os cientistas começaram a trabalhar com a noção de espaço e tempo
como elementos meramente da linguagem utilizada por um observador. Estamos, pois,
diante de uma postura realista, na qual as leis gerais encontram-se na natureza.
Não é possível, desta feita, prever um fato atômico com certeza, tendo em vista
que, conforme FRITJOF CAPRA, “no nível subatômico, não se pode dizer que a matéria
exista com certeza em lugares definidos; diz-se, antes, que ela apresenta ‘tendências a
existir’, e que os eventos atômicos não ocorrem com certeza em instantes definidos e numa
direção definida, mas, sim, que apresentam ‘tendências a ocorrer’. No formalismo da
teoria quântica, essas tendências são expressas como probabilidades. (...).”67
Conforme ABBAGNANO68
:
“Mecanicismo. (...). Fora da física, portanto, o mecanicismo foi uma
aspiração genérica, uma tese filosófica ou, na melhor das hipóteses, uma
exigência genérica de método, mais que instrumento efetivo de
explicação. (...)
Afora isso, as teses do mecanicismo nos vários campos da ciência são
reducionistas: em biologia, consiste em reduzir as leis biológicas a leis
físico-químicas; em psicologia, consiste em reduzir as leis psicológicas a
leis biológicas; em sociologia, consiste em reduzir as leis sociológicas a
66
“The Evolution of Physic”, in ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 655, Mecanicismo. 67
CAPRA, Fritjof. “O Tao da Física”, 1ª reimpressão da 2ª edição. São Paulo: Cultrix, 2013, tradução José
Fernandes Dias, p. 82. 68
“Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 656.
46
leis biológicas e psicológicas. (...) Contudo, a ciência do séc. XX,
sobretudo a partir do terceiro decênio, abandonou a postura
reducionista e, portanto, o mecanicismo, sem voltar às posições às quais
o mecanicismo se opunha.”
De acordo com EDGAR MORIN69
e seu conceito de zona de penumbra do
real, a microfísica encontrou e provou a existência de zonas de realidade nas quais, ainda
que intelectivo, “o material é ao mesmo tempo imaterial, o contínuo, descontínuo, o
separado, não separável, o distinto, indistinto; a coisa e a causa confundem-se e, por
extensão, confundem o nosso sentimento de realidade.”
Em “A Origem das Espécies”, CHARLES DARWIN deu forma a todo o
pensamento biológico subsequente, forçando, através da teoria da evolução, o abandono da
concepção cartesiana de universo, na medida em que comprovou a adaptação natural dos
seres vivos à natureza, ou seja, não há dois reinos distintos e independentes.
O mundo, então, não poderia ser concebido como uma máquina inteiramente
construída pelas mãos de Deus e que caminha de forma mecânica, sem qualquer finalidade,
pois nós o influenciamos e somos por ele influenciados.
A linguagem comum, nesse cenário, revelou-se inadequada para descrever a
realidade atômica e subatômica, pois, segundo HEISENBERG, “não nos deparamos de
início com qualquer guia simples que nos permita correlacionar os símbolos matemáticos
com os conceitos da linguagem usual; e a única coisa que sabemos desde o início é o fato
de que nossos conceitos comuns não podem ser aplicados à estrutura dos átomos.”70
A teoria quântica e da relatividade (os dois pilares da física moderna), portanto,
tornaram claro o fato de que essa realidade atômica e subatônica transcende a lógica
clássica e de que não podemos falar a respeito dela usando a linguagem cotidiana.
69
“O método 3: o conhecimento do conhecimento”, 2ª edição. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 238. 70
In CAPRA, Fritjof. “O Tao da Física”, 1ª reimpressão da 2ª edição. São Paulo: Cultrix, 2013, tradução José
Fernandes Dias, p. 59/60.
47
Diante disso, NIELS BOHR71
elabora a “teoria da complementariedade”, que
consiste em dissociar, no nível da representação, os dois aspectos fundamentais da
descrição clássica dos fenômenos (sua localização espaço-tempo e o uso da causalidade).
Ao mesmo tempo, WILLIAN JAMES, um dos precursores do pragmatismo
filosófico, já afirmava que seria um erro considerar e julgar as teorias apenas por sua
própria coerência interna, e não por seus resultados ou fins. Não obstante, paradoxalmente
costuma ser lembrado por filósofos da linguagem pela sua célebre frase “a palavra ‘cão’
não morde”, como exemplo didático de que haveria uma autonomia linguística que, por
isso, implicasse na dicotomia entre o mundo das coisas e o mundo da mente.
Na mesma linha, CHARLES SANDERS PEIRCE dizia que: “Supomos que
aquilo que não examinamos é similar àquilo que examinamos, e que aquelas leis são
absolutas e que todo o universo é uma máquina ilimitada operando através das cegas leis
da mecânica. Esta é uma filosofia que não deixa espaço para um Deus! De fato, não! Ela
faz, mesmo da consciência humana, cuja existência não pode ser negada, uma perfeita
inutilidade e um ‘flâneur’ sem função no mundo, com nenhuma influência possível sobre
qualquer coisa – nem mesmo sobre si mesma.”72
O que se vê de tudo isso, portanto, são problemas filosóficos reais, por isso a
razão talvez estivesse com KARL POPPER, que se opunha à WITTGENSTEIN e sua
insistente limitação dos problemas filosóficos a meras perplexidades linguísticas. Retoma-
se, com isso, à velha questão da causação, tanto discutida na filosofia do Século XX73
.
71
“Física atômica e conhecimento humano: ensaios 1932-1957”. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995, tradução
Vera Ribeiro. 72
CP 1.162, in ARAÚJO, Clarice von Oertzen de. “Incidência Jurídica, teoria e crítica”. São Paulo: Noeses,
2011. 73
Popper questionava, por exemplo, como podemos saber que uma pessoa está com raiva. Será exatamente
como saber que uma chaleira está fervendo – é o que deduzimos de seus sintomas físicos? “Pode a raiva
também – um fenômeno mental, um sentimento – ser deduzida apenas por suas manifestações exteriores?”
(EDMONDS, David e EIDINOW, John. “O atiçador de Wittgenstein: a história de uma discussão de dez
minutos entre dois grandes filósofos”. Rio de Janeiro: Difel, 2003, tradução Pedro Jorgensen Jr, p. 81).
48
E foi o próprio WITTGENSTEIN que, mais tarde, evoluiu sua análise sobre a
dimensão sintática da linguagem, dando então ênfase à dimensão semântica e pragmática:
“Desde seu retorno a Cambridge, em 1929, Wittgenstein abandonou a
maior parte das ideais contidas no Tractatus e desenvolveu uma linha
radicalmente nova. Ao passo que muito poucas pessoas na história da
filosofia podem se vangloriar de haver criado uma escola de
pensamento, Wittgenstein pode reivindicar a fundação de duas. Russel
assim rotulou os dois enfoques: Wittgenstein I e Wittgenstein II.
O Wittgenstein do Tractatus trabalhou dentro do mesmo universo
intelectual – o atomismo lógico – em que Russel havia realizado seu
primeiro e mais original trabalho, um universo em que o mundo é
construído a partir de objetos simples, imutáveis (e indefiníveis).
(...)
Em Wittgenstein II, a metáfora da linguagem como imagem é substituída
pela metáfora da linguagem como ferramenta. Se queremos saber o
sentido de um termo, não devemos perguntar o que ele representa:
devemos, ao contrário, examinar como ele é usado na prática.”74
Surge, daí, a teoria dos jogos de linguagem, mais preocupada com a linguagem
ordinária e explorada em “Investigações Filosóficas”, onde a linguagem opera de forma
livre, não havendo regras que governam sua aplicação nas multiplicidades de funções75
.
Em paralelo:
“Causalidade. (...) finalmente, a mecânica quântica tende a substituir a
noção de Causação, que parecia indispensável aos cientistas e
metodologistas do século passado, pela probabilidade. (...) A conclusão
é: todos os nossos raciocínios ‘a priori’ não poderão demonstrar
nenhum direito a essa preferência; é inútil tentar predizer qualquer
acontecimento, ou inferir alguma causa ou efeito, sem o auxílio da
observação e da experiência. (...) A relação causal deve tornar previsível
o efeito, mas nenhuma dedução ‘a priori’ pode tornar previsível um
74
EDMONDS, David e EIDINOW, John. “O atiçador de Wittgenstein: a história de uma discussão de dez
minutos entre dois grandes filósofos”. Rio de Janeiro: Difel, 2003, tradução Pedro Jorgensen Jr, p. 240. 75
Conforme Muller: “No Tractatus existe somente uma linguagem. Ela consiste de enunciados elementares
(ou funções de verdade de enunciados elementares). Cada enunciado elementar individual retrata um estado
de coisas [Sachverhalt]. Com isso se pressupõe que a imagem e o estado de coisas teriam forma lógica. Um
enunciado tem somente uma função, a saber, a de retratar um fato.
Um enunciado tem, no entanto, inúmeras funções, conforme o enfoque das Investigações Filosóficas. A
tarefa consiste agora em compreender o enunciado. (...) Um enunciado é compreendido quando se descobre,
em que situação ele é efetivamente empregado (...). A tese de que os fatos poderiam ter uma forma lógica é
rejeitada por Wittgenstein nessa fase do seu pensamento. No Tractatus a palavra é considerada como nome;
nas Investigações filosóficas ela é vista como momento de um modo concreto de uso.” MULLER, Friedrich.
“O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2013, p. 190.
49
efeito qualquer; por isso, a dedução é incapaz de fundamentar a relação
causal.”76
A observação e a experiência dos casos particulares é que, com a repetição de
certas similaridades, dão origem ao hábito de crer que tais uniformidades se verificarão
também no futuro. Portanto, as leis gerais são conformadas a partir dos casos concretos,
não mais se falando em causação eficiente (inferência dedutiva), mas sim em inferências
prováveis (indutivas ou abdutivas).
Em oposição ao mecanicismo e a causalidade absoluta, o pragmatismo concebe
a existência de uma ordem finalista no mundo, deixando espaço para uma consciência na
descrição e influência dos fenômenos, que não são absolutamente independentes.
O pragmatismo também exclui os sistemas metafísicos, todavia, diferentemente
do positivismo, entende que o conceito é a soma dos efeitos práticos, de modo que
nenhuma distinção semântica pode ser significativa se não produzir distinção pragmática,
na medida em que as diferenças das palavras não alteram os comportamentos humanos.
Por essa razão, não há dissociação entre ser e dever-ser, pois o conteúdo do
pensamento é determinado pela realidade, que é externa ao pensamento. Em outras
palavras, os resultados práticos é que conformam os conceitos.
Em oportuna passagem, LENIO LUIZ STRECK sustenta que:
“Com efeito, não existem conceitos sem coisas. Nem no direito, nem fora
dele. Tenho propalado esta frase para demonstrar que não existem
respostas antes das perguntas e que qualquer conceito que façamos
sobre algo não tem o condão de abarcar, de antemão, todas as hipóteses
de aplicação.
Assim, a lei é um texto, ao qual atribuiremos um sentido, que somente se
dará na sua concretude. Existem milhares de modos de cometer um furto.
Mas a lei fala apenas em ‘subtrair coisa alheia móvel’. A lei somente se
concretizará no momento em que alguém, efetivamente, furtar. E por
mais que, por exemplo, queiramos conceitualizar o que seja ‘pequeno
76
ABBAGNANO, Nicola. “Dicionário de Filosofia”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 127/128.
50
valor’ ou ‘insignificância’ ou ‘rompimento de obstáculo’, somente diante
de cada caso é que construiremos o sentido da ‘coisa concreta’.”77
Dessa forma, ao procurar os conceitos tributários em busca de solução para os
litígios ou teses tributárias, devemos abandonar as definições meramente abstratas e
investigar como eles são usados na conformação de casos concretos, até porque, como
vimos em WITTGENSTEIN II, se queremos saber o sentido de um termo, não devemos
perguntar o que ele representa, devemos examinar como ele é usado na experiência.
Temos, com isso, as principais notas do chamado pragmatismo clássico, o qual
se mostra prospectivo, vale dizer, se projeta para o futuro, para as expectativas normativas
na terceiridade (a chamada realidade da terceiridade78
), de certa forma opondo-se ao
chamado pragmatismo moderno que encontramos hoje, degenerado na secundidade, ou
seja, no qual se estabiliza as expectativas normativas apenas presentes.
É isso, de certa forma, que identificamos no nosso sistema processual atual,
onde os julgamentos racionalizadores e a coisa julgada, considerando apenas teses
momentâneas, pacificam e se projetam para casos presentes, estes, por sua vez, passíveis
de modificação diante das mudanças jurisprudenciais impostas pela dinâmica dos fatos, o
que justapõe, de algum modo, indução e abdução79
.
77
“Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 220. 78
Remetemo-nos ao item 3 da Introdução, onde expusemos o papel ontológico dos símbolos na cognição. 79
Dedução, indução e abdução são formas de inferência para estabelecer hipóteses científicas. Na abdução
utiliza-se o processo de generalização, por meio do qual uma coleção de dados individuais gera uma
conclusão mais ampla, sempre em caráter provável, portanto falível. Segundo REGO: “A abdução é
preparatória, é o primeiro passo da investigação; enquanto a indução é o último estágio. A abdução seria
então, o caminho para a introdução e descoberta de novas ideias, em oposição às formas de inferência por
dedução e indução. Enquanto a indução se desenvolve sobre o que já se tem conhecimento, a abdução é livre
para dar saltos na imaginação. (...) As grandes ideias e descobertas na ciência são alcançadas pela
abdução, que consiste em estudar os fatos e inventar uma teoria (hipótese) para explica-los. (...) Em outras
palavras, para encontrar a explicação de um fato problemático, é inventada uma hipótese ou conjuntura, de
onde se inferem consequências que possam ser testadas experimentalmente (verificadas indutivamente).
Nesse ponto, a própria abdução já concebe uma falibilidade intrínseca, pois as provas experimentais podem
desmentir as consequências das conjecturas imaginadas e, assim, instigar novas hipóteses. (...) Enquanto da
dedução a inferência se processa pelo modelo (premissa maior + premissa menor = conclusão) e a indução
por este (premissa menor + conclusão = premissa maior) a abdução teria o seguinte formato (conclusão +
premissa maior = premissa menor).” REGO, George Browne. “O pragmatismo e a análise lógica das
51
Por fim, nas ciências sociais, interessante destacar que prevalece a aceitação da
acomodação entre os diferentes paradigmas, isto é, a possibilidade de compatibilizar os
diferentes aspectos de cada modelo teórico. Nesse sentido, destaca ALVES-MAZZOTTI80
:
“A discussão sobre a acomodação parece ser ainda mais relevante nas
ciências sociais, uma vez que estas, ao contrário das ciências físicas, são
multiparadigmáticas, isto é, nelas competem vários paradigmas (...).
Podemos observar, portanto, que, enquanto no caso da oposição
positivista/não-positivista, a acomodação era majoritariamente
considerada impossível, na situação presente as posições não são tão
rígidas, admitindo-se, inclusive, que a discussão sobre a
incompatibilidade entre paradigmas deve considerar diferentes níveis de
acomodação. (...)
Vários autores, em artigos recentes (Cherryholmes, 1992; Garrison,
1994; House, 1994), têm enfatizado a atualidade do pragmatismo,
resgatando as ideias de Peirce, James, Rorty e Dewey, e apontando-as
como uma alternativa frutífera para a elaboração da teoria e da
pesquisa.” (grifos nossos).
Dessa forma, é dentro dessa perspectiva da acomodação que pretendemos
conciliar, através do pragmatismo, a análise da estabilidade sistêmica, o fenômeno jurídico
da valorização dos precedentes e seu papel na mediação dos sentidos normativos.
1.1. Método pragmatista no direito81
e a teoria estruturante de Muller: intersecções
Quando se fala em pragmatismo no Brasil, não podemos deixar de citar os
textos do professor GEORGE BROWNE REGO, um dos principais nomes sobre o assunto
e que há tempos procura explorar e avançar no tema da legalidade positivista.
consequências na decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da exigibilidade do exame da ordem”, texto
inédito, p. 69/71. 80
“O método nas ciências naturais e sociais”, 2ª edição. São Paulo: Pioneira, 1999, p. 142/144. 81
Como costuma ser enfatizado pelos estudos nesse campo, existem muitos pragmatismos, tanto na filosofia
como no Direito, razão pela qual o termo possui ambiguidade semântica. De toda forma, “associar
Pragmatismo e Direito é uma ideia antiga, que pode ser encontrada desde a origem do Pragmatismo
Filosófico norte-americano, passando pelo Realismo Jurídico, até as versões mais recentes do Pragmatismo
Jurídico. De outra maneira, associar abdução e Direito é uma proposta ainda incipiente no meio jurídico.”
52
Assim, antes de tudo “(...) o Pragmatismo nada mais é do que um novo método
de tratar velhas ideias. Por essa razão o Pragmatismo é substancialmente uma atitude e
não uma técnica procedimental que resulte de uma lógica de cunho estritamente racional
e que enquadre os fatos em categorias universais e necessárias.”82
Nesse sentido, o método, ou a forma pragmatista, opõe-se ao isolamento dos
fatos naturais e sociais proposto pelo dualismo metodológico de KELSEN. A norma
hipotética fundamental cumpriu sua função de fundamentar a validade e unidade do
sistema jurídico, cortando o mundo em dois reinos: de um lado direito, de outro tudo o que
não interessa ao direito, afastando quaisquer implicações jusnaturalistas ou realistas.
Abre-se um parêntese, aqui, para esclarecer que o termo realismo produz
significados distintos na filosofia e no direito. Atrelado às discussões sobre verdade e
realidade, na filosofia, o termo realismo significa acreditar na existência objetiva das
coisas, externa à vontade do homem; no direito, significa acreditar que não existem valores
ou princípios fora da vontade do juiz, ou seja, o direito depende do juiz, vale dizer, fato,
valor e norma compondo a prescritividade jurídica.
Em que pese a proposta original de KELSEN, este, segundo GEORGE
BROWNE, “começava a admitir que existe uma certa funcionalidade da sociologia
jurídica no sentido de complementar, através da jurisprudência, o sentido da norma.”83
Dessa forma, os propósitos que se pretendem atingir integram o curso da
positivação do direito, razão pela qual a jurisprudência não é neutra e, assim, não se move
numa direção única, cega, dedutiva e mecânica, através de silogismos lógicos.
(REGO, George Browne. “O pragmatismo e a análise lógica das consequências na decisão do Supremo
Tribunal Federal acerca da exigibilidade do exame da ordem”, texto inédito). 82
REGO, George Browne. “O pragmatismo como alternativa à legalidade positivista: o método jurídico-
pragmático de Benjamin Nathan Cardozo”, in “Revista Duc In Altum Caderno de Direito”, vol. 1, nº 1, jul-
dez. 2009, p. 44. 83
Obra citada, p. 38.
53
Com isso, quer-se dizer que os conteúdos dos conceitos legais são delineados
por meio dos casos concretos, de modo que a estabilização das expectativas normativas
através da coisa julgada deve ser compreendida de forma dinâmica, interpretando-se o
conjunto da postulação, as questões principais e os fundamentos determinantes da causa,
agentes determinantes na fixação do sentido da norma.
Conforme GEORGE BROWNE84
:
“Cada caso insere-se num conjunto de circunstâncias específicas e,
assim, tem a sua própria história. Sua solução rejeita portanto modelos
ortodoxos e sua análise varia em função de um maior domínio possível
dos elementos que comparecem à situação conjuntural, associado ao
esforço imaginativo no sentido de encontrar soluções mais apropriadas e
convenientes para cada caso. Os antecedentes são também muito
importantes.”
A partir dessas ideias, conseguimos contrapor e superar alguns dogmas: o
fechamento e a unicidade do direito não se esgotam na forma constitucional; direito não é
apenas linguagem lógica; a linguagem não cria a realidade; a norma jurídica não é uma
moldura puramente formal; a jurisprudência não se move de forma cega, aplicando
dedutivamente, mediante inferências necessárias (causação), conceitos abstratos; a decisão
jurídica não decorre de uma subsunção ou silogismo lógico; a coisa julgada não pode ser
formada, compreendida e mesmo rescindida unicamente a partir do dispositivo.
Esse entendimento alinha-se de forma mais harmoniosa com a pauta filosófica
e científica pós-mecanicismo, até mesmo com os atuais estudos da linguagem, que
encontram no próprio WITTGENSTEIN sua fonte de inspiração.
Segundo FRIEDRICH MULLER, referindo-se aos dois momentos do
pensamento de WITTGENSTEIN (do pensamento lógico ao giro-pragmático), temos que:
“A tese de que os fatos poderiam ter uma forma lógica é rejeitada por
Wittgenstein nessa fase do seu pensamento. No Tractatus a palavra é
84
Obra citada, p. 45/46.
54
considerada como nome; nas Investigações Filosóficas ela é vista como
momento de um modo concreto de uso. A função da linguagem já não é
mais a de retratar o mundo. Um ‘jogo de linguagem’ é, muito pelo
contrário, uma situação linguística, dentro da qual se pode afirmar que
aqui – mas precisamente só aqui o significado das palavras é a coisa, à
qual elas se referem.”85
Aliás, a Teoria Estruturante de MULLER, bem ao estilo pragmatista, nega as
operações dedutivas na positivação do direito para, enfocando na sua concretização,
edificar uma teoria da norma que, de maneira indutiva, parta de problemas práticos. Não se
admite, pois, uma metodologia jurídica concebida sob a forma de um axioma.
Portanto, compreende-se como normativo tudo aquilo que determina a
resolução do caso (o conjunto da postulação, as questões principais e os fundamentos
determinantes), não apenas a determinação que se deu à resolução do caso.
Veja-se a sutil, mas significante inversão (o que determina o caso versus a
determinação do caso), pois isso opera consequências relevantes na formação da coisa
julgada. Na concepção da Teoria Estruturante, a norma é o resultado de um programa
normativo (um trabalho sobre os textos legais) e de um campo, ou âmbito normativo (um
trabalho sobre os dados fáticos), de modo que os elementos que determinam a resolução do
caso são, pois, igualmente normativos.
A normatividade jurídica, portanto, é conformada por uma estrutura mais
complexa do que o mero arranjo sintático dos enunciados legais. Voltaremos ao assunto
mais à frente, quando tratarmos da normatividade jurídica e das decisões normativas.
Desse modo, mais uma vez reiteramos, não existe julgamento de teses jurídicas
desconectado da realidade do caso (seu campo normativo), o que, no campo do Direito
tributário, implica reconhecer a relevância das especificidades de cada atividade e dos
85
“O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2013, p. 190/191.
55
negócios jurídicos subjacentes, bem como as consequências econômicas e sociais
envolvidas nos litígios, não se podendo falar, então, em questões unicamente de direito.
Até porque, a própria contabilidade, até então pautada numa visão estática,
vem adotando, com a vinculação aos padrões internacionais pela Lei n.º 12.973/14 (IFRS),
uma perspectiva dinâmica das mutações patrimoniais (exemplos disso são as Avaliações a
Valor Justo – AVJ; os Ajustes a Valor Presente – AVP; os testes de recuperabilidade –
impairment; as mensurações dos ativos intangíveis e dos ativos biológicos, etc.). Eis, aí, a
relação entre processo tributário e contabilidade.
Os fatos econômicos retratados na contabilidade passam, então, a acompanhar
a complexidade do real, exprimindo de forma mais verossímil as relações sociais,
financeiras e econômicas com impacto tributário, reforçando a ideia de que não pode
existir julgamento de teses jurídicas desconectados de toda essa realidade do caso.
Exemplificativamente, quando se discute, na atualidade, o reestabelecimento
das alíquotas do PIS e da COFINS em relação às receitas financeiras das pessoas jurídicas
sujeitas ao regime não-cumulativo de apuração
86, coloca-se na pauta algo que deveria ter
sido solucionado desde a Emenda Constitucional n.º 42/0387
, ou seja: quais setores da
economia deveriam se sujeitar ao regime não-cumulativo.
Desde que se instituiu, de forma generalizada, o regime não-cumulativo de
apuração para as pessoas jurídicas sujeitas ao Lucro Real, discute-se, de forma a amenizar
a majoração da carga tributária (que subiu de 3,65% para 9,25%), o conceito de insumo
para fins de creditamento pelo PIS e pela COFINS, deixando-se de lado, então, a análise do
86
Decreto n.º 8.426/15, editado de acordo com a delegação do § 2º, do artigo 27, da Lei n.º 10.865/04. 87
A qual inseriu o § 12 no artigo 195 da Constituição Federal, de modo a dispor que: “§ 12 - A lei definirá os
setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do
caput, serão não-cumulativas.”
56
quadro fático subjacente: quais setores da economia demandariam mais e/ou menos do
sistema da seguridade social (princípio da solidariedade e da contributividade) e, por isso,
deveriam ou não se sujeitar ao regime não-cumulativo de apuração.
Assim, setores que sequer deveriam estar inseridos na sistemática não-
cumulativa, acabam sofrendo um novo aumento da carga tributária com a inclusão das
receitas financeiras na base de cálculo do PIS/COFINS, o que retoma e aflora, novamente,
a discussão ainda pendente em torno da Emenda 42/03.
E mesmo na questão do conceito de insumo, como decidir a controvérsia sem
qualquer consideração às especificidades da atividade de cada empresa? Simplesmente
impossível, mas é isso que nossos tribunais vêm fazendo quando procuram generalizar
conceitos abstratos de maneira a priori, os quais, em seguida, são aplicados dedutivamente
a casos singulares, sobretudo quando encampados numa Súmula Vinculante.
Veja-se, por oportuno, as restrições crescentes quanto à edição de Súmulas
Vinculantes pelo STF em matéria tributária, ao menos na forma como vem ocorrendo, o
que ficou expressado nas discussões em torno da PSV relativa ao crédito presumido de IPI
sobre insumos desonerados, quando então o Ministro DIAS TOFFOLI ressaltou “ter
restrições quanto à edição de enunciados de súmula vinculante em matérias de ordem
tributária e penal (...), nas quais muitas vezes as particularidades não poderiam ser
enfrentadas nesse tipo de veículo processual.” (PSV 26/DF, de 11/03/2015).88
88
Discussões disponíveis no Informativo STF n.º 777, in
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo777.htm, consultado em 19/07/15.
57
A mesma restrição se repetiu na PSV 65/SP, que sugere enunciado vinculante
sobre a não inclusão dos materiais adquiridos de terceiros na base de cálculo do ISSQN
incidente na atividade de construção civil89
.
É o que ocorreu, também, quando não se deliberou sobre a PSV 22/DF, de
15/04/0990
, que pretendia fixar o conceito de receita bruta como a “soma das receitas
oriundas do exercício das atividades empresariais”, o que até parece correto, mas não
representava as discussões que fixaram o conceito como “proveniente das vendas das
mercadorias e da prestação de serviços de qualquer natureza.” Ou seja, nas discussões
judiciais se fixou a tese, abstratamente, em torno do conceito de receita bruta, sem
qualquer consideração às especificidades das atividades empresariais, e, depois, pretendeu-
se corrigir tal deficiência no enunciado sumular.
Da mesma forma deve haver com edição de eventual Súmula Vinculante em
relação ao conceito de insumo para fins de creditamento pelo PIS/COFINS, a qual deverá
contemplar uma adequada abertura semântica para análise dos casos concretos.
Os problemas em face de tais questões são de várias ordens: quem será
responsável para enquadrar e aplicar a abertura semântica do enunciado sumular? Ou seja,
quem definirá quais são as atividades da empresa para fins de subsunção ao conceito de
faturamento e/ou ao conceito de insumo? E mais, como será a metodologia e procedimento
na conformação do caso, para fins de adequação do julgamento e mesmo da eficácia de
eventuais coisas julgadas contrárias? Qual será o órgão que mediará essa operação
jurisdicional de adequação dos julgamentos e das coisas julgadas? Ou não se trata de
89
Informativo STF n.º 782, disponível em
http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo782.htm#PSV: ISSQN e base de cálculo –
2, consultado em 07/08/2015. 90
Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=659080, consultado
em 19/07/15.
58
atividade jurisdicional? Ou então, talvez pior, estaríamos admitindo o controle da
legalidade da coisa julgada pela administração fazendária?
Enfim, analisaremos esses dilemas mais à frente, mas o ponto é que a
normatividade jurídica implica dizer que uma questão de direito nunca está dissociada ou
desconectada de uma questão de fato, de modo que a dificuldade, então, está em
diferenciar quando a questão determina a resolução do caso e quando é por ele
determinada. Trata-se, pois, de um aparente vício circular, pois, como nos exemplos acima,
a definição das atividades é determinada pelo julgamento do caso e, em seguida, também
determina a resolução de outros, de modo que a normatividade da tese encontra seu
fundamento no quadro fático dos casos singulares.
Por isso, as consequências práticas dos julgamentos estão sendo, atualmente,
cada vez mais debatidas não somente no meio jurídico como também pela sociedade civil.
É o que vemos com as audiências públicas no STF, com a ampliação do instituto do
amicus curiae, com a participação popular nas propostas de Súmulas Vinculantes, etc.
Como bem apontou OLIVIER JOUANJA, em artigo sobre o método jurídico
pós-positivista em MULLER e referindo-se ao abandono da certeza formal no direito:
“É possível sentir-se frustrado por esta relatividade. É que a
metodologia não possui a função de satisfazer às necessidades das
certezas objetivistas, nada mais ela pode abandonar-se à ‘ratoeira do
decisionismo cético’, a qual lhe arma a anomia subjetivista. O método
tem por objeto dominar suficientemente, relativamente a distância
revelada pela teoria da norma o texto de norma e a norma jurídica. Este
domínio é necessário em um ordenamento jurídico como o nosso: as
normas, e as normas-decisões que as individualizam, devem poder ser
metodicamente imputadas aos textos de normas estabelecidas pelo
legislador legitimado.”91
91
“De Hans Kelsen a Friedrich Muller – Método jurídico sob o paradigma pós-positivista”, in MULLER,
Friedrich. “O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 225.
59
Não podemos negar que o direito manifesta-se pela linguagem, mas o método
jurídico não se limita às análises textuais em sentido gramatical, de modo que trabalhamos
com textos, e não tão somente sobre textos, vale dizer, sobre as suas análises lógico-
sintáticas. Recordando uma clássica lição de DWORKIN, devemos levar os textos a sério.
Entra em cena, então, a corrente denominada semântica prática92
, considerada
a ciência moderna da linguística nos países germânicos, oposta ao estruturalismo
formalista baseado no giro-linguístico, tal qual inicialmente concebido93
.
Novamente recorrendo às lições do professor GEORGE BROWNE REGO, em
outro texto sobre o pragmatismo, temos que:
“(...) o cerne da preocupação do pragmatismo é a questão metodológica.
Nesse sentido, William James sintetizou com muita precisão o problema
ao afirmar que o Pragmatismo nada mais é do que um novo método para
analisar as velhas disputas filosóficas. Para lançar luz mais
compreensiva sobre o problema, procurar-se-á, então, equacioná-lo
sinteticamente em duas propostas bem distintas: de um lado, a que toma
como ponto de partida na relação do sujeito com o objeto do
conhecimento, a prevalência de um constructo teórico que reduz a
realidade a um conjunto de postulados lógicos capaz de subsumir e
explicar o que se passa no mundo da experiência, através do
entrelaçamento lógico entre as suas premissas; de outro, a crença em
que da observação dos fatos particulares é possível, pela via inversa à
precedente, retirar, do exame dos fenômenos observados, ilações
universalmente válidas.
Os reflexos dessas posturas metodológicas se estenderam – como se verá
posteriormente – à esfera jurídica que vai encontrar no método
92
“A semântica prática é uma corrente decididamente moderna da ciência linguística dos países
germânicos. Ela é oposta ao estruturalismo formalista da escola de Noam Chomsky (‘grammaire
transformationnelle’) e baseada sobre o linguistic turn [giro linguístico] do final dos anos 60 (‘The
Linguistic Turn’), dirigido por Richard Rorty, surgido em 1967). A semântica prática é ainda uma
radicalização dessa corrente geral (linguistic turn, semantic turn) que, atualmente, pode ser considerada
como a mais importante na discussão internacional; mesmo a escola analítica dos Estados Unidos
transformou-se nesse ínterim sob o impacto de Quine e de Davidson, e chamam-se agora os pós-analíticos.”
Entrevista com Friedrich Muller, in MULLER, Friedrich. “O novo paradigma do Direito, introdução à teoria
e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 241. 93
Segundo Paulo de Barros Carvalho: “Penso que a filosofia da linguagem, tanto na versão do
estruturalismo, mais conectado com a linguística, quanto na proposta da filosofia analítica, em ligação mais
estreita com a lógica e com a matemática, navega a velas pandas no que há de mais fino e elaborado do
pensamento ocidental. As duas vertentes avançam, na forma da terminologia tradicional, aparecendo como
pós-estruturalismo e pós-analítica, para convergir na perspectiva hermenêutica, interpretativa, deitando
raízes na fenomenologia e no existencialismo.” (in DERZI, Misabel Abreu Machado. “Modificações da
jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009, Prefácio, p. XI).
60
pragmático uma alternativa inovadora para as práticas desenvolvidas no
caldeirão dos tribunais, usando a expressão de Benjamim Cardozo.
(...)
O método abdutivo pode ser constantemente encontrado nos julgamentos
do Supremo Tribunal Federal quando, partindo do geral para apreciar
um caso concreto, uniformiza entendimentos jurisprudenciais, dando
conformidade ao sistema jurídico brasileiro. Tanto é assim que a
Suprema Corte reserva-se a conhecer e julgar demandas que
representem repercussão geral.”94
No pragmatismo, portanto, o conceito é formado e construído pela soma dos
resultados práticos verificados nos atos de aplicação, por isso, não há uma dissociação
entre o “ser” (resultados práticos) e “dever-ser” (textos legais abstratos).
Outra não é a ideia de MISABEL ABREU MACHADO DERZI ao explorar os
princípios da irretroatividade, proteção da confiança e boa-fé no contencioso tributário, em
especial nas mudanças jurisprudenciais, ao afirmar que as situações fáticas (resultados
práticos) consolidadas pelas normas judiciais geram expectativas normativas futuras,
conformando e determinando as relações intersubjetivas, devendo ser preservadas95
.
Em passagem seguinte, fica claro o tom pragmatista inerente à interpretação,
aplicação e controle do direito: “Uma vez definida a posição da Corte sobre certa matéria,
os fatos iguais ao leading case, que se realizam sob a sua regência, devem ser avaliados e
julgados segundo aquela posição, verdadeira norma ‘judicial’ de orientação de conduta.
A fundamentação obrigatória da decisão, por meio de argumentação adequada aos
conceitos e princípios jurídicos; a limitação imposta pelos precedentes; o sopesamento
94
“O pragmatismo e a análise lógica das consequências na decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da
exigibilidade do exame da ordem”, texto inédito. 95
“Nosso sistema jurídico conhece e lida com a sentença, como fonte de criação do Direito, ou seja, de
expectativas normativas. Disso resulta o marco temporal – data da publicação da decisão – ou a
qualificação pela coisa julgada, que assinala o termo a quo da vinculação, que alguns denominam de
eficácia processual. Tal eficácia processual, ressalvamos, é, a rigor, ainda material, no sentido de constituir
o Direito, a própria expectativa normativa judicial vinculativa (aplicável erga omnes e para os casos
similares, que se apresentarem no futuro). E esse marco terá relação com a incidência de princípios da mais
alta relevância como irretroatividade, proteção da confiança e boa-fé em relação às decisões judiciais.” (in
“Modificações da jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009 – grifamos).
61
das consequências do julgado como mera projeção; todos esses fatores são operacionais
internos, que devem ou deveriam proteger o cidadão contra o arbítrio e a insegurança.”96
Isso tudo, cumpre observar, não significa admitir uma indesejável submissão
pura e simples do direito aos fatos sociais ou econômicos, uma espécie de rebeldia ou
revolução atuando contra o sistema normativo, o que apenas causaria insegurança jurídica
e instabilidade às relações sociais.
Não, o direito continua sendo um sistema operacionalmente fechado, ou seja,
retroalimentado por suas próprias estruturas, daí o papel fundamental dos atos de
aplicação, da experiência jurídica, na conformação dos conceitos abstratos e na evolução
das diretrizes normativas. Por isso, também, se mostra adequado e ganha relevância o
método pragmatista aplicado no direito, cujos desdobramentos veremos mais à frente.
Capítulo 3. O sentido comum
A partir da estrutura filosófica procuramos conduzir a compreensão da forma
jurídica, identificando e acompanhando as metodologias gnosiológicas no tempo, sobre as
quais se desenvolvem os modelos teóricos e as categorias fundamentais da dogmática.
É, por assim dizer, em torno dessas pautas, ou plataformas teóricas, que se
sustentam as construções dos sentidos normativos, justificando e fundamentando o
processo gerador de interpretação, controlando seus resultados por meio de referenciais
pré-concebidos, implicando, por essa razão e em certos momentos, o desencaixe do objeto
frente ao modelo, como é o caso do Parecer PGFN n.º 492/2011, cuja análise será
empreendida na Parte III do trabalho.
96
Obra citada, p. 49.
62
No contexto do chamado processo gerador de sentido normativo, somos
envolvidos numa intensa interpretação dialógica de textos, onde se pressupõe a
multiplicidade ôntica compositiva do direito, dando trânsito às diversas dimensões
fenomenológicas da linguagem normativa.
O percurso que perpassa os quatro subsistemas do sistema jurídico, e que
compõem o processo de geração de sentido das mensagens normativas97
, portanto,
encontra-se inserido num grande plexo comunicacional (texto em sentido amplo98
), de
modo que o intérprete99
, inserido no caos de sensações a que se referiu VILÉM FLUSSER,
dentro desse universo passa a construir as significações em busca do cosmos normativo.
Assim, as contribuições dogmáticas se desenvolvem em torno de questões
comuns a qualquer sistema jurídico, de maneira que o tema da normatividade pressupõe
um mínimo denominador que permita a interação com a estrutura de pensamento e com os
modelos de análise até aqui verificados.
Em outras palavras, para que possamos concluir esta primeira parte do trabalho
e evoluir no estudo dos temas propriamente vinculados ao seu título, imprescindível
97
De acordo com Paulo de Barros Carvalho: S1 (plano da literalidade textual – texto em sentido estrito); S2
(plano do conjunto de conteúdos de significação dos enunciados prescritivos); S3 (plano do domínio
articulado de significações normativas); e S4 (plano do domínio articulado das normas jurídicas, ou de
organização das normas construídas no plano S3). No plano do S1 não há que se falar em norma jurídica, mas
apenas suporte físico que contém os enunciados prescritivos isolados (seria o material bruto de qualquer
intérprete); em S2 estaria a norma jurídica em sentido amplo, ou seja, juízos hipotéticos condicionais
desprovidos de sentido deôntico completo; em S3 estaria a norma em sentido estrito, vale dizer, a regra-
matriz de incidência; e em S4 a norma em sentido completo, aquela decorrente da união entre as normas
primárias (dispositivas e sancionatórias) e secundárias. 98
“Não é de hoje que os estudiosos no campo da semiótica vêm tratando a figura do ‘texto’ como conceito
de abrangência maior que a formulação escrita d’uma ideia em expressões idiomáticas. Texto, na acepção
que venho considerando em meus trabalhos, extrapola tal definição estreita para abranger tudo aquilo que
se possa interpretar. Dessa maneira, mesmo os gestos humanos, o vestuário, sinais luminosos, as nuvens
no céu, tudo isso é texto, se assim for tomado como mensagem num processo comunicativo.”
CARVALHO, Paulo de Barros. “Breves considerações sobre a função descritiva da ciência do direito
tributário”. In “X Congresso Nacional de Estudos Tributários do IBET”. São Paulo: Noeses, 2013, p. 886. 99
Ressaltamos que, numa visão semiótica, o termo mais adequado seria interpretante, figura mais abrangente
que o mero e individualizado intérprete.
63
empreendermos a conciliação ou adequação ao redor de categorias centrais, comuns a
qualquer escola de pensamento jurídico.
1. Unidade, coerência e completude. Para quem?
Os temas da unidade, coerência e completude do sistema jurídico são daqueles
que influenciam diversas categorias fundamentais do direito, ao mesmo tempo em que
pressupõem diferentes posições jusfilosóficas.
Dentre outras, citamos as questões em torno das fontes do direito, seus modos
de criação, modificação e extinção; a teoria da norma e a validade, vigência e eficácia
normativa; hierarquia do sistema; análise das relações de coordenação e subordinação; a
interpretação e a incidência do direito; a competência, e assim por diante. Qualquer tomada
de posição sobre tais questões, estamos certos, passa de algum modo pelas ideias de
unidade, coerência e completude e, por isso, deve considerar seus pressupostos.
Não sem razão, em sua teoria do ordenamento jurídico NORBERTO BOBBIO
dedica um capítulo inteiro para cada tema100
, criticando em alguns pontos o dogma da
completude, segundo o qual, na concepção de que a produção jurídica seria um monopólio
estatal (unidade de fontes), o Estado deveria regular todos os casos possíveis, de forma
que, segundo BOBBIO, a miragem da codificação seria a completude.
100
“Teoria do Ordenamento Jurídico”, 10ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, tradução
de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos (Capítulo 2 – A unidade do ordenamento jurídico; Capítulo 3 – A
coerência do ordenamento jurídico; e Capítulo 4 – A completude do ordenamento jurídico).
64
E, ainda que adote diversas concepções positivistas pautadas na trilogia
unidade, coerência e completude, BOBBIO afirma que “coerência não é condição de
validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento.”101
Iguais preocupações também tomaram diversos debates entre HANS KELSEN
e HERBERT HART, opondo-se a concepção em torno (i) do conteúdo das leis, (ii) do
modo de origem das leis e (iii) do campo de aplicação das leis, não se sustentado, segundo
HART, “uma espúria uniformidade que em verdade não existe.”102
Ao mesmo tempo em que critica os modelos tradicionais, HART propõe a
classificação normativa das regras secundárias, divididas em regra de reconhecimento,
regra de modificação e regra de julgamento, sendo a primeira responsável por encerrar o
sistema. A complexidade social, para HART, estaria contida nas normas primárias, que por
isso dependeriam das normas secundárias para adquirirem o tom da juridicidade.
Nessa ordem de ideias, sustentando um sistema jurídico contemporâneo cada
vez mais complexo, plural e incompleto, JJ. GOMES CANOTILHO afirma que “a
proclamada unidade da ordem jurídica parece estar definitivamente ultrapassada”, de
modo que “a mecânica unificação de alto para baixo através da força jurídica
hierarquicamente superior da constituição, a partir da qual se extraem unilateral e
dedutivamente todas as outras manifestações subordinadas do direito, colocar-nos-ia
completamente ‘fora da estrada’.”103
Da mesma forma propõe FRIEDRICH MULLER, para quem o dogma da
unidade “não pode continuar servindo a tentativas de apagar a linha de fronteira entre
argumentos orientados segundo as normas e argumentos de política jurídica desvinculada
101
Ob. cit., p. 113. 102
“O conceito de direito”, 2ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2012, Capítulo III. 103
“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição. Coimbra: Almedina, p. 1143 e 1151.
65
do direito (...) argumentos enganosos da ‘unidade’, seja do ordenamento jurídico na sua
totalidade, seja da constituição, levaram a caminhos errados.”104
Por sua vez, através do dogma da norma hipotética fundamental, KELSEN
procurou construir o arcabouço normativo sobre o qual justifica, a partir da uniformidade
estrutural, a unidade, coerência e completude do sistema de direito positivo.
Ou seja, o conjunto das normas homogeneamente uniformes, em última
instância, encontra fundamento numa estrutura que confere fechamento a todo o sistema,
permitindo, a partir daí, eliminar incoerências (ambiguidades) e incompletudes (lacunas).
Acerca de tais premissas, TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM destaca que:
“Ao empreendermos um enfoque dinâmico ao sistema do direito positivo
e ao partirmos do pressuposto de unidade a ele atribuído pela norma
hipotética fundamental, não há se rechaçar o caráter de auto-referência
que o acomete. Auto-referente porque é o próprio sistema que constitui
seus elementos, estruturas, processos e unidades (normas jurídicas), que
permite à dogmática jurídica codificar a diferença a que se refere
Luhmann ente o jurídico e o não jurídico.”105
Com efeito, corta-se formalmente o jurídico do não jurídico, conferindo-se
completude estrutural (sintática) ao sistema, pressuposto da segurança jurídica. Mas, ao
lado da completude formal, tem-se a incompletude material, pois o direito não reproduz, e
nem conseguiria, a complexidade da realidade social, em constante expansão e evolução.
O ontologismo jurídico e a indeterminação do direito, na forma em que
exploramos nos Capítulos 1 e 2 acima, impõem tratarmos a unidade, coerência e
completude do direito sob uma perspectiva menos abrangente e universalista, construída,
isto sim, a partir dos casos concretos, não podendo ser compreendida de maneira estática,
como postulado geral que visa eliminar, abstrata e dedutivamente, lacunas e antinomias.
104
MULLER, Friedrich. “O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª
edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 106. 105
“Fontes do Direito Tributário”, 2ª edição. São Paulo: Noeses, 2006, p. 56.
66
Segundo ALF ROSS, toda palavra é vaga e potencialmente ambígua,
representando, pois, um problema da linguagem. E, trazendo essa dificuldade para o
direito, encontramos as lacunas e as antinomias, ou seja, ausência de possibilidade
normativa ou múltiplas possibilidades normativas para um mesmo caso em concreto.
Vale dizer que vagueza e ambiguidade representam, respectivamente, a
ausência de definição para determinada palavra ou a múltipla possibilidade de definições
para a mesma palavra, o que gera, no direito, problemas como lacunas (sistema
incompleto) ou antinomias (sistema incoerente).
Aliás, tal imprecisão linguística também foi algo com o que os estudos da física
moderna e a exploração do universo subatômico acabaram tendo que aprender a lidar,
dando ensejo à teoria da complementariedade de NEILS BOHR e ao conceito de relações
de incerteza de HEISENBERG.
Desse modo, as lacunas e antinomias normativas refletem, de alguma forma, a
incompletude e incoerência material do sistema jurídico, ao mesmo tempo em que
confirmam a completude e coerência formal, pois não há que se falar, dentro do discurso
prescritivo do próprio direito, em lacuna ou antimomia a impedir a solução de um caso.
Isso porque, o próprio direito confere ferramentas para afastar ou conciliar as
lacunas e antinomias, consubstanciadas na hermenêutica jurídica, garantindo-se, com isso,
a certeza e a segurança jurídica através da forma.
O fechamento estrutural e a uniformidade do sistema permitem o
aprofundamento no estudo das diversas categorias fundamentais, mas ainda assim são
insuficientes para conferir fechamento e uniformidade material, da maneira em que
pensamos a tradicional pirâmide kelsiana.
67
Assim, passando para os demais planos da linguagem, é através da abertura
semântica e pragmática do sistema que, pelos casos concretos, podemos falar em segurança
jurídica. Conforme já vimos, a segurança jurídica abstrata como postulado geral cede
espaço para a segurança jurídica concreta, um fim, de modo que não-contradição, terceiro
excluído e identidade são possibilidades individuais, porém generalizáveis.
Novamente oportunas as lições de TÁREK MOYSÉS MOUSSALLEM106
:
“O fechamento sintático não impede a necessária abertura semântica e
pragmática do ordenamento jurídico. Pelo contrário, a clausura
operacional é pressuposto para regulamentação jurídica da conduta
humana.
Assim, os fatores exteriores ao ordenamento jurídico somente nele
ingressarão quando o sistema do direito positivo os captar. Esses
elementos, uma vez metamorfo-seados em jurídicos, manterão inevitável
vínculo com a linguagem da realidade social (abertura semântica e
pragmática).
Ademais, vale lembrar que o direito positivo é um sistema (nomo)
empírico e, como tal, faz necessária referência à linguagem da realidade
social. Da intersecção entre a linguagem normativa e a linguagem da
realidade social resulta a linguagem da facticidade jurídica, que
ingressa no ordenamento por meio de normas jurídicas (mais
precisamente por seu antecedente), como veremos na sequência.”
É, portanto, através da porta que se abre a partir dos casos concretos que se fala
em heterogeneidade semântica e pragmática, quando então os fatos econômicos, contábeis
e financeiros adquirem normatividade jurídica. Essas são as lições enraizadas nos escritos
de PAULO DE BARROS CARVALHO, ou seja, homogeneidade sintática, ao lado da
heterogeneidade semântica: duas faces da mesma moeda107
.
No mesmo sentido, temos as observações de MISABEL DERZI:
“O interessante é que NIKLAS LUHMANN realça o paradoxo de um
sistema auto-referencial, de modo que a abertura ao real – do ponto de
106
“Fontes do Direito Tributário”, 2ª edição. São Paulo: Noeses, 2006, p. 57/58. 107
“Há homogeneidade, mas homogeneidade sob o ângulo puramente sintático, uma vez que nos planos
semântico e pragmático o que se dá é um forte grau de heterogeneidade, único meio de que dispõe o
legislador para cobrir a imensa e variável gama de situações sobre que deve incidir a regulação do direito,
na pluralidade extensiva e intensiva do real-social.” CARVALHO, Paulo de Barros. “Direito Tributário,
linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 136.
68
vista tão somente cognitivo – é condição do próprio fechamento e da
viabilidade do sistema. A respeito desse ponto, observa MARCELO
NEVES que ‘o fechamento cognitivo do sistema jurídico proporcionaria
um paradoxo insuperável da autopoiese; não permitiria, portanto, a
interrupção da interdependência dos componentes internos através da
referência ao ambiente.”108
Sob tais premissas, é possível conciliar os diferentes diálogos sobre a unidade,
coerência e completude do sistema, na linha em que expusemos quando tratamos das
posturas aglutinantes e isolantes no Direito tributário brasileiro (item 2.3).
O enfoque estrutural e a perspectiva interna (sistema único e completo), não
exclui o enfoque funcional e a perspectiva externa, onde então falamos das lacunas e
antinomias presentes na complexidade social. Vê-se, então, que tais dicotomias não passam
de predominâncias de enfoque (estrutural ou funcional) e perspectiva (interna e externa).
Nesses termos, encontramos as lições de TÁCIO LACERDA GAMA, para
quem: “as premissas fixadas e desenvolvidas por Hans Kelsen para a construção da
Ciência do Direito assentavam-se num modelo sintático-semântico, com atenção especial
para a precisão dos conceitos e das classificações, tendo a definição de norma jurídica um
papel fundamental. A proposta de Herbert Hart, por outro lado, enfatiza o aspecto
semântico-pragmático, dando enfoque aos usos que os sujeitos, na condição de
observadores ou participantes, fazem das normas.”109
De tudo isso, conclui-se que as antinomias e as lacunas são problemas de
interpretação que decorrem, naturalmente, da ambiguidade e vagueza da linguagem
ordinária sobre a qual incide o direito110
.
108
DERZI, Misabel Abreu Machado. “Modificações da jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo:
Noeses, 2009, p. 27. 109
“Competência tributária, fundamentos para uma teoria da nulidade.” São Paulo: Noeses, 2009, p. 27/28. 110
Nesses termos, remetemo-nos às lições de Aurora Tomazini de Carvalho, “Curso de Teoria Geral do
Direito”, 2ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, p. 506.
69
Por isso, com o aumento da complexidade social e, com ela, da judicialização
dos problemas, sobretudo pela ampliação do acesso à justiça, evidenciam-se as lacunas e
antinomias do direito e, com isso, surge a questão consistente na limitação da produção de
sentidos normativos. Em outras palavras, onde se esgota os limites da interpretação?
Conforme GABRIEL IVO111
:
“Na atualidade há uma crescente juridicização de quase todos os
aspectos da vida. Tal situação decorre da própria configuração do
direito: objeto/ciência. É crescente o alargamento do objeto, como
também cada vez mais a postura da ciência caminha no sentido de uma
defesa da mais ampla juridicização de aspectos da vida. Surge assim
uma indagação: como responder ao dilema, na atualidade, de limitar a
produção do sentido? Talvez seja uma tarefa impossível.
Alguns propõem a superação com textos menos vagos e ambíguos.
Linguagem mais precisa. Tal atitude, contudo, aumentaria a
complexidade do Direito no plano da expressão – S1 –, pois implicaria a
capacidade de antever todos os conflitos e condutas individuais da vida
humana. Seria um plano completo, dotado de enorme abrangência e, o
mais difícil, unívoco. Mas, sabemos, a estabilidade do sentido dos textos
(normas) não depende exclusivamente da precisão semântica. Conforme
referência a LOURIVAL VILANOVA linhas acima, o conhecimento sobre
o direito não é desinteressado: é-o com vistas à aplicabilidade.”
O direito tem a função de reduzir complexidades, não reproduzi-las, assim
como um mapa, ou uma escala geográfica, por isso as potencialidades da realidade por ele
representada se expandem, e é natural que seja assim. Do contrário haveria completa
redundância, esvaziando-se sua eficácia normativa.
De todo modo, com a necessidade de traduzir e interpretar esse grande “mapa
jurídico” que é o direito, adentramos no problema da aplicação, ou positivação, que
corresponde à gradual concretização dos antecedentes normativos abstratos e
individualização dos consequentes gerais, exigindo a análise das semioses normativas.
111
“O Direito e a inevitabilidade do cerco da linguagem.” In CARVALHO, Paulo de Barros (coord).
“Constructivismo Lógico-Semântico”, vol. I. São Paulo: Noeses, 2014, p. 81/82.
70
2. Objeto dinâmico e imediato, evento e fato: do positivismo ao pragmatismo
Ao lado do fechamento estrutural, temos a abertura semântica e pragmática do
sistema, imprescindível, como vimos, para a regulação jurídica das condutas humanas, de
modo que a internalização das influências exteriores se dá a partir de mecanismos do
próprio direito.
Ou seja, a linguagem da realidade social encontra-se em constante intercâmbio
com a linguagem do direito positivo, tratando-se, portanto, de fenomenologia onde os
chamados conteúdos exteriores ao direito são por ele internalizados, daí a pergunta: como
se dá a semiose entre o que é externo e o que é interno ao direito? E ainda, se o que é
externo está em constante expansão e evolução, onde se encontra o limite da interpretação
e internalização desses conteúdos interiores e exteriores?
Nesse sentido, temos os conceitos de objeto dinâmico e objeto imediato,
próprios da semiótica perciana, segundo a qual não existe um isolamento cognitivo entre
evento e fato, até porque, numa perspectiva comunicacional, o texto em sentido amplo
compreende e contém o texto em sentido estrito.
Desse modo, a interpretação se dá desde o começo da semiose, não
prevalecendo o dualismo segundo o qual os eventos são experimentados por meio dos
sentidos e os fatos são compreendidos mediante interpretação, numa postura que isola e
empurra os problemas da interpretação para a categoria dos eventos.
É sabido que norma não se confunde com texto, pois do contrário limitaríamos
o papel do interpretante, tornando dispensável qualquer trabalho interpretativo. Assim, a
norma é construída (e não revelada) a partir da interpretação dos textos em sentido amplo,
os quais compreendem mais do que apenas a literalidade dos textos legais.
71
Por oportuno, ao discorrer sobre a teoria dos objetos PAULO DE BARROS
CARVALHO afirma que:
“A Teoria dos Objetos reconhece que todo objeto tem sempre um lado
subjetivo, conteúdo de alguma forma subjetiva, apresentando-se,
portanto, como um dado, um elemento integrante do mundo da
consciência. Mantenhamos presente o que já foi dito: a consciência,
enquanto tal, no fluxo incessante de sua existência, dissolve-se caso não
se apresente sob alguma forma.
Creio oportuno frisar que há uma relação dialética entre sujeito e
objeto, de tal sorte que um, não sendo o outro, não existe sem o outro;
em última instância, um é pelo outro. O objeto de conhecimento, em
sentido estrito, não é a coisa concreta, sentida ou percebida como algo
existente, também chamada objeto em sentido amplo. É sempre interior.
Por isso se apresenta, invariavelmente, sob determinada forma de
consciência, como a percepção, a imagem, o conceito, etc. Transmitido
de modo diverso, o processo de conhecimento dos objetos do mundo não
se completa sem transitar, obrigatoriamente, pela subjetividade do ser
cognoscente, quer os do mundo exterior como os de seu próprio universo
interior, fazendo-se presentes em sua consciência por uma das formas
que cogitamos.
É comum a confusão entre o ‘objeto’ do conhecimento e o ‘objeto’ que
vemos ali, concretamente existente no mundo real. O que está em nossa
consciência é o conteúdo da forma, não o objeto mesmo, tomado na sua
contextura físico-material.”112
Desta feita, o que PAULO DE BARROS CARVALHO chama de objeto do
conhecimento (sem, contudo, negar a coisa ou o dado bruto), é a forma que se apresenta
em nossa consciência, através de sua apreensão por meio de um signo (como por exemplo,
a percepção, a imagem, o conceito, etc.).
Assim, segundo CLARICE VON OERTZEN DE ARAÚJO, “não é a
realidade o que conhecemos, mas somente uma parte dela; apenas a parcela que
sujeitamos à linguagem, às representações e aos conceitos.”113
Em resumo, não temos acesso direto ao que chamamos de mundo real, mas
apenas às suas representações, a partir de juízos seletivos que, portanto, constituem o
112
“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 14/15. 113
“Incidência Jurídica, teoria e crítica”. São Paulo: Noeses, 2011, p. 15.
72
objeto imediato do conhecimento, ou sua forma. Como tal, o objeto imediato remete-se ao
objeto dinâmico, este, por sua vez, jamais integralmente acessível, dando ensejo ao que
EDGAR MORIN denominou de zona de penumbra do real.
Na linha de pensamento de MORIN, o mundo das coisas é muito mais amplo
do que suas representações, por isso se fala em multiplicidade dos níveis de realidade e
multiplicidade também de realidades. E qualquer tentativa de redução dessas múltiplas
realidades não passa de mera simplificação cognitiva.
O direito positivo, na tentativa de reduzir complexidades, também promove
simplificações, representando a realidade de forma sempre e necessariamente parcial, por
isso a abertura semântica e pragmática potencializa sua vocação normativa, ao mesmo
tempo em que dificulta a compreensão do jurídico.
Os textos legais em sentido estrito, ou símbolos jurídicos, são representações
de uma realidade mais complexa, daí porque a distinção entre objeto imediato e dinâmico
deixa clara a expansividade das palavras, havendo sempre um descompasso entre ambas as
realidades, o que se evidencia na comparação dos conceitos normativos no tempo114
.
A palavra família, ou núcleo familiar, hoje não tem o mesmo significado de
antes, assim como diversos conceitos em matéria tributária, como os de extrafiscalidade,
114
“O fluxo do acontecer histórico é imprevisível e suas incontidas mutações acrescentam uma dificuldade
enorme para o fim de gerar modos de controle e nutrir expectativas de padronizar conteúdos. Daí por que o
sistema jurídico, abrindo mão das ocorrências efetivas, se atém a formas de interação, a pautas de
comportamento com referentes semânticos genéricos, providência que é sempre um posterius em relação ao
fato social objeto das normas e que provoca o inevitável descompasso entre os dois planos: o da realidade
social e o do ordenamento jurídico que sobre ela incide, numa ‘circularidade’ que chama a atenção do
observador e passa ser um dos traços bem característicos da concepção pós-moderna do direito. (...) Seja
como for, é naquele vazio cronológico que acontecem as coisas, se instalam as novidades, surgem costumes
auspiciosos ou preocupantes, propostas de modificações pela via da instauração, da restauração, da
revolução (...). O jurista, exegeta das proporções inteiras deste todo sistemático, pela atitude cognoscitiva de
interpretação, é o ponto de intersecção destes dois mundos sígnicos: realidade e direito positivo, em toda
sua complexidade.” CARVALHO, Paulo de Barros. “Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição.
São Paulo: Noeses, 2011, p. 205/206.
73
isonomia ou equidade no custeio da previdência, faturamento, insumo, os quais vêm
sofrendo constante evolução, em especial através dos julgamentos de casos concretos.
Por essa razão, os signos transportam a forma do objeto imediato à consciência
interpretante, carregando as representações parciais do objeto dinâmico. De modo que o
objeto determina o signo, não o contrário.
Conforme LÚCIA SANTAELLA115
:
“(...) a noção de objeto dinâmico, ao pressupor a questão da percepção,
livra a semiose periceana das malhas do idealismo, sem incorrer, ao
mesmo tempo, na iminência de resvalar por um realismo ingênuo. Nessa
medida, limito-me a apontar para os aspectos mais fundamentais da
percepção, com vistas a salientar sua interdependência com os objetos
do signo. Se, de um lado, a inserção da percepção no diagrama lógico
da semiose ajuda a esclarecer a noção de objeto do signo, de outro lado,
a leitura da percepção à luz da tríade semiótica ajuda a esclarecer a
percepção ela mesma.”
Portanto, analisando o papel do objeto dinâmico na semiótica, PEIRCE
sustenta que os elementos de todo conceito entram no pensamento lógico através dos
portões da percepção. Justifica-se, então, o paralelo com a abertura semântica e pragmática
do sistema jurídico, responsáveis pela atualização e evolução do direito.
De qualquer modo, a diferenciação entre dado (ou evento), fato e fato jurídico
é questão que vem desde a filosofia, passando pela teoria do conhecimento e, como não
poderia deixar de ser, também influencia a teoria geral do direito. Não há dúvidas que
existe diferença entre tais conceitos, seja na linguística, na lógica, na semiótica ou na
física, de modo que o fato é mera representação do evento, uma versão.
Não obstante, não se nega o acesso aos eventos, ainda que de forma sempre
incompleta e imparcial, como não poderia deixar de ser. Os fatos são relatos linguísticos
115
“O que é semiótica”. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 48.
74
dos eventos e, numa visão comunicacional do direito, permitem a reconstrução,
recomposição e atualização dos dados da experiência.
Com efeito, TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR faz a distinção entre
língua-normativa e língua-realidade, nos seguintes termos:
“(...) essa realidade-língua (LR), para o jurista, aparece como de fato
acontece: é fato que ocorreu urgência, é fato que foi expedida uma
medida provisória pelo Presidente da República. Que significa fato?
É preciso distinguir entre fato e evento. A travessia de Rubicão por
César é um evento. Todavia, ‘César atravessou o Rubicão’ é um fato.
Quando, pois, dizemos que ‘é um fato que César atravessou o Rubião’,
conferimos realidade ao evento. ‘Fato’ não é, pois, algo concreto,
sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação
existencial como realidade. (...)
Pois bem, quando interpretamos, analogamente com o que sucede na
tradução, realizamos a passagem de uma língua, a das prescrições
normativas (LN), para outra língua, a da realidade (LR). Note que
estamos falando de interpretação de normas e não de verificação de
fatos. Saber se ocorreu ‘urgência’ ou ‘se o Sr. J. bate na mulher’ é um
problema de verificação, interno à língua-realidade (LR). A
interpretação hermenêutica de que estamos tratando cuida da passagem
de (LN) para (LR), portanto, é uma questão interlinguística.”116
Da mesma forma, PAULO DE BARROS CARVALHO distingue linguagem
social e linguagem do direito positivo, com a particular diferença que identifica, na
linguagem social, os eventos referidos pelo direito positivo. Vejamos:
“Com efeito, se as mutações que se derem entre os objetos da
experiência vierem a ser contadas em linguagem social, teremos os fatos,
no seu sentido mais largo e abrangente. Aquelas mutações, além de
meros “eventos”, assumem a condição de “fatos”. Da mesma forma,
para o ponto de vista do direito, os fatos da chamada realidade social
serão simples eventos, enquanto não forem constituídos em linguagem
jurídica própria.
(...)
Essa elaboração de linguagem a que se dedica o legislador tem um
objeto dinâmico, que é o fato social, isto é, aquele seguimento linguístico
assim qualificado pela comunidade. O objeto imediato, para o direito,
será o modelo do enunciado conotativo formado na norma geral e
116
“Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação”, 5ª edição. São Paulo, Atlas, 2007, p. 280.
75
abstrata e todos os enunciados protocolares que puderem subsumir-se na
ambitude do conceito legislado.”117
Apesar de aparentemente limitar o objeto dinâmico do direito aos fatos, é o
próprio PAULO DE BARROS CARVALHO que inclui os eventos na composição
normativa do sistema jurídico ao sustentar, em diversas passagens, a concepção ampla dos
textos no contexto comunicacional do direito, à medida que o sistema social também é um
sistema comunicacional de nível objeto, sobre o qual atual o direito positivo118
.
Até porque, a experiência colateral do intérprete, vale dizer, o contexto de
qualquer interpretação, integra e limita a atividade interpretativa, condicionando os
axiomas da inesgotabilidade dos sentidos e da intertextualidade.
Em matéria tributária, os eventos (objeto dinâmico) seriam, por assim dizer, as
atividades econômicas desenvolvidas pelas empresas, como por exemplo, a circulação de
mercadorias, a tradição de bens e produtos, a industrialização, o transporte (rodoviário,
marítimo ou aéreo), a prestação de serviços, etc. Já os fatos (objeto imediato) estariam
parcialmente representados nos signos dessas atividades, seja através da contabilidade, da
documentação comercial ou fiscal, do pagamento do preço, enfim, seria a linguagem da
facticidade social, contábil, econômica, financeira, e assim por diante.
E, transitando de uma postura positivista para uma perspectiva pragmatista, não
há que se limitar o objeto dinâmico do direito aos relatos dos fatos sociais, sob pena de
aprisionar e impedir a evolução dos conceitos jurídicos. É extremamente relevante, então,
incluir os eventos, em toda sua profundidade e complexidade, na semiose normativa do
direito, sempre com a ressalva de que jamais serão integralmente conhecidos.
117
“Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência”, 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 105 e
110. 118
“O direito positivo, enquanto camada de linguagem prescritiva, se projeta sobre o contexto social,
regulando as condutas intersubjetivas e direcionando-as para os valores que a sociedade quer ver
praticados.” CARVALHO, Paulo de Barros. “Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo:
Noeses, 2011, p. 207.
76
Tanto os fatos jurídicos (retratados conotativamente nos antecedentes das
normas abstratas, ou denotativamente nos antecedentes das normas concretas), como os
fatos sociais, são apenas um ponto de vista da experiência concreta.
Veja-se, nesse sentido, a elucidativa passagem de PAULO DE BARROS
CARVALHO, segundo a qual: “Aplicando ao estudo do direito, essa distinção de origem
peirceana vai possibilitar-nos imediatamente, compreender a dualidade existente entre o
fato social, que já é um recorte promovido pela linguagem relatora do correspondente
evento, e o fato jurídico, nova incisão feita por outra linguagem e que opera sobre o
primeiro recorte.”119
Por essa razão, a semiose jurídica absorve no interior do direito uma
multiplicidade de realidades nunca inteiramente conhecidas, mas permanentemente
pressupostas, sempre em busca de uma finalidade: a segurança jurídica concreta. A
ordenação do universo jurídico, desta feita, ocorre através da relação do interpretante com
o objeto (dinâmico e imediato), através do signo. Veja-se a representação:
Nesse sentido, o objeto tem uma relação imediata com o signo e mediata com o
interpretante. Ou, em outras palavras, o interpretante é imediatamente determinado pelo
signo e mediatamente determinado pelo objeto.
119
Obra citada, p. 111.
Interpretante
Signo Objeto
Imediato
Objeto
Dinâmico
Eventos
Fatos
77
É por isso que, de alguma forma, se atribui normatividade ao preâmbulo da
Constituição Federal, às exposições de motivos das leis, às ementas dos julgados ou
mesmo às súmulas persuasivas de jurisprudência dominante, na medida em que remetem
ao contexto comunicacional do direito, à sua enunciação, permitindo o ingresso do receptor
da mensagem prescritiva ao conteúdo transmitido120
.
Com efeito, assim se torna possível compreender a normatividade do ser, dos
eventos, dos fatos sociais, econômicos, financeiros, contábeis, e assim por diante, vale
dizer: não se tratam de normas jurídicas, mas determinam a sua normatividade.
Conforme insistia GERALDO ATALIBA, o reducionismo da norma ao fato
(sociologismo), da norma positiva à norma ideal (jusnaturalismo), dos valores e normas às
estruturas lógicas (logicismo), é sempre um desconhecimento da experiência integral do
direito. Voltaremos e insistiremos nesse tema no curso dos próximos capítulos.
3. Norma jurídica (ou normatividade jurídica): incidência, aplicação, confusão
Assim como divide o objeto na relação com o signo em objeto imediato
(interior ao signo) e objeto dinâmico (exterior ao signo e que decorre da experiência
colateral, ou seja, do contexto e do dialogismo), PEIRCE também divide o interpretante em
imediato e dinâmico, ou seja, a dupla determinação que se apresenta ao interpretante.
120
Segundo Paulo de Barros Carvalho: “É precisamente neste último exemplo – a enunciação pela
Assembleia constituinte do Preâmbulo e do Texto constitucional – que Kelsen trouxe a singela, porém genial
contribuição da ‘norma hipotética fundamental’, não posta, mas pressuposta, juridicizando aquele fato –
procedimento de elaboração normativa – que ficara de fora, por imprimir-lhe a feição de normatividade que
lhe faltava.” In “O preâmbulo e a prescritividade constitutiva dos textos jurídicos.” Notus 35/2015.
78
Desse modo, o signo exerce uma dupla determinação sobre o interpretante, a
primeira decorrente do próprio signo que representa o objeto (interpretante imediato) e a
segunda decorrente do interpretante desse signo (interpretante dinâmico).
Tem-se, ainda, que a cadeia de semioses ao longo do tempo é produzida por
novos interpretantes, sempre na busca de um maior conhecimento do objeto investigado,
tratando-se, nesse sentido, de séries que buscam o interpretante final.
A norma jurídica, portanto, é o produto dessas séries de interpretantes,
resultado de uma multiplicidade conformativa que toma os enunciados conotativos das
hipóteses abstratas, os enunciados factuais dos casos concretos e, ainda, o contexto
determinado pelas experiências colaterais em relação com o objeto dinâmico.
Assim, o contexto é externo ao interpretante, mas faz parte da compreensão do
signo, constituindo, assim, um pré-requisito para permitir a construção de qualquer
significação de sentido, de qualquer norma jurídica.
A partir desses referenciais iniciais, coloca-se a questão da incidência e
aplicação da norma jurídica, e o debate entre as teorias declarativistas e constructivistas.
No primeiro caso, a incidência da norma se daria de forma automática e
infalível, como se houvesse um conceito ontológico de norma jurídica (ou como se o
conceito de direito fosse natural), enquanto a aplicação, num segundo momento,
corresponderia apenas ao ato de declarar o fenômeno natural da incidência.
No segundo caso, a partir do fenômeno da linguagem (simbólica) e do papel
imprescindível do interpretante na construção da norma jurídica, não há que se separar
incidência de aplicação e, com isso, a incidência da norma ocorreria no exato momento da
aplicação (conversão dos eventos em linguagem competente, ou internalização dos eventos
pelos mecanismos próprios do direito positivo).
79
Veja-se, contudo, que ambas as posturas não negam o papel do interpretante na
semiose jurídica, muito menos a normatividade dos eventos, da linguagem social,
econômica, contábil, financeira e assim por diante. O que se dá, apenas, é um isolamento
temático na análise do papel do interpretante e da questão do ser e dever-ser.
Fique claro, desde logo, que tais oposições ou aproximações estão longe de
uma concordância na dogmática jurídica. De todo modo, fazendo uma aproximação, quer
nos parecer que a proposta de declarativista da incidência automática e infalível assim se
daria enquanto forma jurídica (operação lógica), e, com isso, estaria alinhada com a
perspectiva da homogeneidade sintática do ordenamento jurídico.
Por outro lado, da mesma maneira o próprio constructivismo sustenta que a
incidência é uma operação lógica (não cronológica) de subsunção, portanto igualmente se
utiliza dos instrumentos da lógica dedutiva121
e, com isso, também se alinha à
homogeneidade sintática do ordenamento, ao mesmo tempo em que nega o caráter
declaratório da atividade interpretativa de incidência/aplicação.
Ou seja, adota-se o conceito lógico de derivação, que se refere aos
instrumentos introdutores de normas jurídicas, o qual não se estende às normas
introduzidas. A interpretação abrange tanto o processo como o produto e, por isso, não se
pode equipará-la a uma máquina de impressão pautada na causalidade absoluta, como se
houvesse uma dedução automática e infalível entre causa e efeito.
Com a compreensão de que o contexto do ser (objeto dinâmico determinado
pela experiência colateral) integra a normatividade do dever-ser, parece-nos que há um
deslocamento ou uma inversão do problema posto, que deixa de contrapor positivismo e
121
Onde então o evento seria dotado de regularidade, movimentando-se através de padrões matemáticos,
razão pela qual o fato, representando-o mecanicamente, esgotá-lo-ia numa fórmula lógico-subsuntiva.
80
antipositivismo, ou jusnaturalismo, para então se preocupar com a fenomenologia jurídica,
assim determinada pelas semioses do direito.
No declarativismo a incidência se daria no plano do ser (intérprete não
autêntico) e a aplicação no plano do dever-ser (intérprete autêntico); no constructivismo,
tanto incidência como aplicação se daria apenas no dever-ser (intérprete autêntico) 122
.
Com efeito, o embate entre as duas teorias é normalmente colocado da seguinte
forma: a interpretação independeria da atividade humana e seria limitada a um exercício
meramente declaratório ou, pelo contrário, seria desempenhada pela linguagem do sujeito
competente e teria um papel construtivo do direito?
Mas, reformulando a questão, proporíamos o seguinte: como é compreendida a
normatividade jurídica em sua semiose ser e dever-ser (objeto dinâmico e imediato)? E,
assim, a incidência não seria automática e infalível por que há um isolamento semântico e
pragmático, ou um isolamento apenas estrutural da norma jurídica?
Reformulada a questão, o que sustentamos é que não existe automaticidade e
infalibilidade na incidência, mas não porque haveria apenas e tão somente um isolamento
estrutural da norma jurídica (homogeneidade sintática), senão também porque, ao lado
disso, há um constante e indispensável intercâmbio entre ser e dever-ser, numa postura
aglutinante que impõe a abertura semântica e pragmática.
Em outros termos, não é possível adotar padrões matemáticos de completa
certeza na regulação das relações intersubjetivas, numa racionalidade lógico-dedutiva
(inferência dedutiva) a partir de abstrações formalizadoras. Negamos a incidência
122
Retomando os conceitos, de acordo com Kelsen existem duas espécies distintas de interpretação: a
interpretação do direito pelo órgão credenciado que o aplica (autêntica), e a interpretação do direito que não é
realizada por um órgão jurídico credenciado pelo direito (não autêntica). Mas ainda assim reside a dúvida em
saber o que diferencia ambas as atividades interpretativas, a linguagem competente ou a forma de uso?
81
automática e infalível, portanto, não por conta de uma mera dicotomia linguística, senão
pela superação de um dualismo cartesiano que exige uma postura aglutinante.
Ou seja, de acordo com as premissas em que temos insistido, não há que se
separar os momentos da incidência e da aplicação, pois implicaria um incorreto e
distorcido dualismo cartesiano onde a incidência comporia o reino do pensamento e a
aplicação o reino do corpo, limitando a atividade do pensamento e do interpretante.
Por essa razão, reiteramos, a incidência da norma jurídica é resultado de uma
multiplicidade conformativa também determinada pelo contexto e pelas experiências
colaterais que integram a complexidade do objeto dinâmico, daí a relevância, cada vez
maior, dos julgamentos dos casos concretos.
Em esclarecedora passagem, assim se manifesta EROS ROBERTO GRAU:
“Interpretação e aplicação consubstanciam um processo unitário
(Gadamer), superpondo-se.
Assim, sendo concomitantemente aplicação do direito, a interpretação
deve ser entendida como produção prática do direito, precisamente
como a toma Friedrich Muller: não existe um terreno composto de
elementos normativos (= direito), de um lado, e de elementos reais ou
empíricos (= realidade), do outro.
Vou repetir, mais uma vez: a norma é produzida, pelo intérprete, não
apenas a partir de elementos colhidos no texto normativo (mundo do
dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela
aplicada, isto é, a partir de dados da realidade (mundo do ser). (...)
Logo, o que incisivamente deve aqui ser afirmado, a partir da metáfora
de Kelsen, é o fato de a ‘moldura da norma’ ser, diversamente, moldura
do texto e moldura do caso. O intérprete interpreta também o caso,
necessariamente, além dos textos, ao empreender a produção prática do
direito.”123
E nas palavras de THOMAS DA ROSA DE BUSTAMENTE124
:
“Apesar de Hart se ter mantido positivista por toda sua vida, outros
juristas, como Dworkin e MacCormick – no mundo do common law – e
Alexy e Peczenik – no Direito continental –, perceberam que nenhuma
123
“Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito.” São Paulo: Malheiros, 2002. 124
“Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais” São Paulo: Noeses,
2012, p. 251.
82
teoria positivista pode ser adequada para entender a natureza do Direito
a partir do momento em que abandonamos a perspectiva do observador.
O Positivismo não basta mais enquanto teoria jurídica, porque ele não
leva em consideração o aspecto ideal do Direito (as ideias de correção,
justiça, razoabilidade) e advoga uma separação a priori entre Direito e
Moral, que não corresponde à prática de desenvolvimento do Direito em
sociedades relativamente avançadas. Parece mais plausível que, apesar
de o Direito e a Moral poderem ser conceitualmente diferenciados, haja
uma mútua dependência entre ambos. A Moral necessita do Direito para
superar sua indeterminação cognitiva; e o Direito necessita da Moral
para legitimar suas decisões.”
De tudo isso, podemos dizer que o ponto de vista adotado para o estudo da
incidência acaba influenciando e obscurecendo nossas conclusões, de modo que, para o
intérprete autêntico, incidência e aplicação se encontrariam no mesmo átimo; para o
intérprete não autêntico, vislumbra-se a formulação, construção e incidência de normas
jurídicas independentemente de sua aplicação. Vemos, então, que a posição e intenção do
intérprete na interação com o fenômeno passou a ser determinante na construção do objeto,
por isso a relevância da complementariedade.
De maneira que, no primeiro caso (teoria declarativista), teríamos incidência-
prescritiva, enquanto no segundo (teoria constructivista) incidência-descritiva, em ambos
havendo o fenômeno interpretativo operando de forma dialógica e complementar no
conjunto do plano comunicacional que forma os textos normativos (texto em sentido
amplo125
). Assim, é possível conciliar os discursos declarativistas e constructivistas.
125
Lembramos que os quatro subsistemas do processo gerador de sentidos que compõem a interpretação,
também são constitutivos do texto em sentido amplo. E a enunciação dos textos, em que pese figurarem
como fontes, também possuem normatividade.
83
PARTE II
SISTEMA STARE DECISIS E A INCIDÊNCIA DOS PRECEDENTES
Capítulo 4. Conceitos fundamentais
Dentro desse contexto de valorização de precedentes, racionalização do
contencioso e mudanças na compreensão do fenômeno jurídico, passamos a conviver, em
número crescente, com institutos próprios do regime jurídico da common law126
, embora
impropriamente apropriados pelo nosso sistema codificador.
É nesse ambiente que analisaremos, mais à frente, a fenomenologia de
formação da coisa julgada e incidência dos precedentes, em particular no que diz respeito à
rescisão em matéria tributária.
Não obstante, desde já se percebe que a análise crítica dos precedentes sempre
foi conduzida a partir da Constituição, ou em nome da Constituição e da segurança
jurídica, o que, com a valorização e normatividade dos precedentes, impõe que sua análise
seja realizada a partir dos próprios precedentes. Ou seja, ao invés de confrontar os
precedentes com a Constituição, passa-se a confrontá-los com eles mesmos, obviamente
sem descuidar e sem abandonar as diretrizes constitucionais.
126
Destacando as diferentes origens e culturas do regime common law, Lenio Streck aponta que: “o conflito
que, como se viu, atravessou décadas e décadas, não foi estéril, uma vez que deu à common law americana
características próprias e particulares em confronto com a common law inglesa. O direito americano
evoluiu sob a influência de fatores próprios, e é profundamente diferente do tipo inglês. Os próprios
conceitos tornaram-se diferentes, e os dois direitos já não se identificam pela sua estrutura. Não se deve,
contudo, exagerar nas diferenças. (...) O direito, tanto para o jurista inglês como para o americano,
desenvolve-se sob a forma jurisprudencial. Os juristas desses países têm as regras de direito produzidas pelo
legislador (statutes) como algo ‘anormal’ no sistema. De qualquer maneira, tais regras (statutes) são
sempre mais bem assimiladas depois de devidamente interpretadas pelos tribunais, mormente se se tratar do
direito norte-americano. Quando não existe precedente, diz-se que there is no law on the point, mesmo que
84
Imprescindível, portanto, compreendermos a linguagem e a extensão dos
conceitos e ferramentas que, direta ou indiretamente, passam a ser utilizadas no CPC/2015,
como overruling e distinguishing, dentre outros tão presentes num sistema stare decisis.
1. O sistema stare decisis: precedente como fonte do direito?
Quando falamos em common law e stare decisis, duas ressalvas iniciais se
fazem necessárias: (i) não se tratam de termos sinônimos, na medida em que um regime
civil law também pode fazer uso do sistema stare decisis, assim como um regime common
law igualmente pode ser altamente codificado; e (ii) não há uma acomodação ou
sobreposição do regime common law em relação ao nosso sistema jurídico, mas sim uma
adaptação evolutiva de nossa prática jurídica, que precisa ser devidamente compreendida.
Segundo LUIZ GUILHERME MARINONI127
:
“Da relação entre a natureza constitutiva da decisão judicial e o stare
decisis formaram-se três mitos: i) o common law não existe sem o stare
decisis; ii) o juiz do common law, por criar o direito, realiza uma função
absolutamente diversa daquela do seu colega do civil law; e iii) o stare
decisis é incompatível com o civil law.”
Em grande síntese, stare decisis é expressão designativa dos sistemas jurídicos
integrados por um conjunto de ferramentas que procuram valorizar e compreender a
fenomenologia normativa a partir dos precedentes judiciais, não detendo, portanto,
pertinência exclusiva às culturas common law128
.
exista uma lei que preveja a situação sob análise.” STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição constitucional e
decisão jurídica”, 3ª edição. São Paulo: RT, 2013, p. 375. 127
“Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 25. 128
“Lembre-se que, embora os precedentes tenham sido fundamentais para o desenvolvimento do common
law, o stare decisis – isto é, a eficácia vinculante dos precedentes – tem sustentação especialmente na
igualdade, na coerência e na estabilidade da ordem jurídica e na previsibilidade. Ainda que seja costume
pensar o stare decisis como aspecto indissociável do common law, a verdade é que o primeiro surgiu no
85
Ao apontarmos para uma evolução da nossa prática jurídica, nos referimos às
mudanças promovidas tanto na legislação processual como, consequentemente, na forma
de compreensão do fenômeno jurídico, onde então o direito legislado passou a conviver
com o direito jurisprudencial, com os costumes e com os valores, e então os conceitos
legais passaram a se descolar dos enunciados prescritivos gerais e se aproximar de uma
prática judicante (mudança intercalar de preponderâncias), o que se evidencia, por
exemplo, quando observamos as discussões sobre o chamado ativismo judicial.
Desse modo, não se trata de mudança promovida ou imposta a partir da
substituição dos paradigmas teóricos (superação pura e simples de um sistema lógico-
dedutivo, baseado na subsunção, para um sistema jurídico-discursivo; ou substituição do
regime civil law por um common law), mas sim mudança do objeto, com a valorização dos
precedentes pautando uma nova racionalidade, chamada stare decisis, o que exige, da
mesma forma, novas ferramentas para aproximação e explicação do fenômeno129
.
Feitos esses esclarecimentos, voltemos ao problema do precedente como fonte
do direito, questão pertencente à filosofia do direito130
e sobre a qual gravita as oposições
entre civil law e common law, e então perceberemos que se trata de um dilema semântico
que não impede a devida integração do sistema stare decisis ao nosso sistema codificador.
Não iremos promover uma análise comparativa entre os regimes anglo-saxãos
e romano-germânicos, cujas origens e traços característicos já foram abordados, de algum
modo, em tópicos anteriores. Não obstante, cumpre observarmos que as experiências
curso do desenvolvimento do segundo para, sobretudo, dar segurança às relações jurídicas.” (MARINONI,
Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 15). 129
“A idealização/moralização do Direito induz, como veremos logo a seguir, a uma mudança na
autocomposição tanto da teoria jurídica quanto da filosofia do Direito.” (BUSTAMENTE, Thomas da Rosa
de. “Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo:
Noeses, 2012, p. 166). 130
À filosofia do direito cabe estudar e responder o que é o direito, como ele pode ser descoberto, conhecido
e consultado.
86
concretas desses diferentes regimes acabaram gerando intercâmbios evolutivos com
mútuas influências que, hoje, não admitem um isolamento estrutural.
As escolas positivistas e o civil-law, portanto, atualmente estão altamente
influenciadas e interessadas por mecanismos tipicamente anglo-saxãos, dentre os quais a
doutrina dos precedentes, a partir de uma cultura que lhes passa a outorgar papel criativo
no direcionamento das condutas intersubjetivas131
.
Dentre os aspectos fundamentais que marcam a teoria positivista do direito,
tem-se, segundo BOBBIO132
, o tema das fontes do direito, inserido na teoria da legislação
como fonte preponderante do direito.
Assim, ao invés do ideal jusnaturalista de um direito racional e universalmente
válido, onde o dever-ser provém do ser, com a codificação o que se deu foi o isolamento
valorativo do mundo do dever-ser, inacessível a partir do ser. De forma paradoxal, mais do
que distanciamento o que se viu com o positivismo foi uma aproximação, na tentativa de
impor o ideal de um direito racional e universalmente válido e, com isso, substituiu-se a
racionalidade universal do ser pela racionalidade universal do dever-ser.
Ocorre que com a evolução da complexidade social no mundo pós-moderno,
surge o pluralismo jurídico caracterizado pelo pensamento não isolante, apresentando-se
como alternativa à concepção de que as fontes normativas seriam somente de natureza
legislativa e que, portanto, não haveria margem criativa no ato jurisdicional.
131
Como já destacamos, cumpre reiterar que o sistema stare decisis revela uma multiplicidade conformativa
até mesmo nos regimes da common law, conforme se percebe nos diferentes contornos recebidos na prática
americana e inglesa. Conforme observa Marinoni, “o termo stare decisis significa tanto a vinculação, por
meio do precedente, em ordem vertical (ou seja, como representação da necessidade de uma Corte inferior
respeitar decisão pretérita de Corte superior), como horizontal (a Corte respeitar decisão anterior proferida
no seu interior, ainda que a constituição dos juízes seja alterada). (...). Em outra senda, há aqueles que
optam por distinguir o termo stare decisis de precedent (...).” “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 25. 132
“O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito.” São Paulo: Ícone, 1995.
87
Assim, admitida a natureza criativa do juiz, responsável que é pela atualização
dos conteúdos legislativos, o que temos, em verdade, é uma relação complementar das
fontes normativas (tais quais originariamente concebidas no positivismo jurídico), e que
leva em consideração a conjugação dos dois eixos de organização da linguagem jurídica: o
eixo paradigmático e o eixo sintagmático.
Desse modo, as fontes legislativas operam no eixo paradigmático, ou seja, em
ausência, enquanto as fontes jurisdicionais operam no eixo sintagmático, vale dizer, diante
dos casos concretos, portanto em presença, podendo também se expandir a partir da
generalização, projetando-se para o futuro, para o eixo paradigmático.
Assim se conforma a virtualidade e a concretização das fontes normativas,
ambas se projetando, de diferentes maneiras, para as relações sociais, o que ficou claro
quando tratamos dos conceitos de objeto dinâmico e objeto imediato (Capítulo 3, item 2).
A dinâmica social permeia a regulação das condutas, sendo objeto tanto da
fonte legislativa como da jurisdicional, porém possuindo status ontológicos diferenciados,
pois operam em graus diferentes de complexidade (multiplicidade dos níveis de realidade).
Portanto, a partir do estudo das fontes do direito, e com o auxílio dos conceitos
de enunciação, verificamos que tanto as leis como a jurisprudência integram o direito
positivo, mas ao mesmo tempo, ambas as enunciações possuem normatividade jurídica.
A enunciação normativa (fonte) produz os enunciados prescritos que integram
o direito. Os enunciados prescritivos dividem-se em enunciação-enunciada e enunciado-
enunciado, os quais compõem o documento normativo. Da enunciação-enunciada
construímos uma norma jurídica concreta e geral (o veículo introdutor tanto da lei como do
precedente); e a partir dos enunciados-enunciados construímos as demais normas que
compõem o conteúdo da lei, podendo ser gerais e abstratas, individuais e concretas, etc.
88
É nesse sentido, da mesma forma como hoje se entende a fonte legislativa, que
podemos compreender o precedente como fonte do direito, ou seja, direito produzido pelo
órgão jurisdicional, em que pese a classificação dogmática que separa fonte formal de
fonte material, misturando o conceito de veículo introdutor, o que acaba por confundir e
prejudicar o estudo das fontes.
1.1. Decisão, jurisprudência e precedente
Ao analisarmos os elementos centrais que caracterizam o sistema stare decisis,
acabamos nos deparando com uma diversidade classificatória que por vezes prejudica a
compreensão do tema, de modo que decisão, jurisprudência e precedente são
constantemente referidos como sinônimos.
Por essa razão, quando falamos em criatividade do direito pela fonte judicial,
devemos questionar quais manifestações judiciais e em que extensão produzem tal efeito
criativo, nesse sentido normativo que nos vêm à mente.
Desde logo, como decorrência dos títulos anteriores, deixemos claro que toda
manifestação jurisdicional, em especial de mérito (portanto compositiva do conflito de
interesses submetido à apreciação do órgão judicial), produz direito positivo e possui uma
multiplicidade conformativa que se projeta de diferentes maneiras para as legítimas
expectativas futuras, gerando padrões de conduta.
Com efeito, atualmente os critérios contábeis de avaliação de riscos
contingenciais ativos e passivos (provável, possível e remoto) impõem a avaliação, de
89
diferentes maneiras, das diversas formas de manifestações jurisdicionais. Ou seja, a
gradação de riscos, hoje, em grande parte é determinada pelas orientações jurisprudenciais.
Dito isso, em primeiro lugar não podemos confundir o veículo introdutor da
enunciação judicial com o seu conteúdo material (sua normatividade). Desse modo, todo
conteúdo jurisdicional é a expressão de um ato de decisão que pode adotar diferentes
formas jurídicas (liminar, sentença, acórdão, etc.).
Nesses termos, podemos afirmar que decisão compõe o gênero, cujas espécies
são determinadas e conformadas a partir dos diferentes veículos introdutores, sem que
necessariamente carreguem diferentes conteúdos materiais. De modo que, um mesmo
conteúdo jurisdicional pode apresentar-se sob diversas formas jurídicas.
Assim, as espécies decisórias ora são determinadas pelo momento de sua
produção, ora pelo grau hierárquico de sua fonte, ora pelo procedimento ou rito adotado,
enfim, existe uma multiplicidade conformativa do gênero decisão, sendo precisamente a
partir daí que o sistema processual (sistema secundário) elege e impõe as diferentes
extensões e cargas normativas (eficácia erga omnes ou inter partes; vinculante, persuasiva
ou de persuasão especial).
Por outro lado, ao nos referirmos à jurisprudência, estamos tomando certo
conjunto de elementos da classe decisão, formado particularmente por um universo
indefinido de manifestações jurisdicionais provenientes dos tribunais e veiculadas por
acórdãos (ou seja, decisões judiciais colegiadas)133
.
133
Há quem utilize o termo jurisprudência em um sentido amplo, para designar o conjunto de decisões
judiciais colegiadas, e também em um sentido estrito, para se referir às orientações firmes no mesmo sentido,
mas ainda assim fica em aberto o que se considera por decisões firmes.
90
Não se trata, portanto, de um conceito do direito positivo, até porque
encontramos 12 (doze) correspondências o termo jurisprudência no vigente CPC/1973 e 10
(dez) no CPC/2015, todas sem qualquer conteúdo definitório.
Assim, apesar dos relevantes efeitos atribuídos à jurisprudência dominante
(como a permissão do julgamento monocrático de recursos ou sua inadmissibilidade; a
concessão de tutelas de evidência; a imposição de multas processuais por abuso de direito;
etc.), ainda assim não encontramos um conceito positivado.
Ao lado do termo jurisprudência, encontramos apenas 1 (uma)
correspondências ao termo precedente no CPC/1973, que em seu artigo 479 dispõe que “o
julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal,
será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.”
Trata-se, portanto, de um específico e limitado uso da expressão, onde então
apenas o julgamento da maioria dos membros do tribunal constituiria precedente, para fins
de uniformização da jurisprudência.
No CPC/2015, por sua vez, encontramos 6 (seis) correspondências134
que,
todavia, não definem aprioristicamente o conceito de precedente, possuindo um uso
significativamente mais ampliado, para corretamente identificar as decisões que precedem,
embasam e justificam a produção de outras.
Com isso, relativiza-se o conceito até então adotado, mas ainda assim se elege,
de maneira antecipada, as formas jurídicas capazes de produzir efeitos de precedente, ou
134
“Art. 489. (...) § 1º (...). V – se limitar a invocar precedente (...); VI – deixar de seguir enunciado de
súmula, jurisprudência ou precedente (...).”
“Art. 926. (...) § 2º - Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas
dos precedentes (...); § 5º - Os tribunais darão publicidade aos seus precedentes (...).”
“Art. 988. (...) IV – garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente (...).”
“Art. 1.042. (...) § 1º (...). II – a existência de distinção entre o caso em análise e o precedente (...).”
91
seja, há uma prévia determinação dos veículos introdutores de decisões judiciais capazes
de fundamentar e justificar, vinculativamente (segurança jurídica e isonomia através do
respeito aos precedentes), outras decisões.
É nesse sentido que o artigo 927 do CPC/2015 impõe a observância
obrigatória, pelos juízes e tribunais, das decisões do STF em controle concentrado de
constitucionalidade, dos enunciados de súmula vinculantes, dos acórdãos em incidente de
assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e de julgamentos dos
recursos extraordinário e especial repetitivos, bem como das orientações do plenário ou do
órgão especial aos quais estiverem vinculados135
.
Ou seja, trata-se da lei impondo e definindo os veículos introdutores de
precedentes, o que, como vimos, ainda limita e reduz a potencialidade de um verdadeiro
modelo stare decisis de respeito aos precedentes. Mas na medida em que o precedente,
enquanto forma, está sendo delimitado aprioristicamente pela lei, seu conteúdo jamais o
será, não sendo possível limitar a potencial expansividade normativa de um julgado
qualquer produzir efeitos de precedente, quando invocado para a solução de um caso.
Nas lições de JÚLIO CÉSAR ROSSI, discorrendo sobre a chamada força
gravitacional do precedente, temos que:
“Em verdade, a força gravitacional do precedente não pode ser
apreendida por nenhuma teoria que considere estar a plena força do
precedente em sua força de promulgação, tal qual a promulgação de
uma lei. A força gravitacional de um precedente judicial pode ser
explicada por um apelo, não à sabedoria da implementação e leis
editadas, mas à equidade, isonomia e a tão decantada segurança
jurídica, que estão em tratar os casos semelhantes do mesmo modo.
135
De acordo com Thomas da Rosa de Bustamente, tal fenômeno espelha os fatores institucionais que
influenciam a força do precedente, permitindo, a partir dessa ideia, a classificação “de acordo com a seguinte
escala de três níveis: (1) precedentes obrigatórios em sentido forte ou formalmente vinculantes (formally
binding); (2) precedentes obrigatórios em sentido frágil (not formally binding but having a force); e (3)
precedentes meramente persuasivos.” BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial.
A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo: Noeses, 2012, p. 389/390.
92
Ora, como sustenta Dworkin, ‘um precedente é um relato de uma decisão
política anterior; o próprio fato dessa decisão, enquanto fragmento da
história política, oferece alguma razão para se decidir outros casos de
maneira similar no futuro.”136
Temos, então, que o precedente seria a decisão que precede outra, portanto,
refere-se a decisões passadas, cujo objeto litigioso seria similar àquele enfrentado no
presente. Assim, uma decisão deveria ser qualificada como precedente a posteriori, ou seja,
a partir do momento em que, por sua importância ou repercussão, por sua densidade ou
fundamentação, passa a gerar expectativas normativas presentes e futuras (é isto, como
vimos, que determina a classificação de risco das contingências).
Desse modo, o que queremos dizer é que os precedentes não são fórmulas
jurídicas, não determinam o objeto, o suporte fático, mas sim o contrário, vale dizer, é o
caso que vai determinar a potencialidade normativa do precedente, o qual é eleito e
utilizado como signo da regra jurídica a partir da complexidade do objeto dinâmico.
Até porque, numa visão semiótica, o sentido da mensagem é dado pelo
receptor, que tem condições de fazer o juízo de adequação do caso ao precedente, não
sendo essa uma tarefa do emissor, quase que num exercício de futurologia, pois de acordo
com o falibilismo de PEIRCE, nosso conhecimento nunca é absoluto, mas evolui
mergulhado na contínua incerteza e indeterminação do objeto.
Nesse sentido, qualquer soma de individuais (jurisprudência) compõe um
recorte que jamais representará e esgotará a complexidade dos gerais. Veja-se:
“O falibilismo caracterizou-se como a doutrina segundo a qual o nosso
conhecimento nunca é absoluto, mas evolui mergulhado em um
continuum de incerteza e indeterminação. No continuum, qualquer soma
de individuais que componha um recorte não representará jamais uma
genuína amostra, uma vez que nenhuma fração poderá esgotar o acaso e
a diversidade latentes na continuidade. Peirce rejeitou o mecanicismo
determinista, que chamou de doutrina necessitarista. Segundo a 136
ROSSI, Julio César. “Precedente à Brasileira. A jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC”. São
Paulo: Atlas, 2015, p. 130/131.
93
formulação peirceana, a regularidade das leis é constantemente violada
(CP 6.59; 6.588).
(...)
Na concepção da semiótica peirceana, é o objeto que determina o signo,
sendo a relação entre signo e objeto o que o filósofo denominou de
fundamento do signo. Assim, nesta formulação, é a partir do suporte
fáctico que uma mente irá identificar a regra jurídica incidente, ao invés
da regra colorir o suporte fáctico, como a prancha de impressão,
automática e infalivelmente.”137
O sistema stare decisis, desta feita, impõe o peso da mensagem no receptor,
sendo ele o responsável pela identificação e convocação do precedente, de modo que o
verdadeiro caso precedente surge, portanto, prospectivamente, não retrospectivamente, de
forma degenerada, como já vimos acima e como temos caminhado, com a formação de
precedentes que já nascem com tal status.
Dentro desse cenário, mostra-se essencial identificarmos os elementos do
precedente, tendo em vista que suas aproximações ou distinções é que permitirão, ou não,
serem utilizados para a solução dos casos concretos e direcionamento das condutas futuras.
Devemos, então, analisar os “conceitos de ratio decidendi e obter dicta,
indispensáveis para a compreensão da essência dos precedentes, chegando-se, após, à
análise dos seus modelos operacionais, como o distinguishing e seus assemelhados:
técnica da sinalização, transformation, overriding e elaboração de distinções
inconsistentes. Estuda-se, ainda, o overruling, dando-se atenção ao anticipatory
overruling e os efeitos prospectivos da revogação do precedente, cuja assimilação é
absolutamente fundamental a um sistema que, dando ênfase a precedentes vinculantes,
deve se preocupar tanto com a segurança jurídica, quanto com o desenvolvimento do
direito e com a confiança justificada na ordem jurídica.”138
137
ARAÚJO, Clarice von Oertzen de. “Incidência jurídica, teoria e crítica.” São Paulo: Noeses, 2011, pp. 125
e 130. 138
MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 19.
94
Discorrer sobre stare decisis, portanto, é falar de precedentes, sua formação,
seus elementos, sua eficácia e as formas de articulação nos casos concretos.
1.2. Elementos do precedente (ratio decidendi e obter dictum)
Diante da natural ideia de que os precedentes judiciais tendem a generalizar ou
transsubjetivizar sua potencialidade normativa, temos que o ato de decidir passa a
considerar suas repercussões pragmáticas (políticas, econômicas, financeiras, etc.), sendo
então formulado prospectivamente, por isso sua particular vocação prescritiva.
Nesse cenário, são os fatos espelhados no relatório, mais os motivos ou
fundamentos determinantes (de fato e de direito) que compõem a ideia de ratio decidendi
e, assim, passam a formar o precedente e integrar sua normatividade prospectiva.
Aliás, é o próprio inciso V, do § 1º, do artigo 489 do CPC/2015 que não
considera fundamentada “qualquer decisão” que “se limitar a invocar precedente ou
enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar
que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos.”
Também o artigo 979, § 2º, dispõe que “para possibilitar a identificação dos
processos abrangidos pela decisão do incidente, o registro eletrônico das teses jurídicas
constantes do cadastro conterá, no mínimo, os fundamentos determinantes da decisão e os
dispositivos normativos a ela relacionados.”
Destacamos que o conceito de ratio decidendi, no sistema stare decisis, é fruto
de diversas teorias e não se confunde com os meros fundamentos determinantes do caso,
95
sendo algo mais amplo, integrado principalmente pelos fatos, pelas particularidades do
caso e pelo contexto interpretativo envolvido em determinado momento histórico.
Trata-se de diretriz inerente ao sistema stare decisis, não sendo possível
manusear e articular os precedentes sem a correta compreensão de seus elementos
essenciais, o que ficará evidenciado quando passarmos a analisar, mais especificamente
adiante, as alterações e repercussões desse fenômeno na coisa julgada.
Isso porque, o objeto da demanda passa por uma ampliação objetiva, que não
mais se limita apenas ao pedido e ao rígido princípio da congruência. Aliado a isso, temos
que os precedentes invocados para a solução de casos concretos compõem a
fundamentação jurídica da decisão, não o pedido.
Assim, em primeiro lugar temos uma peculiaridade intranormativa, na medida
em que os fundamentos determinantes do precedente, ao compor o caso decidendo, podem
ser úteis e relevantes para justificar um elemento não essencial, existindo, nesse caso, uma
relação complementar entre os fundamentos determinantes do caso e os obter dicta.
Nessa hipótese, trata-se de uma ratio decidendi que, quando invocada e
utilizada para a composição e resolução de um caso concreto, passa a integrar um obter
dicta, ou seja, transforma-se em um elemento não essencial139
.
139
“A razão de decidir, numa primeira perspectiva, é a tese jurídica ou a interpretação da norma
consagrada na decisão. De modo que a razão de decidir certamente não se confunde com a fundamentação,
mas nela se encontra. Ademais, a fundamentação não só pode conter várias teses jurídicas, como também
considera-las de modo diferenciado, sem dar igual atenção a todas. Além disso, a decisão, como é óbvio,
não possui em seu conteúdo apenas teses jurídicas, mas igualmente abordagens periféricas, irrelevante
enquanto vistas como necessárias à decisão do caso. (...) No que diz respeito ao último ponto, se, por
exemplo, a solução da Corte em relação à segunda questão é desnecessária, uma vez que a solução da
primeira foi suficiente para definir o caso, aquela é obter dictum e, portanto, não vincula as Cortes
inferiores. Mas há casos, nos Estados Unidos, em que a Corte considerava-se vinculada pela solução dada à
questão que não é necessária ou suficiente – em princípio um dictum –, que então é considerada uma ratio
alternativa.” (MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 220 e 244).
96
Conforme THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE, “se definirmos a ratio
decidendi como uma norma universalizável que pode ser extraída de um precedente
judicial, percebemos que na maioria dos casos se pode encontrar não apenas uma, mas
diferentes rationes decidendi, que podem ter graus diferentes de vinculatividade em casos
futuros.”140
É por isso que se mostra essencial segregar as causas de pedir (próximas e
remotas), os pedidos (mediatos e imediatos) e os fundamentos do precedente invocado
para, então, identificar as ratio decidendi e delas obter a potencialidade prescritiva, visto
que os obter dicta, ou elementos não essenciais, não possuem vocação normativa
expansiva, senão meramente persuasiva para a utilização em casos futuros.
Foi exatamente em razão da falta de diferenciação entre ratio decidendi e obter
diicta que, por exemplo, o STF julgou constitucional a revogação da isenção de COFINS,
concedida pela LC n.º 70/1991 às sociedades civis prestadoras de serviços legalmente
regulamentados, pelo artigo 56 da Lei n.º 9.430/96. A discussão tratava da possibilidade de
uma lei ordinária revogar uma lei complementar, tendo sido decidido que a LC n.º 70/1991
era formalmente complementar, mas materialmente ordinária (pois cuidava de matéria que
não estava sob reserva de lei complementar), então nada impedia que uma lei ordinária
promovesse a sua revogação.
Sob o fundamento de que a natureza da LC n.º 70/1991 não constava do
dispositivo do julgado na ADI n.º 1/DF, o STF decidiu que não se vinculava ao
entendimento que, naquela oportunidade, considerou sua natureza complementar. Veja-se:
“COFINS - LEI COMPLEMENTAR Nº 70/91 - AÇÃO DECLARATÓRIA
DE CONSTITUCIONALIDADE Nº 1-1/DF - JULGAMENTO -
ALCANCE. No julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade
140
“Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais” São Paulo: Noeses,
2012, p. 257.
97
nº 1-1/DF, o Colegiado não dirimiu controvérsia sobre a natureza da Lei
Complementar nº 70/91, consubstanciando a abordagem, no voto do
relator, simples entendimento pessoal.” (STF, Rcl 2475 AgR/MG,
Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 02/08/2007 – grifamos).
Ou seja, a insuficiente discussão sobre a ratio decidendi da ADI n.º 1/DF
influenciou decisivamente o resultado da tese sobre a revogação da isenção da COFINS,
pois não se demonstrou, analiticamente, que o entendimento sobre a natureza (material ou
formalmente complementar) da LC n.º 70/1991 seria um mero elemento não essencial para
o julgamento daquele caso específico.
Não obstante, em segundo lugar, ao compor a fundamentação jurídica da
decisão, verifica-se que não existe imutabilidade dos fundamentos determinantes do
precedente no tempo, os quais, apesar de comporem e integrarem a ideia de coisa julgada,
como veremos mais a frente, agregam e ampliam a multiplicidade do objeto dinâmico.
As cadeias de precedentes e de fundamentos determinantes, portanto, vão
atualizando os conceitos gerais e incrementando as mensagens normativas, num empenho
dialógico que, a partir da participação democrática dos atores processuais, passa a absorver
e integrar as complexidades do ser.
Nesse cenário, imprescindível conhecer as ferramentas inerentes ao sistema de
valorização de precedentes, não para reproduzi-las em nosso modelo, mas para colher os
frutos de uma cultura que necessariamente se constrói com o tempo, avaliando sua
pertinência quando da interpretação das inovações trazidas pelo CPC/2015.
98
1.3. Distinguishing (distinção), overruling (superação), drawing of inconsistent
distinctions (distinção inconsistente), sinaling (sinalização), transformation
(transformação) e overriding (adequação)141
Em primeiro lugar, observamos que qualquer tentativa de tradução dos termos
e institutos do sistema stare decisis é altamente falível, pois não há como os descolar de
suas práticas consuetudinárias, razão pela qual assim o fazemos numa tentativa meramente
assimilatória, não de acordo com um uso técnico que sequer é próprio do nosso direito.
Pois bem, além dos elementos dos precedentes, é da essência do sistema stare
decisis o raciocínio estruturado através da comparação de casos (o caso precedente com o
presente e o futuro, ou pressuposto), mediante técnicas que permitam tal dialogia.
Portanto, as duas principais ferramentas que decorrem do gênero das
denominadas judicial departures, intrínsecas a esse arcabouço de valorização dos
precedentes e baseadas em particular no regime americano, são espelhadas nas figuras da
distinção (distinguishing) e da superação ou revogação (overruling). Dizem-se intrínsecas,
até porque se referem aos deveres de congruência e fundamentação das decisões.
É, aliás, através dessas ferramentas que se contornam os questionamentos de
que a valorização dos precedentes suprimiria os graus inferiores de jurisdição, ofendendo
as cláusulas da independência, livre convicção motivada e duplo grau.
Estamos certos de que é exatamente o contrário, na medida em que a
responsabilidade das instâncias ordinárias será ainda maior, pois a elas competirá atribuir
141
Cumpre-nos desde logo destacar, para evitar tomadas de posições equivocadas, que qualquer tentativa de
exemplificação dos institutos ora analisados, a partir de experiências e julgamentos de nossos tribunais, não
deve ser compreendida de maneira rígida, senão como simples esforço didático, na medida em que existe um
natural desencaixe procedimental entre os precedentes da common law, produzidos de acordo com tais
técnicas e referenciais, e os nossos precedentes, pautados num sistema codificador.
99
os contornos fáticos e jurídicos da causa, identificando a ratio decidendi, avaliar as
consequências ou repercussões pragmáticas do caso e, motivadamente, distinguir ou
aproximar os precedentes, especialmente quando invocados pelas partes.
Ressalte-se, desde logo, que essa tarefa não é exclusivamente do juiz, pois a
democratização do processo passa a obrigar também as partes nesse empenho dialógico, o
que fica claro a partir do chamado princípio da cooperação (CPC/2015, artigo 6º).
Não basta, portanto, que as partes tragam uma série de ementas ou súmulas de
julgados para justificar ou combater as pretensões deduzidas no caso concreto, sendo
imprescindível a construção das aproximações ou distinções, ou mesmo apontar
superações de entendimentos a partir dos fundamentos determinantes.
Um parêntese se faz necessário, pois a superação (overruling) só pode ser
realizada pelo próprio órgão prolator da decisão. Não pode, desta feita, um tribunal local
alterar os fundamentos de um precedente de observância obrigatória ou mesmo persuasiva,
mas apenas promover sua distinção ou meramente apontar eventual superação.
De toda forma, a superação é ferramenta igualmente indispensável em um
sistema stare decisis, pois permite a constante adaptação evolutiva das complexidades
sociais, da solução dos casos e da estabilidade normativa, porém mediante um pesado ônus
argumentativo que deve levar em consideração os casos precedentes, os casos presentes e
as consequências para casos futuros.
Como ainda não vivenciamos um verdadeiro modelo stare decisis, tomando
conta recentemente dessa nova racionalidade normativa de valorização dos precedentes,
muitas vezes percebemos certa confusão entre os institutos, como distinção e superação, o
que é extremamente relevante em especial pelas consequências de um e de outro.
100
Na distinção, simplesmente deixa-se de observar um precedente, pois seus
contornos fáticos e jurídicos não de aproximam do caso decidendo, enquanto na superação
frustram-se legítimas expectativas normativas, impondo, eventualmente, regras de
modulação, irretroatividade e observância da boa-fé, com repercussão, em matéria
tributária, na exigência de multas punitivas, juros e demais consectários.
É o que observamos, de algum modo, na atual (re)discussão sobre o
alargamento da base de cálculo do PIS/COFINS pela Lei n.º 9.718/98, onde se decidiu o
conceito de faturamento (a tese), que equivaleria ao conceito contábil de receita bruta
(produto da venda de mercadorias e/ou da prestação de serviços), mas não se atentou para a
análise e evolução dos atos de comércio e das atividades desenvolvidas pelas empresas.
Assim, quando se pretende (re)discutir a questão em relação às instituições
financeiras, seguradoras, corretoras e locadoras de bens imóveis, fica a dúvida se o tribunal
está a distinguir situações não debatidas ou cujos fundamentos não foram contemplados no
precedente (mero distinguishing), ou se estamos diante de verdadeira superação
(overruling)142
, até porque muitas financeiras, seguradoras, corretoras e imobiliárias
tiveram decisões favoráveis transitadas em julgado com base exatamente no entendimento
então pacificado. Daí porque precisamos levar os precedentes a sério, e com eles as
técnicas de fundamentação, comparação, distinção e superação.
Seja como for, a superação ou revogação do precedente não tem, ou não
deveria ter, relação com a coisa julgada, sob pena de impedir a salutar evolução da
142
“(...) ao se admitir uma nova circunstância, ainda que não se volte a tratar da mesma questão já
resolvida pelo Supremo Tribunal Federal, afirma-se que o precedente não mais presta a definir a
interpretação da questão constitucional. Outro órgão do Poder Judiciário, que não o Supremo Tribunal
Federal, estaria a dizer que houve alteração da realidade social, etc., capaz de permitir a revogação do
precedente firmado em ação direta de constitucionalidade. (...) Não calha argumentar que, diante de nova
circunstância, não se revoga o precedente, mas apenas se diz que o precedente não se aplica a uma nova
situação. Ora, se é necessário dizer que o precedente não se aplica, há, para o efeito que aqui interessa,
revogação do precedente.” MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2013, p. 311 (grifos nossos).
101
jurisprudência. Ou seja, a coisa julgada que reveste a qualidade do precedente, e também
dos casos nele fundamentados, não constitui óbice à realização de overruling:
“(...) o que realmente obriga a tratar a revogação da decisão de
inconstitucionalidade como hipótese de superação de precedente, e não
de desconsideração da coisa julgada, é a circunstância de que, no
controle abstrato de constitucionalidade, a coisa julgada material
proporciona estabilidade à ordem jurídica e previsibilidade aos
jurisdicionados e não segurança jurídica às partes.
Acontece que a estabilidade da ordem jurídica e a previsibilidade não
podem ser obstáculos à mutação da compreensão judicial da ordem
jurídica.”143
De todo modo, tanto a distinção quanto a superação exigem a identificação da
ratio decidendi, pois, como vimos, é o enredo decisório inerente aos elementos essenciais
da decisão que possui normatividade expansiva e vinculante (se o caso).
Ao lado dessas duas ferramentas (distinguishing e overruling), e com o mesmo
objetivo de preservar a estabilidade do sistema juntamente com a evolução jurisprudencial,
o próprio modelo stare decisis, no common law principalmente americano, admite e
convive com formas alternativas de distinções e superações, sempre buscando preservar a
capacidade criativa do juiz diante da multiplicidade de realidades apresentadas no tempo.
Assim, preserva-se o desenvolvimento do direito através da extensão e
limitação dos precedentes, com a ressalva de que o juiz não pode distinguir um caso com
base em fatos materialmente irrelevantes.
Pois bem, olhando para os objetivos e finalidades presentes no precedente, ao
lado dos valores do sistema (previsibilidade e igualdade), admite-se a chamada distinção
inconsistente do precedente (drawing of inconsistent distinctions).
143
Obra citada, p. 299.
102
Dessa forma, a limitação ou extensão do precedente, analisando-se suas razões
substanciais, acabam configurando a correção ou acomodação da sua ratio decidendi. Mas
veja-se, essa acomodação apenas é possível ao se priorizar as razões do próprio precedente.
Com esse objetivo, e para evitar a revogação do precedente, aceita-se uma
distinção inconsistente, ou seja, embora a razão imediata da distinção seja a não revogação
do precedente, a sua justificativa está nos valores da estabilidade e previsibilidade.
Isso é possível, pois em alguns casos pode ainda não haver consenso ou
aprofundamento em torno da necessidade da revogação do precedente, quando então se
opta por mantê-lo em vigor até que se chegue a um juízo definitivo acerca do overruling.
Então, como não se deseja revogar e nem aplicar o precedente em sua
integralidade, promove-se, no caso em julgamento, uma distinção inconsistente para
considerar e preservar as particularidades do caso em face da potencialidade do precedente,
existindo, com isso, um desencaixe inconsistente e consciente na comparação dos casos
com o fim de não aplicar a ratio decidendi do precedente no caso concreto.
Juntamente com a distinção inconsistente, outra técnica que se situa entre a
distinção e a superação é a chamada sinalização (sinaling), hipótese em que não se ignora
que o conteúdo do precedente está equivocado ou não deve mais subsistir, mas, em virtude
da segurança jurídica, deixa de revogá-lo, apenas apontando para a sua perda de
consistência e sinalizando para sua futura revogação144
.
Ou seja, sabe-se que não é possível realizar o distinguishing no caso concreto,
ao mesmo tempo em que a revogação do precedente se mostraria danosa à segurança
jurídica, de modo que, nessa hipótese, o tribunal segue o precedente, tutelando a justificada
144
É o que de certa forma aconteceu com a já mencionada PSV 22/DF, de 15/04/09, que de algum modo
sinalizou pela superação do conceito limitado de faturamento, para então compreender a “soma das receitas
oriundas do exercício das atividades empresariais.”
103
confiança nele (precedente) depositada, mas aponta para a sua futura revogação, não
colhendo os litigantes de surpresa.
Podemos dizer, então, que a distinção inconsistente e a sinalização são técnicas
utilizadas para contornar ou reafirmar a ratio decidendi de um precedente, deixando de
aplica-lo ou aplicando-o mesmo nas hipóteses de dessemelhança.
Outra situação, porém, é a chamada transformação (transformation), situação
em que o tribunal também não realiza a superação, nem a distinção do caso sob julgamento
para deixar de aplicar o precedente, mas sim a transformação ou reconfiguração do
precedente, de sua ratio decidendi, porém sem revogá-lo.
Enquanto no overruling o tribunal expressamente anuncia a superação e
revogação do precedente, na transformação de algum modo nega-se o conteúdo do
precedente, mas deixa-se de expressar isso formalmente145
. Por isso, costuma-se
diferenciar a transformação da superação mais a partir de critérios formais:
“O resultado obtido na decisão que fez o everruling não é compatível
com o resultado do precedente revogado. Na transformation, porém,
tenta-se muitas vezes compatibilizar o resultado do precedente
transformado com o resultado alcançado no caso sob julgamento. Isso
poderia ser visto como distinção substancial entre overruling e
transformation. Acontece que esta compatibilidade é frequentemente
artificial. A compatibilidade entre os resultados obtidos no caso
transformado e no caso em que se fez a transformation é obtida somente
quando se realiza a individualização de pontos do precedente que a
antiga Corte não considerou fundamentais ou materiais.”146
145
Essa parece ser a hipótese do recente ARE 925.754, com repercussão geral reconhecida no STF e cujo
acórdão ainda não se encontra publicado. De acordo com as notícias da Corte: “O relator do ARE 925754,
ministro Teori Zavascki, observou que embora o caso dos autos, uma ação coletiva ajuizada por sindicato,
não seja idêntico ao julgado no RE 568645, que tratava de litisconsórcio facultativo, fundamentos que
embasam as duas hipóteses são semelhantes. O ministro destacou que, ao decidir no precedente, a ministra
Cármem Lúcia assentou que, no relacionamento com a parte contrária, os litisconsortes se consideram como
litigantes autônomos, dessa forma, a execução promovida deve considerar cada litigante autonomamente,
sem importar em fracionamento, pois cada um receberá o que lhe é devido segundo a sentença proferida.”
Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=306998, 30/12/2015. 146
MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 343.
104
A vantagem da transformation em detrimento do overruling está no fato de que
a primeira não importa admitir o erro de julgamento, mas apenas que a tese então
sustentada estava equivocada ou era insuficiente, podendo ou não alterar o resultado do
precedente, enquanto o segundo, necessariamente, altera o resultado do precedente.
Então, com a transformation não se perturba o precedente, mantendo-se a
segurança de sua estabilidade, carregando consigo, porém, as dificuldades de compreensão
e aplicação no julgamento dos casos futuros.
Novamente citando MARINONI, temos que:
“É preciso perceber, porém, que a transformation apenas se sustenta
enquanto a Corte ainda supõe que é necessária maior discussão a
respeito do tema jurídico. Se a questão está madura para ser definida,
achando-se a Corte em condições de definir a nova regra e revogar o
precedente, impõe-se o overruling.
(...)
Deixe-se claro que o overruling é ideal quando se tem motivo para
abandonar entendimento antes fixado. As razões que justificaram a
transformation em épocas passadas, como a tutela da estabilidade do
sistema de precedentes e a preservação da confiança nos julgamentos,
não têm motivo para prevalecer quando se tem a clareza de que o
overruling é necessário para preservar a confiança no sistema.”147
Por fim, tem-se a técnica do overriding, que não se confunde com o overruling,
não tendo relação, também, com a sinalização e com a transformação, pois com o seu uso
não se revoga o precedente, não se anuncia sua futura revogação e nem se faz a sua
reconstrução, mas apenas se limita ou restringe a potencialidade do precedente.
Aproxima-se, assim, de uma interpretação restritiva da ratio decidendi do
precedente, pois mediante o overriding se faz uma distinção parcial para deixar de aplicar
integralmente, ou em sua totalidade, o precedente.
147
Obra citada, p. 345.
105
Os efeitos do overriding são parecidos com a drawing of inconsistente
distinctions (ambos resultam na não aplicação do precedente), porém diferenciam-se na
medida em que no primeiro a distinção é consistente, no segundo inconsistente. Assim, o
overriding se baseia na necessidade de compatibilização do precedente com um
entendimento posteriormente formado, adequando-se os casos.
Note-se, portanto, que todas essas ferramentas e técnicas utilizadas no stare
decisis do regime common law, em especial americano, são fruto de uma cultura
aperfeiçoada com o tempo, e sua formulação teórica foi surgindo a partir da análise da
prática jurisprudencial de casos concretos.
Sem dúvida, muitas dessas técnicas já são plenamente identificadas, hoje, em
nossa cultura jurídica, sobretudo com a racionalização do contencioso e valorização dos
precedentes, daí porque tais contribuições teóricas, se bem compreendidas, certamente
serão muito úteis em nosso sistema jurídico.
Até porque, como visto, trata-se de desdobramentos decorrentes do overruling
e do distinguishing, hoje expressamente contemplados em nosso CPC/2015, ao lado da
preocupação com o princípio da isonomia e a manutenção da estabilidade decisória.
Capítulo 5. Semiose processual
Quando falamos em semiose processual, estamos nos referindo à ação que
relaciona a produção de decisões compositivas dos conflitos submetidos à apreciação
jurisdicional, desencadeando os chamados interpretantes, responsáveis pela construção das
significações normativas e geração de novos interpretantes, num processo inesgotável.
106
Trata-se, portanto, das cadeias normativas de interpretantes produzidas no
curso do processo, num diálogo intermediado pelos signos linguísticos, assim
compreendidos enquanto veículos que exercem a função de transportar e integrar as
representações dos diversos textos presentes no ambiente processual.
Portanto, em uma semiose processual relaciona-se objeto imediato e objeto
dinâmico, cujas cadeias de decisões vão gerando novos interpretantes e, por sua vez, novos
objetos dinâmicos e novos objetos imediatos. Ou seja, o objeto dinâmico de uma sentença
é diferente do objeto dinâmico de um acórdão de um tribunal local, que é diferente do
objeto dinâmico de um acórdão do Supremo Tribunal Federal, e assim por diante.
De acordo com a metáfora de DWORKIN, citada por BUSTAMANTE, a
atividade do juiz é comparada à do autor de um romance em cadeia, onde:
“(...) cada autor de um capítulo recebe os manuscritos escritos por uma
outra pessoa, mas segundo um amálgama de princípios coerentes que
garantem a ‘integridade’ do texto, e, após adicionar sua contribuição,
deixa sempre o final em aberto, ou seja, deixa para o autor do próximo
capítulo um certo espaço para que adicione sua contribuição.”148
Seja como for, em qualquer etapa desse romance em cadeia, a relação de um
signo com seu interpretante jamais esgota a linguagem-objeto, esta entendida como os
textos (em sentido amplo) condicionantes dos casos concretos.
Quando falamos de precedentes, portanto, devemos considerar as cadeias
decisórias que partem de um dado caso, nunca plenamente exaurido, a partir do qual se tem
a formação paulatina da ratio decidendi. Nos dizeres de MARINONI149
:
“No item anterior mostrou-se a importância e a necessidade da
interpretação da ratio decidendi e que os julgados posteriores podem
servir como instrumentos para o seu esclarecimento. Algo diferente
148
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de
regras jurisprudenciais.” São Paulo: Noeses, 2012, p. 269. 149
MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 247.
107
ocorre quando, em razão do enfrentamento de outra questão, um
julgamento ou julgamentos posteriores agregam conteúdo a ratio
decidendi, dando-lhe outra conformação. Neste caso não há
interpretação da antiga ratio, mas formação paulatina da ratio, que vai
ganhando corpo à medida que os julgamentos vão sendo proferidos.
A dessemelhança pode ser mais bem compreendida a partir da distinção
entre o ato do fotógrafo e a atividade do pintor. Embora o fotógrafo
possa retratar e dar significado peculiar à paisagem, atribuindo-lhe
interpretação, é certo que a fotografia congela a interpretação do
passado, enquanto que o pintor vai, com o passar dos dias, dando forma
e significado a sua pintura, que, no início do seu trabalho, muitas vezes
nem mesmo ele sabe que resultado ou significado terá.”
Uma Súmula do STF, por exemplo, representa a síntese de um entendimento
formado em diversos acórdãos do próprio tribunal, que por sua vez originam-se de outros
tantos acórdãos dos tribunais locais, que por sua vez decorrem de um sem número de
sentenças que, também por sua vez, dizem respeito a uma multiplicidade de casos quando
muito similares, ou verosímeis, jamais idênticos e nunca plenamente esgotados.
O mesmo fenômeno ocorre com os precedentes, que quando convocados para a
solução de um caso concreto carregam consigo, de forma indissociável, essa cadeia de
semioses que devem, necessariamente, acompanhar o processo de adequação,
impropriamente chamado de subsunção.
Desse modo, é preciso estar presente a ideia de semiose processual ao lidarmos
com o sistema stare decisis, com os precedentes, os quais, por mais longa tenha sido sua
cadeia decisória, não podem se distanciar das particularidades dos casos, pois geram
expectativas normativas que se projetam para o futuro.
Nessa ordem de ideias, tem-se que o precedente é produto de uma enunciação
coletiva, na medida em que diversos atores processuais interagem em sua formação. E,
diante da normatividade da enunciação (como já vimos nos Capítulos 3 e 4), compondo e
condicionando o contexto interpretativo, o CPC/2015 incorpora diretrizes muito claras com
108
o fim de promover e programar a necessária legitimação processual democrática que, com
a valorização dos precedentes, passa a ser imprescindível.
1. Segurança jurídica através da legitimação processual democrática
Se por um lado o modelo stare decisis passa a inverter a construção do direito,
conferindo segurança jurídica em concreto, não podemos caminhar, por outro lado, num
modelo de processo angular, onde as partes não interagem entre si, senão pela mediação de
um terceiro imparcial que concentra, na figura do juiz, a centralidade da jurisdição.
A partir de então, e isso fica expresso no CPC/2015 ao incorporar
expressamente o princípio da cooperação150
, com a fixação de eixos temáticos muito
claros, como o diálogo entre as partes, o tratamento processual paritário, a valorização do
contraditório e a não surpresa151
, o processo delimita formalmente o espaço e o limite de
construção do discurso normativo, pois materialmente estamos inseridos, reiteramos, nos
textos em sentido amplo, na indeterminação que recobre o contexto jurídico.
O necessário diálogo e integração entre ser e dever-ser não se dá, portanto, no
fundamento do sistema jurídico, mas na aplicação das normas no ambiente processual, no
150
“Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável,
decisão de mérito justa e efetiva.” 151
“Art. 7o É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades
processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo
ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.”
“Art. 8o Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum,
resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a
razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.”
“Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. (...)”
“Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual
não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva
decidir de ofício.”
109
momento da interpretação (concretizadora), como vimos em especial no Capítulo 3. Na
linha de HABERMAS, temos então que:
“A moralidade que não só defronta o direito, mas que, também, se
estabelece, por si só, no direito positivo, é, certamente, de natureza
puramente processual; ela libertou-se de todos os conteúdos
determinados de normas e sublimou-se num procedimento de
fundamentação e aplicação, de possíveis conteúdos de normas. Deste
modo, um direito processual e uma moral processual conseguem
controlar-se mutuamente.”152
É esse o percurso das teorias discursivas ou argumentativas em geral, as quais
analisam a relação entre direito e moral dentro de uma crítica ao pensamento positivista
que separa ser e dever-ser. Assim, na linha de ALEXY, os princípios e os argumentos
morais seriam abarcados pelo direito, o direito positivo seria limitado pela moral e esta
seria o fundamento de obediência ao direito, não se tratando, pois, de um retorno ao ideal
universalista do jusnaturalismo.
De acordo com BUSTAMANTE153
:
“Conjugando os elementos recolhidos das teorias jurídicas resumidas
acima, podemos, ainda que provisoriamente, concluir que o Direito é
uma ordem normativa institucionalizada (MacCormick) que se constitui
sob a forma de uma prática social (Hart) de natureza construtivista
(Rawls, Habermas, Dworkin, Alexy), interpretativa, argumentativa
(Dworkin) e não manifestamente injusta (Radbruch, Alexy,
MacCormick), pressupondo-se uma teoria procedimental da justiça
(Habermas) capaz de tornar definitivamente sedimentado o
conhecimento moral necessário para satisfazer as exigências
epistemológicas da ideia de ‘extrema injustiça.’”
Falamos, então, em legitimação processual democrática como pressuposto
indispensável desse diálogo intertextual, onde então o objeto dinâmico do direito ganharia
extensão pela construção coletiva de suas múltiplas representações. É pela legitimação
152
“Direito e moral.” Lisboa: Instituto Piaget, 1986, p. 57. 153
“Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo:
Noeses, 2012, p. 165.
110
processual democrática que deixamos de ter respostas já dadas subsuntivamente, para
então termos respostas construídas a partir dos problemas de convivência humana.
As repercussões das decisões para além dos limites subjetivos da causa, por
outro lado, imprimem e reforçam a exigência do caráter participativo no ambiente
processual, conformando uma segurança jurídica democrática e legitimamente construída.
É novamente o próprio CPC/2015 que, ampliando o instituto do amicus curiae,
das audiências públicas, da participação de terceiros nas propostas de súmulas vinculantes,
dentre outros, confirma essa preocupação pragmática das decisões e reafirma sua
legitimação a partir da participação democrática no processo, onde então a interpretação
dos textos normativos passa a ser coletiva e, de acordo com HABERMAS, todo aquele que
puder contribuir para o discurso não deve ser excluído.
Não se pode admitir, então, uma legitimidade processual democrática apenas
formal, a qual deve ser materialmente produtiva e eficaz. Conforme já nos ensinava
PAULO DE BARROS CARVALHO154:
“Implementa-se a investigação da linguagem pela verificação do plano
pragmático. E aqui radicam muitos dos problemas atinentes à eficácia, à
vigência e à aplicação das normas jurídicas, incluindo-se o próprio fato
da interpretação, com seu forte ângulo pragmático. A aplicação do
direito é promovida por alguém que pertence ao contexto social por ele
regulado e emprega os signos jurídicos em conformidade com pautas
axiológicas comuns à sociedade.”
As pautas axiológicas comuns à sociedade e que conformam a formação do
precedente, portanto, são compartilhadas e construídas pela legitimação processual
democrática. Assim se concebe, pois, a transição de uma segurança jurídica abstrata para
um modelo pautado na segurança jurídica enquanto fim. Voltaremos e insistiremos no
assunto mais à frente, no Capítulo 6.
154
“Direito Tributário, linguagem e método”, 4ª edição. São Paulo: Noeses, 2011, p. 203.
111
2. Forma versus conteúdo
O debate entre forma e conteúdo costuma ser empregado para os mais diversos
fins, como o fizemos, por exemplo, quando da análise dos conceitos de decisão,
jurisprudência e precedente, onde vimos que a forma não determina e não condiciona o
conteúdo de um precedente, o qual é reconhecido como tal a partir de sua multiplicidade e
potencialidade conformativa, quando convocado no caso concreto.
O veículo introdutor de um precedente, sua forma, produz uma norma concreta
e geral, ao mesmo tempo em que determina a extensão subjetiva e vinculativa de seus
enunciados, ou seja, do ponto de vista formal, é através do veículo introdutor que
identificamos os precedentes chamados vinculativos.
Mas, em contrapartida, é o conteúdo da forma que determina a normatividade
do precedente, que se projeta para o futuro independentemente da sua forma. Desse modo,
é a abrangência, profundidade e coerência da fundamentação do precedente que condiciona
a sua normatividade, delimitando, conforme lições de BUSTAMANTE, os chamados
fatores extrainstitucionais que determinam a força de um precedente:
“(A) Caracteres das normas jurisprudenciais – (A.1) O grau de
generalidade das normas jurisprudenciais e a força do precedente: já
advertimos que as normas empregadas na justificação de uma decisão
judicial podem variar em níveis de generalidade. Normalmente é
possível justificar essas normas gerais através das razões aduzidas pelos
juízes como base para suas decisões. (...) Quanto mais geral for uma
norma enunciada na fundamentação de uma decisão, mais ela poderá
ser útil para a solução de outros casos, e maiores serão sua fecundidade
e seu potencial argumentativo para estabelecer novos parâmetros
normativos para desenvolver o Direito e ordenar de forma coerente as
regras mais específicas de um sistema normativo; mas, por outro lado,
menos ‘in puncto’ ela será nos casos ulteriores, e por isso menor será
sua autoridade. ‘Cetaris paribus’, quanto mais abstrata é a regra
112
derivada do caso A, maior o número de casos que ela cobre, mas menor
é seu grau de vinculatividade, pois mais provável se torna o surgimento
de uma circunstância não inicialmente considerada que justifique a
formulação de uma regra excepcional. De outro lado, quanto mais
concreta seja a regra derivada de um caso A, menor o número de casos
que ela poderá cobrir, mas mais elevada será sua vinculatividade para
se decidir um caso B.”155
Portanto, é a partir da fundamentação do precedente que se desenvolve o
modelo stare decisis, que não é e nem poderia ser limitado formalmente por um rol
taxativo de veículos introdutores de manifestações jurisdicionais.
Por outro lado, o debate entre forma e conteúdo também remonta à
potencialidade normativa do precedente, compreendida e integrada pelos fatos, pelos
motivos e fundamentos determinantes, bem como pelo contexto interpretativo.
O que queremos evidenciar, com isso, é que no sistema stare decisis os fatos
não representam um mero elemento formal da decisão e do precedente, como estamos
acostumados a observar. Vale dizer, os fatos não constituem capítulo acessório do
dispositivo, senão o condicionam materialmente.
Novamente citando THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE156
:
“Enquanto o juiz do common law compararia os fatos considerados
‘materiais’ no caso tomado como precedente e no caso ainda pendente
de resolução, o jurista continental procuraria no precedente apenas um
‘pronunciamento em forma de regra [rule-like pronouncemente] com
alto grau de autoridade’: ‘Aquilo que a doutrina convencional de
common law iria desvalorizar, tratando de mero dictum, é bem recebido
precisamente porque tem sustentação independente da concreta
constelação dos fatos do caso’ [Damaska 1986:34].
De modo semelhante, Gorla relata uma tendência nos ordenamentos
jurídicos continentais – e especialmente no italiano, onde os precedentes
judiciais são registrados e divulgados de forma seletiva pela própria
Corte de Cassação, por meio de um órgão (Ufficio Massimario)
encarregado de elaborar as máximas que podem ser extraídas de cada
caso concreto [Gorla 1981-f:310] – de se adotar diferentes técnicas
155
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial. A justificação e a aplicação de
regras jurisprudenciais.” São Paulo: Noeses, 2012, p. 338 e 340. 156
Obra citada, p. 107/108.
113
interpretativas quando se busca extrair a ratio decidendi de uma decisão
judicial. (...)
Vê-se, portanto, que nas duas abordagens – a de Gorla e a de Damaska
– a distinção entre a forma de se interpretar as decisões judiciais no
common law e no civil law, para delas extrair seu elemento vinculante
(ratio decidendi), diz respeito à maior atenção que se dá aos fatos do
caso sub judice ou às regras universais que aparecem na justificação das
decisões tomadas como paradigma.”
Desse modo, amarramos o debate em torno da normatividade do precedente e
da tributação, acomodando os discursos da segurança jurídica em concreto através dos
fatos, da fundamentação e da motivação decisória, independentemente da constituição
formal de um veículo introdutor de regras vinculantes. Os precedentes vinculam sua
normatividade a partir da complexidade conformativa de sua ratio decidendi.
114
PARTE III
FUNÇÃO NORMATIVA DO PRECEDENTE, COISA JULGADA E RESCISÓRIA TRIBUTÁRIA
Capítulo 6. Valorização dos precedentes no sistema brasileiro: implicações
É a experiência jurídico-tributária, corporificada na prática jurisprudencial, já
vimos, que retrata os antecedentes normativos concretos, movimenta e atualiza as
estruturas do Direito tributário, permitindo sua evolução e constante atualização.
Em outras palavras, de acordo com a pauta teórica em que nos inserimos, a
normatividade não é simples isolamento temático do dever-ser, nem uma redução do
dever-ser ao ser, de modo que “o positivismo extremado e o antipositivismo extremado
encontram-se num dualismo abstrato, como cujo ponto nevrálgico se evidencia também
aqui no tratamento da norma jurídica.”157
Dentro de nosso eixo de pesquisa, compreendida a estrutura filosófica, os
sentidos dogmáticos comuns e as ferramentas de análise empregadas no regime common
law e no sistema stare decisis, cumpre-nos analisar, agora, o confronto entre estabilização
da coisa julgada, racionalização da jurisprudência e desestabilização das relações
tributárias continuativas no CPC/2015, acomodando o estudo sob o princípio informador
de todo o sistema: a segurança jurídica.
Numa grande síntese, o desafio que se apresenta é conciliar a tradicional
imutabilidade da coisa julgada (hoje de alguma forma pautada num positivismo
157
MULLER, Friedrich. “O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª
edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 48.
115
extremado), com a mutabilidade das relações sociais, das atividades econômicas e
financeiras que determinam os contornos das imposições tributárias (o que se poderia dizer
próximo de um antipositivismo extremado).
Para conduzir nosso empenho, elegemos dois temas entrelaçados,
eminentemente práticos e atuais dentro do que se pode chamar de função normativa do
precedente: (i) a projeção da coisa julgada nas relações jurídico-tributárias continuativas; e
(ii) a relativização da chamada coisa julgada inconstitucional.
Com esse objetivo, iniciaremos nossas análises a partir de questões
preliminares cujo campo gravitacional atrai previamente nossas atenções.
1. Normatividade jurídica e decisões normativas: os juízes criam direito?
Desde logo, em complemento ao Capítulo 4, item 1, reformulando a pergunta
que contrapõe diferentes correntes teórico-filosóficas, devemos questionar, na verdade, em
que sentido e medida os juízes criam direito, sob pena de nos inserirmos num dilema
circular meramente semântico, envolvidos numa falsa pureza ideológica158
.
158
Conforme Thomas Bustamante, citando Victoria Iturralde Sesma, existem “cinco sentidos em que a
locução ‘os juízes criam Direito’ pode ser encontrada. São eles: (1) criação em sentido estrito formal –
quando se considera uma decisão judicial como uma ‘ordem’, ‘cada decisão é um ato normativo, tal como
uma norma lei’; (2) criação em sentido material no caso concreto por meio da especificação de regras
jurídicas preexistentes – nesse sentido, parte-se da premissa kelsiana de que ‘o processo de produção do
Direito é ao mesmo tempo aplicativo e criativo.’ O juiz, ao aplicar regras gerais, cria normas mais
concretas; (3) criação em sentido material de uma regra particular no caso concreto devido à não-existência
de regras preestabelecidas – nesse sentido, o juiz reconhece uma lacuna jurídica e cria uma nova regra por
analogia para o fim de solucionar o caso concreto; (4) criação em sentido material de regras gerais – aqui,
o juiz cria regras gerais que têm um valor de precedente para casos futuros, tendo em vista uma exigência
normativa do próprio sistema jurídico (como acontece, por exemplo, em decisões interpretativas de uma
corte constitucional); e (5) expulsão de regras jurídicas do sistema jurídico – como acontece em decisões em
que o Judiciário atua como ‘legislador negativo’ e declara a invalidade – v.g., por inconstitucionalidade –
de uma regra jurídica qualquer.” BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. “Teoria do precedente judicial. A
justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais.” São Paulo: Noeses, 2012, p. 266/267.
116
Quando falamos em normatividade, não queremos propor discussões que
delimitem e definam, metafisicamente, o que é o direito, até porque, num sentido
antropogênico159
, é pela violação que muitas vezes uma norma é explicitada. Também não
pretendemos propor uma teoria da norma a par das já existentes.
Seja como for, partindo do normativismo positivista, direito é o conjunto de
normas jurídicas válidas, orientadas hierarquicamente sob um vetor comum que lhes
confere unidade, esta é a tradicional definição de um sistema puramente formal. Abre-se
aqui um parêntese, objeto de diversas disputas dogmáticas, pois sabemos que norma não se
confunde com texto, de modo que a validade (enquanto critério de pertencialidade), deve
ser compreendida a partir do texto e seus dêiticos normativos, razão pela qual não podemos
falar em validade da norma sem validade do texto160
.
De todo modo, ainda dentro desse referencial, observamos que na compostura
da norma jurídica encontramos a normatividade, que só pode ser compreendida em um
sistema que opere sob as mesmas estruturas, vale dizer, dentro de um sistema
operacionalmente fechado, só existindo força normativa a partir do fechamento estrutural
do conjunto de elementos (fechamento do ponto de vista operacional, não cognitivo).
159
Termo muito utilizado para se referir às alterações no meio ambiente derivadas das atividades humanas. 160
Não há como falarmos em norma jurídica destituída de seu plano literal de expressão, ou seja, a norma
jurídica aparece para o direito como instância lógica no momento de sua aplicação, tratando-se, portanto, da
enunciação prescritiva composta de sentido mínimo para a regulação de condutas, sendo passível ainda, de
novas semioses. A validade diz respeito tanto à norma jurídica (em sentido estrito), como ao enunciado
prescritivo, seu plano de expressão: no primeiro caso, analisa-se o conteúdo (validade material identificada
no enunciado-enunciado); no segundo caso, analisa-se a forma (validade formal identificada na enunciação-
enunciada), de modo que a invalidade da forma igualmente acarreta a invalidade do conteúdo (de modo que
não existe conteúdo válido sem forma válida). Conforme Eurico Marcos Diniz De Santi, citado por Aurora
Tomazini de Carvalho: “a validade como relação de pertencialidade pode ser aferida em todos os planos de
manifestação do direito positivo. Assim, podemos falar em: (i) validade dos enunciados (S1); (ii) validade
das proposições ainda não estruturadas (S2); (iii) validade das significações estruturadas (... S3); e (iv)
validade do sistema como um todo (S4). (...) a validade do plano do texto é condição necessária da validade
do conteúdo: atacando-se o texto, desqualifica-se a validade não só do documento, como de todo o seu
conteúdo.” “Curso de Teoria Geral do Direito”. São Paulo: Noeses, 2010, p. 705/706.
117
Operar de forma estruturalmente fechada não significa isolamento sistêmico,
até porque, como já dizia PONTES DE MIRANDA, em sua teoria sociológica, o sistema
jurídico compõe um dos processos de adaptação social.
Não há dúvidas de que o sistema jurídico é composto por normas formal e
hierarquicamente orientadas sob um vetor comum que lhes confere uniformidade
estrutural: é norma jurídica aquela estrutura incorporada pelo sistema do direito positivo.
Não obstante, diante da abertura cognoscitiva própria da norma jurídica, sua
força normativa há que ser compreendida e delimitada a partir de elementos que integram
um conjunto comunicacional mais amplo, internalizado que é pelo próprio direito.
Portanto, apesar de inseparável, norma não se confunde com normatividade: o
direito encampa a norma jurídica e sua normatividade. Os eventos e os fatos sociais não
são normas jurídicas, mas determinam a sua normatividade. A mesma coisa ocorre com os
fatos econômicos, financeiros, contábeis, e assim por diante.
As classificações das diversas ciências do Direito, aliás, só existem em razão
das suas peculiares normatividades, pois estruturalmente não se diferenciam em nada. Ou
seja, só podemos falar em Direito civil, Direito penal, Direito tributário, e assim por diante,
não em razão de alguma diferença estrutural (meramente formal) das normas jurídicas que
se ocupam, senão em virtude da normatividade que lhes imprime as específicas e
peculiares relações materiais de que tratam e regulam.
Portanto, antes de tudo são os antecedentes normativos que, conjugados com os
efeitos prescritivos da norma, determinam de qual ramo do Direito estamos a tratar.
O Direito civil se diz civil porque se ocupa das relações materiais ou
processuais relacionadas à posse, propriedade, responsabilidade, indenização, contratos
entre particulares, matrimônio, sucessão, etc.
118
O Direito penal se diz penal porque se ocupa das relações materiais ou
processuais atreladas aos comportamentos ética e moralmente relevantes do ponto de vista
das liberdades individuais, do patrimônio, da honra, etc.
Já o Direito tributário é tributário, pois diz respeito às relações materiais ou
processuais de índole econômica e financeira que repercutem nas fontes primárias de
financiamento estatal. E assim se sucede com todos os demais ramos do direito.
A autonomia do direito, desta feita, não está em negar a influência dos outros
sistemas de comunicação na sua composição normativa, numa proposta isolante entre ser e
dever-ser, como se houvesse dissociação entre norma e normatividade.
Especificamente no Direito tributário, as relações econômicas e financeiras não
são jurídicas, não são normas jurídicas, mas são normativas, possuem normatividade
jurídica, pois integram os antecedentes das normas jurídico-tributárias. Alterando-se a
realidade econômica ou financeira que integra a normatividade, altera-se a norma.
Aliás, é o próprio Código Tributário Nacional que, em seu artigo 100, inciso II,
ao dispor sobre as normas complementares em matéria tributária, admite a normatividade
das “decisões dos órgãos singulares ou coletivos de jurisdição administrativa, a que a lei
atribua eficácia normativa.” Portanto, a prática administrativa acaba delimitando as
expectativas normativas, sendo que sua observância, nos termos do parágrafo único do
mesmo artigo, “exclui a imposição de penalidades, a cobrança de juros de mora e a
atualização do valor monetário da base de cálculo do tributo”, enunciados esses que
encontravam respaldo desde a Lei n.º 4.502/64, artigo 76, em vigor até a presente data:
“Art. 76. Não serão aplicadas penalidades: (...)
II - enquanto prevalecer o entendimento - aos que tiverem agido ou pago
o impôsto:
119
a) de acôrdo com interpretação fiscal constante de decisão irrecorrível
de última instância administrativa, proferida em processo fiscal,
inclusive de consulta, seja ou não parte o interessado;
b) de acôrdo com interpretação fiscal constante de decisão de primeira
instância, proferida em processo fiscal, inclusive de consulta, em que o
interessado fôr parte;
c) de acôrdo com interpretação fiscal constante de circulares instruções,
portarias, ordens de serviço e outros atos interpretativos baixados pelas
autoridades fazendárias competentes.”
As soluções dos casos concretos, desse modo, igualmente possuem sua
normatividade, sobretudo quando adquirem expansão subjetiva, transformando-se, pois,
em decisões normativas, ou seja, atos de aplicação do direito que projetam efeitos na
regulação das condutas futuras, orientando as relações materiais e processuais. A decisão
normativa configura e conforma, a um só tempo, a norma jurídica e a sua normatividade.
É através da decisão normativa que se abre o diálogo entre os diferentes
sistemas de comunicação, confirmando-se o fechamento operativo do direito e a sua
abertura cognoscitiva, por meio dos casos concretos.
De acordo com MULLER e sua já mencionada Teoria Estruturante, podemos
dizer que a normatividade jurídica seria o efeito produzido pelo conjunto formado do
programa da norma e do âmbito da norma:
“Toda norma afeta a certos fatos do mundo social, os pressupõe, deve
confirma-los ou modifica-los. Do conjunto de fatos afetados por um
preceito, da parcela da realidade que haja de regular, isto é, do âmbito
material, extrai o preceito legal ou ‘programa normativo’, que há de ser
interpretado sobretudo mediante recursos tradicionais, o âmbito
normativo na qualidade de parte integrante do preceito. O âmbito
normativo não é, por conseguinte, um conglomerado de fatos materiais,
senão uma conexão, expressa como realmente possível, de elementos
estruturais extraídos da realidade social desde a perspectiva seletiva e
valorativa do programa normativo, e que habitualmente se encontram
pré-formados juridicamente. Com a distinção entre âmbito material e
âmbito normativo, fica descartada a ‘força normativa do fático’ como
usurpação da eficácia normativa por parte de meros fatos. (...).
Normatividade não significa aqui nenhuma força normativa do fático,
tampouco a vigência de um texto jurídico ou de uma ordem jurídica. Ela
pressupõe a concepção – a ser explicada mais tarde – da norma como
120
um modelo ordenador materialmente caracterizado e estruturado.
‘Normatividade’ designa a qualidade dinâmica de uma norma, assim
compreendida, tanto de ordenar à realidade que lhe subjaz –
normatividade concreta – quanto de ser condicionada e estruturada por
essa realidade – normatividade materialmente determinada.””161
Por tais razões, apesar das discussões que envolvem o tema, é essencial o
compromisso de vinculação das decisões aos textos jurídicos em sentido amplo, aqui se
incluindo a própria jurisprudência numa concepção lata. É precisamente assim, estamos
convencidos, que se permite a evolução do direito, preservando-se a segurança jurídica
sem incorrer em idealismo, politicismo, ou na “ditadura das togas”162
.
A força normativa das decisões, contudo, gera o antigo debate em torno da
criatividade do direito (os juízes criam direito?), discussão essa que regride às questões
fundamentais que abordam o conceito de direito e o problema da norma jurídica, desde
KELSEN e sua concepção de sistema como conjunto de ordens coercitivas163
, até HART e
suas reflexões sobre a norma secundária, dividida em norma de reconhecimento, norma de
modificação e norma de julgamento164
, e ainda MULLER e sua teoria estruturante pós-
positivista da norma jurídica. Sintética e resumidamente, o que se questiona é: “o direito
vem objetivamente da lei ou vem do que os juízes decidem que a lei quer dizer?”165
A discussão, aqui, vai um pouco mais além daquela relação complementar das
fontes normativas apontada no Capítulo 3, item 1, colocando em jogo a tradicional
concepção de que os juízes apenas aplicam a lei e questionando-se o caráter inovador,
construtor ou descobridor da norma jurídica.
161
“O novo paradigma do Direito, introdução à teoria e metódica estruturantes”, 3ª edição. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 27 e 35/36. 162
Expressão utilizada pelo Ministro Eros Grau quando do julgamento do HC n.º 95.009. 163
“Teoria Pura do Direito.” São Paulo: Martins Fontes, 2014, trad. João Baptista Machado. Nesse sentido,
remetemo-nos ao seu Capítulo V (Dinâmica Jurídica), em especial ao item 2, ‘g’ (criação das normas
jurídicas gerais pelos tribunais: o juiz como legislador; flexibilidade do Direito e segurança jurídica). 164
“O conceito de Direito.” São Paulo: Martins Fontes, 2012, tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara.
Em especial, vide Capítulos V (O direito como união de normas primárias e secundárias) e VI (Os
fundamentos de um sistema jurídico), bem como seu Pós-escrito.
121
A sentença é um ato de aplicação mecânica da lei ou, antes, é um ato criador do
direito? Essa questão nos remete à outra anterior: há uma cisão dos momentos de criação e
aplicação do direito, ou todo ato de aplicação implica uma criação? De certo modo já
analisamos essa questão quando abordamos a discussão da incidência, mas voltemos ao
tema, agora sob outras luzes.
Para tanto, encontramos os relevantes estudos de RICCARDO GUASTINI
relativamente ao direito jurisprudencial e a margem de criatividade dos juízes166
, para
quem a expressão “criação” fica reduzida a um sentido amplo e outro estrito: no primeiro
caso se equipara aplicação e criação, de modo que toda sentença é uma criação de nova
norma; no segundo caso, só há criação diante da resolução de uma antinomia ou de uma
lacuna, quando então o juiz inova, utilizando-se, por exemplo, de analogias.
Na perspectiva em que vimos insistindo, a normatividade jurídica e a decisão
normativa não isolam, abstrata e metodologicamente, ser e dever-ser, razão pela qual a
sentença (lato sensu), como ato de positivação, não pode ser compreendida como mera
atividade de aplicação, de revelação do jurídico ou de escolha do a priori, do pré-existente,
descolada do momento da criação; pelo contrário, a sentença cria a normatividade jurídica.
Em interessante abordagem sobre a evolução do caráter criativo do juiz,
MISABEL ABREU MACHADO DERZI conclui o seguinte:
“De fato, é hoje cediço afirmar o papel criador do juiz. O abandono da
caduca concepção de uma aplicação da lei, como silogismo lógico
dedutivo, em favor de uma compreensão jurídica, parece uma aquisição
definitiva. A evolução da Hermenêutica jurídica, desencadeada pelo
impulso notável que lhe deu E. BETTI167
, ao inseri-la numa teoria geral
165
ADEODATO, João Maurício. “Retórica Jurídica, Filosofia do Direito e Ciência Não-Ontológica.”, texto
inédito. 166
“Das Fontes às Normas”. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 167
“V. Interpretazione dela Legge e Degli Atti Giuridici. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1949. 367 p. e Teoria
Generale Della Interpretazione. 1 ed., Milano: Giuffrè, 1955.”
122
da interpretação e, sobretudo, pela obra não menos fundamental de
HANS GEORG GADAMER, reforçou as tendências já apontadas.
Se a interpretação do Direito, em fase inaugural, se centrava na busca
da intencionalidade primária do legislador, em uma segunda etapa
desloca-se para o exame objetivo da obra jurídica (desligada das
subjetividades de seu autor), como totalidade e sistema integrado de
normas. Finalmente, a partir da década de sessenta, coube a GADAMER
acrescentar-lhe a perspectiva histórica do intérprete. Toda
interpretação, inclusive a jurídica, é uma ‘intermediação entre a nossa
visão linguística do mundo e a linguagem do texto’.
O intérprete, em que pesem todas as pretensões à objetividade, não pode
abolir o seu pertencer ao mundo, de modo que sempre se dá uma tensão
entre o sentido original do texto e o atual. O aqui e agora ou a
historicidade do Direito, através do caso, do problema proposto, atua
continuamente no sentido da norma, no evoluir jurídico do texto. (...)
Ora, nesse processo, o de investigação jurídica, é necessário pôr em
correspondência recíproca a norma e o caso, o ser da situação concreta
e o dever ser da norma.”168
(grifamos).
É de se destacar da transcrição acima que a “interpretação é uma
intermediação entre a nossa visão linguística do mundo e a linguagem do texto”, pois é
exatamente assim que se opera a normatividade fática do caso e da sua realidade
subjacente, no contexto da norma jurídica, em sua qualidade dinâmica.
Contrapõe-se a ideia de que o juiz deve aplicar o sentido original do texto
verbal (não há, aqui, criatividade alguma no ato de decidir), ao lado da ideia de que o juiz
deve atualizar o sentido do texto (aqui, então, o juiz estaria criando o direito).
Ora, o que vemos, por exemplo, quando se estende a imunidade dos livros
também para os livros eletrônicos, ou quando se admite um núcleo familiar formado por
pessoas do mesmo sexo, e assim por diante? Não estamos vivenciando e admitindo o
caráter criativo da decisão jurídica? Parece-nos que sim.
De todo modo, o poder criativo do juiz não é absoluto, livre, rebelde, como
uma carta branca, uma espécie de vale tudo que induz a um indesejável decisionismo. Pelo
168
“Modificações da jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009, p. 93/94.
123
contrário, o poder criativo exige responsabilidade e vinculação argumentativa, na medida
em que exerce papel fundamental no direcionamento das condutas futuras.
O juiz não pode, por exemplo, definir aleatoriamente o conceito de
faturamento, razão pela qual a evolução do termo deve observar uma prática
jurisprudencial consistente. Até porque, é o próprio STF que, já há algum tempo, incorpora
a ideia de que a delimitação dos conteúdos semânticos cabe ao juiz, o qual deve considerar
os influxos e consequências provenientes dos outros sistemas de comunicação. Veja-se:
“(...) CONCEITO CONSTITUCIONAL DE RENDA (...).
Em uma série de precedentes, o Supremo Tribunal Federal examinou o
alcance semântico dos vocábulos empregados pela Constituição, para
examinar se a legislação infraconstitucional que instituía tributos se
adequava ou não aos parâmetros postos pela competência tributária.
Registro, por exemplo, as discussões acerca dos conceitos de serviços e
locação de bens móveis (ISS e locação - RE 201.465), indenização e
renda (RE 188.684, rel. min. Moreira Alves, DJ de 07.06.2002), e
faturamento e receita bruta (Cofins).
Em mais de uma ocasião a Corte afirmou que a estipulação dos
conceitos em matéria tributária não está à livre disposição do legislador
infraconstitucional. (...)
Em sentido semelhante ao que sustentou UMBERTO ECO (Os Limites da
Interpretação, 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004), a jurisprudência da
Corte aponta, em termos gerais, à existência de uma espécie de direito
do texto Constitucional à interpretação. Quer dizer, embora uma mesma
palavra utilizada na Carta Magna possa significar várias coisas, não
pode ela significar qualquer coisa ao alvedrio do legislador
infraconstitucional.
Por maior que seja a ambigüidade da expressão “renda e proventos de
qualquer natureza”, a respectiva definição não fica ao exclusivo arbítrio
do legislador complementar ou ordinário. (...)
Por outro lado, não há um conceito ontológico para renda, de
dimensões absolutas, caráter imutável e existente independentemente
da linguagem, que possa ser violado pelo legislador complementar ou
pelo legislador ordinário, dado que se está diante de um objeto cultural.
A inexistência de um conceito ontológico para lucro ou renda já foi
examinada pela Corte, por ocasião do julgamento do RE 201.465 (red.
p/ acórdão min. Nelson Jobim, DJ de 17.10.2003), precedente que versa
sobre efeito da inflação sobre as demonstrações financeiras e sobre a
fixação da base de cálculo do IRPJ, na modalidade lucro real (Leis
8.200/1991 e 8.682/1993).
Assim, nos quadrantes do sistema constitucional tributário, o conceito
de renda somente pode ser estipulado a partir de uma série de influxos
124
provenientes do sistema jurídico, como a proteção ao mínimo
existencial, o direito ao amplo acesso à saúde, a capacidade
contributiva, a proteção à livre iniciativa e à atividade econômica, e de
outros sistemas com os quais o Direito mantém acoplamentos, como o
sistema econômico e o contábil. (...).” (STF, RE n.º 582.525/SP, Repercussão Geral, Rel. Min. Joaquim
Barbosa, Plenário, DJ 07/02/2014 – grifamos).
Trata-se, portanto, de direção interpretativa que já se desenhava há algum
tempo, conforme se verifica do seguinte julgamento plenário, em 2005:
“(...) EFEITO TRANSCENDENTE DOS FUNDAMENTOS
DETERMINANTES DO JULGAMENTO DO RE 197.917/SP -
INTERPRETAÇÃO DO INCISO IV DO ART. 29 DA CONSTITUIÇÃO. -
O Tribunal Superior Eleitoral, expondo-se à eficácia irradiante dos
motivos determinantes que fundamentaram o julgamento plenário do
RE 197.917/SP, submeteu-se, na elaboração da Resolução nº
21.702/2004, ao princípio da força normativa da Constituição, que
representa diretriz relevante no processo de interpretação concretizante
do texto constitucional (...). No poder de interpretar a Lei Fundamental,
reside a prerrogativa extraordinária de (re)formulá-la, eis que a
interpretação judicial acha-se compreendida entre os processos
informais de mutação constitucional, a significar, portanto, que "A
Constituição está em elaboração permanente nos Tribunais
incumbidos de aplicá-la". Doutrina. Precedentes. A interpretação
constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal
Federal - a quem se atribuiu a função eminente de "guarda da
Constituição" (CF, art. 102, "caput") - assume papel de essencial
importância na organização institucional do Estado brasileiro (...).”
(STF, ADI 3345/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, julgado em
25/08/2005, DJ 20/08/2010 – grifamos).
Fica cada vez mais claro e transparente, ao analisarmos a evolução histórico-
normativa da nossa prática jurídica, o caráter criativo da decisão e a acentuada tendência
pragmatista francamente admitida pela jurisprudência, encampada pela dogmática e,
igualmente, traduzida nas modificações legislativas processuais dos últimos tempos.
Note-se, cumpre reiterar, que admitir o caráter criativo do juiz não é
incorporar, pura e simplesmente, um regime common law, pois nem mesmo dentre dessa
cultura jurídica existe pacificação sobre o tema. Veja-se:
“Neste sentido, para distinguir os sistemas, mesmo em suas origens, não
basta falar que em um o juiz cria o direito e no outro declara a lei, sendo
125
imprescindível compreender que somente no common law o juiz mereceu
confiança e espaço na esfera de poder e que a afirmação de que o ‘juiz
cria o direito’ constitui slogan de uma das vertentes doutrinárias que se
apresentaram neste sistema jurídico.
Aliás, no que diz respeito a este último ponto, é bom rememorar que, no
common law, ainda se discute a respeito da natureza da jurisdição, se
declaratória ou constitutiva. Tal questão foi objeto de recente debate
entre Herbert Hart – que sustenta o papel criativo da jurisdição – e
Ronald Dworkin – que o nega. Na verdade, Dworkin é um dos
integrantes de um poderoso e crescente núcleo de pensamento engajado
em negar a natureza positivista do precedente e em propor uma visão
‘interpretativista’ para se compreender o common law, com a
consequente reinserção no debate da teoria declaratória da jurisdição,
ainda que, obviamente, sob uma roupagem contemporânea.”169
Admitir o caráter criativo do juiz, da decisão jurídica, significa incorporar o
pragmatismo e, com isso, negar as dualidades ser/dever-ser e positivismo/antipositivismo,
exigindo-se, ao mesmo tempo, uma nova forma de compreender o modelo teórico,
determinado que é por essa nova realidade, por esse novo objeto de estudos que vem se
modificando com velocidade, como procuraremos evidenciar no presente Capítulo.
2. Evolução reformadora do CPC/1973 e a racionalização do contencioso
É natural a ideia, hoje inquestionável, de que o Direito processual deve servir
de forma útil ao direito material (instrumentalidade), acompanhando a evolução das
complexidades sociais e das relações intersubjetivas. Mas nem sempre foi assim.
Tendo os Códigos de Processo Civil de 1939 e 1973 sido promulgados em
períodos de ditadura, justificava-se a postura lógico-positivista, rígida e intransigente em
matéria de interpretação, de modo que, ao menos até 1960, ainda se falava convictamente
em autonomia do Direito processual, a separar Direito substantivo e adjetivo.
169
MARINONI, Luiz Guilherme. “Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2013, p. 50.
126
Ao incorporar a ideia de instrumentalidade das formas, o Direito processual
passou a sofrer uma série de reformas a fim de racionalizar o contencioso, com o nítido
propósito de minimizar a crise de ineficiência material, tomando corpo rapidamente no
Direito tributário a partir da adequação da atuação da PGFN e da RFB aos precedentes,
tudo isto diante da valorização normativa da jurisprudência, que passou a ditar e moldar a
legalidade, num processo ascendente que muitas vezes redesenha a própria Constituição.
Assim, fruto da crescente inefetividade e ineficiência do sistema processual,
tivemos uma série de reformas racionalizadoras do processo decisório170
, a saber:
(i) 1998: decisão monocrática sobre conflito de competência quando já
houver jurisprudência dominante do tribunal; declaração de
inconstitucionalidade por órgão fracionário quando já houver
pronunciamento do Tribunal ou do Plenário do STF sobre a questão;
inadmissibilidade ou provimento monocrático do recurso pelo relator
diante de Súmula ou jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do
STF ou do STJ (artigos 120, § Ú, 481, § Ú e 557, todos do CPC,
incluídos e/ou alterados pela Lei n.º 9.756/98);
(ii) 2001: dispensa de reexame necessário quando já houver
jurisprudência do Plenário do STF ou Súmula deste ou de outro Tribunal
competente; e deslocamento de competência para a pacificação de
170
Sobre o assunto, citamos também os apontamentos de Mantovanni Colares Cavalcante, in “Técnicas de
estabilização da jurisprudência: Em busca do equilíbrio na corda bamba processual.” IX Congresso Nacional
de Estudos Tributários do IBET. São Paulo: Noeses, 2012. Com base em lições da doutrina, o autor trabalha
com o seguinte percurso racionalizador: previsibilidade → estabilidade → uniformidade. A previsibilidade
leva à estabilização das expectativas normativas através dos precedentes generalizadores que, por sua vez,
impõem à uniformidade por meio da vinculação dos órgãos inferiores. E as técnicas de estabilização são
divididas em: exclusivamente administrativas; preponderantemente procedimentais; e essencialmente
processuais.
127
jurisprudência em órgão colegiado (artigos 475, § 3º e 555 do CPC,
incluídos pela Lei n.º 10.352/01);
(iii) 2002: tutela antecipada fundada na incontrovérsia do pedido (§ 6º do
artigo 273 do CPC, incluído pela Lei n.º 10.444/02);
(iv) 2004: repercussão geral e súmula vinculante (EC n.º 45/04);
(v) 2005: embargos à execução com efeito rescisório para a adequação
jurisprudencial (§ 1º do artigo 475-L e § Ú do artigo 741, ambos do CPC,
incluídos pela Lei n.º 11.232/05);
(vi) 2006: inadmissibilidade de apelação quando a sentença estiver
fundada em súmula de jurisprudência dominante do STJ ou STF (artigo
518, § 1º do CPC, incluído pela Lei n.º 11.276/06);
(vii) 2006: sentença liminar de improcedência pelo juiz singular quando
já houver reiteração decisória da matéria junto ao Juízo (artigo 285-A do
CPC, incluído pela Lei n.º 11.277/06);
(viii) 2006: multiplicidade de recursos no STF (artigos 543-A e 543-B do
CPC, incluídos pela Lei n.º 11.418/06);
(ix) 2008: multiplicidade de recursos no STJ (artigo 543-C do CPC,
incluído pela Lei n.º 11.672/08);
(x) 2010: julgamento monocrático de agravo contra despacho
denegatório no STF e STJ quando houver súmula ou jurisprudência
dominante (artigo 544, § 4º do CPC, incluído pela Lei n.º 12.322/10).
Atualmente, em especial no Direito tributário, estamos vivenciando o apogeu
da jurisprudência, sendo comum ouvirmos falar, dentre outros termos, em “relativização da
128
coisa julgada inconstitucional” e “coisa julgada rebelde”171
, para designar julgamentos que
contrariam jurisprudência consolidada, ainda que formada em momento posterior, temas
estes que ganharam força a partir dos Pareceres PGFN n.ºs 492/2010 e, em especial,
492/2011, o qual será retomado e melhor explorado mais à frente, mas cujo contexto desde
logo fica claro: a adequação do sistema à orientação jurisprudencial.
O CPC/2015, de igual forma, possui balizas muito claras em relação à
racionalização e efetividade dos julgamentos, adotando e aprimorando diversos
mecanismos, como a tutela de evidência (artigo 311), a institucionalização do amicus
curiae (artigo 138), o incidente de resolução de demandas repetitivas (artigos 976/987), a
regulamentação do precedente e, de algum modo, do sistema stare decisis (artigo 489), a
instituição da mútua cooperação entre as partes (artigo 6º), o saneamento compartilhado do
processo (artigos 190/191), dentre tantos outros.
Por isso, tais mudanças naturalmente também provocaram alterações no
contencioso tributário e no modo de atuação dos órgãos fazendários, que atentos a esse
movimento passaram igualmente a se empenhar na racionalização de sua atuação.
2.1. Valorização da jurisprudência no contencioso tributário administrativo
Alinhado a essa nova racionalidade provocada a partir das mudanças na
legislação processual, a própria administração fazendária passou a admitir e encampar a
ideia de valorização dos precedentes, trazendo efetividade tanto para as atividades
fiscalizatórias, como para o consultivo e contencioso tributário administrativo, com a busca
171
Termo utilizado pelo Ministro Luis Felipe Salomão no REsp n.º 1.163.267/RS, julgado em 19/09/2013.
129
de ganhos no correto direcionamento dos esforços e dos recursos financeiros destinados à
cobrança e defesa do crédito tributário.
Nessa direção caminham os atos decisórios administrativos, com a adoção, por
exemplo, de soluções de consulta vinculadas (IN RFB 1.396/10), uniformização de
julgados nos tribunais administrativos e filtros vinculantes, dentre outros, o que denota o
papel prescritivo generalizador das decisões normativas.
Ainda no âmbito federal, já a Lei n.º 10.522/02, em seus artigos 18 e 19,
particularmente após as alterações promovidas pela Lei n.º 12.844/13, passou a dispensar a
discussão fazendária de matérias desfavoráveis fixadas em jurisprudência pacífica do
STJ172
, bem como a constituição de créditos tributários relativos a essas matérias.
A partir de então, tem sido crescente a edição de atos normativos
administrativos racionalizadores, fruto dos Pareceres PGFN/CRJ n.ºs 492/10173
e 492/11,
os quais tratam, resumidamente, da força persuasiva expansiva e dos efeitos dos
precedentes do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.
172
“Art. 19. Fica a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional autorizada a não contestar, a não interpor
recurso ou a desistir do que tenha sido interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na
hipótese de a decisão versar sobre: (...) II - matérias que, em virtude de jurisprudência pacífica do
Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do
Tribunal Superior Eleitoral, sejam objeto de ato declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional,
aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda; (...). § 4º A Secretaria da Receita Federal do Brasil não
constituirá os créditos tributários relativos às matérias de que tratam os incisos II, IV e V do caput, após
manifestação da Procuradoria- Geral da Fazenda Nacional nos casos dos incisos IV e V do caput. § 5º - As
unidades da Secretaria da Receita Federal do Brasil deverão reproduzir, em suas decisões sobre as
matérias a que se refere o caput, o entendimento adotado nas decisões definitivas de mérito, que versem
sobre essas matérias, após manifestação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nos casos dos
incisos IV e V do caput.” (...).” (grifos nossos). 173
“(...) 3. Em se tratando, especificamente, de RE/RESP´s interpostos contra acórdãos proferidos em
consonância com jurisprudência reiterada e pacífica do STF/STJ, o seu seguimento tem sido
repetidamente obstado pelos Presidentes/Vice-Presidentes (de TRF`s e do STJ); daí que, nesses casos, pode-
se afirmar, com a segurança necessária, que os recursos extremos interpostos contra essas decisões possuem
reduzida viabilidade de êxito, de modo que a PGFN não possui interesse prático em continuar insistindo na
sua interposição. (...).” (grifos nossos).
130
Correlatamente, foi editado os sucessivos Parecer PGFN/CDA n.º 2.025/11 e
Parecer PGFN n.º 396/2013174
, que tratam exatamente das hipóteses de desistência das
discussões pacificadas pelos tribunais e das repercussões tanto na cobrança dos créditos
tributários como na orientação e direcionamento dos critérios interpretativos futuros.
Cita-se ainda a Portaria PGFN n.º 294/2010, que procurou orientar a atuação
fazendária diante dos precedentes e, em seu artigo 2º, § 1º, dispõe que “consideram-se
como questões definidas em “jurisprudência reiterada e pacífica” pelo STF ou pelo STJ
apenas aquelas assim indicadas em lista elaborada e divulgada, respectivamente, pela
CASTF e pela CRJ, que será atualizada periodicamente, podendo sempre os
Procuradores-Regionais da Fazenda Nacional auxiliar na sua atualização, encaminhando
a essas duas Coordenações sugestões de novos temas a serem incluídos na referida lista.”
E por fim, como forma de impor uma otimização e organização interna à
atuação fazendária em face da jurisprudência, tem-se a Portaria Conjunta PGFN/RFB n.º
1/2014, a qual dispõe sobre o acompanhamento e as comunicações entre PGFN e RFB,
relativamente aos julgamentos das Cortes Superiores.
Por tudo isso, é indiscutível a adaptação evolutiva de nosso objeto de estudos,
que vem se modificando rapidamente em especial em relação às matérias tributárias, de
modo que, nessa perspectiva, “a estabilidade não se traduz apenas na continuidade do
direito legislado, exigindo, também, a continuidade e o respeito às decisões judiciais, isto
é, aos precedentes.”175
174
“(...) Restituição do indébito e compensação. A mudança de entendimento em sentido favorável ao
contribuinte enseja a possibilidade de restituição e de compensação dos valores efetivamente pagos, na
forma da legislação em vigor. Julgamento em primeira instância administrativa. A nova interpretação
assumida pela Fazenda Nacional deverá ser seguida pelas autoridades julgadoras no âmbito das
Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento- DRJ, em cumprimento ao disposto no art. 7º da
Portaria MF nº 341, de 12 de julho de 2011. (…)” (grifos nossos). 175
MARINONI, Luiz Guilherme. “O precedente na dimensão da segurança jurídica”, in “A força dos
precedentes”, 2ª edição. Salvador: Juspodivm, 2012.
131
3. Segurança jurídica, fundamentação, extensão da coisa julgada e o tempo jurídico
Conscientes de que nosso objeto de estudos vem sofrendo grandes alterações,
adaptando-se às contingências e demandas impostas por uma sociedade complexa e
dinâmica, voltamos nosso questionamento ao modelo teórico que até então predomina e
prevalece na ciência jurídica, a partir do qual unidade, coerência, completude e segurança
jurídica são postulados gerais que preenchem dedutivamente todo o sistema.
Ou seja, a segurança jurídica, enquanto meio, operando de maneira descolada
da realidade fática dos casos concretos. Porém, já vimos, a cognoscibilidade é aberta, é a
porta de acesso da normatividade, onde então interage ser e dever-ser, num intercâmbio
que permite falar em segurança jurídica enquanto fim.
Desse modo, dentro da realidade e racionalidade pragmatista, a consolidação
da segurança jurídica ocorre concretamente, a partir dos casos particulares e, por isso, a
estabilidade e adequação jurisprudencial são construídas prospectivamente.
Nesse ponto, já concluía DWORKIN que “a compreensão meramente
burocrática do decidir despe o juiz de responsabilidade e o afasta do compromisso com o
caso. Quando se deixam de julgar casos, para julgarem-se teses, tem-se sintoma
inequívoco da suplantação da atividade judicial pela burocracia.”176
Por oportuno, lembremo-nos de exemplo anterior, onde o conceito de
faturamento fixado pela jurisprudência, do ponto de vista estrutural, numa interpretação
isolada dentro do sistema jurídico (resultado da venda de produtos e/ou da prestação de
176
DWORKIN, Ronald. “A justiça de toga.” São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 175.
132
serviços), acabou tendo que ser revisto por conta de suas consequências práticas no
mercado, não se mostrando adequado diante de uma interpretação que passa a considerar a
realidade dinâmica das atividades empresariais.
Com isso, pretende-se atingir a segurança jurídica concreta, dirigida para um
fim que não se compreende num isolamento formalista, de modo que receita de aluguel
para uma empresa com atividade imobiliária é faturamento, enquanto não o é para uma
indústria, para uma empresa comercial ou para uma prestadora de serviços, da mesma
forma ocorrendo com a receita financeira, que nos parece compor o conceito de
faturamento de uma corretora de títulos e valores mobiliários ou de um banco177
.
Por tais razões, nos termos do artigo 93, IX, da Constituição Federal178
, a
fundamentação é requisito de validade de qualquer decisão normativa, pois é através dela
que se permite vincular o julgador tanto aos precedentes, como aos casos futuros, além de
permitir o controle das legítimas expectativas normativas, essenciais à segurança.
São estas as lições de DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES: “Sob o
ponto de vista político a motivação se presta a demonstrar a correção, imparcialidade e
lisura do julgador ao proferir a decisão judicial, funcionando o princípio como forma de
legitimar politicamente a decisão judicial. Permite um controle da atividade do juiz não só
do ponto de vista jurídico, feito pelas partes no processo, mas de uma forma muito mais
ampla, uma vez que permite o controle da decisão por toda a coletividade.”179
177
Lembrando que essas questões estão para ser julgadas pelo STF nos seguintes casos: RE n.º 609.096, com
repercussão geral (instituições financeiras); RE n.º 400.479 (seguradoras e corretoras); e RE n.º 599.658, com
repercussão geral (locadoras de bens imóveis). 178
“Art. 93 (omissis). IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados
atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito
à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela
Emenda Constitucional nº 45, de 2004).” 179
“Manual de Direito Processual Civil”, 2ª edição. São Paulo: Método, 2010, p. 71.
133
A fundamentação do e no caso é que conforma a normatividade da decisão,
encampando suas consequências práticas, projetando-se para o dispositivo e para a coisa
julgada. Nessa ordem de ideias, para a correta fixação da tese em julgamento e delimitação
da coisa julgada, o retrato dos fundamentos é imprescindível para a sua compreensão, de
forma que a atividade exercida por cada empresa, matéria aparentemente apenas fática,
secundária, no exemplo acima, torna-se o centro da normatividade: como falar em
definição do conceito de faturamento descolado da realidade fática do caso?
Estamos, de certo modo, no contexto das teorias da interpretação e da
argumentação, hoje encampadas pelo chamado pós-positivismo ou neoconstitucionalismo,
com sua importância na análise do problema da aplicação do direito180
.
A propósito do chamado neoconstitucionalismo, veja-se a seguinte passagem
de LENIO LUIZ STRECK, segundo o qual:
“Numa palavra, fundamentos determinantes (motivos etc.) e o
dispositivo fazem parte de um círculo (hermenêutico): somente se
compreende a parte dispositiva em toda a sua dimensão quando se tem
antecipadamente a (pré)compreensão dos fundamentos determinantes.
Do mesmo modo, somente é possível transcender os fundamentos
determinantes (tragenden Grunde) porque eles precisam estar
densificados no dispositivo. Uma não pode viver sem o outro. Com isso,
evita-se que ‘ementários’ tenham vida própria. Para ser mais explícito:
evita-se, assim, a construção de conceitos sem coisas.”181
180
“O problema da aplicação, da justificação da decisão jurídica ganha uma importância inédita. Os
problemas da identificação do direito e da sua interpretação passam a gravitar em torno das justificações da
decisão, que são transformados em dados preceptivos ao lado de outros (os legislativos e até com vantagem
sobre eles). E um sintoma disso é a assimilação do conceito de interpretação à argumentação.
Existe hoje uma vasta literatura (Dworkin, Alexy, Carlos Nino, Zagrebelsky, Atienza, Troper etc.) que, a
partir de uma crítica ao positivismo analítico e sua exclusão das justificações morais da argumentação
jurídica, propõe, ao contrário, que os saberes e as técnicas jurídicas, por óbvio, não conseguem conviver
com essa exclusão, sobretudo no terreno constitucional.
Surge daí um ‘constitucionalismo principialista e argumentalista, de clara matriz anglo-saxônica, que não
só parte para um ataque à argumentação positivista (que separa direito e moral e despe os argumentos de
sua carga moral para lhes dar uma carga de mera eficiência técnica), mas se endereça também para uma
concepção da argumentação jurídica que vem sendo chamada de neoconstitucionalista.” FERRAZ JR.,
Tércio Sampaio. “O Direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014, Prefácio, XVI. 181
STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013, p. 734/735.
134
Aliás, não à toa há muito a doutrina já atribui papel determinante da
fundamentação e dos contornos do caso na formação da coisa julgada, conforme vemos,
por exemplo, na seguinte passagem de HUMBERTO THEODORO JUNIOR:
“É na conjugação dos atos das partes e do juiz que se chega aos
contornos objetivos da coisa julgada. São, pois, as pretensões
formuladas e respectivas causa de pedir (questões litigiosas) julgadas
pelo Judiciário (questões decididas) que se revestirão da eficácia da
imutabilidade e indiscutibilidade de que trata o art. 468 do CPC. (...)
Ressalte-se, mais uma vez, que o dispositivo da sentença não se confunde
com o texto final do julgado, mas deve ser localizado em todos os
momentos da sentença em que o julgador deu solução às questões que
integram a causa petendi, seja da demanda do autor, seja da defesa do
réu, como adverte Liebman na seguinte passagem: ‘Em conclusão, é
exata a afirmativa de que a coisa julgada se restringe à parte dispositiva
da sentença. A expressão, entretanto, deve ser entendida em sentido
substancial e não apenas formalístico, de modo que compreenda não
apenas a fase final da sentença, mas também tudo quanto o juiz
porventura tenha considerado e resolvido acerca do pedido feito pelas
partes. Os motivos são, pois, excluídos por essa razão, da coisa julgada,
mas constituem amiúde indispensável elemento para determinar com
exatidão o significado e o alcance do dispositivo.’”182
De certa forma, essa é a ideia que se propagou a partir das lições do Ministro
Gilmar Mendes a respeito da “eficácia transcendente da motivação”183
, encampadas no
seguinte leading case sobre a matéria:
“EMENTA: RECLAMAÇÃO. CABIMENTO. AFRONTA À DECISÃO
PROFERIDA NA ADI 1662-SP. (...) 1. Preliminar. Cabimento.
Admissibilidade da reclamação contra qualquer ato, administrativo ou
judicial, que desafie a exegese constitucional consagrada pelo Supremo
Tribunal Federal em sede de controle concentrado de
constitucionalidade, ainda que a ofensa se dê de forma oblíqua. (...) A
decisão do Tribunal, em substância, teve sua autoridade desrespeitada
de forma a legitimar o uso do instituto da reclamação. Hipótese a
justificar a transcendência sobre a parte dispositiva dos motivos que
embasaram a decisão e dos princípios por ela consagrados, uma vez que
os fundamentos resultantes da interpretação da Constituição devem ser
182
“Notas sobre a sentença, coisa julgada e interpretação”, in Revista de Processo vol. 167. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009, p. 14 e 20. 183
“Cabe ao Ministro Gilmar Mendes o grande mérito de ter desenvolvido o assunto a partir do direito
alemão. Aludindo à ideia de ‘eficácia transcendente da motivação’, o Ministro fez ver que esta eficácia está
umbilicalmente ligada à própria natureza da função desempenhada pelos tribunais constitucionais, além de
ser absolutamente necessária à tutela da força normativa da Constituição.” MARINONI, Luiz Guilherme.
“Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 270.
135
observados por todos os tribunais e autoridades, contexto que contribui
para a preservação e desenvolvimento da ordem constitucional. (...)
Contrariedade à autoridade da decisão proferida na ADI 1662.
Reclamação admitida e julgada procedente.” (STF, Pleno, Rcl 1987/DF,
Rel. Min. Maurício Corrêa, julgado em 01/10/2003 – grifamos).
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, responsável pela pacificação
dos temas processuais de índole infraconstitucional, igualmente há tempos não destoa:
“Coisa julgada. Dispositivo. A coisa julgada refere-se ao dispositivo da
sentença. Essa, entretanto, há de ser entendida como a parte do
julgamento em que o juiz decide sobre o pedido, podendo ser encontrada
no corpo da sentença e não, necessariamente, em sua parte final.” (STJ,
3ª Turma, AgRg no Ag 162.593/RS, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, julgado
em 12/05/1998, DJ 08/09/1998).
“Conquanto seja de sabença que o que faz coisa julgada material é o
dispositivo da sentença, faz-se mister ressaltar que o pedido e a causa de
pedir, tal qual expressos na petição inicial e adotados na fundamentação
do decisum, integram a res judicata, uma vez que atuam como
delimitadores do conteúdo e da extensão da parte dispositiva da
sentença.” (STJ, 1ª Turma, REsp 795.724/SP, Rel. Min. Luiz Fux,
julgado em 01/13/2007, DJU 15/03/2007).
Dessa forma, para saber e compreender o que transitou em julgado, devemos
pesquisar qual o tema controvertido no processo, os motivos determinantes, e não apenas a
síntese constante do dispositivo ou, o que é pior, da ementa do julgado ou de uma súmula.
Pois bem, sob tais concepções, a consolidação do trabalho judicante, conforme
sintetiza PAULO DE BARROS CARVALHO, é responsável por estabilizar o sistema,
realizar segurança jurídica, promover a orientação jurisprudencial, operar a simplificação
da atividade processual e trazer previsibilidade decisória.
Nesses exatos termos, remetemo-nos ao AI-AgR n.º 179.560/RJ, 1ª Turma,
Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 24/05/2005:
“A SÚMULA DA JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE DO
SUPREMO TRIBUNAL (...). A formulação sumular, que não se qualifica
como “pauta vinculante de julgamento”, há de ser entendida,
consideradas as múltiplas funções que lhe são inerentes – função de
estabilidade do sistema, função de segurança jurídica, função de
136
orientação jurisprudencial, função de simplificação da atividade
processual e função de previsibilidade decisória, v.g. (RDA 78/453-459 –
RDA 145/1-20), como resultado paradigmático a ser autonomamente
observado, sem caráter impositivo, pelos magistrados e demais
Tribunais judiciários nas decisões que venham a proferir.”
Conforme já destacado, o percurso da racionalidade decisória caminha no
seguinte sentido: previsibilidade → estabilidade → uniformidade. A previsibilidade parte
dos entendimentos fixados nas diversas manifestações jurisdicionais (ou melhor, nas
decisões normativas). A partir daí podemos caminhar para a estabilização das expectativas
normativas, através dos precedentes generalizadores. Por fim, tais precedentes impõem à
uniformidade da orientação, por meio da vinculação dos órgãos inferiores.
Assim, previsibilidade, estabilidade e uniformidade caminham juntas na busca
da adequação jurisprudencial, não sendo alcançadas através de um processo mecânico
meramente dedutivo, mas sim a partir de constantes influxos indutivos, pautados na
complexidade dos casos concretos a da realidade que lhes subjaz. Conforme
MANTOVANNI COLARES CAVALCANTE, “como a ‘previsibilidade’ revela uma
tendência, e a ‘uniformidade’ um ideal, o meio-termo seria a ‘estabilidade’, um eixo por
onde gravitam aqueles extremos da interpretação.”184
Por conta das distorções, sobretudo do próprio judiciário, na compreensão do
papel criativo do juiz, do precedente e da jurisprudência, advém a crítica que se espelha no
termo “commonlawnização”, para designar o abrasileiramento do regime common law e do
sistema stare decisis.
A construção da jurisprudência é sempre prospectiva (um caso passado
fundamenta comparativamente o caso presente e o futuro, ou justifica sua evolução), não
184
“Técnicas de estabilização da jurisprudência: Em busca do equilíbrio na corda bamba processual.” IX
Congresso Nacional de Estudos Tributários do IBET. São Paulo: Noeses, 2012.
137
se podendo falar em adequação jurisprudencial mecânica e retrospectiva (um caso ou uma
evolução presente justificando e alterando automaticamente um caso passado).
Em recente obra prefaciada por NELSON NERY JUNIOR, intitulada
“Precedente à Brasileira. A jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC”, JÚLIO
CÉSAR ROSSI analisa o fenômeno da valorização jurisprudencial e ressalta que:
“Sendo possível, fala-se em precedente judicial na tradição do ‘civil law’
e um aspecto deve ficar muito evidente: essa doutrina não pode vir
determinada por lei (ou mesmo Emenda Constitucional). A aplicação de
um precedente não pode ser fruto de imposição legislativa, mas de
interpretação-aplicação do direito ao caso concreto, não existindo
aplicação por método subjuntivo ou acoplamento mecânico e
vinculante de um precedente universal para o julgamento de casos
futuros. (...)
Nosso precedente é estabelecido, muitas vezes, por um único julgamento
sobre um determinado tema, mas com aptidão de resolver casos
manifestamente diferentes daquele do qual se originou. Sua aplicação é
obrigatória (não é fruto de uma evolução ou cristalização de um
posicionamento em que o órgão julgador pode ou não aplicar a mesma
razão de decidir, sem qualquer espécie de sanção).
(...)
Por tais motivos, nossos precedentes possuem características muito
peculiares que os afastam dos estadunidenses (common law), e também
dos precedentes do civil law, não porque os sistemas não interajam, mas
pela existência da seguinte peculiariedade ou particularidade:
pretendemos construir um precedente que estabeleça uma série de
soluções para abarcar as mais diversas peculiaridades possivelmente
existentes em qualquer espécie de lide (seja assemelhada, seja
repetitiva), o qual possa ser fruto de um único julgamento e cuja decisão
seja de aplicação obrigatória a todos os demais, que se encontrem em
qualquer grau (...)
Dessa forma, não só fixamos entendimentos que desencadearão
julgamentos em cascata, ignorando as peculiaridades de cada caso
concreto, como também combatemos a falta de estrutura de nosso Poder
Judiciário, justificando essa postura na busca da segurança jurídica,
como se esta fosse simplesmente a estabilização dos conflitos, a qualquer
preço e de qualquer forma (...).”185
(grifos nossos).
Na mesma linha, encontramos a seguinte passagem de RENATO LOPES
BECHO: “as decisões judiciais não são, apenas, individuais e concretas. Elas agem como
185
ROSSI, Julio César. “Precedente à Brasileira. A jurisprudência vinculante no CPC e no novo CPC”. São
Paulo: Atlas, 2015, pp. 85 e 152/153.
138
elementos interpretativos, como normas gerais e abstratas, nos mesmos termos que as leis.
Elas criam expectativas de direito. (...) Se a jurisprudência for irrelevante na formação do
princípio da segurança jurídica, os advogados não precisam buscar os precedentes
jurisprudenciais. Nessa hipótese, os repertórios de jurisprudência serão tão úteis quanto
as revistas que tratam da vida alheia e o STJ, assim como o STF ou qualquer outro
tribunal, pode decidir qualquer caso independentemente de outros processos. Assim, em
uma tarde de julgamento, um tribunal pode dar decisões alheatórias em processos
diferentes, ainda que os fatos sejam iguais e a lei seja a mesma.”186
A segurança jurídica que se busca com a racionalização decisória, corolário de
todo o sistema jurídico, ganha contornos especiais no Direito tributário, sendo expressa em
diversos dispositivos que, em grande síntese, encontram fundamento no tripé veiculado
pelo artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal: “a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.”
O termo lei, atualmente, é reconhecido e trabalhado no sentido de norma
jurídica, vinculando, portanto, não apenas o Poder Legislativo, como também as legítimas
expectativas geradas pelas normas criadas pelo Poder Judiciário187
, razão pela qual a
jurisprudência nova também não poderá, em regra, prejudicar a coisa julgada.
Por fim, acerca da manipulação jurídica do tempo no caso da coisa julgada, são
oportunas as lições de TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, para quem:
“Trata-se de um tempo existencial, que o direito, mediante positivação
normativa, manipula e controla na forma de uma capacidade
tecnológica de reinterpretar o passado (sem anulá-lo ou apaga-lo) – por
exemplo, pela responsabilização normativa por aquilo que aconteceu – e
de orientar o futuro (sem impedir que ele ocorra) – por exemplo, usando-
o como finalidade reguladora da ação: planejamento normativo. Entre o
186
In “Conflitos de jurisprudência entre STF e STJ”, p. 15 e 17-18, texto inédito. 187
Nesse sentido, remetemo-nos ao trabalho de Misabel Derzi, “Modificações da jurisprudência no Direito
Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009, com citação de diversos outros autores sobre o assunto.
139
passado e o futuro, esse tempo cultural que aparece como duração, ou
seja, cuja experiência se dá no presente, que o homem vive como um
contínuo tem de ser conceitualmente dominado. Pois a duração desafia o
tempo cronológico, que tudo corrói: torna o passado (que não é mais)
algo ainda interessante (como faz a memória) e faz do futuro (que ainda
não ocorreu) um crédito, base da promessa. E a promessa, para esses
efeitos, torna-se tema jurídico.
E eis aí a razão por que é aqui que entra a segurança como um direito
fundamental. Segurança tem que ver com a consistência da duração, isto
é, com o evitar que um evento passado (o estabelecimento de uma norma
e o advento de uma situação normada), de repente, torne-se algo
insignificante, e o seu futuro, algo incerto, o que faria do tempo do
direito mero tempo cronológico, uma coleção de surpresas
desestabilizadoras da vida. Afinal, se o sentido de um evento passado
pudesse ser alterado ou o sentido de um evento planejado pudesse ser
modificado ao arbítrio de um ato presente, a validade dos atos humanos
estaria sujeita a uma insegurança e uma incerteza insuportáveis.
(...)
Se o tempo cronológico tudo corrói, o instituto da res judicata (coisa
julgada) é um instrumento capaz de resgatar o passado em nome de um
futuro incerto e cambiante, pela prevalência de uma incidência
jurisdicional ocorrida sobre a efetividade de uma nova incidência sobre
o mesmo objeto. Por força do fator tempo, a coisa julgada é um dos
institutos que, ao garantir a segurança contra a entropia temporal, está
inserida no rol dos direitos fundamentais.”188
Até porque, já dispõe o artigo 468 do CPC que “a sentença, que julgar total ou
parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.” De
forma que, numa releitura, “a norma jurídica [lato sensu] não prejudicará o direito
adquirido, o ato perfeito e a coisa julgada.”
Por essa razão, mais do que a proteção da boa-fé e da confiança (aplicáveis
genericamente para justificar a modulação de efeitos nos casos de viradas
jurisprudenciais), cumpre-nos analisar em que condições a coisa julgada é ou pode ser
afetada na medida em que novos paradigmas interpretativos são construídos, conceitos são
revistos, relações e realidades sociais são alteradas, enfim, na medida em que a
complexidade do ser volta-se contra a simplificação do dever-ser.
188
“O direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014, p. 12-14.
140
Sob tal perspectiva, a jurisprudência deve ser usada de forma estatístico-
científica, estabelecendo a regularidade – ratio decidendi – dos julgados, o que não tem
acontecido em nossa prática forense, onde os operadores fazem um uso
retórico/persuasivo, deduzindo consequências a partir de ementas ou dispositivos isolados
das decisões, sendo essa a realidade que se pretende mudar com o novo CPC.
4. Uma primeira síntese: a mudança na compreensão e construção do direito
tributário a partir da valorização dos precedentes
Impositivamente ou não, estamos lidando com uma realidade cada vez mais
presente no fenômeno normativo em matéria tributária, caracterizando-se pela constante
modelagem dos conteúdos prescritivos gerais e abstratos pelas decisões normativas,
produzidas tanto pelos julgamentos judiciais como, em grande número, pelas
manifestações administrativas, as quais vêm assumindo papel importante na transformação
das políticas fiscais e até mesmo na pauta legislativa.
Trata-se, portanto, da ocupação de um espaço que, dentro da complexidade
social, não consegue ser adequadamente preenchido e acompanhado pelas normas de maior
generalidade e abstração, razão pela qual a dinâmica das normas individuais e concretas,
aquelas que mais de perto se aproximam das relações intersubjetivas, acabam delimitando
os contornos do sistema tributário.
Temos, portanto, que a concretização normativa não só preenche o conteúdo
dos antecedentes abstratos como, sobretudo, num sistema racionalizante, generaliza o
141
direito num processo ascendente, apontando para as soluções de casos futuros189
, sendo
esse o papel das decisões normativas.
Conforme J.J. GOMES CANOTILHO: “A concretização seria a
‘densificação’ ou o ‘processo de densificação’ de normas ou regras de grande ‘abertura’
– princípios, normas constitucionais, cláusulas legais indeterminadas – de forma a
possibilitar a solução de um problema.”190
Indo além, a concretização não só permite a
solução de um problema concreto, como também direciona as condutas futuras.
Por essa razão, analisando os aspectos negativos desse fenômeno, J.J. GOMES
CANOTILHO se refere à “lei dos regulamentos” e à “constituição das leis”. Ou seja, o
ato infralegal atribuindo sentido ao legal e a lei atribuindo sentido à Constituição, havendo,
com isso, uma aparente mudança paradigmática que passa a conferir ao aspecto pragmático
da linguagem jurídica especial relevância no processo gerador de sentidos.
Em ligeira adaptação, falaríamos em espécies que determinam os gêneros, ou
denotações que implicam as conotações, para nos referir aos precedentes que condicionam
as leis, o que representa uma inversão no processo de positivação do direito, fenômeno
esse que altera a ideia de segurança jurídica, como vimos acima.
Portanto, insistimos que a jurisprudência é fonte criativa do direito, afirmativa
essa que vem recebendo grande espaço por parte da doutrina tributária e de teoria geral
nacional, como vemos em REGINA HELENA COSTA191
, MISABEL DERZI192
, TÉRCIO
189
Pouco discutido no campo tributário, esta é a exata prescrição do já referido artigo 468 do Código de
Processo Civil, segundo o qual “a sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos
limites da lide e das questões decididas.” (grifos nossos). 190
“Constituição dirigente e vinculação do legislador”, 2ª edição. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 321/322. 191
“Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional.” São Paulo: Saraiva, 2009. 192
“Modificações da jurisprudência no direito tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e
irretroatividade como limitações constitucionais ao Poder Judicial de Tributar.” São Paulo: Noeses, 2009. Na
mesma linha, vide o artigo “Interpretação constitucional controvertida”, in VIII Congresso Nacional de
Estudos Tributários do IBET. São Paulo: Noeses, 2011.
142
SAMPAIO FERRAZ JUNIOR193
, RENATO LOPES BECHO194
, JOÃO MAURÍCIO
ADEODATO195
, WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO196
, dentre outros que têm se
dedicado ao assunto.
O próprio Supremo Tribunal Federal, inclusive, já registrou essa tendência no
recente julgamento, em 20/03/14, da Rcl n.º 4.335/AC, Relator Min. Gilmar Mendes,
quando então foi destacado o seguinte no Voto-Vista do Min. Teori Zavascki:
“(...) Não se pode deixar de ter presente, como cenário de fundo
indispensável à discussão aqui travada, a evolução do direito brasileiro
em direção a um sistema de valorização dos precedentes judiciais
emanados dos tribunais superiores, aos quais se atribui, cada vez com
mais intensidade, força persuasiva e expansiva em relação aos demais
processos análogos. Nesse ponto, o Brasil está acompanhando um
movimento semelhante ao que também ocorre em diversos outros países
que adotam o sistema da ‘civil law’, que vêm se aproximando,
paulatinamente, do que se poderia denominar de cultura do ‘stare
decisis’, própria do sistema da ‘common law’. A doutrina tem registrado
esse fenômeno, que ocorre não apenas em relação ao controle de
constitucionalidade, mas também nas demais áreas de intervenção dos
tribunais superiores, a significar que a aproximação entre os dois
grandes sistemas de direito (civil law e common law) é fenômeno em vias
de franca generalização (...). É interessante ilustrar a paulatina, mas
persistente, caminhada do direito brasileiro no rumo da valorização dos
precedentes judiciais, no âmbito da jurisdição geral (e não,
exclusivamente, da constitucional, de que se tratará mais adiante)
mencionando alguns de seus mais expressivos movimentos. (...).”
E ainda, como bem destacado no Voto-Vista do Ministro Roberto Barroso, “a
expansão do papel dos precedentes atenderia a três finalidades constitucionais: segurança
jurídica, isonomia e eficiência”.
193
“O Direito, entre o futuro e o passado”. São Paulo: Noeses, 2014. 194
“Filosofia do direito tributário.” São Paulo: Saraiva, 2009. De igual forma, citamos seu artigo “Conflitos
de jurisprudência entre STF e STJ.” 195
“Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica e do Direito Subjetivo.” São Paulo: Noeses, 2012. Na mesma
linha, remetemo-nos aos artigos: “Retórica da Jurisdição Constitucional e Tributação – Suas Origens na
Teoria Pura de Hans Kelsen” e “Retórica Jurídica, Filosofia do Direito e Ciência Não-Ontológica.” 196
“A ilusão da normatividade universalista em face da nossa superlativa contingência.” In Revista
Faculdade de Direito PUC-SP, volume 2, 2º semestre/2014. São Paulo: Letras Jurídicas, 2014.
143
O dado concreto, sem dúvida, apresenta-se no papel de relevo que vem sendo
desempenhado pelas decisões normativas na experiência jurídico-tributária, não se
podendo, diante disso, ignorar os efeitos que porventura produz na coisa julgada.
Capítulo 7. Coisa julgada e rescisória com referibilidade em matéria tributária
Inicialmente, dois dados merecem atenção na identificação dos temas
pertinentes ao presente Capítulo. Primeiramente, ao nos referirmos especificamente à coisa
julgada e rescisória em matéria tributária, não pretendemos criar uma nova categoria
dogmática de rescisória ou de coisa julgada, mas assim o fazemos por uma opção que leva
em conta à própria instrumentalidade e efetividade do processo.
Assim, enquanto instrumento do direito material, analisaremos as
peculiaridades processuais da coisa julgada e da rescisória com referência, em particular,
às lides tributárias, ou seja, aquelas que tomam por objeto litigioso matérias próprias que
compõem as relações jurídicas de direito material tributário.
Em segundo lugar, o tema certamente atrai maior atenção no contexto das
chamadas ações antiexacionais (ajuizadas pelos contribuintes) preventivas (cuja eficácia
normativa se projeta para o futuro, prospectivamente), em especial nos casos de alteração
ou modificação jurisprudencial. Inserimo-nos, portanto, no universo das chamadas relações
jurídicas continuativas, com os desdobramentos e influências da coisa julgada e da
rescisória que as tomam por objeto.
Tratam-se, portanto, de dois cortes epistemológicos empreendidos com o
objetivo de possibilitar um maior aprofundamento no estudo dos temas.
144
1. Panorama e inovações da matéria no CPC/2015
A coisa julgada, tradicionalmente definida como qualidade atribuída aos efeitos
da sentença contra a qual não caiba mais recurso197
, tornando-a imutável, podendo ser
material ou meramente formal, passa, com o CPC/2015, por grandes reformulações.
No CPC em vigor fala-se em coisa julgada material como qualidade da
sentença de mérito (artigo 269) proferida em grau de cognição exauriente; e coisa julgada
formal como qualidade da sentença terminativa (artigo 267), projetando efeitos para dentro
do processo em que se origina e, portanto, permitindo a propositura de nova demanda.
Assim, a coisa julgada não é um mero efeito decorrente da sentença transitada
em julgado, pois os efeitos da sentença existem mesmo antes da formação da coisa julgada,
razão pela qual a coisa julgada consiste numa qualidade que, como corolário do princípio
da segurança jurídica, é elevada a nível constitucional e prevista dentre os direitos e
garantias fundamentais (CF, art. 5º, inciso XXXVI).
Com o CPC/2015, além de sofrer a devida atualização conceitual, a coisa
julgada passou a qualificar a decisão de mérito, não mais, genericamente, a sentença198
,
sendo vinculada, ainda, às questões principais decididas, não mais ao conceito restritivo de
lide, delimitado que era pelo princípio da congruência (pedido e dispositivo). Portanto, a
questão prejudicial, com algumas restrições, passa a transitar em julgado,
independentemente de pedido (antiga ação declaratória incidental do artigo 470),
197
Decreto-lei n.º 4.657/42 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro): “Art. 6º (...). § 3º - Chama-se
coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.” 198
Tanto é que, segundo a súmula 336, aprovada pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis, apoiado
pelo IBDP, num esforço interpretativo sobre o CPC/2015, tem-se que: “(artigo 966) Cabe ação rescisória
contra decisão interlocutória de mérito. (Grupo Sentença, Coisa julgada e Ação Rescisória).”
145
lembrando que questão prejudicial (menos abrangente) não se confunde com questão
principal (mais abrangente). Vejamos o quadro comparativo:
CPC/2015 CPC em vigor
Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade
que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não
mais sujeita a recurso.
Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia,
que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais
sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.
Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o
mérito tem força de lei nos limites da questão principal
expressamente decidida.
Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a
lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões
decididas.
§ 1o O disposto no caput aplica-se à resolução de
questão prejudicial, decidida expressa e incidentemente
no processo, se:
I - dessa resolução depender o julgamento do mérito;
II - a seu respeito tiver havido contraditório prévio e
efetivo, não se aplicando no caso de revelia;
III - o juízo tiver competência em razão da matéria e da
pessoa para resolvê-la como questão principal.
§ 2o A hipótese do § 1o não se aplica se no processo houver
restrições probatórias ou limitações à cognição que
impeçam o aprofundamento da análise da questão
prejudicial.
Com essas mudanças, a ideia de decisão passou a ser mais valorizada do que a
simples identificação da sentença, cujo conceito, aliás, foi novamente alterado para
contemplar tanto a definição conteudística como topológica (artigo 203, § 1º199
). Da
mesma forma, valorizou-se o princípio do contraditório e da não surpresa, previstos de
maneira inaugural logo nos artigos 9º e 10 do CPC/2015200
.
Consequentemente, foi preciso adequar o princípio da congruência, pois agora
o pedido deve ser objeto de interpretação, considerando-se o conjunto da postulação e os
fundamentos determinantes dos precedentes que o fundamentam. Fez-se necessário, então,
também atualizar os elementos integrantes da sentença, numa tentativa de regulação e
codificação, ainda que insuficiente, do modelo stare decisis. Vejamos:
199
“Art. 203 (...). § 1o Ressalvadas as disposições expressas dos procedimentos especiais, sentença é o
pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do
procedimento comum, bem como extingue a execução.” (grifamos). 200
“Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.” “Art. 10.
O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se
146
CPC/2015 CPC em vigor
Art. 322. O pedido deve ser certo. Art. 286. O pedido deve ser certo ou determinado. É
lícito, porém, formular pedido genérico: § 2o A interpretação do pedido considerará o conjunto da
postulação e observará o princípio da boa-fé.
Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
Art. 458. São requisitos essenciais da sentença: III - o
dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as
partes Ihe submeterem.
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões
principais que as partes lhe submeterem.
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial,
seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de
súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes
nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta
àqueles fundamentos;
§ 3o A decisão judicial deve ser interpretada a partir da
conjugação de todos os seus elementos e em conformidade
com o princípio da boa-fé.
Desse modo, o dispositivo da decisão resolverá as questões principais
submetidas pelas partes, não estando, portanto, adstrito à moldura estática do pedido
formulado pelo autor, mas sim ao conjunto da postulação e aos fundamentos determinantes
dos precedentes que embasaram a resolução do caso. É a partir da conjugação de todos
esses elementos, aliado ao princípio da boa-fé e do contraditório, que a coisa julgada passa
a ser compreendida, de forma que, se antes a coisa julgada tinha força de lei nos limites do
pedido, agora, terá força de lei nos limites das questões principais.
Ou seja, as questões principais, o conjunto da postulação, os fundamentos
determinantes que embasam o julgado (ratio decidendi) e a boa-fé, agora, passam a
interagir e compor a coisa julgada, revelando a ampliação dos seus limites objetivos.
Com a racionalização e valorização dos precedentes, de igual maneira houve a
ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada, que antes não poderia nem prejudicar,
nem beneficiar terceiros; agora, apenas não pode prejudicar:
CPC/2015 CPC em vigor
Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais
é dada, não prejudicando terceiros.
Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as
quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando
terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se
tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir
de ofício.”
147
houverem sido citados no processo, em litisconsórcio
necessário, todos os interessados, a sentença produz
coisa julgada em relação a terceiros.
Tal expansão dos limites da coisa julgada não foge muito do que já vinha sendo
diagnosticado na própria doutrina e jurisprudência, como ressaltamos no Capítulo 6,
havendo tão somente a positivação das lacunas e patologias de nossa legislação processual.
Ainda que os motivos e a verdade dos fatos não façam coisa julgada (e nem
poderia ser diferente, diante da complexidade da dinâmica social, como vimos insistindo),
os precedentes utilizados para justificar a resolução do caso concreto compõem a
fundamentação jurídica da decisão e, nesse sentido, vinculam a normatividade da coisa
julgada. Ou seja, existe a coisa julgada formada no precedente que, por sua vez, imporá sua
observância no caso decidendo, conformando a nova coisa julgada produzida. Veja-se:
CPC/2015 CPC em vigor
Art. 504. Não fazem coisa julgada: Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I - os motivos, ainda que importantes para determinar o
alcance da parte dispositiva da sentença;
I - os motivos, ainda que importantes para determinar o
alcance da parte dispositiva da sentença;
II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento
da sentença.
Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da
sentença;
III - a apreciação da questão prejudicial, decidida
incidentemente no processo.
Art. 489. (...):
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão
judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de
súmula, sem identificar seus fundamentos
determinantes nem demonstrar que o caso sob
julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle
concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência
ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento
de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal
Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal
de Justiça em matéria infraconstitucional;
V– a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais
estiverem vinculados.
§ 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art.
10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento
neste artigo. (...)
§ 4o A modificação de enunciado de súmula, de
jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento
de casos repetitivos observará a necessidade de
fundamentação adequada e específica, considerando os
princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e
da isonomia. (...)
148
As disposições do artigo 927, portanto, reforçam e acompanham a expansão
objetiva da coisa julgada, na medida em que vinculam a sua normatividade. Não por outra
razão, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), apoiado pelo IBDP, em
esforço interpretativo sobre as disposições do CPC/2105 aprovou as seguintes súmulas:
“317. (art. 927). O efeito vinculante do precedente decorre da adoção
dos mesmos fundamentos determinantes pela maioria dos membros do
colegiado, cujo entendimento tenha ou não sido sumulado. (Grupo:
Precedentes).”
“318. (art. 927). Os fundamentos prescindíveis para o alcance do
resultado fixado no dispositivo da decisão (obiter dicta), ainda que nela
presentes, não possuem efeito de precedente vinculante. (Grupo:
Precedentes).”
“319. (art. 927). Os fundamentos não adotados ou referendados pela
maioria dos membros do órgão julgador não possuem efeito de
precedente vinculante. (Grupo: Precedentes).”
Ou seja, a força normativa do precedente e da coisa julgada está diretamente
ligada ao debate da matéria e ao contraditório, promovendo-se a legitimação
jurisprudencial através da democratização do processo e da não surpresa.
E, acompanhando as evoluções em torno da coisa julgada, da racionalização e
valorização dos precedentes, invariavelmente também foi preciso atualizar diversos pontos
relativos à ação rescisória e à chamada relativização da coisa julgada.
Desse modo, se não é mais apenas o dispositivo que transita em julgado, senão
as questões principais objeto da decisão, o conjunto da postulação e os fundamentos
determinantes, de igual modo, não é mais a mera mudança de texto (em sentido estrito) que
influencia a normatividade da decisão, mas sim, como há tempos já entende a
jurisprudência, a mudança de norma: rescinde-se a normatividade da coisa julgada,
podendo haver a rescisão de capítulos da causa. Veja-se:
149
CPC/2015 CPC em vigor
Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado,
pode ser rescindida quando: (...)
V - violar manifestamente norma jurídica;
§ 3o A ação rescisória pode ter por objeto apenas 1 (um)
capítulo da decisão.
Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado,
pode ser rescindida quando: (...)
V - violar literal disposição de lei; (...)
Art. 975. O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos
contados do trânsito em julgado da última decisão
proferida no processo.
Art. 495. O direito de propor ação rescisória se extingue
em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da
decisão.
Portanto, se a mudança de lei declarada inconstitucional não altera,
automaticamente, a coisa julgada, da mesma forma a mudança de jurisprudência também
não opera efeitos automáticos sobre a chamada coisa julgada inconstitucional (aquela que
viola norma jurídica fixada em julgamento posterior).
Essa concepção de relativização da coisa julgada pela mudança de lei confronta
a ideia tradicional de jurisdição de CHIOVENDA201
, perspectiva sobre a qual a lei
inconstitucional causaria a inconstitucionalidade da sentença, de modo que a lei nula
tornaria a sentença nula, pois a sentença seria a vontade concreta da lei.
Vale registrar, de acordo com LUIZ GUILHERME MARINONI, que:
“Este raciocínio está ancorado na ideia de que a jurisdição tem a função
de atuar a vontade da lei. A adoção da teoria chiovendiana da
jurisdição, segundo a qual o juiz atua a vontade concreta da lei,
realmente pode conduzir à suposição de que a decisão de
inconstitucionalidade deve invalidar a sentença que atuou a vontade da
lei posteriormente declarada inconstitucional.”202
Em concepção um pouco diferente, temos as lições de CARNELUTTI, para
quem “o escopo do processo seria, então, a justa composição da lide.” Assim, a validade
da sentença não estaria, necessariamente, atrelada à validade da lei, da mesma forma que
não estaria atrelada à validade dos precedentes que a fundamenta.
201
Segundo a qual “a função do Estado que tem por escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio
da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos
públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torna-la, praticamente efetiva.” CHIOVENDA
apud CÂMARA, Alexandre Freitas. “Lições de direito processual civil”, 17ª edição. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, v. I, 2008, p. 66. 202
MARINONI, Luiz Guilherme. “Coisa julgada inconstitucional”. São Paulo: RT, 2008, p. 25.
150
A chamada coisa julgada inconstitucional, portanto, é válida e eficaz enquanto
não for rescindida ou revista por outra decisão. E isso foi reforçado não apenas pelo artigo
966 do CPC/2015, como pelas alterações dos “embargos rescisórios”. Vejamos:
CPC/2015 CPC em vigor
Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu
representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico,
para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios
autos, impugnar a execução, podendo arguir:
III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da
obrigação;
§ 5o Para efeito do disposto no inciso III do caput deste
artigo, considera-se também inexigível a obrigação
reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou
ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação
da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal
Federal como incompatível com a Constituição Federal, em
controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
§ 7o A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no §
5o deve ter sido proferida antes do trânsito em julgado da
decisão exequenda.
§ 8o Se a decisão referida no § 5o for proferida após o
trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação
rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado
da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os
embargos só poderão versar sobre:
II - inexigibilidade do título;
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do
caput deste artigo, considera-se também inexigível o
título judicial fundado em lei ou ato normativo
declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal
Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei
ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal
como incompatíveis com a Constituição Federal.
Primeiramente destacamos a adequação do novo dispositivo, que não fala mais
apenas em inexigibilidade do título, senão em inexequibilidade do título, pressuposto e
atributo oposto à executabibilidade. O título é exequível ou não exequível, enquanto a
exigibilidade ou inexigibilidade é atributo da obrigação.
Costuma-se diferenciar, em Direito tributário, exigibilidade de executabilidade,
representando graus diferentes de eficácia da obrigação, de modo que é possível, por
exemplo, uma obrigação exigível, mas não exequível. Por isso, o título executivo judicial
fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo STF, em certas
circunstâncias, perde sua executabilidade, não sua exigibilidade.
Além do mais, em linha com os atuais precedentes, ficou claro que a mudança
jurisprudencial, para que afete a executabilidade do título ou a exigibilidade da obrigação,
deve ter ocorrido antes da formação da coisa julgada no caso exequendo/rescindendo,
151
hipótese esta que representa, em verdade, error in procedendo na aplicação da legislação
processual, sobretudo pela ofensa aos artigos 489 e 927 do CPC/2015.
Nesse sentido, veja-se o enunciado 307 do já citado Fórum Permanente de
Processualistas Civis (FPPC), segundo o qual:
307. (Art. 489, §1º; art. 1.013, §3º, IV) Reconhecida a insuficiência da
sua fundamentação, o tribunal decretará a nulidade da sentença e,
preenchidos os pressupostos do §3º do art. 1.013, decidirá desde logo o
mérito da causa. (Grupo: Competência e invalidades processuais).”
É o que, apesar dos questionáveis fundamentos, mas de certa forma
corroborando as alterações do CPC/2015, recentemente decidiu o STJ203
, in verbis:
“EMENTA. PROCESSUAL CIVIL. NULIDADE DE SENTENÇA. (...).
LEI POSTERIORMENTE DECLARADA INCONSTITUCIONAL
PELO SUPREMO. INSTITUTO DA QUERELA NULLITATIS
INSANABILIS. POSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
(...)
DA QUERELA NULLITATIS
Cinge-se a controvérsia ao cabimento de ajuizamento de querela
nullitatis com vistas a anulação de sentença proferida com base em lei
posteriormente declarada inconstitucional.
(...)
A ação de querela nullitatis é 'remédio vocacionado ao combate de
sentença contaminada pelos vícios mais graves dos erros de atividade
(errors in procedendo), nominados de vícios transrescisórios, que
tornam a sentença inexistente, não se sanando com o transcurso do
tempo" (REsp 1.201.666, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJ 4.8.2014).
No entanto, a doutrina e a jurisprudência modernas vêm ampliando as
hipóteses de cabimento do instituto da querela nullitatis para os
seguintes casos: a) quando é proferida sentença de mérito, a despeito de
faltar condições da ação; b) quando a sentença de mérito é proferida
em desconformidade com a coisa julgada anterior; e c) quando a
decisão é embasada em lei posteriormente declarada inconstitucional
pelo Supremo Tribunal Federal. (...)
Ante o exposto, com fundamento no art. 557, § 1º-A, do CPC, dou
provimento ao recurso especial, para que os autos retornem à instância
ordinária e prossiga no julgamento da querela nullitatis.”
(STJ, REsp 1.496.208/RS, Rel. Min. Humberto Martins, publicado em
25/03/2015 – grifamos).
203
No corpo do julgado são citados, ainda, outros dois precedentes relevantes: REsp 1.201.666, Rel. Min.
Luis Felipe Salomão, DJ 4/8/14; e REsp 1.252.902, Rel. Min. Raul Araújo, DJ 24/10/11.
152
Não obstante, o regime da querela nullitatis – por error in procedendo – da
coisa julgada inconstitucional (hipótese da alteração jurisprudencial anterior), acabou
sendo absorvido, em nome da instrumentalidade, pelo chamado “embargos com efeitos
rescisórios”, manejado pela fazenda pública exatamente nessa situação.
Ou seja, de acordo com as disposições do artigo 535 do CPC/2015, havendo
decisão do STF em controle concentrado ou difuso de constitucionalidade, em sentido
oposto e anterior à formação da coisa julgada exequenda204
, é possível arguir a
inexequibilidade do título ou, dependendo do tipo de controle e da técnica exercida pelo
STF, a inexigibilidade da própria obrigação.
Diante de todas essas reformas, em linha com a valorização da racionalidade
stare decisis, o CPC/2015 acaba por promover alterações substanciais em matéria
tributária, em especial nas discussões que se iniciaram com o Parecer PGFN 492/2011.
1.1. Coisa julgada tributária e o Parecer PGFN n.º 492/2011: crítica metodológica
Quando analisamos a questão da coisa julgada e sua rescisão em matéria
tributária, devemos contrapor as inovações do CPC/2015 com as ideias do Parecer PGFN
492/11, o qual representou um marco no contencioso tributário, especialmente diante do
seu caráter normativo-prescritivo, ao menos do ponto de vista interno, da atuação da
administração fazendária, procurando conformar a racionalidade stare decisis.
204
Estamos falando, pois, de decisão com conteúdo de título executivo, o que, no direito tributário, é
representado por uma condenação à repetição do indébito e/ou declaração do direito à compensação.
153
Nesse sentido, o ato buscou contornar os efeitos da coisa julgada (de eficácia
prospectiva) nas relações jurídicas continuativas, diante da alteração de jurisprudência,
assim considerada como mudança de direito, sendo assim ementado:
“Decisão judicial transitada em julgado que disciplina relação jurídica
tributária continuativa. Modificação dos suportes fático/jurídico. Limites
objetivos da coisa julgada. Superveniência de precedente
objetivo/definitivo do STF. Cessação automática da eficácia vinculante
da decisão tributária transitada em julgado. Possibilidade de voltar a
cobrar o tributo, ou de deixar de pagá-lo, em relação a fatos geradores
futuros.”
Estamos, pois, diante de uma específica coisa julgada: àquela que, em direito
tributário, gera efeitos prospectivos a favor ou contra o contribuinte, ou seja, uma tutela
jurisdicional preventiva de natureza declaratória negativa (ação declaratória ou mandado
de segurança que objetiva o reconhecimento da inexistência de relação jurídico-tributária).
Assim, a partir do fenômeno da valorização dos precedentes e, em seguida,
diante das disposições do Parecer PGFN 492/2011, surgiu o termo, já mencionado,
“commonlawnização”, em referência a uma deficiente incorporação do sistema stare
decisis pelo nosso modelo codificador de tradição românico-germânico da civil law.
O Parecer já não é novo, mas as discussões em torno do assunto não se
esgotam205
, ganhando interessantes contornos a partir do tratamento da coisa julgada e da
ação rescisória no CPC/2015, gerando possibilidades inovadoras para o exame do tema.
Como pano de fundo, tem-se a constante e indesejável oscilação da posição
jurisprudencial a respeito de julgamentos tributários e, consequentemente, os efeitos dessas
205
A propósito, citamos a interessante conversação, sob três distintas perspectivas, entre os artigos de
RIBEIRO, Diego Diniz (“Coisa julgada, direito judicial e ação rescisória em matéria tributária”); SOUZA,
Fernanda Donnabella Camano (“Efeitos materiais da sentença declaratória. Perspectivas no tempo e ruptura
destes efeitos em face de precedente do STF em sentido contrário”); e VITA, Jonathan Barros (“Tributação,
direito concorrencial e processo: as mudanças das circunstâncias de fato e de direito no campo da ação
revisional do artigo 471 do CPC”), in CONRADO, Paulo César (coord.). “Processo tributário analítico”, vol.
II. São Paulo: Noeses, 2013.
154
modificações (alteração de direito206
) sobre a coisa julgada formada em favor ou desfavor
do contribuinte: ou seja, uma questão de limitação objetiva e subjetiva da coisa julgada207
.
Desde logo se faz necessária uma ressalva, na medida em que o Parecer
rechaça expressamente a tese da relativização da coisa julgada, ou seja, afirma que não está
a tratar dos efeitos retrospectivos da alteração jurisprudencial sobre a coisa julgada, mas
tão somente dos efeitos prospectivos, falando, portanto, em “cessação automática da
eficácia vinculante da decisão tributária transitada em julgada.”
Ou seja, na perspectiva do Parecer, cessação da eficácia vinculante da decisão
transitada em julgado seria algo diferente da relativização da coisa julgada, adotando como
critério justificador do discriminem a prospectividade ou retrospectividade da cobrança do
tributo que, a partir da nova jurisprudência, passa a se tornar devido.
Podemos traduzir o entendimento na seguinte contextualização:
(i) uma legislação veicula norma jurídica “A”, delimitando determinada regra-matriz
geral e abstrata com incidência mensal (PIS/COFINS do regime cumulativo, com
incidência sobre o faturamento, assim considerado a totalidade das receitas);
(ii) em ação preventiva movida por um contribuinte, a exigência é declarada
parcialmente inconstitucional, com a formação de uma norma jurídica “B” para a
adequação da base de cálculo do tributo, limitando o conceito de faturamento;
206
Reiteramos as premissas desenvolvidas no curso do trabalho, de que uma alteração de direito nunca está
descolada ou desvinculada das questões de fato. 207
Segundo o Parecer: “(...) 15. Deixando de lado as possibilidades de alterações nos suportes fáticos
capazes de fazer cessar a eficácia vinculante da decisão tributária passada em julgado, que são inúmeras,
tantas quantas permite a liberdade humana, passa-se a centrar o foco no aspecto que verdadeiramente
interessa ao presente Parecer, donde vem a pergunta: quais são as alterações nas circunstâncias jurídicas
existentes ao tempo da prolação da decisão tributária posteriormente transitada em julgado que são capazes
de fazer cessar a sua eficácia vinculante? (...).”
155
(iii) posteriormente, a jurisprudência que fundamentou a norma “B” é modificada,
formando uma norma jurídica “C” que, com base em fundamentos não discutidos na
ação do contribuinte, reconhece e reformula (interpretação conforme) a
constitucionalidade da norma “A”, relativamente aos setores de atividade econômica
em que atua este contribuinte (o conceito limitativo de faturamento deixa de
sustentar a não incidência do PIS/COFINS sobre as receitas deste contribuinte);
(iv) diante disso, o Parecer entende que a norma jurídica “B” cessa,
automaticamente, sua eficácia vinculante prospectiva e, por isso, o contribuinte passa
a dever o tributo antes desonerado, de acordo com o que prescreve a norma “C”. Em
hipótese inversa, o contribuinte poderia deixar de recolher o tributo veiculado pela
norma “A”, mas não poderia apurar indébitos passados;
.: (v) ou seja, norma “B” e norma “C” teriam idênticas, porém contrapostas, eficácias
vinculativas: a eficácia vinculativa de “C” seria imediata (automática), fazendo
cessar, também imediata e automaticamente, a eficácia vinculativa de “B”208
. Com a
ressalva de que a norma “C” não pode gerar lançamentos retroativos, e nem indébitos
tributários passados: os “fatos geradores” anteriores à “C” ficam blindados,
independentemente do tipo de controle exercido e eventual modulação de efeitos.
Desse modo, estamos diante de um dilema semântico em torno dos termos
“cessação da eficácia”, “relativização” ou “rescisão” da coisa julgada, o que pensamos não
fazer sentido, pois na essência tratamos do mesmo fenômeno: o revolvimento da coisa
julgada formada em descompasso com a jurisprudência (no caso) posterior.
208
No item 1.3, adiante, verificaremos que esse entendimento não se compatibiliza com a atual
jurisprudência firmada pelo STF, em especial no RE nº 730.462, julgado em sede de repercussão geral.
156
Temos, portanto, uma única classe (rescisória), sujeita a regimes jurídicos
diversos a depender do momento e da espécie de controle de constitucionalidade exercido
no julgado paradigma que lhe embasa e da eventual modulação de seus efeitos. Ou seja, é o
tipo de controle e a extensão dos efeitos do paradigma que permitirão, ou não, falar em
rescisão da coisa julgada que lhe seja contrária, determinando, também, o seu alcance.
Parece-nos, portanto, que o Parecer utiliza-se de recurso retórico para designar
o mesmo fenômeno, porém atribuir-lhe regime próprio que independe de qualquer
providência jurisdicional. Assim, como não se trataria de rescisão de julgado, mas sim de
mera cessação de eficácia da coisa julgada, não haveria problema em operar tal efeito
imediata e automaticamente, sem qualquer intermediação jurisdicional.
De acordo com o Parecer, a rescisória estaria no plano da validade, enquanto a
“cessação da eficácia” no plano da vigência (ou vigor), o que acaba por criar diferentes
normas sancionatórias a partir dos planos em que se ataca a coisa julgada. Mas, como
sabemos, a rescisória pode modular a sancionar quaisquer desses planos, sem que
alteremos o regime jurídico a que está sujeita.
Nesse sentido, ressaltamos que o impedimento para a cobrança passada do
tributo não decorre da eficácia retroativa ou prospectiva da norma “C” sobre a norma “B”,
tendo fundamento, em verdade, na irretroatividade e anterioridade tributária, na segurança
jurídica, proteção da confiança e da boa-fé que se impõem com a mudança jurisprudencial.
Ao mesmo tempo, o critério diferenciador (efeito retrospectivo e/ou
prospectivo) é relativo, já que a própria ação rescisória, em seu juízo rescindendo de
rejulgamento da causa, nem sempre possui efeito retrospectivo209
, podendo também ser
209
A ação possui uma natureza necessária, desconstitutiva (juízo rescisório); e outra possível, declaratória,
constitutiva, condenatória, mandamental ou executiva, verificada no juízo rescindendo.
157
modulado, especialmente quando falamos de rescisória contra sentença declaratória de
inexistência de relação tributária (ação antiexacional preventiva, com efeito prospectivo).
É de certo modo até paradoxal, pois o próprio Parecer PGFN 492/2011 admite
o termo relativização da coisa julgada na hipótese dos chamados “embargos rescisórios”
(artigo 741 do CPC/73), onde há, de forma parecida com suas balizas teóricas, a mera
inibição da eficácia executiva do título judicial (em tese, outro caso de cessação).
Em outras palavras, de acordo com o entendimento do Parecer, a coisa julgada
formada em ação declaratória perderia sua eficácia vinculante automaticamente, enquanto
a coisa julgada formada em ação com conteúdo condenatório não perderia sua eficácia
automaticamente, dependendo de pronunciamento judicial.
É, portanto, esse o problema metodológico que nos parece relevante e que gera
efeitos indesejados e incompatíveis quando analisamos a experiência do contencioso
tributário, independentemente do dilema semântico que se pretende impor.
A rigor, não há como se compatibilizar as premissas teóricas do Parecer com
suas propostas metodológicas que sustentam a “cessação automática” da coisa julgada, o
que fica evidente com os novos parâmetros rescisórios veiculados pelo CPC/2015.
No campo teórico, o Parecer é inteiramente impregnado por uma postura
pragmatista, pautado que é por uma racionalidade do sistema stare decisis de valorização
jurisprudencial, encampando e admitindo a segurança jurídica concreta, num processo
indutivo e abdutivo que, portanto, nega e contrapõe o dogma formalista da civil law.
Ao mesmo tempo, adota a metodologia dedutiva que procura mecanizar, de
forma automática e nos termos de uma lei, a incidência do precedente racionalizador, em
prejuízo à continuidade e respeito às decisões judiciais: ou seja, um nítido desencaixe de
métodos que acaba retroalimentando o problema da ineficiência dos conceitos legais.
158
São oportunas, pois, as lições de LUIZ GUILHERME MARINONI, segundo o
qual: “Impedir que a lei declarada inconstitucional produza efeitos é muito diferente do
que negar efeitos a um juízo de constitucionalidade, legitimado pela própria
Constituição.”210
Não é possível, pois, valorizar os precedentes e conferir racionalização ao
contencioso, mas, ao mesmo tempo, continuar operando sob o modelo clássico da lógica
mecanicista, onde prevale a não-contradição, identidade e terceiro excluído como
postulados gerais e apriorísticos. A mudança de objeto impõe, incontornavelmente, a
mudança dos métodos, sendo preciso, portanto, evoluir a lógica subsuntiva e tratar os
precedentes de maneira responsável.
Em resumo, o Parecer é extremamente atual ao considerar a evolução do
sistema de precedentes, mas ainda assim está envolvido numa crise metodológica que ele
mesmo pretende superar, qual seja, a lógica universal de um sistema dedutivo de civil law,
que busca uma subsunção mecânica e automática da lei ao caso concreto.
Não basta substituir o termo lei pelo termo precedente, mas ao mesmo tempo
continuar operando a unidade, coerência e completude como postulados gerais que
preenchem dedutivamente o sistema e, assim, sustentar a incidência automática do
paradigma, com efeito rescisório imediato (um silogismo lógico), sem a necessidade de
qualquer providência jurisdicional (ainda que administrativa), sob pena de continuarmos
no mesmo dilema, envolvidos numa segurança jurídica abstrata, onde dispositivos do
julgado são aplicados como lei, desconectados dos fatos e dos fundamentos jurídicos.
210
“Precedentes obrigatórios”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 449.
159
Além de tudo isso, é o próprio CPC/2015 que, ao modificar o tratamento da
coisa julgada e da rescisória, acaba por infirmar a “cessação automática” da eficácia
vinculante da coisa julgada inconstitucional, como veremos adiante.
1.2. Os novos regimes rescisórios incorporados pelo CPC/2015
Tivemos a oportunidade de analisar, no item 1, as mudanças gerais promovidas
pelo CPC/2015 relativamente à rescisória. Agora, cumpre-nos retornar, especificamente,
para os regimes rescisórios adotados quando falamos de adequação jurisprudencial,
sobretudo diante do novo artigo 535. Retomemos o quadro comparativo:
CPC/2015 CPC em vigor
Art. 535. A Fazenda Pública será intimada na pessoa de seu
representante judicial, por carga, remessa ou meio eletrônico,
para, querendo, no prazo de 30 (trinta) dias e nos próprios
autos, impugnar a execução, podendo arguir:
III - inexequibilidade do título ou inexigibilidade da
obrigação;
§ 5o Para efeito do disposto no inciso III do caput deste
artigo, considera-se também inexigível a obrigação
reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou
ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação
da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal
Federal como incompatível com a Constituição Federal, em
controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
§ 7o A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no §
5o deve ter sido proferida antes do trânsito em julgado da
decisão exequenda.
§ 8o Se a decisão referida no § 5o for proferida após o
trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação
rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado
da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os
embargos só poderão versar sobre:
II - inexigibilidade do título;
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do
caput deste artigo, considera-se também inexigível o
título judicial fundado em lei ou ato normativo
declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal
Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei
ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal
como incompatíveis com a Constituição Federal.
Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode
ser rescindida quando: (...)
V - violar manifestamente norma jurídica;
§ 3o A ação rescisória pode ter por objeto apenas 1 (um)
capítulo da decisão.
Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado,
pode ser rescindida quando: (...)
V - violar literal disposição de lei; (...)
Art. 975. O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos
contados do trânsito em julgado da última decisão proferida
no processo.
Art. 495. O direito de propor ação rescisória se extingue
em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da
decisão.
Desde logo, fica evidenciado dois distintos regimes rescisórios em caso de
mudança jurisprudencial, sendo (i) um comum (artigo 966), previsto para a rescisão das
160
sentenças não dotadas de força executiva (eminentemente declaratórias); e (ii) outro
especial (artigo 535), previsto para a rescisão das sentenças com força executiva.
Esse regime especial, ainda, é subdividido em dois, sendo (ii.a) um para o caso
de mudança jurisprudencial anterior à formação da coisa julgada rescindenda/exequenda
(artigo 535, §§ 5º e 7º); e (ii.b) outro para o caso de mudança jurisprudencial posterior à
formação da coisa julgada rescindenda/exequenda (artigo 535, § 8º), cujo termo a quo será
contato a partir do trânsito em julgado da decisão paradigma211
.
O regime rescisório especial, portanto, é mais restrito, podendo ser manejado
contra decisão com força de título executivo (podendo ser tanto condenatória, como
constitutiva e/ou, eventualmente, declaratória), sendo que, quando formada antes da
alteração jurisprudencial, deverá ser objeto de ação própria; e quando formada após a
alteração jurisprudencial, poderá ser atacada nos próprios embargos à execução (agora,
impugnação ao cumprimento de sentença).
Em outras palavras, quando a modificação jurisprudencial (mudança no estado
de direito) for posterior à coisa julgada com força de título executivo, deve-se propor a
rescisória especial com prazo de dois anos contados do novo paradigma; quando a
modificação jurisprudencial for anterior à formação da coisa julgada exequenda, pode-se
arguir a relativização no prazo e no corpo da impugnação ao cumprimento de sentença.
Ainda no caso da rescisória especial por alteração jurisprudencial anterior
(“embargos rescisórios”), em atenção aos princípios da confiança, boa-fé e irretroatividade
211
Observamos, apenas, a ausência de previsão desse novo prazo rescisório também no artigo 975, que trata
exatamente do Capítulo da ação rescisória. De todo modo, parece-nos que prevaleceu a doutrina de Nelson
Nery Jr. e Georges Abboud sobre o assunto, no sentido de proteção da coisa julgada como crítica à doutrina
relativista, ou da relativização da chamada coisa julgada inconstitucional. Conforme Lenio Streck, “o
enfraqueciomento do instituto da coisa julgada é um forte elemento predador da autonomia do direito. É sob
esse aspecto que devem ser vistos os arts. 475-l, § 1º, e 741, parágrafo único do CPC. Por isso, têm razão
Nery Jr. e Abboud.” STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, 3ª edição. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 565.
161
em matéria tributária212
, entendemos que os indébitos reconhecidos pela decisão
exequenda/rescindenda, anteriores à formação do novo paradigma, deverão ser mantidos.
A situação seria esta:
Ou seja, o indébito 1, ainda que acolhido pela coisa julgada quando já existente
mudança jurisprudencial (portanto mudança anterior à formação da coisa julgada),
continuaria tendo sua executabilidade resguardada. E ainda, o conteúdo meramente
declaratório (prospectivo) da coisa julgada continuaria plenamente vigente e eficaz,
devendo ser objeto de ação rescisória comum ou ação revisional.
Desse modo, a sentença meramente declaratória, ou seja, aquela que objetiva
tão somente resguardar relações jurídicas prospectivas, ficará sujeita apenas à rescisória
comum, cujo prazo para ajuizamento é de dois anos contados do seu trânsito em julgado,
não se submetendo à rescisória especial por alteração jurisprudencial anterior ou posterior.
Caso o prazo decadencial dessa rescisória já tenha sido esgotado, continua em
vigor no CPC/2015 a chamada ação revisional. Vejamos:
CPC/2015 CPC em vigor
Art. 505. Nenhum juiz decidirá novamente as
questões já decididas relativas à mesma lide, salvo:
I - se, tratando-se de relação jurídica de trato
continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de
direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que
foi estatuído na sentença; (...)
Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as
questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:
I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa,
sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso
em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído
na sentença; (...)
212
Temas muito bem trabalhados por Misabel Abreu Machado Derzi, em sua obra “Modificações da
jurisprudência no Direito Tributário”. São Paulo: Noeses, 2009.
Propositura ação
Paradigma Coisa julgada
no sentido 1
Jurisprudência 1 Jurisprudência 2
Indébito 2 Indébito 1
162
Por tais razões, há que se distinguir, a partir de então, os capítulos e
fundamentos da coisa julgada, bem como o momento da alteração jurisprudencial, pois
estarão sujeitos a diferentes regimes rescisórios213
.
Até porque, como já esclareceu o próprio STF214
ao definir e especificar o
alcance da Súmula 239215
, as eficácias normativas das decisões tributárias variam de
acordo com o tipo de relação jurídica que se discute em cada ação, a saber:
“(...) A súmula 239/STF baseia-se em dois precedentes, o AI 11.227-
Embargos (DJ de 10/2/1945) e o RE 59.423-Embargos (DJ de
12/6/1970). Ambos os precedentes fazem uma importante distinção
para fins de cálculo da extensão dos efeitos da coisa julgada relativa à
tributação.
Naquelas oportunidades, entendeu a Corte que as sentenças que
afastassem relações jurídicas tributárias individuais e concretas
ficavam circunscritas ao tempo em que ocorridos os fatos jurídicos
tributários. É o típico caso no qual pede-se a anulação de lançamento
tributário.
Em sentido diverso, se a sentença afastasse relações jurídicas
tributárias individuais, mas de menor densidade de concreção (mais
abstratas), de modo a proibir a constituição do crédito tributário,
irrelevante a presença de circunstâncias de fato distintivas, os efeitos
da coisa julgada se projetariam para o futuro. É esta a atualização
que faço da nomenclatura utilizada nos antigos precedentes. (...)”
Por exemplo, uma declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária
transitada em julgado de forma procedente, com pedido prospectivo para resguardar
recolhimentos futuros e pedido retrospectivo para declarar o direito à compensação dos
indébitos passados. Havendo mudança jurisprudencial antes da formação da coisa julgada,
a fazenda deverá manejar: (i) ação rescisória comum, no prazo de dois anos, contra o
capítulo declaratório (prospectivo), caso deseje lançar/cobrar tributos relativos a fatos
213
Tal entendimento, aliás, de certa forma já foi utilizado pela própria PGFN em seu Parecer 121/2015, ao
tratar da “teoria dos capítulos da sentença” e da unicidade recursal, quando então sustentou ser
“perfeitamente razoável a tese de que a existência de partes autônomas e distintas em uma decisão
permitiria uma flexibilização à unicidade no segundo grau de jurisdição (...).” 214
RE n.º 597.678, Relator Min. Joaquim Barbosa, julgado em 10/11/2010. 215
“Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada
em relação aos posteriores.”
163
geradores ocorridos nos últimos cinco anos; ou (i.a) ação revisional contra o capítulo
declaratório, caso já tenha escoado o prazo de dois anos da rescisória comum, hipótese em
que poderá lançar/cobrar os tributos relativos a fatos geradores ocorridos a partir de então;
e (ii) “embargos rescisórios” contra o capítulo condenatório (retrospectivo) da sentença, de
forma a retirar a sua executabilidade (respeitados os indébitos anteriores ao paradigma).
Se a mudança jurisprudencial for posterior à formação da coisa julgada, a
fazenda pública deverá manejar: (i) ação rescisória especial contra o capítulo condenatório
(retrospectivo) da sentença (respeitados os indébitos anteriores ao novo paradigma), no
prazo de dois anos da formação da decisão do STF, podendo e devendo, nessa hipótese,
requerer uma tutela provisória para suspender a executabilidade do título executivo
judicial; e (ii) ação revisional contra o capítulo declaratório (prospectivo) da sentença, não
cabendo rescisória comum para atingir e permitir o lançamento de fatos geradores
passados, preservando-se, com isso, a segurança jurídica e os princípios da confiança, boa-
fé, irretroatividade e anterioridade em matéria tributária.
Veja-se que o Parecer PGFN 492/2011 volta-se, essencialmente, para a
alteração jurisprudencial posterior à formação da coisa julgada, não distinguindo os
capítulos da sentença rescindenda, concluindo que, indistintamente, tal decisão
supervenientemente inconstitucional teria sua eficácia vinculativa cessada de forma
automática, o que, como vimos, não se compatibiliza com o CPC/2015.
De todo modo, o que temos, em resumo, são novos horizontes para a superação
das patologias decorrente das constantes reviravoltas jurisprudenciais, algo indesejável do
ponto de vista da segurança jurídica. E o CPC/2015, reagindo sintomaticamente, procurou
regulamentar: (i) a fonte dos problemas, com a veiculação de uma incipiente teoria do
164
precedente no artigo 489; e (ii) a resolução dos problemas, com a prescrição e demarcação
dos novos regimes rescisórios para a compatibilização jurisprudencial.
Por fim, vale ressaltar que esse novo quadro rescisório aplica-se às decisões
transitadas em julgado após a entrada em vigor do CPC/2105, conforme regra de direito
intertemporal veiculada no artigo 1.057, segundo o qual: “o disposto no art. 525, §§ 14 e
15, e no art. 535, §§ 7º e 8º, aplica-se às decisões transitadas em julgado após a entrada
em vigor deste Código, e, às decisões transitadas em julgado anteriormente, aplica-se o
disposto no art. 475-L, § 1º, e no art. 741, parágrafo único, da Lei nº 5.869/1973.”
1.3. Análise jurisprudencial do tema e atualização da Súmula 343 do STF
O tema “relativização da coisa julgada inconstitucional” tem sido objeto de
diversos questionamentos judiciais, tendo aportado no STF, especialmente, por conta de
discussões contra a administração pública, levando à reanálise da Súmula 343216
.
Passemos, então, aos julgados que envolvem o tema para, a partir deles,
identificar alguma orientação interpretativa.
No RE 730.462, com repercussão geral reconhecida, julgado em 28/05/2015,
decidiu-se que não é possível desconstituir, após o prazo da rescisória, a coisa
julgada que negou honorários advocatícios, com fundamento em lei posteriormente
declarada inconstitucional em sede de controle concentrado. Nos termos da ementa,
“a decisão do Supremo Tribunal Federal declarando a constitucionalidade ou a
inconstitucionalidade de preceito normativo não produz a automática reforma ou
216
“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver
baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.”
165
rescisão das decisões anteriores que tenham adotado entendimento diferente.
Para que tal ocorra, será indispensável a interposição de recurso próprio ou, se
for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos termos do artigo 485 do
CPC, observado o respectivo prazo decadencial.” No caso, a coisa julgada foi
formada na vigência de uma lei que impedia honorários advocatícios nas demandas
contra o FGTS, tendo essa lei sido posteriormente declarada inconstitucional,
ensejando a rescisória para atacar e adequar o conteúdo condenatório da sentença,
ou seja, trata-se de coisa julgada fundada em norma posterirormente modificada
pela jurisprudência do STF em sede de controle concentrado, sendo que, de acordo
com o Min. Rel. Teori Zavascki, “não se pode confundir a eficácia normativa de
uma decisão que declara a inconstitucionalidade – e que retira a norma do plano
jurídico com efeitos ex tunc (pretéritos) – com a eficácia executiva, ou seja, com o
efeito vinculante dessa decisão (...) o efeito vinculante é pró-futuro, ou seja,
começa a operar da decisão do Supremo em diante, não atingindo atos anteriores.
Quanto ao passado, é preciso que a parte que se sentir prejudicada proponha uma
ação rescisória.” Segundo a PGFN217
, em parte correta, esse tema não se
confundiria com a matéria objeto do Parecer 492/2011, na medida em que trata dos
efeitos retrospectivos da coisa julgada inconstitucional, enquanto o Parecer aborda
os efeitos prospectivos relativamente à relações de trato sucessivo. Desse modo,
para o órgão fazendário ainda prevalece o entendimento da rescisão automática
(cessação da eficácia) da coisa julgada inconstitucional, relativamente aos fatos
geradores continuativos (capítulo declaratório, prospectivo, da sentença
rescindenda). Mas veja-se que o presente julgado faz uma distinção, correta ou não,
entre eficácia normativa (retrospectiva) e eficácia executiva (prospectiva) da
217
Nota n.º 735/2014/PGFN/CASTF.
166
decisão paradigma para, com isso, justificar a impossibilidade de rescisão
automática da coisa julgada inconstitucional. O Parecer PGFN, por sua vez, de
certa forma também trabalha com essa ideia, mas sob o ponto de vista da decisão
rescindenda, dizendo que a alteração do suporte fático e/ou jurídico retira
automaticamente a sua eficácia vinculante (executiva). Contudo, de acordo com o
Min. Teori, a eficácia executiva do novo paradigma não é automática, vale dizer,
não desconstitui automaticamente as coisas julgadas anteriormente formadas de
forma contrária; para a PGFN, a eficácia executiva da coisa julgada
inconstitucional é cessada automaticamente com o advento do novo paradigma
(vide item 1.1), o que é inconciliável. Veja-se que o presente julgado, portanto,
infirma a conclusão do Parecer 492/2011, de que o novo paradigma possuiria
eficácia vinculante (executiva) imediata. Além do mais, no regime do CPC/2015,
apesar de não tratar de matéria tributária, essa coisa julgada (capítulo
condenatório), diante da modificação jurisprudencial posterior, em tese poderia ser
objeto da rescisória especial, com prazo de 2 (dois) anos contados do paradigma;
No RE 596.663, também com repercussão geral reconhecida, julgado em
29/09/2014, discutiu-se a limitação temporal da coisa julgada que reconheceu a
incorporação de determinado percentual à remuneração de um servidor, inclusive
para o futuro (conteúdo condenatório de trato sucessivo), percentual este que
posteriormente foi objeto de dissídio coletivo. Assim, decidiu-se que houve
alteração no estado de fato e, consequentemente, o exaurimento da eficácia da
sentença. Em resumo, em execução de julgado contra o Banco do Brasil, a sentença
exequenda foi limitada no tempo, razão pela qual o trabalhador/exequente ajuizou
ação rescisória para que fosse reestabelecida a condenação, tendo sido negada a
pretensão rescisória sob o fundamento de alteração posterior no estado de fato e de
167
direito, já que o percentual remuneratório foi incorporado na remuneração do
servidor por dissídio coletivo. Ou seja, estava em discussão, em sede de execução
de título judicial na justiça do trabalho, o conteúdo condenatório da decisão
fundada em norma cujo suporte fático foi posteriormente alterado, tendo o
exequente ajuizado ação rescisória, negada por conta do adequado cotejo analítico
promovido pela decisão rescindenda. O presente julgado, portanto, trabalha com a
ideia da cláusula rebus sic stantibus, não tratando de matéria tributária ou mesmo
da alteração da posição jurisprudencial;
No STJ, quando do julgamento do REsp 1.118.893, em sede de repetitivo, negou-se
a possibilidade de novas cobranças de CSLL, em violação à coisa julgada
declaratória (prospectiva) existente em favor do contribuinte, pois ainda que
houvesse mudança de texto, não houve mudança de norma, também não se
podendo falar em cessação automática da eficácia da coisa julgada em razão da
posterior e parcial alteração de jurisprudência. No caso, existiu mudança de lei
posterior à formação da coisa julgada e, então, a Fazenda Nacional passou a lançar
e cobrar a exigência, tendo o contribuinte se insurgido em embargos à execução
fiscal, alegando violação da coisa julgada. Contudo, se discutiu apenas o alcance da
Súmula 239 do STF nas relações continuativas (CPC, artigo 471, I), não tendo sido
debatido, ao menos diretamente, a tese fazendária da “relativização/cessação
automática da coisa julgada inconstitucional” (Parecer PGFN 492/11), até porque
foi reconhecido que a coisa julgada continuava produzindo efeitos. De todo modo,
verifica-se que a RFB, utilizando-se de forma indevida do Parecer PGFN 492/2011,
passou a autuar os contribuintes diante da alteração do texto de lei que embasou as
coisas julgadas em torno da CSLL, enquanto o Parecer rechaça a tese positivista
que confunde texto de lei com norma.
168
Ainda que assim não fosse, o voto condutor do Min. Arnaldo Esteves Lima também
é claro ao afirmar que “o fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente
manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada
pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar
validade à própria existência do controle difuso de constitucionalidade,
fragilizando, sobremodo, a res judicata, com imensurável repercussão negativa no
seio social”. A questão da CSLL está sendo discutida no CARF, que tem recebido
autuações contra contribuintes que possuem decisão transitada em julgado e, em
sua Câmara Superior, tem mantido o entendimento do STJ218
.
Na perspectiva do CPC/2015, essa coisa julgada declaratória, com a modificação
jurisprudencial posterior (se confirmada), deverá ser objeto de ação rescisória
comum (se dentro do prazo) ou ação revisional, se decorrido o prazo rescisório;
Por fim e talvez mais relevante, temos o RE 590.809, julgado sob repercussão geral
em 22/10/2014, no qual se discutiu especificamente o tema da ação rescisória para
uniformização jurisprudencial. No caso, não foi reconhecida a possibilidade de
rescisão automática do acórdão que autorizou o crédito de IPI em relação a insumos
isentos, não tributados ou tributados à alíquota 0, fundado em jurisprudência então
218
Conforme acórdão CSRF 91.01-002.087, de 10/03/15, no qual de cancelou o AIIM lavrado contra
contribuinte detentor de coisa julgada em seu favor: “Contribuição Social sobre o Lucro Líquido - CSLL
Ano-calendário: 2005 RELAÇÃO JURÍDICO TRIBUTÁRIA CONTINUATIVA. DECISÃO TRANSITADA EM
JULGADA EM AÇÃO JUDICIAL QUE DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DA
CSLL NOS TERMOS DA LEI Nº 7.689/88. COISA JULGADA. DECISÃO POSTERIOR EM AÇÃO DIRETA
DE CONSTITUCIONALIDADE. EFEITOS. ALCANCE TEMPORAL. RECURSO ESPECIAL 1.118.893 MG
(2009/00111359), SUBMETIDO AO REGIME DO ARTIGO 543C DO CPC. ARTIGO 62- A DO
REGIMENTO INTERNO DO CARF. Segundo entendimento do STJ proferido no julgamento do Recurso
Especial 1.118.893 MG, submetido ao artigo 543 C do CPC: Nos casos que envolvem relação jurídico
tributária continuativa, a decisão transitada em julgado, declarando a inexistência de relação jurídico
tributária entre o contribuinte e o fisco, faz coisa julgada em relação a períodos posteriores. Nos casos em
que há decisão judicial transitada em julgado, em controle difuso, declarando a inexistência de relação
jurídico tributária entre o contribuinte e o fisco, mediante declaração de inconstitucionalidade de lei que
instituiu determinado tributo, a decisão posterior, em controle concentrado, mediante Ação Declaratória de
Constitucionalidade, em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a
relação jurídica estabilizada pela coisa julgada.”
169
pacificada pelo STF, mesmo que posteriormente modificada. Ou seja, negou-se a
rescisória por divergência interpretativa, ainda que a divergência seja
constitucional, tendo sido rediscutido o alcance da Súmula 343, in verbis:
“(...) AÇÃO RESCISÓRIA – VERBETE Nº 343 DA SÚMULA DO
SUPREMO. O Verbete nº 343 da Súmula do Supremo deve de ser
observado em situação jurídica na qual, inexistente controle concentrado
de constitucionalidade, haja entendimentos diversos sobre o alcance da
norma, mormente quando o Supremo tenha sinalizado, num primeiro
passo, óptica coincidente com a revelada na decisão rescindenda.”
Em sua manifestação no Plenário, e já se referindo às orientações do então projeto
do novo CPC, o Min. Luiz Fux registrou que:
“(...) esse é um tema moderníssimo, é um tema que está à altura da
composição da Corte, é um tema que nós deveríamos nos debruçar com
essa ótica que foi aqui suscitada pelo Ministro Marco Aurélio, a quem
parabenizo pelo passo adiante que promoveu ao dar uma nova exegese a
essa Súmula nº 343: interpretação controvertida não pode gerar
violação a literal dos processos.”
O Min. Celso de Mello, por sua vez, transcreveu seus reiterados entendimentos no
sentido de que:
“(...) superveniência de decisão do Supremo Tribunal Federal,
declaratória de inconstitucionalidade de diploma normativo utilizado
como fundamento do título judicial questionado, ainda que impregnada
de eficácia ‘ex tunc’ – como sucede, ordinariamente, com os julgamentos
proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 – RTJ
164/506-509 – RTJ 201/765) –, não se revela apta, só por si, a
desconstituir a autoridade da coisa julgada, que traduz, em nosso
sistema jurídico, limite insuperável à força retroativa resultante dos
pronunciamentos que emanam, ‘in abstracto’, da Suprema Corte.
Doutrina. Precedentes.
(...)
Cabe ter presente, neste ponto, o que a própria jurisprudência
constitucional do Supremo Tribunal Federal vinha proclamando, já há
quatro (4) décadas, a respeito da invulnerabilidade da coisa julgada em
sentido material, enfatizando, em tom de grave advertência, que
sentenças transitadas em julgado, ainda que inconstitucionais, somente
poderão ser invalidadas mediante utilização de meio instrumental
adequado, que é, no domínio processual civil, a ação rescisória.”
(grifamos).
170
Portanto, o que restou decidido, em sede de repercussão geral, é que: (i) se deve
aplicar a Súmula 343 mesmo diante de controvérsia de matéria constitucional,
desde que tal controvérsia seja do próprio STF (como foi o caso dos créditos de IPI
sobre insumos desonerados); e (ii) a superveniência de decisão do STF não gera,
por si só, efeitos rescisórios. Em linha com o RE 730.462, acima mencionado, o
pressuposto relevantíssimo deste julgamento, em suma, é de que não há rescisão
automática da chamada coisa inconstitucional e, indo além, também não cabe ação
rescisória sequer quando houver alteração jurisprudencial, no próprio STF, anterior
ou posterior à decisão rescindenda.
Ainda sobre esse julgado, vale registrar a Nota n.º 1.408/2014/PGFN/CASTF,
segundo a qual, reconhecendo releitura da Súmula 343 do STF, continua
entendendo que “se houver interpretação constitucional controvertida, mas não
predominante no STF, não incide a Súmula 343, sendo, portanto, cabível o
ajuizamento de ação rescisória.” Fica a dúvida, no entanto, se a PGFN estaria
assumindo e, de alguma forma, reformulando indiretamente o entendimento do
Parecer 492/11, na medida em que reconhece a necessidade de ajuizamento de ação
rescisória contra o conteúdo declaratório (prospectivo) da coisa julgada
rescindenda. Parece-nos que sim.
Pelo exposto, em razão dos recentes posicionamentos do STF e das Notas da
PGFN, não é mais correto dizer que a interpretação controvertida de matéria constitucional
é, indistintamente, capaz de afastar o teor da Súmula 343 e, com isso, justificar tanto a
rescisória comum como, particularmente, os “embargos rescisórios” e a “nova rescisória”
especial do artigo 535 do CPC/2015, pois a ideia por detrás disso tudo é a uniformização
irrestrita da interpretação constitucional, hoje não mais absoluta.
171
O que queremos dizer, em síntese, é que não é possível se falar em
“inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação (...) fundado em lei ou ato
normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal”, no caso deste
pronunciamento representar mudança jurisprudencial do próprio STF. É possível, então,
que haja ato normativo considerado inconstitucional pelo STF, mas que ainda assim não
autorize a revisão das coisas julgadas formadas em sentido contrário.
1.4. Quadro sintético dos regimes rescisórios
Em vista dos novos contornos rescisórios incorporados pelo CPC/2015, e
também das peculiaridades da jurisprudência, elaboramos o seguinte quadro sintético:
Capítulo da decisão com conteúdo
executivo
Capítulo meramente
declaratório da decisão
Alteração jurisprudencial
anterior, sem controvérsia da
matéria constitucional no STF
Rescisória especial no bojo da
impugnação ao cumprimento de
sentença, resguardados os indébitos
anteriores ao novo paradigma Rescisória comum no prazo
de 2 (dois) anos contados
da decisão rescindenda Alteração jurisprudencial
posterior, sem controvérsia da
matéria constitucional no STF
Rescisória especial autônoma, no prazo
de 2 (dois) anos contados da decisão
paradigma, resguardados os indébitos
anteriores
Alteração jurisprudencial
anterior ou posterior, com
controvérsia da matéria
constitucional no próprio STF
Não cabe rescisão Não cabe rescisão, apenas
ação revisional
Alteração jurisprudencial
anterior ou posterior, com
prazo rescisório vencido
N/A Ação revisional
172
1.5. Pela releitura metodológica do Parecer PGFN n.º 492/2011: fechamento
estrutural, confiança no tradutor e controle das interpretações
Retomando às premissas inaugurais, os conteúdos dos conceitos legais
encontram-se delimitados nos casos concretos que geram os precedentes, de modo que a
estabilização das expectativas normativas através da coisa julgada deve ser compreendida
de forma dinâmica, por meio das questões principais, do conjunto da postulação, dos
fundamentos determinantes da causa e da boa fé.
E, conforme passagem já citada de GEORGE BROWNE REGO:
“Cada caso insere-se num conjunto de circunstâncias específicas e,
assim, tem a sua própria história. Sua solução rejeita portanto modelos
ortodoxos e sua análise varia em função de um maior domínio possível
dos elementos que comparecem à situação conjuntural, associado ao
esforço imaginativo no sentido de encontrar soluções mais apropriadas e
convenientes para cada caso. Os antecedentes são também muito
importantes.”219
Desde logo precisamos superar, então, um primeiro impasse procedimental
veiculado pelo Parecer PGFN n.º 492/11, na medida em que este pressupõe uma atividade
administrativa mecanizada de adequação do caso “rescindendo” ao paradigma, onde as
questões principais, o conjunto da postulação e os fundamentos determinantes
jurisdicionalmente delineados são subsumidos através de um silogismo lógico pela própria
autoridade fazendária, sem qualquer critério analítico que considere, no mínimo, os
conteúdos e as eficácias decisórias (declaratória x condenatória).
Ou seja, a abertura semântica do caso é reenquadrada administrativamente, à
margem de qualquer controle jurisdicional ou procedimento dialógico.
219
REGO, George Browne. “O pragmatismo como alternativa à legalidade positivista: o método jurídico-
pragmático de Benjamin Nathan Cardozo”, in “Revista Duc In Altum Caderno de Direito”, vol. 1, nº 1, jul-
dez. 2009, p. 45/46.
173
Em termos simplificados, a coisa julgada será relativizada (terá sua eficácia
cessada), de forma automática, mediante simples lançamento (relativo aos períodos
posteriores ao paradigma) dos créditos tributários pela autoridade administrativa,
responsável por fazer o silogismo lógico do caso com o precedente paradigmático e, por
assim dizer, implementar o overruling (certificação da superação jurisprudencial),
exercendo o controle da legalidade do ato judicial220
.
Esse, portanto, seria o segundo impasse procedimental, senão de ordem
constitucional, na medida em que pressupõe a superação ou o redimensionamento da coisa
julgada pelo Poder Executivo. Talvez a solução para tal problema pudesse passar pela
incorporação de um procedimento contencioso administrativo que garanta o diálogo
contraditório do contribuinte na confrontação e cotejo de seu caso, antes da superação da
coisa julgada pelo simples e oneroso lançamento administrativo.
Seja como for, assumindo a premissa de que os juízes criam direito,
reconhecemos a vinculatividade da sua fundamentação e, com isso, preservamos a
segurança jurídica e a continuidade jurisprudencial sem incorrer em idealismo ou
politicismo, permitindo a constante adaptação, transformação e evolução dos conceitos
normativos, que se dá mediante abertura cognoscitiva dos casos concretos, ao lado do
fechamento estrutural, que exige a atuação jurisdicional para o confronto da coisa julgada.
Admitir que um lançamento tributário, dotado de uma específica e limitada
função (a constituição do crédito tributário), possa promover a análise comparativa do caso
rescindendo/superando com o novo paradigma jurisprudencial (ainda que isso de fato fosse
220
Absolutamente pertinente, aqui, a observação de Streck: “Despiciendo lembrar que, mesmo no sistema de
precedentes da common law, uma vez construído um precedente, este não se transforma numa norma
abstrata. Nem mesmo sua aplicação é simplesmente dedutivista – realizada através do vetusto modelo de
subsunção. A construção do precedente precisa ser reconstruída no caso posterior.” STRECK, Lenio Luiz.
“Jurisdição constitucional e decisão jurídica”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 736.
174
realizado, e não o é), é o mesmo que admitir a abertura estrutural do sistema, autorizando o
controle da legalidade dos atos judiciais pela administração pública.
Isso porque, numa perspectiva analítica, a coisa julgada (declaratória) em favor
do contribuinte representa um obstáculo de ordem sintática que condiciona e redesenha,
dentro de certos limites objetivos e subjetivos, a regra-matriz aplicável a determinado caso,
ou seja, fenômeno parecido com a isenção (condicionada ou não), que igualmente
representa um obstáculo de ordem sintática ao ciclo de positivação, só podendo ser
revogada por lei. Assim, deve-se respeitar a hierarquia dos veículos introdutores,
operando-se de acordo com suas próprias estruturas.
Por essas razões, não há dúvidas de que as particularidades do caso concreto,
das atividades empresariais e da realidade social, em virtude da abertura cognoscitiva
própria da normatividade jurídica, impõem e determinam mudanças jurisprudenciais e
mesmo (mas não automaticamente) da coisa julgada. Mas, como insistimos, abertura
cognoscitiva, ao lado do fechamento estrutural (estrutura hierarquizada do sistema).
O Parecer PGFN n.º 492/11 parte da correta premissa de que os juízes não são
meros aplicadores da lei, de modo que a sentença não é um ato de subsunção mecânica,
mas, contudo, ao final pretende que a mudança jurisprudencial seja aplicada
mecanicamente pela própria administração fazendária, internalizando um ato
administrativo (lançamento lato sensu) para dentro do sistema normativo próprio da
atuação jurisdicional e, o que é pior, sem a observância do contraditório.
A autonomia do direito, como já vimos, não está em negar a influência dos
outros sistemas de comunicação na sua composição normativa, numa proposta isolante
entre ser e dever-ser, como se houvesse dissociação entre norma e normatividade.
175
Mas, alterando-se o suporte fático-jurídico que integra a normatividade, não há
uma alteração (causação) automática da norma e da coisa julgada. Até porque, como vimos
no já mencionado RE 582.525/SP (repercussão geral julgada em 07/02/14), é o próprio
STF que incorpora a ideia de que a delimitação dos conteúdos semânticos cabe ao juiz.
Por isso, é prerrogativa da atividade jurisdicional exercer, quando o caso e nas
hipóteses admitidas, o controle de eficácia da coisa julgada.
Na linha de TÁCIO LACERDA GAMA, podemos dizer que a
rescisão/cessação da coisa julgada trata-se de uma segunda norma sancionatória da
competência, já que a norma fixada na coisa julgada rescindenda seria uma primeira
sanção ao exercício irregular da competência tributária, o que reforça a necessidade de
atuação jurisdicional, pois inviável a sanção administrativa do ato jurisdicional.
Aliás, é o próprio artigo 489 do CPC/2015 que, a partir de então, exige a
demonstração, pelo juiz, da “existência de distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento”, não havendo a transferência ou delegação dessa atividade
para a autoridade administrativa, sobretudo sem um procedimento dialógico e imparcial.
Portanto, em resumo não há que se falar em cessão/rescisão automática da
coisa julgada inconstitucional por duas razões: (i) uma de ordem sintática, pois há que se
distinguir as diferentes espécies de sentença e/ou capítulos do julgado (condenatório ou
declaratório); e (ii) outra de ordem semântica e pragmática, na medida em que o confronto
entre a coisa julgada rescindenda e o paradigma deve levar em conta a tradução e o cotejo
do quadro fático-jurídico por um sujeito imparcial, observando-se o contraditório.
176
A teoria da tradução221
, nesse sentido, reforça a necessidade de que a atividade
de reenquadramento da coisa julgada deve ser exercida por um órgão imparcial. Isso
porque, os processos decisórios são instrumentos de tradução dos eventos para a linguagem
social, da linguagem social para a linguagem jurídica, da linguagem jurídica para outra
linguagem jurídica, desta para a linguagem social, e assim por diante nas diversas semioses
que integram os processos de construção jurídica.
Portanto, o diálogo comparativo entre o precedente e o caso rescindendo
representa um exercício de tradução do paradigma e da coisa julgada, quando então se
promove a adequação decisória dos casos e, com isso, se transmite uma nova significação
ao destinatário da mensagem, vale dizer, ao contribuinte que foi parte no caso rescindendo.
Para o critério da boa tradução, desta feita, rejeita-se a teoria realista que
propõe uma transposição da língua ao mundo real (palavra da língua 1 = coisa = palavra da
língua 2), bem como a teoria idealista que sugere uma adequação da língua ao mundo real,
por intermédio do pensamento (palavra da língua 1 = pensamento = palavra da língua 2).
Assim, conforme TÉRCIO FERRAZ JUNIOR222
:
“A resposta remete-nos a uma questão pragmática: trata-se de uma
questão de enfoque. O critério da boa tradução, diz Flusser, repousa no
enfoque do tradutor, ou, mais precisamente, na aceitação do enfoque do
tradutor. Aceitar o enfoque do tradutor significa abrir-lhe um crédito de
confiança. Ou seja, as fronteiras, de que falamos na articulação
linguística e que nos permitem distinguir entre rio, riacho, ribeirão, etc.,
são preenchidas de modo diferente de língua para língua, conforme suas
respectivas regras de uso. Contudo, a transferência de uma sentença na
221
“Reportando-nos aqui ao pequeno ensaio de Flusser: Para uma teoria da tradução, admitamos que
traduzir é transpor o texto de uma para o de outra língua. Referimo-nos a duas línguas naturais, como o
português, o inglês, mas podemos ampliar o conceito. Toda vez que um cientista explica para o público não
especializado uma teoria – obra de divulgação científica –, realiza também uma tradução, isto é, transpõe
uma língua técnica numa língua natural. Que as traduções são possíveis atesta o fato de que elas ocorrem.
Qual, porém, seu fundamento teórico?” JUNIOR, Tércio Sampaio Ferraz. “Interpretação jurídica:
interpretação que comunica ou comunicação que se interpreta?” In: HARET, Florence; CARNEIRO, Jerson
(coords.). “Vilém Flusser e Juristas. Comemoração dos 25 anos do Grupo de Estudos de Paulo de Barros
Carvalho.” São Paulo: Noeses, 2009, p. 24. 222
Obra citada, p. 29.
177
língua A para a língua B depende do enfoque do tradutor, para quem se
abre um crédito de confiança. Que significa isso?
Se uma pessoa não tem certeza se a sentença que melhor traduz ‘as suas
ideias ultrapassam nossa época’ é ‘his ideas are ahead o four time’,
certamente se dirigiria a alguém que conhece bem o inglês. Trata-se de
uma confiança na competência.
(...) O que chamamos, então, de uso competente, base da confiança no
tradutor, depende de uma relação de poder, o poder de violência
simbólica que, numa comunidade linguística, se manifesta como
autoridade, liderança e reputação.”
Desta feita, permitir que o próprio órgão fazendário realize a tradução do
precedente e adequação da coisa julgada, significa conferir-lhe um poder de violência
simbólica que, pelo modelo constitucional de processo, ele não detém.
Conforme CLARICE VON OERTZEN DE ARAÚJO, “para o universo
jurídico essa tradução chama-se incidência”223
, e, como vimos, a incidência do precedente
ao caso concreto não se opera (ou melhor, não é operada) mediante um silogismo lógico,
de forma automática, senão por meio de um juízo analógico-comparativo.
É na adequação decisória que caracteriza o processo de tradução, também, que
se exerce o controle das interpretações extensivas ou restritivas (problema lógico, de teoria
das classes, e extra-lógico, dos conteúdos normativos delimitados pelas particularidades
dos casos), legitimando a operação a partir do órgão judicial.
Os limites semânticos do precedente e do caso concreto, portanto, não podem
ser definidos externamente por um juízo no qual se predomina o interesse arrecadatório.
Para a superação de todos esses obstáculos metodológicos que contaminam o
Parecer PGFN n.º 492/2011, e procurando conciliar as suas premissas teóricas, de duas
uma: ou se impõe o ajuizamento da competente medida judicial para a compatibilização e
adequação jurisprudencial (de acordo com o quadro rescisório transcrito no item 1.4,
223
ARAÚJO, Clarice von Oertzen de . “Da incidência como tradução.” In: HARET, Florence; CARNEIRO,
Jerson (coords.). “Vilém Flusser e Juristas. Comemoração dos 25 anos do Grupo de Estudos de Paulo de
Barros Carvalho.” São Paulo: Noeses, 2009, p. 157.
178
acima); ou, de lege ferenda, se cria um procedimento contencioso administrativo que
permita à autoridade fazendária, no exercício de função jurisdicional atípica, garantir o
diálogo angular e imparcial inerente a uma atividade julgadora, podendo-se até mesmo,
como forma de desjudicializar as discussões, incentivar o contribuinte que reconheça
espontaneamente a superação da sua coisa julgada, com a exclusão da multa e juros.
2. Incidência do precedente e juízo de adequação: identidade x similitude jurídica
Do que dissemos até aqui, insistimos: num sistema de valorização de
precedentes, é exatamente sua peculiar normatividade que impede tratarmos a incidência
dos julgados racionalizadores a partir de um método dedutivo e mecanizado de subsunção
ao caso “rescindendo”, numa espécie de silogismo lógico.
A essa altura, podemos afirmar que é exatamente por meio dessa dinâmica que
se confere legitimidade à tributação a partir da normatividade dos precedentes. Vale dizer
que, a confiança dos precedentes, num verdadeiro sistema stare decisis, legitima a
atividade exacional através do conjunto de semioses democraticamente construídas.
Por isso, devemos superar o dogma da subsunção, ou causação, sendo mais
correto falarmos em adequação, pois o precedente só pode ter força normativa a partir da
sua fundamentação, e não meramente do dispositivo.
Assim, a correta identificação e delimitação da profundidade objetiva do
precedente leva ao problema de sua incidência ao caso concreto, colocando em questão a
atividade interpretativa de adequação perante a coisa julgada incompatível, de modo que o
intercâmbio integrativo entre os casos não pode ser mecanizado.
179
É preciso, pois, detectar as questões principais (determinantes fáticas e
jurídicas), o conjunto da postulação (causas de pedir e pedidos) e os fundamentos
determinantes dos precedentes que fundamentam o caso e do próprio caso, para então
confrontar a normatividade do paradigma.
Nesses termos, desde logo verificamos que o precedente incide, na extensão de
seus limites objetivos, aos casos com similitude jurídica, ou seja, que possuem similares
âmbitos e programas normativos, em que pese possa haver dessemelhança fática.
Analisando os aspectos lógicos que compõem o juízo de semelhança e/ou
dessemelhança, assim nos ensina LOURIVAL VILANOVA224
:
“O ‘ser semelhante a’ é propriedade relacional que não encontra
tradução formal adequada. A semelhança é uma comunidade conotativa
parcial: dois termos x e y são semelhantes se têm conotação comum M e
conotação diferencial N. Se carecessem de conotação comum M, seriam
termos diferentes. Se coincidissem em conotação, seriam termos
equivalentes ou equissignificativos. Agora, formalmente não podemos
transitar da fração conotativa comum, eliminando a fração não-comum,
para fazer a subsunção ou includência silogística. Não há passagem
formal do enunciado predicativo “A é B” para o enunciado relacional
“x é semelhante a B”, que fica como enunciado na conclusão. O que nos
autoriza, pois, a retermos a conotação M comum e a desprezarmos a
conotação diferencial provém de critério extralógico.”
Essencial, portanto, sistematizar, identificar e separar as ratio decidendi225
(fundamentos que sustentam a tese julgada) dos obter dicta226
(partes incidentais e
acessórias constantes no precedente); o overruling (mudança de jurisprudência); o
224
“As estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo.” São Paulo: Noeses, 2005, p. 231/232. 225
Previsão, aliás, constante no artigo 489, § 1º, V, do CPC/2015: “Art. 489 (...). § 1º - Não se considera
fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) V – se
limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem
demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; (...).” (grifamos).
O § 5º do artigo 927 também dispõe que “os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os
por questão jurídica decidida e divulgando-os na rede mundial de computadores.” 226
Nos termos do § 4º do artigo 521, “não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste artigo os
fundamentos: I – prescindíveis para o alcance do resultado fixado em seu dispositivo, ainda que presentes no
acórdão; (...).”
180
distinguishing227
(distinção das hipóteses em que um precedente não é compatível com o
caso concreto), drawing of inconsistent distinctions (distinção consciente e inconsistente),
sinaling (sinalização), transformation (transformação) e overriding (adequação
consistente), conforme vimos no decorrer do Capítulo 4.
Em diversas passagens do CPC/2015, ainda somos levados ao conceito de
identidade228
, o que acaba influenciando nossa compreensão acerca do fenômeno
racionalizador e generalizante de valorização dos precedentes.
Mas é o próprio CPC/2015 que, quando trata da comprovação de divergência
jurisprudencial, dispõe sobre a indicação das “circunstâncias que identificam ou
assemelham os casos confrontados” (artigo 1.029, § 1º), o que se repete nos Embargos de
Divergência (artigo 1.043, § 4º). Aliás, a decisão não será considerada fundamentada no
caso de se invocar precedente ou enunciado de súmula sem “demonstrar que o caso sob
julgamento se ajusta àqueles fundamentos” (artigo 489, § 1º, V).
227
Também previstos no artigo 489 do CPCC/2015: “VI – deixar de seguir enunciado de súmula,
jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em
julgamento ou a superação do entendimento. (...).” (grifamos). 228
“Art. 56. Dá-se a continência entre duas ou mais ações quando houver identidade quanto às partes e à
causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo, abrange o das outras”;
“Art. 337. (...) § 2o Uma ação é idêntica à outra quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e
o mesmo pedido. (...)”;
“Art. 985. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I – a todos os processos individuais ou
coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo
tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou Região; II – aos
casos futuros que versem sobre idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de
competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986.”
“Art.1.035 (...) § 8º Negada a repercussão geral, o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem
negará seguimento aos recursos extraordinários sobrestados na origem que versem sobre matéria
idêntica.”;
“Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito,
haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.”;
“Art. 1.039. Decididos os recursos afetados, os órgãos colegiados declararão prejudicados os demais
recursos versando sobre idêntica controvérsia ou os decidirão aplicando a tese firmada.”;
“Art. 1.040. Publicado o acórdão paradigma: (...) § 1º A parte poderá desistir da ação em curso no primeiro
grau de jurisdição, antes de proferida a sentença, se a questão nela decidida for idêntica à resolvida pelo
recurso representativo da controvérsia.”
181
Dessa forma, não há que se falar em identidade fática ou jurídica, pautadas que
são, insistimos, na lógica clássica que pressupõe uma segurança jurídica abstrata, onde
unidade, coerência e completude são juízos a priori. Assim, falamos em similitude jurídica
a partir dos antecedentes normativos de cada caso.
Exemplificativamente, citamos o julgamento que afastou a incidência do
ICMS-Importação nas aquisições realizadas através de arrendamento mercantil (RE n.º
540.829/SP, com status de repercussão geral). Veja-se:
“Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E
TRIBUTÁRIO. ICMS. ENTRADA DE MERCADORIA IMPORTADA DO
EXTERIOR. ART. 155, II, CF/88. OPERAÇÃO DE ARRENDAMENTO
MERCANTIL INTERNACIONAL. NÃO-INCIDÊNCIA. RECURSO
EXTRAORDINÁRIO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O ICMS tem
fundamento no artigo 155, II, da CF/88, e incide sobre operações
relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que
as operações e as prestações se iniciem no exterior. 2. A alínea “a” do
inciso IX do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, na redação da EC
33/2001, faz incidir o ICMS na entrada de bem ou mercadoria
importados do exterior, somente se de fato houver circulação de
mercadoria, caracterizada pela transferência do domínio (compra e
venda). 3. Precedente: RE 461968, Rel. Min. EROS GRAU, Tribunal
Pleno, julgado em 30/05/2007, Dje 23/08/2007, onde restou assentado
que o imposto não é sobre a entrada de bem ou mercadoria importada,
senão sobre essas entradas desde que elas sejam atinentes a operações
relativas à circulação desses mesmos bens ou mercadorias. 4. Deveras,
não incide o ICMS na operação de arrendamento mercantil
internacional, salvo na hipótese de antecipação da opção de compra,
quando configurada a transferência da titularidade do bem.
Consectariamente, se não houver aquisição de mercadoria, mas mera
posse decorrente do arrendamento, não se pode cogitar de circulação
econômica. 5. In casu, nos termos do acórdão recorrido, o contrato de
arrendamento mercantil internacional trata de bem suscetível de
devolução, sem opção de compra. 6. Os conceitos de direito privado não
podem ser desnaturados pelo direito tributário, na forma do art. 110 do
CTN, à luz da interpretação conjunta do art. 146, III, combinado com o
art. 155, inciso II e § 2º, IX, “a”, da CF/88. 8. Recurso extraordinário a
que se nega provimento.” (grifos nossos).
Ao se analisar o conteúdo do voto condutor, verifica-se que o núcleo decisório,
sua ratio decidendi, gira em torno das condições do negócio jurídico de arrendamento
182
entabulado pelo importador, de modo que a tese jurídica fixada no precedente, em sua
essência, acomoda-se sob as particularidades fáticas a serem avaliadas em concreto.
Não se pode incluir no mesmo escaninho, portanto, processos que veiculam
diferentes formatações jurídicas, com base em distintas espécies e modalidades de
arrendamento implementadas pelo mercado, cada vez mais criativas e inovadoras,
eventualmente havendo até mesmo a flexibilização da opção de compra pelo arrendatário
ou sua segregação, como por exemplo, no caso da compra do bem no exterior por empresa
controlada e subsequente formalização de leasing operacional à controladora brasileira.
Enfim, trata-se de particularidades não contempladas no precedente, mas que
são fundamentais para a incidência ou distinção do paradigma quando convocado para
fundamentar um caso concreto.
Voltando ao exemplo, para a incidência do referido precedente ao caso
concreto, com o afastamento do ICMS, é necessário, em juízo de adequação, que haja uma
importação realizada através de arrendamento mercantil, sem opção de compra, ou seja,
sem circulação, pouco importando (i) se o importador é ou não contribuinte do ICMS; (ii)
qual a natureza ou destinação do bem; (iii) o regime cambial e/ou de importação adotado;
ou (iv) qual a forma jurídica do negócio (o que se releva é o objeto do negócio não
caracterizar, na essência, uma compra e venda).
Ainda que a forma do negócio jurídico não seja relevante, sua essência, ou os
efeitos que produz na situação jurídica do patrimônio do arrendatário é relevante para a
incidência ou não do precedente e, consequentemente, do ICMS-Importação sobre a
operação que se discute no caso concreto.
No referido precedente do STF, a situação fática tratava de uma importação via
leasing entre duas empresas aparentemente ligadas (Hayes Wheels do Brasil Ltda. e Hayes
183
Wheels de España S.A), cujo objeto era dois equipamentos utilizados na fabricação de
rodas de liga leve (aparentemente bens utilizados no processo produtivo da arrendatária),
não se destinando ao ativo fixo da empresa e com cláusula de devolução ao final do
contrato (sem previsão de compra). A situação jurídica, por sua vez, abrangia o alcance do
ICMS-Importação nas importações via leasing, sobretudo após a EC n.º 33/2001.
O juízo de adequação ao caso concreto, portanto, deve levar em consideração
todas essas particularidades, não se podendo falar, apenas, em questão unicamente de
direito, muito menos em idêntica questão de direito, para fins de confirmação, superação
ou relativização da coisa julgada fixada nos casos concretos.
Não existe, pois, uma solução pronta e acabada que possa ser subsumida
mecanicamente a todos os casos que tratem de “ICMS-Importação via leasing”.
Como vimos acima, a tese fixada no precedente deve ser acomodada aos casos
concretos de acordo com suas particularidades fáticas e jurídicas, não havendo que se falar
em identidade de questões unicamente de direito, mas sim em similitude jurídica, sob pena
de distorção e desvio do sistema stare decisis.
Conforme já destacou o STF no julgamento do AgRg AI n.º 621.722/RJ:
“(...) No sistema da repercussão geral, a decisão proferida no leading
case deve ser aplicada a todos os recursos análogos,
independentemente dos fundamentos específicos que os sustentam. O
que releva é a questão constitucional decidida, não a causa petendi do
apelo extremo. Concluído o julgamento do paradigma, cabe aos
Tribunais de origem apreciar os recursos sobrestados, nos termos do art.
543, § 3º, do CPC, considerando o contexto fático-probatório dos
autos.” (grifos nossos).
Trata-se, portanto, do holding previsto no sistema stare decisis, de maneira
que, novamente citando o Voto-Vista do Ministro Barroso na Rcl 4.335/AC:
“(...) na medida em que nós venhamos a expandir esse papel dos
precedentes - para usar o verbo utilizado pelo Ministro Teori -, teremos
184
que produzir decisões em que a tese jurídica afirmada seja mais nítida -
o que, no Direito anglo-saxão, se chama ‘holding’. Muitas vezes - a
meu ver, esse é o papel da ementa, e tenho procurado discutir isso -, era
preciso que ficasse mais claro, prima facie, qual foi a tese jurídica
afirmada pelo Supremo.” (grifos nossos).
Tomando as lições de DARDO SCAVINO: “um enunciado é verdadeiro, em
princípio, quando se encontra conforme uma interpretação estabelecida, aceita, instituída
dentro de uma comunidade de pertinência. E esta interpretação, que por sua vez pode
pensar-se como um conjunto de enunciados sobre outra interpretação prévia, somente
pode ser discutida quando a confrontemos com essa versão ainda mais originária.”229
Dessa forma, os precedentes são interpretações sobre interpretações, de modo
que, alterando-se as interpretações-base, modificam-se as meta-interpretações. A similitude
jurídica do juízo de adequação, portanto, deve buscar a consentaneidade.
Quando o precedente é produzido, deve-se dizer qual é o fato e qual é o direito,
o que compõe a fundamentação e a justificação da decisão. Desse modo, encontramos na
decisão a fundamentação e a justificação tanto do fato como do direito, essenciais para,
num trabalho analítico-comparativo, fundamentar a incidência do precedente.
Assim, utilizando-nos das categorias da teoria da decisão jurídica230
, temos que
o holding, a ratio decidendi, deve ser identificado a partir da fundamentação do fato
(indicação dos enunciados factuais que influenciaram na conformação do fato jurídico);
justificação do fato jurídico (razões que levaram à utilização daqueles enunciados
factuais, e não de outros); fundamentação jurídica (legislação tomada como base para a
decisão); e justificação jurídica (razões que levaram à utilização daquela legislação, e não
de outra). Tudo isso compõe a tese jurídica decidida.
229
“A filosofia atual: pensar sem certezas”. São Paulo: Noeses, 2014, trad. Lucas Galvão de Britto, p. 25. 230
Sobre o tema, remetemo-nos à obra de Aurora Tomazini de Carvalho, “Curso de Teoria Geral do Direito”,
2ª edição. São Paulo: Noeses, 2010, p. 517.
185
Nessa ordem de ideais, diante da multiplataforma das fontes produtoras dos
precedentes, impõe-se o diálogo angular no juízo de adequação do precedente ao caso
concreto, o que exige uma postura empírico-dialética.
Isso porque, na atividade interpretativa que envolve o juízo de adequação, tem-
se a generalização e a individualização do caso concreto, ou derivação e positivação, de
modo que: “a derivação está para a interpretação, assim como a positivação está para a
aplicação do direito. Formalizando, D : I :: P: A.”231
A título de esquematização teórica do roteiro analítico-comparativo dos casos,
para fins de adequação e incidência do precedente, teríamos o seguinte quadro:
Decisão paradigma Caso rescindendo
Questões principais
Conjunto da
postulação
Fatos
Causa(s) de pedir
próxima(s)
Causa(s) de pedir
remota(s)
Pedido(s)
Fundamentos determinantes
Tese jurídica
decidida
Fundamentação e
justificação do fato
Fundamentação e
justificação jurídica
Distinções/aproximações relevantes
É, portanto, através da comparação analítica desses pontos em comum que se
torna possível identificar a similitude jurídica dos casos e promover a incidência e
adequação decisória ou, então, a distinção ou superação dos entendimentos.
231
CARVALHO, Paulo de Barros. “Derivação e Positivação no Direito Tributário”, Volume II. São Paulo:
Noeses, 2013, p. XIX.
186
Dentro desse contexto de stare decisis, pois, é preciso identificar e entender os
institutos que permeiam a atividade decisória e o trabalho de manuseio da jurisprudência,
de forma a evidenciar as operações lógicas e extralógicas que, a partir do CPC/2015,
precisarão expressamente constar da fundamentação das decisões (artigo 489).
3. Uma segunda síntese: variáveis processuais e condicionantes materiais da coisa
julgada e da rescisória tributária
No contexto de valorização dos precedentes, vimos que dois recortes são
fundamentais para a análise da formação, extensão e controle da coisa julgada, quais
sejam: (i) a identificação da natureza jurídica do conteúdo decisório (declaratório,
constitutivo ou condenatório); e (ii) a delimitação da normatividade do precedente a partir
da complexidade conformativa que o compõe, tudo isso ao lado da temporalidade decisória
dos casos, da boa fé e do contraditório.
Trata-se das variáveis processuais tributárias, de um lado, e das condicionantes
materiais, de outro, ambas concorrendo na fixação dos capítulos decisórios transitados em
julgado, na definição dos regimes rescisórios e individualização dos conteúdos
concretamente considerados para fins de confrontação e adequação dos casos.
Portanto, a separação das eficácias da coisa julgada e dos elementos da decisão
potencializa a análise não só da relação jurídica de direito material estabilizada, como
também dos processos de desestabilização, através da unificação de forma e conteúdo.
Todos esses aspectos, é claro, respeitando-se o modelo dialógico que impõe a
legitimidade processual democrática, sempre por meio da atividade decisória imparcial que
187
deve caracterizar o exercício de tradução e adequação dos precedentes e das diversas
realidades que interagem e compõem a multiplicidade sempre inesgotável dos casos.
188
CONCLUSÕES
A título de considerações conclusivas, podemos dizer que o trabalho procurou
empreender uma análise da legitimidade da tributação a partir da normatividade dos
precedentes em um sistema stare decisis, seus reflexos na coisa julgada e na ação
rescisória em matéria tributária por alteração jurisprudencial, em especial diante das
modificações do CPC/2015, mas não se limitando aos estudos dos enunciados de direito
positivo, senão conferindo uma amplitude relativamente mais ampla, dada a potencialidade
que o estudo do tema passou a revelar, em conexão com os mais modernos e recentes
debates em torno da crise de identidade do nosso sistema codificador232
.
Com esse objetivo, de forma a proporcionar a amarração do discurso em sua
totalidade propedêutica, buscamos enlaçar os três planos de expressão do tema a partir do
que chamamos de estrutura filosófica, sentido dogmático e função pragmática.
Assim, passamos a pensar em conjunto os dois eixos temáticos a que nos
referimos na introdução: (i) revolução linguística e isolamento cognitivo do ser; e (ii)
valorização dos precedentes judiciais e mecanização da prestação jurisdicional: a miragem
da codificação sendo substituída pela miragem da padronização decisória.
Desse modo, empreendemos na Parte I uma análise da evolução histórico-
filosófica que precedeu o positivismo, bem com das suas influências na dogmática jurídica,
tão propagada em nossa cultura positivista. Com isso, identificamos as deficiências
232
“Este livro pretende discutir a crise do direito, do Estado e da dogmática jurídica, assim como os seus
reflexos na sociedade, a partir do papel da justiça constitucional e sua legitimidade nestes tempos de pós-
positivismo e de resistências positivistas. (...) O crescimento dos direitos supraindividuais e a crescente
complexidade social (re) clamam novas posturas dos operadores jurídicos. (...) Visivelmente há uma crise
que, antes de mais nada, precisa ser des-coberta ‘como’ crise. Essa crise ocorrre porque o velho modelo de
direito (de feição liberal-individualista) não morreu, e o novo modelo (forjado a partir do Estado
Democrático de Direito) não nasceu ainda.” STRECK, Lenio Luiz. “Jurisdição constitucional e decisão
jurídica”, 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 29.
189
metodológicas encampadas pelo nosso modelo de racionalização da prestação jurisdicional
a partir da valorização dos precedentes, sugerindo uma adequação por meio do intercâmbio
com o pragmatismo filosófico e jurídico.
Em seguida, na Parte II adentramos no estudo do sistema stare decisis,
apontando as particularidades, diferenças e aproximações dos regimes common law e civil
law, bem como individualizando o estudo dos elementos do precedente e dos institutos
próprios de um sistema de valorização das decisões jurídicas.
Em resumo, pela conexão das duas primeiras partes do trabalho evidenciamos a
insuficiência do silogismo lógico na interpretação e aplicação dos precedentes, sendo
necessário resgatar o plano pragmático de análise da linguagem, com a valorização das
particularidades fáticas dos casos concretos na construção dos sentidos normativos e
legitimação da atividade tributante.
Para isso, as categorias pragmatistas, a semiótica de PEIRCE, o
desenvolvimento do método abdutivo por GEORGE BROWNE REGO e a teoria
estruturante de MULLER nos apresentaram uma interessante aptidão adaptativa na
integração com as teorias analíticas.
Diante desse quadro de inter-relações, enfim entramos na Parte III, onde então
particularizamos as análises das modificações da coisa julgada e dos novos regimes
rescisórios introduzidas pelo CPC/2015, em sintonia com os pressupostos filosóficos e
dogmáticos antes fixados, concluindo, ao final, pela inadequação metodológica das
orientações contidas no Parecer PGFN n.º 492/2011, impregnado que é por uma lógica
subsuntiva incompatível com suas próprias diretrizes de valorização dos precedentes.
190
Com efeito, a coisa julgada passa por modificações subjetivas e objetivas,
sendo compreendida a partir da multiplicidade conformativa que compõe os fatos, as
questões principais, o conjunto da postulação e os fundamentos determinantes do caso.
Da mesma forma, o CPC/2015 incorpora novos regimes rescisórios e, em
grande parte, se adequa às orientações jurisprudenciais, de modo que a chamada
relativização da coisa por modificação jurisprudencial, com isso, não se dá de forma
automática, por meio do controle exercido pela própria autoridade fazendária.
Pelo contrário, por diversas razões teóricas (independência de poderes e
funções, identidade de instrumentos introdutores, fechamento estrutural, confiança no
tradutor e controle das interpretações extensivas), e diante das diretrizes do próprio
CPC/2015 (legitimação processual democrática, princípio da cooperação, contraditório
maximizado, não-surpresa e rigor na fundamentação comparativa de precedentes), a
rescisão da chamada coisa julgada inconstitucional deve se submeter ao necessário
controle e adequação judicial, num diálogo angular e imparcial.
De lege ferenda, sugerimos a possível criação de um procedimento contencioso
administrativo que permita ao órgão fazendário, no exercício de função jurisdicional
atípica, garantir o diálogo inerente a uma atividade julgadora, podendo-se até mesmo,
como forma de desjudicializar as discussões, incentivar o contribuinte que reconheça
espontaneamente a superação da sua coisa julgada, com a exclusão da multa e juros.
Por tudo isso, esperamos ter contribuído para o estudo de tema tão relevante,
com grandes repercussões no dia a dia do contencioso tributário, aguardando as sempre
bem vindas críticas e comentários para a evolução do trabalho.
191
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