porque

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PORQUE Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão Porque os outros têm medo mas tu não Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam mas tu não. Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não. Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não. Sophia de Mello Breyner Andresen NAVIO NAUFRAGADO Vinha de um mundo Sonoro, nítido e denso. E agora o mar o guarda no seu fundo Silencioso e suspenso. É um esqueleto branco o capitão, Branco como as areias, Tem duas conchas na mão Tem algas em vez de veias E uma medusa em vez de coração. Em seu redor as grutas de mil cores Tomam formas incertas quase ausentes E a cor das águas toma a cor das flores E os animais são mudos, transparentes. E os corpos espalhados nas areias Tremem à passagem das sereias, As sereias leves dos cabelos roxos Que têm olhos vagos e ausentes E verdes como os olhos de videntes. SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN In Dia do mar, 1947 PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO Para atravessar contigo o deserto do mundo Para enfrentarmos juntos o terror da morte Para ver a verdade para perder o medo Ao lado dos teus passos caminhei Por ti deixei meu reino meu segredo Minha rápida noite meu silêncio Minha pérola redonda e seu oriente Meu espelho minha vida minha imagem E abandonei os jardins do paraíso Cá fora à luz sem véu do dia duro Sem os espelhos vi que estava nua E ao descampado se chamava tempo Por isso com teus gestos me vestiste E aprendi a viver em pleno vento

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Porque

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PORQUE

Porque os outros se mascaram mas tu noPorque os outros usam a virtudePara comprar o que no tem perdoPorque os outros tm medo mas tu no

Porque os outros so os tmulos caiadosOnde germina calada a podrido.Porque os outros se calam mas tu no.

Porque os outros se compram e se vendemE os seus gestos do sempre dividendo.Porque os outros so hbeis mas tu no.

Porque os outros vo sombra dos abrigosE tu vais de mos dadas com os perigos.Porque os outros calculam mas tu no.

Sophia de Mello Breyner Andresen

NAVIO NAUFRAGADO

Vinha de um mundo Sonoro, ntido e denso. E agora o mar o guarda no seu fundo Silencioso e suspenso.

um esqueleto branco o capito, Branco como as areias, Tem duas conchas na mo Tem algas em vez de veias E uma medusa em vez de corao.

Em seu redor as grutas de mil cores Tomam formas incertas quase ausentes E a cor das guas toma a cor das flores E os animais so mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias Tremem passagem das sereias, As sereias leves dos cabelos roxos Que tm olhos vagos e ausentes E verdes como os olhos de videntes.

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN In Dia do mar, 1947

PARA ATRAVESSAR CONTIGO O DESERTO DO MUNDO

Para atravessar contigo o deserto do mundo Para enfrentarmos juntos o terror da morte Para ver a verdade para perder o medo Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo Minha rpida noite meu silncio Minha prola redonda e seu oriente Meu espelho minha vida minha imagem E abandonei os jardins do paraso

C fora luz sem vu do dia duro Sem os espelhos vi que estava nua E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste E aprendi a viver em pleno vento

RETRATO DE UMA PRINCESA DESCONHECIDA

Para que ela tivesse um pescoo to finoPara que os seus pulsos tivessem um quebrar de caulePara que os seus olhos fossem to frontais e limposPara que a sua espinha fosse to direitaE ela usasse a cabea to erguidaCom uma to simples claridade sobre a testaForam necessrias sucessivas geraes de escravosDe corpo dobrado e grossas mos pacientesServindo sucessivas geraes de prncipesAinda um pouco toscos e grosseirosvidos cruis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiar de gentePara que ela fosse aquela perfeioSolitria exilada sem destino