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PRECONCEITO BRANCO, CONSCIENCIA NEGRA E RESISTENCIA A DISCRIMINACAoEM SÂO PAULO NOS ANOS 30*
Daniel T. Linger (1)
RESUMO
Em 1931 na cidade de são Paulo fundou-se urna organização de protesto negrochamada Frente Negra Brasileira (FNB). Durante vários anos a FNB resistiu à discrLm í naç ao através de uma segregação, com o obj etivo último de integrar socialmentea comunidade negra. Depois de 1937, porém, a FNB praticamente desapareceusemtr~ços. Este ensaio pretende apresentar uma possível explicação de suas origens e doseu desaparecimento.
Como explicar o nascer da FNB? Parece que a competição entre negros e imigrantes europeus em são Paulo provocou um tipo de discriminação que colocou os negros em padrões econômicos inferiores, em relação aos quais o movimento de protestonegro foi uma reação. Por que, então, a FNB de repente desmoronou? Das várias expLí.c aco es já proferidas, talvez a mais elucidativa é a da Maria Isaura Pereira deQueiróz, que vê nas exigências do mercado de trabalho a causa nao só pelo cresc~mento e desaparecimento do movimento, mas também pelos fenômenos ideológicos depreconceito branco e consciência negra.
Na conclusão, apresenta-se uma explicação alternativa,que revisa o modelode Queiróz, propcrcionando maior autonomia aos fatores ideológicos. Esta explic~ção propõe que as mudanças sócio-econômicas em são Paulo interatuaram, por um l~do, com um persistente preconceito de cor, e pelo outro, com a própria ideologiacontraditória da FNB, para produzir tanto o crescimento súbito na organizaçao como a sua morte.
1 INTRODUÇÂO
Durante as segunda e ter
ceira décadas deste século, na
c idade de são Paulo, algo novo
surgia no Brasil pós-Abolição:
organizaç6es de "homens de cor"
dedicadas explicitamente à luta
contra o que eles perceberam cQ
mo um penetrante e persistente
(*) Quero agradecer a Mário Rêgo pela paciência e diligência com que ele me ajudouexpressar as idéias neste artigo na língua j.o rt.uguesa . Se ainda ficarem escuras, a responsabilidade é minha.
(1) Departamento de Antropologia - Universidade da í.alifórnia, Jan Diego.
120 Cad. Pesq. são Luís, 4 (1 120 - 134, jan./jun. 1988
preconceito de cor1 brasileiroque, mesmo sendo sempre negadopor brancos e muitas vezes pormulatos e pretos também, pareceter desencadeado ·conseq~ência~psicológicas e sócio-econômicasdevastadoras para os descende!!.tes dos escravos (Bastide 1955a;Fernandes 1969, esp. Capítulos2 e 3) • Amelhor organizada, maiscombativa, e provavelmente maiseficaz dessas associações foi aFrente Negra Brasileira (FNB),
fundada em 1931. A FNBteve umsucesso extraordinário em inscrever sócios negros, e em 1936se declarou um partido políticocom ambições elei torais. Comot~dos os partidos políticos, foiproscri to quando Vargas decretouo Estado Novo no ano seguinte.Embora a Frente fosse logo depois reconstituída como a UniãoNegra Brasileira,essa reencarn~ção foi breve, desaparecendo emmaio de 1938,e embora o protestonegro se renovasse após a renúncia de Vargas em1945, ele nuncaalcançou o nível atingido ant~riormente. Desde o principio dosanos 50 até o fim dos anos 70não emergiu nenhum movimento
significativo de protesto negroem nenhuma parte do Brasil.
Aflorescência e colapsodeste movimento poli tico negro l~vanta algumas perguntas Lmpor t anteso Por que este movimento surgiu em São Paulo? E se as condiçoes em são Paulo eram parti.cularmente oportunas para seu desenvolvimento,por que ele faliu?Neste ensaio proponho desenhar ahistória da FNB,discutir algumasexplicações já oferecidas por seunascimento e morte, e sugerir umahipótese alternativa baseada nainteração entre certos fatoresideológicos e condições históricas especificas na cidade desão Paulo.
2 A FRENTE NEGRA BRASILEIRA
Já em 1915 podia-se e!lcontrar nas colunas de um jornalnegro paulista,O Menelik, os nQmes de uma variedade de clubesrecreacionais e associações culturais negras (Morse 1953:300).Parece que essas organizações n~gras eram rigorosamente cu1turais e beneficentes (Fernandes1955:201), e os jornais, 1iterá
1 "Preconceito de cor" é um jeito de falar de preconceito fundado geralmente emaparência física. Ver a distinção clássica feita por Oracy Nogueira entre tal"preconceito de marca" e "preconceito de origem" (1955).
Cad.P~sq. são Lu~s, 4 (1): 120 - 134, jan./jun. 1988 12~
rios e educacionais (Moura 1982:
150). Mas, após 1925, a atividade
organizativa se intensificou, e
grupos e publicações, tanto os nQ
vos como os já existentes, dedi
caram-se cada vez mais para a me
ta de conscientizar, com o obj.§.
tivo úl timo de estimular a resis
tência à discriminação. Em1925,
O Clarim da Alvorada, que tinha
iniciado suas atividades um ano
atrás como um jornal literário,
começou a falar mais alto em de
fesa dos direitos dos negros br~
sileiros (Fernandes 1955:202) .
Do mesmo modo, o Centro cívico.
Palmares,uma biblioteca para n.§.
gros, tornou-se umcentro de luta
contra preconceitos.2 Essas mu
danças assinalaram, ou estimula
ram, umnovo espírito de ação di:
~reta. Bastide (1955:166) cita o
assalto ao escritório do jornal
i t.a Lí.ano Fanfulla - depois que
ele publicou um ataque contra ne
gros - como um exemplo desse no
vo "espírito de luta" 3 .
o despertar crescente da
comunidade negra durante o fim
dos anos 20 e o princípio dos 30
culminou na fundação da Frente
Negra Brasileira no dia 16 de s.§.
tembro del931,que reuniu todos
os grupos negros importantes(com
exceção do Clarim, cujos líderes
se opuseram ao modelo fascista
promovido por umdos fundadores da
Frente - Bastide 1955a:166).
o primeiro artigo do Es
tatuto da FNB proclama "a uniãopoli tica e social da Gente N.§.gra Nacional, para afirmaçãodos direi tos históricos damesma, em virtude da sua atividade material e moral nopassado e para reivindicaçãode seus direi tos sociais e PQlíticos, atuais, na Comunhãobrasileira" (citado em Ramos1938:125) .
Ao mesmo tempo,os objeti:
vos da organização eram explici t~
mente integracionistas :"Repelimostodos os patrícios que, err~dos ,queiram transportar parao Brasil o problema negro
ianque de luta de ódio contrao branco. Não é esse feitio onosso. Repilamos a concepção
norte-americana,fruto de me~talidade, no fundo anti-cri~tã, daquele povo. Não queremos
uma segregação de vida na
cional, senão uma afirmaçãonacional do Negro ,'la integração real e Lea l." (citado
em Fernandes 1055:196).
A nat.ur .:~a problemática
2 Esta transformação foi,ao que parece, incentivada por um mandado pelo chefe da p~lÍcia proibindo a entrada de homens de cor na r'''uda Civil (Bastide 1955a: 166).
3 Vale a pena notar que os movimentos po Lf t í I;CS .ieg zos em são Paulo surgiram nobairro de Bexiga - nessa altura um bairro predominantemente italiano - em vez deBarra Funda. o bairro com a maior porcentagem de negros (Bastide 1955a: 166).
122 Cad. Pesq. são Luís, 4 (1): 120 - 134, jan./jun. 1988
e' possivelmente contradit6ria
desses objetivos foi resolvida
ao apresentar-se a FNB corno urna
organização temporária. Seu le
ma era: separem-se agora para
se integrarem depois" (Fernandes
1969:203). Bastide (1955a:167)
resume o raciocínio assim: a FNB
promoveu "um racismo que seja
uma técnica para ultrapassar o
racismo" .4
"Separar para un í.r t' s í.qnj.
ficava, do ponto de vista da
Frente Negra, tanto açao como
educação. Membros da FNB foram
encoraj ados a rej ei tar insultos,
e exigir respeito nas suas inte
raçoes com os brancos. Isso im
plicava tanto urna pessoa se de
fender frente a urna situação de
descriminação corno urna ação co
letiva para romper tabus contra
a entrada em lugares informal
mente fechados aos negros (por
exemplo, certos parques). A FNB
também intervinha para cobrar
salários de membros injustamente
despedidos de empregos e para
assegurar a ausência de discri
minação no aluguel de im6veis
(Fernandes 1955:202).
Ao mesmo tempo, a Fren
te tentou cul ti var urna espéc ie
de consciência negra através do
seu jornal, AVoz da Raça, e por
meio dos representantes no cam
po. A idéia foi de arrancar o
veu que escondia o preconceito
de cor brasileiro - quer dizer,
de revelar as maneiras em que o
preconcei to de cor funcionava
no dia-a-dia de negros brasilei
ros. O objetivo era destruir o
que Fernandes chama de "dupla
perspectiva" (1955:205) a an
siedade de um negro,confrontado
por um branco que o rejeita,
quando sua experiência de dis
criminação e contraditada pelas
asserções do outro de que o "fr~
casso" do negro deriva não de
discriminação mas de alguma 'de,
ficiência pessoal (como falta
de educação ou .inada.p t a ç âo so
cial) Os membros da FNBcome
çavam a considerar a origem dos
seus problemas corno fora de si,
um ponto de vista provavelmente
com conseqüências psicológicas
4 Bastide (1955a:167) anota a este respeito uma ambiva1ência entre o orgulho decor e a aspiração de tornar-se um "negro branco".
Cad. ,Pesq. são Luis, 4 (1) 120 - 134, jan./Jun. 1988 12::t
menos noclvas. Além disso,
a FNB tentou substituir a
imagem do "negro novo" pela do
"antigo preto, mais africano do
que ocidental, mais exótico do
que nacional ... " (Bastide 1955:
167). Es ta imagem era somen te
usada indiretamente para consumo
dos brancos; afinal de contas,
brancos não liam A Voz da Raça.Isto é, a imagem do negro mantida
pelos brancos seria refundida na
medida em que os negros as s í.nu,
lariam padrões de vida atribuí
dos aos brancos (Fernandes 1969:
216). Pois a Frente insistia em
tal assimilação - urna vida de fa
mília organizada, a ambição por
emprego estáve1,o desejo de po~
suir urna casa própria,etc. A Voz
da Raça, no seu entusiasmo por
essa idealizada mudança, até mos
trou propaganda por substâncias
para endireitar os cabelos e deu
conselhos sobre corno se assoar
corretamente (Bastide 1955a: 167).
Apesar da contradição
entre o objetivo da Frente, que
se pode descrever corno o desap~
recimento do negro como conse
qtência da sua integração co~
pleta dentro da sociedade brasi
leira, e os meios, que exigiam
urna retirada temporária detrás
de uma linha de cor,a FNB obvi~
mente tOCOJ algo dentro dos ne
qros de são Paulo. Dentro de po~
124
co tempo, tinha milhares de so
cios com urna poderosa diretoria
em são Paulo e vários grupos de
apo í,o no interior e em outr.os Es
tados (Fernandes 1969:211). Em
1936, corno já se mencionou, a
Frente se constituiu corno um pa.!:.
tido político. Dentro da FNB,
sustenta Fernandes, vicej avam s~
mentes de urna solidariedade nova,
potente,e baseada na cor (1955:
205) .
Por que, então, a Frente
Negra Brasileira se afundou qu~
se sem traços após 1937?
Urnapossível explicação,
evidentemente,é que a supresijão
sob o Estado Novo poderia ter ma
tado a FNB (Moura 1982:157). Po
rém a supressão,por exemploinão
acabou com os comunistas,ne~ as
táticas do regime contemporâneo
têm impedido a emergência de s i~
dicatos militantes ou a operação
dos partidos clandestinos, para
nao falar de um movimento negro
rejuvenescido. Por que - em ou
tras palavras - a Frente se des
moronou tão completamente, e por
que nenhuma coisa parecida sur
giu logo depois da queda da di
tadura de Vargas? De fato, a
maioria das discussões sobre a
morte da Frente Negra procura
causas além da repressão. Mas
antes de mergulhar nessas águas,
será útil voltar ao início e re
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 120 - 134, jan./jun. 1988
fletir por que a Frente teria
emergido na cidade de são Paulo.
3 POR QUE sAo PAULO?
Umasíntese resumida dos
argumentos proferidos pelos que
têm examinado o problema da
origem da Frente Negra começaria
com a seguinte observação: em
são Paulo os desejos dos negros
por mobilidade social e econômica
foram em grande parte frustrados
pela competição de imigrantes
europeus, que foram preferidos
como trabalhadores industriais e
empregados do setor de serviços.
Ao mesmo tempo esta competição
gerou uma espécie paulista de
preconcei to de cor por parte des
ses brancos que se sentiam amea
çados pelas perspectivas de .in
trusão dos negros nas posiçôes
relativamente altas que os bran
cos ou já ocupavam ou tinham es
peranças de ocupar. Portanto, os
negros paulistas eram especial
mente receptivos a grupos, como
a FNB,que lhes proporcionaram re
cursos ps i.co Lór í.co s c or qani.z a
cionais para lhes ajudar a neu
tralizar os efei tos nocivos do
preconceito e da discriminação.
Quanto a isso, são Pàulo'
e freq13.entemente contrastada com
Salvador, onde esforços de org~
nizar uma filial da FNB fracas
saram pateticamente. 5 Numestudo
precoce, Pierson (1967, orig. 1942) 6
averiguou que na Bahia existia
pouco preconceito do tipo exis
tente nos Estados Unidos, quer
dizer, que nao existiam castas
baseadas em ,cor, so classes.Baianos brancos - segundo Pie~
son - jamais se sentiam ameaçados,
em termos de status, por negros
ou mestiços, e, portanto, senti
mentos de desconfiança, medo, re~
sentimento e inveja nunca foram
evocados. Em resumo, negros em
Sal vador e r arn tão concentrados
na camada mais baixa que nao
ameaçavam brancos, e, portanto,
o preconceito de cor - e organi
zações de protesto negro - nao
apareciam. Emsão Paulo,pelo co~
trário, Pierson vê o estabeleci
mento de organizações negras cQ
mo testemunho de tal preconcei to.
Para Pierson, então, organização
por parte dos negros depende de
preconcei to, que por sua parte
depende do grau de competição en
tre negros e brancos.
5 ~oje em dia existe um movimento negro em Salvador. ~ interessante perguntar:O que, exatamente, m"dou ne s -d dusa Cl a e para permitir, ou estimular, o crescimento deste movimento?
6 Ele resume o seu argumento no artigo de 1939.
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 120 - 134, jan./ju~. 1988 125
Umproblema de s conce r t an
te na análise de Pierson e seu
uso ambíguo da palavra "precoQ
cei to ". Preconceito para ele é
uma predisposiCão psicológica
ou uma série de comportamentos?
Estes dois níveis são, sem dúvida,
ligados,mas não se equivalem. A
meu ver é preferível fazer a di~
tinção usual entre preconceito -
percepções e atitudes negativas
para com um determinado grupo -
e discriminacão,que se refere a
interações caracterizadas por r~
jeição de membros de um grupo
contra o qual se tem preconceito.
As minhas razoes para insistir
nesta distinção irão se escla
recer no desenrolar deste ensaio.
Se nos perguntamos se h~
via preconceito em são Paulo, a
resposta deve ser sim, e que era
muito severo. Tal preconceito é
discutido por Bastide (1955a,
1955b), Bastide e van den Berghe
(1957), e Fernandes (1955, 1969),
entre muitos outros. As concl u
sões de Bastide e van den Berghe
(1957) são especialmente persua
sivas. Fundam-se em dados obtidos
de 580 estudantes brancos de co
légios paulistas. Mais da metade
destes alunos brancos atribuíram
aos negros tais imagens negativas
como falta de higiene,fealdade,
aderência a superstições, falta
de moralidade, perversão sexual
e preguiça. Quase a metade achava
que negros eram menos inteligeQ
tes do que brancos. Ao comentar
estas percepções, Bastide e van
den Berghe observam: "As seme
lhanças com as imagens norte-
americanas são mais numerosas do
que as diferenças" (1957:691).7
Isto não quer dizer que os est~
dantes rejei taram o que Fernandes
chama de "o mito de democracia
racial": 92% deles aceitaram, em
teoria, a noção de que os negros
sejam iguais aos brancos. Ainda
assim,77% se opuseram à miscig~
naçao com pretos e 55% se opus~
ram à miscigenação com mulatos.
Em conclusão, os autores anotam
uma contradição na situação ra
cial no Brasil:
Por um lado, nós encontramos uma adesão ampla àsnormas democráticas, e poroutro lado, umgrau mui to a L tode imagens negativas/stereQtypy/,uma grande quantidadede segregação no nível pe~soa 1 íntimo, e uma endogamiapraticamente completa. Estaambivalência constitui umaverdadeira 'dilema brasilei
7 Tradução minha.
1'26 Cad~ Pesq. são Luís, 4 (1) 12O - 13 4, j an. / j un , 1988
ra I, apesar de ser diferente-do I dilema americana I (1957:692) •
Bastide e van den Berghe
especulam que o preconceito de
cor em são Paulo e no Rio repr~
senta uma retirada de atitudes
liberais tradicionais (reinante
em lugares como Salvador) por ca~
sa da rápida urbanização e indu~
trialização no Sul. Infelizmente
não conheço nenhum estudo comp~
rável em Salvador da Bahia. O fato
de são Paulo ser "mais branco"
do que Salvador sugere talvez que
o preconceito na cidade nordes
tina possa ser menor, mas o as
sunto se complica rapidamente se
nós reconhecermos que a raiz do
preconcei to de cor é um sentimen
to nega ti vo sobre negri tude, qual
quer que seja a porcentagem de
sangue africano na pessoa que te
nha este sentimento. Sabe-se que
o mulato que quer subir na escala
social muitas vezes faz tudo p~
ra se distanciar de pretos (ver,
por exemplo, Willems 1949:404-5).
Em resumo, não é preciso ter bran
cos para ter preconceito.8
Em todo o caso, porem,
parece inegável que em são Paulo
tinha um grau elevado de preco~
cei to no pensamento branco junto
com um grau elevado de discrim!
nação na experiência negra. O pr~
blema é interpretar esta as soe i.aç âo , f: possível considerar tanto
o preconceito como a discrimina
ção como produtos da competição
entre brancos e negros: veja a
síntese de explicações resumidas
já citadas. Um ponto de vista
alternativo, que eu proponho na
conclusão deste artigo, é que o
próprio preconceito, mostrando-
se de várias maneiras como di s
criminação provocadora, induziu
os negros paulistas a se organ!
zarem. A discriminação, por sua
vez, teria sido detonada pela
competição no mercado de traba
lho interatuando com este preco~
ceito já existente.
Talvez a mais elucidati
va interpretação do primeiro g~
nero seja a de Maria Isaura Pe
reira de Queiróz. A sua hipótese
tem a vantagem de que também e~
plica porque a FNB desapareceu.
4 o QUE ~~TOU A FNB?
A explicação apresentada
8 Nem i preciso ter imigrantes. A evid~ncia de Bastide e van den Berghe desmentea Ldeí,ade que imigrantes tenham mais preconceito de cor do que brancos nascidosno Brasil (1957:693). Preconceito tambim não é claramente relacionado com elasse social (Bastide e van den Berghe 1957:693), como alegam Pierson (1967:341)e Hammond (1963:6).
Cad. Pesq. são Luís, 4(1) 120 - 134, jan./jun. 1988 127
por Queiróz difere das outras
porque implicitamente rejeita a
noção de que o movimento negro
em são Paulo foi esmagado por
Vargas (cf.Moura 1982:157) e ao
mesmo tempo evita nos apresentar
com um espectro de possíveis ca~
sas percorrendo do faccionalismo
à falha ideológica, à falta de
uma base psicológica e material
dentro da comunidade negra (Fer
nandes 1969:220-231). Eu não de
sejaria alegar que tal tipo de
análise mul ticausal sej a errado.
Mas Queiróz, ao reduzir radical
mente o número de variáveis ex
plicativas, enfoca justamente
aquelas que refletem os aspectos
cruciais do problema e que mer~
cem um exame um pouco mais de
tido.
Para Queiróz, tanto o nas
cimento como a morte da FNB se
ligam com a mesma causa básica:
exigências do mercado de traba
lho. Depois da Abolição, surgiram
certas possibilidades, mesmo p~
ra ex-escravos, para melhoramento
econômico nos centros urbanos do
Sul, particularmente em são Paulo.
Ascendência social foi consegui
da através de adaptação indi vi
dual e conformismo, reduzindo-se
então as possibilidades de pr~
testo coletivo por causa da di
visão provocada pelo afastamento
de indivíduos bem-sucedidos. Es
128
ses "mulatos~ ao subir, tentaram
evitar qualquer identificação
com os seus "irmãos de cor:", po!:.
que esta seria fatal para a es
tratégia que eles tinham esco
lhido. Coma aceleração da indus
trialização porém,as pessoas de
cor se encaravam com uma situação
curiosa e inquietante: oportuni
dades de emprego estavam se am
pliando rapidamente, mas esses
empregos eram fechados aos ne
gros. Tinha se concretizado um
limite. Imigrantes tinham en
trado,e estavam entrando,em são
Paulo, em grandes quantidades, e
estes imigrantes estavam canse
guindo os melhores empregos. O
resu1 tado foi que organizações
políticas negras se tornavam ca
da vez mais proeminentes, en
quanto os negros começavam a se~
tir necessidade de lutar contra
as barreiras erguidas pelos bra~
coso
Antes de 1940 porem, a
imigração da Europa tinha come
çado a diminuir. Isto significou
que os trabalhadores potenciais
de "melhores qualificações" - os
europeus recém-chegados esta
vam se tornando escassos. Mas a
industrialização estava se ace
lerando. Para preencher as novas
posições os patrões tinham que
utilizar os trabalhadores pote~
ciais de "segunda qualidade"
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 12O - 134, j an. I j un. 1988
esses homens de cor que eram r~sidentes na cidade há muito tempo e que tinham adquirido um ce.E.to grau de educaçio e treinameQto. Os novos imigrantes agorainundando são Pa u Lo riâo eram maisestrangeiros, mas caboclos doNordeste, a maioria dos quaisanalfabetos e desacostumados àsexigências da vida urbana,e portanto considerados inferioresaos homens de cor urbanizados.
O resultado, segundoQueiróz, foi que devido a pressaoeconômica os negros começaram apenetrar nos empregos industriais e do setor de serviços.Essa atenuação do limite econômico militava contra a perpetu~
ç âo da "consciência étnica agre..§.siva" que caracterizou a comun.:h.dade negra durante uma boa parteda década dos 30.
A análise de Queiróz aconduz a duas observaçôes priQcipais. A primeira toca no pr~conceito branco:
Agem, pois, os preconce..:h.tos como rac í.ona Lí zaç âo daabertura ou do fechamento domercado de trabalho da saciedade global, em cada uma desuas camadas i mas as causasda abertura e do f eche..no nt.o
nao se encontram na existência ou não de preconceitos,e sim no interior da própriasociedade global como tal
que, historicamente formadade.brancos e negros, estesocupando historicamente umnível inferior, caracteriz~da economicamente como umasociedade capitalista,deseQvolve para ambos as possibilidades de ascensão sócio-econômica, conforme as nece..§.sidades internas do seu mercado de trabalho (1978:259).
A segunda observaçiotrata da consciência negra:
A análise da evolução daposiçio sócio-econômica dosnegros na sociedade global,formada pela cidade de sioPaulo, mostra que a consciência étnica, representadapelo aparecimento das associaçôes voluntárias,é sutile móveliem estreita relaçãocom o desenvolvimento sócio-econômico, ameniza-se ou e~pande-se segundo haj a facilidade ou riâo para os negrosascenderem (1978:256).
Ao que parece, esta analise dá uma explicaçio dinãmicanão só pela carreira histórica daFNB como também pelos fenômenosde preconceito e consciência negra. A meu ver, porém,é possívelque a exp Lí.ca câo fecha certasperspectivas ilustrativas, per..§.pecti vas que s âo recuperáveis senos nao insistirmos em uma relaçao tão estreita entre ideologiae condiçôes econômicas. A seguirdiscutiremos uma alte-cnativa à
Cad. Pesq. sio Luís, 4 (1) 12O -. 134, j an . / j un. 1988 129
explicação de Queiróz.
5 . UMA INTERPRETACAo ALTE~NATIVA
Na análise de Queiróz,ideologias são atadas a fatoreseconômicos, pois preconceito decor e uma "racionalização daabertura ou do fechamento do mercado de trabalho ",e consciêncianegra fica "em estreita relaçãocom o desenvolvimento sócio-económico". Quero sugerir aqui umainterpretação alternativa, quedá às ideologias uma posição maisindependente. Esta alternativaolha para a interacão dos fatoresideológicos e econômicos paraexplicar o crescimento e o desaparecimento do movimento de pr~testo negro em são Paulo. Ao explicar os mesmos dados, a h i pó
tese abaixo elaborada toma umaperspectiva diferente sobre a natureza do problema enfrentadopor rtegros brasileiros e, cons~qüentemente, sobre possíveis maneiras de vencê-lo.
Esta hipótese alternativa e a seguinte: que as mudançaseconômicas em são Paulo duranteos anos 30 interatuaram, por umlado, com um preconceito de corforte e persistente,dando assimao princípio um estímulo externoao movimento negro e depois can
celando esse estímulo; e por o~tro lado, com uma ideologia contradi tória da própria FNB quetambém era vulnerável a essas mudanças no ambiente econômico desão Paulo.
Nós chegamos à alternativa por via de uma anomalia nocomportamento de uma ideologia:o preconceito de cor. Se preco~ceito fosse uma racionalizaçãodas exigências do mercado de tr~balho,esperaríamos que variariasegundo estas exigências. Especificamente suporíamos que o pr~concei to de cor teria sido maiordurante os anos 30, quando os negros estavam sendo excluídos deempregos na competição com osimigrantes,do que depois,quandoa situação dos negros em sãoPaulo era muito mais favorável.
Os dados que temos -,osdo estudo de 1957 de Bastide evan den Berghe - pôem este cenario em dúvida. Estes dados, comojá vimos, mostram que durante osanos 50 - vinte anos apo s o p~ríodo do limite - o preconceitode cor era bem vivo em são Pau10. Em outras palavras, preco~cei to não precisa de uma exag~rada competição económica parase alimentar. :t; possível (nósnão temos bons dados) que o pr~conceito fosse ainda mais agudo
130 -Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 120 - 134, jan./jun. 1988
durante os anos 30, mas em virtude
da severidadé do preconcei to des
coberto por Bastide e van den
Berghe, e difícil imaginar que
pudesse ter sido tanta diferença.
Ao contrário, parece provável
que um alto grau de preconceito
de cor oaracterizou são Paulo
desde (pelo menos) os anos 30 até
(pelo menos) o fim dos anos 50.
Isto sugeriria uma revi
são da explicação de Queiróz. Em
vez de ver preconceito s i.mpLes
mente como uma racionalização por
exclusão,poder-se-ia considerar
preconcei to de cor como uma as
sunção cultural (pelo menos pa~
cialmente) independente: ser n~
gro é ser ruim. De fato, para este
estrangeiro ,mesmo sendo dum país
com terríveis problemas raciais r
a evidência dessa suposição na
cul tura br a s i Lei r a é Lmpr e s s i o
nante,seja por exemplo na noção
das vantagens de "branqueamento"
(Skidmore,1974), seja nas conceE
çôe s de beleza, sej a na Li.nqu a
gem da rua, seja nos elogios da
miscigenação oue ao louvar as
virtudes do afro-brasileiro tal
vez tendam a destacar aspectos
passivos e submissivos do negro
e da negra. Isso não e o lugar
para entrar no labirinto do pr~
conceito de cor brasileiro. Mas
se podermos admi tir, pr ov i sor i a
mente,a existência no Brasil de
um preconceito de cor que nao
cresce nem diminui muito com a
intensidade da competição econo
mica, podemos reinterpretar eL
gumas das conclusões de Queiróz.
o estímulo externo ao
protesto negro em são Paulo PQ
demos interpretar como uma inte
raçao entre condições sócio-ecQ
nômicas - imigração europela e
industrialização - e o p r ecoric e i
to de cor, que juntos produziram
discriminação contra os negros
no mercado de trabalho. Antes do
fim da década dos 30, porem, a
imigração branca estava terminan
do, deixando os negros a competir
com os nordestinos recém - che
gados. O nordestino analfabeto,
além de ser talvez pouco prep~
rado pelo emprego industrial, no
Sul também sem dúvida teria so
frido ne preconceito e discrimi
nação, pois nesta competição o
negro saiu ~ frente, vencendo a
discriminação (e portanto ac aba n
do COIU um .i mpo r t.an t.e c s t Irnu Lo p~
ra organizaçfio)mas não o precon
ceito, que permaneceu. 9---------------
9 Quero àestacar que esta ana l.í s e 8 espe cu l a t í va : é uma possível Lnt e r pr e t ac ao dosfatos. Mesmo com dados bons ~ mIlitas vezes dificil,por exemp].o)deter~i~ar,nurnaàecisão de negar emprego a al.gu em, o pese das qua.l xf í.caço es da peS~.02 e o pes odo preconceito. Nc caso sob consideração aqui - o mercado de t r ab a l r.c ,·r: S2.íé' Pau l.o
nos anos 30 - é d í.f Ic í l, mesmo fazer muito maí.s do que con j ec tur a-
Cad. Pesq. S~o Iillis, 4 (1) 120 - 134, jan.!ju~. 1988 131
A explicação de Queiróz
implica que a solução do problema
de preconceito seria uma economia
suficientemente vigorosa ou bem
organizada para permitir a asce~
dência de negros emmassa. Porém,
se ao contrário, preconceito de
cor e profundamente entrinchei
rado, aquela economia pode acabar
com um tipo de discriminação(quer dizer, em emprego) mas não
com o preconceito, que ficaria c~
mo uma ameaça de possí veis demi~
sões ou exclusões no futuro, c~
so a economia afrouxasse, e como
uma fonte de outros tipos de d~
gradações discriminatórias (por
exemplo, insultos ou restrições
de vários tipos) que poderiam ca~
sar profundas feridas p s i.co Ló
g icas. Fernandes (1979) nota, por
exemplo, que negros, nas suas i~
terações com brancos, nunca são
permi tidos a se comportar numa ma
neira confrontati va, embora bra~cos possam adotar essa postura
com negros. A obra de Fernandes
durante sua longa carreira é um
convi te a confrontar diretamenteO problema de preconcei to de cor,
porque senão este continuará aprecipitar relações destrutivasentre indivíduos, uma suposiçãotambém compartida pela Frente N~gra no seu aspecto de uma or-qan i.
zação separatista.
Porém - e isto nos traz
a uma conjectura final - a Fren
te Negra tinha um outro rosto ta~
bém,o de uma organização integr.~cionista. Pode ser que o colapso
da Frente Negra,além de ser pr~
cipitado em parte pelo enfraqu~
cimento da discriminação em em
prego, tinha também algo a ver
com uma debilidade interna ideo
lógica? Ou seja,pode ser que as
mudanças favoráveis no mercado
de trabalho, além de "neutralizar"
o preconceito em são Paulo, ao
mesmo tempo desestimulou a soli
dariedade negra por causa de uma
fragilidade ideológica dentro da
própria FNB? Parece possível. A
arma ideológica da FNB era uma
espada de dois gumes. Ofereceu
separação e prometeu integração.
Nós poderíamos desejar saber por
que um negro que j a "ernb r anque
ceu", presumivelmente ao melhorar
sua condição econõmica,continu~
ria ter a vontade de ficar numa
organização que promete o tipo
de sucesso que ele já alcançou e
representa o ambiente de que ele
está tentando fugir. A ideologia
da FNB,emresumo, parece estimular
defecção em determinadas c i r cuns
tâncias.10 Não causa muita sur
10 Queiróz sustenta que "a consciência êtnica ... ameniza-se ou expande-se segundo h~ja facilidade ou n~o para os negros ascenderem"(1978:256~ Isto parece cor!etono caso da FNB - mas riao ê evidente para mimque possamos fazer gen er a Li.z aço es .Eu sugiro neste artigo que a ideologia da FNB encorajou um tipo de conscienciaque foi muito vulnerável à auto-cancelaç~o. Será possível que esta armadilhaideológica da FNB pode ser evitada?
132 Cad. Pesq. são Luís, 4 (1) 120 - 134, jan./jun. 1988
presa, então, que a Frente Negra
Brasileira, apesar do seu subs
tancial e inegável sucesso, foi
tão frágil que desmoronou logo
que o limite econõmico discrimi
natório foi atenuado.
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ENDEREÇO DO AUTOR
DANIEL T. LINGERDepartamento de AntropologiaUniversidade da Califórnia,San Diego.
Cad. Pesq. são Luís, 4 (1): 120 - 134, jan./jun. 1988