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PRESERVAR PRA QUEM? 30 ANOS DE POLÍTICA DE PRESERVAÇÃO EM JUIZ
DE FORA E OS DESAFIOS NO PRESENTE
Carine Silva Muguet*
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo traçar um panorama da cidade de
Juiz de Fora no que tange seu patrimônio histórico. Transcorridas três décadas de
criação da primeira legislação municipal de proteção a bens culturais, ainda há
grande tabu sobre o tombamento. Neste sentido, apresentaremos dados
quantitativos a fim de elucidar os tipos de bens sob proteção, além de expor, através
de estudo de caso, alguns percalços da municipalidade nos procedimentos técnicos
em prol da proteção e manutenção dos mesmos. Popularmente conhecida como
Manchester Mineira ou Princesa de Minas, títulos carinhosamente conquistados
entre o fim do século XIX e primeiro quartel do século XX, período áureo de
desenvolvimento econômico, a urbe deixou marcada em belas edificações esse
passado pujante. Através da pluralidade de estilos - eclético, art-decó e alguns
exemplares modernistas - esses objetos vivificam a memória da sociedade
juizforana, cuja preservação, perpetuação através de projetos de educação
patrimonial e difusão turística, são fundamentais para reforçar os laços de
sociabilidade entre a comunidade local. Assim, a percepção individual àquilo que se
considera parte da comunidade em que vive, torna um bem de caráter
intransponível, cabendo ao poder público, utilizar de mecanismos para proteção e
manutenção de seu patrimônio cultural. Nessa medida, a atuação dos setores de
preservação deve ter como princípio demonstrar que é a sociedade que imprime
sentido aos bens culturais.
Palavras-Chave: políticas de preservação; patrimônio; memória; bens culturais
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo divulgar as ações do setor de patrimônio
cultural da Prefeitura de Juiz de Fora, a partir da consolidação de políticas
preservacionistas adotadas nos últimos 30 anos. No âmbito institucional, a Divisão
de Patrimônio Cultural da Prefeitura de Juiz de Fora, criada em 1989, vêm dando
continuidade à perspectiva preservacionista vislumbrada por intelectuais e artistas
locais ainda na década de 1970.
* Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Historiadora da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA), lotada na Divisão de Patrimônio Cultural, órgão da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora. Contato: [email protected]
A mudança na paisagem urbana das majestosas construções no eixo central
da cidade substituídas por arranha-céus deram a tônica para os movimentos em prol
da preservação. Mas afinal, preservar pra quem? O reconhecimento ao que deve ser
preservado passa, entre outras coisas, por valores de identificação social a um
determinado bem. É nessa perspectiva que apresentamos algumas notas de
pesquisa sobre as políticas de preservação em Juiz de Fora. Para que seja possível
compreender esse processo de construção, faz-se necessário elucidar a formação
do município, demonstrando a origem da diversidade de estilos que compõe o
núcleo histórico da cidade.
1. Juiz de Fora: A Manchester Mineira
É necessário destacar o que conhecemos atualmente por Juiz de Fora teve
início a partir do núcleo composto pelo Morro da Boiada, Tapera, Alto dos Passos e
Fazenda do Juiz de Fora. O povoamento inicial foi à margem esquerda do rio
Paraibuna, cujo nome de origem indígena significa “rio de águas escuras”.
(ESTEVES, A. 1915) Posteriormente, o rio que dividia a região formada por morros e
o centro pantanoso - devido a constantes transbordamentos -, também passou a
nomear o município.
O reconhecimento e emancipação do vilarejo se deu em 1850, quando criou-
se a Vila de Santo Antônio do Paraibuna, em homenagem da paróquia ao santo.1 A
segunda metade do século XIX foi marcada por incertezas quanto à mão de obra e
força do trabalho, sussitando mão-de-obra imigrante. Assim, a formação do
município tem na herança imigrante característica fundamental.
Deste modo, Juiz de Fora passava a destacar-se entre fins do XIX e primeiras
décadas do XX devido “espírito modernizante”, com destaque à inauguração da
primeira hidrelétrica da América do Sul - a Usina de Marmelos Zero (1889), que foi
pioneira no Brasil ao utilizar a pavimentação com macadame na confecção da
Estrada União e Indústria (1861), além de sediar a primeira transmissão de TV em
canal aberto do Brasil, com equipamento inventado por Olavo Bastos Freire (1948).
1 A Lei nº759, de 02 de maio de 1856, elevou a vila à categoria de cidade, com a denominação de Paraibuna, sendo a cidade oficialmente instalada em 07 de setembro de 1856. A lei nº1.202, de 19 de Dezembro de 1865 determinou a mudança do nome para Juiz de Fora. (BASTOS, 2004: 73-75)
Pelo potencial industrial e destaque no cenário artístico e cultural, a cidade do “Juiz
de Fora” ficou conhecida como Manchester Mineira em referência à cidade inglesa.
Além do famoso título, a cidade também foi carinhosamente apelidada de Atenas
Mineira, em referência ao local de fundação da Academia Mineira de Letras. Entre
tantos referenciais de memória, não é de se estranhar o volumoso legado protegido
por tombamento. Os 186 bens imóveis, entre acervos documentais e bens móveis
integrados, assim como seis registros imaterias, refletem uma cidade plural e
composta por um privilegiado patrimônio cultural.
Deste modo, o passado pujante do município criou ótica espacial muito
peculiar, de casarões ecléticos, imponentes prédios em art-déco, belíssima
residência em art-nouveau, construções em estilo neocolonial além de monumentos
modernistas como o painel denominado Marco do Centenário, de autoria do artista
Di Cavalcanti e projeto assinado pelo arquiteto local Arthur Arcuri, em homenagem
ao centenário da cidade (1951). Para o arquiteto e urbanista Victor Godoy (2015, p.
27), essa valorização da modernidade trazia consigo um elemento de contraposição
- a desvalorização das heranças do passado. A preocupação com a dissolução
dessa memória urbana – de identidade coletiva e individual -, gerou esforços pela
preservação de edificações entendidas como de valor histórico para a cidade.
Compreendendo a necessidade de resguardar a memória dos primórdios de
sua fundação, o prefeito Lindolfo Gomes foi pioneiro ao encaminhar, em 1939, carta
ao então presidente do SPHAN Rodrigo Mello Franco de Andrade, pedindo o
tombamento da Fazenda Velha, de propriedade de Luiz Fortes Bustamante e Sá, o
juiz “de fora”. (GAWRYSZEWSKI, p.64-75). Segundo o jornalista e historiador Paulino
de Oliveira, na edificação do século XVII teria se hospedado Duque de Caxias e sua
guarda em passagem pelo arraial no ano de 1842. Segundo a historiadora Fabiana
Almeida (2015, p.12-13), tal afirmação foi publicada no periódico O Diário Mercantil
em 1970, onde Oliveira expôs a relação de bens que considerava de valor histórico,
ainda que estes não mais existissem. Naquela época, os tombamentos ocorriam
com base no Decreto Lei Federal n°25 de 1937 e se baseavam no valor histórico
nacional. Assim, nos primeiros anos de atuação do SPHAN era comum o
reconhecimento de bens relativos ao período colonial. Isso ocorria porque o
distanciamento temporal era concebido como fundamental para a interpretação de
um objeto como de importância cultural. O esforço quase solitário de Lindolfo Gomes
não impediu que a Fazenda do Juiz de Fora fosse demolida em 1949.
A historiografia local identifica a década de 1970 como cerne dos movimentos
em prol da preservação de edificações representativas à memória coletiva. A
dissertação de Mestrado em História de Fabiana Almeida, publicada em 2015 pela
FUNALFA, resulta de exaustiva pesquisa acerca das personagens que auxiliaram na
construção de uma consciência preservacionista. Segundo a autora, a série de
demolições naquela década, começou a preocupar professores, historiadores,
artistas, jornalistas e a população da cidade.
Imagem 01 – Palacetes da antiga Rua Direita, atual Av. Barão do Rio Branco (década de 1920). Acervo Ramon Brandão
A partir de então, a luta pela salvaguarda dos referenciais de memória da
cidade tomava corpo. Em depoimento à Paulo Gawryszewski e Érica Aleixo, Carlos
Henrique Saldanha e Lopes afirmou ter se reunido com Rui Merheb e os artistas
irmãos Décio e Nívea Bracher em um belo casario onde funcionava a Secretaria de
Educação nos anos 70. Segundo ele, as reuniões pretendiam alcançar soluções
para suspender demolições que ocorriam em massa na cidade, de modo a
documentar através de pinturas, fotografias ou qualquer meio de registro tudo o se
perdia.(GAWRYSZEWSKI, 2008, p. 66) O movimento ganhou apelo popular e
durante o exercício de mandato do prefeito Francisco Antônio de Mello Reis (1977-
1982), algumas edificações em processo de demolição passaram a ser fotografadas
e reunidas enquanto arquivo documental.
De acordo com Almeida, O Programa Nacional de Apoio as Capitais e
Cidades de Porte Médio foi um dos principais responsáveis pela série de demolições
nas cidades medianas. E isso ocorreu porque ele dispunha recursos do BIRD
(Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento) para investir nas
prefeituras com o objetivo de modernizar a estrutura urbana. E foi nesse contexto
que diversos casarões da Av. Rio Branco deram lugar a prédios comerciais e
residenciais.
Imagem 02 – Av. Barão do Rio Branco, esquina com a Rua Floriano Peixoto em 1972. Acervo Ramon Brandão
2. Políticas de Preservação do Patrimônio em Juiz de Fora e os desafios no presente
A relação numerosa de bens tombados no município resulta de esforços da
sociedade e Prefeitura que remonta de pelo menos três décadas. Em 1982 a
Comissão Municipal Permanente Técnico-Cultural (CPTC) foi criada a partir do
empenho de movimentos preservacionistas iniciados em fins dos anos 70 e que
compuseram o plano de governo do prefeito Francisco Antônio de Mello Reis (1977-
1982).
Assim, há de se destacar o papel do Instituto de Pesquisa e Planejamento de
Juiz de Fora, criado em 1977. (Decreto nº 1969 de 29 de dezembro de 1977). Para Mello
Reis, em entrevista a Nilo Azevedo e Wilson Jabour Jr (2012), o IPPLAN foi
estabelecido com o objetivo de pensar a cidade. Naquele ambiente múltiplo de
profissionais atentos às mobilizações populares, as ideias sobre o que se
considerava patrimônio começavam a tomar forma. Ao ser questionado sobre as
políticas de preservação, Mello afirmou que “Já no final da década de 1970, nós
estávamos pensando em criar um Instituto de Preservação do Patrimônio” (2012,
p.83) e a vinda do arquiteto Luiz Alberto do Prado Passaglia teve esse intento.
A fundação no mesmo ano do IPPLAN e da Fundação Alfredo Ferreira Lage -
FUNALFA, a qual passava a integrar a Secretaria de Cultura, Turismo e Lazer,
ampliou a sensação de desconfiança da construção civil e gerou série de
demolições. E isso porque desde o cerne, a Funalfa previa em Estatuto a
incumbência de “promover a defesa pelo patrimônio cultural, turístico, histórico e
artístico”. (GRAWYSZEWSKI, 2008, p. 67)
Em 1978, a notícia de que a Cúria Arquidiocesana permitiria a demolição da
Capela do Colégio Stella Matutina despertou a comunidade para o perigo da
especulação imobiliária e o sentido em promover o tombamento. Nesse contexto, a
imprensa, através do periódico O Diário Mercantil, listou diversos bens que deveriam
ser preservados na cidade. A listagem seria a relação feita por Paulino de Oliveira
em virtude da demolição da Capela, assunto que ficou por semanas em pauta na
imprensa local. A pesquisa de Fabiana Almeida aponta que a criação da Funalfa
deve-se ao episódio de demolição da Capela do Colégio Stella Matutina e revela um
esforço da municipalidade em gestar mecanismos de defesa do patrimônio.
A historiografia aponta ainda para dois momentos fundamentais ao tema do
patrimônio. A realização da Primeira Semana de História da UFJF em 1979, que
possibilitou, pela primeira vez, que os intelectuais pudessem reunir-se para discutir
alternativas de salvaguarda da memória local através de seus bens edificados.
Sobre este congresso, o arquiteto Luiz Alberto Passaglia, funcionário do
Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São
Paulo, proferiu palestra em mesa conjunta com Décio Bracher, relatando sua
experiência de preservação em São Paulo, a convite da Prefeitura de Juiz de Fora.
Em entrevista, Passaglia afirmou que havia entusiasmo e a participação da
comunidade acadêmica tornava o “ambiente engajado com a vida cultural da
cidade”. (ARAÚJO, N.; JABOUR, W. 2012, p.105). O segundo momento foi a
exposição fotográfica organizada em agosto de 1980 pela Pró-reitoria de Assuntos
Comunitários da UFJF. Com o tema “Juiz de Fora: Ontem”, foram expostas diversas
fotografias do italiano Sabino Brescia, registros das primeiras décadas do século XX
e que encantaram a comunidade. A repercussão desses eventos foi positiva e levou
o prefeito Mello Reis a não medir esforços para trazer o casal Passaglia para
compor o Instituto de Planejamento.
No princípio da década de 1980, a artista Nívea Bracher e a já formada
equipe do equipe do IPPLAN, composta por Maria Inês e Luiz Alberto Passaglia,
José Carlos Coutinho, Jorge Arbach e o representante da Funalfa, Carlos Henrique
Saldanha e Lopes, iniciaram o Pré-Inventário Arquitetônico, vislumbrado ainda na
década anterior. Embora não houvesse descrição acerca da metodologia que
norteou as escolhas, Passaglia afirmou que este trabalho teve como princípio a
composição de uma espécie de “Plano de Atuação” para os passos do setor. Deste
modo foram cadastradas 550 edificações. No entanto, elas não deveriam ser
tomadas como objeto a tombamento, mas como “um instrumento de pesquisa, tendo
em vista o grande hiato existente ao nível de conhecimento de nossa própria
realidade.” (AZEVEDO, N; JR.JABOUR, W., 2012,p. 107)
Como parte deste pioneirismo e consequência do trabalho que vinha sendo
realizado pelo IPPLAN, foi promulgada a primeira legislação municipal de proteção,
a Lei 6.108 de 13 de janeiro de 1982, que cria a Comissão Permanente Técnico-
Cultural – CPTC. Ainda no ano de 1982, Luiz Alberto Passaglia publicou obra
denominada A Preservação do Patrimônio Histórico de Juiz de Fora: medidas
iniciais. Nela, o arquiteto mostrou-se preocupado com as demolições por esta
representarem perda de “referenciais vinculados à formação sócio cultural do
município. Em particular, áreas que tiveram ocupação consolidada no primeiro
quartel do século (...).”(PASSAGLIA, 1982,p. 09). A obra de referência para o estudo
do patrimônio cultural, fruto do esforço de intelectuais, artistas, arquitetos,
historiadores e sociedade interessada, reivindicava uma legislação capaz de ofertar
segurança jurídica para a proteção de sítios históricos. Mais tarde, ao relembrar os
primeiros anos em prol da preservação em Juiz de Fora, Passaglia reafirmou que
naquele momento, os esforços se concentraram nos bens edificados. (AZEVEDO;
JABOUR, 2012, p.104)
Em entrevista a Fabiana Almeida, o jornalista Jorge Sanglard afirmou que o
município passava por intensa fragmentação de sua memória na década de 1980,
pois “(...) as modificações urbana sofridas nas duas décadas anteriores, com a
abertura de avenidas e as construções de edifícios, aquela cidade antes
caracterizada como operária, pioneira e industrial havia desaparecido”. (ALMEIDA,
2015, p. 15). A partir da atuação do CPTC foram abertos em 1982 e tombados em
janeiro de 1983, as primeiras edificações na cidade, a saber: Palácio Barbosa Lima
(Câmara Municipal), Cine-Theatro Central, Parque e o Museu Mariano Procópio,
Castelinho da Cemig e Usina Hidrelétrica de Marmelos Zero, Palacete Santa
Mafalda (Grupos Centrais/ E.E.Delfim Moreira), Paço Municipal (Repartições
Municipais), Prédio da antiga Cia. Têxtil Bernardo Mascarenhas.
Em 1985 a sociedade obteve nova conquista, a Lei 6.866/1985, que
estabelecia condição para que as demolições fossem efetivadas somente com
anuência da Comissão. Neste processo, algumas delas tiveram a demolição negada
e o tombamento avaliado pelo CPTC. A atuação da Comissão ampliou a sensação
de mal-estar entre os investidores. A Igreja, proprietária de diversos bens
representativos, voltou ao centro da polêmica ao solicitar demolição de uma
edificação característica à memória regional, o Palacete do Bispo (Palácio
Episcopal). A artista Nívea Bracher, atenta às questões relativas à preservação,
documentou esse processo com depoimentos, pinturas e até a guarda de objetos
oriundos de diversas demolições. Ruy Merheb em entrevista a essa artista, afirmou
que “a revelia da opinião popular em nome de uma mentira a que querem emprestar
o nome de progresso, constroem-se aberrações no lugar onde existia o que
naturalmente deveria permanecer”. (Apud ALMEIDA, p.142).
Para o arquiteto Luiz Alberto, a perda da “Casa do Bispo” foi uma das mais
sofridas pelo caráter de inflexibilidade da Cúria e a forma passional com que a
população participou dos debates, através do “Movimento de Tombamento e
Restauração de Palácio Episcopal”. A ideia de cidade alinhada ao progresso era
cada vez mais questionada e os movimentos em torno da preservação da memória
buscavam difundir entre a população que uma cidade sem os referenciais de
memória é local de amnésia. A lastimável perda deste imóvel reforçou outros
movimentos como “O Central é Nosso”, que tombou em janeiro de 1983 os “Grupos
Centrais” e aquela série de edificações mencionadas.
A confluência de esforços em prol da salvaguarda dos bens culturais culminou
na pioneira Lei Municipal 7.282, de 25 de fevereiro de 1988. Nela, ficava instituído
aumento da representação do CPTC, passando de 7 para 11 componentes. Além
disso, definiu como instrumentos de salvaguarda e proteção o tombamento, a
declaração de interesse cultural e a definição do que seria área de proteção
ambiental com relevância sociocultural. Assim, a lei de 1988 substituiu a Lei 6.108
de 1982, mostrando-se mais completa ao ampliar as formas de proteção, definir as
obrigações da Comissão Permanente Técnico-Cultural. Além disso, benefícios
fiscais a proprietários como isenção de IPTU também foram redigidos, mas o texto
teve os artigos 27 e 28 vetados pelo prefeito Tarcísio Delgado. Na justificativa à
Câmara, Delgado afirmou ser razão do veto, emendas do Legislativo a um projeto
oriundo do Executivo e que tais isenções acarretariam aumento das despesas
públicas.
Enquanto consequência positiva desta lei, promulgada antes da Constituição
Federal de 1988, criou-se em 1989, a Divisão de Patrimônio Cultural – DIPAC, no
âmbito do IPPLAN, tendo como função subsidiar a CPTC. O contexto político
nacional garantiu nova tônica ao prever no Artigo 216 da Constituição, definições
jurídicas acerca do patrimônio cultural brasileiro.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, (...) (Constituição Federal de 1988, consulta SENADO, 13 ago 2018).
A partir de então, a função social da propriedade passava a solidificar-se
enquanto política de Estado, tendo o Estatuto das Cidades (2001) o papel posterior
de consolidar a competência jurídica e da ação municipal sobre tombamento. Entre
os instrumentos jurídicos de salvaguarda, a Lei 12.040 de 1995, alterada
posteriormente pela Lei 13.803/2000, popularmente apelidada de Lei Robin Hood,
conferiu destaque ao estado de Minas Gerais. Através do Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA), a legislação é premiada pelo caráter
democrático de gestão dos recursos financeiros, cuja parcela do ICMS fica
destinada aos municípios empenhados em executar medidas para defesa de bens
culturais.
É necessário frisar que, se as décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por
movimentos de defesa a determinados bens, a década de 1990 merece destaque
pela atuação dos setores de patrimônio, consolidados com a Lei 7282/1988. O
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Juiz de Fora, aprovado em 2000,
deixou um legado fundamental a população, através das discussões em torno do
planejamento urbano em diversas frentes. No que tange o patrimônio cultural, a
realizar o Inventário do Patrimônio Cultural de Juiz de Fora. A fim de catalocar os
bens culturais existentes na cidade, foram reunidos milhares de edificações
consideradas de valor documental, além de 149 indicadas ao tombamento,
formalizados com o pedido do Diretor do IPPLAN, Jean Kamil em 1997.
Anteriormente, em 1983, primeiro ano de vigor da Lei 6108/1982, foram
tombadas 7 bens e 10 anos depois, 1993, o município contava com 21 bens
tombados, segundo levantamento do arquiteto Paulo Gawryszewski (2008). Após a
realização dos Inventários pela empresa Século 30, quando houve um boom de
processos em aberto, esse número teve um salto tímido, chegando num total de 32
bens protegidos por tombamento em 1998.
Em 1997, o volume de processos aberto repercutiu amplamente e gerou
reações adversas. O prefeito Tarcísio Delgado, ao ser questionado sobre o fato,
relatou que em 1997 eram 156 processos de tombamento em aberto. Temerosos da
desvalorização de seus imóveis, localizados em área nobre na cidade, diversos
proprietários de edificações “culturalmente relevantes” foram até seu gabinete
“querendo forçar a barra”. Em sua opinião, a disponibilização dos Inventários causou
um efeito inverso, levando a série de demolições e destruição rápida de alguns
bens. “Chamei o Jean Kamil e disse: Jean, vamos mandar brasa, abrir esses
processos senão esse pessoal vai acabar com isso rápido. Eu já estava começando
a receber pressão, (...). Depois, que abriram os processos, eu dizia: Meu amigo, vai
na Comissão.” (AZEVEDO;JABOUR, 2012, p.160)
Apesar dos esforços em preservar imóveis em pontos de potencial ocupação
pela especulação imobiliária, nem todas as edificações eram consideradas de valor
histórico. Nesse processo, muitos prédios modernistas foram desaparecendo entre
as décadas de 1990 e 2000. O imóvel mais emblemático é o Colégio Magister,
localizado a Rua Braz Bernardino - centro, cujo belíssimo exemplar modernista
projetado por Artur Arcuri teve processo de tombamento votado e não aprovado pelo
Conselho de Patrimônio, sendo demolido em 2005. A opinião de Tarcísio Delgado
expressa uma valorização estética específica, pautada no distanciamento temporal e
na busca por referenciais de passado a partir de uma concepção pessoal. “Do
Magister eu não vejo muito o que devia ser tombado, (...) eu não via nenhum valor
cultural mais expressivo” (Idem, 2012, p. 162). De acordo com o político, os bens
que deveriam ter sido tombados eram a Casa do Bispo (Palácio Episcopal) e a
Capela do Stella.
Essas interpretações nos levam a uma questão delicada que são os critérios
de definição em face ao que se tem potencial de preservação. Para além das
definições internacionais e nacionais acerca dos sítios arqueológicos, naturais, bens
culturais materiais e imateriais passíveis de proteção, há de se notar que, a partir da
Lei Municipal 10.777/2004 e a definição dos órgãos representantes do Conselho
Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (COMPPAC), as atribuições do
Conselho e o papel social, político e institucional que este galgou, devem ser
destacados.
A partir da abertura dos processos supramencionados, das instruções feitas
pela DIPAC e que subsidiaram a decisão da Comissão (CPTC), além do interesse
político em formalizar os tombamentos com a publicação dos Decretos, até 2003, o
município reunia 127 bens tombados! Segundo o arquiteto Paulo, o ICMS Cultural,
ou Lei Robin Hood ajudou a definir e nortear a atuação da DIPAC. Ademais, com a
promulgação da lei municipal, o CPTC foi substituído pelo COMPPAC, a fim de
fomentar a paridade ao reunir treze conselheiros na proporção de cinco indicados
pelo prefeito, um vereador, além de seis representantes da sociedade civil, além do
presidente (Superintendente da Funalfa), formação esta altamente questionada.
Ainda que a atuação do COMPPAC se dê em frentes diversas, a definição
legal deste como ambiente de discussão de políticas do patrimônio representava,
naquele momento, avanço grandioso para o município. Além disso, a Lei 10.777/04
resgata a compensação ao proprietário através da isenção do IPTU, vetada na Lei
7282/1988. De todo modo, foi a partir de então que a relação entre proprietários e
poder público começou a ser vislumbrada de modo mais estreito. E isso porque para
obter o benefício, passou a ser exigido do proprietário o bom estado do imóvel.
Assim, os técnicos da Divisão de Patrimônio realizam vistorias tanto para verificar a
condição do imóvel tombado de acordo com a isenção requerida, como para
fiscalizar se os proprietários seguem as legislações pertinentes a edificações
protegidas em adequação ao Decreto 8637/2005 que dispõe sobre engenhos
publicitários e toldos em imóveis tombados e seu entorno. Recentemente, o
município tem debatido formas de compensação financeira para manutenção de
bens tombados, tendo a Lei Complementar 065 de 2017 que dispõe sobre a
transferência do potencial construtivo de imóveis tombados, em fase de revisão final
do decreto, como estratégia adequada a realidade local, além do Plano Diretor
(PDDU) publicado em julho de 2018.
Ainda que a situação de salvaguarda no município não seja ideal e que o
poder público enfrente dificuldades para fiscalizar os 186 bens tombados,
entendemos que a participação social na valorização desses espaços e da memória
local tem aqui um ponto decisivo.
Considerações Finais
A relação entre a sociedade e poder público nem sempre é amistosa. O
desconhecimento em torno do significado dos instrumentos de preservação é uma
situação comum. A título de exemplo, temos o processo de tombamento 9.882/2015,
referente ao Conjunto Paisagístico Urbano do Bairro Poço Rico em Juiz de Fora –
MG. A robusta relação documental, reunida em três volumes, diz respeito a dezenas
de edificações remanescentes de um bairro tradicional da cidade, próximo ao centro
e composto por edificações de estilos variados. Pela complexidade da questão e o
número elevado de proprietários, somente em 2017 todos foram notificados, o que
gerou muita repercussão na mídia e pouco debate sobre o caráter do processo e
suas implicações.
Entre os meses de novembro e dezembro de 2017, os dois maiores veículos
de comunicação de Juiz de Fora produziram matérias sobre o assunto. Entre os
questionamentos, a morosidade na informação aos proprietários sobre o processo
em curso, a falta de critério da Prefeitura ao classificar algumas propriedades como
relevantes culturalmente e permitir, ao mesmo tempo, a construção de um edifício
de 11 andares a poucos metros destes bens, além da insegurança na região.
O desconhecimento do que é o instrumento de tombamento gera conotação
negativa em torno da opinião pública. Adiciona-se os paradigmas da
desapropriação, a perda do valor venal do imóvel, a restrição de uso e a falta de
competência do município para legislar sobre de tombamento, enquanto principais
alegações e que só aumentam os tabus em torno da matéria.
A conservação dos bens culturais é outro aspecto muito questionado, uma
vez que não há Fundo de Patrimônio, ampliando a desconfiança ao poder público.
Para o professor e arquiteto Júlio Sampaio, os esforços em prol de subsídios que
pudessem suprir os altos custos da conservação deveriam ser mais efetivos. Neste
sentido, a Lei 95/2017 tem sido recebida de forma positiva pelos proprietários de
imóveis tombados, representantes da construção civil e entidades. Ademais,
consideramos fundamental registrar que após 29 anos de fundação da Divisão de
Patrimônio Cultural, permanece a ideia da educação patrimonial como chave ao
aprendizado e consciência de preservação.
Enfim, ao identificarmos um bem como relevante culturalmente àquela
comunidade, o caráter estético normalmente é elevado como sentido primordial a
dada escolha. Destarte, Leonardo Barsi Castriota nos chama atenção para o sentido
de “patrimonialidade” de um bem, que está relacionado “a todo um sistema de
valores e pessoas que o legitima como tal”. (CASTRIOTA, L. B, 2009, p.81). Logo, a
atuação do setor público em torno da preservação não deve se pautar na estética do
objeto, mas no valor em que a sociedade imprime sobre ele. Afinal, os objetos são a
expressão material e simbólica da identidade, da memória e do sentimento de
pertencimento da sociedade. “Dessa discussão fica claro que o ‘ser’ patrimônio não
está no caráter iminente do objeto, mas sim em uma outra relação que passa
também pela pessoa, comunidade ou sociedade, portanto, pelo sujeito que lhe
confere tal grau.” (Idem, 2009, p.81).
REFERÊNCIAS
Periódicos:
<https://g1.globo.com/mg/zona-da-mata/noticia/moradores-do-bairro-poco-rico-manifestam-contra-tombamento-de-imoveis-em-juiz-de-fora.ghtml>
<https://tribunademinas.com.br/noticias/cultura/12-11-2017/as-riquezas-e-o-fundo-do-poco.html>
<http://camarajf.mg.gov.br/noticias.php?cod=9291>
<https://www.pjf.mg.gov.br/e_atos/e_atos_vis.php?id=56489> Publicação da Notificação a proprietários e herdeiros de imóveis do Conjunto Paisagístico do bairro Poço Rico
Bibliográficas:
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