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KENZABURŌ ŌE Morte pela Agua

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KENZABURŌ ŌEMorte pela

Agua

KENZABURŌ ŌEMorte pela Água

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orte pela Água

Dono de uma longa e aclamada carreira, o célebre autor Kogito Choko vê-se confrontado com uma história que parece ser incapaz de escrever. O livro que tanto se esforça por fazer avançar pretende explorar a relação turbulenta que teve com o pai e a culpa que con-tinua a sentir por não ter estado presente na noite em que, em dias de Segunda Guerra Mundial, o rio da aldeia extravasou das mar-gens e o pai se afogou. Como escrever sobre um homem que na verdade nunca conheceu? Quando a irmã que não vê há anos ines-peradamente o contacta, a solução parece surgir: ela tem na sua posse um misterioso baú de couro vermelho que poderá escon-der os segredos do homem que desaparecera das suas vidas. Entre-laçando mito, história e autobiografia, Morte pela Água é um romance sobre memória, família, trauma pessoal, mas também sobre o trauma de um país a braços com uma herança de derrota. Um dos mais influentes autores japoneses vivos, distinguido com o  Prémio Nobel da Literatura em 1994, Kenzaburō Ōe volta ao encontro do seu alter ego literário, Kogito Choko, num percurso cada vez mais próximo do fim.

ISBN 978-972-38-3017-0

77429.10

Prémio Nobel de Literatura

Kenzaburō Ōe nasceu em Ose, no Japão, a 31 de janeiro de 1935. Em 1954 licenciou-se em Lite-ratura Francesa pela Universidade de Tóquio e, em 1957, começou a publicar os seus primei-ros textos, em revistas literárias, sendo no ano seguinte distinguido com o Prémio Akutagawa para melhor conto. Nesse mesmo ano iniciou--se como romancista. Em 1964 publicou aquela que é considerada a sua obra mais importante, Não Matem o Bebé. Temáticas como o não con-formismo, o choque cultural e o isolamento indi-vidual e social no Japão moderno são frequentes nos seus romances, ensaios e contos. Ōe é para-lelamente um forte opositor à energia nuclear. Em 1994 recebeu o Prémio Nobel da Literatura. É considerado a mais importante voz da litera-tura japonesa contemporânea.

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Kenzaburō Ōe

MORTE PEL A ÁGUA

tradução deHelder Moura Pereira

LIVROS D O BRASIL

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M o rt e p e l a água

P R I M E I R A   PA RT E

O R O M A N C E S O B R E O   A F O G A M E N T O

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C A P Í T U L O 1

O   G R U P O T H E C AV E M A N E N T R A E M C E N A

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Asa foi buscar-me ao aeroporto no seu carro, tendo-me posto ao cor-rente das novidades locais.

— Os atores mais jovens do The Caveman ficaram encantados quando souberam que vais ficar algum tempo na Casa da Floresta — começou ela por dizer. — E quanto ao diretor, o Masao Anai, bom, acho que ficou ex-tremamente feliz e aliviado. Ao que parece, quando a Unaiko, que é, claro está, um elemento importante do grupo, tomou a decisão arbitrária de ir a Tóquio para falar contigo pessoalmente, ele ficou preocupado, receando que as coisas pudessem não correr bem.

«Deixa-me dizer-te, mudando de assunto, que pessoas da autarquia me têm perguntado o que devem fazer em relação ao pedestal que foi erguido quando ganhaste aquele prémio internacional, uma vez que onde está interfere com a construção de uma estrada nova a que vão dar início em breve. Discuti a questão com a Chikashi e deixei ao seu critério. Se-gundo ela, não há necessidade de o mudar para outro lugar, podem levar apenas a base. Aquilo que nos interessa é que permaneça a placa que tem as palavras que tu escolheste dos escritos da mãe e o teu pequeno poema. Enquanto estava a tratar disto, ocorreu-me que tu nunca chegaste a ver o pedestal depois de pronto, pelo que, se quisesses, podíamos lá dar uma saltada agora… não é mais do que uma hora daqui até Okawara. E até podias dormitar um pouco até lá.

Asa ficou depois em silêncio, concentrada apenas na condução, e eu, embora intermitentemente, segui a sua sugestão. Tal como ela tinha dito, uma hora depois parámos o carro num sítio junto à margem transformado

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em parque de estacionamento. Asa referiu que a nossa mãe tinha plantado romãzeiras e camélias em redor do pedestal, mas já lá não estavam agora, pois precisaram de «limpar» o terreno para a construção da estrada. Ir-rompendo do chão, podia ver-se uma pedra enorme e redonda que se pare-cia com o fragmento de um meteorito. Ao olhar bem para a pedra — tinha manchas de um verde esbatido e vegetal, como as primeiras cebolas da pri-mavera —, vi que continha cinco escassos versos com caracteres japoneses. Eu tinha escrito esses versos com uma caneta de tinta permanente, mas as palavras tinham sido ampliadas e gravadas com grande cuidado na pedra.

Não trataste do Kogii para ires com ele à florestaE tal como a corrente do rio, nunca mais vais voltar.Em Tóquio, no tempo da estação secaLembro-me de tudo da frente para trás,Da idade da velhice à mais tenra idade.

— Parece melhor do que eu imaginei, considerando a celeuma que le-vantou — disse eu.

— Por alguma razão, o início, quer dizer, o poema de dois versos que a nossa mãe escreveu, não foi muito do agrado das pessoas — declarou Asa —, que diziam não ser propriamente um haiku, embora também não se pudesse considerar um tanka. Embora já não fosse possível fazer nada quanto a isso, o professor nomeado conselheiro do comité para a constru-ção do pedestal chamou-me a Matsuyama para me dizer do seu desagrado. «Afinal aquilo é suposto ser o quê?», perguntou ele. «Uma paródia sobre uma canção de Misora Hibari?»

«Escusado será dizer que fiquei fora de mim. E não resisti a dizer-lhe qualquer coisa como: “No verso da canção de Hibari está como o correr das águas, enquanto neste caso é como a corrente do rio. A minha mãe não plagia!” Depois expliquei-lhe que por aqui as pessoas usam a expressão “levado pela corrente” quando alguém se afoga no rio e mesmo quando é salvo depois de ter sido arrastado pela força das águas. As pessoas arras-tadas pelo rio… os afogados, obviamente, mas também os que são salvos

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das águas enfurecidas… acabam por deixar a aldeia para sempre, pelo que a frase se tornou uma metáfora para referir os que se vão embora e nunca regressam, ou só regressam quando o imperador faz anos. E também se aplica àquele tipo de pessoas que vão estudar para Tóquio e acabam por ficar por lá, como se, de facto, o rio os tivesse levado na enxurrada, apesar de terem jurado solenemente regressar um dia à aldeia… bom, tu sabes, melhor do que ninguém, que a expressão não tem nada de obscuro. Ex-pliquei todas estas subtilezas ao professor e quando afirmei que o pri-meiro verso do poema podia ser de difícil compreensão para alguém de fora, ele ficou arrogante e defensivo (bom, quer dizer, afinal é professor universitário) e informou-me de que é autor de várias obras sobre a histó-ria e os usos e costumes desta zona. É claro que ele nunca aceitou a minha interpretação, mas eu assegurei-me de que ficavam gravadas na pedra as palavras que tu enviaste, exatamente como as escreveste.

Asa fez uma pausa para respirar e depois prosseguiu:— Eu tenho sérias dúvidas de que o professor tenha chegado a per-

ceber o primeiro verso. Quer dizer, não é possível que ele soubesse que na nossa família te chamávamos Kogii quando eras pequeno ou que nesse tempo tu partilhavas a vida com um alter ego também chamado Kogii. Só alguém intimamente familiarizado com a tua obra podia saber tais por-menores. Por outro lado, como sabes muito bem, quando se fala de ir à floresta está a usar-se uma metáfora para a morte, embora também possa querer indicar a realização de uma cerimónia fúnebre. Algo que o profes-sor deve ter descoberto nas suas investigações, seguramente.

— Tu nunca chegaste a conhecer o sítio onde foi ter o corpo do nosso pai depois de o rio o ter lançado para a margem, pois não? — perguntei eu. — Sempre disseste que aquilo de que te lembras mais da infância foram as horas que se seguiram a terem trazido o corpo do nosso pai para casa, mas…

— Lembro-me perfeitamente de tu me teres dito para ir ver junto da esteira onde tinham posto o corpo do pai se estaria lá uma criança morta deitada ao seu lado. Mais de vinte anos depois, quando vim a saber que tu tinhas constantemente um sonho parecido, entendi isso primeiro como

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uma coincidência curiosa, mas logo percebi que também podia ser a re-cordação dolorosa e insuportável de uma coisa que aconteceu mesmo. E não pude deixar de pôr a hipótese de esse teu sonho poder estar relacio-nado com o facto de não teres querido ir no barco que conduziu o nosso pai ao seu túmulo na água, digamos assim. Bom, seja como for — conti-nuou Asa —, ali andava eu a olhar em redor da pessoa morta, deitada no futon com um pano a tapar-lhe o rosto. Houve um momento em que tro-pecei e caí, e ao tentar erguer-me toquei com a mão no seu cabelo farto e húmido. Lembro-me com grande nitidez dessa sensação arrepiante, pelo que acredito quando dizes que o pai se afogou depois de arrastado pela corrente, embora a nossa mãe nunca tenha querido falar disso.

— Lembras-te quando fui para a escola nova que construíram aqui perto a seguir à guerra, antes de a nossa aldeia ter crescido para o que é agora? — perguntei eu. — Um dia, durante a aula de desenho, fomos até um banco de areia para fazer esboços ao ar livre. O professor colocara o seu cavalete em frente de um espaço na ponta do banco de areia onde havia um denso aglomerado de salgueiros e estava a trabalhar numa pin-tura a óleo. Enquanto eu deambulava um pouco por ali, ele chamou-me para perguntar: «Ouvi dizer que este sítio é conhecido há muitos anos por ter sido aqui que veio ter o corpo do senhor Choko depois de afo-gado. Por acaso não está relacionado com a sua família?»

«Era evidente que todos nós estávamos em negação profunda no que dizia respeito às circunstâncias da morte do nosso pai, mas lá fora toda a gente parecia saber. E eu acho que terá sido essa a razão pela qual a nossa mãe escreveu “a corrente do rio” no pequeno poema gravado na pedra.

Regressámos ao carro, caminhando sob uma fileira de cerejeiras tão carregadas (disseram-me que estavam prontas para a colheita) que nem um fio de luz chegava ao chão. Na estrada, durante os vinte e poucos minutos do percurso que faltava até à nossa terra — o pitoresco vale de uma mon-tanha, coberto por floresta densa, onde ambos crescemos  —, Asa falou finalmente de algo em que certamente veio a matutar ao longo da viagem.

— Olha, Kogii  — disse ela  —, fiquei muito contente quando dis-seste que ias ficar uns tempos na Casa da Floresta. Depois de tantos anos

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de espera, é claro que te fará bem começares a olhar para as coisas que estão no baú de couro vermelho, mas ao mesmo tempo não pude deixar de dizer para mim própria: «Pois é, o meu irmão está definitivamente a ficar velho.» Uma das coisas que descobri acerca da velhice é que dá azo a um desejo de deixar tudo resolvido. Quando lá se chega, não há nada mais natural do que pensar na morte.

«Escusado será dizer que eu estou precisamente na mesma situação que tu e é por isso que estas coisas me vêm à cabeça. De facto, a questão relevante não estará relacionada com o que acontece entre o agora e o depois? Quer dizer, se uma pessoa não tem outro remédio senão resignar--se à inevitabilidade da morte, permanece a questão de ter forçosamente de lidar com o tempo que medeia entre a vida e o dia em que ela chegue. A morte apanha-nos a todos, seja o que for que se faça, mas temos de ser ativamente responsáveis no que nos resta viver das nossas vidas.

«Vê, por exemplo, o poema que a nossa mãe escreveu… chamemos--lhe haiku só para simplificar. Ora, eu penso que aquelas palavras foram es-critas como uma espécie de mensagem dela para ti, para serem lidas quando voltasses a esta casa e visses o pedestal comemorativo: Não trataste do Kogii para ires com ele à floresta / E tal como a corrente do rio, nunca mais vais voltar.

«E tu, em contraponto, respondias nos teus três versos com a certeza clara de que não voltarias à tua terra. Ficaste por Tóquio, meditando cer-tamente em muitas e variadas coisas… fazendo jus, talvez, àquela citação de Eliot, “um velho homem num mês de seca”, não é verdade? E está tudo muito bem, a sério, mas a verdade é que, comparada com os dois versos que a mãe escreveu, a tua resposta impressionou-me como muito mais evasiva, o que, de resto, não era nada que eu não esperasse de ti.

«Mas no que diz respeito à nossa mãe, quando escreveu aquilo ainda te via como Kogii, preocupada por não estares a fazer o que devias para levar o Akari à floresta, pois o mais certo é ele não ir viver tanto tempo como tu. E eu acho que tu quiseste regressar e ficar aqui algum tempo para poderes dar o primeiro passo a fim de preparares o Akari, e, eventualmente, a fim de te preparares tu próprio para o passeio com ele na floresta, com toda a carga metafórica que a frase possa conter.

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Depois do seu longo monólogo, Asa permaneceu em silêncio du-rante vários quilómetros e a determinado momento parou o carro.

— Segue por este caminho… bom, na verdade é mais um trilho de animais… e vais ter à casa. Não te esqueceste do atalho, pois não? Para mim já é muito tarde, de modo que te deixo aqui, se não te importas, e sigo já para casa. Vou descansar um bocado e mais tarde volto para irmos jantar. E depois logo te deixo as tuas malas.

«Ah, já agora, sobre a Unaiko, a rapariga que foi conhecer-te a Tóquio. Ela vai aparecer amanhã na Casa da Floresta com o Masao Anai, o diretor do grupo de teatro, como já te disse. Sabes com certeza que ele foi aluno do Goro Hanawa, embora “discípulo” talvez seja a palavra mais adequada. A Unaiko disse-me que gostavam de te falar de várias coisas enquanto es-tivesses por cá… e já te terá posto ao corrente de algumas quando tiveram aquela conversa em Tóquio. Amanhã, uns dos membros mais jovens do grupo vão lá passar também para instalarem a pedra comemorativa e de-pois disso o Masao e a Unaiko esperam poder falar contigo tendo em vista uma possível colaboração. Estão os dois muito entusiasmados com o en-contro, por isso tenta ser agradável, sim?

2

Bastante cedo no dia seguinte, Asa, que era sempre muito organizada, deu indicações a dois jovens membros do grupo para irem buscar a pedra. O  jardim das traseiras da casa estava cheio de cornizos, agora em flor, e tinha também um ácer, da variedade conhecida no Japão por Grande--Copo-de-Saqué, que Chikashi tinha trazido do seu jardim em Tóquio juntamente com uma romãzeira que a sogra (ou seja, a minha mãe) lhe ofe-recera, e tudo isso crescera de tal forma que se harmonizava na perfeição com o tamanho do jardim. Concordei inteiramente com Asa quanto a pôr--se a pedra junto às árvores e de frente para a casa.

Os membros do grupo de teatro The Caveman chegaram numa car-rinha com o seu nome desenhado à mão na parte lateral. Era evidente que

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fora feito por Goro Hanawa, tendo a sua caligrafia sido aumentada com competência e gravada na viatura. Estávamos no jardim da frente, um es-paço que praticamente tinha sido escavado na rocha e depois coberto de gravilha, quando Asa, que tinha apanhado boleia com o grupo, me apre-sentou a Masao Anai. Eu lembrava-me da sua cara; era um homem entre os quarenta e os cinquenta anos, vestido de maneira muito simples e com o olhar de quem estava no mundo do teatro há muito tempo. Perto dele, muito direita e usando roupa de trabalho, com um largo sorriso estam-pado no rosto, encontrava-se a rapariga que eu conhecera em Tóquio. Asa estava a par do nosso encontro um pouco fora do comum, mas não fez qualquer referência a isso, limitando-se a dizer: «Gostava de te apresen-tar o Masao Anai e a Unaiko.»

Depois de termos trocado cumprimentos apressados, Masao Anai mandou dois aprendizes à carrinha buscar a pedra com o poema, que se encontrava envolta num cobertor velho e atada com uma corda. A seguir conduziu os seus dois jovens ajudantes, mais a pesada carga, que trans-portavam num robusto estrado de madeira, até ao jardim das traseiras.

Unaiko tinha ficado para trás e, quando eu lhe agradecia de novo ter vindo em meu auxílio no outro dia, Asa interrompeu:

— Sabias que a Chikashi está relacionada com o nome Unaiko, que ela depois adotou? — perguntou.

Unaiko acenou com a cabeça.— Diz-se que a primeira pessoa a chamar «homem das cavernas» ao

nosso diretor foi o Goro Hanawa — disse ela. — Ouvi da boca da Asa que a sua mãe disse uma vez que a neta, Maki, parecia uma criança dos tempos medievais, uma unaiko, com o cabelo ao estilo dessa época, cortado curto com franja e um pequeno rabo de cavalo a despontar em cima. Acontece que eu usava precisamente o mesmo corte. E disse eu então, meio na brin-cadeira: «Talvez devesse mudar o nome para Unaiko!» Os mais jovens acharam que era boa ideia e o nome acabou por vingar. Só por mero acaso é que se assemelha ao nome de família do nosso diretor, Anai.

— Lembro-me de me dizerem que a primeira vez que a Chikashi trouxe os nossos filhos ao vale para conhecerem a minha mãe, a nossa filha

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mais velha, Maki, tinha o cabelo cortado de forma idêntica ao da Unaiko, embora a versão da Maki fosse um pouco mais feminina, e a minha mãe achou que lhe ficava lindamente — disse eu.

— Na verdade, eu também estava presente quando a Chikashi e a nossa mãe tiveram essa conversa — disse Asa. — A mãe falou também de uma antiga canção do século nove que inclui o termo unaiko, chegando mesmo a cantar-nos uma parte! Era uma maravilha, falava da chuva do verão, do canto do cuco e das meninas correndo de um lado para o outro com o seu penteado retro medieval. A nossa mãe parecia muito contente quando cantou essa canção, até porque já estava muito feliz devido à visita dos netos.

Masao Anai regressou do jardim e Asa achou por bem pô-lo ao cor-rente do que tinha perdido, antes de prosseguir com a história.

— Resumindo — continuou ela —, durante o tempo em que aqui estiveram, toda a gente chamava «Unaiko» à nossa Maki. Anos mais tarde, contei a história a esta Unaiko, e do resto já sabem. Bom — acres-centou ela bruscamente —, e se fôssemos até ao jardim ver como os mais novos estão a tratar das coisas?

Mas quando entrámos na sala de refeições e olhámos pela grande ja-nela envidraçada, a pedra gigantesca já se encontrava no seu lugar e os jo-vens trabalhadores tinham feito uma pequena pausa, parecendo aguardar ansiosamente a nossa reação. Garanti a Asa que a colocação estava per-feita e ela fez-lhes um sinal a indicar que estava tudo muito bem. Os jovens dirigiram-se então para a parte da frente da casa e ela foi ter com eles. Os outros ficaram no mesmo sítio, a olhar para o jardim, parecendo que todos os olhos se fixavam na inscrição poética gravada na pedra.

— A  Asa explicou-me o significado da expressão corrente do rio  — disse Masao Anai. Ao ver a sua cara de perfil, percebi o motivo pelo qual Goro, que foi sempre extraordinariamente perspicaz a dar apelidos e cog-nomes às pessoas, o batizara como «homem das cavernas». Embora fosse óbvio que tinha brincado com o primeiro elemento do nome de família de Anai (em japonês ana pode significar «cave», «buraco» ou «caverna»), a alcunha era também uma reação à sua fisionomia peculiar, sobretudo no

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modo como a testa se inclinava para trás a partir de uma estrutura óssea protuberante logo acima dos seus olhos, o que lhe dava um ar de certa rudeza primitiva e selvagem. O poder de observação de Goro não podia ignorar características humanas tão diferenciadas, e Masao, aceitando ser conhecido por «homem das cavernas», acabou por atribuir o mesmo nome ao grupo.

— Para dizer a verdade — prosseguiu Masao —, tenho pensado bas-tante no significado dramático do modo como o alter ego imaginário, Kogii, percorre os seus romances como uma espécie de leitmotiv sobrenatural. Ao ler este poema, não posso deixar de pensar que a ideia de mandar alguém para a floresta sem estar preparado para o fazer parece uma contradição em relação às regras do mundo mítico tantas vezes evocado na sua obra. Quer dizer, o seu companheiro de infância, também de nome Kogii, foi alguém que, originariamente, veio da floresta e a ela depois regressa por sua própria vontade.

— Tem toda a razão — disse eu. — Mas quando o poema menciona Kogii refere-se sobretudo à minha alcunha. A minha mãe usa o nome por que me chamavam na infância como uma espécie de espada verbal para me confrontar com uma questão séria acerca da preparação que fiz para enca-rar a minha própria morte e a do meu filho Akari. Portanto, o significado da parte que foi escrita por ela neste poema é, essencialmente, que a coisa mais importante que eu preciso de fazer para me preparar para a minha morte é preparar o Akari para o seu passeio à floresta, cuja morte deve preceder a minha.

Precisamente naquele momento, Asa reapareceu na sala de jantar e disse a Masao Anai:

— Os rapazes vão de carro dar uma volta até ao monte Odami e re-gressam daqui a umas três horas. Devo dizer que eles formam realmente um grupo extraordinário. Não só estão sempre disponíveis para trabalhos mais pesados como se mostram delicados e respeitadores do facto de esta-rem em casa de outra pessoa e no jardim de outra pessoa.

Masao agradeceu o cumprimento com uma ligeira inclinação do corpo e depois fez um sinal na direção da sua assistente.

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— O mérito é todo da Unaiko; a responsabilidade desses aspetos da formação é dela — disse.

Depois de os jovens terem saído, Asa foi fazer café e Unaiko serviu-o. Quando estávamos sentados à mesa, Asa virou-se para mim, declarando:

— O Masao estava a dizer que, durante a tua estada aqui, o seu maior objetivo… e de todo o grupo, de resto… é prestarem-te toda a assistência de que precisares, tendo também a esperança de que tu os possas ajudar na peça que estão a montar, baseada na tua obra. Ele depois há de pôr-te ao corrente.

— Bom, enfim — objetou Anai com um encolher de ombros bem humorado —, a Asa faz-nos parecer muito nobres e altruístas, mas a ver-dade é que a nossa motivação é puramente egoísta. Falando sério, uma vez que já estávamos a trabalhar arduamente na preparação de uma peça que incorporava elementos de toda a sua obra, quando a Asa nos disse que ia passar aqui algum tempo foi uma espécie de presente dos deuses. Aconteceu então que um dia, falando-lhe do nosso projeto, lhe pergun-támos se haveria alguma possibilidade de o senhor ter a boa vontade de querer conhecer o que tínhamos feito até agora, tendo ela dito: «Estou em crer que o meu irmão, enquanto aqui estiver, vai passar em revista tudo o que escreveu até agora, pelo que há de arranjar maneira de conci-liar o seu projeto com o vosso.» E isso faz sentido, parece-me, pois ambos estaremos de certa forma a proceder a uma retrospetiva.

«Chegará o momento em que lhe pediremos o favor de ver o que temos feito em relação à peça propriamente dita, mas por agora, e se não se importa, gostaria de lhe indicar as linhas gerais que orientam a nossa aproximação à sua obra.

«Temos extraído fragmentos específicos dos seus romances, atri-buindo depois a cada um forma dramática. Ainda mal começámos a tentar unir esses fragmentos num todo coerente, mas, já que temos a oportuni-dade de falar consigo pessoalmente, penso que conseguiríamos maior pro-fundidade se o pudéssemos entrevistar e incorporar os seus comentários no guião. Após algumas conversas, estou certo de que haverá uma maneira de fazer depois a integração na peça. Nela, um ator do The Caveman, que

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faz também outros papéis, representá-lo-á, sendo entrevistado como parte do processo narrativo. Quanto às personagens que possam emergir das his-tórias que quiser partilhar connosco nessas entrevistas, serão representadas por um conjunto de atores que se vão desdobrando em vários papéis à me-dida que forem surgindo. Através desse método é nossa intenção criar uma forte narrativa multidimensional.

«Já criei um certo número de peças baseadas na sua obra, tendo tam-bém entrado em muitas delas, mas o meu propósito em relação a este projeto é fazer uma espécie de resumo de tudo o que está para trás. Tendo isso em mente, estou a planear fazer do seu alter ego o foco principal. Tal-vez possa perguntar-se como iremos apresentar visualmente a figura de tão singular personagem, mas não se preocupe, já tenho uma coisa es-boçada. A partir do momento em que começarmos a conversar, espero que as gravações possam também ser úteis para o seu próprio projeto. Segundo nos disse a Asa, a sua ideia é revisitar e reler o material antigo e combiná-lo com coisas mais novas que venham a surgir. Se houver uma maneira de ajudarmos nisso, pelo menos em relação a perspetivas que possamos ter sobre a sua obra publicada até agora, pode crer que nos en-cherá de satisfação.

Quando Masao Anai parou de falar, Asa pegou na palavra, dirigindo--se agora a mim para dizer:

— Eu realmente falei a estes nossos amigos na possibilidade de vires a cotejar alguma da tua obra inicial com o material que encontrasses no baú e partires depois da combinação desses elementos para a escrita do que poderia ser o resumo final da tua expressão literária — explicou ela. — Disseste-me que tentaste reler os teus primeiros romances, mas sem conseguires avançar grande coisa, pelo que me ocorreu uma ideia. E se voltasses a olhar para a tua obra através de um trabalho conjunto com estas pessoas? O Masao e a Unaiko têm estado a lê-la de um modo arro-jado e inovador.

Tenho de admitir que me senti curioso sobre a hipótese de ver como os meus livros teriam sido lidos por Masao Anai e o seu grupo e pareceu--me que podia ser uma forma excelente de ter uma nova perspetiva sobre o

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meu alter ego da infância, Kogii, que ainda assombrava, quase literalmente, os meus sonhos.

— Nesse caso, acham que seria boa ideia as nossas conversas centra-rem-se sobretudo no Kogii? — perguntei.

— Sem dúvida nenhuma — disse Unaiko. — Pela nossa parte, esta-mos prontos para começar quando for preciso!

Evitando intencionalmente os seus olhos brilhantes e vivazes, dirigi o olhar para Asa. Nos dias da nossa juventude, Asa interferiu muitas vezes por mim em situações deste tipo, tomando a iniciativa com a segurança típica da mulher decidida e extrovertida que ela é, mas neste momento não parecia sentir necessidade de o fazer e eu confiei no seu juízo. A vibrante linguagem corporal de Unaiko parecia dizer: «Vá, vamos fazer isto!», e logo começou a tirar vários componentes do equipamento de gravação de um saco de pano em que eu já tinha reparado anteriormente e que chamara a minha atenção por me parecer demasiado grande para ser usado por uma mulher.

Diga-se, em abono da verdade, que Masao e Unaiko não fizeram qual-quer pressão para que começássemos a gravar. Muito pelo contrário. Ela foi pondo todo o equipamento, peça por peça, na mesa da sala de refeições, enquanto todos nós íamos aguardando calmamente. Foi o primeiro sinal de uma metodologia cuidadosa e deliberada que haveria de caracterizar a minha breve colaboração com o grupo de teatro The Caveman. Percebi imediatamente que estava em boas mãos, pelo que qualquer relutância re-sidual que ainda pudesse sentir se desvaneceu por completo.

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Passado não muito tempo, com o gravador já a zunir, Masao Anai sen-tou-se numa cadeira e começou a falar.

— Apesar de não termos tido a sua anuência formal, senhor Choko, seguimos em frente e começámos a discutir várias ideias entre nós, sobre-tudo os aspetos conceptuais deste novo projeto — disse ele. — É claro que

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não pudemos deixar de pôr a Asa ao corrente disto e a posição dela foi a se-guinte: «Não vejo qualquer problema no que me descreve, mas certifique--se de que a aproximação ao meu irmão é feita com o máximo cuidado.» Há um fundo destinado a subsidiar projetos de diretores de grupos de pe-quena dimensão e, para se poder candidatar, um grupo precisa de ter ganho um qualquer prémio ou galardão. Apesar de ainda não ter visto a nossa representação da peça baseada no seu livro, O Dia em Que Ele Virá Secar as Minhas Lágrimas, suponho que serão do seu conhecimento os gratificantes elogios que ela recebeu, não é verdade?

«Bom, isto do autoelogio é um pouco despropositado e vamos já parar com isso. Precisamos é de meter mãos à obra no novo projeto. O plano ori-ginal era, depois do sucesso que foi a dramatização de O Dia das Lágrimas, como nós lhe chamamos para abreviar, fazer uma espécie de sequela, mas, como sabe melhor do que ninguém, no caso desse romance não há sequela alguma. Sendo assim, tive a ideia de ir à procura de um motivo recorrente que percorresse todos os seus livros e fizesse a ligação entre eles.

«O fio condutor que encontrei foi o Kogii, como não podia deixar de ser. E achei bastante interessante que nos seus livros o nome “Kogii” esteja associado a vários sujeitos. No princípio, Kogii era o nome pelo qual o senhor era tratado na infância. Mais tarde, passou a referir um seu companheiro assíduo: o amigo misterioso… ou talvez imaginário, atrevo--me a dizer… que supostamente viveu em sua casa e que era mesmo igual a si. Uma espécie de duplo, para usarmos linguagem cinematográfica.

«Este Kogii nunca saiu do seu lado. Até ao dia em que muito sim-plesmente se dissipou nos ares e regressou à floresta. Por outras palavras, o ser místico cuja forma física era apenas vista por si tinha a capacidade de levitar e de percorrer os céus, dado que, embora se parecesse consigo, tinha poderes que ultrapassavam os de qualquer criança normal.

«Na proposta formal que tive de fazer, tentei persuadir a comissão que atribui as bolsas a financiar este projeto, explicando-lhe que iria fazer repre-sentar essa personagem, que transcende a realidade, como uma verdadeira pessoa de carne e osso. A questão que se punha era se a faria aparecer em palco, atribuindo-lhe, portanto, forma física, ou se apenas faria a audiência

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intuir a sua presença enquanto ela se mantinha invisível. Na minha perspe-tiva e em termos de impacto dramático, quanto mais simplicidade, melhor. Para fazer a caracterização da personagem, percorri toda a sua obra e reco-lhi os elementos necessários em fichas de leitura. A propósito, esta ideia de fazer fichas vem de quando andava a ler os seus ensaios na faculdade.

«No espaço que temos em Matsuyama, usámos as suas descrições do Kogii como inspiração para a criação de um pequeno boneco: uma espécie de manequim tridimensional, feito de pano. A Unaiko fez um modelo com vários trapos, enchendo-lhe depois o interior. Se o boneco acabar por en-trar mesmo na peça, colocá-lo-emos o mais alto possível, um pouco acima do palco, onde possa ser visto pela assistência. Já fizemos uma coisa do gé-nero, pelo que não estamos totalmente às cegas desta vez. Bom, seja como for, a versão boneco do Kogii estará a olhar do alto para o que se passa na ação da peça e com influência sobre os atores. Chamemos a isto o “efeito Kogii”.

«Estava outro dia a tentar perceber quando o Kogii apareceu pela pri-meira vez numa obra sua e, quando me lembrei de que o seu amigo Takamura disse uma vez numa entrevista que gostava muito de determinado livro seu mais antigo, fui ver nos meus livros e encontrei a história em questão.

— Ah — disse eu —, está a falar daquela em que um jovem compo-sitor imagina que o seu filho morto flutua pelos céus, do tamanho de um canguru e vestido com uma camisa de dormir branca. O nome da perso-nagem é Aghwee.

— Exatamente  — concordou Anai. —  O  narrador é um estudante que está a trabalhar em tempo parcial como assistente pessoal do jovem compositor, que é mentalmente instável, e pensa que a criatura enorme que o seu empregador vê não é mais do que uma fantasia ilusória. Parte do trabalho que o narrador tem de fazer consiste em acompanhar o alucinado compositor nas suas deambulações por Tóquio. Certo dia, caminhando por uma rua estreita, cruzam-se com um tratador de cães que parece estar a ser arrastado por uma pequena matilha de dobermans ruidosos e nervosos, cada um deles a puxar o mais possível para se livrar da trela. O compositor, na-quele momento, está ocupado a tentar comunicar com o bebé enorme em

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forma de canguru… é o fantasma do seu filho, que nasceu com uma lesão cerebral e que ele opta por deixar morrer à fome pouco tempo depois… e o narrador fica tomado de pânico, temendo ser apanhado pela turba de cães. Sentindo-se completamente indefeso, fecha os olhos e começam a descer--lhe lágrimas pelo rosto. É então que alguém lhe toca no ombro.

Eu sabia a passagem de cor e recitei-a:— Sobre o meu ombro poisou a mão que não era delicada, não, era a

própria essência da delicadeza.— É precisamente isso! — exclamou Masao, batendo palmas. — Quando

reli a história, ocorreu-me que aquilo que o jovem narrador julgou ser a mão do Aghwee no seu ombro era, de facto, a mão do Kogii. A partir daí, escrevi uma cena em que o Kogii, tal como o enorme bebé fantasmagórico flutuando pelos céus de Tóquio, observa de um ponto elevado o roman-cista em baixo, ou seja, Kogito Choko. Já agora, espere só um segundo que já lhe leio a parte final, em que o narrador é atingido num olho por uma pedra que o cegou, atirada por um grupo de crianças inexplicavelmente amedrontadas.

«Foi então que vi erguer-se do solo como um canguru e subir rapidamente na direção do azul-aguado de um céu que mantinha a inconstância do inverno um ser que eu conhecia e me era querido. “Adeus, Aghwee”, ouvi-me eu a dizer nas profundezas do meu coração. E percebi então que o ódio que sentira por aquelas crianças em fúria tinha desaparecido e que, durante esses dez anos, o tempo enchera o meu céu de figuras, nem todas, suponho, completamente inocentes, e que brilhavam nele com uma luz cor de marfim. Quando aquelas crianças me feriram e fui obrigado a sacrificar a visão de um olho, um sacrifício puramente gratuito, fiquei dotado com o poder, embora breve, de vislumbrar um ser que descia de um céu só meu, acima da minha cabeça.

A leitura de Masao Anai das palavras que eu escrevera há tanto tempo teve um impacto fortíssimo em mim. Senti-me como se tivesse acabado de confirmar pessoalmente a evidência indiscutível do seu talento como encenador.

— Como já exemplifiquei — disse Masao —, temos trabalhado no sentido de atribuir à personagem-metáfora Kogii um lugar central em

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todo o processo. Podemos até discutir mais tarde o que ela representa, embora me pareça desde já que é óbvio. Há, contudo, uma outra apro-ximação, que inclui a possibilidade de a Unaiko acrescentar à estrutura--base uma interpretação da sua lavra. O grupo The Caveman não se rege por princípios rígidos e penso mesmo que a nossa flexibilidade pode vir a ter um efeito estimulante sobre aquilo que o senhor se propõe escre-ver agora. A verdade é que hoje em dia, ao contrário do que aconteceu no passado, os académicos não parecem muito interessados na obra de Kogito Choko, pelo que talvez a colaboração entre nós possa ajudá-lo a recuperar alguma da popularidade perdida.

— Está a falar a sério, Masao? — perguntou Asa algo rispidamente. — É que, conforme lhe mencionei, o meu irmão não lida bem com este tipo de situações e ao dizer-lhe coisas desse género, que não são assim muito agradáveis, corre o risco de ele se retirar do projeto. Acho que o me-lhor era irmos dando passos mais lentos e seguros, na esperança de que todos possam ser inspirados reciprocamente pelas várias formas de cria-tividade. Segundo as suas palavras, a Unaiko pode vir a trazer à peça uma perspetiva diferente, pelo que, Unaiko, o que tem a dizer? Como se sente em relação a isto?

Unaiko tinha estado a escutar com uma atenção mais do que compe-netrada, parecendo, com o seu rabo de cavalo fora de moda, uma miudi-nha que se transformara em mulher sem ter mudado muito, mas naquele momento retirou a expressão séria do seu rosto e dirigiu-se aos outros.

— Eu tenho um interesse muito forte por este projeto — disse ela —, e acho que a colaboração do Masao com o senhor Choko pode vir a dar bons frutos. Há até uma coisa que eu gostaria de perguntar ao senhor Choko em privado, quando chegar a altura, se for possível, claro.

— Sugiro-lhe que tenha cuidado — avisou Asa, mas sem pôr muita ên-fase na frase. —  Quando alguém tenta aproximar-se do meu irmão, ele assusta-se e foge. Ah, ah, ah! Além disso, segundo me disseste, mano, a tua intenção prioritária é dedicares-te aos papéis bafientos que estão no baú de couro vermelho. Eu tenho alguns sentimentos de ambivalência em relação

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ao projeto, pelo que ficaria mais descansada se tudo fosse a um ritmo mais lento.

Depois daquela observação algo impenetrável, Asa fez uma pausa e olhou de relance para o relógio. Virando-se para mim, disse:

— Os jovens devem estar quase a regressar do seu passeio. É possível que agora venhas a ter de combinar com eles idas e vindas, pelo que tal-vez fosse simpático da tua parte convidá-los para jantar.

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Na manhã seguinte, pelas nove horas em ponto, a carrinha do The Ca-veman parou mais uma vez junto à Casa da Floresta, trazendo nela Masao Anai, Unaiko e os dois jovens elementos que tinham ajudado a transportar a pedra com o poema. A fim de evitar a hora de ponta da parte da manhã, o pequeno grupo deixara Matsuyama pelas seis horas, e tão matutina partida deixara os dois jovens evidentemente perturbados. Saudaram-me com uma expressão no rosto que parecia querer dizer: «Desculpe, ainda estamos meio a dormir!» Mas poucos minutos depois, demonstrando uma energia admirável, já estavam a trabalhar no duro, juntamente com Asa, transfor-mando parte do piso térreo da casa num pequeno teatro.

Via-se bem que os dois jovens tinham prática no trabalho manual e a tarefa de que estavam encarregados — preparar a Casa da Floresta como espaço de trabalho comunitário e lugar de ensaios — requeria, sem dúvida, muita força física. Asa e Unaiko combinaram previamente esta interven-ção, tendo Asa tido o cuidado de me assegurar que as alterações seriam apenas temporárias. A Casa da Floresta, que Asa autorizara anteriormente que fosse usada para ensaios, era perfeitamente apropriada para atividades deste género. No dia anterior, Asa tinha procedido por iniciativa própria à limpeza mais geral e incumbia-se agora de supervisionar as atividades da equipa recém-chegada.

O estúdio/quarto onde eu trabalhava e dormia ficava no extremo do primeiro andar, na parte ocidental da casa, juntamente com a biblioteca e

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um outro quarto. Por acordo prévio, toda aquela área fora declarada «inter-dita». No que diz respeito ao piso inferior, a zona que dava para nordeste fora pensada como sala de visitas ou sala de estar, mas nunca chegou a ser usada. A parte sul incluía a entrada principal, onde as pessoas tiravam os sapatos quando chegavam, um vestíbulo de pequenas dimensões, uma casa de banho de hóspedes, e uma escada para o piso de cima. No lado norte, separado do estreito vestíbulo por uma porta, situava-se a sala de jantar e, descendo um pequeno degrau, o grande salão, ligeiramente rebaixado. Tal como a sala de jantar, essa larga zona de estar tinha uma enorme janela envidraçada que dava para o jardim das traseiras. Por fim, na extremidade ocidental, havia dois quartos para membros da família que viessem de vi-sita, com uma casa de banho comum.

— Amanhã vêm cá mudar a mobília do salão… a mesa e as cadeiras, as prateleiras de livros amovíveis, o sofá e a televisão… para a sala de visi-tas — disse Unaiko, muito segura de si. — No ano passado, uma vez que não parecia que o senhor pudesse voltar à Casa da Floresta nos tempos mais próximos, combinámos com a Asa utilizar todo o piso de baixo para ensaios. Se libertarmos agora o salão, a zona mais a sul poderá ser usada como palco. E se retirarmos a mesa grande da sala de jantar, podemos uti-lizar aquela área para pôr lugares sentados.

— Parece-me bem — disse eu. — Nos velhos tempos, quando vinha aqui à Casa da Floresta uma vez por ano, se não estava lá em cima a ler um livro ou a trabalhar numa coisa qualquer, o mais certo era encontra-rem-me refastelado no sofá na zona ocidental do salão. Agradecia muito que deixassem ficar esse sofá no sítio onde se encontra, mas sintam-se à vontade para fazerem com as outras coisas o que desejarem. A Asa já vos deve ter dito, mas eu em tempos usei esta sala como uma espécie de minissala de espetáculos. Convidei um grupo de músicos profissionais que tinham gravado um CD com uma pequena composição do Akari e organizámos um concerto informal. Sentámos a minha mãe, a Asa e al-guns convidados mesmo em frente do palco, ficando os restantes na sala de jantar, que tem um pé-direito bastante elevado, o que permite uma excelente acústica.

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— Há também outras coisas que temos em mente  — prosseguiu Unaiko. — Assim que fizermos as entrevistas consigo e incorporarmos as suas partes mais relevantes no texto-base, passaremos aos ensaios. Temos falado sobre o facto de o senhor nunca ter visto atuar o The Caveman e gos-távamos de preparar especialmente para si uma versão abreviada de O Dia das Lágrimas.

Após dizer isto, Unaiko virou-se na direção da sala de jantar. Pôs ambas as mãos sobre o balcão que a separava do salão, olhou à volta e de-pois percorreu com os olhos o teto alto enquanto mostrava uma evidente aprovação.

— Regra geral, as atuações públicas do The Caveman têm lugar num palco que está ao mesmo nível dos lugares sentados da assistência — disse ela. — Utilizamos muitas vezes a técnica do palco de arena, pelo que, se imaginarmos do outro lado do vidro um anel formado por espectadores, olhando do jardim cá para dentro, teremos uma perspetiva do que acontece numa atuação.

Depois de os dois elementos mais novos do grupo terem esvaziado o salão de toda a mobília, à exceção do meu sofá preferido, Unaiko aspirou o chão de madeira enquanto eu me ocupava a abrir as janelas mais pequenas de cada lado da enorme porta envidraçada para deixar entrar algum ar puro. Masao e Asa estavam ali, lado a lado, observando o trabalho de horticul-tura que Chikashi tem vindo a fazer manualmente no jardim das traseiras. Havia inúmeras roseiras, tanto postas em vasos como na terra — onde se haviam espalhado de tal forma que cobriam quase todo o terreno como um tapete —, uma romãzeira, com a sua folhagem exuberante, um cornizo em flor e alguns vidoeiros. Acontece que nos últimos anos, Chikashi não tem podido vir cá, pelo que tem sido Asa a encarregar-se do jardim.

— Estas árvores parecem diferentes das que se encontram na flo-resta  — disse Masao. —  Em Matsuyama veem-se alguns cornizos que crescem espontaneamente junto à estrada, mas não são tão altos nem tão viçosos como estes. Talvez sejam ainda novos ou então é este lugar que é especial. Mas o que dizer destes vidoeiros de flor branca… não é pouco habitual chegarem a esta altura?

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— As árvores que a Chikashi trouxe para aqui são algumas das que já tinham sido mudadas da casa de verão em Karuizawa para a casa de Tóquio e há mais ou menos vinte anos que cuida delas — explicou Asa. — Ela conseguiu salvar várias árvores já em fase adulta que tinham sido deitadas abaixo pelos ventos fortes da montanha, mas as que plantou a partir de sementes também atingiram, por qualquer razão, uma altura ex-cecional. A Chikashi era jovem e cheia de energia nesse tempo e dedicou--se a tratar do jardim de alma e coração.

— Pela profusão de rosas em vasos e pela forma determinada como ela fez com que as árvores crescessem mais do que o normal, dá-me a sen-sação de que a Chikashi pode muito bem ter afinidades de personalidade com o irmão, o Goro Hanawa — observou Masao. — Uma certa tenaci-dade, uma atração pelo inusitado…

— O  Goro, contudo, nunca mostrou qualquer interesse em árvo-res — disse eu.

— Pois não, mas compreendo o ponto de vista do Masao  — con-trapôs Asa. — Notei alguma semelhança entre a Chikashi e o Goro na forma como ajudou o Akari na sua formação musical. Na nossa famí-lia não temos ninguém com essa veia. A  propósito  — acrescentou ela, virando-se para mim —, quando conheceste o Goro, ao tempo em que andavam os dois na escola em Matsuyama, não reparaste nesse aspeto da sua personalidade?

— Bom, o Goro era, sem sombra de dúvida, um ser humano raro — disse eu. — E por ele ter demonstrado interesse na história do afogamento do nosso pai, foi o primeiro, fora da família, a quem eu contei o meu sonho recorrente.

— Sim — notou Masao —, lembro-me de que o Goro dizia coisas como: «Pois, mas o Choko tem o Kogii!» Portanto, acho que também ele considerava o senhor como um ser igualmente especial, que até tinha um anjo como guarda-costas. Seja como for, o resultado foi que as duas imagens do Kogii… o senhor e o seu alter ego… ficaram bem gravadas na minha mente, sendo essa dualidade a base do projeto em que vamos traba-lhar juntos. Por falar nisso, e uma vez que já nos decidimos por um cenário

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reduzido ao mínimo essencial, convém agora perceber como havemos de incorporar na peça as entrevistas que vamos fazer consigo. Escusado será dizer que, caso entenda propor alterações à encenação, estaremos total-mente recetivos. Para começar, podemos falar um pouco do Kogii?

A sugestão de Masao pareceu-me o mais natural possível, e eu não coloquei qualquer objeção. Tal como tinha feito da vez anterior, Unaiko preparou o material de gravação no pequeno balcão que separava a sala de jantar do salão e prendeu depois um microfone ao colarinho da minha camisa. Masao pediu aos dois musculados jovens para irem buscar dois sofás à sala de estar, e não demorou que os pusessem no centro do palco improvisado. Ao ver o modo como todas estas transições se iam fazendo com a maior naturalidade, senti-me como se estivesse a ser levado por uma onda de competência, ou melhor, por uma força da natureza que estava claramente fora do meu controlo.

— Esteja à vontade, por favor — disse-me Masao. — Podemos vir a fazer de outra maneira mais tarde, mas por agora vou ficar aqui de pé à sua frente a falar naturalmente. Se me sentir cansado, puxo uma cadeira e sento-me. O senhor já está sentado, obviamente, mas se quiser esticar as pernas a qualquer momento, claro que pode levantar-se e andar um bo-cado. O microfone sem fios funciona em qualquer ponto da sala.

«Assim sentado como está neste momento, olhe agora em frente, se-nhor Choko… imagine, por favor, que está a olhar para a pedra redonda que levámos para o jardim no outro dia. O poema gravado na pedra co-meça com dois versos a que concordámos chamar um haiku, embora não corresponda exatamente às regras do género. Comecemos com o primeiro verso: Não trataste do Kogii para ires com ele à floresta. Sabemos que este “Kogii” é diferente da personagem “Kogii” que aparece em alguns dos seus romances, mas…

— Uma vez que este verso foi escrito pela minha mãe, temos de pro-curar entender o significado que ela atribuiu a este particular «Kogii» — declarei. — As coisas que lhe vou dizer já foram todas consideradas nos meus livros, mas quando a minha mãe escreveu esses dois versos durante

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o último ano da sua vida, estava a usar «Kogii» para se referir ao neto, Akari, que tinha nascido com uma protuberância anormal na cabeça.

«As preocupações da minha mãe residiam no facto de eu não me ter preparado o suficiente para lidar com a eventual morte do Akari. E é claro que a aproximação da sua própria morte também lhe ocupava muito a mente. Ao mesmo tempo, ela tinha presente que a morte do seu filho (ou seja, eu), a quem em pequeno chamavam Kogii, não estaria muito longe. Portanto, penso que a menção ao Kogii neste poema é uma ma-neira oblíqua de dar voz ao seu medo de que eu pudesse não estar devi-damente preparado para o meu próprio desaparecimento, algo que por estes sítios é conhecido eufemisticamente por “ir para a floresta”. A minha mãe estava, no fundo, a colocar duas ideias no mesmo plano, usando-as para me criticar a dois níveis. Dizia que o Akari precisava de um guia que lhe mostrasse o melhor caminho quando fosse preciso “ir para a floresta” e que a responsabilidade disso era minha e apenas minha. Contudo, in-dicava também claramente que eu nem sequer sei lidar com as minhas próprias questões e que, na sua opinião, ando por aí a divagar meio ator-doado, negligenciando a preparação que é preciso fazer relativamente ao fim da vida. Isto pode parecer muita coisa para caber apenas num verso, mas garanto-lhe que está tudo lá.

«O segundo verso, que é ao mesmo tempo o último da sua participa-ção no poema é: E tal como a corrente do rio, nunca mais vais voltar. Inspi-rado pelo haiku da minha mãe… e entusiasmado pelo sentimento de que as suas palavras acertavam em cheio no alvo… escrevi os meus próprios versos: Em Tóquio, no tempo da estação seca / Lembro-me de tudo da frente para trás, / Da idade da velhice à mais tenra idade.

«Antes de continuarmos, há só mais uma pequena coisa que gostaria de dizer acerca do nome pelo qual eu era conhecido em criança, Kogii, e que é de grande significado para mim, embora seja algo que já deve saber pela leitura dos meus romances.

«Logo à partida, é óbvio que Kogii deriva do meu nome próprio, Kogito. E as pessoas costumavam chamar-me Kogii para abreviar. Apesar de ninguém o poder ver, eu tinha um companheiro constante que era uma

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réplica exata de mim: a mesma idade, o mesmo rosto, o mesmo corpo. Éra-mos tão parecidos como duas gotas de água, como é costume dizer. Atri-buí a este meu duplo o meu apelido de infância, Kogii, e fomos vivendo juntos em plena harmonia até ao dia em que ele se embrenhou na floresta, deixando-me para trás. Queixei-me com amargura à minha mãe, mas ela não ligou importância nenhuma. Contudo, teimosamente, eu relatei-lhe vezes sem conta os pormenores exatos da saída de casa do Kogii e como me sentia abandonado. A Asa, entre outras pessoas, tem especulado sobre o facto de a dolorosa partida do Kogii… e a minha infindável repetição das circunstâncias que a envolveram… poder ter sido a causa fundamental para eu ter escolhido abraçar a carreira de romancista.

«Seja como for, nesse dia fatídico, o Kogii estava na varanda junto à sala das traseiras, que fica de frente para o rio. Vestia um quimono leve, de verão, em tecido kasuri e com motivos estampados. As mangas compridas pendiam-lhe sobre a balaustrada, e ele fitava o souto de castanheiros-do--japão na margem em frente. (Ainda hoje guardo na memória uma ima-gem muito nítida desse momento, uma espécie de fotografia que ficou para sempre: estou mesmo ao lado do Kogii, mas pareço um pouco desfocado, como se alguém tivesse movido a câmara.)

«E foi então que ele subiu para o parapeito. Eu pensei que estava na brincadeira, porque era da sua natureza estar constantemente a inventar situações desse tipo. Abriu os dois braços e permaneceu muito quieto, es-perando um momento para se concentrar e tomar balanço. Depois, deu um passo, precipitou-se no vazio… primeiro viu-se uma perna, depois a outra… e no mesmo instante bateu os braços e elevou-se no ar. Saltou sobre o campo de trigo que a mãe cultivara, sobrevoou o muro de pedra e ficou parado a flutuar mesmo sobre o meio do rio. Então, de novo, abriu completamente os braços dentro do largo quimono e, tal como um enorme pássaro sem asas, deixou-se levar pelo vento e desapareceu da minha vista. (Nesse momento eu encontrava-me ainda dentro de casa, com as suas go-teiras a obstruírem parcialmente a minha visão.) Quando me dirigi à va-randa e olhei para o céu, vi o Kogii a elevar-se cada vez mais sobre a floresta, subindo pelos ares em espiral como se fosse um saca-rolhas em movimento.

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«De um momento para o outro, desapareceu. A partir de então, co-mecei a lamentar-me constantemente junto da minha mãe, dizendo-lhe que o meu companheiro ideal se tinha desvanecido nos ares, mas ela recu-sou sempre falar desse outro Kogii, como se, ao que me pareceu, lhe fosse impossível admitir que um outro rapaz possa ter vivido com ela naquela casa… um rapaz tão parecido com o seu próprio filho como, di-lo-ei de novo, duas gotas de água.

«A vida foi continuando e houve um dia em que algo de verdadeira-mente extraordinário me aconteceu. Tinham-se passados já vários meses desde a ascensão do Kogii aos céus da floresta; lembro-me de que a en-costa do outro lado do rio estava já avermelhada com as folhas do outono. Era noite de lua cheia e pareceu-me sentir qualquer coisa inabitual do lado de fora das janelas. Saí até à estrada em frente da casa para ver o que era e reparei então no Kogii, ali de pé, de costas voltadas para mim. Sem dizer uma palavra, começou a caminhar, desta vez com os pés bem firmes na terra. Seguiu pela estrada montanhosa e estreita que ia do edifício da Câmara Municipal ao templo xintoísta, estugando o passo ao longo da berma iluminada pela Lua. Pensei que estava apenas alguns passos atrás dele, mas quase sem dar por isso tinha penetrado profundamente na flo-resta e encontrava-me agora sozinho. Do Kogii nem rasto. Por razões que não sei explicar, subi para o interior oco de um castanheiro de grande porte, enrosquei-me lá dentro e passei a noite assim protegido, umas vezes a dormir e outras em estado inconsciente. Quando o dia finalmente nasceu, olhei na direção da floresta e vi que a chuva caía com intensidade, encharcando as folhas vermelho-escuras das árvores.

«Devo ter voltado a perder a consciência. Quando a recuperei, senti que o meu corpo parecia arder de febre e havia bombeiros a tentar retirar--me do meu abrigo no interior dos interstícios secos e estragados da velha árvore. A equipa de salvamento envolveu-me numa capa impermeável e transportou-me através da floresta, que mantinha ainda os cheiros trazi-dos pela chuva, até à minha casa no vale.

«Esses bombeiros corajosos merecem, como é evidente, todos os louvores, mas ao fim de uns dias, após me ter passado a febre, apercebi-me

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aos poucos de que fora a intuição da minha mãe a salvar-me a vida. Não estou certo de quando foi que percebeu que eu não estava, mas, mesmo nas horas de maior preocupação e nervosismo, ela atravessou as frontei-ras entre o real e a imaginação para estabelecer comunicação comigo, aca-bando por concluir que eu devia ter ido para a floresta à procura do meu querido companheiro entretanto desaparecido.

«Às primeiras horas do dia a seguir a essa noite de lua cheia, quando saí a correr de casa e não voltei, a chuva começou a cair e o rio lamacento, com o seu rugido poderoso espalhando-se pelo fundo do vale, ficava com um verde ainda mais denso e escuro do que a folhagem dos bambus nas margens. A água do rio ia subindo cada vez mais e toda a gente concluiu que a criança desaparecida devia ter sido arrastada pela corrente. O que nos leva de volta aos versos gravados na pedra redonda: E tal como a cor-rente do rio, nunca mais vais voltar.

«Podia pensar-se, considerando as condições atmosféricas e a sua pró-pria experiência, que a minha mãe, quando percebeu que o filho estava desaparecido e se dirigiu ao quartel dos bombeiros, diria qualquer coisa como: “Por favor, comecem a procurar o meu filho seguindo rio abaixo.” Era lógico que o fizesse, não é verdade? Mas não, a minha mãe fez exata-mente o contrário do que se esperaria. Pediu aos bombeiros que me pro-curassem na floresta, e mesmo perante o facto de a chuva torrencial ter inundado a estrada que levava até lá, transformando-a num ribeiro lama-cento, ela foi insistindo em que era isso que deviam fazer, nem que fosse preciso remar como se estivessem num barco. Suponho que as condições devem ter melhorado bastante, e a verdade é que os bombeiros, que ti-nham concordado relutantemente em procurar na floresta, acabaram por encontrar um jovem rapazito, enroscado na concavidade de uma árvore, a arder de febre e claramente muito doente. A criança, em delírio, tentara repeli-los, como qualquer javali em fúria, mas eles conseguiram dominá-la e trazê-la sã e salva para casa. (Diga-se, de passagem, que aquela árvore era bem conhecida por toda a gente da zona, que a venerava como um templo xintoísta espontaneamente nascido da natureza.)

«É um bocado estranho, não vos parece? Quer dizer, por que razão

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estaria a minha mãe tão segura de ser muito mais possível eu ter ido para a floresta do que para perto do rio? Pode perfeitamente ter sido uma intui-ção forte da sua parte, mas, mesmo que seja só um instinto, considero-o notável. Algumas das pessoas adultas da nossa aldeia tinham por hábito dizer várias coisas cruéis e desagradáveis às crianças, e no meu caso, de-pois do meu dramático salvamento, provocavam-me com frases como: “Ouve lá, miúdo, estavas tão obcecado a procurar o teu amigo imaginário que te perdeste na floresta e por tua causa os bombeiros viram-se aflitos para te encontrar. Devias ter vergonha!”

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Depois de terminada a primeira sessão formal de gravações, Masao Anai ficou de muito bom humor.

— Hoje estávamos a pensar fazer só um teste ao material e acabá-mos por ficar com uma entrevista completa! — disse ele. — É evidente que, a partir de agora, o senhor vai dedicar-se mais a investigar o que se encontra no baú de couro vermelho, mas se lhe fosse possível, de tempos a tempos, fazer um intervalo em que pudéssemos ter uma conversa deste género, rapidamente teríamos um conjunto de testemunhos que podem ser vitais para a peça. Por outro lado, quem sabe, talvez possa tirar das sessões connosco alguns apontamentos úteis, como nós dizemos na lin-guagem do teatro. Penso que seria, para todos nós, um excelente método de trabalho. Voltaremos na semana que vem e, entretanto, a Unaiko trans-creverá para papel a sessão de hoje. A primeira coisa da próxima sessão será dar-lhe a ler essas páginas.

«Eu sei que, por vezes, depois de dar uma conferência, o senhor so-licita a sua transcrição a fim de poder dar alguns retoques para eventual publicação numa revista. Faço sempre questão de ler esses artigos. Mas, no que diz respeito à nossa maneira de fazer arte, tornar as coisas mais sua-ves não seria bem recebido pelo nosso público, já que tudo o que fazemos se baseia na dramatização da autenticidade. Não lhe pedimos que retire

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irrelevâncias e incongruências, muito pelo contrário. O que pretendemos é transformar a sua narrativa, sem perder de vista que a ideia é construir a partir dela uma entidade que tenha presença física em palco.

Unaiko prosseguiu na mesma linha, mas num tom de voz claramente mais calmo e menos agitado do que o seu exuberante companheiro.

— Senhor Choko — começou ela por dizer —, gostava de lhe falar de uma coisa que me chamou a atenção no fim da nossa conversa. A certo momento, o senhor apresentava-se hesitante sobre a forma como havia de continuar a sua história; parecia que estava perante duas direções possíveis, sem saber bem qual escolher.

— Sim, era exatamente isso o que estava a acontecer — reconheci. — A Unaiko tem de facto um grande poder de observação.

— Nem por isso, sabe, apenas adquiri o hábito de ouvir com muita atenção aquilo que as pessoas dizem enquanto vou gravando  — disse Unaiko com modéstia.

— Também deve ter reparado que, enquanto falava, os meus olhos se fixavam na pedra redonda por trás da janela envidraçada. A  minha dúvida era a seguinte: devo começar por estabelecer uma relação entre o primeiro verso do poema, que é acerca do Kogii, e o verso que refere a corrente do rio? Ou escolherei a outra via e enveredarei precisamente pela direção oposta? Como é óbvio, acabei por optar pela primeira hipó-tese — disse eu.

— Gostava de saber algo mais sobre a outra opção que indicou — pediu Masao. — Está relacionado com o que já escreveu nos seus roman-ces?

— Sim, está — respondi. — Sobretudo com a citação que fez outro dia de um dos meus livros. Ao perguntar-me como a minha mãe soube, ou intuiu, que os bombeiros deviam ir à minha procura dentro da árvore oca, e tentando pôr em ordem os meus pensamentos acerca disso, lembrei-me de uma das histórias mais cativantes do folclore local que a minha mãe tinha por hábito contar. Referia-se muitas vezes à «floresta maravilhosa», dizendo que, apesar de haver muitas maneiras de entender a história, ela tinha a sua própria interpretação. A  versão da minha mãe está por mim

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contada palavra por palavra no meu romance M/T e a História das Mara-vilhas da Floresta.

— Espere só um segundo, acho que tenho aqui essa passagem.  — Masao Anai passou os dedos rapidamente pelo seu enorme bloco de notas, encontrou o que pretendia e começou a ler as palavras da minha mãe em tom mais teatral.

«Agora pensamos que a nossa individualidade é uma coisa extrema-mente importante, mas nos tempos que passámos naquela floresta maravi-lhosa, apesar de sermos entidades individuais, pertencíamos também a um todo que nos transcendia. Estávamos sintonizados com a nossa existência e contentes com ela, perpetuamente imersos em sentimentos de infinita nostal-gia. Em certo momento, contudo, tivemos de deixar essa floresta mística e de aventurar-nos no mundo exterior para nascermos enquanto seres humanos. O modo como eu encaro esta questão, e uma vez que cada um de nós possui uma vida individual, ou seja, uma alma própria, é que, ainda mal deixámos a floresta e já nos encontramos espalhados pelo mundo fora, afastados uns dos outros. É esta a minha teoria, valha ela o que valer! Porque, de facto, ao vivermos a nossa vida, não é verdade que existe sempre em nós um sentimento de prolongada nostalgia pelos tempos antigos em que estávamos juntos, ainda não nascidos e contudo vivos entre as maravilhas da floresta?

Era evidente que Unaiko tinha falado com Anai acerca daquilo a que a minha mãe chamava as maravilhas da floresta, pelo que, quando ele aca-bou de ler as palavras da minha mãe, achou por bem fazer os seus pró-prios comentários.

— A assunção mais óbvia é que a criança desaparecida deve ter sido arrastada pelas águas do rio — disse ela. — Mas acontece que essa mesma criança tem um sentido de orientação muito apurado, para não falar no conhecimento profundo que tem da floresta; ora, foram estas duas coisas que o levaram à floresta maravilhosa, sendo que neste caso bem se pode dizer que o levaram de volta a casa. Antes, porém, de poder regressar à floresta-útero universal, a mãe conduziu os bombeiros até à árvore oca junto à entrada para a floresta, tendo a criança sido trazida de novo para o mundo dos vivos. Se é disto que estamos a falar, faz todo o sentido.

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Masao acenou com a cabeça, mostrando a sua concordância entu-siástica, e eu apercebi-me nesse momento de que ele confiava inteira-mente nos instintos artísticos de Unaiko.

— Sim  — disse ele. —  Integrada desta forma, a história do Kogii tornar-se-á o motivo central da nossa peça.

«Exatamente o que eu acho», pensei.

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