processo, igualdade e justiÇa

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PROCESSO, IGUALDADE E JUSTIÇA PROCESS, EQUALITY AND JUSTICE PIETRO LORA ALARCÓN Mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC–SP. Professor de Direito Constitucional na PUC-SP, na Faculdade de Direito de Bauru e na Escola Superior de Direito Constitucional. SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Sociedade e processo – 3. Sociedade, Justiça e igualdade – 4. O Estado democrático de direito – 5. Processo e devido processo legal: 5.1 O caráter material do devido processo legal; 5.2 Da técnica descritiva à técnica de respeito às liberdades; 5.3 O devido processo legal na sociedade contemporânea – 6. Processo, igualdade e justiça na Constituição Federal de 1988 – 7. Bibliografia. RESUMO: O Estado Democrático de Direito brasileiro se fundamenta na efetividade de três princípios: a legalidade, a igualdade e a justicialidade. Na esfera social, em que se verifica a coexistência dos seres humanos, a interação dos princípios se apresenta no processo, verdadeira técnica de solução de conflitos. A Justiça constitui o fim a ser atingido no processo, efetivando os princípios e fortalecendo esta particular forma de Estado. PALAVRAS-CHAVE: Processo, igualdade, justiça, legalidade, razoabilidade, propor- cionalidade, devido processo legal. ABSTRACT: The Brazilian Democratic State of Law is effectivelly based on three principles: legality, equality and Justice. On a social sphere, where is verifiable the co-existence of human beings, the interaction of these principles are present in the process, true technique of problem solving. Justice constitutes the aim to be achieved in the process, accomplishing the principles and strengthening this particular form of State. KEYWORDS: Process, equality, Justice, legality, reasonability, proportionality, due process of law. Recebido para publicação em setembro de 2003.

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PROCESSO, IGUALDADE E JUSTIÇA

PROCESS, EQUALITY AND JUSTICE

PIETRO LORA ALARCÓNMestre e doutor em Direito do Estado pela PUC–SP. Professor de Direito Constitucional

na PUC-SP, na Faculdade de Direito de Bauru e na Escola Superior de DireitoConstitucional.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Sociedade e processo – 3. Sociedade, Justiça eigualdade – 4. O Estado democrático de direito – 5. Processo e devido processolegal: 5.1 O caráter material do devido processo legal; 5.2 Da técnica descritiva àtécnica de respeito às liberdades; 5.3 O devido processo legal na sociedadecontemporânea – 6. Processo, igualdade e justiça na Constituição Federal de 1988– 7. Bibliografia.

RESUMO: O Estado Democrático de Direito brasileiro se fundamenta na efetividadede três princípios: a legalidade, a igualdade e a justicialidade. Na esfera social, emque se verifica a coexistência dos seres humanos, a interação dos princípios seapresenta no processo, verdadeira técnica de solução de conflitos. A Justiça constituio fim a ser atingido no processo, efetivando os princípios e fortalecendo esta particularforma de Estado.

PALAVRAS-CHAVE: Processo, igualdade, justiça, legalidade, razoabilidade, propor-cionalidade, devido processo legal.

ABSTRACT: The Brazilian Democratic State of Law is effectivelly based on threeprinciples: legality, equality and Justice. On a social sphere, where is verifiable theco-existence of human beings, the interaction of these principles are present in theprocess, true technique of problem solving. Justice constitutes the aim to be achievedin the process, accomplishing the principles and strengthening this particular formof State.

KEYWORDS: Process, equality, Justice, legality, reasonability, proportionality, dueprocess of law.

Recebido para publicação em setembro de 2003.

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1. Intr odução

Conforme o enunciado do art. 1.° daConstituição Federal de 1988, a forma deEstado assumida pela República Brasileiraé a de um Estado Democrático de Direito.Firma-se, dessa maneira, a intenção dolegislador constituinte de construir umEstado que ostente como prática cotidianao exercício pleno da democracia, e que sefundamenta no respeito a pressupostos delegalidade, igualdade e Justiça.

Uma reflexão quanto ao conteúdo dessapeculiar maneira de ser do Estado leva aentender que os problemas de Estado, emalgum instante, adquirem relevância para aCiência Jurídica, ou seja, tornam-se umproblema jurídico. Tal interesse do Direitose deflagra na medida em que o relaciona-mento entre os chamados detentores do Poderdo Estado e os membros da sociedade civilse regula por meio de técnicas jurídicas, denormas jurídicas que imperativamente de-terminam as condições para o exercício dopoder político, assim como concedem ins-trumentos de proteção para as autonomiasindividuais perante a força estatal.

Dessa maneira, o Estado será tanto maisDemocrático e de Direito quanto melhorreproduza, na prática, os princípios que ofundamentam. Ancorada nessa percepção,contemporaneamente, distingue-se a subs-tância do Estado Democrático de Direitonos postulados da igualdade, legalidade ejusticialidade. Tais princípios encontram-seexplicitamente confirmados no estatutoconstitucional brasileiro no art. 5.º, incisosI, II e XXXV, respectivamente.

Passando breve revista em cada umdeles observaremos que o ditame da igual-dade pressupõe a uniformidade do sistemajurídico para todos os co-associados, con-cedendo-se só as distinções que a própriaexigência da igualdade apresente; pelo

postulado da legalidade, o Estado se sujeitaao império da lei. A lei é uma regra quedeve emanar do órgão constitucionalmentecompetente para fazê-la, e que se converteno instrumento que declara, restringe, mediae coordena o exercício dos direitos dohomem, tendo como metas a igualdade ea Justiça; por último, pelo princípio dajusticialidade, ou inafastabilidade da juris-dição, os conflitos próprios da sociedadehumana podem ser levados a juízes eTribunais para, ao final, reproduzir umideal de Justiça. Nenhuma lesão ou ameaçaao Direito, conforme o postulado constitu-cional, pode fugir da apreciação do PoderJudiciário, que possui monopólio, em nomedo Estado, do direito e do dever de prestarJustiça, entendida como fundamento valo-rativo da decisão que pacifica as partes.

Pois bem, na esfera social, na qual severifica a coexistência dos seres humanos,aqueles três baluartes do sistema jurídicose apresentam como organismos de umamesma espécie, em que sua interação levaà configuração de um Estado democrático,justo e com plena tutela das liberdades decada co-associado.

Nesse diapasão, várias perguntas resul-tam inevitáveis: como se realizam as inte-rações legalidade-igualdade, igualdade-Jus-tiça, legalidade-Justiça; em suma, o cúmulode combinações jurídicas possíveis? E tam-bém, em outros termos: como podemosverificar, na prática, a concreção dessesprincípios? Como comprovar que têm vida?Para entender o fenômeno é preciso esta-belecer o elo que une o direito positivo aocampo social e, naturalmente, falar dacoexistência dos homens.

No presente trabalho trataremos da in-timidade da relação igualdade-Justiça, co-nectando o fruto desse relacionamento como elo que une a positividade normativa aotodo social, que, como será demonstrado,

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constitui a figura chamada de processo.Tentaremos, dessa maneira, observar ograu de vigor do nosso Estado Democráticode Direito.

2. Sociedade e processo

Abordar esse aspecto em nosso trabalhoimplica reconhecer que a vida em socieda-de se caracteriza por um conjunto derelações, afastando a possibilidade de exis-tência de uma sociedade inanimada. Des-tarte, o que faz com que exista sociedadenão é a aparição de um mero conjunto deindivíduos, mas a infinidade de relaçõesque se pode estabelecer entre seus mem-bros. Por isso, não há antítese entre indi-víduo e sociedade, porque o indivíduo é umser social, sendo sua própria existência umaatividade social.

As relações entre indivíduos são deordens diversas, tantas quanto a atividadehumana é capaz de criar com sua geniali-dade no cotidiano da vida. Porém, semprejuízo de outras opções ou pontos devista, parece-nos que o caráter dessas re-lações é determinado, em essência, pelolugar que cada indivíduo ocupa no terrenosocial. E esse lugar depende, por sua vez,e infelizmente em nosso meio, da suaposição na estrutura econômica da socie-dade, com o que se conclui que a condiçãosocial de cada indivíduo se mede sobre abase do seu patrimônio, da sua riqueza oupobreza. O acesso aos bens é mediado pelolugar que a pessoa ocupa no processoprodutivo.

Acreditamos que, desde os primórdiosda Humanidade, essa diversidade de posi-ções e roles, a colisão entre interesseshumanos contrapostos, a proximidade deuns poucos e o distanciamento perene deoutros das conquistas da civilização emmatéria de educação, saúde, lazer, seguran-

ça, são a causa fundamental de gravíssimosconflitos.

Detenhamos-nos um pouco nesse pon-to: os conflitos sociais. É que, vistos emparticular, estes assumem formas variadas,conforme sua natureza. Contudo, algo queé necessário para o correto entrelaçamentodo fio social é a solução pronta, rápida eeficiente de tais conflitos. A sociedadeorganizada procura, então, fundar uma ouvárias modalidades de solução de conflitos.Na sociedade política, essa modalidadecorresponde ao que chamamos de proces-so, verdadeira técnica de solução, que sedesenvolve sobre a base do respeito adeterminadas regras de jogo, isto é, anormas jurídicas preestabelecidas que, in-terpretadas por um órgão autorizado oujurisdicional, em nome do Estado, diz odireito de cada uma das partes, pondo fimao conflito particular dos homens.

Como é de fácil percepção, dentro doprocesso se conjugam: de um lado, adesigualdade material dos homens, queprovém da própria característica do sistemasocial; do outro, a legalidade, ou respeitoao conjunto de normas jurídicas que devemconstituir-se em acicate da consecução daJustiça; depois, a tarefa julgadora do Esta-do e, finalmente, o valor Justiça como idealalmejado. Em conclusão, encontramos, noprocesso, o ponto de confluência dos prin-cípios com os quais se iniciou nossa expo-sição. É o processo o elo entre o direitopositivo e o campo social.

Pode-se afirmar, nessa ordem de idéias,que a concreção dos princípios de igualda-de, legalidade e justicialidade, bem comoo horizonte de Justiça que inspira e enraízao conjunto social, pode ser verificada aolongo do processo, no qual deve adquirirplena vitalidade.

Mais audaciosamente, pode-se concluirque, se tais princípios são os vértices do

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Estado Democrático de Direito, sua plenaobservância no plano social é a demons-tração da vigência desta forma de Estado.Pelo contrário, seu desconhecimento con-duz, necessariamente, à descaracterizaçãodo Estado Democrático de Direito, abrin-do-se passo às antíteses da Justiça: a im-punidade, a leviandade ou a barbárie.

Colocados os termos desta forma, infe-re-se não só a importância dos princípiosmencionados, mas também a superlativatranscendência para a sociedade que tem oinstituto que os reúne: o processo comoforma de solução de conflitos. É este omeio em que se ventila a liberdade de cadaindivíduo, em que se abre passo a igual-dade, se descobre ou não a Justiça e sereproduz ou perece o Estado Democráticode Direito. Daí que este instituto deva sertratado de forma cuidadosa, explorandotodo seu potencial teórico e prático.

Neste ponto, há que se lembrar que oprocesso, contemporaneamente, consta devaliosos princípios em seu interior, aschamadas garantias das pessoas no proces-so, sem as quais não há como solucionaro conflito de forma adequada, nem pleni-tude de direitos para os co-associados. Taisgarantias, que são, sem dúvida, elementosda máxima importância, sofrem a pressãodos princípios supramencionados e perfi-lam-se para a consecução do valor Justiça.

Resta advertir que para solucionar ade-quadamente e de forma justa o conflito,não basta a consagração constitucional dasgarantias. O texto da lei não é suficientepara assumir toda a responsabilidade dereprodução dos direitos e liberdades, nempara a conformação do Estado Democrá-tico de Direito, tal e como almejado pelolegislador constituinte e reclamado pelacoletividade social. Na verdade, os elemen-tos que permitem afirmar, categoricamentee sem temor a equívocos, que estamos

perante uma forma de Estado que vive emdemocracia e sob o império da lei, aigualdade para todos, é a Justiça e aefetividade normativa.

Os postulados de igualdade, legalidadee justicialidade, e a Justiça como funda-mento último do Estado, constituem ummundo revelador de valores que precisamde efetividade, pois, sem este requisito, nãohá Estado Democrático de Direito, masficção social ou, quando muito, boa von-tade.

Pese a todas as dificuldades, dentro doesquema funcional do Estado Democráticode Direito, que o órgão jurisdicional,monopolizador da função de atingir o valorJustiça de maneira direta, deve estar per-manentemente disposto a responder aosdesafios de modalidades de conflito sempremutantes, tarefa pela qual recebe continu-amente as pressões dos co-associados queexigem, na sua atividade, doses de rapideze eficiência, e julgamentos com prontidãoe justeza. A mutação de conflitos é perfei-tamente aferível se analisamos que hojeassistimos a novas modalidades deles, frutodos avanços tecnológicos, das conquistasda genética ou dos desafios do marketinge da publicidade na sociedade de massasdo século XXI.

Parece-nos sem sombra de dúvida quequalquer análise sobre a relação entreigualdade-Justiça deva tratar desses proble-mas.

3. Sociedade, justiça e igualdade

Uma das vertentes mais interessantes denosso brevíssimo estudo constitui-se dotratamento, com o maior rigor possível, deuma expressão de reconhecida carga emo-tiva, dentre outras expressões de prestígiono mundo da Filosofia e do Direito: aJustiça.

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A ausência da antítese entre indivíduo-sociedade se materializa em regras moraisou jurídicas que condicionam o comporta-mento do primeiro. De todo modo, emboraa cooperação seja o elemento determinante,os conflitos sociais surgem como conseqü-ência de uma diversidade de interessesinevitável. É aqui que John Rawls descobreo papel da Justiça, ressaltando que esta “éa primeira das instituições sociais, como averdade o é dos sistemas do pensamento”.1

O ponto de partida para explicar a naturezados conflitos, na análise de Rawls, consisteem estudar o problema da participação dosindivíduos na distribuição apropriada dosbenefícios e encargos de cooperação sociale a maneira de definir os direitos e deveresde cada um nas instituições básicas dasociedade.2

As vantagens da cooperação social,além dos direitos e deveres fundamentaisdos co-associados, são agrupadas em acor-dos econômicos e sociais que se instituci-onalizam e adquirem juridicidade no planoda Constituição.

Por isso, é perfeitamente compreensívela advertência de Perelman quanto ao fatode que, na explicação do vocábulo Justiça,há que atender a um valor predeterminadopela sociedade, que desfruta de uma forçasocial que faz outorgar um sentido à açãohumana. A atribuição do que seja Justiçasujeita o ser humano a uma escala devalores que permite guiar sua existência.3

No terreno dos conflitos sociais, asguerras e revoltas, e até os conflitos maistriviais, conduzem cada uma das partes àargüição de uma idéia de Justiça, que sepretende seja compartilhada, não tanto peloantagonista, mas pelo árbitro do conflito epelo conjunto da sociedade.4

O denominado senso de justiça, inspi-rado em uma concepção pública e efetivada mesma, sugere uma idéia básica e

relativamente estável que tende a impediras perturbações que podem ser ocasionadaspela interação entre indivíduos: a igualda-de. É apenas lógica a consideração sobreo laço entre Justiça e igualdade.

Acontece que uma fórmula de igualda-de reduzida a um tratamento equivalente atodos os homens conduz a uma idéiainsuficiente e formal de Justiça. Uma igual-dade nesse sentido, sem distinção de par-ticularidades dos indivíduos do todo social,seria irrealizável, visto que não levaria emconta as condições de cada ser humano,seus méritos, probabilidades e possibilida-des de acesso aos bens sociais. Na verdade,a idéia de Justiça apenas se pode estabe-lecer entre os indivíduos em questão, quepretendem seja reconhecido um direito, porexemplo, se existe algo em comum entreeles, no mínimo, que detenham a crença deque são titulares daquele direito reclamado.Existe, então, uma espécie de identidadefragmentada, que faz com que, em algummomento, se determine o sentido do Justo,como condição de solução do conflito.

Apesar das diversas posições sobreJustiça, é importante definir o que há decomum em todas elas. Para maior compre-ensão, deve se explicar que há diversasmaneiras de se abordar a Justiça, ou quediversos sentidos da Justiça podem seragrupados. Perelman oferece duas fórmu-las de Justiça: a formal, enunciada como“a cada qual a mesma coisa”; a proporci-onal, enunciada como “a cada qual segun-do seus méritos”, e “a cada qual segundosuas obras, a cada qual segundo suasnecessidades, a cada qual segundo suaposição e a cada qual segundo o que a leilhe atribui”.5

Embora subsistam as divergências se-gundo o elemento que padroniza o consi-derado justo, é obvio que emerge um pontoque não admite discussão: os sentidos

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acordam que o justo significa tratar deidêntica maneira os seres consideradosiguais, partindo de um ângulo de observa-ção. O horizonte que é possível visualizarsugere que os seres humanos se enquadremem categorias diversas, conforme o ânguloque se utiliza, detectando-se categorias deseres que devem ser tratados de igualforma.

Contudo, o pressuposto da igualdade,ligada à obtenção da Justiça, leva a que otratamento equivalente seja organizadotendo em vista que a característica queserve de padrão de referência seja possuídapelos elementos do grupo no mesmo grauou com a mesma intensidade.

Dessa maneira, o tratamento jurídicodeve ser aplicado atendendo a uma varia-bilidade de graus dos seres agrupados,procurando sempre uma relação de propor-cionalidade que outorga o sentido de equi-valência requerida para conduzir, então, àJustiça.

Todavia, o padrão de referência dotratamento jurídico é determinado por umaescolha do próprio ordenamento normati-vo. Por exemplo: podem constituir-se empadrão de referência as obras executadaspelas pessoas ou suas necessidades míni-mas.

Vejamos: dentro de uma sociedademarcada por conflitos entre pessoas queocupam lugares diferenciados no processoprodutivo, é lógico que algumas tenhammais e melhores condições de resolver seuacesso aos bens que satisfazem suas neces-sidades de subsistência e desenvolvimento,enquanto outras não possuem esta possibi-lidade apenas primária e lógica para a vidado ser humano. Assim, pode-se diferenciartendo em vista a necessidade dos seres,alguns muito distantes do acesso a bens quesatisfazem as questões mínimas de sobre-vivência.

Os dois princípios da Justiça, na ópticade J. Rawls, abordam a dificuldade, coma pretensão de outorgar um material teóricode consenso:

“Primeiro: cada pessoa deve ter umdireito igual ao mais abrangente sis-tema de liberdades básicas iguais queseja compatível com um sistema se-melhante de liberdades para as outras.

Segundo: as desigualdades sociais eeconômicas devem ser ordenadas de talmodo que sejam ao mesmo tempo (a)consideradas como vantajosas para todosdentro dos limites do razoável e (b) vin-culadas a posições e cargos acessíveis atodos”.6

Os sistemas de liberdades são organiza-dos pela legislação do Estado. Ou seja,Rawls se refere a um sistema de liberdadespré-ordenado pela Constituição – na ópticade Kelsen, a norma fundamental do Estado– e o conjunto de normas infraconstituci-onais. O limite da realização daquilo quepode conduzir a uma desigualdade e, si-multaneamente, prestigiar o senso de jus-tiça reside na razoabilidade da norma.

A razoabilidade normativa se limita,essencialmente, pelo sentido daquilo que seconsidera proporcional ao critério assumi-do para identificar os iguais. A questãoevidencia-se sobremaneira quando é esco-lhido o critério de necessidade para atendera justiça.

Nesse sentido, a advertência de C.Perelman deve ser levada em conta: “Quemdeseja aplicar a fórmula ‘a cada qualsegundo suas necessidade’ deverá não sóestabelecer uma distinção entre as neces-sidades essenciais e as outras, mas tambémhierarquizar as necessidades essenciais, demodo que se conheçam aquelas que se háde satisfazer em primeiro lugar e determi-

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nar o preço que custará a sua satisfação:essa operação conduzirá à definição danoção de mínimo vital”.7

Se o padrão de justiça for determinadopelo legislador, então, a lei entranha umaconcepção de justiça, uma fórmula que, emúltima instância, vai determinar a maneiracomo o juiz realiza sua tarefa hermenêu-tica. De maneira que o juiz tem semprecomo parâmetro a ordem jurídica e suafórmula do “justo”. A separação de fun-ções, observada desse ângulo, convalidaque a discriminação em várias categoriasé feita por um órgão que exerce poder,enquanto a aplicação da fórmula é realiza-da por outro órgão, igualmente em exercí-cio de poder. A justiça aparece, então, nosvários níveis da estrutura do poder.

É claro que se poderá sempre aduzir queo juiz, independentemente do teor da lei,possui um senso de justiça que inspira seuraciocínio, aplicando a lei de maneiraproporcional, atendendo às exigências dorazoável.

Na verdade, uma postura alicerçada emum dogmatismo estreito se acoberta numamá interpretada tradição da doutrina fran-cesa. Registremos que, em matéria deinterpretação judicial, duas são as correntestradicionais: a francesa, ou corrente “lega-lista”; e a anglo-saxônica, ou “criativa”.8 OBrasil tem-se mantido fiel à corrente lega-lista de interpretação. Contudo, esta corren-te nunca pregou o desconhecimento deliberdades e direitos fundamentais para ocumprimento da lei, até porque a tradiçãohistórica francesa não levaria nunca a essaafirmação.

No entanto, como expressa José RenatoNalini, no Brasil tem pululado a idéia jávetusta de que o juiz deve sujeitar-se só aum raciocínio lógico, à receita dogmáticado silogismo. São inúmeras as sentençasque emanam com decisões que partem do

pressuposto de que a solução era óbvia,numa dinâmica mecanicista de entendi-mento do exercício da jurisdição: “É o queRoscoe Pound denominava ‘jurisprudênciamecânica’, e o que Jerome Frank explicoucomo a aplicação da fórmula seguinte: R(rule) x F (facts) = D (decision)”.9

Em contraposição, surge a reação dacriatividade norte-americana. Advogandoem favor de uma nova forma de interpre-tação, merece transcrição a opinião deNalini, que comenta: “Miller e Howellresumiram perfeitamente a corrente que sedisseminou: ‘A razão... não é a vida dodireito. É realmente parte do direito. Masa vida? Não. Se por razão entendemos aderivação lógica a partir de princípiosgerais e abstratos, então o processo judicialnão atua assim; nada obstante, se entende-mos por razão um processo de observaçãodisciplinado, unido a um reconhecimentode que existe uma eleição entre valoresalternativos e o estudo das possíveis con-seqüências da decisão, então a razão temum papel de primeira ordem’”.10

É bom lembrar que, em matéria deinterpretação das normas do devido proces-so legal, todo o prestígio do direito cons-titucional norte-americano apóia-se, aqui,precisamente, nessa postura realista. Foi ofruto da interpretação da Corte Supremados Estados Unidos que fez crescer eestender essa garantia, como um poucomais adiante observaremos.

Nessa tradição chamada “criativa”, otribunal não só interpreta o princípio demodo a fazer valer o que o espírito doconstituinte pretendeu quando adotou a re-gra, como também o faz de forma analítica,“declarando” que a Corte decidiria dessa oudaquela maneira se o problema fosse equa-cionado de outro modo. Em suma, ele solu-ciona o caso concreto e fixa regras e padrõespara casos futuros semelhantes.

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Esta questão merece um tratamentocuidadoso. As possibilidades de uma mu-dança no sentido de abrir espaços para ainterpretação criativa do juiz não são tra-dição no Brasil. Apesar do Supremo Tri-bunal Federal ter sido concebido conformea moda da Suprema Corte Norte-america-na, ele não julga com vistas a casos futurossenão por ocasião de casos concretos.

Contudo, a razoabilidade e a proporcio-nalidade não aparecem somente no planoda aplicação da norma jurídica, mas tam-bém no plano da feição da norma, comose deduz do caráter substancial da matériado devido processo legal, dirigido, naconcepção norte-americana, ao legislador.

A materialização da razoabilidade e daproporcionalidade no texto constitucional,por exemplo, não deixa de ser uma mani-festação ou reflexo do relacionamento entredetentores e destinatários do poder. Assim,os textos constitucionais possuem, por certo,uma idéia de justiça que em determinadafase histórica alerta ao conjunto do povo.O que não significa que, embora possaexistir pretensão de eternidade no textoconstitucional, ele seja modificado namedida em que se modifica o senso inse-rido na sociedade.

O problema da relação entre igualdade,racionalidade e proporcionalidade é tam-bém tratado por Enrique Alonso Garcia,que submete as normas emanadas do legis-lador a um teste de racionalidad (norazonabilidad), que se sintetiza na asserti-va: “es irracional la desigualdad que nadatiene que ver com el fin que la normapretende conseguir”.

Com apoio em Tussman e Tem Broek,aponta o jurista ibérico os cinco possíveisesquemas lógicos em que a racionalidade daigualdade pode ver-se implicada: a) na leiperfeita, o mal que trata de evitar a normacoincide com o grupo que a ocasiona. Aqui,

então, a discriminação é perfeitamente raci-onal; b) o grupo discriminado e tratado de-sigualmente não tem nada a ver com o malque a legislação pretende corrigir. No caso,a lei é irracional, e, portanto, inconstitucio-nal; c) a lei não trata desigualmente a todosos que ocasionam o mal, mas apenas distin-gue um grupo destes. É o caso de underin-clusive statute (classificação demasiado re-duzida), na qual não foram incluídos aque-les que deveriam ser desigualados; d) o casocontrário, ou overinclusive statute (classifi-cação demasiado ampla), consiste em dis-criminar grupos que não deveriam ter trata-mento como desiguais; e) e, finalmente, ocaso onde simultaneamente encontramos un-derinclusive statute e overinclusive statute,em que aparecem alguns dos que estão ondenão deveriam estar, mas, ao mesmo tempo,não estão todos os que deveriam estar.11

Na aplicação do teste de racionalidade,o Supremo Tribunal Espanhol manifestou:“(...) El juicio sobre la adecuación de unprecepto cualquiera al princípio de igual-dad exige analizar las razones por las queel legislador há creído necesario singulari-zar una determinada situación, para con-trastar a continuación tales razones con lasfinalidades constitucionalmente legítimasen las que pueden ampararse y resolver enúltimo término sobre la proporcionalidadque guarda el fin perseguido con la dife-renciación establecida (...)”.12

Mas, voltando ao juiz, é inegável quena apreciação dos fatos ele atenda a umcritério de justiça. A questão aparece commaior rigor nos casos de indeterminabili-dade de alguns conceitos trazidos pelolegislador, o que coloca aos Tribunais eCortes Constitucionais a necessidade dedefinir e interpretar tais noções com fulcrono sentido de justiça.

Observado o relacionamento entre igual-dade e justiça e a necessidade de impor a

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razoabilidade e a proporcionalidade comoelementos imprescindíveis para formular oconteúdo íntimo dessa interação, tratare-mos a seguir do terreno em que taisprincípios se desenvolvem, o Estado De-mocrático de Direito.

4. O Estado democrático de direito

O estudo da conexão igualdade-Justiçasupõe a lembrança de alguns conceitos semcujo apoio inicial resultaria dificultosodesenvolver um raciocínio lógico e seqüen-cial do tema.

Nesse compasso, é bom lembrar que aigualdade como princípio e a Justiça comopostulado final da vida em sociedade sedirigem ao favorecimento do homem comosujeito indeterminado. De sorte que o serhumano, alvo desse benefício, deve ser oponto de partida de qualquer estudo denatureza jurídico-constitucional que sedebruce por sobre a conexão proposta.

Parece-nos que não pairam mais dúvi-das quanto a que o ser humano é um enteque faz parte do conjunto da natureza e quemanifesta, ainda que isto conduza a umcerto grau de limitação da sua liberdade,uma vocação natural associativa. Afirme-se, em conseqüência, que o ser humano,como parte do mundo natural, tem comobase real de todas suas atividades as con-dições necessárias para sua própria existên-cia, condições essas que o projetam soci-almente.13 De maneira que não se poderáfalar do homem concebendo-o como umser isolado, devendo-se concebê-lo sempre,necessariamente, como o homem social.14

A sociedade humana, organizada poli-ticamente, se subordina à existência de umpoder controlador da ordem social. Mastambém se organiza juridicamente, ou seja,subordina-se a ação dos homens e dopróprio Estado a normas que reconhecem

direitos e regulam o conjunto das liberda-des humanas, às quais poderíamos chamarde o Poder Jurídico.

Nesse sentido, o Estado deve ser ana-lisado como construção humana e confor-mada por seres humanos. Daqui surge umaclássica distinção entre dois grupos dehomens que se diferenciam pelo lugar queocupam com relação ao Estado. Dissosurge uma desigualdade construída e fo-mentada em termos de democracia repre-sentativa, que, de alguma forma, facilitouo exercício do poder após os períodos dasrevoluções liberais, quer dizer, quando aprática da democracia direta se faria impos-sível. Alguns, que se assentam no domíniodo Estado, são considerados detentores doPoder Político; sobre outros, nos quaisrecai o domínio do Estado, esses sãochamados de destinatários do Poder Polí-tico.15 Parece-nos que essa distinção entredetentores e destinatários do poder político,ou governantes e governados, continuasendo, provavelmente, a mais pertinentepara que se possa ter uma visão de conjuntodas questões relativas ao Estado.16

Ainda que a desigualdade, no caso, sejaapontada como razoável para o funciona-mento do sistema político, de forma geralpodemos dizer, e sem temor de exageros,que, no decurso da história da humanidadesocializada, a relação existente entre deten-tores e destinatários do Poder Político temsido caracterizada por momentos de profun-da tensão. Essa situação tem como fatoresde origem, em primeiro lugar, o reconheci-mento de espaços, em maior ou menor grau,do exercício da liberdade para os indivíduosdestinatários do Poder por parte dos deten-tores, bem como as garantias consagradasno sistema político e jurídico para fazervaler tais liberdades; em segundo lugar, aprocura permanente de formas cada vezmais convenientes e participativas de con-

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trole do exercício do Poder Político porparte de seus destinatários.

Conforme se verifique o reconhecimen-to das liberdades individuais, efetivem-seas garantias consagradas no sistema e serealizem as formas de controle do PoderPolítico, os Estados praticam um determi-nado modelo de exercício do Poder. Omodelo adotado reproduz o denominadoRegime Político.17 Esses modelos ou regi-mes têm oscilado entre formas de exercíciodo Poder caracterizadas pela arbitrariedadedo Estado, como no caso do absolutismoda Idade Média, até formas inéditas departicipação e controle popular do Poder,como no caso das democracias contempo-râneas mais avançadas.

Não é o momento mais apropriado paraentrar em detalhes sobre as particularidadesdo regime político nas diferentes fases dahistória da humanidade. Interessa resenharcomo, no Brasil, o legislador constituinte,atendendo às expectativas populares, nãoduvidou em consagrar, no primeiro artigoda Carta Magna, que o exercício do Poderse realiza atendendo aos moldes de um tipoparticular de Estado, o “Estado Democrá-tico de Direito”. Este é o conceito-chave doregime político adotado pelo Brasil.18

Genericamente, convém, em conseqü-ência, captar em profundidade o significa-do dessa forma de Estado, com o queconseguiremos estabelecer qual o propósi-to real do constituinte brasileiro. Especifi-camente, é preciso manifestar a vital im-portância que, para o objetivo de nossotrabalho, representa o entendimento doEstado Democrático de Direito, um certotipo de organização política que constituio pano de fundo no qual se desenvolve oprincípio da igualdade, recria-se o valorJustiça, e onde devem efetivar-se as liber-dades individuais, especialmente no marcoda solução dos conflitos.

Há que advertir que, tecnicamente, oconceito Estado Democrático de Direito,desde suas origens, traz consigo uma po-lêmica subjacente. Esta questão aparecedeterminada, especialmente, pelas diversasreflexões e contribuições doutrinárias sobreo que deve ser a democracia como ideal derelacionamento entre os detentores do poderpolítico e o conjunto da sociedade civil,assim como também pelas múltiplas pro-postas de identificação do Direito e deinterpretação dos mandamentos legais coma finalidade de atingir a Justiça.19

O conceito em tela é de feição recente,compreendendo uma simbiose entre os de“Estado de Direito” e “Estado Democráti-co”. O primeiro deles – Estado de Direito– parece ter sido introduzido na discussãopolítica por Robert von Mohl, em 1829, emStaatsrecht des Konigsreichs Wuttenberg,ainda que outros autores já a houvessemutilizado em outros campos, embora semmuita tecnicidade.20

Apesar da dificuldade, parece unânimepela doutrina jurídica e política considerarque o conceito Estado de Direito é tipica-mente liberal na sua origem, sendo aplica-do a um tipo de Estado caracterizadobasicamente pela separação de funções emórgãos diferentes para o exercício do Poder,pela submissão do Poder do Estado aoimpério da lei e pelo reconhecimento deliberdades e garantias individuais para osco-associados.21

Tais características nascem no bojo deuma situação de reformulação política,antes que como fruto de uma reflexão decaráter jurídico, no contexto de luta travadaem meados do século XVIII entre a bur-guesia aspirante ao Poder Político e ospoderes do rei, até então, soberano semdiscussão e com controle absoluto dasquestões de Estado. A habilidade burguesapara formular as virtudes da constituciona-

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lização deu lugar à reprodução de postu-lados em vários documentos, gerando-seum leque normativo cujo conteúdo era tidocomo a expressão máxima da vontadecoletiva.

Assim, a teoria original da separação depoderes, que se centrava em princípionuma doutrina política que preconizava ainibição dos poderes absolutos do príncipesoberano, antes que numa teoria jurídicapensada em função do funcionamentoharmônico do Estado,22 foi consagradapositivamente no art. 16 da Declaração deDireitos de 1789 na França, ao lado dosdireitos fundamentais do homem.

A teoria, que foi atribuída erroneamentea Montesquieu, grande leitor da experiên-cia constitucional inglesa que se iniciaraquase quatro séculos antes, ofereceu deimediato dois aspectos de análise: a com-preensão de uma “separação de poderes,que propôs um entendimento político, oude uma “separação de funções”, que gerouum entendimento técnico.23 Sabe-se que apalavra “poder”, politicamente, tem umaconotação bem diferente à da palavra “fun-ção”. De maneira ampla, poder significa acapacidade de impor a vontade própria nasrelações sociais, mesmo contra a vontadealheia.24

Na seara que nos propusemos trilhar, opoder político se exerce por seus detentorescomo um todo único, indivisível, sem pos-sibilidade de ser atribuído a outros agentessociais, e que deve traduzir-se na coação dosdestinatários para o respeito a uma ordemjurídica preestabelecida. O poder se eviden-cia, precisamente, na manutenção dessaordem ou organização social.

Tecnicamente, com o termo “função”,distingue-se a divisão material do trabalhodo Estado em vários setores. Deste modo,impede-se a concentração do Poder numamão só, outorgando-se a corpos específicos

tarefas definidas. Cada órgão é um espe-cialista na sua função. Ainda que se ma-nifeste um interesse em manter uma estritadivisão de funções, desde sua gênese, comojá visto, evidencia-se também o intuito demanter um controle recíproco entre osdistintos órgãos, que é precisamente a basede um sistema chamado originalmente porMontesquieu de faculté de statuer e facultéd’empêcher (faculdade de criar regras efaculdade de impedir)25 e que se conheciana Inglaterra como os cheks and balances(freios e contrapesos). Para muitos autores,aqui começa a fronteira entre o político eo jurídico, porque é no controle que semede a maior ou menor flexibilidade noexercício do Poder,26 acrescentando-se queesse controle não é só fator de negociaçãoentre os órgãos, mas também entre asrelações do Estado com os particulares,com o que o elemento controle passa a serum dos mais determinantes para a conso-lidação da democracia.27 Nesta perspecti-va, os órgãos equilibrados se controlamentre eles por um sistema com os quais “oPoder faz parar o Poder”.28

Contudo, o sistema da separação tinhacomo eixo determinante a elaboração legis-lativa. Com isso, a procura da igualdade eda Justiça, como valores sociais que inspi-ravam o movimento político, foi vinculadaà lei. Na verdade, até a aparição das tesesiluministas acolhidas pela Revolução Fran-cesa, a questão relativa à positividade da leitinha-se fundado na problemática dicoto-mia de entendê-la como expressão do“justo natural” ou como expressão incon-dicionada da vontade política do soberano.Seria Rousseau quem unificaria aquelasexigências, fazendo uma síntese conceitualque viria a ser a base teórica do princípioda legalidade.29

Tal síntese resolveu o problema desdo-brando a soberania popular nos mandatos

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representativos e forjando um sistema base-ado no conceito de “vontade geral”. Assim,a participação de cada homem na vontadegeral expressada pela lei resolvia o proble-ma da igualdade; o problema da Justiça eraeliminado porque, sendo cada homem umelaborador da lei, ninguém seria injustocontra si próprio; por último, estabelecendoque a liberdade de cada homem se submetesó aos ditames da lei, elimina-se o problemada sujeição ao arbítrio.30

Todavia, as características iniciais men-cionadas possuem mero sentido instrumen-tal perante a garantia dos direitos funda-mentais, ainda que não seja totalmenteconveniente reduzi-la a aspectos técnicos,visto que essa categoria de direitos confi-gura uma parte essencial não só da opera-tividade do sistema, sendo também repro-dução de uma valorização limitativa dospoderes autoritários.

Assumiremos então que o Estado De-mocrático de Direito é um tipo de organi-zação político-social, na qual o Estado sepauta pela efetividade plena da soberaniapopular, funcionando através de órgãosdistintos, que trabalham interdependente-mente e sujeitos ao império da lei, paraconsolidar a democracia e o reconhecimen-to da igualdade, da dignidade e dos direitose liberdades fundamentais da pessoa huma-na, sendo que toda essa organização supõeuma formulação de Justiça, que lhe éimprescindível e inerente.

Desse modo, surge também uma con-clusão evidente. Existe uma ligação entreo tipo de Estado que a sociedade constróie a possibilidade de alcançar a Justiça.Apesar desta constatação, há que se reco-nhecer que as sociedades podem encontrarmodelos de Estado que organizam umsistema de proteção carente de efetividade,o que cria problemas para a obtenção daJustiça e que, por outra parte, cada socie-

dade pode e deve construir o modelo deEstado que acomode seu critério do Justo.

5. Processo e devido processo legal

Na busca de um sentido atual e atuanteda igualdade e da Justiça nos marcos doprocesso, é necessário focalizar um cabalconceito desta instituição jurídica, expondosucintamente as razões do seu surgimento.Percebe-se que o denominado devido pro-cesso legal tem uma história, que se iniciamuito antes de sua consagração positiva.Ancorados, pois, na história do processo,será fácil posteriormente entender suaconexão com as duas arestas de nossotrabalho.

Observe-se que, considerado em suaessência, o processo se desenvolveu desdeos primeiros tempos da história da huma-nidade não como um sistema formal deconceitos, mas como um particular sistemade relações entre o indivíduo e o Estado.Na verdade, até nossos dias – quiçá agoramais do que nunca – ninguém poderia fazeruma reflexão da complexa dialética proces-sual, acreditando que o processo se compõeexclusivamente de técnicas ou procedimen-tos regrados pelo Direito. Não, o processoé impregnado, desde seu início, por umarelação de natureza social. Obviamente,com a força que adquire a constituciona-lização dos direitos, liberdades e garantiasfundamentais, surge uma regulamentaçãodessa relação, que se transformou em re-lação jurídica, sem abandonar seu cunhosocial característico. Por isso, para umaponderação do processo pela ótica da Jus-tiça, cumpre priorizar essa interação, noencalço de melhor entender a figura.

Num primeiro estágio da relação social,as forças do ser humano se voltam para asolução de suas necessidades primárias. Osprimeiros conflitos de interesses tinham

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como motivação principal divergênciasquanto à caça de animais ou a colheita defrutos. Freqüentemente, para a solução doconflito, o indivíduo armado defendia, naluta corpo a corpo, suas condições mínimasde existência.

Com o desenvolvimento das relaçõesentre os homens, os novos donos da pro-dução adquiriram prontamente a hegemo-nia, nascendo uma hierarquização no seioda sociedade em favor deles. A desigual-dade surge, portanto, em função não dadisposição da natureza, mas da distribuiçãomaterial injusta da produção social.

Realmente resulta bastante difícil nessaprimeira etapa da humanidade descobriralgum vestígio de processo, mas é valiosaa exposição dessa etapa histórica porquealicerça a compreensão do surgimento dadesigualdade como algo que não é social-mente inerente ao ser humano. Podem serconsideradas desigualdades naturais – in-divíduos altos, baixos, morenos, brancos eoutras muito gerais –, mas as sociais foramconstruídas pelo ser humano.

De fato, só na fase escravista o homemcomeça a desenvolver critérios de raciona-lização do Direito, para amparar a estruturade classes baseada no trabalho dos escra-vos. Nesta etapa é possível identificar osprimeiros julgamentos atendidos pelo Es-tado para regular relações interindividuais.No entanto, não podemos ainda atribuir aestes o vocábulo de processo, visto quenunca houve, que se tenha notícia, corpojurídico destinado a regular as relaçõesentre indivíduo e Estado.31

Apesar das características limitadas doDireito na Antigüidade, que, como é lógicosupor, não podia atingir maior desenvolvi-mento em função de colocar-se a serviçoda classe escravista, surgiram conceitosimportantes em matéria de direito civil eque – o que é na verdade meritório –

fizeram surgir a idéia de sujeitos jurídicos,quer dizer, pessoas que ostentam direitosque de alguma maneira devem ser salva-guardados pelo Estado. É lógico nem todosos sujeitos, é claro, eram sujeitos jurídicos.Porém, os que tinham essa qualidade po-diam exercer suas prerrogativas. Tais pri-vilégios não constituíam direito à liberdadeindividual contra o Estado; tratava-se, sim-plesmente, de participar de negócios públi-cos e de se submeter à lei que era ditadapelo soberano imbuído de poder divino.32

Na Idade Média, a situação muda. Eli-mina-se o conceito de sujeito jurídico, como que a norma objetiva, conduzida a umnúmero de pessoas indeterminadas, con-fundia-se com a instituição de qualidadesjurídicas, privilégios e liberdades em favorde representantes de diferentes centros depoder, entre eles os reis, a Igreja, ossenhores feudais e as corporações de ofí-cios.

O julgamento dos conflitos era assumi-do por autoridades públicas que tratavam,exclusivamente, das demandas entre cida-dãos. Não existia a possibilidade de ques-tionar, perante os tribunais públicos, aforma de exercício do poder por seusdetentores, além de inexistirem, igualmen-te, as possibilidades de defesa judicial.33

Nesta fase, talvez a única garantia desalvaguarda dos particulares era a figura doFisco, que consistia em que o Estado,atuando como pessoa jurídica, contratavacom particulares comercialmente, compro-metendo-se a que estas relações fossemtuteladas por tribunais cíveis. Porém, oFisco só minorava prejuízos patrimoniaissofridos e nada tinha a ver com a proteçãoaos direitos individuais das pessoas, emuito menos com a existência de umprocesso real e efetivo.34

No entanto, paradoxalmente, é nestafase que começa a tecer-se a rede das

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primeiras garantias constitucionais daspessoas no processo. Surgem precocemen-te e não podemos afirmar que se trata deum movimento geral da humanidade, senãoque, visto em sua real dimensão, trata-sede um movimento particular de setoressociais na Inglaterra do século XIII, ocasio-nado pelos avanços econômicos da nobrezae o grau de organização que atingiram parasolicitar as primeiras garantias nos julga-mentos, com o que se inauguraria umahistória de mecanismos inovadores quepassariam a constituir-se nas mais prezadasdas garantias humanas.

O fato de terem surgido na Inglaterra asprimeiras garantias processuais tem umaexplicação à luz da situação da ilha durantea Idade Média. Enquanto na Europa con-tinental a supremacia do Estado à Igreja eraevidente, ou pelo menos a igualdade depoderes entre o Rei e o Papa era sensível,na Inglaterra, distante do Papa, o poderterreno e o poder divino começaram a sertratados como poderes paralelos e indepen-dentes um do outro. A história inglesasugere que, provavelmente, em parte pelafragilidade das tradições feudais, em partepelo desenvolvimento dos atos de troca porparte dos primeiros comerciantes e a inces-sante produção mercantil, tudo isso fezaparecer, na prática, novas formas de direi-to. A irreverência de uma nova classesocial, a burguesia, que na Inglaterra nas-ceu antes que em todo o resto de Europa,sua luta no terreno econômico, que logodeu passo à luta nos terrenos do pensamen-to e da cultura em geral, para limitar ospoderes da aristocracia feudal e do sobe-rano autoritário, e o perigo detectado poruma nobreza hábil perante um rei pusilâ-nime diante dos novos acontecimentosconformaram o contexto em que se dá aCarta Magna de 21 de junho de 1215(Magna Charta Libertatum) e as Declara-

ções Inglesas (Bills), que constituem osprimeiros antecedentes dos já estudadosdireitos e liberdades fundamentais e doposteriormente proclamado princípio dalegalidade.35

Contudo, a nobreza não vacilou emescrever as garantias processuais. E reite-ramos, por ser muito importante, que éprecisamente nisto que avulta a importân-cia da questão, porque foi o começo docontrole dos governantes por meio denormas. O direito escrito passa a ser me-dida de valoração da conduta humana,identificando-se como instrumento de res-guardo do valor “pessoa humana”.

Portanto, esse valor – “pessoa humana”– antecede o próprio direito positivo, con-dicionando-o e dando-lhe razão de ser.36

O conceito moderno do devido processolegal trabalhou-se com índole meramenteprocessualística na Inglaterra. A riqueza deconteúdo material das normas do devidoprocesso legal foi fruto posterior à incor-poração do princípio no constitucionalismonorte-americano, no bojo da conformaçãodos Estados da nascente Federação, ao ladodos checks and balances e a judicialreview.37

As 5.ª e 14.ª Emendas da Constituiçãoda Filadélfia, que posteriormente fariamparte integrante da Constituição dos Esta-dos Unidos, concluíram consagrando, comtodas as letras, a garantia do devido pro-cesso legal.38

A Constituição norte-americana reco-lheu as garantias que regiam as constitui-ções das treze colônias e as incorporou pormeio das emendas. De forma explícitaforam confirmadas a não auto-incrimina-ção (self incrimination), que tem origem namáxima “ninguém é obrigado a acusar-se”(nemo tenetur proder-or acussare se ip-sum), invocada no século XVI contra ostribunais eclesiásticos, e que foi vinculada

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à 5.ª Emenda (privilege against self-incri-mination).39 Logo após, a 6.ª Emendavinculou o direito a um julgamento ágil epúblico (speedy and public trial), o juizimparcial, o direito ao contraditório e àampla defesa e à produção de prova.

Foi a jurisprudência da Suprema Corteque começou a exercer um papel prepon-derante no aperfeiçoamento da forma ini-cial das garantias processuais, atendendo ànecessidade de soluções justas a casosconcretos. Dessa maneira, princípios comoo do juiz natural se transformam, de sim-ples proibição de tribunais excepcionais, agarantia de juiz competente, e, dentro doprocesso penal, a garantia de juiz territo-rialmente competente.

O postulado só passou a ser requisito devalidade dos processos civis graças àsbrilhantes reflexões de Walch e Buloch, naAlemanha, sobre a independência da açãocivil, o que ocasionou uma revolução naforma de interpretar o direito, pela diferen-ciação do direito público subjetivo de açãocom relação ao direito material civil quevisa à tutelação. Essa nova face do direitoabriu espaço para o reconhecimento dodevido processo legal como requisito devalidade nos processos cíveis.

Dentro dos processos administrativos,os modernos princípios de legalidade emoralidade administrativa decorrem dacláusula do devido processo legal. Ultima-mente têm enorme relevância no exercíciodo poder de polícia, para disciplinar oexercício da liberdade individual e a utili-zação da propriedade em benefício do bemcomum, ordenando os direitos privados emharmonia com os superiores interessescoletivos.40

Essa expansão em praticamente todas asáreas do Direito tem sido ocasionada pelaconstrução permanente de uma valiosadoutrina e uma valente jurisprudência, que

continua analisando o velho problema decomo proteger os direitos e liberdadesfundamentais, qualquer que seja a situaçãoou a natureza do conflito jurídico.

Entretanto, não é unicamente no aspectoadjetivo que se desenvolveu a cláusula dodevido processo legal. O labor conscienteda Suprema Corte norte-americana, ligadoa uma série de movimentos sociais embusca de efetivar uma proteção contra apossibilidade sempre ameaçadora de arbí-trio do legislador, fez surgir um novocaráter da cláusula, o chamado aspectosubstancial, sobre o que, na continuação,meditaremos.

5.1 O caráter material do devido processolegal

Nos Estados Unidos, a aplicação dacláusula do devido processo legal era feitacom base na interpretação do espírito doslegisladores da 14.ª Emenda. Conforme adoutrina predominante, a intenção do cri-ador da norma era incorporar os direitos eimunidades a todos os cidadãos norte-americanos. Dentre aqueles, configurava-se a possibilidade de poder acionar oJudiciário para exigir a tutela de seusdireitos nas condições de um processo legale justo. Assim, procurava-se dar efetividadeao direito material e ao direito ao processo.

Não era intenção da Suprema Corte darconteúdo substancial à prestigiosa cláusula.Foi o ulterior desenvolvimento feito pelajurisprudência que transfigurou o devidoprocesso legal, de garantia processual, emverdadeiro limite do arbítrio do Legislativona sua tarefa de fazer a lei e limite domérito das decisões do Estado.

O órgão legislativo da recente naçãoamericana exercia sua tarefa praticamentesem controle, numa sociedade politicamen-te agitada. A reação social perante as leis

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emanadas do Congresso não se fez esperar,em virtude da necessidade de proteçãomáxima da livre iniciativa e do direito depropriedade. Todas as leis que atentassemcontra este direito pecavam por arbitrari-edade, uma vez que o livre mercado eraa ferramenta ideal para o desenvolvimentodo capitalismo.

Antes de finalizar o século XIX, quandoos valores de liberdade e propriedade seconsolidam no modelo econômico, teveinício um movimento dentro da SupremaCorte norte-americana para utilizar a clá-usula do devido processo legal no campodo direito substantivo. Expandiram-se,então, o controle da constitucionalidade(judicial review) e o princípio de que a leinão pode ser considerada conforme osditames do devido processo legal se carecede “razoabilidade” ou “racionalidade” (ra-cionality), ou seja, se atenta contra asliberdades consagradas. Mais singelamen-te, quando é arbitrária.

Nasceu um duplo caráter do devidoprocesso legal que, felizmente, se mantématé os nossos dias: o caráter material ousubstantivo (substantive due process) e ocaráter processual (procedural due pro-cess).

A razoabilidade ou racionalidade dasleis tomou força nos casos em que o PoderLegislativo exerce sua tarefa estando emjogo as liberdades públicas. O fundamentoé a desconfiança com o trabalho legislativoquando se trata de regular direitos funda-mentais, especialmente quando deve res-tringir um para prestigiar outro, exigindo-se valorações imediatas.41

Nos Estados Unidos, a igualdade entreos órgãos Legislativo e Judiciário, nos mar-cos da separação de funções, foi o argumen-to para justificar um caráter antidemocráticopara a anulação das leis pelos juízes quandoo fruto do trabalho do Congresso não tivesse

a razoabilidade necessária, ou seja, quandonão prestigiasse o sentido de Justiça alber-gado na Constituição. A obra de JamesBradley Thayer formulou a tese da “regra daequivocação clara”, que originou a tese dapresunção de constitucionalidade, pela qualnão é possível duvidar da validade da leiquando os homens sensatos da comunidadenão percebem a contradições entre a lei e aConstituição. O apelo de Tahyer à sociedadetinha a intenção de criar uma separaçãoentre a sociedade e o órgão jurisdicional,procurando limitar a atividade dos juízesafirmando que a responsabilidade pela Jus-tiça recai no povo e não no Judiciário.42

Assim, o transcurso de séculos de árduotrabalho constitucional fez com que o devi-do processo legal tivesse uma essência pro-cessual muito bem determinada, designan-do uma série de prerrogativas que podeminvocar-se juridicamente perante os tribu-nais. Parece-nos que não obteve a mesmasorte o aspecto substancial da cláusula, quese atrela ao ideal de Justiça que cada comu-nidade possui. Todavia, é importante mani-festar que, na órbita dos países latino-ame-ricanos, existem fortes inclinações por ou-torgar ao princípio toda a dimensão quemerece. É bom registrar a atitude valiosadaqueles que, com ótica democrática dosestudos jurídicos, persistem na tarefa de dara essa cláusula imortal a relevância que devepossuir em todos os campos do Direito.

Contudo, a conseqüência natural da gra-dativa ocupação de espaços da cláusula dodevido processo legal a quase todos osâmbitos do Direito foi sua consideraçãopermanente sob o prisma constitucional. Éque a vital importância das garantias pro-cessuais para a pessoa humana só podeencontrar um espaço de reconhecimentoadequado na cúspide do sistema jurídico, noEstatuto Constitucional.43 Com prontidão, odevido processo legal passou das declara-

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ções de direitos aos corpos constitucionaisdos Estados de quase o mundo todo, se bemque de forma diversa, já que, em algunscasos, é unicamente enunciado no preâmbu-lo de forma lacônica, embora, em outroscasos, mais cuidadosos, ele apareça emcapítulo autônomo, detalhado e prolixo.44

Constitucionalizada, a cláusula do devi-do processo legal estendeu-se no sistemacomo fonte de validade de todo o resto denormas processuais, ocasionando a incons-titucionalidade das normas infraconstitu-cionais que lhe eram contrárias.

A repercussão no Judiciário foi radical.Este sofreu um aperfeiçoamento na sua ta-refa julgadora que até hoje tem pleno vigor,pois começou a atuar não mais como sim-ples repetidor da regra legislativa, mas coma preocupação de culminar o julgamentocom uma sentença que reproduzisse o sen-tido de Justiça hospedado na sociedade.45

No Legislativo também o impacto foimaiúsculo, pois o órgão legiferante recebeuuma ordem que o levou a pensar no seumodo de exercer sua atividade até então.A orientação constitucional obrigou a darà lei um sentido específico, devendo forjar-se na razoabilidade, delineando formasprocessuais próprias dos postulados de umEstado democrático. Ou seja, o Legislativoficou submisso à razoabilidade, à propor-cionalidade e à Justiça.

Na doutrina, o inquieto pensamentojurídico desprendeu o chamado DireitoProcessual Constitucional, com um métodode interpretação da norma constitucionalrelativa ao processo, que o fez amadurecera idéia de postulados a serem levados emconta para resolver todo tipo de demandase litígios, mas que, na sua essência, pro-curam fazer Justiça salvaguardando osdireitos e liberdades fundamentais.

Por último, resta afirmar que a repercus-são no âmbito da vida das pessoas foi

tremendamente surpreendente. O devidoprocesso legal convertido em devido pro-cesso constitucional levou à garantia daparticipação adequada das pessoas nasentranhas do processo, e também – o queé mais significativo – deu lugar a umverdadeiro direito ao processo, abriu ocaminho efetivo do acesso à jurisdição emcondições de completude e efetividade datutela jurisdicional. O direito ao processonasceu com a constitucionalização comoum verdadeiro direito fundamental de todoco-associado.46

O caso anterior é de interesse superlativopara nosso estudo, em virtude de que oprocesso constitucionalizado obriga a inter-pretar sua finalidade de comum acordo como espírito geral da Constituição, e nessesentido se atrela à idéia de Justiça que re-pousa no texto magno. Assim, a influêncianos quatro setores, já constatada, se exerceporque sujeitos à Justiça, como valor pre-ponderante na solução dos conflitos, na ela-boração da lei e na interpretação normativa.

5.2 Da técnica descritiva à técnica derespeito às liberdades

A concepção moderna de processo foiatingida a partir do pensamento da doutrinaalemã, especialmente de Oscar von Bülow,que em 1868 revela os dois âmbitos daatuação processual. A tese consistia emdiferenciar, de um lado, a relação material,a lide em si mesma considerada, o conflitode interesses; e, de outro, a relação que nãoé mais de caráter privado, mas de caráterpúblico, pela qual o juiz está obrigado adizer o direito, em face da solicitação feitapelas partes, que ficam obrigadas a umconjunto de regras e procedimentos e de-vem submeter-se à decisão final do juiz.Foi o início da parte substantiva e a parteadjetiva do Direito.

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Na ótica da dogmática jurídica, o termoprocesso possui um significado meramentedescritivo. Essa conotação, que tem preten-sões de cientificidade, não pode coabitarcom o estudo do fenômeno da efetividadeou prática concreta das normas, por con-siderá-lo um problema sociológico, ouquando muito, axiológico.47

A noção mais avançada de EstadoDemocrático de Direito caminha na via deuma noção de processo ajustada às finali-dades dessa forma de Estado. Neste sen-tido, o processo reveste-se de três perfis: operfil técnico, que possui relação com ofuncionamento do processo, como conjun-to ordenado de procedimentos; o perfilconstitucional, ou seja, sua correspondên-cia exata com as formas constitucionaispreestabelecidas que plasmam os caracte-res do Estado Democrático de Direito; e,por último, o perfil teleológico, isto é,como se amolda o processo à finalidade defazer valer a Justiça, baseado no respeitoabsoluto e indiscutível dos direitos e liber-dades fundamentais do ser humano.

Sem dúvida que, tecnicamente, o pro-cesso revela-se como um conjunto de pro-cedimentos destinados à consecução deuma sentença. Isso é inegável, visto quetais procedimentos marcam o dia-a-dia dasgarantias constitucionais. No entanto, pro-cesso e procedimento são questões distin-tas, embora se trabalhe processualmentecom técnicas procedimentais. Alhures, já adoutrina tem feito tal distinção. Não obs-tante, por sua agudeza, consideramos im-portante citar textualmente a lição de Car-mem Lúcia Antunes Rocha:

“O processo é o instrumento jurídi-co pelo qual se persegue o objetivoespecífico de aplicação do direito, emcaso dado a decisão jurisdicional, se-gundo um procedimento previamente

explicitado em lei, e tem um sentido deveículo de uma ação assegurada peloEstado e imbuída de objetivo específi-co e inafastável de seu uso e valor.

O procedimento é o movimentoestatal previamente definido em lei edestinado a processar os elementos doconflito-lide posto ao exame e decisãojurisdicionais; quer dizer, o conjuntode atos encadeados dão e manifestama essência do procedimento”.48

O procedimento, em conseqüência, éparte importante da vida do processo.Contudo, pretender fixar aqui o núcleo doprocesso é sonegar sua real relevânciadentro do Estado Democrático de Direito.

Em qualquer tipo de Estado, o processo,além de técnica procedimental, é também,e substancialmente, medida do caráterdemocrático, ou não, da forma de Estado.Nesse sentido, no Estado Democrático deDireito, o processo é mais que técnica, poisconstitui garantia de Justiça para a coleti-vidade, que é sua finalidade, daí seu caráterprincipiológico imanente, que não admiteque seja reduzido a meros procedimentos.

Isso porque o processo se nutre de umasérie de princípios que limitam a realizaçãoarbitrária do direito, ou seja, a realizaçãoarbitrária do Poder Político, do qual, lem-bremos, o direito é seu instrumento.

Advirta-se que a expressão processodemocrático contém uma forte carga valo-rativa, não de uso meramente descritivo. Étécnica jurídica, é verdade, mas, para orespeito da liberdade, para a segurança doscidadãos no exercício de seus direitosindividuais e coletivos controvertidos, lesa-dos ou apenas ameaçados por terceiros oupelo Estado, ou seja, para garantir a igual-dade e a Justiça. As chamadas “categorias”,ou técnicas de organização processual, ousimplesmente garantias das pessoas no

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processo constituem um rito obrigatóriopara o respeito da liberdade individual.

Assim, para definir o processo nosmarcos do Estado Democrático de Direito,é necessário, antes de tudo, aceitar o valornele implícito: a defesa e tutela das liber-dades dos cidadãos por meio de garantiaspreestabelecidas, verdadeiras técnicas jurí-dicas, a serviço das partes em conflito, coma finalidade de uma sentença justa. Exige-se dele que seja adequado e certo, apto parareproduzir a igualdade e a Justiça almeja-das socialmente.

Quanto ao procedimento, este constituio modo como se exercita o processo.Exige-se dele flexibilidade para o atendi-mento dos interesses em conflito; certeza,para a garantia dos direitos que se questi-onam; fluidez e celeridade, para que sejapronta a solução ou cessação da ameaça.

5.3 O devido processo legal na sociedadecontemporânea

Quando começamos nossa análise sobreo processo, a pedra inicial de estudo foi aafirmação de que este se desenvolve comoum particular esquema de relações. O de-senvolvimento dessas relações, até consti-tuir-se o figurino que hoje ostenta a cláusulado devido processo legal, faz parte do me-lhor da história da civilização humana.

Esta afirmação se comprova porque asgarantias constitucionais do processo tute-lam a afirmação efetiva de direitos e liber-dades fundamentais. Como já fixamos empatamar anterior de pesquisa, não se podeseparar a liberdade do indivíduo da liber-dade da sociedade, do grau de domínio queeste tem sobre a natureza e da forma comoestabelece critérios de relação com a comu-nidade e o Estado.

Na medida em que a idéia de liberdadepassou de um plano meramente formal para

transformar-se em liberdade real, em fun-ção da luta do indivíduo contra a arbitra-riedade do Estado, apresentou-se, por for-ça, uma mudança no agir do Estado, quede uma atitude passiva de resguardo dedireitos passou a uma atitude ativa de fazerimplantar e valer esses direitos.

Nessa mudança transcendental, as ga-rantias processuais primeiro serviram pararegrar os julgamentos do rei. Logo, foramo bastião para a exigência do cumprimentode fins do Estado, quando este ficava inerteperante as necessidades sociais. A comple-xidade das relações sociais, num mundocada vez mais interdependente, fez comque os primeiros conflitos individuais pas-sassem a ser coletivos, porque afetavamtoda uma camada do povo. Recentemente,é certo afirmar a existência de conflitoscuja solução interessa a toda a comunidade,ou seja, revestidos da noção teórica de“interesse público”. Neste novo quadro, oprocesso passa a ter uma outra dimensão,já que agora pode ser seguido com interes-se por toda a sociedade, devido ao fato deque seu resultado afetará as relações doconjunto social.

Com o objetivo de ordenar as finalida-des do devido processo legal, já não soba ótica do Estado Democrático de Direito,mas da real necessidade da sua efetividadeno tecido social, podemos afirmar que acláusula se dispõe a agenciar um acordocom relação a um conjunto de tensões quepoderíamos assim reproduzir:

GRUPO NORMAESTABILIDADE

ESTADODO DIREITO

– – – –

INDIVÍDUOIDEAL EVOLUÇÃO

LIBERDADEDE JUSTIÇA DO DIREITO

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A partir da idéia da relação grupo-indi-víduo, o processo mediatiza o divórcio exis-tente na atualidade entre o homem comosujeito jurídico e o homem como cidadãopolítico e sujeito econômico da sociedadecivil, inserido na dinâmica social.

Esse divórcio se ocasiona, entre outrasrazões, devido ao fato de que, ainda nosanos finais do século XX, se ratifica aseparação Estado-sociedade, o que fazperfeitamente concebível o entendimentodos direitos individuais como esferas deautonomia. O Estado garante as condiçõesque permitem o encontro das autonomiasindividuais, e está formalmente obrigado apreservá-las diante da ameaça ou lesão deterceiros e de agentes do mesmo Estado.

Nesse esquema de funcionamento polí-tico e social, os interesses dos detentoresdo poder, usualmente, apesar de já havertranscorrido séculos de evolução social, secolocam ainda como reivindicações cole-tivas. Assim, o primeiro direito fundamen-tal do homem, ao lado do da vida e do daliberdade, é o da propriedade, o que fazcom que, por conseqüência, a consagraçãoda cláusula não pode ser outra senão a degarantir que ninguém pode ser privado dasua vida, liberdade ou propriedade sem odevido processo legal, fórmula que adotaa maioria das constituições atuais.

A propriedade, servindo de parâmetrode localização do homem no contextosocial, interfere em todas as relações hu-manas. Como o processo é um tipo derelação social, a propriedade termina con-dicionando essa relação.

O homem ocupa um lugar no grupo quedepende do seu grau de riqueza, ou, emoutros termos, seu lugar na sociedadedepende da sua relação como proprietárioou não de bens sociais.

Neste sentido, o processo tem significa-dos diferentes conforme se olhe pelo indi-

víduo isolado, sem proteção do Estado,distante dele, destinatário da norma, queprocura muitas vezes, quando ingressa emjuízo, ter acesso aos bens dos quais foiburlado pelo mais forte economicamente,ou do qual foi vítima pelas próprias con-dições em que se desenvolvem suas rela-ções. Sua intenção é o acesso não àjurisdição, mas à Justiça como valor social.Por isso pugna por uma jurisdição rápidae eficiente, por um ideal de Justiça. Paraeste indivíduo, o processo representa suaforma de ver seu direito respeitado. Paraele, o processo é um meio, não um fim (...),é o meio da Justiça.49

Para o detentor da propriedade, nãoraramente detentor também do Poder Po-lítico, direta ou indiretamente, o processoé importante para que não mude o statusquo, para cristalizar a desigualdade insti-tucionalizada e para realizar o máximo deJustiça tolerável. Nesse sentido, o detentorda propriedade demanda que as normascriadas reproduzam seu interesse individu-al e não os interesses da Justiça social.

A situação seria muito fácil para osdetentores do Poder Político, não fosse ofato de que o problema de dimensionar aJustiça, de dizer o que é justo ou não, seafere no momento de exercer coercitiva-mente a norma por um órgão independente:o Judiciário.

O órgão Judiciário é também Estado,mas com a particularidade de ter de cum-prir com o dever de fornecer sentençasjustas e estar rodeado de outras arestasdentro do sistema organizacional. Escapa,repetidas vezes, do controle dos detentoresdo Poder Político nessa atividade, dandomostras de esforço, em mais de uma opor-tunidade, em procurar oferecer soluçõesque acompanhem a evolução dos valoresno sistema jurídico em contraposição àestabilidade das formas do direito, presti-

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giando um equilíbrio entre os direitos doindivíduo e os direitos do grupo, e posici-onando-se preferencialmente pelo predo-mínio da liberdade por sobre as razões deEstado, comprometendo-se, dessa maneira,com a redução da desigualdade e a obten-ção de Justiça.

Em todo caso, ao manter-se o divórcioentre o homem jurídico e homem sujeitopolítico e econômico, além da referidaseparação entre homem e Estado, o indi-víduo só terá reais possibilidades de ascen-der à Justiça quando adquire status peranteo grupo, sem o que estaria sujeito aoarbítrio permanente das posições conceitu-ais dos detentores do Poder Político, o queo levaria a ser presa de toda sorte dedesmandos dos poderosos.

As garantias das pessoas no processodevem atuar em busca da eliminação dessadesigualdade fática. A efetividade dessaintenção é uma conquista democrática derelevância para toda a sociedade porquereflete uma mudança na luta política entredetentores e destinatários do Poder.

De outro lado, o devido processo legalpor força da sua constante aplicação é omotor que impulsiona o direito. Trabalhacom as normas do sistema, ao passo queo Poder Judiciário, criativamente, se con-verte em seu intérprete e seu formuladorfundamental, sendo o único ente capaz deresponder criativamente às exigências deum Direito que necessita ser ainda maisatuante.

Em suma, o Estado Democrático deDireito precisa atuar como elemento quegaranta a igualdade, a Justiça e os direitosfundamentais das pessoas no processo. Nãopode conformar-se apenas com o reconhe-cimento dos direitos e liberdades materiais,pois é sua tarefa preocupar-se com a formacomo os destinatários do Poder Políticoacedem ao processo justo, participam do

processo e satisfazem suas pretensões pormeio do processo.

Essa atividade da forma de EstadoDemocrático de Direito, na sociedade defins de século, aparece limitada, não po-dendo ser completa. Enfrenta uma dificul-dade congênita, porque o próprio processoverte-se como o meio instrumental para umprojeto de Justiça, que também nasce limi-tado pelas contingências que expressam ascorrelações reais de forças na sociedade,comprometido com cargas políticas e im-plicações econômicas claramente identifi-cáveis no ordenamento jurídico a que seencontra vinculado.50

Nesse contexto, as garantias dificilmen-te podem ser plenamente efetivadas, poisficam sujeitas a problemas extra-sistemáti-cos, que evidenciam movimentos de açãoe interação dos atores sociais.

No entanto, não podemos iniciar nossoestudo no direito constitucional positivobrasileiro com tais doses de pessimismo.Estas considerações iniciais apenas reafir-mam a necessidade de empregar todos osrecursos oferecidos pelo Direito Constitu-cional para superar as dificuldades existen-tes, sempre orientando nossa ação pelospostulados da igualdade e da Justiça.

6. Processo, igualdade e justiça na Cons-tituição Federal de 1988

O advento da Constituição de 1988comportou duas situações para a históriabrasileira: do ponto de vista do conjunto dopovo, uma sensação de transformação dasrelações tradicionais entre os relatos nor-mativos e a expectativa fática de cumpri-mento de seus postulados; do ponto devista do sistema jurídico, como era lógico,a nova Constituição, após anos de desco-nhecimento de direitos e liberdades funda-mentais, projetou uma redação amplamen-

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te consagradora dos direitos e garantiasindividuais.

O desenho normativo constitucionalbrasileiro inicia-se com um preâmbulogeneroso em termos de intencionalidade.Com efeito, nele percebemos a intençãomanifesta e predeterminada de instituir umEstado Democrático. Admitamos que estapostura reflete um estado de ânimo dispos-to à consagração de valores fundados nasliberdades individuais e o cerceamento dosespaços de autoritarismo no exercício doPoder Político.

Com meridiana precisão, o preâmbulocontinua expressando que essa forma deEstado se destina a assegurar o exercíciodos direitos sociais e individuais, e valoressupremos como a liberdade, a segurança,o bem-estar, a igualdade e a Justiça, todosconsiderados imprescindíveis para cons-truir uma sociedade fraterna.

Sabemos que uma interpretação ade-quada da Constituição não poderá serobtida se o exegeta examina a normaisoladamente. O sucesso da interpretaçãosó é possível por meio do enfoque siste-mático. Isto é, se o sentido e alcance deuma norma se articula com o sentido ealcance de outras normas que tambémfazem parte do sistema, numa verdadeirauniversalidade de intenções constitucio-nais.51

Tratando-se de interpretação de normasque consagram direitos e liberdades funda-mentais, essa situação pode chegar a sermuito problemática, nos casos em que seexige uma graduação valorativa que con-duza ao detrimento de um princípio emprestígio de outro.

Para Vicente Greco Filho, se a meta éatingir valores que são comuns a todos osindivíduos, só é possível restringir os di-reitos fundamentais quando a prevalênciada vontade de um indivíduo representa a

destruição ou perigo de destruição de outrasvontades humanas legítimas.52

Destarte, uma análise coerente do sis-tema constitucional relaciona, de imediato,os postulados de igualdade e Justiça, con-tidos no Preâmbulo e espalhados peloconjunto normativo, com a idéia de umasociedade organizada, que dirime seusconflitos no debate democrático, pautadopelo exercício dos direitos fundamentais, ecujas inevitáveis situações de conflito sãoresolvidas no marco de um processo quereflete os postulados iniciais do nossoraciocínio – igualdade e Justiça. Daí avinculação estreita entre processo, igualda-de e Justiça no sistema.

O art. 1.º da Constituição aclama o Es-tado Democrático de Direito como formaconstitutiva da República Federativa. Cha-ma a atenção o vocábulo “constituir”, bas-tante claro no sentido de que o Estado,caracterizado dessa maneira, se funda paraa obtenção de efeitos práticos na sociedade.Por conseqüência, em termos formais, re-sulta um fato consumado: que nos encontra-mos perante um real Estado Democrático.

O constituinte, em clara demonstraçãoda importância que fornece ao tema, acer-tou nesta oportunidade, colocando os “Di-reitos e Garantias Fundamentais” no Títuloantecedente à organização da estrutura doEstado, o Título II da Carta Magna. Naverdade, nas constituições, esta é a melhorcolocação para tais direitos e garantias. Éque historicamente eles são, antes que oEstado, inerentes ao ser humano.

O Capítulo I do Título II denomina-se“Dos Direitos e Deveres Individuais eColetivos”. É neste capítulo que consta desó um artigo – o festejado art. 5.º – queencontraremos claramente expressas asnormas referentes à igualdade, à garantiado devido processo legal e todo o complexode postulados que lhe são decorrentes.

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Através da leitura do parágrafo 2.° doart. 5.°, admite-se que são protegidos ou-tros direitos e garantias, que “decorrem” doregime político, dos princípios adotadospelo estatuto constituinte ou dos tratadosinternacionais. Em outras palavras, nossaCarta Magna contém direitos e garantiasexpressas ou explícitas, colocadas em todoo corpo constitucional, e direitos e garan-tias implícitas a ela.

Essa previsão constitucional de não-excludência de outros direitos e garantiasé já sedimentada no constitucionalismomundial a partir da jurisprudência norte-americana das décadas de 60 e 70 do séculoXX, em que se reconhece que as garantiasexplícitas constantes dos Bill of Rightspossuem “sombras jurídicas extensivas”designadas como penumbral rights, queabrigam outras garantias conseqüentes.53

Pois bem, reza o caput do art. 5.° que“todos são iguais perante a Lei, sem dis-tinção de qualquer natureza, garantindo-seaos brasileiros e aos estrangeiros residentesno País a inviolabilidade do direito à vida,à liberdade, à igualdade, à segurança e àpropriedade...”.

Conforme a redação do artigo, pareceque a igualdade é garantida unicamentepara os brasileiros e estrangeiros residen-tes, ficando sem o agasalho da garantia osestrangeiros não-residentes participantes emprocesso. Tal não pode ser a interpretaçãoadequada, uma vez que entre os fundamen-tos do Estado Democrático de Direitoconsigna-se a dignidade da pessoa humana– inciso III do art. I da Carta Maior – semque haja distinção de tempo, lugar oucircunstância. Se não bastasse este impe-rativo mandato, ainda contamos com aorientação constitucional do art. 4.°, incisoII, que consagra o respeito que, nas suasrelações internacionais, o Brasil guardapela prevalência dos direitos humanos.

Não resta dúvida, em conseqüência,quanto à amplitude de tal postulado, esten-dido aos estrangeiros não residentes noPaís, advinda da interpretação sistemáticada Carta e da procura do interesse últimodo legislador constituinte.

Juridicamente, a igualdade, como prin-cípio, inicia seu decorrer no sistema reco-nhecendo as desigualdades humanas, tantoaquelas consideradas físicas ou naturaiscomo as que decorrem por artifício dohomem. De fato, a igualdade tem sidoutilizada para intervir na solução do pro-blema de dar tratamento diferente aosdesiguais fisicamente, como também paracorrigir os despropósitos da hierarquizaçãosurgidos no seio social, já comentados aorelatarmos o surgimento do processo.

No panorama da Constituição de 1988,o princípio da igualdade se difunde irradi-ando seus efeitos. O próprio preâmbuloinicia esta propalação do postulado quandomanifesta como finalidade do Estado De-mocrático instituído a de assegurar o im-pério da igualdade, como valor supremo deuma sociedade fraterna. Imediatamente sobo Título I, denominado “Dos PrincípiosFundamentais”, o art. 3.º, inciso IV, expli-cita como um dos objetivos fundamentaisda República Federativa a promoção dobem de todos sem preconceitos.

Entretanto, a superlativa importância doprincípio da igualdade repousa na sua maisrecente forma de ser interpretado, e à qualse amoldou a Constituição de 1988. Comefeito, tradicionalmente se fundamenta adiretriz da igualdade como postulado a re-ger perante a lei, significando a exigência detratamento paritário na aplicação do direitopelos tribunais e órgãos da Administração;em outras palavras, o juiz não deve distin-guir entre situações iguais ao aplicar a Lei.

Tal interpretação foi ampliada em solopátrio por autores como Celso Antônio

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Bandeira de Mello, na fórmula de que opostulado se dirige também ao legislador.Dessa maneira, o legislador pode discrimi-nar indivíduos e situações, respeitandomodelos de orientação: a discriminaçãonão pode atingir de modo atual e absolutoum só indivíduo; as situações ou pessoasdesigualadas devem ter intrinsecamente otraço desigualador que as distingue, exis-tindo na desequiparação uma correlaçãológica, que, em última instância, se projeteao bem público, prestigiando os fins cons-titucionais.54

A doutrina norte-americana avançouainda mais nessa idéia, entendendo que,além da congruência da desigualação, ouseja, da correspondência da norma jurídicacom a situação do sujeito, se exija ointeresse público concreto.55

Para o legislador, como conseqüênciados impactos dessa fulminante doutrina, odesenvolvimento do postulado da igualda-de equivale a preservá-lo cada vez quedesenvolva sua tarefa, para que a Leiobtenha validade. É que, embora pareça tãoclaro, existem situações em que é perfei-tamente compreensível que, dentro do sis-tema jurídico, até para o fortalecimento dopróprio postulado da igualdade, seja auto-rizada a desigualação dos aparentementeiguais.

O ente legiferante, como um todo, sedepara com contingências próprias da vidasocial, que o levam a preferenciar indiví-duos e valorizar situações. Porém, a normaelaborada com o intuito de classificar nãodeve ser arbitrária ou caprichosa, devendo,ao revés, operar como meio idôneo, hábile necessário à consecução de finalidadesconstitucionalmente válidas.56

Este é o conteúdo real ou material doprincípio da igualdade. Assim, consideran-do o processo, não pode o legisladorelaborar normas que instituam discrimina-

ções arbitrárias para as partes. Deverásempre inspirar sua atividade nos modelosde desigualação.

Firme-se então a idéia da existência deum duplo caráter do princípio da igualdade– o formal e o material –, e que estasmodalidades estão presentes em todo oconteúdo normativo da Constituição Fede-ral, mormente no desenvolvimento subs-tantivo e adjetivo da cláusula do devidoprocesso legal.

Quanto a esta fórmula, estabeleceu olegislador constituinte sem vacilações noinciso LIV do art. 5.º: “Ninguém seráprivado da liberdade ou de seus bens semo devido processo legal”. De imediato,ressalte-se a conformação híbrida da figu-ra. Trata-se de um princípio, de um direitoe de uma garantia fundamental. Mais cla-ramente, o devido processo legal é umdireito consubstanciado num princípio noqual confluem outros princípios, para cons-tituir a proteção ou garantia de fazer efe-tivos outros direitos e liberdades. Hoje,praticamente todas as constituições domundo democrático reconhecem a neces-sidade de proclamar o devido processolegal dentro do conjunto de garantias dapessoa humana.

O exercício de caracterizar a cláusulaem tela dentro do sistema é pertinente paraentender sua real feição. Certamente, umaou outra forma de abordá-lo dependerá doprivilégio que o intérprete conceda a umtópico particular do instituto. Todavia, existeo critério de que, seja qual for o aspecto,o devido processo legal manifesta os aspec-tos material e processual, que servem paralocalizá-lo no conjunto do sistema consti-tucional.

Na verdade, a interpretação jurispruden-cial que provinha do sistema constitucionalanterior era meramente adjetiva ou proces-sualística. A dinâmica com que a jurispru-

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dência entendeu a cláusula do devido pro-cesso legal era a de síntese de todas asgarantias decorrentes desse instituto no seuaspecto adjetivo.

Esse acento processual pode ser a causapara que não apareça o termo “razoabili-dade” na Carta Magna. No entanto, acre-ditamos que não existem dúvidas de que agarantia do devido processo legal dentro doestatuto fundamental atinge uma dimensãosubstantiva. Em outras palavras, emboranão expressamente inserida no texto, épossível desprender a manifestação subs-tancial do devido processo legal por meioda interpretação de sistema da Constitui-ção.

Neste aspecto material, manifesta-se aobrigação de ser atendido o princípio nomomento do legislador exercer sua tarefalegiferante, evitando, assim, a construçãode leis contrárias ou conflitantes com agarantia. Com efeito, a elaboração de qual-quer uma das espécies normativas consa-gradas no art. 59, incisos II a VI, daConstituição Federal deve atender ao prin-cípio. Ressalte-se que não incluímos aespécie normativa da emenda constitucio-nal porque, como sabemos, sendo a garan-tia do devido processo legal “cláusulapétrea”, não é possível sequer chegar adeliberar sobre questões tendentes à abo-lição dos direitos e das garantias funda-mentais.

Existe, então, vedação explícita ao ór-gão legislativo quanto a legislar contraria-mente ao “razoável”, contrariamente àJustiça, em detrimento da igualdade. Nomesmo sentido, o veto presidencial, con-sagrado no art. 66, parágrafo 1.º, e art. 84,inciso V, como forma de controle preven-tivo da constitucionalidade das leis, leva aque se impeça a eventual ausência derazoabilidade das leis emanadas do Con-gresso. De igual forma, a obrigatoriedade

– ainda que com todas as críticas que, noplano da efetividade, tem confrontado – deque as medidas provisórias facultadas aoExecutivo nos arts. 62 e 84, inciso XXVI,da Constituição Federal sejam submetidasde imediato ao Congresso Nacional nãopode ser outra coisa que decorrência daaplicação do caráter substancial do devidoprocesso legal.

O devido processo legal na consagraçãodo princípio da legalidade dos atos admi-nistrativos, art. 37 da Constituição Federal,constitui verdadeiro limite para a arbitra-riedade no campo da Administração Públi-ca. Deve o Presidente da República atenderao princípio nos casos de expedição dedecretos e regulamentos para a fiel execu-ção das leis, como previsto no art. 84,inciso IV.

Deve também o órgão judiciário, aoelaborar seu regimento interno, atender “asnormas de processo e das garantias proces-suais das partes, dispondo sobre a compe-tência e o funcionamento dos respectivosórgãos jurisdicionais e administrativos”,conforme reza o art. 96, inciso I, a, emclaro desprendimento da garantia do devi-do processo legal.

Destarte, a Constituição de 1988 assu-me materialmente o postulado que se re-verte em uma série de outros princípios,como as garantias do direito adquirido, oato jurídico perfeito e a coisa julgada (art.5.º, inciso XXXV, da CF), a ausência decrime sem lei anterior que a defina e aproscrição de penas sem prévia cominaçãolegal (art. 5.º, inciso XXXIX, da CF), airretroatividade da lei penal (art. 5.º, incisoXL, da CF), a prescrição de punição legalnos casos de discriminação atentatória dosdireitos e liberdades fundamentais (art. 5.º,inciso XLI), a proibição da prática doracismo (art. 5.º, inciso XLII, CF), osprincípios de anualidade, legalidade e úni-

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ca incidência (art. 150, inciso I, III, a, bda CF).

Na sua dimensão adjetiva ou processual,a garantia se desdobra em princípios queinstrumentalizam a posta em prática dopostulado maior. Dentre eles, o acesso àjurisdição (art. 5.º, incisos XXXV e LXXV),o juiz natural (art. 5.º, incisos LIII eXXXVII), o contraditório (art. 5.º, incisoLV), o direito à prova licitamente produ-zida ou obtida (art. 5.º, inciso LVI), apublicidade dos atos processuais (art. 5.º,inciso LV).

Por essas razões, o exercício da tarefade julgar, seja típico ou atípico, encontralimitações nas garantias mencionadas eamplamente consagradas na Constituição.Assim, o órgão legislativo, ao julgar seusmembros, nos casos de perda de mandato,tal e como prescrito no art. 55 da Consti-tuição Federal, deverá atender essas garan-tias. Igualmente a Câmara dos Deputados,ao autorizar a instauração de processocontra o Presidente, Vice-Presidente daRepública e os Ministros de Estado, con-forme a faculdade conferida no art. 51,inciso I, observará estas garantias. O Sena-do Federal, no exercício das tarefas dejulgamento atribuídas privativamente noart. 52, incisos I e II, também deverá honrartais garantias.

O órgão executivo, no exercício dopoder de polícia e nos processos adminis-trativos, bem como atendendo seu dever dedestinar recursos humanos para as tarefasde assistência judiciária, expressa sua vin-culação à adjetividade do princípio dodevido processo legal. Nos casos de crimede responsabilidade, tem direito o Presi-dente a todas as garantias do processo noprocedimento estipulado no art. 86 daConstituição Federal, assim como todos osjulgamentos do Legislativo e Judiciáriosobre membros do órgão executivo dos

Estados e Municípios devem caracterizar-se pela observância de tais normas.

Contudo, é no órgão judiciário, com-posto de juízes e tribunais, onde devemostrabalhar com maior ênfase o exercíciodessas garantias adjetivas do devido pro-cesso legal. É ali onde o Estado assume suatarefa julgadora e onde a garantia deveencontrar pleno eco. O Judiciário devedizer o direito interpretando as garantias eaplicando-as ao caso concreto.

Mas também é mister que nos julga-mentos dos próprios membros do Judiciá-rio, como nos casos estipulados nos arts.96, inciso III, 102, inciso I, b, 105, incisoI, a, e 108, inciso I, a, para os juízesestaduais, do Distrito Federal e Territórios,Ministros do Supremo Tribunal Federal edesembargadores do Superior Tribunal deJustiça e membros dos Tribunais RegionaisFederais, respectivamente, seja feita home-nagem às garantias adjetivas do devidoprocesso legal. Ainda em casos de remo-ção, disponibilidade e aposentadoria demagistrados é impossível que não sejamatendidas essas garantias adjetivas, expres-samente a de “ampla defesa”, tal e comoprescreve a norma do art. 93, inciso VIII,da Constituição Federal.

Enfim, conclui-se que a ConstituiçãoFederal de 1988 é extensa na enumeraçãode situações decorrentes dos caracteresmaterial e processual da cláusula do devidoprocesso legal. Evidencia-se um belo tra-balho de consagração de normas que recla-mam sua efetividade de forma urgente paraatender às exigências do Estado Democrá-tico de Direito

O enfoque interpretativo, nas condiçõesmencionadas, é próprio das formas demo-cráticas de Estado. A interpretação por estavertente teve origem na modificação dasrelações de poder e, por lógica, nas modi-ficações da expectativa dos co-associados

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com relação à efetividade das normasjurídicas constitucionais e os postulados deigualdade e Justiça, fortemente atingidosem outros modelos vivenciados pelos bra-sileiros.

Uma outra postura do intérprete seráuma tentativa de escamotear a finalidadeúltima dos valores jurídicos constitucionaisde respeito aos direitos e liberdades funda-mentais e à solução dos conflitos sociaissobre bases de Justiça e igualdade.

Note-se, finalmente, que as garantiasconstitucionais do processo, carregadas devaloração altíssima, têm respaldo no siste-ma por força do estabelecido no art. 60,parágrafo 4.º, visto que constituem verda-deiras “cláusulas pétreas”.

No entanto, algo ainda merece ser ex-plicado. É que, colocada a possibilidade dedesigualar, existindo traços desigualadorese correlação lógica entre estes e a desigual-dade de tratamento, caberia perguntar: quaisseriam esses traços no campo processual,aplicáveis sem ferir as garantias processu-ais?

Pois bem, com relação ao ponto, há quese lembrar que, quando da análise do testede razoabilidade, observamos várias for-mas de quebrar o princípio. Isso significaque a vulneração do devido processo legalna sua substantividade, tendo em vista opostulado da igualdade, pode realizar-se,no mínimo, de duas formas: primeiro,quando a classificação inclui no tipo legalmenos do que deveria ter incluído, deixan-do de lado a quem deveria estar acobertadopela norma; no segundo caso, quando a leié por demais abrangente, referindo-se asituações que merecem tratamento singu-larizado.57

Algumas questões práticas podem aju-dar a decifrar melhor a incidência doprincípio. Sabemos, por exemplo, que, doponto de vista material, pesa muito ainda

a mediatização de fatores, como o econô-mico, no nascimento e no fluir do processo.A igualdade de oportunidades para acederà Justiça é um problema permanente dassociedades. Além do que, já instaurado oprocesso, a disparidade econômica podeser fonte de graves injustiças.

Em atenção ao princípio da igualdade,as possibilidades de atuação deste princí-pio, nos casos de disparidade econômica,são levadas em conta pela Constituição.Assim, nasce a Defensoria Pública, insti-tuída no art. 134 da Carta Fundamental,para a “orientação jurídica e defesa, emtodos os graus, dos necessitados”, desen-volvendo o mandato constitucional da“assistência jurídica, integral e gratuita, aosque comprovarem insuficiência de recur-sos”, consagrada no art. 5.º inciso LXXIV,da Carta.

É bom comentar que a Constituiçãoampliou o conteúdo da assistência. A ex-pressão “integral” englobou também aorientação jurídica, o que significa que,independentemente da existência de pro-cesso, funciona a assistência como consul-tora da cidadania.58

Destarte, o Estado presta consultoria,assessoria, propõe ações em favor dosnecessitados e os defende.

Em resumo, as figuras da assistênciaJudiciária e a gratuidade se colocam comomeio para que a realidade desigual nãocaracterize o acesso à Justiça, de forma quea materialização da lei não seja certeza parauns e utópico sonho para outros. Na idéiade Perelman, a Constituição assume aquium critério de Justiça proporcional queatende o conceito de a cada qual segundosuas necessidades. O constituinte, também,considerou assim um dos princípios deJustiça enunciados sob a óptica de JohnRawls: “as desigualdades sociais e econô-micas devem ser ordenadas de tal modo

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que sejam ao mesmo tempo consideradascomo vantajosas para todos dentro doslimites do razoável”.

De outro lado, a regra da igualdadeimpõe sempre a paridade de armas noprocesso, e isso significa “equivalência”,ou seja, valoração igual das partes quantoa prazos, oportunidades, condições de agir,em contraposição ao “igualitarismo” pró-prio da ausência de valoração quanto àscondições de cada extremo processual.

O direito positivo brasileiro recolhe emnão poucas oportunidades esse critério. Porexemplo: nos casos do réu incapaz ou dorevel citado por edital, a lei contempla aassistência, com o objetivo de atingir-se aigualdade real entre as partes; no processopenal, o princípio da igualdade substancialse ratifica na figura processual do favor rei,no qual o interesse do acusado goza deprevalecente proteção com contraste com opoder punitivo.

Aliás, na esfera penal temos uma grandevariedade de formas processuais que con-sagram esse interesse, como a absolviçãopor insuficiência de provas, art. 386, incisoVI; os recursos privativos de defesa, arts.607 e 609, parágrafo único; a revisãocriminal somente em favor do réu, arts. 623e 626, parágrafo único, todos do EstatutoProcessual Penal.

Na esfera civil, discussão árdua temocasionado as prerrogativas da Fazenda edo Ministério Público, especialmente arespeito da dilatação do prazo concedidopelo legislador no art. 188 do Código deProcesso Civil.

Neste caso, as partes aparentemente nãolitigam em igualdade de condições. Tem-se justificado o prazo, na medida necessáriaao estabelecimento da verdadeira isono-mia, dando-se tratamento desigual aosdesiguais. À Fazenda, em virtude da com-plexidade dos serviços estatais e da neces-

sidade das formalidades burocráticas. AoMinistério Público, pela dificuldade quepode ter para recolher informações e pro-vas.59

Sérgio Ferraz, em posição que privilegiaa tese da proporcionalidade de situações,manifesta que “não há inconstitucionalida-de na dilatação do prazo, e sim em suaenormidade”.60

Em sentido contrário, José AugustoDelgado opina: “A justificação até entãoapresentada, baseada na complexidade dosserviços públicos em geral, em decorrênciada ampliação das atividades sociais e eco-nômicas do Estado, há de ceder ao postu-lado maior da Carta Magna, que nãopermite distinção de qualquer naturezaperante a lei. No caso, estabelece-se aigualdade processual substancial, não ha-vendo possibilidade do indivíduo ceder asua garantia fundamental em face de umalegado interesse público ou social, que seconflita com dogmas constitucionais. Nãohá, hoje, em face da nova visão constitu-cional, que se falar em igualdade real ouproporcional no campo processual. Ela éilimitada, absoluta, sem permissão paratratamento desigual”.61

De fato, o Supremo Tribunal Federalconsidera que o benefício do prazo recursalem dobro, outorgado às pessoas estatais,traduz uma prerrogativa processual ditadapela necessidade objetiva de preservar opróprio interesse público que não ofende opostulado da igualdade entre as partes.Assim, a norma do art. 188 do Código deProcesso Civil constitui lex generalis, quese aplica, ainda, ao procedimento do recur-so extraordinário, disciplinado pela Lei8.038/90 (STF –1.a T. –RE 181.138/SP –Rel. Min. Celso de Mello, Diário daJustiça, Seção I, 12.05.1995, p. 13.019).

No caso do Ministério Público, o Supre-mo Tribunal Federal considerou que, tendo

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(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003

em vista a natureza do órgão, que incumbeo desempenho imparcial da atividade fis-calizadora pertinente à correta aplicação dodireito objetivo, é possível que o Regimen-to Interno dos Tribunais confira a prerro-gativa do prazo ilimitado nas sustentaçõesorais (STF-Pleno – ADIn-Medida Cautelar758/RJ – Rel. Min. Celso de Mello –Diário da Justiça, Seção I, 08.04.1994, p.7.240).

Observe-se que o Supremo TribunalFederal aplica a Justiça em seu sentidoproporcional, atendendo à natureza dosórgãos e a posição que ocupam no cenárioda organização do Estado brasileiro, suafuncionalidade e necessidade.

Destarte, é compreensível a discrimina-ção quanto ao prazo, visto que, quando aFazenda age dentro de um processo, sejaautor ou réu, ou ainda em forma indireta,o resultado da lide envolve um interesse detoda a coletividade. Tenha-se em conta que,com qualquer decisão, favorável ou não aosseus interesses, haver-se-á atingido o inte-resse social. A Fazenda assume posiçãoevidentemente diferente ao particular queé sua contraparte processual.

Voltando à Defensoria Pública, um outrocaso de dilatação de prazo que chama aatenção é o concedido pelo art. 5.º da Leide Assistência Judiciária, n. 1.050/50, emdobro para praticar atos processuais e,ainda, a prerrogativa de ser intimado pes-soalmente de todos os atos processuais aodefensor. Neste caso, o suporte privilegian-te consiste em que o legislador procuraequiparar o mais possível às partes, espe-cialmente pela falta de recursos que podeconduzir a que se veja prejudicada a ob-tenção de provas em contrapartida a umadversário muitas vezes economicamentepoderoso (STJ – 3.a T. – REsp. 24.196-4-SP – Rel. Min. Waldemar Zveiter, Diárioda Justiça, Seção I, 30.11.1992, p. 22.611).

A efetividade das normas constitucio-nais de acesso ao Judiciário requer que seamplie o rol dos atendidos pela Justiça. Epara isso, há que se buscar fórmulas comas quais, partindo da isonomia material, sereformule a Constituição, discriminando noplano positivo o que já está discriminadopela realidade, no sentido de igualar ohomem comum do povo a aquele que tema oportunidade de aceder ao Judiciário.

Outros critérios de Justiça aparecem emcasos como o da prisão especial. Sobre oponto, a proporcionalidade, no sentido ou-torgado por Perelman, se reflete sob a idéiade “a cada qual segundo sua posição e a cadaqual segundo o que a lei lhe atribui”. Nessesentido, a decisão do E. STJ: “ A prisãoespecial não é uma regalia atentatória aoprincípio da isonomia jurídica, mas con-substancia providência que tem por objetivoresguardar a integridade física do preso queocupa funções de natureza pública, afastan-do-o da promiscuidade com outros detentoscomuns. Os policiais civis, cujas funçõescorrespondem àquelas exercidas pelos anti-gos guardas-civis, têm direito à prisão espe-cial, ex vi do art. 295, XI, do Código deProcesso Penal” (STJ – 6.a T – HC 3.848 –Rel. Min. Vicente Leal, Diário da Justiça,Seção I, 04.11.1996, p. 42.524).

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NOTAS

1. RAWLS, John. Uma teoria da Justiça, p.3.

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2. Ibidem, p. 5.3. PERELMAN, Chaim. Ética e direito, p.

5.4. Manifesta Perelman: “E se nos dissermos

que faz milhares de anos que todos os antago-nistas, nos conflitos públicos e privados, nasguerras, nas revoluções, nos processos, nasbrigas de interesses, declaram sempre e seempenham em provar que a justiça está do seulado, que se invoca a justiça todas as vezes quese recorre a um árbitro, perceberemos imedia-tamente a incrível multiplicidade dos sentidosque se atribuem a essa noção, e a confusãoextraordinária que é provocada por seu uso”(ibidem, p. 8-9).

5. Ibidem, p. 9-14.6. RAWLS, John. Ibidem, p. 64.7. Op. cit. p. 26.8. NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para

uma teoria do Estado de direito, p. 86 e subs.9. NALINI, José Renato. O juiz e o acesso

à Justiça, p. 24.10. Ibidem, p. 25.11. La interpretación de la Constitución, p.

207 e subs.12. Sentença de 10.11.1981. Pon: Magistra-

do Francisco Rubio Llorente. Apud GARCIA,Enrique Alonso, op. cit. p. 209.

13. MARX, Karl. Manuscritos econômicose filosóficos, p. 13.

14. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementosde teoria geral do Estado. 19. ed., p. 15.

15. Com relação à distinção entre estesdiferentes grupos de homens, temos adotado aterminologia de Karl Loewenstein, que se referea “detentores” e “destinatários” do Poder Polí-tico. Consulte-se sua Teoria de la Constitución.Outros autores se referem a “gobernantes” e“gobernados”, entre eles Maurice Duverger emInstituciones políticas y derecho constitucional.No Brasil, Celso Ribeiro Bastos assume tam-bém a terminologia de Loewenstein em seuCurso de direito constitucional,14. ed., p. 12.

16. Nesse sentido, sustentando a necessida-de de tais elementos para a visão de conjunto,consulte-se o Dicionário Crítico de Sociologiade R. Boudam e R. Broucard. Verbete: Estado,p. 205 e subs.

17. Sobre a conceitualização do regimepolítico, José Afonso da Silva expressa como

este termo não tem tratamento uniforme nadoutrina. Após citar autores de reconhecidaenvergadura, opta por aceitar as consideraçõesde um grupo de professores da Universidade deBarcelona, no sentido de que o “regime é umcomplexo estrutural de princípios e forças po-líticas que configuram determinada concepçãodo Estado e da sociedade, e que inspiram seuordenamento jurídico”. Veja-se a obra do ilustretratadista da Universidade de São Paulo, Cursode direito constitucional positivo, 10. ed. rev.,p. 123 e subs.

18. Ibidem, p. 113.19. Referindo-se a esta gama de opiniões e

propostas, Jorge Reis Novais salienta que o con-ceito de Estado de Direito, de cuja fonte o deEstado Democrático de Direito é decorrência,“surge-nos como um conceito marcadamentepolissêmico, moldando-se aos contornos que lheadvêm da aplicação a realidades substancialmen-te diferentes e recolhendo as contribuições ediferenças de perspectivas dos autores que maisprofundamente o analisaram” (op. cit., p. 12).

20. Ibidem, p. 39.21. Novais oferece uma brilhante exposição

sobre como este sistema de exercício do poder,amparado na supremacia legal e disposto destaforma, se generalizou como projeto universalburguês e com as particularidades próprias deque cada nação recebeu denominações variadas:na França e Estados Unidos, de Estado Cons-titucional, em Inglaterra, de Rule of law, naAlemanha, de Rechtsstat, o de governmentunder law em alguns Estados americanos (op.cit., p. 38-39).

22. Com razão, Carlos Roberto de SiqueiraCastro comenta que a teoria da separação dospoderes “não é teoria jurídica em essência, maspolítica, que passou a erigir-se em dogmajurídico pelos regimes constitucionalistas e anti-absolutistas, sem que atende-se todas as exigên-cias jurídicas de sujeição a uma estrita ordemlegal” (O devido processo legal e a razoabili-dade das leis na nova Constituição do Brasil,p. 233).

23. Como diz Goerge Sabine: “Esta idea era,desde luego, una de las más antiguas de la teoriapolítica. La idea de la forma mixta de gobiernoera tan vieja como Las leyes de Platão...EnInglaterra las controversias entre la corona y lostribunales del common law y entre la corona y

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el parlamento habian dado importancia concretaa la separación de poderes”. Sabine, destaforma, constata que “Probablemente no es ciertoque Montesquieu creyera posible imitar enFrancia el gobierno inglés, pero ciertamente elfamoso libro XI del Espírito de las Leyes, enel que atribuía la libertad de que gozabaInglaterra a la separación de los podres legis-lativo, ejecutivo y judicial y a la existencia defrenos y contrapesos entre esos poderes, esta-bleció esas doctrinas como dogmas del consti-tucionalismo liberal”. Consulte-se sua obra,Historia de la teoria política.

24. WEBER, Max. Política y ciencia, p. 5 esubs.

25. Considerava Montesquieu: “Llamo fa-cultad de estatuir regras el derecho de ordenarpor si mismo o de corregir aquello que fuéordenado por otro. Llamo facultad de impedirel derecho de tornar nula una resolución tomadapor cualquier otro”. Consulte-se: El espíritu delas leyes. Libro XI, CapítuloVI.

26. BARROSO, Luís Roberto. O direitoconstitucional e a efetividade de suas normas.3. ed., p. 121.

27. Loewenstein expressa que entre os ele-mentos fundamentais do Estado, a saber, adecisão política fundamental, a tarefa de execu-ção das decisões e controle político, é nesteúltimo onde “reside el fundamento de la demo-cracia” (op. cit. p. 63).

28. Nos Estados Unidos, a teoria dos “freiose contrapesos” é atribuída a Salisbury e Cuhs-man e foi acolhida de forma jurídico-positiva naConstituição do Estado de Virgínia, em 1776.Hamilton, Madison e Jai no “Federalist” davam,entretanto, corpo geral doutrinário ao que seriaposteriormente a tradição constitucional norte-americana, baseada no “ativismo” do Judiciário.Acerca da introdução da teoria dos “freios econtrapesos” no constitucionalismo norte-ame-ricano e em geral de todas as Constituições deAmérica Latina recomendamos a leitura dostextos: La Constitución de los Estados Unidos,doscientos años de Interpretación y Aplicación,de Dudley H. Bovven e Algunos Aspectos dela influencia de la Constitución de los EstadosUnidos em la protección de los derechos huma-nos en América Latina, de Hector Fix-Zamudio.Ambos textos aparecem na coletânea Constitu-

ción y democracia en América Latina, p. 119-130 e 131-168, respectivamente.

29. Novais, op. cit. p. 87.30. Ibidem, p. 88.31. Vicente Greco Filho comenta como o

processo romano, que alcançou alto grau deevolução, em suas três fases (das ações da lei,o período formulário e o da cognitio extraordinem), foi aprimorando a aplicação do direi-to, mas em nenhum momento o mecanismojudicial se estruturou no sentido de garantir apessoa contra a vontade do imperador. (Tutelaconstitucional das liberdades, p. 26).

32. As técnicas limitativas do poder, comoveremos mais adiante, precisam para configurarum Estado de Direito que o conjunto dosindivíduos obtenha um reconhecimento por simesmo como pessoa, questão desconhecidanuma sociedade escravista. Assim é o magisté-rio de Reis Novais, op. cit.

33. MIRANDA, Jorge. Manual de direitoconstitucional. p. 75.

34. Novais, op. cit. p. 24 e subs.35. Advertimos que esta posição de ser a

Carta Magna o “antecedente” das posterioresdeclarações de direitos não é pacífica. Paraalguns tratadistas não passou de outra carta defranquia, das tantas que existiam na Europa doMedievo na qual se plasmava um acordo entreo rei e a nobreza. Veja-se a posição de Novais,op. cit. p. 46.

36. GRECO FILHO, Vicente. Op. cit. p. 9.37. Referendo-se a este novo caráter, elucida

Humberto Theodoro Júnior: “As próprias regrasdo direito material a serem aplicadas deveriamser razoáveis, não arbitrárias, nem caprichosas,cabendo aos magistrados e legisladores a ado-ção de meios que tivessem um real e substancialnexo com o objetivo que se tenciona atingirsegundo o atestado da Suprema Corte, transmi-tido pela lição de Oliver Holmes” (O processocivil e a garantia constitucional do devidoprocesso legal, n. 3, p. 171). No mesmo sentido,Carlos Roberto de Siqueira Castro comenta: “odireito norte-americano foi o herdeiro dessagarantia constitucional, tendo tido o mérito deembalá-la, criá-la e fazê-la florescer com inexce-dível criatividade” (op. cit. p. 28-29).

38. Rezam a 5.a e a 14.a Emendas aprovadaspelo Congresso norte-americano:

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5.a: “No person shall be held to answer fora capital, or otherwise infamous crime, unles ona presentment or indictment of a grand jury,except in cases arinsing in the land or navalforces, or in the militia, when in actual servicein time of war or public danger; nor shall anyperson be subject for the same offense to betwice put in jeopardi of life or limb; nor shallbe compelled in any criminal case to be awitness against himself, nor be deprived of life,liberty or property, without due process of law;nor hall private property be taken for public usewithout just compensation”.

14.a: “All persons born or naturalized in theUnited States, and subject to the jurisdictionthere of, are citizens of the United States andof the State where in they reside. No state shallmake or enforce any law wich shall abridge theprivileges or immunities of citizens of theUnited States; nor shall any States deprive anyperson of life, liberty or property, without dueproces of law; nor deny to any person withinits jurisdiction the equal protection of the laws”.

39. A esse respeito Nelson Nery Junior fazresumo didático na sua obra Princípios doprocesso civil na Constituição Federal, 2. ed.,p. 28-29. Também Carlos R. S. Castro, op. cit.p. 11 e subs.

40. Sobre a ampliação de espaços de vigordo devido processo legal, Carlos R. S. Castro,ob. cit. p. 35 e subs.

41. “Tudo porque a legislação restritiva dedireitos fundamentais é por si só suspeitaexigindo um meticuloso exame judicial (stritscrutiny) ante a possibilidade, sempre presente,de eventuais e indesejáveis excessos” (Castro,op. cit. p.70-71).

42. Enrique Alonso Garcia, op. cit. p. 200.43. “O processo, como diz Couture, é por

si mesmo instrumento de tutela do direito, quese realiza através das previsões constitucionais.A Constituição pressupõe a existência do pro-cesso, como garantia da pessoa humana. Ao vero processo como garantia constitucional, funda-menta que as constituições do século XX compoucas ressalvas reconhecem a necessidade deproclamação programática de princípio do di-reito processual como necessário, no conjuntodos direitos da pessoa humana e as garantiasrespectivas.” Consulte-se a obra Processo cons-titucional, p. 125.

44. Veja-se, por exemplo, as diferentesconsagrações do devido processo legal no cons-titucionalismo latino-americano na obra, Todaslas Constituições Latinoamericanas subsidiadopela Presidência da República de Colombia soba coordenação de Fabio Lozano Simonelli.

45. Neste sentido, Vincenzo Vigoriti, Garan-zie constitucionali del processo civile, p. 30.

46. Humberto Theodoro Júnior, com apoioem Fritz Bauer, comenta: “O direito ao devidoprocesso legal compreende, além da proteçãojudiciária (direito ao processo), o direito àcompleta proteção judiciária, ou seja, a umaadequada proteção processual sempre que ne-cessitar ser ouvido em juízo. Essa garantiacorresponde a um direito fundamental emmatéria de processo. Isto se justifica, segundoo professor alemão, por outros princípios básicostambém enunciados expressamente pela Cartada República Federal da Alemanha... a) oprincípio do Estado de Direito; b) o princípioda dignidade da pessoa; c) o princípio domelhor esclarecimento da causa” (op. cit. p.177).

47. Este forma de analisar o assunto,desprendida de todo elemento “alheio” aosistema, parece-nos mais uma deturpação dopensamento de Kelsen, antes que uma seqüên-cia de seus ensinamentos. Ainda não encontra-mos no autor uma negação da possibilidade doestudo da norma do ângulo da sua efetividade.Um outro sentido faz o interesse do jurista de“garantir um conhecimento dirigido ao sistemajurídico” expressado na sua Teoria pura dodireito, p. 17.

48. ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Odireito constitucional à jurisdição. As garantiasdo cidadão na justiça, p. 38.

49. GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoriageral do processo, p. 247.

50. CALMON DE PASSOS J. J. Democra-cia, participação e processo. Participação eprocesso. Coordenação de Ada Pellegrini Gri-nover e outros, p. 86.

51. Carlos R. de S. Castro, op. cit. p. 11.52. Greco Filho, op. cit. p. 9.53. Nesse sentido, Carlos R. de S. Castro

relata a origem desta tradição, que parece sero caso Griswold v. Connecticut, julgado em1965 pelo Juiz Douglas (op. cit. p. 73).

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54. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antô-nio. Conteúdo jurídico do princípio da igual-dade, p. 23 e subs.

55. Siqueira Castro menciona a doutrina docompelling state interest, que traduz como“Teoria do interesse público imperioso” paraassinalar a faculdade dos juízes norte-america-nos para, não atendendo a norma o interessepúblico, seja barrada do sistema (op. cit. p. 156).

56. Idem, p. 157.57. Ibidem, p. 164.58. Esta é a opinião de Nelson Nery Junior,

quem manifesta: “Diferentemente da assistênciajudiciária prevista na Constituição anterior, a

assistência jurídica tem conceito mais abrangen-te e abarca a consultoria e atividade jurídicaextrajudicial em geral” (op. cit. p. 89).

59. Apresentando esta justificação favorávelao prazo concedido, pronuncia-se Edgard Sil-veira Bueno com apoio em San Tiago Dantas,Ada Pellegrini Grinover e Sérgio Ferraz, em Odireito à defesa na Constituição, p. 21.

60. FERRAZ, Sérgio. Privilégios processu-ais da Fazenda Pública e princípio da isonomia.RDP, São Paulo: RT, 53-4: 42-43 jan.-jun. 1980

61. DELGADO, José Augusto. A supremaciados princípios nas garantias processuais do cida-dão. As garantias do cidadão na Justiça, p. 74.