produto ou processo - joaquim gama

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sala preta 264 P roduto ou processo: em qual deles estará a primazia? J oaquim Gama O Joaquim Gama é mestre em Artes pela ECA-USP e professor de Teatro em escolas de Educação Básica e Superior. ptei por organizar este texto em forma de perguntas e respostas. Não há por detrás desta opção nenhuma pretensão em con- siderar as respostas como verdades únicas e fechadas. O objetivo é abrir um espaço para o questionamento e a reflexão sobre ques- tões que permeiam a polêmica entre o processo e o produto teatral. Antes de buscar convencer os leitores sobre a pertinência do assunto, gostaria que as considerações incitassem o surgimento de novas questões. Questões capazes de questi- onar o próprio conteúdo expresso por mim, de compartilhar outras experiências teatrais de su- cessos ou insucessos dentro da escola e, por fim, de mobilizar métodos que favoreçam a constru- ção de conhecimento teatral dentro de parâme- tros educacionais claros, participativos e criativos. O produto teatral deve ser encarado como algo menor, de valor insignificante para o apren- dizado artístico dos alunos? Muitos especialistas no assunto afirmam que sim. Dizem que o processo por si só, quan- do bem realizado, já determinará um produto: alunos capazes de se expressarem com desenvol- tura e com capacidade criativa. Outros educa- dores acreditam que um processo teatral vincu- lado à expectativa de um produto poderá reduzir o ensino de teatro à simples tarefa de produção de espetáculos, favorecendo os alunos mais habilidosos na arte da representação e es- tabelecendo a exclusão dos que não se sentem capazes de atuar diante de uma platéia. A polêmica entre a primazia do processo ou do produto teatral dentro de instituições es- colares pode parecer uma discussão já ultrapas- sada, uma vez que diversos autores brasileiros e estrangeiros já discutiram esta questão e muitos deles defenderam a idéia de que o teatro na es- cola deve priorizar o processo de auto-expres- são e criação dos alunos. Mas se olharmos mais atentamente para esse tema, veremos que a dicotomia existente entre o processo e o produ- to ainda não foi superada. Qual seria a origem possível da dicotomia entre o processo e o produto teatral nas escolas? Para que possamos entender melhor a os- cilação entre o processo e o produto teatral den- tro das escolas de formação básica, sugiro reto- marmos dois marcos importantes e distintos na história da educação brasileira. O primeiro de- les é o chamado Ensino Tradicional, em que a transmissão do conhecimento envolvia métodos de exposição de conteúdos feita pelo professor e a memorização por parte dos alunos. No início do século XX, o ensino da arte estava vinculado à preparação técnica para o traba- lho. As atividades tinham como objetivo preparar os jovens para os serviços artesanais, tornando-os

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PRODUTO OU PROCESSO - JOAQUIM GAMA

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P roduto ou processo : em qual de lesestará a pr imazia?

Joaquim Gama

O

Joaquim Gama é mestre em Artes pela ECA-USP e professor de Teatro em escolas de Educação Básicae Superior.

ptei por organizar este texto em forma deperguntas e respostas. Não há por detrásdesta opção nenhuma pretensão em con-siderar as respostas como verdades únicase fechadas. O objetivo é abrir um espaço

para o questionamento e a reflexão sobre ques-tões que permeiam a polêmica entre o processo eo produto teatral. Antes de buscar convencer osleitores sobre a pertinência do assunto, gostariaque as considerações incitassem o surgimentode novas questões. Questões capazes de questi-onar o próprio conteúdo expresso por mim, decompartilhar outras experiências teatrais de su-cessos ou insucessos dentro da escola e, por fim,de mobilizar métodos que favoreçam a constru-ção de conhecimento teatral dentro de parâme-tros educacionais claros, participativos e criativos.

O produto teatral deve ser encarado comoalgo menor, de valor insignificante para o apren-dizado artístico dos alunos?

Muitos especialistas no assunto afirmamque sim. Dizem que o processo por si só, quan-do bem realizado, já determinará um produto:alunos capazes de se expressarem com desenvol-tura e com capacidade criativa. Outros educa-dores acreditam que um processo teatral vincu-lado à expectativa de um produto poderáreduzir o ensino de teatro à simples tarefa deprodução de espetáculos, favorecendo os alunos

mais habilidosos na arte da representação e es-tabelecendo a exclusão dos que não se sentemcapazes de atuar diante de uma platéia.

A polêmica entre a primazia do processoou do produto teatral dentro de instituições es-colares pode parecer uma discussão já ultrapas-sada, uma vez que diversos autores brasileiros eestrangeiros já discutiram esta questão e muitosdeles defenderam a idéia de que o teatro na es-cola deve priorizar o processo de auto-expres-são e criação dos alunos. Mas se olharmos maisatentamente para esse tema, veremos que adicotomia existente entre o processo e o produ-to ainda não foi superada.

Qual seria a origem possível da dicotomiaentre o processo e o produto teatral nas escolas?

Para que possamos entender melhor a os-cilação entre o processo e o produto teatral den-tro das escolas de formação básica, sugiro reto-marmos dois marcos importantes e distintos nahistória da educação brasileira. O primeiro de-les é o chamado Ensino Tradicional, em que atransmissão do conhecimento envolvia métodosde exposição de conteúdos feita pelo professore a memorização por parte dos alunos.

No início do século XX, o ensino da arteestava vinculado à preparação técnica para o traba-lho. As atividades tinham como objetivo prepararos jovens para os serviços artesanais, tornando-os

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aptos para as funções que iriam assumir em fá-bricas ou indústrias. Os professores de arte, se-guindo os cânones da escola tradicional, enca-minhavam os conteúdos através de atividadesque seriam fixadas pela repetição e tinham porfinalidade exercitar a vista, a mão, a inteligên-cia, a memória, o gosto e o senso moral. A pre-ocupação principal dessa pedagogia era com oproduto do trabalho e para atingir esse objeti-vo, o professor tendia a considerar os conteú-dos como verdades irrefutáveis.

Nessa época, em alguns estabelecimentos,o ensino de teatro assumia a função de animarfestas comemorativas, tais como datas cívicas efestividades, sem nenhum entendimento dotexto dramático, sem nenhuma instauração deum processo que priorizasse a criação dos alu-nos ou a construção da linguagem teatral. Ge-ralmente, o trabalho era desenvolvido no espa-ço escolar, através de ensaios que deveriamatender às expectativas do professor, ou seja,tudo bem decorado e bem ensaiado para quefosse demonstrada a capacidade do docente emdesenvolver a memorização dos pequenos ato-res. Nesse tipo de trabalho, havia um esforçoconcentrado por parte dos professores em esco-lher os mais desinibidos para decorar as falas dotexto e, no momento da apresentação, não es-quecerem nenhuma das instruções dadas. Era aprimazia do produto, sem processo.

O segundo marco importante na educa-ção brasileira ocorre por volta da década de1960. Com o surgimento das escolas experi-mentais e a disseminação das propostas da Pe-dagogia Nova, oriundas da Europa e dos Esta-dos Unidos, o objetivo do ensino do teatro passaa ser o da auto-expressão.

Justifica-se a função educacional do tea-tro nos currículos através de uma visão contex-tualista, ou seja, a partir das contribuições queo ensino desta linguagem poderia dar ao equilí-brio psicológico e emocional dos alunos, auxi-liando-os na obtenção de um corpo mais expres-sivo, livre para criar e relacionar-se com o outro.

As aulas de Arte deveriam promover cam-pos abertos para que os alunos pudessem

experienciar o fazer artístico e com isso se desen-volverem como indivíduos criativos. Isto signifi-cava que o professor não deveria ensinar técni-cas de interpretação, mas libertar a criatividadedos alunos, criando um espaço propício paraque eles pudessem se expressar. Cabia ao pro-fessor estar mais próximo do aluno, atento à suarealidade social e às suas diferenças individuais.Em lugar de enfatizar o produto acabado – oespetáculo – os professores modernos deveriamdar maior importância ao processo.

A ruptura do produto, dentro das propos-tas da Pedagogia Tradicional, trouxe avanços parao teatro na educação?

Com certeza, a ruptura do aspectoexibicionista em prol do aspecto expressivo eeducacional fez com que o ensino de teatro sa-ísse do campo das atividades ligadas às festas es-colares para incorporar-se ao currículo, trazen-do uma contribuição valiosa para a educação.

Firmando a tendência da PedagogiaNova, vários autores estrangeiros passaram anortear os princípios do ensino da arte no Bra-sil. Entre eles, podemos citar John Dewey,Viktor Lowenfeld, Elliot Eisner e Herbert Read.A partir da tradução do livro de Educação pelaArte, de Herbert Read (1977), surgiu um dosmovimentos mais significativos no ensino daarte brasileira: Educação Através da Arte. Estemovimento, através de Augusto Rodrigues, deuorigem à criação da Escolinha de Arte, no Riode Janeiro, em 1948. A chamada Escolinha deArte foi estruturada nos moldes e seguindo osprincípios teóricos de Herbert Read.

A interação entre o professor e o alunopassaria a existir a partir do fazer e não da exe-cução de uma tarefa ou da transferência de co-nhecimento. A criança deveria ser estimulada atrabalhar com suas próprias potencialidades ex-pressivas, derrubando a idéia de que ela estavaali para ser artista.

Especificamente na área de teatro, po-demos citar um autor estrangeiro que, até bempouco tempo, fazia parte da bibliografia dosconcursos públicos para professores de Arte eexerceu fortes influências nos princípios

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organizadores do teatro na educação: PeterSlade. Numa versão mais condensada do que aedição inglesa, o seu livro Jogo dramático infan-til (1978) tornou-se popular entre os professo-res de teatro. Slade fundamenta suas propostaspara o ensino de teatro no jogo, na brincadeirade criança. Segundo ele, o método é fruto detrinta anos de observação de crianças jogando.

O autor afirma que, no jogo da criança,existem situações nítidas, nas quais ela desenvolveuma brincadeira teatral. Para esta brincadeira tea-tral infantil, ele cria uma nova terminologia:Jogo Dramático. Esta nova terminologia buscaassegurar uma distinção entre Drama e Teatro.

Para Slade, o Teatro como é entendidopelos adultos significa uma ocasião de entrete-nimento ordenada e uma experiência emocio-nal compartilhada; há diferenciação entre osatores e platéia. Mas a criança, enquanto aindailibada, não sente tal diferenciação, particular-mente nos primeiros anos – cada pessoa é tantoator quanto platéia. Esta é a importância da pa-lavra Drama no seu sentido original, da palavragrega drao – eu faço, eu luto... No Drama (fazere lutar), a criança descobre a vida e a si mesmaatravés de tentativas emocionais e físicas e, de-pois, por intermédio da prática educativa que éo jogo dramático.

Nas suas idéias, o professor deve promo-ver experiências emocionantes e pessoais,enfatizando as práticas de grupo. Para que ojogo dramático aconteça plenamente, é impor-tante que os alunos desenvolvam Sinceridade eAbsorção. Absorção seria estar totalmente envol-vido no que se está fazendo, com a exclusão deum auditório. A Sinceridade estaria presente nafé absoluta com que a criança está representando.

No livro O jogo dramático infantil está ex-pressa a idéia de um ensino de teatro queenfatiza o desenvolvimento mental, físico emoral das crianças, alertando os professores e ospais de que fazer peças teatrais não deve ser oobjetivo do ensino de teatro em escolas.

Quais são as críticas às propostas difundi-das e defendidas pelo ensino de teatro a partir dosprincípios da educação pela arte?

É inegável que os princípios da educaçãoatravés da arte, como os que foram apresenta-dos anteriormente, trouxeram avanços e contri-buições significativas para o ensino artístico.Porém, não podemos deixar de destacar que es-ses mesmos princípios colaboraram para a for-mulação de programas que priorizavam ativida-des de caráter espontâneo, deixando de lado,muitas vezes, a sistematização do ensino de tea-tro enquanto linguagem artística.

Toda e qualquer expressão espontânea dogrupo passou a ser aceita e valorizada pelo pro-fessor. Na maioria das vezes, com a inexistênciade uma análise crítica mais apurada sobre a bi-bliografia estrangeira, os professores passavam adesenvolver, sem adequações devidas, esses prin-cípios em sala de aula.

No ensino de teatro, procedimentos cen-tralizados na auto-expressão passaram a ser va-lorizados. Com o objetivo de auxiliar os alunosna liberação das amarras emocionais e psicoló-gicas, que alguns professores julgavam dificul-tar a expressão do indivíduo, os exercícios deexpressão corporal eram muito difundidos. Asaulas assumiam características de laboratórios,onde o grupo de alunos fechava-se em busca doaumento das suas capacidades criativas.

Na década de 1970, diversas publicaçõesnacionais também passaram a enfatizar um en-sino pautado na livre-expressão. Nessas publi-cações estão expressas técnicas de criatividade ede livre-expressão tão amplas que escapam to-talmente à especificidade do desenvolvimentode uma linguagem artística.

Se, por um lado, as novas propostas doensino de teatro romperam com as produçõesligadas às comemorações festivas e trouxeramuma atividade dramática mais viva e partici-pativa para dentro das escolas, além de mais vin-culada com a elaboração de experiências produ-zidas pelos próprios alunos, por outro lado,parecem ter sido excluídos dos planejamentosobjetivos que demonstrassem uma preocupaçãocom o ensino de teatro enquanto área de co-nhecimento humano. Esta atitude provocou adicotomia entre o processo e o produto dentro

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da sala de aula. Estabeleceu-se a primazia do pro-cesso, com a exclusão do produto.

Será possível desenvolver um aprendizadoteatral nos processos de criação e organização deuma encenação? Seria indesejável estruturar osobjetivos do ensino de teatro na construção de pro-dutos? Ao organizar o ensino de teatro em tornoda formalização de produtos, estaríamos focalizan-do o trabalho na produção de espetáculos e valori-zando o talento como pressuposto para a atuação?

A autora americana Viola Spolin dedicouboa parte dos seus livros para demonstrar quetodos são capazes de atuar no palco. Para ela, aatuação e qualquer outro elemento da linguagemteatral podem ser ensinados e aprendidos desdeque seja oferecido um espaço propício à experiên-cia criativa. Na sua concepção, isto tem muitopouco a ver com o talento ou com a falta dele.

É exatamente na possibilidade que cadaindivíduo tem para experienciar um processo eaprender a partir dele que Viola Spolin desen-volve o seu sistema de aprendizagem teatral, de-nominado Jogos Teatrais. No trabalho propos-to pela autora, podemos encontrar algumasalternativas para a construção de produtos tea-trais. Nele, a liberdade de expressão pessoal edo grupo é desenvolvida juntamente com oaprendizado da linguagem teatral.

Nos seus procedimentos, o teatro não é opretexto para o desenvolvimento do intuitivo edo espontâneo. Os alunos aprendem a lidar comos diversos elementos envolvidos na expressãoteatral. Segundo Viola, o teatro é o objeto deestudo e exige expressividade dos que almejamdesenvolvê-lo, conseqüentemente, podendotransformar esses indivíduos em seres mais es-pontâneos e criativos na vida.

Para que isto possa ocorrer plenamente,Spolin estabelece como espaço de aprendizagemo jogo. Ela observa que, no instante que o alu-no está jogando, ele está livre para envolver-se erelacionar-se com o mundo à sua volta, que so-fre freqüentes mutações, desenvolvendo umaatuação espontânea, libertando-se de estereóti-pos, de recursos técnicos que são, na realidade,descobertas de outros.

No seu entender, o jogo é, por si só, umaforma espontânea de grupo, que possibilita a li-berdade e o entrosamento, elementos funda-mentais para a experiência teatral. Ela afirmaque muitas habilidades são desenvolvidas du-rante o jogo. Ao mesmo tempo em que a pes-soa está jogando, ela está se divertindo ao máxi-mo e recebendo toda a estimulação que o jogopode oferecer.

O sistema de jogos teatrais estabelece umcampo lúdico de aprendizagem, dentro do qualos alunos são incentivados a solucionar proble-mas com inventividade e de forma original.Desde que o jogador respeite as regras que fo-ram acordadas coletivamente, ele tem liberdadepessoal para propor e inventar as mais inusita-das soluções. A liberdade pessoal, segundo Vio-la, leva o jogador a desejar experimentar e ad-quirir auto-expressão, elemento importantetambém para o teatro.

A partir dos jogos teatrais, cada grupo éincentivado a construir o seu próprio processo,encontrar as suas saídas e soluções. Nas propos-tas de Viola, as atitudes vinculadas à aprovaçãoe desaprovação estabelecidas pelo professor, nor-malmente presentes no ensino tradicional deteatro e nas posturas autoritárias de alguns dire-tores em relação à atuação do aluno ou ator, de-vem ser substituídas pela percepção de que oteatro é uma atividade de grupo que exige aenergia criadora de todos os envolvidos. Ela afir-ma que pode ser mais recompensador para oprofessor se ele construir com o seu aluno umcampo de relações onde ambos lutem porinsight pessoal. Assim sendo, o professor deixade ser o detentor do conhecimento, para agircomo orientador do processo.

Para os que acreditam que a apresentaçãode produtos teatrais dentro de instituições esco-lares acarreta inevitavelmente o exibicionismo,podemos encontrar, na sistematização de jogosteatrais, propostas que contradizem essas cren-ças. Diversos livros de Viola Spolin foram tra-duzidos no Brasil. Recentemente, foi lançadoaqui O fichário de Viola Spolin (2001). Esta pu-blicação traz diversos jogos e indicações capazes

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de estabelecer um ambiente propício para umaexperiência criativa e inspiradora, na qual o pro-cesso e a formulação de um produto tornam-se ocaminho para a aprendizagem teatral.

Para haver produtos é preciso existir um gru-po de alunos com capacidade especial para atuar?

Para os que responderiam sim, podemosmencionar Richard Courtney. Na tese deCourtney, desenvolvida em seu livro Jogo, tea-tro & pensamento (1980), o homem atua todosdias com os amigos, com a família, com os es-tranhos. Para ele, o nosso eu está escondido portrás de muitas máscaras que assumimos duranteas mais diversas relações do dia-a-dia. Richardafirma que atuar é o método pelo qual convive-mos com nosso meio.

Podemos também citar Jean Piaget. Atra-vés dos seus estudos sobre a evolução dos JogosSimbólicos no desenvolvimento da criança, épossível encontrar muitos pontos que justificama capacidade humana para criar símbolos, paraa representação. Enfim, suas pesquisas indicam-nos a gênese da atuação teatral. Se a atuação éuma capacidade inerente a todos nós, não po-deremos sistematizar um método que auxilie osalunos a desenvolverem esta habilidade tambémpara o teatro?

Mas o que pode significar o produto teatralna aprendizagem artística dos alunos?

Em 1998, iniciei a investigação dessaquestão com alunos do Ensino Médio de doiscolégios de São Paulo1. Baseado nas propostasde Viola Spolin, desenvolvi diversos experimen-tos com a intenção de conduzir o processo tea-tral à criação de encenações. Procedimentos quefazem parte da sistematização de Jogos Teatrais,como a Solução de Problemas, o Foco, a Fisicali-zação, a estrutura dramática Quem, O quê, Ondee o processo de Avaliação foram utilizados pormim, com intuito de desenvolver com os alunosdiversas formas de apresentação e compreensãodos elementos que envolvem a linguagem teatral.

Dessa forma, comecei a perceber que osalunos passaram a ser detentores de uma ma-

neira diferenciada de ver e fazer teatro. O teatrodentro da escola deixou de ser uma atividade depoucos, para ser o espaço do coletivo, capaz depropiciar um campo lúdico de criação e inves-tigação estética. O espaço do coletivo, denomi-nado por nós, alunos e equipe pedagógica, deOficinas de Teatro, deixou de ser delimitado pe-las carteiras, para passar a ser todo e qualquerespaço possível, dentro ou fora da escola. Assimsendo, nos colégios, juntamente com os alunos,trabalhamos em quadras de esporte, pátios, jar-dins e também dentro da própria sala de aula.Isso possibilitou ao grupo desvincular-se daidéia de que para existir teatro era necessáriohaver um palco à italiana. O nosso desafio foitransformar os espaços da escola em espaços derepresentação. Ao propor transformar o espaçoescolar em espaços de representação teatral, fiz umconvite explícito e cheio de significado para quetodos os envolvidos com a escola pudessemenxergá-la por um outro ângulo. O ângulo daestranheza de perceber que corpo-mente e pra-zer não precisam estar por trás das carteiras; po-deriam coexistir, sem que isso causasse qualquerameaça às regras disciplinares da escola e à qua-lidade da aprendizagem dos alunos.

A transformação e apropriação dos espa-ços de representação ocorreram a partir da ela-boração de cenas denominadas como produtospreliminares ou produtos confluentes.

Os produtos preliminares envolviam aapresentação de cenas restrita aos participantesdas oficinas de teatro. Já os produtos confluentestratavam da elaboração mais apurada das cenas,contemplando a produção de figurinos, adere-ços, maquiagem, cenografia, sonoplastia e aapresentação em diversos espaços públicos daescola, para platéias de convidados ou casuais.

A existência de uma platéia, desde o iní-cio do processo teatral do grupo, ajudou-nos acompreender o público como cúmplice de nos-sas reflexões, ao invés de tê-lo como uma amea-ça crítica ao nosso desempenho artístico. Nonosso processo de trabalho a platéia deixou de

1 Esta investigação encontra-se relatada em minha dissertação de mestrado.

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estar escondida atrás da quarta parede (princípi-os defendidos pelo teatro naturalista), para es-tar frente a frente com os alunos-atores, às vezesno mesmo espaço da cena, estabelecendo umarelação direta, um encontro importantíssimopara a avaliação das nossas propostas e para a reali-zação teatral. Outro recurso investigado pelo gru-po na criação das encenações foi a atuação emcoro. Além de possibilitar a experimentação e oestudo de alguns elementos presentes no teatroépico, ela facilitou que encontrássemos saídassatisfatórias para a distribuição de papéis entreos alunos participantes da encenação, sem comisso estar privilegiando um ou outro aluno, evi-tando justificativas pautadas no talento.

Esses processos de experimentação, assimcomo a apresentação da encenação (produto te-atral), instauraram novas necessidades de inves-tigação e desejos de realização, por parte dos alu-nos, dentro dos colégios, redirecionando aminha atuação como professor de Teatro. As-sim, a cada ano, as Oficinas de Teatro são ali-mentadas e reorientadas, articulando o conhe-cimento com a realidade e as expectativas deaprendizagem dos alunos. Buscamos instaurarna escola um processo contínuo de experimen-tação e investigação coletiva, objetivando tor-nar as oficinas um espaço aberto não só para osalunos e para o aprendizado artístico, mas paratodos que desejarem compartilhar e ajudar-nosnessa tarefa.

É possível afirmarmos que o processo e o pro-duto podem se inter-relacionar de modo fértil noensino de teatro dentro da escola?

Como podemos perceber, o caminhopara uma experiência teatral rica e viva pode es-tar também contida na perspectiva e na criaçãode produto teatral. O receio de encaminhar oensino de teatro para a elaboração de produtosteatrais, em escolas de formação básica, poderáser minimizado a partir das discussões que fo-ram estabelecidas neste artigo.

Não se trata de optar pela primazia doprocesso em detrimento do produto ou vice-ver-sa, e sim pela escolha de métodos que favore-çam a construção do conhecimento teatral dentrode parâmetros educacionais claros, participa-tivos e criativos.

A concepção moderna do ensino da Artena escola propõe que o Teatro seja encaradocomo área específica do conhecimento huma-no e não como uma simples atividade que ve-nha a preencher os momentos sociais e de lazerda escola. Dessa forma, processos e produtos tor-nar-se-ão não dicotomizados, gerando processosinvestigativos que possibilitarão aos alunos e aosprofessores uma compreensão maior dos ele-mentos envolvidos na Arte Teatral.

Uma citação de Brecht sintetiza de modoespecialmente feliz a direção que procuramosimprimir ao trabalho realizado: “necessitamos deum teatro que não nos proporcione somente assensações, as idéias e os impulsos que são permiti-dos pelo respectivo contexto histórico das relaçõeshumanas (o contexto em que as ações se reali-zam), mas sim que empregue pensamentos esentimentos que desempenhem um papel na mo-dificação desse contexto” (Brecht, 1978, p. 113).

Referências bibliográficas

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. São Paulo: Nova Fronteira, 1978.

COURTNEY, Richard. Jogo, teatro & pensamento. São Paulo: Perspectiva, 1980.

READ, Herbert. Educação pela arte. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

SLADE, Peter. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978.

SPOLIN, Viola. Jogos teatrais: o fichário de Viola Spolin. São Paulo: Perspectiva, 2001.