programa saúde da família no brasil - uma agenda incompleta

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DEBATE DEBATE 1325 1 Núcleo de Estudos de Saúde Pública, Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares, UnB. SCLN 406, Bl. A, Sala 223. 70847-510 Brasília DF. [email protected] Programa Saúde da Família no Brasil: uma agenda incompleta? Family Health Program in Brazil: an incomplete agenda? Resumo Este artigo trata de uma análise longitudi- nal da experiência brasileira com o Programa Saúde da Família (PSF), ao longo dos doze anos da sua implantação e implementação. Toma como ponto de partida o propósito fundamental desta estratégia, que é a reorganização da atenção básica de saúde, con- textualizando à luz da experiência que é única e peculiar ao Sistema Único de Saúde (SUS). Eviden- cia os avanços e desafios do PSF, apontando nesse sentido as necessidades mais urgentes em termos de incorporação tecnológica, formação da força de tra- balho, estabelecimento de novos mecanismos e pac- tos em torno do financiamento da atenção básica e encaminhamento de novas estratégias e tecnologias nos processos de monitoramento e avaliação. Finali- za apontando elementos para subsidiar um debate sobre as questões em pauta, o qual deve ser perma- nente e lúcido na perspectiva da construção do SUS e do direito à saúde. Palavras-chave Atenção primária, Atenção bási- ca, Saúde da Família, Sistema Único de Saúde Abstract The present article is a longitudinal anal- ysis of the Brazilian experience with the Family Health Program (PSF) throughout its 12 years of implementation. The article starts with the funda- mental purpose of such strategy which is the reorga- nization of Basic Health Care, contextualizing in the light of this unique and peculiar experience to the Brazilian Unified Health System (SUS). It hi- ghlights the progresses and challenges of the PSF, in- dicating urgent needs regarding technological in- corporation, formation of labor force, establishment of new mechanisms as well as agreements on basic care funds and the direction of new strategies and technologies in the process of monitoring and evalu- ation. To conclude, the article shows the elements to foster a debate about such questions, which must be permanent and lucid in the perspective of building the Brazilian Unified Health System and the right to health. Key words Primary care, Basic Care, Family Heal- th, Brazilian Unified Health System Maria Fátima de Sousa 1 Edgar Merchán Hamann 1

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1 Núcleo de Estudos deSaúde Pública, Centro deEstudos AvançadosMultidisciplinares, UnB.SCLN 406, Bl. A, Sala 223.70847-510 Brasília [email protected]

Programa Saúde da Família no Brasil: uma agenda incompleta?

Family Health Program in Brazil: an incomplete agenda?

Resumo Este artigo trata de uma análise longitudi-nal da experiência brasileira com o Programa Saúdeda Família (PSF), ao longo dos doze anos da suaimplantação e implementação. Toma como ponto departida o propósito fundamental desta estratégia, queé a reorganização da atenção básica de saúde, con-textualizando à luz da experiência que é única epeculiar ao Sistema Único de Saúde (SUS). Eviden-cia os avanços e desafios do PSF, apontando nessesentido as necessidades mais urgentes em termos deincorporação tecnológica, formação da força de tra-balho, estabelecimento de novos mecanismos e pac-tos em torno do financiamento da atenção básica eencaminhamento de novas estratégias e tecnologiasnos processos de monitoramento e avaliação. Finali-za apontando elementos para subsidiar um debatesobre as questões em pauta, o qual deve ser perma-nente e lúcido na perspectiva da construção do SUS edo direito à saúde.Palavras-chave Atenção primária, Atenção bási-ca, Saúde da Família, Sistema Único de Saúde

Abstract The present article is a longitudinal anal-ysis of the Brazilian experience with the FamilyHealth Program (PSF) throughout its 12 years ofimplementation. The article starts with the funda-mental purpose of such strategy which is the reorga-nization of Basic Health Care, contextualizing inthe light of this unique and peculiar experience tothe Brazilian Unified Health System (SUS). It hi-ghlights the progresses and challenges of the PSF, in-dicating urgent needs regarding technological in-corporation, formation of labor force, establishmentof new mechanisms as well as agreements on basiccare funds and the direction of new strategies andtechnologies in the process of monitoring and evalu-ation. To conclude, the article shows the elements tofoster a debate about such questions, which must bepermanent and lucid in the perspective of buildingthe Brazilian Unified Health System and the rightto health.Key words Primary care, Basic Care, Family Heal-th, Brazilian Unified Health System

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Introdução

O objetivo deste artigo é analisar o Programa deSaúde da Família (PSF), uma experiência brasileira,que ao longo dos dez anos da sua implantação eimplementação, vem constituindo-se como umaestratégia para a reorganização da atenção básica àsaúde.

Criado em março de 1994 como um progra-ma, uma década depois de sua implantação e fun-cionamento, o PSF evoluiu dessa condição e vemassumindo o status de uma política nacional queconta com 26.100 equipes de saúde da família, àsquais se vinculam 216.055 agentes comunitáriosde saúde que prestam assistência a 83,8 milhões depessoas em 5.274 municípios brasileiros1.

Como um componente constituinte do Siste-ma Único de Saúde (SUS), o PSF configura as di-mensões das práticas de saúde características dasociedade brasileira em termos territoriais, popu-lacionais e das ações desenvolvidas nesses territó-rios. Ademais, constitui uma das resultantes dasmobilizações que caracterizaram esta mesma soci-edade na construção do direito à saúde ao longo demais de quatro décadas. A saúde como um direito,portanto, não é um objeto de estudo recente noBrasil, haja vista a presença histórica de atores so-ciais como o Movimento Sanitário Brasileiro e ocampo da Saúde Coletiva, que viabilizaram a cons-tituição de sujeitos ao longo dessas décadas. Estesatores configuraram no campo da saúde uma prá-tica social com plena expressividade das suas di-mensões técnicas, políticas e ideológicas, ao ritmodo processo de democratização da sociedade brasi-leira. As experiências desenvolvidas em municípioscomo Montes Claros (MG), Londrina (PR), Cam-pinas (SP) e outros2-5 revelam a possibilidade dequestionar, na prática, a concepção da saúde restri-ta à dimensão médico-assistencial. Seguramente asexperiências destes municípios alicerçaram as basesconceituais, técnicas e ideológicas do desenho emescala nacional do Programa de Agentes Comuni-tários de Saúde (PACS) e do Programa de Saúde daFamília (PSF) que vêm sendo implantadas no Bra-sil desde 1991 e 1994, respectivamente.

Em outras palavras, estas estratégias nascem noacirramento da crise estrutural do setor saúde nopaís, vivenciada pela população brasileira, que pormuitas décadas sente o distanciamento entre seusdireitos garantidos em leis6-8 e a capacidade efetivado Estado de ofertar as ações e serviços públicos desaúde, o mais perto possível dos territórios sócio-sanitários dos indivíduos, famílias e comunidades.

Tal realidade impulsionou em diferentes con-junturas e governos, ao longo dos últimos doze

anos, a conjugação de esforços para reunir as ca-pacidades nacionais (gestores públicos do SistemaÚnico de Saúde, professores, pesquisadores, cor-porações, outros) em torno de uma agenda pactu-ada e integrada para responder às demandas dapopulação como condição essencial ao enfrenta-mento da crise paradigmática do modelo clássicode atenção à saúde no Brasil, com foco na atençãobásica. E que a atenção básica seja o primeiro con-tato de um modelo de atenção longitudinalmentefocalizado na família, com orientações comunitá-rias, coordenado e integrado sistemicamente9, paraque neste nível a atenção à saúde seja de alta quali-dade, efetiva e equitativa.

Trabalhar com modelo de atenção à saúde vol-tado à comunidade não é tarefa simples, pois exigeum olhar voltado para os grupos sociais específi-cos, supõe um rompimento dos muros dos servi-ços de saúde e, sobretudo, um alto grau de com-plexidade do conhecimento. No dizer de Mendes10,as tecnologias empregadas na atenção básica sãode menor densidade e maior complexidade, umavez que se utilizam, por um lado, recursos de baixocusto no que se refere a equipamentos diagnósti-cos e apoios terapêuticos; por outro lado, incor-poram instrumentos tecnológicos advindos dasCiências Sociais (Antropologia, Sociologia e His-tória) e Humanas (Economia, Geografia, etc.) nacompreensão do processo saúde-doença e na in-tervenção coletiva e individual.

Atenção primária e atenção básica à saúde

O termo atenção básica à saúde é pouco encontra-do na literatura mundial. O conceito usual paraeste campo de práticas é atenção primária à saúde,como decorrência do pacto mundial realizado em1978, na cidade de Alma-Ata (República de Caza-quistão), na antiga União Soviética (URSS), ondediversos países participaram da Conferência In-ternacional de Cuidados Primários de Saúde e afir-maram compromissos com a meta de “saúde paratodos no ano 2000”, constituindo assim a Declara-ção de Alma-Ata.

Tal evento apontava também para a atençãoprimária como sendo composta de cuidados es-senciais de saúde baseados em métodos e tecnolo-gias práticas, cientificamente bem fundamentadose socialmente aceitáveis, colocados ao alcance uni-versal de indivíduos e famílias da comunidade,mediante sua plena participação.

Reforçava, para tanto, a saúde como sendo nãoa simples ausência de doença, mas como o “estadode completo bem-estar físico, mental e social”, tra-

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zendo para o âmbito formal e internacional aquiloque Marc Lalonde, ministro da Saúde do Canadá,já vinha apontando como os componentes bási-cos para a abordagem da saúde dos povos: “a bio-logia humana, o meio ambiente, o estilo de vida e aorganização da atenção à saúde”11. Em síntese,pode-se afirmar que o pensamento da atençãoprimária no mundo apresenta-se com vários sen-tidos desde o primeiro nível de atenção, passandopela idéia de um tipo de serviços, uma filosofia deatendimento, até uma estratégia de organizaçãodos sistemas de saúde.

No caso brasileiro, o termo atenção básica sig-nifica o primeiro nível de atenção à saúde e susten-ta-se no princípio da integralidade, compreendidocomo a articulação de ações de promoção da saú-de e prevenção, tratamento e reabilitação de doen-ças e agravos. É, portanto, uma formulação típicado SUS, que deixa claro os seus princípios e suasdiretrizes organizativas e é incorporado pela es-tratégia do PSF, a qual, a partir de sua criação,materializa uma forma de pensar e agir na cons-trução de um novo modelo de atenção à saúde dosindivíduos, famílias e comunidades.

Nesta direção, após quatro anos de implanta-ção do PSF, o Ministério da Saúde, por intermédioda Secretaria de Assistência à Saúde/Coordenaçãoda Atenção Básica, impulsionou o debate, com aresponsabilidade técnica-política de pactuar entreas três instâncias de governos (gestores do SUS)suas competências neste nível de atenção. Esta ini-ciativa resulta na publicação da Portaria no 3.92512.Assim, no ano seguinte, o manual foi lançadocomo resultado de um pacto tripartite, firmandocom isto o conceito da atenção básica, definidocomo um conjunto de ações, de caráter individualou coletivo, situadas no primeiro nível de atençãodos sistemas de saúde, voltado para a promoçãoda saúde, prevenção de agravos, tratamento e rea-bilitação. A ampliação desse conceito se torna ne-cessária para avançar na direção de um sistema desaúde centrado na qualidade de vida das pessoas ede seu meio ambiente.

Passados oito anos e considerando a necessi-dade de revisar e adequar as normas nacionais aoatual momento do desenvolvimento da atençãobásica no Brasil, o Ministério da Saúde aprova aPolítica Nacional de Atenção Básica13, estabelecen-do a revisão de diretrizes e normas para a organi-zação da atenção básica para o Programa Saúdeda Família (PSF) e o Programa Agente Comunitá-rios de Saúde (PACS), em que reafirma o conceitoda atenção básica e explicita que a mesma deve serdesenvolvida por meio do exercício de práticas ge-renciais e sanitárias democráticas e participativas,

sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a po-pulações de territórios bem delimitados. E, ainda,que se devem utilizar tecnologias de elevada com-plexidade e baixa densidade, de forma a resolveros problemas de saúde de maior frequência e rele-vância em seu território.

Isto posto, pode-se afirmar, seja no cenáriointernacional ou nacional, que o conceito de aten-ção primária e/ou atenção básica se dirige para umponto comum, em que seus princípios e diretrizesgerais, de caráter planetário, têm sido nestas últi-mas décadas o balizador da formulação de estra-tégias para a construção de um novo modelo deatenção à saúde, cujas bases se sustentam em prá-ticas cuidadosas, resolutivas e qualificadas. Por-tanto, suas diferenças dar-se-ão na medida da es-pecificidade sócio-cultural e política de cada naçãoe serão pautadas pelas relações que se estabelecementre Estado e sociedade em cada contexto.

PSF: a estratégia políticapara reorganizar a atenção básica

O Programa de Saúde da Família, desde sua ori-gem, foi concebido como uma estratégia para areorganização e fortalecimento da atenção básicacomo o primeiro nível de atenção à saúde no SUS,mediante a ampliação do acesso, a qualificação e areorientação das práticas de saúde.

O caráter substitutivo do PSF em relação à“atenção básica tradicional” orienta-se pelos se-guintes princípios: 1) adscrição de clientela; 2) ter-ritorialização; 3) diagnóstico da situação de saúdeda população e 4) planejamento baseado na reali-dade local. A adscrição da clientela refere-se aonovo vínculo que se estabelece de modo perma-nente entre os grupos sociais, as equipes e as uni-dades de saúde. A territorialização aponta para arelação precisa que se estabelece mediante a defini-ção do território e da população, o que implica omapeamento e a segmentação da população porterritório. O diagnóstico da situação de saúde dapopulação permite a análise da situação de saúdedo território, mediante cadastramento das famíli-as e dos indivíduos e a geração de dados. O plane-jamento baseado na realidade local viabiliza a pro-gramação de atividades orientada segundo critéri-os de risco à saúde, priorizando solução dos pro-blemas em articulação permanente com os indiví-duos, famílias e comunidades.

As características do processo de trabalho dasequipes multiprofissionais compostas por, no mí-nimo, médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagemou técnico de enfermagem e agentes comunitários

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de saúde, responsáveis por cuidarem em média de3.000 habitantes, com jornada de trabalho de qua-renta horas semanais, passam, necessariamente,pela interdisciplinaridade, vinculação, competên-cia cultural, intersetorialidade e fortalecimento deuma gestão local que deve ser participativa/demo-crática. Passam, sobretudo, pela singularidade dapresença dos agentes comunitários em saúde naequipe. A intenção é que a conversão do modelofaça a diferença na forma de pensar e de fazer nocotidiano, a saúde das famílias, tanto nos aspectosda promoção, prevenção, recuperação e reabilita-ção de doenças e agravos.

Segundo Campos et al.14 , o PSF no Brasil, mes-mo baseado nas idéias de atenção primária, pre-venção de doenças e promoção da saúde aceitasinternacionalmente, é original e inédito em sua con-cepção, não havendo registro de modelos seme-lhantes em outros países. Diferentemente da me-dicina familiar vigente em vários países da Europa,no Canadá e na Oceania, o PSF pressupõe o traba-lho multiprofissional e em equipe como processobásico para a integralidade do cuidado na atençãoprimária à saúde.

Nesta direção, a Portaria n° 648, de 28 de mar-ço de 2006, reforça os objetivos do PSF, quandoexplicita, mais uma vez, suas responsabilidadessanitárias no conjunto do sistema: (a) possibilitaro acesso universal e contínuo a serviços de saúdede qualidade e resolutivos, caracterizados como aporta de entrada preferencial do sistema de saúde,com território adscrito de forma a permitir o pla-nejamento e a programação descentralizada, e emconsonância com o princípio da equidade; (b) efe-tivar a integralidade em seus vários aspectos, a sa-ber: integração de ações programáticas e demandaespontânea; articulação das ações de promoção àsaúde, prevenção de agravos, vigilância à saúde,tratamento e reabilitação, trabalho de forma in-terdisciplinar e em equipe, e coordenação do cui-dado na rede de serviços; (c) desenvolver relaçõesde vínculo e responsabilização entre as equipes e apopulação adscrita, garantindo a continuidade dasações de saúde e a longitudinalidade do cuidado;(d) valorizar os profissionais de saúde por meiodo estímulo e do acompanhamento constante desua formação e capacitação; (e) realizar avaliaçãoe acompanhamento sistemático dos resultados al-cançados, como parte do processo de planejamen-to e programação; e (f) estimular a participaçãopopular e o controle social.

Para Teixeira15, com a reafirmação desses obje-tivos, o PSF deixa de ser um programa que opera-cionalizava uma política de focalização da atençãobásica em populações excluídas do consumo de

serviços para ser considerado uma estratégia demudança do modelo de atenção à saúde no SUS,na verdade, o instrumento de uma política de uni-versalização da cobertura da atenção básica, e, por-tanto, um espaço de reorganização do processo detrabalho em saúde nesse nível. Com essa condi-ção, o PSF entra no cenário nacional, após seisanos de constituição do SUS, e nesse contexto emer-gem as discussões em torno do modelo de atençãoà saúde, ocupando um espaço de maior destaque,até então concedido para as questões relativas aofinanciamento, à descentralização e à participaçãosocial.

Deve-se reconhecer que, por um lado, a con-juntura era favorável para discussão de novas for-mas de organização de serviço, tendo no PSF suabase estruturante; por outro, estávamos em plenadécada de noventa, marco das políticas neoliberaisna América Latina e no Brasil. Esse cenário fez comque alguns autores considerados importantes nomovimento sanitário brasileiro julgassem ser o PSFum programa pontual, “pacote básico” de assis-tência à saúde, cujas bases se sustentavam em umprojeto-piloto centrado no médico, direcionado àclientela específica e focalizado em regiões pobres.

Na questão da focalização ou universalização,compartilhamos da compreensão de outros auto-res quando vêem na universalização o princípio éti-co básico, consistindo em garantir a todos os cida-dãos, independentemente de gênero, etnia, nível derenda, vinculação de trabalho ou nível de risco, osdireitos sociais fundamentais, em quantidade e qua-lidade compatíveis com o grau de desenvolvimentode uma determinada sociedade. A universalizaçãonão é contrária ao estabelecimento de critérios deseletividade ou focalização, desde que a seletividadeou a focalização estejam subordinadas a uma polí-tica geral de universalização. Assim, mesmo a sele-tividade pode ser utilizada como um instrumentode política social, mas não pode converter-se napolítica social, porque nesse caso estaria quebran-do o princípio da universalização.

Viana e Dal Poz16 têm posições próximas e di-zem: [...] experiências de focalização dentro do uni-versalismo evidenciam que se pode ter práticas foca-lizadas dentro de uma política universal e não hánecessariamente conflito entre focalização e univer-salização. Pode-se afirmar que há uma convergên-cia entre os posicionamentos desses autores e nós,quando entendemos ser o PSF uma estratégia po-lítica que vem ao longo dos doze anos de implan-tação, e implementação, contribuindo para a di-minuição das iniquidades, sobretudo para a am-pliação do acesso aos serviços básicos de saúde evinculação das equipes junto aos indivíduos, fa-

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mílias e comunidades, na complexa tarefa de cui-dar da vida, saúde, doença, sofrimento e morte.

Nesse sentido, cabe reconhecer na trajetória doPSF alguns avanços, apontando para o enfrenta-mento dos desafios atuais. Portanto, merecem des-taque, ainda que no limite desse artigo, com vistaao aprofundamento futuro, as seguintes questões:a expansão da cobertura do PSF para os grandescentros urbanos; a co-responsabilidade do finan-ciamento da atenção básica/PSF; a política de ca-pacitação, formação e educação permanente parao pessoal do Saúde da Família; todas entrelaçadaspela necessidade de um maior investimento na pro-dução e inovação tecnológica aplicada aos proces-sos de monitoramento e avaliação dos resultadosdos processos organizativos das Unidades Básicasde Saúde que operaram na lógica dessa estratégia.

A expansão da cobertura do PSFpara os grandes centros urbanos

O movimento de expansão do PSF demonstra umaprogressiva adesão dos gestores municipais e esta-duais, sobretudo no co-financiamento, por meiode criação de incentivos estaduais, o que não se viaem 1994, ano de sua implantação. Naquela época,somente doze estados da federação aderiram a essainiciativa (Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco,Sergipe, Pará, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro,São Paulo, Paraná e Santa Catarina), e doze muni-cípios, considerados pioneiros: Bragança (PA),Campina Grande (PB), Neópolis (SE), Quixadá(CE), Goiânia e Planaltina de Goiás (GO), Juiz deFora e Além Paraíba (MG), Niterói (RJ), Curitiba(PR), Joinville e Criciúma (SC). A decisão política edeterminação técnica desses municípios fizeram comque, ao final de 1994, o PSF estivesse presente em 55cidades brasileiras com 328 equipes atuando.

O marco de sua expansão ocorreu no ano de1998, como resultado da mudança do financia-mento com a implantação do Piso da Atenção Bá-sica (PAB), em 1997. Posteriormente, foi reforçadapela renovação dos gestores locais de saúde em2001 e o início das negociações em torno do Pactoda Atenção Básica. Ao final daquele ano, o PSFencontrava-se implantado em 1.134 municípios.No ano que antecede a implantação do PAB, a co-bertura era de 5.599,350 milhões de pessoas, o querepresentava 3,5% da população brasileira, distri-buída em municípios de pequeno porte – entre 10e 20 mil habitantes – e médio porte – abaixo de 50mil habitantes, evidenciando uma baixa adesão dosmunicípios de grande porte.

Ao longo dos doze anos de implantação dessa

estratégia, o número de equipes vem expandindo-se progressivamente e, segundo dados do Sistemade Informação da Atenção Básica (SIAB), atual-mente são 26.259, que cuidam diariamente, em di-ferentes espaços do território brasileiro, de 84,2milhões de pessoas em 5.100 municípios, repre-sentando 45% do total da população. No país,conta-se com a presença de 217.117 agentes comu-nitários de saúde, em 5.274 municípios, os quaisvisitam, em média, uma vez ao mês, 108,9 milhõesde pessoas, 58,5% da população brasileira, popu-lação esta excluída historicamente do acesso aosbens de serviços e ações do setor saúde.

Ainda que reconhecendo a expansão progres-siva das equipes de saúde da família nos municípi-os de todas as regiões do país, verifica-se uma de-sigualdade na cobertura do PSF entre as regiões enos chamados grandes centros urbanos (municí-pios acima de 100 mil habitantes, e capitais), ondemais de 50% da população brasileira residem. Por-tanto, nas capitais, salta aos olhos a baixa cober-tura das equipes do PSF.

A Tabela 1 mostra a desigualdade já mencio-nada no texto, sobretudo nos municípios de Ma-naus, Salvador, Fortaleza, Belém, Curitiba, Rio deJaneiro, Porto Alegre, São Paulo e Brasília/DistritoFederal, cidades que concentram o maior númerode pessoas, entre as demais capitais.

Essas desigualdades resultam das dificuldadesjá verificadas na implementação do PSF em muni-cípios de pequeno e médio porte, que são potenci-almente agravadas nas grandes cidades e metró-poles. Consideram-se nestas grandes cidades fato-res contribuintes para a não implantação do PSF,tais como os altos níveis de exclusão no acesso aosserviços de saúde, os agravos de saúde característi-cos dos grandes centros, a oferta consolidada deuma rede assistencial desarticulada e mal distribu-ída, a predominância da modalidade tradicionalde atendimento à demanda e de programas verti-calizados sem estabelecimento de vínculos com acomunidade do seu território17.

Vários autores assinalam a obtenção de boaspráticas por parte das equipes do PSF, sobretudonos municípios de pequeno porte (Teixeira, Sousa,inter alia). Porém, muitas vezes estas práticas apre-sentam-se limitadas para a oferta de atenção inte-gral face à ausência de uma rede regionalizada dereferência e contra-referência de serviços assisten-ciais. Logo, não alteram substantivamente a lógicaorganizativa dos serviços e sistemas locais de saúde,predominando com isto o modelo clássico de assis-tência a doenças em suas demandas espontâneas,sustentadas no tripé do médico (consultas, apoiodiagnóstico), equipamentos e medicamentos.

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Para análise dessa situação, Teixeira18 nos insti-ga sobre a pertinência de expandir essa estratégiapara os municípios acima de 100.000 habitantes,da mesma forma como vem sendo implementadanos demais. Nesses novos espaços-territórios, oPSF passa a concorrer fortemente com as práticasassistenciais médico-curativas, o que provoca ten-são e resistência de atores envolvidos na manuten-ção do modelo hegemônico.

Adiciona-se a esse quadro a disputa político-partidária entre estados e municípios, quando suasgestões estão sob o comando de partidos políticoscontrários. Nesses cenários, as resistências e opo-sição corporativa e ideológica se ampliam, tam-bém, quando as cidades contam com uma redefísica instalada centralizada nos hospitais e ambu-latórios de subespecialidades. Outros fatores quecontribuem para o acirramento dessas resistênci-as residem em recursos de apoio diagnóstico e te-rapêutico concentrados na região central, as agen-das que transcendem as ações e serviços específi-

cos de saúde, a exemplo da violência em suas maisdiferentes matrizes, o subfinanciamento no âmbi-to da atenção básica/PSF, limitando o co-financia-mento da nesse nível de atenção, aspecto que seráanalisado a seguir.

A co-responsabilidade do financiamentoda atenção básica/PSF

Historicamente, o Ministério da Saúde vem finan-ciando o setor com gasto na doença, onde as açõescurativas tomam primazia em detrimento dasações de prevenção e promoção da saúde. Porém,a presença efetiva do PSF em todas as UnidadesFederadas e em 5.100 municípios como políticanacional para organizar a atenção básica à saúdetem induzido a inversão da lógica vigente do fi-nanciamento neste setor.

Uma investida marcante com essa finalidade nabusca de novas formas de financiamento ocorreu

Tabela 1. Número de equipes do PSF nas capitais e cobertura populacional, 2006.

UF

ACALAAPBACEDFESGOMAMGMSMTPAPBPEPIPRRJRNRORRRSSCSESPTOTotal

Município

Rio BrancoMaceióManausMacapáSalvadorFortalezaBrasíliaVitóriaGoiâniaSão LuísBelo HorizonteCampo GrandeCuiabáBelémJoão PessoaRecifeTeresinaCuritibaRio de JaneiroNatalPorto VelhoBoa VistaPorto AlegreFlorianópolisAracajuSão PauloPalmas

População309.731

309.731 1.648.218 356.228 2.673.560 2.374.944 2.334.322 313.312 1.201.006 980.926 2.375.329 750.424 536.000 1.406.355 660.798 1.501.008 791.341 1.757.904 6.094.183 778.040 382.093 249.903 1.428.696 396.778 498.619 10.927.985 208.79343.840.181

Nº Equipes do PSF40

40130

31125202

4251

11889

504483082

172216211141115104

28539078

128818

393.757

População Coberta138.000

138.000 448.500 106.950 431.250 696.900 144.900 175.950 407.100 307.050 1.738.800 165.600 103.500 282.900 593.400 745.200 727.950 486.450 396.750 358.800 96.600

182.850 310.500 269.100 441.600 2.822.100 134.55012.961.650

Cobertura %44,6

44,6 27,2 30,0 16,1 29,3 6,2 56,2 35,5 31,3 73,2 22,1 19,3 20,1 89,8 49,6 92,0 30,6 6,5 46,1 25,3 73,2 21,7 67,8 88,6 25,8 64,429,6

Fonte: Dados do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), agosto de 2006.

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em 1998, quando criou-se o Piso da Atenção Básica(PAB), o qual possibilitou a transferência de recur-sos calculados em base per capita diretamente aosmunicípios, acrescendo valores de incentivos finan-ceiros vinculados ao número de agentes comunitá-rios de saúde ou de equipes de saúde da famíliaexistentes em cada cidade. Diante desses compro-missos, nos últimos anos, em consonância com omovimento do Governo Federal, também as Secre-tarias de Estado da Saúde têm, de forma tímida,propiciado incentivos à instalação do PSF, aindaque utilizando diferentes critérios de repasse19.

Sabe-se que os resultados no esforço de co-fi-nanciamento não podem ser gerados imediatamen-te, mas já se pode mensurar o seu impacto em al-guns estados e municípios. No caso do GovernoFederal, percebem-se alguns movimentos que avan-çam nesta direção, a exemplo da criação do financi-amento da atenção básica – Teto Financeiro do Blocoda Atenção Básica. Constituído pelo somatório daspartes fixa e variável do Piso da Atenção Básica, estemecanismo de financiamento foi estabelecido nasdiretrizes dos Pactos pela Vida e de Gestão20.

Além da definição do teto do financiamento,outros investimentos são direcionados aos muni-cípios com mais de 100 mil habitantes, por meiodo Projeto de Expansão e Consolidação do Pro-grama Saúde da Família (PROESF), co-financia-do pelo Banco Internacional para a Reconstruçãoe o Desenvolvimento (BIRD), voltado para a or-ganização e o fortalecimento da atenção básica àsaúde no país. Esse investimento é considerado no

texto de Heimann e Mendonça21 como uma fasede consolidação e expansão planejada do PSF.

As autoras revisam a emergência, o foco e osobjetivos do PROESF, com destaque para a im-portância do PSF enquanto estratégia política naconversão do modelo de atenção à saúde. Afir-mam que os recursos destinados pelo BIRD novalor de US$ 275 bilhões de dólares, com igual va-lor de contraparte do governo brasileiro, ampliamo potencial da implantação do PSF, mesmo emáreas que já tenham oferta de serviços de saúde deoutro tipo.

Ressalta-se, novamente, que apesar de reconhe-cer os esforços na ampliação dos recursos destina-dos à atenção básica, Estratégia de Saúde da Famí-lia, o modelo atual de financiamento, PAB (fixo evariável), não consegue modificar os critérios dedistribuição do incentivo federal, principalmente,para os municípios com população acima de 100mil habitantes, que somam 261, no país22. Dificul-ta-se, com isso, a conversão do modelo e o alcancedas coberturas almejadas, que correspondem a ummínimo de 70%, segundo preconiza o PROESF.

Nesse sentido, o Gráfico 1 demonstra que hou-ve um incremento no repasse dos recursos fede-rais do SUS, ao longo dos seis últimos anos, paraapoiar os municípios, na responsabilidade de ges-tor local, na implantação e consolidação da Estra-tégia de Saúde da Família por meio da expansão equalificação da atenção básica.

Tal progressão ascendente é visível, tanto nastransferências do PAB fixo, hoje na ordem de R$

Gráfico 1. Evolução dos recursos financeiros da atenção básica. Brasil, 2000-2006.(*): Orçamento.Fonte: Fundo Nacional de Saúde.

2006*

3.248,5

2.470,3

2005

2.679,2

2.335,1

2004

2.191,0

2.134,5

2003

1.662,8

1.902,9

2002

1.270,5

1.766,8

2001

898,90

1.744,9

2000

651,90

1.562,0

Variável

Fixo

0

2.0000

4.0000

6.0000

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2,4 bilhões, quanto no variável, destinado ao PSF,na ordem de R$ 3,2 bilhões, ainda que muito dis-tante dos valores aplicados na média e alta com-plexidade, que foram de R$ 17,2 bilhões, segundodados do Fundo Nacional de Saúde para julho de2006. Isto não significa que os recursos para umapolítica universal e integral não continuem insufi-cientes com o orçamento recorde de R$ 40 bilhões.

O que é interessante frisar é que a maior partedos municípios utiliza, para o custeio das ações eserviços ofertados pelas unidades básicas de saúdeda família, todo o recurso do PAB (fixo e variável).Isto porque os recursos transferidos através doincentivo federal não são suficientes para manteras equipes do PSF funcionando. Logo, diante dospequenos valores repassados para o PSF, os mu-nicípios têm destinado recursos próprios adicio-nais. Porém, essa fonte de recursos tem se apresen-tado problemática porque a crise das finanças mu-nicipais cria barreiras ao gasto com saúde, em ge-ral, e à atenção básica/PSF, em particular.

Assim, em um país em que os municípios têmalto nível de desigualdade de renda e de recursospróprios, pode-se dizer que os incentivos federaiscumprem um papel importante na garantia da equi-dade do gasto do PSF. Não obstante, não se podeafirmar que haja compatibilidade entre os objeti-vos propostos pela Estratégia de Saúde da Família ea forma de financiá-la, o que requer problematizaralguns pontos dessa questão. Por exemplo, cabe-nos questionar que medidas as três instâncias ges-toras do SUS adotaram para priorizar na peça or-çamentária e financeira, nos seus governos e nossubsequentes, a atenção básica/PSF? As medidasadotadas recentemente são suficientes para a conti-nuidade da re-organização do modelo de atenção àsaúde preconizado pelo SUS? Tais medidas inclu-em a criação do 13º salário-repasse para os AgentesComunitários de Saúde, alteração da tabela de in-centivo de PSF para os municípios com mais de100.000 habitantes da Amazônia Legal (com IDHmenor ou igual a 0,7), municípios onde as equipesatuam em áreas de assentamentos rurais e de qui-lombolas e o aumento do PAB, com seu valor mí-nimo saindo de R$ 10,00 para R$ 13,00.

Encontrar respostas para essas e outras indaga-ções no tocante à questão do financiamento da aten-ção básica/PSF nos impõem novos desafios, princi-palmente com relação à prática co-operativa cons-truída entre os gestores do SUS. Tudo isto lembra anecessidade de definir mecanismos de financiamen-to que contribuam para a redução das desigualda-des regionais e para uma melhor proporcionalidadeentre os três níveis de atenção do SUS, com primaziapara a expansão dos recursos alocados ao PSF23.

Neste caso, as esferas de governo, federal e esta-dual e municipal, devem estabelecer pactos de co-responsabilidade no financiamento das ações e osserviços de saúde, provendo o direito à saúde, deforma responsável e solidária. Com isto, a Estraté-gia de Saúde da Família – eixo prioritário de inves-timento da atenção básica – deve contar com finan-ciamento específico, proveniente da responsabili-dade constitucional, também, do governo estadual.

A política de capacitação, formaçãoe educação permanente para pessoal do PSF

Para que o PSF não ficasse confinado no “SUSpara o pobres” 24 e na “atenção primitiva de saú-de” 25, nem sua expansão focalizada apenas nas áre-as rurais e periferias das cidades, a Coordenação deSaúde da Comunidade (COSAC) da Secretaria deAssistência à Saúde (SAS) do Ministério, atualmen-te Departamento de Atenção Básica (DAB), da Se-cretaria de Atenção à Saúde, no final do ano de 1996,ensejou a implantação de pólos de capacitação, for-mação e educação permanente para pessoal do Saú-de da Família. Mediante edital nº 04, de 06/12/96,foram convocadas as instituições de ensino e servi-ço a apresentarem projetos que possibilitassem umaação renovada no espaço de articulação ensino-ser-viço, com vista à capacitação e formação de profis-sionais capazes de construir o PSF nas diferentesregiões do país.

Esses tinham como tarefa central articular e abriro diálogo social em torno de uma agenda concreta,capaz de ampliar o debate da mudança na forma-ção dos profissionais da saúde, que, há décadasvem se dando, e para a qual, no dizer de Paim26, ootimismo não basta. Dessa forma, a SAS/MS trazpara a mesa nacional a re-discussão dessa proble-mática e a possibilidade de encontrar caminhospara seu enfrentamento.

Foram apresentados 21 projetos que, ao seremanalisados, resultaram em aprovação de dez comopólos, seis como projetos de capacitação e cincocomo projetos de cursos instalados. Os projetosque não se caracterizaram como pólos e sim comocentros de capacitação e cursos introdutórios de-sempenharam um importante papel na prepara-ção de RH para o PSF, cuja agenda foi construída acurto, médio e longo prazo, considerando os se-guintes compromissos: (1) oferta de cursos de atu-alização para médicos, enfermeiros, auxiliares deenfermagem e agentes comunitários de saúde, ououtros profissionais que integrem a equipe de saú-de da família, devendo ser incluídas obrigatoria-mente as categorias de médico e de enfermeiro; (2)acompanhamento e avaliação do trabalho das

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equipes nas Unidades Básicas de Saúde da Família;(3) implantação de programas de educação per-manente destinados aos profissionais da equipede saúde da família existente em um município ouconjunto de municípios, utilizando como instru-mentos cursos curtos presenciais, educação à dis-tância ou atualização, valendo-se das atividades deinterconsultas a especialistas, recursos audiovisu-ais e de telemática e outros; e (4) implantação decursos de especialização ou outras formas de cur-sos de pós-graduação lato sensu para médicos,enfermeiros e outros profissionais que atuam noPrograma Saúde da Família, iniciativa esta desti-nada a introduzir inovações curriculares nos cur-sos de graduação.

A complexidade desses compromissos sinali-zava para a necessidade de ampliação da rede deinstituições parceiras envolvidas com os pólos. Paratanto, em 1998, a Secretária de Assistência à Saúde(SAS/MS) lança um novo edital, estimulando quecada Unidade da Federação tomasse para si a res-ponsabilidade de fortalecer a rede pólo no estado eno conjunto de suas regiões/municípios.

Os sujeitos dirigentes do PSF à época estavamatentos ao que afirmava Paim27: “ [...] os pólosnão merecem limitar-se a quistos de universida-des, enquanto vitrines de mudanças virtuais”. Di-ante desse alerta, verificou-se a necessidade de acom-panhar os resultados daqueles pólos. E, para tan-to, foram realizadas algumas pesquisas, a exemplodo Perfil dos Médicos e Enfermeiros do PSF28.

Os resultados dessas pesquisas foram utiliza-dos para subsidiar as negociações e definições delinhas estratégicas de ação no que diz respeito àformação, capacitação e educação permanente jun-to ao Ministério da Educação e outras instânciasgovernamentais.

Em 2003, estes pólos foram substituídos poruma nova proposta que incluía todos os trabalha-dores do SUS, os usuários da rede de serviços, arede formadora e os estudantes, denominada Pó-los de Educação Permanente para os trabalhado-res do SUS. A implantação dessa nova propostanão foi precedida de qualquer avaliação dos resul-tados da experiência anterior que permitisse apre-ender os seus limites e as possibilidades de poten-cialização daquilo que havia de agregador em am-bas as propostas. Uma nova conjuntura instituci-onal determinou a suspensão das experiências dos“pólos”, tanto do PSF quanto da ampliação dosmesmos para o restante do SUS.

O que se aprende com fatos dessa natureza éque sujeitos públicos, ocupando cargos governa-mentais, podem perder a racionalidade na formu-lação das políticas públicas, tratando-as como uma

ação conjuntural, em vez de uma ação estruturan-te de um Estado- nação. Nessa condição, o tempoe o cuidado com os sujeitos envolvidos nas políti-cas em curso são elementos essenciais para a con-solidação das estratégias que implicam mudançasconcretas.

De acordo com as considerações de Paim27:“Uma universidade e uma faculdade de medicinanão são uma planta industrial capaz de alterar rá-pida e impunemente suas linhas de montagem [...]”.Concordando com o autor, acrescentamos queesses espaços são constituídos por sujeitos estra-tégicos, comprometidos e protagonistas de umprojeto radical da reforma sanitária e da reformado ensino, e que merecem ser vistos na suas capa-cidades de produzir mudanças, especialmente seelas são construídas a partir dos saberes coletivose dos poderes compartilhados. Movimentos emsentido oposto podem trazer incompreensões,equívocos e frustrações.

Conforme se pode depreender desse fato, a es-tratégia de capacitação, formação e educação per-manente para o pessoal do PSF continua sendo umaquestão a ser enfrentada, enquanto uma política deEstado capaz de levar adiante mudanças em cursona formação, sobretudo dos profissionais da me-dicina. Busca-se que esses profissionais estejam pre-parados, e comprometidos, para exercer a práticada saúde integral, familiar e comunitária.

Ainda, essa responsabilidade cabe primeira-mente ao Ministério da Saúde, que deve cumpriros dispositivos constitucionais conforme o artigo200, inciso III - ordenar a formação de recursoshumanos na área da saúde29, exercendo o papel deindutor junto às secretarias estaduais e munici-pais de saúde, e principalmente às instituições deensino superior. Essas instituições não mediramesforços no sentido de envidar energias, crenças eesperanças na construção de outro modelo de aten-ção à saúde das famílias brasileiras.

E essa construção não pode prescindir de umaoutra questão desafiadora, a de produzir tecnolo-gias gerenciais, aplicadas aos processos de moni-toramento e avaliação, colocando no centro dadiscussão os seguintes aspectos: a qualidade daexpansão das equipes do PSF, a utilização do siste-ma de informação como ferramenta gerencial, quecontemple a complexidade da organização da aten-ção e apresente indicadores adequados e oportu-nos para o monitoramento e avaliação dos efeitosdo PSF nos municípios brasileiros.

Tamanha tarefa exige a institucionalização deprocessos estruturados e sistemáticos de avaliaçãodessa estratégia, nas suas mais variadas dimensõescomo, por exemplo, atenção à saúde, gestão, im-

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pacto sobre o perfil epidemiológico e a participaçãosocial. Esta última dimensão foi relembrada porTeixeira30, ao citar Maria Cecília Donnangelo, quenos ensinou em 1979, no tocante à reforma, “sefará com a população ou não se fará”. Isso nos faz“aprender a aprender” que as tecnologias aplicadasaos processos de monitoramento e avaliação de-vem estar entrelaçadas com o compromisso ético,humanístico e social com as famílias cuidadas pelasequipes do PSF, nos seus espaços de convivência.

Por fim, novas práticas de saúde devem ser ori-entadas pela essência do SUS. Há que se fortalecero diálogo de forma permanente, franca e demo-crática, com todas as forças sociais, tendo em vista

um novo pacto federativo: a consolidação da polí-tica prevista na nossa Constituição. Concordamosque É preciso vencer as muralhas do liberalismo eco-nômico, dos privilégios de classes, dos corporativis-mos que à medida que o sistema único de saúde avan-ça oporão uma resistência cada vez mais encarniça-da aberta ou disfarçada31. No caso do PSF, tal dis-farce é potencializado pela inércia de uma agendaincompleta.

Incompleta porque não conseguiu, ao longodos doze anos de implantação e implementação,ampliar as condições para a superação efetiva domodelo biomédico hegemônico nas políticas pú-blicas do setor saúde no Brasil.

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Colaboradores

MF Sousa foi responsável pela concepção e reda-ção do artigo e EM Hamann cuidou da metodolo-gia e da revisão final do artigo.

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