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Projetos institucionais, trajetórias intelectuais: uma perspectiva comparada sobre
a institucionalização da antropologia no Brasil e na Índia1
Vinicius Kauê Ferreira (UFSC/Brasil)
Resumo:
Para este artigo, proponho uma perspectiva comparada entre as histórias da antropologia
no Brasil e na Índia, enfocando certos aspectos do período de institucionalização
universitária da disciplina nos dois países. Busco compreender como, em ambos os
contextos, os rumos da disciplina foram forjados pelo espírito contestador das suas
primeiras gerações de estudantes, ao produzirem espaços de oposição aos interesses
institucionais depositados sobre a disciplina. Para isso, retomo a trajetória de estudantes
de uma primeira geração formada nas Universidades de Sâo Paulo e de Bombay,
respectivamente. No caso brasileiro, exploro os trabalhos de Mariza Peirano para refletir
sobre o caráter contestatório da primeira geração de estudantes em antropologia da USP,
fundado na década de 1930 com o intuito de revigorar a influência da burguesia
paulista. Para o caso indiano, utilizo-me de trabalhos contemporâneos sobre a história
da disciplina para contextualizar trajetórias mais ou menos subversivas que
influenciaram o campo indiano, entre o final da década de 1910 e o início da década de
1940, na Universidade de Bombay. Sustento aqui que uma análise dos processos de
institucionalização da disciplina precisa ter em conta as trajetórias de intelectuais que
opõem aos projetos institucionais ligados à fundação da disciplina em cada contexto e,
mais ainda, que esses movimentos de resistência a projetos institucionais constituem-se
em forças motrizes da consolidação da disciplina.
Palavras-chave: História da antropologia; Índia; Brasil.
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN. Este artigo está baseado em minha pesquisa de mestrado realizado na École
des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris (2011-2013) com o apoio do Conseil Regional Île-de-
France através de uma bolsa de estudos. A produção deste artigo deu-se no contexto de uma bolsa do
CNPq, vinculada ao projeto Feminismo, ciências e educação: relações de poder e transmissão de
conhecimentos, coordenado pela Dra. Miriam Pillar Grossi (UFSC).
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Projetos institucionais, trajetórias intelectuais
Falar sobre história da antropologia no Brasil parece significar, quase que
invariavelmente, falar de uma espécie de conjunção necessária entre três dimensões que
se articulam em diferentes níveis, a saber: nação, instituições e biografias. Dito de outro
modo, no Brasil, esse campo denominado história da antropologia parece ter adotado
um tipo de narrativa que privilegia a confluência entre contextos históricos (e projetos)
nacionais, sua realização através da fundação de instituições e o modo como
determinadxs sujeitxs – e grupos – têm se inscrito – por alinhamento ou por oposição –
nesses macroprocessos2. Evidentemente, esse não é um traço exclusivo da reflexão
brasileira sobre a história da disciplina, sendo provavelmente amplamente
compartilhado por comunidades acadêmicas de diversos países nos trabalhos de
construção de uma historiografia sobre suas tradições nacionais e escolas teóricas.
Tendo isso em vista, gostaria de iniciar assinalando algumas controvérsias já
bastante conhecidas no campo da história das ciências sociais como um todo e que
tangem precisamente a esse triplo arranjo supracitado, a saber: os perigos – e pecados –
do paradigma nacional (ou nacionalista) na construção de nossa memória disciplinar3; o
aspecto complexo e ambíguo do papel de instituições universitárias e de financiamento
à pesquisa4 na consolidação da disciplina; e os riscos da chamada “ilusão biográfica” na
reconstituição de trajetórias intelectuais singulares5. Esse panorama é não apenas
2 Nesse sentido, podemos citar os trabalhos brasileiros já clássicos, como aqueles de Mariza Corrêa
(2003), Mariza Peirano (1991,1992) e Sérgio Miceli (1989,1995), além de obras mais recentes, como
aquelas de Miriam Grossi, Antonio Motta e Julie Cavignac (2006) e o livro recém-publicado de Mariza
Corrêa (2013). 3 Para o caso indiano, ver os artigos de Sujata Patel (1998) sobre a consolidação do departamento de
sociologia da Universidade de Delhi e para o caso francês ver Eduardo Archetti (2008) sobre as tradições
marginalizadas no campo da etnologia na França. Para a noção de “pecados” na discussão sobre
nacionalismo metodológico, ver Mariza Peirano (2004). 4 A antropóloga francesa Véronique Bénéï (2000) aborda de modo muito claro o modo como os area
studies – que tiveram pouca entrada no Brasil, na medida em que aqui se optou por uma organização
universitária centrada na divisão disciplinar e construí uma disciplina voltada às questões nacionais –
tiveram o efeito nos Estados Unidos de construir nichos de produção de discursos nacionalistas num
deslocamento transnacional. Ou seja, como descendentes de imigrantes habitando os Estados Unidos
puderam, ao ocupar essas formações especializadas em Ásia do Sul, Oriente Médio etc., tornar-se parte de
uma intelligentsia transnacional, responsável pela formulação de teorias nacionalistas no seio das
estruturas de formação universitária de outra nação. 5 Pierre Bourdieu (1986) denomina “ilusão biográfica” a construção retrospectiva de uma trajetória
intelectual arbitrariamente coerente e consciente em direção a um projeto de vida e de conhecimento
sempre claro e arrazoado. Segundo o sociólogo francês, as biografias intelectuais tratar-se-iam de um
gênero de pesquisa que se coloca à escuta dos sentidos (tanto como direção quanto como significação)
sempre arbitrários e interessados para xs autorxs vivxs e sempre artificiais e excessivamente construídos
para aquelxs já mortxs. A produção de uma “normalização de si”, de uma visão que projeta sobre a
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bastante amplo, mas também bastante parcial, é preciso dizer. É certo que encontramos
reflexões importantes que vêm questionando a centralidade dessa tríade, mesmo que
ainda sejam minoritários e lutam por maior projeção e reconhecimento6.
É verdade também que reflexões eventuais arriscam-se a tangenciar algumas
questões que vão além dessa tríade, mas essas provavelmente conseguem ainda menos
eco entre nós. Otavio Velho, por exemplo, toca rapidamente na questão dos interesses
de classe da comunidade antropológica brasileira e no alinhamento de boa parte dela ao
projeto nacionalista brasileiro, sugerindo que essa “dobradinha” teria alimentado uma
espécie de neo-orientalismo interno:
Orientalisrno esse que teria por pedra de toque a sua reconhecida associação
com o nation-building (Peirano 1980), em geral vazada em termos
culturalistas, sem falar dos interesses de classe (bem menos reconhecidos)
dos seus praticantes. Interesses de classe que inclusive se manifestariam num
certo maneirismo, em que os bons modos e a etiqueta incorporados ganham
uma importância desmedida, constituindo o que um olhar externo poderia
considerar uma antropologia triste, como os trópicos. (VELHO, 2003, p. 15)
Essa afirmação de Velho aparece em meio a um debate bastante mais amplo
sobre as relações contemporâneas da antropologia brasileira com o sistema acadêmico
mundial e abre brecha para uma discussão necessária mas pouco aprofundada sobre a
constituição da antropologia no Brasil (bem como dos seus caminhos futuros, em
tempos de democratização do acesso ao ensino superior). E eis um ponto importante a
ser incorporado ao conjunto nação/instituição/biografia, sobretudo porque o argumento
de Velho emerge como um elemento que é articulador, transversal, a essa tríade.
Iniciar com esse breve panorama tem o intuito de situar minimamente algumas
questões das quais parto para a redação deste texto e que, portanto, atravessarão as
reflexões as quais me dedicarei mais detidamente nas próximas páginas. Pode-se dizer
que neste artigo privilegiarei o segundo nível da tríade que eu mencionava
narrativa uma institucionalização da identidade, como no próprio estado civil: coisa constante, instituída e
construída sobre uma base imutável. 6 Cito como exemplo a obra coletiva organizada por Arturo Escobar e Gustavo Lins Ribeiro que, ao
propor uma compreensão da antropologia como uma “cosmopolítica concernente às estruturas de
alteridade” (2006, p. 148), produz uma história da antropologia preocupada com as articulações supra e
transnacionais da disciplina, com as assimetrias de poder entre cânones e tradições e ainda com os
discursos sobre a diferença e a diversidade no seio da disciplina. Em suma, uma perspectiva capaz de
questionar discursos nacionais, romantizações e estruturas globais históricas de produção e circulação de
saberes.
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anteriormente, ou seja, tomarei o processo de institucionalização da antropologia como
eixo central, cruzando-o com os outros dois. Assim sendo, a questão do projeto nacional
e das biografias estará sempre presente, mas essa articulação dar-se-á de algum modo
que se pretende ligeiramente crítica àquela geralmente encontrada em grande parte dos
trabalhos em história da antropologia.
Primeiramente porque, ao entender o campo disciplinar como um espaço de
conflitos, busco afastar-me de um tipo de abordagem romantizada da disciplina ou
sacralizadora de sxs personagens. O que me interessa é, portanto, os conflitos,
ambivalências e discursos de legitimidade nesses espaços institucionais. Se é verdade
que uma história da antropologia além das instituições seria importante para
conhecermos melhor nosso próprio campo7, é verdade também que outra perspectiva
sobre o lugar das instituições no desenvolvimento da disciplina é possível. Esse
deslocamento na análise de processos de institucionalização cristaliza-se neste artigo
através do postulado de que o desenvolvimento da antropologia em diversos países tem
sido potencializado não apenas pela sintonia entre projetos institucionais e trajetórias
pessoais localizadas, mas também – e talvez sobretudo – por um certo ar contestador
que tem marcado o trabalho de pesquisadorxs, ou mesmo gerações, que justamente se
opuseram a esses projetos – e aqui é sempre preciso tomar cuidado para não
incorrermos em romantizações em torno de ditas posturas pioneiras, visionárias e
revolucionárias da disciplina.
Portanto, investirei aqui numa abordagem dos processos de institucionalização
que seja ligeiramente diferente de um tipo de narrativa sobre uma consolidação mais ou
menos harmônica de instituições dentro de processos históricos bem definidos. Antes,
gostaria de sugerir que a “institucionalização” pode ser frequentemente lida através da
7 Gostaria de fazer uma referência especial ao trabalho de Pedro Martins e Tânia Welter (2012) sobre
Francisco Schaden. Figura completamente desconhecida da antropologia brasileira, Francisco Schaden foi
um imigrante alemão que após chegar ao Brasil instalou-se numa colônia de alemães das muitas fundadas
em Santa Catarina, que corresponde atualmente à pequena cidade de São Bonifácio com seus 3 mil
habitantes. Autodidata, era um homem erudito, professor fundador da primeira escola da cidade.
Aprendeu línguas diversas, como o francês, o latim, o esperanto, o ido, e o volopük. Aprendeu inclusive
as línguas de populações indígenas da região, o que lhe permitiu realizar estudos sobre a cultura material
e a redação de dicionários e gramáticas tupi e xokleng, além de documentar a língua kaingang. Suas
práticas científicas incluíam ainda a botânica e a fabricação de remédios a partir desses conhecimentos.
Francisco Schaden era pai de Egon Schaden, que mais tarde foi para Florianópolis para estudar e depois
se tornar professor de Antropologia na Universidade de São Paulo. Esta pesquisa sobre Francisco
Schaden se impõe em sua importância não apenas por apostar numa compreensão da história da
antropologia que transcende o espaço da instituição – o que significa dizer que certo conhecimento
antropológico estava sendo produzido também de modo autodidata nos interiores e rincões – mas também
porque a descentra de modo radical das grandes narrativas sobre os grandes centros sistematicamente
elevados ao lugar de surgimento e emanação do conhecimento antropológico no Brasil.
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sua negação, de uma resistência à própria instituição enquanto projeto político e de
conhecimento. Dito de outro modo, falar de institucionalização e respectivas biografias
intelectuais implica necessariamente falar de agenciamentos de recursos institucionais
materiais e simbólicos que se voltam contra a própria instituição num sentido muito
amplo do termo – não apenas no sentido daquilo que é ou está sendo institucionalizado,
mas também daquilo que está sendo instituído.
O caso brasileiro: as primeiras gerações da Universidade de São Paulo
Para cumprir com o objetivo deste artigo, proponho uma análise comparada
entre as histórias da antropologia no Brasil e na Índia, enfocando o período de
institucionalização universitária da disciplina nos dois países8. Busco compreender
como, em ambos os contextos, os rumos da disciplina foram forjados pelo espírito
relativamente contestador das suas primeiras gerações de estudantes, ao produzirem
espaços de oposição aos interesses institucionais depositados sobre a disciplina. Retomo
assim a trajetória de estudantes de uma primeira geração formada nas Universidades de
São Paulo (USP) e na Universidade de Bombay, respectivamente. Visto que os
trabalhos sobre a institucionalização das Ciências Sociais na USP são largamente
conhecidos entre antropólogxs brasileirxs, deter-me-ei mais brevemente no caso
brasileiro, para em seguida aprofundar-me nos processos vividos pela Universidade de
Bombay a partir da década de 1910.
Em sua tese de doutorado, intitulada The anthropology of anthropology, Mariza
Peirano (1991) retraça o contexto regional e nacional de fundação da USP em janeiro de
1934. Com a Revolução de 30, que leva a uma ruptura da política do café com leite que
8 Para o caso indiano, trabalharei com a a fundação do primeiro departamento de sociologia, na
verdade, na Universidade de Bombay. Nao é possível desenvolver aqui considerações mais detidas sobre a divisão antropologia/sociologia na Índia, que é muito diferente da brasileira, mas é suficiente eslcarecer pelo momento que grande parte do que consideramos antropologia no Brasil (antropologia urbana e de sociedades complexas em geral, antropologia de sociedades camponesas e mesmo etnografias de sociedades de ppequena escala) é denominado sociologia na Índia. Os departamentos indianos de antropologia dedicam-se sobretudo a estudos no campo da antropologia física e folclore. A apropriação que realizao aqui da sociologia como antropologia é reflexo de uma apresentação movente da qual xs próprios pesquisadorxs indianxs inseridxs em redes insternacionais apropriam-se, como lembra o indiano Andrè Béteille (2007).
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marcou a República Velha, Getúlio Vargas assume o poder e neutraliza a força política
de São Paulo no plano presidencial. Assim, essa década é vista como um período de
esvaecimento da influência política paulista a despeito da crescente industrialização do
estado e consequente acumulação de capital nas mãos das suas classes industrial e
empresarial. Segundo a autora, numa década de progressiva perda de influência da
classe política e da burguesia paulistas no cenário nacional, a fundação de uma
universidade aparece como uma reação audaciosa que busca não apenas a reafirmação
do prestígio das classes mais abastadas do estado, mas também a preparação de novas
lideranças e estadistas nascidos no seio da sua chamada “elite”.
Nesse contexto, grandes plantadores de café, proprietários de importantes
jornais, além do governo de São Paulo, unem-se na fundação de uma universidade
destinada à formação política e cultural de uma “elite” capaz de retomar as rédeas do
seu futuro, além de entreverem aí a construção de um pensamento sociológico e político
suficientemente esclarecidos para lidar com os “desafios da modernização” do país. O
projeto que a USP comportava era claro: a formação de uma “elite” liberal capaz de
governar novamente o Brasil, mas através da disseminação de uma nova “mentalidade”.
Salta aos olhos, portanto, um claro aspecto iluminista deste projeto, que se concretizou
através da importação de intelectuais da Europa, sobretudo da França.
A importação de professorxs francexs representou um investimento massivo na
difusão de reflexões sociológicas e políticas vistas como mais alinhadas às daqueles
grupos paulistas, sobretudo em relação a outros países da Europa. Um ponto importante
para nossa reflexão neste artigo é que a predominância das ideias de autores como
Comte e Durkheim foi decisiva para essa escolha, na medida em que ambos eram vistos
como pensadores importantes para a consolidação da reflexão humanística necessária ao
projeto de “progresso”, ao mesmo tempo em que pareciam suficientemente
aristocráticos em suas posições sobre a organização social e política da nação – e, vale
adiantar agora, esse mesmo argumento reaparecerá na implantação da sociologia na
Índia.
Inicialmente, contudo, a adesão inicial a esse projeto foi tímida por parte da
juventude da burguesia paulista, que gozava de certos privilégios no acesso à
instituição, o que acarretou em poucos ingressos nos cursos oferecidos da data de sua
fundação. Isso permitiu que alunxs de classes populares e médias acessassem a
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universidade, mas também engendrou uma divisão perversa de prestígio entre docentes
e discentes baseada nas conexões pessoais tecidas entre ambos.
Em meio a essa nova comunidade intelectual que se forma a partir da década de
1930, algumas trajetórias ganhariam notoriedade histórica e passariam a ser analisadas
como especialmente representativas de transformações inesperadas no seio da
instituição USP, ao passo em que emergem justamente das ambiguidades intrínsecas à
institucionalização das ciências sociais, bem como das forças de oposição aos projetos
institucionais oficiais. Refiro-me aqui às trajetórias de Florestan Fernandes e Antônio
Cândido9, que viriam mais tarde, a partir da década de 1950, a construir carreiras
extremamente reconhecidas, mas muito diversas entre si; e, sem dúvida, essa
diversidade está ligada a esses movimentos de resistência aos projetos institucionais do
qual cada um deles fez parte. E não me interessa aqui reconstituir a trajetória desses
pesquisadores, senão levantar alguns elementos importantes de suas biografias.
Na já referida tese de doutorado de Mariza Peirano, a autora traz narrativas
interessantes desses dois intelectuais sobre seu tempo de alunos. Para Florestan
Fernandes, o completo desinteresse dxs professorxs francesxs pelas condições concretas
de estudos, pelo background de seus estudantes, pela transição progressiva das cadeiras
às novas gerações formadas e ainda pela aplicação possível do que era ensinado,
geraram grande revolta entre muitxs alunxs. A posição de muitxs delxs teria passado
então à de resistência frente aos conteúdos ensinados nas disciplinas e de desejo de
ruptura com os cânones ensinados. Fernandes lembra que seu objetivo teria passado a
ser o de aprender com essxs pesquisadorxs estrangeirxs apenas metodologia de
pesquisa, organização institucional e certos padrões necessários ao trabalho intelectual,
mas rompendo com determinadas abordagens e lutando pela construção de um
pensamento crítico e sintonizado com a sociedade brasileira.
Antonio Candido, por sua vez, sublinha questões ligadas à origem social de
muitxs alunxs de sua geração, que teriam passado a se perceber como integrantes da
classe média, em contraposição a uma “elite” conservadora responsável pela fundação
da universidade. Para ele, que defendeu seu doutorado em sociologia na USP em 1954,
9 Um autor igualmente importante apra este debate, talez até mais que os dois citados, é Darcy Ribeiro,
que possui uma trjetória intelectual certamente peculiar e uma posição muito ambígua – entre o reconhecimento e a marginalização – no campo da antropologia brasileira.
8
a origem social menos aristocrática de parte dxs alunxs teria engendrado esse ambiente
mais crítico.
Antonio Candido escreve que, ao criar uma universidade, a oligarquia
produziu um “aprendiz de feiticeirxs”: a elite forjou as condições de
formação de intelectuais para expressar os valores daquela, mas essxs
intelectuais, em parte porque vieram de classes médias, desenvolveram uma
atitude e um pensamento radical que negou os valores dxs fundadorxs. Pela
primeira vez na história brasileira, diz Candido, intelectuais apresentavam
uma imagem não aristocrática da realidade social brasileira. (PEIRANO,
1991, p. 37, minha tradução10
)
Florestan Fernandes é menos otimista que Antonio Candido, acreditando que
aquela geração não levou a termo as possibilidades que possuía de transformação da
teoria produzida, nem mesmo de uma aplicação concreta desses debates. Ele discorda
parcialmente de Antonio Candido, sustentando que a base social dxs estudantes não
teria sido tão determinante assim no tipo de postura ideológica a qual se alinharam
aquelxs jovens:
“Se era verdade que a maioria adotou pontos de vista socialistas, a simples
verdade é que eles continuavam trabalhando no interior do paradigma dos
fundadores da universidade. Entre xs estudantes, havia somente uma vocação
socialista.” (ibidem, p. 38, minha tradução11
).
Entretanto, mesmo que de modo mais cauteloso, Florestan também considera
que a instituição liberal fundada por um grupo oligárquico teria sido redefinida por sua
geração que, por sua vez, teria tomado o controle dela, diminuindo sistematicamente a
influência, no seu interior, das ideias aristocráticas defendidas por sxs fundadorxs.
Em entrevista concedida à Peirano12
, Antonio Candido conta que a formação
recebida era eminentemente durkheimiana, mas a influência informal do marxismo foi
bastante forte em sua geração. E esse é um fato verdadeiro para otrxs jovens de sua
10
O original, em inglês: “Antonio Candido writes that, by creating a university, the oligarchy generated a
“sorcerer's apprentice”: the elite forged the conditions to educate intellectuals to express its values, but
these intellectuals, in part because they came from the middle-classes, developed an attitude and a radical
thinking that denied the founders’ values. For the first time in Brazilian history, Candido argues,
intellectuals were to put forward a non-aristocratic picture of Brazilian social reality.” 11
O original, em inglês: “If it were true that the majority espoused socialist viewpoints, the simple truth
was that they still worked within the liberal paradigm of the founders of the university. Theirs was simply
a socialist ‘vocation’.” 12
Trata-se de entrevista concedida em 1978, disponível no site profissional de Mariza Peirano, acessível
pelo endereço seguinte: http://www.marizapeirano.com.br/entrevistas.htm. Acessado em: 20 maio de
2014.
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geração também, como Florestan Fernandes ou Darcy Ribeiro. Apesar de não se
reconhecer como um marxista, ele faz questão de sublinhar a grande influência das
obras de Marx sobre sua trajetória intelectual, visto que muitxs estudantes consideravam
Durkheim ultrapassado ou pouco conectado às suas inquietações. As aulas sobre Marx,
contudo, eram ministradas um uma das cadeiras da Filosofia apenas, de modo quase
paralelo ao restante da formação, visto que o marxismo era malvisto pela instituição e
era mencionado nas Ciências Sociais apenas em vistas de ser reprochado.
No caso de Florestan Fernandes, sua aproximação com o marxismo vinha de seu
tempo de ensino médio, onde já participava de grupos trotskistas e havia mesmo
traduzido alguns textos do autor alemão. O início de sua carreira como pesquisador, no
entanto, quando escreveu seus trabalhos em etno-história sobre a sociedade Tupinambá,
foi marcado por um dilema fundamental: aos seus olhos, bem como aos de sxs
professorxs, uma sociologia rigorosamente científica era incompatível com o marxismo
e o engajamento político. Não à toa, apenas alguns anos depois de defender sua tese de
doutorado, em 1951, que suas pesquisas começariam a presenciar uma reviravolta em
termos temáticos e epistemológicos. Com o início de suas pesquisas sobre negritude e
racismo no Brasil, junto a Roger Bastide, Fernandes mergulha numa nova literatura
abordando a organização da sociedade de classes, e sua relação com a situação da
população negra no país. Após defender uma tese sobre um povo indígena dizimado, a
partir de uma perspectiva ultrapassada que se aproximava do difusionismo cultural
alemão, Fernandes dá uma guinada em direção ao debate sobre raça e classe que
prenunciou sua reconhecida obra sobre a organização da sociedade de classes no Brasil.
A trajetória de Candido expressa uma passagem de algum modo semelhante
àquela de Fernandes, em termos de uma virada de perspectiva epistemológica e política.
A sua tese, intitulada Parceiros do Rio Bonito, retrata o modo de vida de comunidades
rurais, conhecidas como caipiras, do interior de São Paulo. Em sua pesquisa, o
pesquisador já está interessado em transformações sociais que vivem essas
comunidades, mas sua obra é essencialmente descritiva. Inclusive, na ocasião de sua
defesa, Roger Bastide, seu orientador e responsável pela cadeira de sociologia, teria
afirmado que não lhe daria a nota máxima porque sua tese era próxima demais da
antropologia. Esse fato aparece no discurso de Candido como fato determinante para
sua migração das ciências sociais para a literatura, onde construiria sua carreira, após
ver-se num limbo disciplinar que não lhe motivava em termos teóricos nem políticos.
10
Como crítico literário, passou a escrever sobre literatura e subdesenvolvimento, nunca
abandonando sua formação sociológica e antropológica, que se fizeram sempre
presentes em seus escritos.
Retomar brevemente a trajetória de Florestan Fernandes e Antonio Candido,
através da obra de Mariza Peirano, é útil quando nos atentamos a alguns elementos ricos
que nos ajudam a compreender a institucionalização das ciências sociais em São Paulo.
Em poucos anos, um projeto institucional que visava, através da instituição das ciências
sociais, à recuperação do capital político de grupos dominantes da sociedade paulista
formou uma geração de estudantes relativamente contestadorxs desse status quo. Não
pretendo afirmar com isso que se tenha tratado de uma geração de intelectuais
revolucionários – Florestan Fernandes mesmo não acredita nisso, como mencionei
acima –, mas parece significativa a ruptura operada entre um projeto específico de
institucionalização das ciências sociais e a sua mise en oeuvre. Nos dois casos
mencionados – como outros que poderíamos citar também, como em Darcy Ribeiro –
trata-se de intelectuais de peso que construíram uma obra que influenciaram suas
respectivas áreas de estudos. Além disso, parece-me importante a ideia de que a
mudança de interesses vivenciada por ambos – Fernandes indo dos Tupinambás do
Brasil colonial à luta de classes do Brasil contemporâneo e Candido na sua transição do
mundo rural à literatura nacional – é falante sobre tensões entre as ideias que
disputavam espaço naquele momento. Assim sendo, gostaria de sugerir mais uma vez
que a efetiva consolidação da disciplina – na abertura de novos campos de estudos, da
formulação de novos conceitos e quadros teóricos –, deu-se especialmente em função
dessa contestação dos projetos institucionais e ideias estabelecidas.
O caso indiano: o Raj em perigo e a Universidade de Bombay
A fundação das primeiras universidades da Índia – Bombay, Calcutta e Madras13
– não pode ser compreendida sem termos em vista alguns aspectos fundamentais da
13
Todos esses são os nomes do período colonial, simplesmente anglicizados ou mesmo substituídos pelo
Império Britânico durante a colonização, mas que foram substituídos novamente após a independência da
Índia, em 1947. Assim, atualmente, Bombay chama-se Mumbai, Calcutta chama-se Kolkata e Madras é
denominada Chennai. No texto empregarei os nomes coloniais por se tratar do período pré-independência.
11
colonização britânica no subcontinente, que marcou a história daquela região entre
meados do século XVIII e 1947, data da independência formal da Índia. A abertura
dessas instituições universitárias, a partir de 1857, apresentava-se como uma estratégia
do governo colonial britânico para satisfazer as castas superiores que forneciam o apoio
político local necessário para a administração colonial, em troca de certos privilégios.
Essas castas, compostas por indivíduxs eruditxs e criadxs no seio de grupos
intelectualizados, pretendiam acessar espaços de formação intelectual semelhantes
àqueles dxs inglesxs, oferecendo como moeda de troca seu suporte político à Coroa
britânica. Incialmente, contudo, essas instituições não se constituíam efetivamente em
centros de ensino e pesquisa, tais quais as instituições europeias, senão em centro
ligados a instituições britânicas, submetidas a elas, servindo essencialmente para
distribuir cargos burocráticos às castas mais abastadas. As universidades foram criadas
como uma estratégia de apaziguamento dos ânimos das castas brâmanes que passavam a
flertar, sobretudo a partir do fim do século XIX, com os movimentos de independência
da Índia (SAVUR, 2011, p. 4).
Essa situação teria perdurado até 1912, quando o Government of India (GoI)
resolveu destinar quantias significativas de recursos às três universidades existentes
criando novos postos de pesquisa, sobretudo em Economia. Tem-se aí a abertura de um
novo ciclo de investimentos que não é, entretanto, uma concessão desinteressda axs
intelectuais indianxs. Tratava-se, pelo contrário, de um programa de investimentos
visando um maior controle sobre as ideias que circulavam nessas instituições. Em meio
a um contexto de agitação política crescente, o poder colonial dava-se conta de que os
grupos intelectuais brâmanes passavam a se alimentar, de modo crescente, do discurso
filosófico e político emancipador que marcava o pensamento liberal da época e que
promovia conceitos como nacionalismo, liberdades civis e autogoverno. Isso teria
criado uma situação extremamente delicada para a governança britânica, pois ao mesmo
tempo em que ela dependia politicamente desses grupos escolarizados, era justamente
eles que se tornavam seus críticos mais radicais através da síntese que se operava entre
as tradições filosóficas indianas, história de movimentos políticos populares e o
pensamento liberal europeu.
A criação desses novos postos de pesquisa em Economia [Research Professor in
Economics] em 1912 na Universidade de Bombay foi precedida de uma portaria emitida
em 1905 pelo Vice-rei· Lord Curzon determinando que 80% dos membros do conselho
12
daquela universidade fossem nomeados por ele próprio. Essa portaria tinha por objetivo
colocar em prática novas políticas universitárias na Índia de interesse da Coroa.
Desnecessário dizer, essa decisão gerou uma posição de resistência ao governo britânico
e sua representação na Índia. Essa tentativa de combater novas ideias de cunho
nacionalista que circulavam nos meios intelectuais e políticos indianos, sobretudo entre
xs jovens, teve apenas o efeito agravar o descontentamento dos grupos de apoio ao
regime colonial, que já se inclinavam ligeiramente aos movimentos políticos de
liberação do país. Tendo começado no fim do século XIX, um revivalismo religioso
nacionalista impregnava as comunidades hindus e muçulmanas, e essa ingerência sobre
as decisões da universidade não teria outro efeito que reforçar o clima de resistência ao
governo estabelecido.
Não é por acaso que a proposição de criação da cadeira de pesquisa em
Economia não avançaria entre 1912 e 1917. Embora tivesse um controle relativamente
forte sobre a universidade, o governo precisou enfrentar certas resistências e bem
calcular suas manobras. As tensões, contudo, não paravam de crescer. Não poderei
abordar aqui a história dos movimentos nacionalistas da época, mas é importante e
suficiente lembrar aqui que as tensões apenas aumentaram a partir de 1914, com a
Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, a despeito das ações autoritárias do GoI
contra os movimentos nacionalistas na Índia, uma grande parte da intelligentsia e
líderes políticxs indianxs apoiaram a Inglaterra na guerra contra a Alemanha. Em
contrapartida, parte da comunidade indiana esperava um movimento substancial no
sentido de liberação do subcontinente da dominação colonial. Contudo, os grupos
progressistas locais recebem como resposta um conjunto de reformas políticas e sociais
conservadoras submetidas pelo novo vice-rei, Lord Willingdon, ao Parlamento
Britânico em 20 de agosto de 1917. Essa atitude gerou exasperação entre a comunidade
indiana, que ouve da Coroa novos pedidos de paciência e lealdade ao GoI (SPEAR,
1969, p. 183).
Na Índia colonial, o vice-rei era também Chancellor14
da Universidade, onde ele
exercia grande influência sobre as decisões, sobretudo após a mencionada portaria de
1905. As perturbações nas relações políticas entre Coroa e lideranças locais apenas
14
Nesse modelo, ainda existente na Índia, o Chancellor é uma pessoa indicada pelo governo que possui
uma função meramente cerimonial. O dirigente de facto da instituição, equivalente ao Reitor no Brasil, é
o Vice-Chancellor (VC).
13
aumentavam, o que forçaria o vice-rei e Chancellor da Universidade de Bombay a se
ocupar da formação de uma nova classe intelectual, esta conservadora e alinhada ao
GoI. Mas, vendo que com a emergência de novos movimentos populares um
pensamento emancipador percorria todo o subcontinente, uma questão se impunha:
como proceder no nível acadêmico? A resposta pode nos parecer inesperada: com a
criação de uma cadeira de sociologia15
.
Manorama Savur (2011, p. 11) defende que a compreensão parcial de
Willingdon quanto à natureza da sociologia teria permitido concebê-la, a partir do caso
francês, como uma ciência antirrevolucionária. O argumento de Savur é que a
sociologia parecia-lhes uma resposta acadêmica aos movimentos populares,
notadamente às ideias da Revolução Francesa. Vendo Auguste Comte como pai
fundador da sociologia, os representantes da Coroa guardavam as palavras desse autor
contra os perigos da revolução e da queda da ordem aristocrática. A filosofia positivista
agradara ao vice-rei, tornando-se, aos seus olhos, a reflexão necessária a ser
disseminada na Índia. Savur sustenta ainda que mesmo Durkheim seria considerado
então como um conservador, enquanto herdeiro das ideias de Comte. Assim, Wllingdon
opta pela sociologia, com o apoio do Vice-Chancellor da universidade, designado por
ele mesmo, Sir Chimanlal Harilal Setalvad.
Um trabalho detalhado realizado por Savur junto aos registros oficiais do
conselho da universidade mostra de maneira concreta o caminho percorrido pela
proposição governamental de criação da nova cadeira, desde sua submissão até sua
aprovação, em 1919. Vemos nas minutas estudadas por Savur o esforço da parte de
Wollingdon e Setalvad para impor a Sociologia, enquanto que os membros indianos do
conselho trabalhavam para impedir o avanço da proposição. Como dito anteriormente, o
GoI havia aprovado, em 1912, a criação de um cargo de pesquisa em Economia, que
não fora portanto jamais efetivamente instalado. Essa demanda previa uma vaga
destinada exclusivamente à pesquisa, excluindo sua extensão ao ensino. Sobre os atos
das seções do conselho da universidade nós vemos, em março de 1916, o renascimento
15
A divisão entre antropologia e sociologia na Índia é bastante diferente daquela existente no Brasil. Na
falta de espaço para me estender nesse debate, será suficiente dizer que ela um tipo de produção que
caracterizaríamos como antropológica no Brasil é denominada sociologia na Índia. Naquele país,
antropologia refere-se geralmente apenas à antropologia física, ligada á arqueologia ou ao folclore,
enquanto que estudos em meio urbano ou mesmo em sociedades simples entram no hall da sociologia.
Assim, intelectuais indianxs podem se apresentar como sociólogxs na Índia e antropólogxs em outros
países. Aqui abordarei a institucionalização da sociologia na Índia, mas é preciso ter em vista que se trata
de uma produção de cunho antropológico ou que, no limite, questiona essa divisão.
14
desse projeto acompanhado de uma série de alterações. Doravante, não se trataria mais
de uma vaga de Research Professor in Economics, mas sim University Professor of
Economics and Sociology, isto é, vê-se não somente uma abertura ao ensino, mas
também a inclusão da sociologia em suas atribuições. O fato é que esse projeto seria
discutido por cerca de um ano e meio, em meio à grande oposição por parte da
comunidade progressista indiana, cada vez mais irritada pelas ações arbitrárias da
Coroa. A resistência era tal que o projeto seria finalmente aplicado somente em 1919,
após novas manobras políticas entre o Vice-Chancellor e sxs aliadxs.
Embora inspirado pelo aspecto supostamente conservador da sociologia
francesa, o governo colonial privilegiou a tradição intelectual inglesa para a
institucionalização dessa nova ciência na Índia. O grupo de Willigndon estaria
especialmente impressionado pelo antropólogo britânico Herbet Spencer e suas ideias
articulando evolucionismo social e uma perspectiva fundada sobre o par função e
estrutara. Pouco importava se suas teorias já estavam ultrapassadas àquela época, desde
que não colocassem em xeque o projeto político em questão. Contudo, com a
indisponibilidade de Spencer à vaga, Patrick Geddes foi convidado a ser o professor
fundador do Departamento de Sociologia e Educação Cívica [Department of Sociology
and Civics], em novembro de 1919.
Patrick Geddes era um intelectual escocês portador de uma formação e ideias
peculiares. Sua formação compreendia geografia, química e botânica, tendo estudado
com grandes cientistas de seu tempo (MUNSHI, 2007, p. 175). Entre suas influências,
ele evocava o sociólogo Auguste Comte, o antropólogo Herbert Spencer, o filósofo
Aldous Huxley e o sociólogo Frédéric Le Play. Ele era um humanista e um pensador
pioneiro que teria concebido uma teoria ambiciosa englobando que pretendia englobar
todos os domínios do saber. Defendia uma sociologia da ação, que se realizaria através
da intervenção do sociólogo que aplica seu conhecimento e toma partido em soluções
necessárias à evolução das sociedades. Sua ecologia social estava intimamente ligada às
cidades e aos processos de urbanização, tendo publicado obras pioneiras a esse respeito,
como Cities in Evolution, em 1915. Ele desenvolveu assim importantes trabalhos como
urbanista e arquiteto em diversas cidades do mundo, como Madras, na Índia, e Tel-
Aviv, na Palestina.
15
Apesar de se apresentar como pesquisador competente, seu trabalho como
professor provocou rapidamente um sentimento de profundo descontentamento junto ao
conselho da universidade. Suas longas viagens de trabalho ainda nos primeiros anos –
sobretudo para suas atividades de urbanista na Palestina – eram mal recebidas por seus
colegas, que procuravam alguém mais engajado nos interesses da universidade. É
amplamente reconhecido que suas ideias teriam influenciado muito pouco os estudantes
da universidade, embora ele tenha formado alguns dos que viriam a se tornar
importantes sociólogos da Índia. Um deles, G.S. Ghurye, seria escolhido para substitui-
lo na direção do departamento.
O fato que a sociologia na Índia tenha sido estabelecida em Bombay como uma
aspiração conservadora por parte do governo colonial não implica necessariamente que
ela tenha se realizado enquanto tal. Na história de uma disciplina, somente quando
colocamos em perspectiva os diferentes aspectos de sua institucionalização é que
podemos compreender as relações complexas e ambivalentes que lhes constituem. Entre
a concepção e a concretização de uma disciplina, há inevitavelmente a mediação de
indivíduxs e instituições diversas. Essxs personagens, em seus laços com um meio
cultural e histórico dado, farão sempre a pluralidade dessas histórias. São precisamente
essas nuances que busco marcar nessa análise e para avançar, certas questões se
impõem. Por que Ghurye foi a pessoa designada a esta posição? Como ele desenvolveu
seu trabalho docente?
Govind Sadashiv Ghurye nasceu no seio de uma casta brâmane Sraswat,
detentora de negócios que viam seu declínio desde a geração de seu bisavô. Percebido
como a reencarnação de seu avô, falecido logo após seu nascimento, sua família o via
como aquele que havia chegado para restabelecer a sua fortuna. Assim, ele foi
rigorosamente educado nos rituais brâmanes e no conhecimento da língua sânscrita –
língua que seria central em sua produção intelectual. Para esse jovem brâmane,
estudante brilhante, o caminho mais natural seria sem dúvidas o renomado Elphistone
College de Bombay, que ele passará a frequentar em 1913 como estudante do Sanscrit
Honours Course. O Elphinstone College era então uma das mais antigas e reputadas
instituições de ensino superior de Bombay, formando as novas classes intelectuais da
Índia a partir de um modelo europeu de educação. Centro de intensa reflexão política, as
16
ideias que chegavam da Inglaterra passavam pela instituição e se misturavam ao clima
de contestação e de renovação intelectual que pairava entre sxs estudantes e professorxs,
muitxs dxs quais britânicxs. Fato notório é que a instituição estava investida então num
projeto de pensamento crítico, argumentativo e independente (UPADHYA, 2007, p.
198).
É em meio a essa atmosfera político-intelectual que Ghurye se formaria,
laureado por menções de honra por sua trajetória acadêmica. Mas, porque designar esse
jovem formado em ambiente tão liberal e progressista a essa nova cadeira criada pelo
vice-rei? Formado em seguida em sociologia por Patrick Geddes, Ghurye era em 1920
um estudante repleto de excelentes referências acadêmicas entre xs jovens em formação
de sua época. Mas, sobretudo, essa excelência era acompanhava de um aspecto
essencial aos interesses do novo departamento: Ghurye era um intelectual pouco afeito
aos debates políticos da época.
O diretor Covernton da Elphinstone College, e um membro do conselho da
universidade, observou o incomum desinteresse de Ghurye pelos debates
políticos na faculdade que havia produzido excepcionais líderes políticos,
como Ranade e Tilak. Outros dois membros do conselho, Anstey e Natrajan,
juntaram-se a Coovernton em sua missão para apoiar Ghurye. (Savur, op. cit.,
p. 16, minha tradução16
)
Não apenas Ghurye, mas também seu colega na vaga de Economia, C.N. Vakil,
havia sido nomeado sob essa exigência. No caso de Vakil, ele havia também sido
escolhido para substituir outro professor, Kushal Shah, que havia sido retirado da
cadeira em razão de seus interesses expressos em Economia Política, que se opunham
aos interesses institucionais. Foi nesse contexto que Ghurye foi enviado à Inglaterra
para seus estudos doutorais. Em Oxford, ele deveria se associar a Leonard Hobhouse ou
Sydney Webb como seus orientadores, dois professores de predileção do conselho da
universidade. Entretanto, aparece aqui um novo paradoxo nas escolhas, fruto de
equívocos que se produzem no espaço de trânsito intercontinental das teorias. Com
efeito, a escolha por Hobhouse e Webb é controversa, pois esses dois professores
apresentavam-se como liberais próximos também dos movimentos socialistas. A razão
mais provável para essa escolha, no entanto, é que ambos eram vistos como intelectuais
16
O original, em inglês: “Principal Covernton of the Elpinstone College, and a senate member, noticed
Ghurye’s unusual lack of political concern in his college, which had turned out brillant political leaders
like Ranade and Tilak. Two other important senate members Anstey and Natrajan joined Convernton in
his mission to promote Ghurye”. (Savur op. cit.: 16)
17
de respeito na Inglaterra, sendo que Hobhouse foi o fundador da cadeira de sociologia
na Universidade de Londres em 1907 (FREEDEN, 2004), numa época em que a
sociologia era muito pouco popular na Inglaterra17
.
Entretanto, após cerca de seis meses, Ghurye partiu para Cambridge para
trabalhar com o antropólogo W.H. Rivers, figura que ele considerará mais estimulante.
A razão de seu desprezo pelo trabalho de Hobhouse é bastante controversa: seja pela
indiferença do britânico pela sociedade indiana em geral, seja pela sua personalidade
extremamente entediante. Contudo, a reorientação da sociologia em direção à
antropologia não foi comunicada às autoridades de Bombay, senão apenas alguns meses
antes da defesa de sua tese. Esse fato foi visto então como uma perfídia por alguns
membros do conselho, inclusive Covernton, seu protetor, que desapontado teria pedido
demissão de sua vaga de conselheiro. A fim de penalizar Ghurye por essa decisão,
quando o pesquisador retorna à Bombay é-lhe conferido uma vaga inferior àquela
proposta incialmente: ao invés de Assistant Professor, ele ocupará o cargo de Reader,
normalmente destinado a professorxs convidadxs, e que ele manterá por uma dezena de
anos, até adquirir grande reconhecimento no campo. É então nessa situação tensa com
os interesses institucionais que ele desenvolverá o início de seu trabalho como diretor
do Departamento de Sociologia e Educação Cívica da Universidade de Bombay, um
departamento que se tornará rapidamente, e por muitas décadas, o mais importante
departamento de sociologia da Índia. Ainda mais, o departamento ocupará no debate
nacional uma posição bastante diferente daquela desejada pelo seu fomentador, o
governo colonial.
A atuação que Ghurye viria a desenvolver nos anos seguintes apenas
aprofundaria a distância entre os interesses institucionais e as preocupações intelectuais
do sociólogo – e nos ensina como trajetórias intelectuais são invariavelmente
contingentes, controversas e imprevisíveis. Em termos epistemológicos, suas posições
intelectuais passam a se cristalizar através de um nacionalismo crescente, que permeia
sua filiação a correntes em voga na época, como o difusionismo cultural e o
orientalismo. E é o discurso nacionalista que nos interessa aqui para concluirmos
apresentando um debate concreto no qual Ghurye envolver-se-ia momentos antes da
independência da Índia.
17
André Beteille (2007) faz uma interessante análise sobre a resistência da Inglaterra em institucionalizar
a sociologia ao longo das primeiras décadas do século XX, enquanto floresciam pesquisas na área da
antropologia, da história e da economia.
18
Como já dito, o pensamento filosófico e histórico europeu tronou-se central para
as classes políticas e intelectuais indianas – e eram apropriados de diversas formas pelos
próprios movimentos populares de base – a partir da metade do século XIX. Nesse
contexto, o nacionalismo subjacente à obra de Ghurye inscreve-se no interior de uma
espécie de “nacionalismo cultural” (UPADHYA, po. cit., p. 213). Perspectiva essa que
tem como uma de suas facetas certo revivalismo religioso conservador, alimentado ao
mesmo tempo por “discursos científicos” (como o difusionismo), discursos políticos
liberais (de independência) e tradições religiosas supostamente originais e demarcadoras
de uma grande civilização indiana.
Um dos debates de fundo nacionalista no qual Ghurye ver-se-ia implicado dizia
respeito ao lugar dos “povos tribais” 18
na nova nação indiana. Sendo provavelmente um
dos principais debates da antropologia e da sociologia àquela época, ele opunha aquelxs
que demandavam uma política protecionista dessas populações – ou seja, com a
demarcação de territórios e reservas – e aquelxs que defendiam a sua “integração” à
nação e a modernização. Em meio a esse panorama, Ghurye publicaria, em 1943, The
Aborigenes, so-called and their future [Os aborígenes, assim chamados e seu futuro]
como uma crítica às medidas tutelares adotadas em relação a esses povos. Opondo-se a
autores importantes como Verrier Elwin, que publica em 1944 seu The Aboriginals [Os
aborígenes], Ghurye marca sua posição como um nacionalista que considera todas as
populações do território indiano pertencendo a uma mesma civilização. A seus olhos, a
divisão casta-tribo é falsa, pois as tribos não seriam outra coisa senão grupos resistentes
à difusão progressiva do sistema de castas por todo o subcontinente ao longo dos
séculos. O fundo nacionalista desse discurso se faz presente como crítica das divisões
construídas pelxs missionárixs e administradorxs coloniais, que teriam estigmatizado
essxs assim-ditxs “aborígenes” como estrangeirxs à sociedade hindu19
. Para Ghurye,
18
A nominação “tribal” é atualmente contestada pelas comunidades referidas, sobretudo na Índia Central,
sendo o termo "Adivasis" aquele reivindicado e atualmente bastante aceita no debate político
contemporâneo. O termo deriva do hindi, sendo que adi significa "início" e vasi refere-se a "habitante".
Adivasis designa comunidades reclusas que não participariam do sistema de castas e/ou não possuem
práticas extensivas características do hinduísmo. Evidentemente, essa divisão é altamente contestada,
apesar de persistir com muita força. No plano das políticas governamentais, essas populações são tratadas
pelo termo Scheduled Tribes (CARRIN e GUZY, 2012, p. 1). 19
Nesse sentido, M.N. Srinivas afirma que: « If sociology was not respectable, anthropology was suspect
as nationalist opinion regarded it as an instrument of colonial policy, either to create division among
Indians or to keep large sections of them insulated from nationalist forces. For instance, attempts by
British rulers to keep the Scheduled Tribes from the mainstream of the nationalist sentiment and under the
19
portanto, buscava um conceito abrangente da civilização e da nação indiana (para usar
termos correntes à época) e The aborígines, juntamente com outros livros pode ser lido
como uma publicação extremamente politizada e inscrita no debate nacionalista
crescente.
Considerações finais
A trajetória de Ghurye é bastante mais complexa, é preciso dizer. Caberia ainda,
num exercício mais demorado de reconstituição de seu trabalho, levantar uma série de
controvérsias e ambivalências que gerações posteriores à sua – sobretudo de sxs
próprixs estudantes – trariam com vêemencia contestando o caráter orientalista e
abstrato de sua obra. Jovens pesquisadorxs passariam, mais tarde, especialmente a partir
da década de 1950, a denunciar seu alinhamento a um projeto institucional orientalista
(e, algumas décadas mais tarde ainda, brâmane) e pouco sensível aos desafios da
sociedade indiana independente (SRINIVAS, 1996). Avançarmos nesse sentido
representaria um aprofundamento de nosos argumento, no sentido de mostrar que as
contestações institucionais sucedem-se e engeendram sempre novos movimentos
intersticiais de contestação e, portanto, de produção teórica e organização disciplinar.
Quanto ao exercício comparativo entre Brasil e Índia, é interessante perceber
aproximações e distanciamentos entre os dois casos, sobretudo porque colocar ambos
em perspectiva pode resultar bastante instrutivo para compreendermos processos
"glocais" de institucionalização da disciplina. E, o que é especialemente interesante,
sem termos de passar, ao menos diretamente, pelas tradições antropológicas de países
centrais – algo que poderia normalmente soar a nós como algo pouco crível. São
diálogos necessários entre tradições marginalizadas no contexto global e que pouco se
cruzam num contexto em que a circulação de teorias ainsa é quase que inevitavelmente
mediadas (e peneiradas) pelos centros. No que pese as diferenças históricas mais ou
menos evidentes, fica claro que compartilhamos de processos que são bastante tensos de
institucionalização, talvez porque em ambos os casos essa transposição de uma nova
ciência deu-se como "ideias fora de lugar", para citar a expressão providencial de
Schwartz (2000) sobre a intelectualidade brasileira.
special care of the British in ‘reserved’ or ‘scheduled’ area convinced nationalist leaders that the
discipline was being used to keep the tribes in ‘zoos’ for scientific study by anthropologists and ICS
officials » (Srinivas et Panini, 1973 : 195).
20
O fato é que, tanto na geração de Florestan Fernandes e Antônio Candido, no
caso brasileiro, quanto na geração de G.S. Ghurye, no caso indiano, há agenciamentos
inesperados de projetos políticos e acadêmicos que contestam aqueles oficiais. E essas
histórias – apenas tangenciadas neste artigo – precisam ser exploradas, ao menos
enquanto contrapartidas, em sua potência desestabilizadora das narrativas institucionais
que são frequentemente repetidas e avançadas em textos no campo da história da
antropologia.
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