psicoterapias elementos para uma reflexÃo filosofica carlos drawin.pdf

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1 Psicoterapias: elementos para uma reflexão filosófica (1) Carlos Roberto Drawin (2) 1. Este texto resumo de um trabalho mais amplo é um conjunto de notas que serviu como base para as exposições feitas em dois eventos: o ―III Psicologia nas Gerais: Ciência, Profissão, Compromisso Social e Valorização do Trabalho do Psicólogo‖ e o ―VIII Congresso da Federação Latino-Americana de Psicoterapia‖. Como o argumento é longo e foi muito resumido, alguns de seus nexos podem ter ficado obscuros. Fica, apesar de tudo, como uma provocação para a discussão. 2. Psicólogo. Professor do Curso de especialização em Teoria Psicanalítica e do Departamento de Filosofia da UFMG. Podemos tomar como ponto de partida da nossa reflexão a Resolução CFP nº 10/00, de 20 de dezembro de 2000. Nela, após as considerações que justificam a resolução, o artigo primeiro estabelece que ―A psicoterapia é prática do psicólogo, por se constituir, técnica e conceitualmente, um processo científico de compreensão, análise e intervenção que se realiza através da aplicação sistematizada e controlada de métodos e técnicas psicológicas reconhecidos pela ciência, pela prática e pela ética profissional, promovendo a saúde mental e

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    Psicoterapias: elementos

    para uma reflexo filosfica (1) Carlos Roberto Drawin (2)

    1. Este texto resumo de um trabalho mais amplo um conjunto de notas que serviu como base para as

    exposies feitas em dois eventos: o III Psicologia nas Gerais: Cincia, Profisso, Compromisso Social

    e Valorizao do Trabalho do Psiclogo e o VIII Congresso da Federao Latino-Americana de

    Psicoterapia. Como o argumento longo e foi muito resumido, alguns de seus nexos podem ter

    ficado obscuros. Fica, apesar de tudo, como uma

    provocao para a discusso.

    2. Psiclogo. Professor do Curso de especializao

    em Teoria Psicanaltica e do Departamento de

    Filosofia da UFMG.

    Podemos tomar como ponto de partida da nossa

    reflexo a Resoluo CFP n 10/00, de 20 de

    dezembro de 2000. Nela, aps as consideraes que

    justificam a resoluo, o artigo primeiro estabelece

    que A psicoterapia prtica do psiclogo, por se constituir, tcnica e conceitualmente, um processo

    cientfico de compreenso, anlise e interveno que

    se realiza atravs da aplicao sistematizada e

    controlada de mtodos e tcnicas psicolgicas

    reconhecidos pela cincia, pela prtica e pela tica

    profissional, promovendo a sade mental e

  • 2

    propiciando condies para o enfrentamento de

    conflitos e/ou transtornos psquicos de indivduos ou

    grupos. (3)

    3. A exposio que se segue est baseada em extensa

    bibliografia. No entanto, eliminamos todas as

    referncias bibliogrficas e quase todas as notas

    explicativas com a finalidade de tornar este texto que no tem objetivo acadmico uma leitura mais leve. Apesar disso, reconhecemos que as referncias

    filosficas podem dificultar a compreenso por parte

    daqueles que tm menos conhecimento de histria

    da filosofia. Estes podem, porm, se ater apenas aos

    pontos essenciais da argumentao.

    uma boa definio se considerarmos a finalidade

    maior dos conselhos profissionais, que consiste em

    legislar com o intuito de orientar tanto a comunidade

    quanto os profissionais que devem servi-la com

    excelncia tcnica e responsabilidade tica. No

    entanto, sob a aparente serenidade da definio e do

    consenso, as questes so complexas, as dvidas,

    cruciantes e as discordncias fervilham. Basta-nos

    uma breve rememorao da histria das ideias

    psicolgicas para constatarmos que a associao

    entre psicologia e cincia altamente problemtica.

    Afinal de contas, o que Cincia? Ela se confunde

    com a imagem popular do cientista e com a sua

    autoridade difusa? Ou um gnero de conhecimento

    cujos contornos os epistemlogos se esforam em

    demarcar? E o que Psicologia? um domnio bem

  • 3

    estabelecido de fenmenos a ser estudados, de

    mtodos a ser seguidos e de teorias a ser refutadas

    ou aceitas provisoriamente? Ou um campo

    heterclito de todas essas coisas? E qual seria a

    inter-relao entre esses dois termos, cincia e

    psicologia? So questes intrincadas e de difcil

    elucidao e este pequeno texto no tem o objetivo

    de adentrar em terreno to espinhoso, mas apenas

    assinalar a imensa complexidade subjacente s

    definies aparentemente claras e quase

    consensuais. Por outro lado, a reflexo no deve

    recuar diante das dificuldades, pois, ainda que

    precria, talvez ela seja capaz de suscitar a discusso

    necessria acerca de uma rea de atuao

    profissional de imensa difuso e inegvel relevncia

    social.

    Vamos ento fazer uma brevssima rememorao

    filosfica sobre a ideia de psicologia. A palavra

    rememorao no fortuita e nem significa um

    registro histrico irrelevante para a discusso

    contempornea. O esquecimento do passado um

    sintoma social, a outra face da hipertrofia do

    presente, e ambos so modos de subjetivao

    prprios de um mundo unidimensional, centrado na

    satisfao real ou virtual dos indivduos e avesso a

    todo distanciamento crtico. A rememorao

    simultaneamente distanciamento e apropriao do

    tempo pelo sujeito humano, uma operao atravs

    da qual a vida potenciada, a morte

  • 4

    existencialmente apropriada e o presente

    relativizado.

    1. Breve percurso histrico

    1.1. A Razo Clssica: podemos considerar a

    expresso razo clssica num sentido bem amplo. No a referindo apenas ao perodo estritamente

    clssico do pensamento grego poca exemplar representada por Scrates, Plato e Aristteles , mas abrangendo toda a concepo pr-moderna de

    razo. Para caracterizar a concepo clssica de

    razo podemos diferenciar, apenas com um objetivo

    didtico, dois termos que podem ser considerados

    como sinnimos: paradigma e modelo. Vamos

    definir paradigma como um modelo de extenso

    mais ampla dentro do qual podemos identificar

    diversos modelos mais restritos. Assim, a razo

    clssica pode ser definida, de modo muito

    esquemtico, segundo um paradigma metafsico e

    um modelo, ou um modo de pensar (Denkform), de

    tipo cosmocntrico.(4)

    4. Essa exposio histrica obviamente superficial,

    mas tem como objetivo defender algumas teses

    sobre o significado filosfico das psicoterapias.

    Caracterizamos o paradigma metafsico por meio da

    seguinte proposio : a razo tem um alcance

    ontolgico, isto , h uma identidade ou homologia

    entre o ser e o pensar e h uma inteligibilidade

    intrnseca da realidade, do ser (noets) que

  • 5

    corresponde inteligncia espiritual do ser humano

    (nos), que, enquanto tal, capaz de aprend-la. A

    inteligncia acolhe a experincia humana em toda

    sua riqueza e procura transcrev-la em diferentes

    nveis discursivos.

    Caracterizamos o modelo cosmocntrico por meio

    da seguinte proposio: a inteligibilidade consiste na

    ordem da totalidade das coisas, que o cosmos, o

    que implica, portanto, que h uma correspondncia

    entre o homem e o cosmos no qual ele est inserido.

    H diversas formulaes dessa correspondncia: o

    homem como um microcosmos (Demcrito), a co-

    pertinncia (syngneia) entre a alma e as formas

    (Plato), a vida contemplativa possibilitada pela

    notica aristotlica, o axioma helenstico do

    seguimento da natureza enquanto ordem racional,

    etc.

    Ora, o advento do Cristianismo introduziu uma forte

    tenso estrutural nessa concepo da razo clssica.

    Em sntese, pode-se dizer que a doutrina da criao

    do mundo a partir do nada (ex-nihilo) implica o

    abandono da ideia de que o cosmos a fonte ltima

    de inteligibilidade. Ou seja, implica o abandono do

    modo de pensar cosmocntrico. A questo

    fundamental do pensamento cristo ser, ento, a

    seguinte: possvel desvincular o paradigma

    metafsico do modelo cosmocntrico ou possvel

    reconstruir o paradigma metafsico a partir de um

    outro modo de pensar? Essa questo atravessa e

  • 6

    polariza todo o pensamento medieval, e em seu solo

    se enraza o que ir se tornar a frondosa rvore da

    modernidade.

    O que nos interessa nessas breves e esquemticas

    consideraes sobre a razo clssica?

    Em primeiro lugar, a ideia de que h uma

    correspondncia entre a inteligncia e o inteligvel,

    porque a realidade no estranha demanda

    humana por sentido. Uma vez que a inteligibilidade

    inclui a inquietao existencial e a exigncia moral,

    ento a demanda por sentido no uma iluso, mas

    brota do exerccio mesmo da razo. Por isso, seja na

    concepo platnica da convergncia constitutiva e

    ideal da alma e do mundo, seja na concepo bblica

    do homem como imagem de Deus (imago Dei), a inteligibilidade, do cosmos em si mesmo ou

    proveniente do ato criador de Deus, inclui

    necessariamente uma dimenso tica. Isso significa

    que h quase que uma interpenetrao entre a

    ontologia, a antropologia e a tica. Mesmo na

    orientao mais naturalista da antropologia

    aristotlica ou na orientao materialista da

    antropologia epicurista, a pergunta pela essncia do

    humano (eidos) no pode estar dissociada da

    pergunta pelo fim do humano (telos). Vamos

    formular as coisas do seguinte modo: as aporias do

    saber antropolgico tanto na teoria aristotlica da alma como forma do corpo, quanto na teoria

    epicurista da alma como agregado de tomos sutis

  • 7

    so de alguma forma ultrapassadas no domnio da

    sabedoria prtica. Ou seja, embora possamos falar de

    uma psicologia ou de uma antropologia enquanto

    cincia ou enquanto saber, este saber est

    intimamente vinculado sabedoria. Por isso,

    podemos dizer que o sbio ou o homem prudente

    (phrnimos) o verdadeiro psiclogo do mundo

    antigo, assim como o mestre espiritual o que orienta o discernimento entre a carne (srx) e o

    esprito (pneuma) na intimidade do corao humano

    (karda) o verdadeiro psiclogo do mundo cristo e medieval.

    Em segundo lugar a dificuldade em conciliar a

    teologia crist com o modo de pensar cosmocntrico

    acabou levando sobretudo aps a condenao por parte da Igreja, em 1277, das tentativas mais ousadas

    de conciliao a uma profunda transformao do paradigma metafsico. Podemos formular o

    problema de fundo do seguinte modo: se a

    inteligibilidade provm de Deus e o homem,

    enquanto imagem de Deus (imago Dei), o nico ser intramundano vocacionado para a

    transcendncia, ento apenas do homem espiritual

    aberto a Deus e tocado por sua Graa que pode

    provir a verdade e somente nessa abertura interior a

    salvao pode ser realizada. Esta a profunda

    intuio agostiniana: no se deve buscar a salvao

    nas coisas exteriores, mas antes permanecer em si

    mesmo, pois na interioridade do homem que habita

  • 8

    a verdade (Noli foras ire, in teipsum redi, in interiori

    homine habitat veritas). Esta proposio agostiniana,

    que inspirar todo o pensamento cristo posterior,

    significa que no podemos nem nos identificar com

    a ordem csmica em relao qual Deus absolutamente transcendente e nem nela encontrar uma sada tica. Nessa perspectiva, a face negativa

    de nossa vocao para a transcendncia o pecado,

    aquilo que Kant posteriormente designou como o

    mal radical (das radikale Bse). Nossa cura, portanto, s pode provir de nossa interioridade, da

    converso ao mais profundo de ns mesmos, que a

    maior transcendncia na mais ntima interioridade

    (interior intimo meo et superior summo meo). Essa

    concepo agostiniana a da valorizao da interioridade como radicalmente diferente de todas

    as coisas vai levar revoluo cartesiana da filosofia e racionalidade moderna.

    Queremos enfatizar que a psicoterapia com seus diferentes objetivos, mtodos e tcnicas concebida enquanto cuidado da alma que vincula o homem ao

    cosmos ou a Deus, pode ser considerada como uma

    cincia apenas porque na razo clssica no se pode

    desvincular cincia de moralidade e de sabedoria. A

    psicoterapia racional porque a razo sapiencial.

    1.2. A razo moderna: podemos compreender, ento,

    a partir da orientao agostiniana para a

    interioridade, o profundo significado tico e

    existencial da filosofia cartesiana (5). A mente que

  • 9

    se exprime na primeira pessoa como um eu inteiramente diferente de todas as outras coisas, pois

    todas as outras coisas se colocam diante do eu que as

    percebe, sente e pensa. Elas esto postas diante de

    mim e so, portanto, ob-jetos, enquanto eu estou e sou numa posio de sujeito. Ns devemos nos curar

    de uma ateno polarizada para fora, para o mundo

    dos sentidos e, por isso, devemos nos submeter ao

    mtodo da razo pura, ao mtodo desta mathesis

    universalis que se pode vislumbrar nas cincias da

    natureza. Na Segunda Meditao, no experimento mental do pedao de cera podemos acompanhar a

    inteno radical deste procedimento:

    5. Tomamos aqui a filosofia de Ren Descartes

    (1596-1650) como referncia exemplar para o

    diagnstico de alguns impasses da razo moderna.

    Mas, na lgica esquemtica de nossa exposio, tais

    impasses no se restringem ao pensamento

    cartesiano.

    os corpos no so conhecidos pelos sentidos ou pela

    faculdade de imaginao, mas apenas pela

    compreenso, e...

    no so conhecidos pelo fato de serem vistos ou

    tocados,

    mas apenas por serem concebidos pelo pensamento.

    Assim, a inteligibilidade no provm da estrutura

    ontolgica do cosmos inteligvel como em Plato,

  • 10

    nem da forma inteligvel presente nas substncias,

    como em Aristteles, mas provm do cogito, da

    inteligncia humana, que, se submetendo ascese do

    mtodo, apreende a verdade em sua interioridade.

    No entanto, a verdade s pode ser apreendida pelo

    sujeito pensante, pela res cogitans, porque o acesso

    ao real nos assegurado por Deus, pela Res Infinita.

    Essa a funo essencial do chamado argumento ontolgico: assegurar a passagem da certeza do sujeito verdade do real pela superao da diferena

    entre o conhecimento (ordo cognoscendi) e a

    realidade (ordo essendi). Temos, ento, um novo

    modo de pensar no interior do paradigma metafsico,

    o modelo ontoantropolgico, que pode ser

    designado, em contraposio metafsica do ser,

    como metafsica do sujeito. Aqui aparece a clebre

    objeo do crculo cartesiano, mas, deixando de lado

    este problema estrutural da filosofia cartesiana, ns

    gostaramos de enfatizar algumas dificuldades que

    decorrem desse modo de pensar e que interessam ao

    tema que estamos abordando.

    Em primeiro lugar coloca-se a questo acerca da

    verdade da realidade. A realidade verdadeira no

    pode ser aquela apreendida pela experincia

    sensvel, pois esta s pode ser fonte de erro e iluso.

    No mundo vazio da dvida metdica a realidade

    verdadeira s pode ser aquela reconstruda pela

    razo e que satisfaa as exigncias da compreenso

    racional e esta a realidade geometrizada dos

  • 11

    objetos cientficos, a res extensa. O mundo

    matematicamente reconstrudo deve ser efetivado

    pela atividade da inteligncia tcnica e produtiva

    (poitica), pois a natureza objetivada da fsica-

    matemtica indiferente ao ser humano e s se

    humaniza quando por ele submetida e plasmada.

    Esta radical objetivao do mundo, a incluindo o

    corpo humano, enquanto objeto da anatomia e da

    fisiologia, significa que o homem, na ausncia de

    uma ordem prvia exigncia crtica da

    racionalidade moderna (cogito), deve construir uma

    ordem e, por isso, a Medicina e a Mecnica so os

    frutos maduros do sistema cartesiano. Apesar disso,

    essa ordem na qual o homem pode encontrar o

    sentido de sua vida no pode ser produzida pela

    ambio desmedida, pela hybris humana, mas deve

    se submeter ascese da razo e a uma tica da

    autodeterminao racional.

    Em segundo lugar coloca-se a questo acerca da

    instncia normativa que orienta a construo da

    ordem humana do mundo. Se o homem encontra o

    sentido de sua vida numa ordem reconstruda por ele

    por meio de uma razo assegurada por Deus, pois

    Deus o fundamento do mtodo, ento a sua

    realizao moral de algum modo projetada no

    futuro. A Mecnica e a Medicina esto

    racionalmente ordenadas, mas como estabelecer uma

    tica tambm racionalmente ordenada? Ou seja, se o

    mtodo matemtico (more geomtrico) possibilita a

  • 12

    ordenao cientfica do mundo exatamente porque o

    mundo reconstrudo como uma estrita

    objetividade, como ele poderia possibilitar tambm a

    orientao tica da ao humana fundada na

    liberdade e na histria? Ora, a imensa dificuldade

    deste problema leva Descartes proposio, na

    terceira parte do Discurso do Mtodo, da chamada moral provisria (morale par provision). Esta, na impossibilidade de se construir uma tica no espao

    conceptual do modelo matemtico e mecanicista do

    mundo, torna-se uma tica de contedo

    convencional, de respeito aos costumes e tradies.

    Apesar da pretenso cartesiana de alcanar uma tica

    estritamente racional, ela permanece provisria, isto , como uma proviso de sabedoria prtica que

    nos ajuda na travessia de nossa existncia.

    Teramos, portanto, dois domnios na racionalidade

    moderna:

    - O campo cientfico: que o domnio emprico,

    caracterizado pela rigorosa objetivao

    proporcionada pela racionalidade matemtica e

    separado da experincia antropolgica concreta, isto

    , a experincia histrica e existencial.

    - O campo filosfico: que o domnio metafsico

    que visa fundamentao da cincia no eu penso, no cogito cartesiano. Este uma subjetividade pura

    que possui um estatuto transcendental, ou seja, no

  • 13

    se confunde com a experincia dos sujeitos

    concretos mergulhados no mundo e na vida.

    Essas consideraes filosficas tm como objetivo

    delinear o seguinte problema: a psicologia parece

    no ter um lugar no sistema de saber construdo pela

    razo moderna. Ela no se inclui na esfera da alma,

    que o domnio metafsico da subjetividade pura e

    no se identifica com a esfera do corpo, que o

    domnio cientifico da objetividade anatmica e

    fisiolgica. A histria da Psicologia um imenso

    esforo de escapar a este dilema. No possvel, no

    entanto, examinar aqui os xitos e fracassos das

    alternativas tericas que foram propostas. O que

    queremos ressaltar que a Psicologia ao menos em sua dimenso clnica parece fora de lugar, carente de um espao racional legtimo. Ao voltar-se para o

    sujeito concreto, na trama de suas vivncias e nas

    dobras obscuras de seus afetos, a Psicologia clnica,

    comprometida com o cuidado, com a cura do ser

    humano, encontra-se exilada do logos, da razo em sua concepo moderna. Isso no significa que

    ela se perde no inefvel das vivncias, mas que o

    discurso que a expressa e estrutura no pode ser o

    mesmo que adequado ao estudo da natureza e

    tambm no se confunde com a pretenso filosfica

    de alcanar um conhecimento apodctico e

    autofundante.

    A incluso da psicologia no domnio cientfico

    implica uma exigncia de objetivao que apenas a

  • 14

    fisiologia pode responder, uma vez que a sua

    estratgia metodolgica concebe o corpo como

    inteiramente exteriorizado em relao experincia

    subjetiva. Da a tendncia contempornea de

    assimilao da psicologia pela fisiologia, como

    ocorrer no mbito da polmica anticartesiana das

    neurocincias. Por outro lado, a incluso da

    psicologia no domnio filosfico implicaria sua

    transformao num saber metafsico do tipo da

    antiga psicologia racional (psychologia rationalis), estudo das faculdades da alma que se

    distancia da experincia concreta dos sujeitos no

    esforo de apreender a essncia universal do ser

    humano.

    A idia fundamental que queremos enfatizar por

    meio desta breve incurso na histria da Filosofia

    que no h lugar para a Psicologia clnica no espao

    epistmico da racionalidade moderna. Algo

    semelhante ocorre com a tica enquanto sabedoria

    prtica. No entanto, o avano do processo de

    modernizao, ao abalar os referenciais simblicos

    da sociedade tradicional, impe de modo cada vez

    mais intenso uma resposta angstia e ao

    desamparo humanos. A aporia pode ser formulada

    do seguinte modo: a psicologia clnica e a tica

    sapiencial so, ao mesmo tempo, impossveis e

    necessrias. Desse modo, a demanda de sentido, no

    sendo acolhida no universo da racionalidade

    moderna, converter-se- em crtica da razo.

  • 15

    2. Um breve diagnstico filosfico

    A crtica da razo pode ser configurada como uma

    crise no interior da modernidade. Para que essa ideia

    fique mais clara precisamos de alguns rpidos

    esclarecimentos. Denominamos como modernidade

    no apenas um perodo cronolgico bem delimitado,

    mas uma poca na qual o presente goza de primazia

    axiolgica em relao ao passado e tradio. Ora,

    ao refluir para o presente, a poca moderna

    desconstri a solidez do mundo e impe a

    problemtica da subjetividade, isto , impe a

    diferenciao entre o ser humano e a totalidade das

    coisas. justamente essa diferenciao da

    conscincia em relao ao mundo que podemos

    definir como subjetividade. Da a relao intrnseca

    entre subjetividade e modernidade. Como, no

    entanto, podemos restabelecer a relao entre o

    sujeito e o mundo? Na razo clssica o

    restabelecimento dessa relao foi justamente a

    tarefa do modo de pensar cosmocntrico e

    teoantropocntrico. Na razo moderna essa relao

    foi submetida a uma severa crtica, como acabamos

    de ver ao tomarmos como exemplo paradigmtico o

    pensamento cartesiano. As aporias do sistema

    cartesiano expressam no plano da reflexo as

    contradies da modernidade, o que pode ser

    resumido filosoficamente do seguinte modo:

    a) No plano da modernizao social: o pensamento

    moderno se realiza como eminentemente

  • 16

    epistemolgico e voltado para a justificao da

    cincia, porque h na modernidade um projeto de

    objetivao do mundo, um projeto de dominao da

    natureza e do homem, enquanto parte da natureza,

    atravs da atividade da inteligncia tcnica, da

    racionalidade instrumental e da lgica sistmica O

    progresso da racionalidade cientfica se inscreve na

    perspectiva da modernizao social, isto , da

    construo de uma ordem social que maximiza o

    desempenho, a funcionalidade e a produo.

    b) No plano da modernizao cultural: o pensamento

    moderno atravessado em sua realizao por uma

    exigncia antropolgica, a de responder o que antes

    designamos como demanda de sentido. Esta carncia

    existencial da racionalidade moderna acompanha

    como uma sombra, que no pode ser eliminada, o

    ideal iluminista de uma natureza dominada e posta a

    servio do homem e de uma sociedade democrtica,

    eficientemente organizada e transparente. J no

    pensamento moderno clssico essa exigncia se

    expressou em pensadores como Montaigne, Pascal e

    Rousseau para, nos sculos seguintes encontrar uma

    ressonncia cada vez mais forte em Kierkegaard,

    Schopenhauer, Nietzsche e Heidegger. Esta

    exigncia antropolgica afirma que a natureza do ser

    humano traz consigo um excesso que transborda do

    continente da objetividade cientfica. A experincia

    humana concreta, o ethos em seus diversos aspectos

  • 17

    religioso, moral, esttico e psicolgico irredutvel aos esforos de objetivao.

    A ciso entre os dois campos ou entre as duas

    vertentes da modernizao, a modernizao social e

    a modernizao cultural, insustentvel, porque o

    progresso social, a construo da ordem sistmica,

    no pode prescindir da dimenso antropolgica na

    qual se inclui a instncia sapiencial. Por outro lado, a

    experincia humana que se d no espao de um

    mundo racionalizado no pode prescindir de uma

    forma discursiva que a expresse, estruture e a

    justifique. Ora, campo da tica aparece justamente

    na articulao entre esses dois outros campos, o

    epistemolgico e o antropolgico, uma vez que a

    tica impe, como Kant pretendeu genialmente

    instaurar, uma ampliao da racionalidade. A tica

    coloca-se para alm da objetividade das cincias da

    natureza e mostra que a racionalidade cientfica no

    pode satisfazer a nossa busca de conhecimento, pois

    esta se enraza no solo mais profundo do interesse

    prtico da razo.

    Com isso abre-se um abismo entre a teoria e a

    prtica, entre a Cincia e a tica, um abismo que

    deve ser transposto pela faculdade de julgar como

    aquela que interroga acerca do fim ou acerca do

    sentido da vida humana no mundo. Por isso, as trs

    questes que regem o pensamento crtico Que posso saber?, O que devo fazer?, O que me permitido esperar? so articuladas, como bem viu

  • 18

    Heidegger, numa profunda retomada da questo

    antropolgica fundamental: O que o Homem? Kant

    foi um pensador da modernidade e, portanto, a

    pergunta pelo ser do humano expressa a demanda de

    sentido como exigncia de se passar da subjetividade

    transcendental, instncia de fundamentao da

    cincia, ao plano da experincia histrica e

    existencial na qual o sentido se expressa e se realiza.

    3. Psicologia clnica e Cincia

    A partir desse breve diagnstico filosfico pode-se

    perguntar: a Psicologia clnica e, em especial, as

    psicoterapias, podem e/ou devem ser definidas como

    cincias? A nossa resposta direta, lapidar e prvia

    que as psicoterapias no podem e no devem ser

    definidas enquanto cincia. No podem porque como argumentamos acima elas no se enquadram no espao epistmico da racionalidade moderna.

    No devem porque sua no cientificidade no um

    defeito a ser corrigido no futuro, mas o trao

    essencial de um saber cuja fecundidade reside

    justamente em resistir pretenso de uma

    objetividade e de uma operacionalidade universais.

    As psicoterapias possuem um carter sapiencial que

    as aproxima dos antigos exerccios espirituais e sua

    riqueza consiste no s em resistir ao avano da

    administrao total da vida, mas em preservar o

    lugar antes ocupado pela sabedoria antiga.(6)

  • 19

    6. A expresso exerccios espirituais foi consagrada pela espiritualidade crist. Mas aqui

    tomamos a expresso em sentido amplo, como o

    fizeram Pierre Hadot e Michel Foucault, quando

    discorreram sobre o autoconhecimento (gnthi

    seautn) e as prticas do cuidado e da formao de si

    (epimleia heauto) na cultura antiga.

    Esta resposta que definimos como lapidar nada tem,

    entretanto, de primorosa, definitiva ou fechada, mas

    antes uma resposta prvia. Assim, a sua conciso

    no tem outra finalidade do que suscitar a reflexo e

    a discusso sobre uma problemtica muito intrincada

    e que, segundo nossa opinio, no pode ser

    circunscrita ao mbito da epistemologia. Ou seja, o

    seu ponto central no o de estabelecer critrios de

    cientificidade para, ento, demarcar no campo

    disperso, fragmentrio e heterogneo das

    psicoterapias aquelas que so epistemologicamente

    legtimas e aquelas que no o so. A discusso no

    pode se restringir a uma tarefa disciplinar, ainda que

    se reconhea como ser em seguida ressaltado a necessidade de propor parmetros de referncia

    normativa para as psicoterapias. H, no entanto, uma

    questo prvia, anterior abordagem epistemolgica

    e que possui um estatuto antropolgico: qual o

    significado humano das psicoterapias num mundo

    caracterizado pela racionalidade tcnica e

    econmica, num mundo em que a rapidez e a

    eficincia parecem apontar para uma medicalizao

  • 20

    total como correlato de uma sociedade totalmente

    administrada?

    No obstante, para que essas consideraes no

    sejam confundidas com simples irracionalismo ou

    mera defesa de saberes esotricos e alternativos

    gostaramos de propor algumas brevssimas

    consideraes epistemolgicas. Toda cincia se

    depara com o problema da passagem dos enunciados

    protocolares ou observacionais em sua condio de

    particularidade aos enunciados tericos em sua

    pretenso de universalidade.

    Esse um problema central da epistemologia

    contempornea. H diversas propostas em filosofia

    da cincia para resolv-lo, do critrio

    verificacionista concepo popperiana da

    falsificabilidade. Apesar da ampla aceitao da

    soluo popperiana, a ideia de refutao crtica exige

    a distino entre o observvel e o inobservvel,

    sendo essa diferena problemtica, uma vez que

    ocorreria no interior de um sistema de crenas. Seja

    como for, no se pode negligenciar, conforme

    mostra a tese de Duhem-Quine, o incmodo

    reconhecimento de que as teorias cientficas no

    decorrem, mas so subdeterminadas pelos dados

    observacionais.

    Essas consideraes no tm como propsito

    subsidiar a opo por uma ou outra soluo, mas

    apenas assinalar a imensa dificuldade em se

  • 21

    estabelecer um critrio universalmente aceitvel de

    demarcao entre cincia e no cincia. Para

    simplificar poderamos considerar na perspectiva paradigmtica das cincias da natureza que a cincia normal tende absoro total do individual e

    do particular, apesar de sempre nela permanecer um

    resduo inobjetivvel. O que no aceitvel para o

    conjunto dos saberes cientficos como procurou

    mostrar a j velha discusso metodolgica

    (Methodenstreit), iniciada na segunda metade do

    sculo XIX, a partir do impacto da concepo

    hermenutica de razo.

    Assim, no caso das cincias do homem que so, na

    verdade, cincias humanas, esses resduos no

    apenas permanecem como um incmodo, como um

    problema que deveria ser idealmente resolvido, mas

    so irredutveis e, mais do que isso, so essenciais.

    Se ns reunirmos esses elementos o individual, o particular, o singular numa nica rubrica e a designarmos como dimenso clnica, aqui tomada

    em seu prprio sentido etimolgico, ento se pode

    dizer que o polo clnico est sempre presente nas

    cincias humanas e, de modo especial, na

    Psicologia. Devemos reconhecer, por conseguinte,

    que o polo clnico resiste ao projeto de

    universalizao e objetivao da cincia e

    desencadeia uma crise epistemolgica crnica e

    insanvel na Psicologia, uma crise atestada

    justamente pela multiplicidade das psicoterapias.

  • 22

    No h, portanto, algo como a cincia que possa servir de referncia para as psicoterapias. H, talvez,

    uma viso cientfica do mundo que reivindica hegemonia, mas que comporta valores que devem

    ser amplamente discutidos pela sociedade. Ser que

    a viso cientfica do mundo real e a viso religiosa e metafsica seriam ilusrias? Ou poderamos supor, como o faz Schopenhauer, por

    exemplo, que a iluso se encontra antes do lado da

    representao e, por conseguinte, daquilo que

    consideramos ser a realidade fenomnica e objetiva?

    De qualquer forma, o que designamos como real no

    pode ser confundido com o reducionismo fisicalista,

    o real pode bem ser mais rico do que aquilo que

    proposto pelas cincias naturais. Assim, o excesso

    que nos habita e que alimenta a interrogao

    filosfica acerca da verdade ltima das coisas no

    pode ser simplesmente descartado como iluso.(7)

    7. muito importante sublinhar que no estamos

    polemizando contra a cincia ou contra a

    racionalidade, mas sim contra a pressa em definir

    ambas. A atual crise econmica internacional pode

    ilustrar o que pretendemos. A Economia, com o seu

    aparato matemtico, parecia ser uma cincia quase

    exata. Nos ltimos vinte anos o neoliberalismo se

    colocou como expresso da verdade cientfica da

    Economia, o que era continuamente reiterado por

    grande parte da comunidade dos economistas. A

    perplexidade que agora toma conta das anlises

  • 23

    econmicas incluindo as intervenes no ltimo Frum Econmico Mundial de Davos e o estranho recurso terminologia psicolgica que invade o debate econmico (confiana, receio,

    expectativa, etc.) mostram o estatuto imaginrio

    daquilo que se julgava como realidade

    cientificamente demonstrada. Neste caso, onde

    estaria a iluso? No estaria do lado daquela

    pretensa cincia que antes se posicionava altaneira

    diante do que estigmatizava como velha e renitente

    ideologia?

    A ideia de disciplina cientfica est, portanto, sob

    contestao. A ideia de cincia se baseia na

    derivao dos diversos modelos tericos da Fsica

    Bsica. Mas isso uma crena e no algo

    demonstrvel. No h um conjunto consistente e

    nico de leis fundamentais, pois na prpria Fsica

    Bsica o mundo macroscpico e o mundo quntico

    no esto ainda completamente unificados. A crtica

    epistemolgica que julga como ilusria ou como uma projeo subjetiva uma determinada suposio

    de existncia, como, por exemplo, a dos deuses apenas formaliza um processo histrico de

    transformao cultural, de reordenao do espao

    simblico, mas no o cria. Isto significa que a razo,

    a racionalidade cientfica, no independente do

    processo histrico e cultural. ilustrativo o caso da

    Biologia Molecular: seu imenso xito como

    programa de pesquisa no provm apenas de sua

  • 24

    fecundidade, da verdade que contm e que reflete

    como as coisas so em si mesmas, mas a sua

    concepo cartesiana da natureza e do corpo o

    resultado de um caminho histrico especfico, um

    caminho, inclusive, de menor resistncia. Os

    procedimentos metdicos hegemnicos, que

    parecem definir uma disciplina cientfica, costumam

    pressupor objetos altamente limitados e podem

    eliminar ou sufocar por muito tempo interrogaes

    complexas e fundamentais. Muitas vezes alguns dos

    problemas mais difceis so deixados de lado

    porque, como alguns estudiosos da cincia j

    observaram, no se podem construir carreiras

    cientficas brilhantes com fracassos persistentes. Os

    programas de pesquisa no so esquemas

    metodolgicos puros, orientados por critrios

    racionais asspticos, mas seguem um sistema de

    crenas e os fenmenos que resistem ao mtodo so

    deixados de lado.

    4. tica e Psicologia Clnica

    H, no entanto, outro argumento muito mais tangvel

    do que o da discusso metafsica. A concepo

    fisicalista do mundo que afirma 32 que o mundo o que as cincias da natureza supostamente

    descrevem no capaz de fundar uma tica. preciso, portanto, discutir a axiognese da viso cientfica do mundo, tanto no sentido da origem valorativa da Cincia como no sentido de produo

    de valores pela prpria Cincia. Uma discusso que

  • 25

    se nos impe, pois a partir da gravssima crise

    ecolgica na qual estamos todos mergulhados, no

    mais admissvel considerar que o progresso da

    racionalidade tecnocientfica por si mesmo

    desejvel e contribui para a realizao e

    emancipao humanas. Esse argumento faz da tica

    enquanto experincia antropolgica fundamental medida da racionalidade cientfica. A tica torna-se,

    ento, mais do que a epistemologia, como defende

    Paul Feyerabend, um dos mais eminentes filsofos

    da cincia do sculo passado, o mtron da verdade

    cientfica.

    Se aceitarmos que as psicoterapias se inscrevem no

    polo clnico, embora no o esgotem, e que esto

    voltadas para o homem concreto, ento podemos

    problematizar a ideia da cientificidade das

    psicoterapias. Ou seja, problematizar a ideia que elas

    possam ser includas num conjunto bem demarcado

    que possa ser nomeado como cincia.

    A associao entre psicoterapia e cincia no ,

    entretanto, insensata. Mas , ao contrrio, uma

    preocupao legtima do legislador, que no pode se

    conformar com a anarquia do campo psicoterpico,

    mergulhado numa temvel escurido impressionista

    na qual todos os gatos so pardos, ameaada pelo

    caos do ecletismo em que tudo seria possvel e,

    portanto, aceitvel. Tal advertncia, porm, no deve

    ser um obstculo, mas uma exigncia para o

    aprofundamento de nossa reflexo crtica o que

  • 26

    implica levantar a suspeita acerca da facilidade com

    que o termo cincia circula como moeda de legitimao de determinados saberes, ou seja, como

    um engodo do imaginrio que faz de um nome, de

    uma universalidade vazia, de um sopro de voz (flatus vocis) a garantia ideologicamente eficiente da

    racionalidade e da respeitabilidade institucional.

    Vejamos o que diz um conhecido manual sobre as

    psicoterapias:

    Na atualidade, existem mais de 250 modalidades distintas de psicoterapias, descritas de uma ou de

    outra forma em mais de 10 mil livros e em milhares

    de artigos cientficos relatando

    pesquisas realizadas com a finalidade de

    compreender a

    natureza do processo psicoterpico

    e os mecanismos de mudana e de comprovar a

    sua efetividade, especificando em

    que condies devem ser usados e para quais

    pacientes.

    Apesar de todo esse esforo, evidncias

    convergentes so escassas. A controvrsia

    ainda grande, e o reconhecimento

    da psicoterapia como cincia tnue. (Cf.: CORDIOLI,

    Aristides Volpato e col. Psicoterapias:

    abordagens atuais. 3. Ed. revista. Porto

    Alegre: Artmed, 2008. p. 20).

  • 27

    A partir dessa citao gostaramos de propor trs

    hipteses bem simples como elementos para a

    reflexo e a discusso:

    Em primeiro lugar, queremos assinalar a aparente contradio entre as expresses artigos cientficos relacionados psicoterapia e a psicoterapia como cincia tnue. Falamos em aparente contradio porque acreditamos que a questo a seguinte: a

    cientificidade parece ser interna ao modelo adotado.

    Ou seja, pode-se discutir sobre a cientificidade ou

    pode-se dizer sobre o rigor crtico ou a

    especificidade epistmica de uma psicoterapia luz

    de determinado modelo (cognitivista,

    comportamental, psicanaltico, existencial, etc.), mas

    no se pode faz-lo do ponto de vista de um critrio

    universal de cincia. Isso implica aceitarmos a

    pluralidade dos modelos no conjunto das

    psicoterapias. A terapia analtica junguiana no seria

    menos cientfica do que a psicanlise lacaniana ou a

    terapia cognitiva. Essa afirmao pode suscitar

    indignao, sobretudo entre aqueles que consideram

    a sua opo terica como indiscutivelmente superior

    e dotada de consistncia racional incomparvel.

    Diante dessa atitude no se pode fazer muito seno

    reiterar o convite para a tolerncia epistemolgica, o

    que inclui a explicitao dos pressupostos que

    sustentam esse juzo de superioridade. A aceitao

    de tal convite implica reconhecer o outro como

    interlocutor legtimo capaz de compreender e

  • 28

    argumentar acerca desses pressupostos e de suas

    alternativas.

    Em segundo lugar, acreditamos que as psicoterapias como um conjunto de contornos indefinidos no qual convivem no apenas diferentes

    modelos tericos, mas diferentes tcnicas (breve,

    focal, apoio, etc.) que so adequadas a diversos

    objetivos e relativas a especficos segmentos sociais

    (grupo, famlia, casal, hospital, etc.) e determinados

    tipos de afeco psicopatolgica (depresso, pnico,

    transtornos alimentares, etc.) no podem ser enquadradas numa ideia unitria de cincia. Que

    essas diferenas tendem a se fragmentar ainda mais

    na prtica concreta dos terapeutas, se considerarmos

    que a personalidade do terapeuta, como a do

    paciente, um fator a ser considerado no processo

    psicoterpico. As psicoterapias podem ser

    consideradas, se quisermos, como um mtodo, como

    um caminho ou uma ponte, entre a cincia e a

    clnica, possuindo, portanto, um carter mediador

    entre a teoria e a prtica.

    Em terceiro lugar, afirmamos que as psicoterapias no s no podem, mas sobretudo no

    devem ser concebidas como cincia no sentido

    hegemnico da racionalidade tecnocientfica. As

    chamadas tcnicas psicoterpicas no se aproximam

    tanto do logos cientfico no constituem uma tecnologia , mas, antes, da prtica clnica, que no apenas um polo residual, mas um polo irredutvel e

  • 29

    constitutivo do campo do humano. A ideia aqui

    muito simples: as psicoterapias, enquanto se inserem

    na clnica, devem resistir hipertrofia de um tipo de

    saber que no s pretende ser paradigma para todos

    os outros tipos de saber, mas se coloca na

    perspectiva da dominao da natureza, nela

    incluindo o ser humano. Elas no s no se deixam

    apropriar, por razes epistmicas, pelo modelo

    cientfico hegemnico, mas devem resistir

    eticamente a sua ilimitada expanso.

    Para concluir essa exposio provisria que ainda

    est muito distante de ser uma reflexo madura,

    queramos ainda reiterar uma questo dramtica que nos parece estar na raiz da preocupao do

    legislador: retirada a referncia cincia, o universo

    das psicoterapias ficaria deriva? Ficaramos

    desamparados de qualquer critrio crtico? Ou como

    j observamos acima, as psicoterapias estariam

    aprisionadas numa noite da razo em que todos os

    gatos so pardos? Estariam exiladas na terra de

    ningum do mercado a incentivar todo tipo de abuso,

    desacreditando os bons profissionais e desservindo a

    comunidade?

    Diante dessa questo inegavelmente pertinente,

    nossa proposta seria, em princpio, a seguinte: a

    razo que deve nos orientar na prtica psicoterpica

    no a razo terica e cientfica, mas a razo

    prtica. Limitemo-nos apenas a uma observao bem

    simples: no registro tico, o que antes foi designado

  • 30

    como polo do particular e do individual poderia ser

    designado com mais propriedade como polo clnico

    da singularidade, o que no se confunde com a mera

    particularidade. Por qu? Porque o singular refere-se

    ao no indivduo enquanto tomo social,

    idiossincrtico, mas enquanto ele estruturalmente

    aberto universalidade do humano. A razo que

    deve nos orientar na prtica psicoterpica no a

    razo terica e cientfica, mas a razo prtica.

    perfeitamente possvel concebermos uma

    perspectiva de unificao das psicoterapias se nos

    deslocarmos do registro epistemolgico ao registro

    tico.

    Em outras palavras, o ser humano enquanto sujeito

    tico e sujeito de direito e aqui o termo sujeito no sinnimo de mente, psiquismo, alma, conscincia, etc., e no implica, portanto, uma posio mentalista jamais pode ser meio para outro ser humano. Assim, por exemplo, ele no pode

    jamais servir de cobaia para minhas necessidades,

    carncias ou crenas. O respeito a este ser que se

    distingue, por eminncia, de todos os outros entes e

    que aqui designamos pelo termo sujeito, independe de nossas opes religiosas ou

    metafsicas. Assim, mesmo o mais empedernido

    materialista eliminativista, que recusa

    terminantemente a ideia de autonomia da mente,

    pode reconhecer na perspectiva utilitarista da sade, do bem-estar e da cura que o ser humano

  • 31

    um sujeito de direito. Acreditamos que seja para essa

    razo prtica transparadigmtica, independente dos

    modelos tericos que adotamos, que parece apontar

    o bom senso do legislador em sua preocupao de

    submeter a atuao profissional aos princpios

    universais da tica social.