que estado que igualdade

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?Que tipo de estado? Que tipo de igualdade?

Secretaria de Polticas para as Mulheres

alicia BrcenaSecretria-Executiva

antonio pradoSecretrio-Executivo Adjunto

sonia MontaoOficial a cargo Diviso de Assuntos de Gnero

susana MalchikOficial a cargo Diviso de Documentos e Publicaes

Este documento foi elaborado sob a superviso de Alicia Brcena, Secretria-Executiva da Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL), para apresentao na dcima primeira Conferncia Regional sobre a Mulher da Amrica Latina e do Caribe (Braslia, 13 a 16 de julho de 2010). Neste informe integram-se os avanos do Observatrio da igualdade de gnero da Amrica Latina e Caribe e se apresenta o trabalho realizado durante seus dois primeiros anos de funcionamento, com nfase na autonomia econmica das mulheres. A execuo deste documento esteve sob a responsabilidade de Sonia Montao, Oficial a cargo da Diviso de Assuntos de Gnero da CEPAL, em colaborao com Coral Caldern. Agradece-se especialmente o aporte substantivo de Diane Almras, Natalia Gherardi, Ana Cristina Gonzlez, Nathalie Lamaute-Brisson, Vivian Milosavljevic, Laura Pautassi, Patricia Provoste e Corina Rodrguez. Em sua elaborao e discusso colaboraram Jimena Arias, Halima-Saadia Kassim, Denisse Lazo, Paola Meschi, Paulina Pavez, Carolina Peyrin, Mara de la Luz Ramrez, Sylvan Roberts, Mariana Sanz, Sheila Stuart e Alejandra Valds. O documento rene as valiosas contribuies das ministras e autoridades dos mecanismos para o avano da mulher da Amrica Latina e do Caribe, que definiram seu contedo na quadragsima terceira reunio da Mesa Diretiva da Conferncia Regional sobre a Mulher da Amrica Latina e do Caribe (Port of Spain, 7 e 8 de julho de 2009), e que enviaram documentos e informao para sua preparao e enriqueceram sua verso final com aportes e debates em dois fruns virtuais. Agradecemos, por sua vez, os comentrios de Antonio Prado, Secretrio-Executivo Adjunto da CEPAL. Agradecemos tambm a contribuio financeira da Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o Desenvolvimento (AECID) e da Secretaria Geral Ibero-Americana (SEGIB), assim como os aportes tcnicos e financeiros do Instituto Internacional de Pesquisa e Treinamento para a Promoo da Mulher (INSTRAW), da Organizao Pan-Americana da Sade (OPS), do Fundo de Populao das Naes Unidas (UNFPA) e do Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher (UNIFEM).

LC/G.2450(CRM.11/3) Junho de 2010 2010-330 Naes Unidas

Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

ndice

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Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

ApresentaoA situao desigual das mulheres constitui um caso especial entre todas as discriminaes sociais. Com efeito, diferentemente de outros casos, no constituem uma classe social, tampouco um grupo especfico; no so uma comunidade, nem uma minoria social ou racial, permeiam todos os grupos e povos e, em todos eles, so uma inseparvel metade. Acabar com as condies que permitiram sua desigualdade social e poltica seria, depois da libertao dos escravos, a maior revoluo emancipadora (Villoro, 1997).

No documento Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade? analisa-se o progresso da igualdade de gnero na Regio depois de 15 anos da aprovao da Plataforma de Ao de Beijing, 10 anos da formulao dos Objetivos de Desenvolvimento do Milnio e 3 anos da adoo do Consenso de Quito, na dcima Conferncia Regional sobre a Mulher da Amrica Latina e do Caribe realizada em 2007. Examinam-se, alm disso, as conquistas e desafios que enfrentam os governos luz da interao entre o Estado, o mercado e as famlias como instituies sociais construdas a partir de polticas, leis, usos e costumes que, em conjunto, estabelecem as condies para renovar ou perpetuar as hierarquias sociais e de gnero1. Mesmo que o estudo seja centralizado na Amrica Latina e no Caribe, alguns indicadores se comparam com os da Espanha e Portugal, pases que formam parte do Observatrio de igualdade de gnero da Amrica Latina e do Caribe e que participam na conferncia regional1

Em 1995 realizou-se em Beijing a Quarta Conferncia Mundial sobre a Mulher e se aprovou uma Plataforma de Ao, que foi avaliada depois de 15 anos no Exame e avaliao da Declarao e da Plataforma de Ao de Beijing e no documento final do vigsimo terceiro perodo extraordinrio de sesses da Assembleia Geral (2000) em pases da Amrica Latina e do Caribe (CEPAL, 2009c).

como Estados membros da CEPAL. Da mesma forma, destacam-se algumas polticas no mbito da paridade e da conciliao com relao s tarefas de cuidado que permitem a compatibilidade dos processos de igualdade em nvel global e que do conta do crescente intercmbio da Regio com outros pases. O papel do Estado no desenvolvimento da igualdade social constitui o eixo central do debate, tal como se prope no documento La hora de la igualdad: brechas por cerrar, caminos por abrir (CEPAL, 2010a). Trata-se de um conceito chave em uma agenda de desenvolvimento compartilhada pelos diversos agentes da sociedade e que, no caso das mulheres, supe sua incorporao ao mercado de trabalho em condies iguais s dos homens, juntamente com o reconhecimento da titularidade de seus direitos como cidads, sua plena participao na tomada de decises em todos os nveis da sociedade, o respeito sua integridade fsica e o controle sobre seu prprio corpo. A incorporao das mulheres ao mercado de trabalho em iguais condies que as dos homens requer uma anlise e uma mudana estratgica da funo social e simblica estabelecida na sociedade. Isto implica, por uma parte, redistribuir a carga de trabalho no remunerada associada reproduo e ao sustento da vida humana e, por outra, desmontar o sistema de poder que subjuga as7

Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe

mulheres, tanto na dimenso privada (o direito a uma vida livre de violncia, o direito de decidir plenamente sobre a reproduo e suas condies), como na dimenso pblica (a representao equitativa nos nveis de tomada de decises da sociedade). O progresso na igualdade de gnero se relaciona diretamente com os avanos na autonomia econmica das mulheres, como o controle sobre os bens materiais e os recursos intelectuais, e a capacidade de decidir sobre a renda e os ativos familiares. Por sua vez, est estreitamente relacionado com a autonomia fsica como requisito indispensvel para superar as barreiras que existem no exerccio da sexualidade, a integridade fsica das mulheres e a reproduo, assim como a representao paritria nos espaos de tomada de decises. Na segunda parte da anlise apresenta-se a situao da Amrica Latina e do Caribe e os avanos alcanados pelos pases quanto a polticas, planos e programas com relao avaliao da aplicao da Plataforma de Ao de Beijing e, mais especificamente, os indicadores comparados dos pases da Regio relacionados autonomia fsica, econmica e tomada de decises, elaborados pelo Observatrio de igualdade de gnero da Amrica Latina e do Caribe da CEPAL. A anlise dos indicadores comparados nesta ocasio atua como boletim informativo do Observatrio de igualdade de gnero da Amrica Latina e do Caribe, uma ferramenta que mostra as conquistas e os desafios na Regio na ltima dcada e demonstra um progresso consistente no desenvolvimento de sistemas de produo de estatsticas e indicadores para medir a desigualdade existente entre homens e mulheres2. O Observatrio responde a um dos mandatos do Consenso de Quito (2007) e graas a ele foi possvel contar com nova informao em nvel nacional e regional nas reas de autonomia econmica, autonomia fsica e autonomia na tomada de decises das mulheres3. Trata-se de um esforo interinstitucional, coordenado pela CEPAL e sustentado nos aportes substantivos e financeiros do Instituto Internacional de Investigaes e Capacitao das Naes Unidas para a Promoo da Mulher (INSTRAW), o Fundo de Desenvolvimento das Naes Unidas para a Mulher (UNIFEM), o Fundo de Populao das Naes Unidas (UNFPA), a Organizao Pan-americana da Sade (OPS), el Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo (PNUD), a Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o Desenvolvimento (AECID) e a Secretaria Geral Ibero-americana (SEGIB). Na terceira parte do documento aborda-se a questo do trabalho remunerado e o impacto do trabalho no2 3

Veja [on-line] http://www.cepal.cl/oig. Na dcima Conferncia Regional sobre a Mulher da Amrica Latina e do Caribe celebrada em Quito em 2007, os Estados membros da CEPAL solicitaram a constituio de um observatrio de igualdade de gnero.

remunerado das mulheres no emprego formal e informal, seu vnculo com as polticas macroeconmicas e o papel do Estado como promotor de igualdade e polticas pblicas para a redistribuio do trabalho no remunerado, partindose do pressuposto de que estas polticas repercutem tanto na regulamentao da produo e nos salrios, como no bem-estar das pessoas mediante as medidas de proteo e a assistncia social. As implicaes do trabalho no remunerado para a economia e o foco na reproduo social que se leva a cabo nos lares chave no entendimento das relaes entre produo e redistribuio da riqueza. Por isso, a anlise busca evidenciar distintas dimenses do trabalho domstico, no s como uma reivindicao poltica, bem como um convite ao debate sobre as formas de redistribuio, os modos de produo e a qualidade da relao entre produo e reproduo social. Destaca-se tambm a importncia de contar com Estados responsveis pelo respeito, a proteo e o cumprimento dos direitos humanos de maneira integral, mediante a articulao dos direitos sociais, polticos, econmicos e culturais, e a vinculao dos poderes Executivo, Legislativo e Judicirio para o desenho e a implementao de polticas pblicas universais em que se assuma intrinsecamente que as polticas laborais esto indissoluvelmente vinculadas s polticas e aos mecanismos necessrios para transformar a reproduo social em uma tarefa coletiva. Enfatiza-se igualmente a necessidade de encaminhar as polticas em direo conciliao entre a vida laboral e a vida familiar, e se prope aos Estados e sociedade em seu conjunto o fortalecimento de iniciativas para que as mulheres superem os obstculos que lhes impedem ter maior mobilidade e melhores trajetrias laborais sem discriminao para o pleno exerccio de sua cidadania. Em suma, destacam-se os avanos em matria de direitos econmicos e sociais e o importante papel poltico das mulheres, ao mesmo tempo em que se oferecem dados que permitem salientar a manuteno ou surgimento de novas desigualdades que, longe de mostrar progressos lineares na Regio, mostram um mapa complexo que denota a existncia de desigualdades cruzadas entre o desenvolvimento econmico, poltico e social das mulheres, o que coloca em evidncia as variaes, os bloqueios e a resistncia s mudanas. No diagnstico e na anlise que se apresentam neste estudo considera-se a heterogeneidade estrutural das economias, a diversidade cultural dos povos e as particularidades territoriais que fazem com que, em alguns casos, o tamanho da populao e do territrio, o impacto dos desastres naturais na economia, a disponibilidade de recursos naturais e o tipo de desenvolvimento institucional sejam fatores que tambm tm efeitos diferenciados sobre a situao das mulheres em cada pas e que devem ser analisados a partir da perspectiva nacional e sub-regional.

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

Por ltimo, na seo destinada a propor uma agenda de polticas de igualdade de gnero, alm de sugerir temas de polticas de curto e mdio prazo em torno da redistribuio do trabalho remunerado e no remunerado e de cuidado, sugere-se a importncia de incluir as vozes

das mulheres mediante sua presena democrtica na esfera da tomada de decises, assim como a importncia de reconhecer o movimento de mulheres e as mulheres empreendedoras e empresrias nos espaos de dilogo e governabilidade e nas organizaes sociais e sindicais.

Alicia Brcena Secretria Executiva Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL)

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

Captulo I

igualdade e desenvolvimento

A globalizao e a rpida feminizao da fora de trabalho na regio ocorreram em paralelo aos processos de desregulao e flexibilizao do mercado de trabalho e esto associadas deteriorao das condies gerais do trabalho. As polticas pblicas de gnero, que por definio requerem Estados democrticos, avanaram em sentido contrrio desregulao e constituem espaos de baixa intensidade; por isso que, ainda que as estratgias de desenvolvimento dos pases abram oportunidades, as experincias so frequentemente contraditrias e parciais. Nesse contexto, a organizao da reproduo social tem ficado alheia s polticas pblicas e mesmo que o Estado tenha prestado ateno s demandas das mulheres, no tem conseguido a plena participao e a autonomia econmica destas devido ausncia de polticas integrais. A CEPAL (2010a) colocou a igualdade, entendida como titularidade de direitos, como tema central de sua agenda reafirmando o papel do Estado no alcance de umbrais mnimos de bem-estar para toda a populao e argumentando que a igualdade no resta impulso nem recursos ao dinamismo econmico1. Pelo contrrio, a chave para uma agenda de desenvolvimento compartilhada entre os diversos atores. Nessa linha, adverte a j1

Em A hora da igualdade, brechas por selar, caminhos por abrir a CEPAL (2010a) analisa a fundo o papel central do Estado e das polticas sociais para outorgar agenda de igualdade os pilares da proteo e da promoo social. Tambm mostra a dinmica das desigualdades sociais em reas-chave como a renda dos domiclios, a educao, a seguridade social e a segregao urbana. No documento, se destacam os avanos em matria de gasto social, que mostram a vontade dos governos de dar maior preponderncia ao papel do Estado na proviso de bens pblicos, mas ao mesmo tempo s carncias e ao baixo impacto redistributivo deste gasto.

tradicional debilidade que mostram os pases da regio em relao com a fruio efetiva de direitos, cuja titularidade geralmente est estabelecida nas normas, mas nem sempre se traduz em acesso a oportunidades, recursos e reconhecimento social2. Os movimentos sociais partidrios de uma agenda de igualdade que tiveram nos processos internacionais como os do Cairo, Beijing e da Conveno sobre a eliminao de todas as formas de discriminao contra a mulher sua principal fonte de inspirao e apoio. Isto particularmente correto no caso do movimento feminista e de mulheres que enfrentou os setores reacionrios mudana cultural e poltica associada a essas ideias. Postula-se assim uma igualdade no s nas oportunidades, mas tambm no usufruto efetivo dos direitos. importante considerar os aspectos da redistribuio social e econmica que devem ser resolvidos para alcanar a igualdade junto com o reconhecimento poltico e simblico das identidades e dos direitos negados ou invisibilizados por obstculos culturais (Fraser, 1997). Ao serem as desigualdades o resultado de uma relao complexa de fatos polticos, sociais, culturais e econmicos, sua transformao delas em demandas polticas integrais exige um papel ativo do Estado, coerncia entre as polticas econmicas e sociais, fortalecimento da2

As Naes Unidas tm considerado a igualdade de gnero como um elemento indispensvel para a igualdade, o desenvolvimento e a paz e ultimamente se coincide em que sem ela os Objetivos de Desenvolvimento do Milnio no podero ser alcanados. Em recente sesso da Comisso da Condio Jurdica e Social da Mulher, o Secretrio-Geral insistiu em que a igualdade de gnero e o empoderamento das mulheres so parte integral do cumprimento dos Objetivos (Naes Unidas, 2010).

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Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe

institucionalidade democrtica, superao da desigualdade territorial e uma profunda mudana cultural. Ainda que no debate poltico e na agenda pblica as diferenas seculares entre grupos sociais ganhem cada vez maior visibilidade (CEPAL, 2010a), de particular relevncia considerar esta diversidade em suas origens no s biolgicas e sociais, mas especialmente culturais, analisando a partir de uma perspectiva crtica as tenses que acarretam o reconhecimento da diversidade para o alcance da igualdade (Cuvi e Vega, 2010). Da perspectiva assinalada, prestar ateno ao empoderamento econmico das mulheres tem por objetivo visibilizar o chamado silncio estratgico (Bakker, 1994), que ajuda a entender a causa de por que as polticas macroeconmicas no consideram os vises de gnero e a persistncia histrica do modelo do homem provedor como norma da diviso sexual do trabalho. Neste sentido, a famlia passa a ser um espao especialmente crtico porque reproduz a diviso sexual do trabalho mediante a socializao primria e da experincia cotidiana. Analisar o tema econmico em relao ao desenvolvimento da autonomia das mulheres suscita a necessidade de entender os vnculos com outras dimenses da autonomia. A autonomia econmica se fortalece medida que as mulheres conquistam a autonomia fsica e a autonomia na tomada de decises. Dito de outra maneira,

a autonomia econmica das mulheres o resultado de uma articulao virtuosa entre a independncia econmica, os direitos reprodutivos, uma vida livre de violncia e a paridade na poltica3. Neste captulo se apresentam algumas reflexes em torno da igualdade desde a perspectiva de gnero, prestando-se especial ateno ao empoderamento econmico e autonomia das mulheres, e se analisa o necessrio papel do Estado como avalista da efetiva titularidade de direitos, agente econmico e expresso da democracia. Fica manifestada a baixa qualidade e profundidade da democracia. Do ponto de vista da igualdade de gnero os Estados so deficitrios (Pateman, 1995). Ainda que a globalizao tenha ampliado o horizonte dos direitos humanos das mulheres, e apesar do reconhecimento constitucional destes direitos na maioria dos pases, muitas vezes os padres da justia internacional, especialmente no que se refere interpretao e implementao dos instrumentos sobre os direitos humanos das mulheres no se aplicam. A necessidade de criar, fortalecer e renovar instituies (internacionais e nacionais) que resolvam esta tenso se torna evidente frente a cada obstculo que as mulheres enfrentam no exerccio de seus direitos. Tanto os espaos nacionais como os internacionais se converteram em cenrios de disputa.

Requadro I.1 AS MULHERES E A CRISE ECONMICA NO BRASIL Ao analisar os dados de ocupao de 2009 do Brasil segundo os setores de atividade econmica, se constata que as maiores quedas relativas da ocupao feminina ocorreram na indstria de extrao e transformao, produo e distribuio de eletricidade, gs e gua (8,4%) e no comrcio, reparao de veculos e objetos pessoais (5,8%). Entre os homens, as maiores quedas relativas se observaram nos servios domsticos (5,7%) e na indstria (4,8%). Num primeiro momento a crise e sector mais afetado foi o industrial, pelo que se esperaria que ele fosse o que registraria maiores taxas de perda de emprego, tanto para homens como para mulheres. Apesar de que a indstria um campo laboral altamente masculinizado, proporcionalmente foram as mulheres as que mais perderam emprego neste setor. Entre elas, as mulheres negras foram as mais afetadas (9,9%), em comparao com a perda que afetou as mulheres brancas (7,7%). Isto , a crise provocou um aprofundamento do perfil masculino e branco da indstria brasileira.

Fonte: Observatrio Brasil da Igualdade de Gnero, Impacto da Crise sobre as mulheres, 2009.

a. Que tipo de estado? Que tipo de igualdade?Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade? so as perguntas apresentadas e que se trata de responder a partir da perspectiva do acesso plena titularidade dos direitos3

humanos das mulheres, que oferecem o parmetro que a comunidade de naes fixou para impulsionar e medir os avanos em direo igualdade de gnero4.4

Isto o que dispe o Consenso de Quito, acordado durante a dcima Conferncia Regional sobre a Mulher da Amrica Latina e do Caribe (CEPAL, 2007a).

O conceito de direitos humanos das mulheres deriva da necessidade de reconhecer a posio socialmente diferenciada de mulheres e homens e surge como resposta ausncia de reconhecimento das especificidades desse conceito antes da Conveno sobre a eliminao de todas as formas de

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

Este questionamento se d em um momento histrico no qual, o papel dos Estados da regio em relao construo de sociedades mais igualitrias se encontra em uma reviso crtica por vrias razes. Primeiro, porque a globalizao e, em particular, a transnacionalizao da economia entra em tenso com a natureza nacional do Estado, o que se faz mais visvel aps as crises. Enquanto a globalizao implica a abertura das economias, os Estados ainda mantm normas restritivas mobilidade e aos direitos das pessoas, especialmente daqueles que buscam trabalho fora das fronteiras nacionais. Segundo, porque a maior igualdade de direitos, oportunidades e bem-estar promove maior sentido de pertencer, j que uma sociedade mais integrada condio necessria para uma sociedade mais produtiva e porque a maior igualdade de direitos sociais permite maior igualdade em matria de voz e visibilidade polticas (CEPAL, 2010a). Terceiro, porque aps 15 anos de lutas sociais e polticas do movimento de mulheres, da adoo de legislao e polticas inspiradas na Plataforma de Ao de Beijing e de uma sustentada mudana cultural no papel e nos direitos das mulheres, se perfilam novos campos de polticas que permitem aprofundar essas mudanas. Um exemplo destacvel que a rota dos direitos e da autonomia das mulheres conduz a reconhecer o trabalho reprodutivo das famlias como parte da criao de riqueza e a aceitar paulatinamente que se trata de uma responsabilidade no s de mulheres e homens, mas tambm da comunidade, das empresas e das instituies, alm de ser um eixo central do desenvolvimento econmico. Este processo est redefinindo as fronteiras entre o que tradicionalmente compreendemos como pblico e privado e empurrando uma remodelao das interaes entre o Estado, o mercado e a famlia. As sociedades nas quais mulheres e homens compartilham direitos e responsabilidades na vida privada e pblica, especialmente no cuidado das crianas, dos idosos e dos doentes, requerem um novo papel do Estado, do mercado e das famlias no cuidado das pessoas, includa a corresponsabilidade entre homens e mulheres, novos tipos de servios e novas formas de organizao da vida cotidiana e dos organismos pblicos e privados, que devem ser orientados com o aporte das polticas pblicas. A igualdade de gnero parte constitutiva desta agenda.discriminao contra a mulher em 1979 e da Conferncia Mundial de Direitos Humanos de Viena em 1993. Segundo as anlises feministas, desde um princpio se considerou ao homem como paradigma da humanidade nos distintos instrumentos nacionais e internacionais. Assim ocorreu com os direitos humanos, que foram elaborados com uma perspectiva masculina e para sujeitos masculinos, o que se reflete na linguagem, conceitos e contedos centrais, que se vm revisando e ampliando paulatinamente mediante novos instrumentos a partir da Conveno sobre a eliminao de todas as formas de discriminao contra a mulher. Na Amrica Latina e no Caribe, a Conveno Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violncia contra a mulher realizada em Belm do Par em 1994 desempenhou um papel similar.

Em quarto lugar, alm da recente crise econmicofinanceira, a crise energtica e alimentar dos ltimos anos voltaram a questionar os supostos bsicos sobre os efeitos das polticas macroeconmicas inspiradas no paradigma do livre mercado e da reduo do papel do Estado. A experincia das crises anteriores mostra que o impacto negativo sobre a pobreza, o bem-estar e a incluso social costuma ser mais profundo e duradouro que o impacto sobre o crescimento econmico. Isto implica uma anlise mais profunda quanto vigncia destes supostos e capacidade das polticas macroeconmicas atuais para encarar, por exemplo, a mudana climtica e suas consequncias para o desenvolvimento produtivo, modificar os padres de consumo e reverter as diferentes formas de desigualdade que caracterizam a regio. Da mesma forma, tambm se viu questionado a eficcia das polticas sociais concebidas como compensao s dinmicas excludentes que resultam da aplicao deste paradigma. Por ltimo, a vida democrtica nos pases da regio nos ltimos anos tem colocado a questo dos direitos econmicos, sociais e culturais no mbito das polticas e da poltica, afirmando que a igualdade dos direitos significa que a cidadania, como valor irredutvel, prescreve o pleno direito de cada um, pelo nico fato de ser parte da sociedade e independentemente de suas realizaes individuais e recursos monetrios, a ter acesso a certos umbrais de bem-estar social e reconhecimento (CEPAL, 2010a, pg. 11). A capacidade dos Estados para assegurar esses umbrais mnimos se v dificultada quando os impactos da crise afetam o emprego dos mais vulnerveis, os recursos fiscais para a proteo social e as condies para impulsionar um dinamismo econmico maior, e quando persistem debilidades enormes na execuo de polticas de igualdade de gnero. Muitas das desigualdades de gnero que requerem maior ao dos Estados para a vigncia dos direitos das mulheres tm que ver com a distncia que as separa dos umbrais bsicos de bemestar em reas como o acesso aos recursos produtivos, ao emprego decente, possibilidade de decidir sobre a vida reprodutiva e sexual e sobre a maternidade, o atendimento profissional da gestao e do parto e uma vida livre de violncia. De modo mais geral, pode-se afirmar que as perguntas Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade? buscam responder aos drsticos questionamentos que se apresentam, da perspectiva da igualdade de gnero, sobre o papel e as modalidades de atuao do Estado, devido tanto persistncia das estruturas de desigualdade na Amrica Latina e no Caribe como aos prprios avanos nos processos de igualdade. Ao examinar os antecedentes para responder esta pergunta, devem-se somar tambm as mudanas demogrficas, as mudanas na composio e dinmica das famlias, os avanos democrticos, as mudanas cientficas e tecnolgicas e a globalizao em todas as suas dimenses.13

Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe

B. os estados em tensoEm primeiro lugar preciso destacar que o Estado, igual a outras instituies, como o mercado e a famlia, no neutro e reflete a configurao de cada sociedade. Dito de outro modo, o Estado reflete as relaes de poder e a capacidade de incidncia de diversos grupos sociais e corporativos representados em suas instituies. Para que o Estado reflita o bem comum necessrio que todos e todas tenham voz pblica, representao e capacidade de negociao. Como observado, parte das demandas ao Estado derivam dos prprios avanos em matria de igualdade de gnero, assim como da persistncia de barreiras e metas no cumpridas, que muitas vezes puseram em tenso a capacidade e a flexibilidade dos Estados. Assim, por exemplo, a globalizao junto com a presso das mulheres e a vontade de alguns governos favoreceu a adoo de marcos jurdicos que postulam a igualdade e o exerccio dos direitos humanos e da cidadania como princpios fundamentais da democracia e do desenvolvimento5. No entanto, este processo de fortalecimento dos direitos ha dado lugar a tenses entre os sistemas jurdicos nacionais e internacionais. Em alguns casos, os Estados tenderam a tratar parcialmente as igualdades reconhecidas internacionalmente (Beck, 2004) eludindo seu dever de garantidor da integralidade e interdependncia dos direitos humanos. Em outros casos, a defesa dos direitos humanos das mulheres ha utilizado a favor da igualdade argumentos, jurisprudncia e boas prticas internacionais que no estavam incorporados aos restritivos marcos nacionais. Esta a causa, em parte, de que a Conveno sobre a eliminao de todas as formas de discriminao contra a mulher seja a nica conveno adotada sem protocolo, pelo que5

seu reconhecimento e aplicao ainda so desafios pendentes para muitos pases 6. Uma tenso ainda mais profunda a gerada pela demanda de uma distribuio igualitria das responsabilidades na vida familiar e produtiva, necessria para o alcance da igualdade real entre mulheres e homens. Esta objetiva uma sociedade na qual, em palavras de Nancy Fraser (1997), mulheres e homens sejam ao mesmo tempo cuidadores e provedores. Nesta direo avana a ideia da paridade, no como uma cota maior a favor das mulheres, mas como expresso mais ampla da universalidade (Montao, 2007), entendendo que se trata afinal de igual participao no s nas decises da institucionalidade democrtica, mas na vida familiar, produtiva e social7. Esta ltima envolve a redistribuio da carga total de trabalho ou seja do trabalho remunerado e do trabalho no remunerado que, para ser equitativa, requer a redistribuio do tempo e do poder, incluindo o que se exerce na famlia, uma ideia que ainda parece provocativa. Da perspectiva de gnero, a ideia da redistribuio e do reconhecimento do trabalho domstico que acompanha a luta pela igualdade alterou o pensamento econmico e social ao incluir o trabalho no remunerado como dimenso indispensvel das anlises. Alm disso, veio a questionar a poltica, as polticas pblicas e os supostos culturais sobre os que se construiu este pensamento,6

De todos os acordos internacionais usados para a elaborao de uma agenda integrada de direitos humanos e desenvolvimento, alm da Conveno sobre a eliminao de todas as formas de discriminao contra a mulher, foram particularmente relevantes os convnios da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) relativos igualdade, a Declarao e o Programa de Ao da Conferncia Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993); o Programa de Ao da Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento (Cairo, 1994), a Plataforma de Ao da Quarta Conferncia Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), o Programa de Ao da Cpula Mundial sobre Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995), a Declarao do Milnio da Assembleia Geral das Naes Unidas (Nova York, 2000), o Programa de Ao da Conferncia Mundial contra o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e Formas Conexas de Intolerncia (Durban, 2001) e a Declarao das Naes Unidas sobre os direitos dos povos indgenas (aprovada pelo Conselho de Direitos Humanos das Naes Unidas em 2006).

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Ainda que todos os pases da regio tenham assinado e ratificado a Conveno sobre a eliminao de todas as formas de discriminao contra a mulher, o mesmo no ocorreu com o Protocolo Facultativo adotado em 1999 que, como seu nome indica, no considera a obrigao de assinatura. At comeos de 2007, a metade (17) dos 33 pases da regio assinou o Protocolo: Antgua e Barbuda, Argentina, Belize, Brasil, Colmbia, Costa Rica, Equador, Estado Plurinacional da Bolvia, Guatemala, Mxico, Panam, Paraguai, Peru, Repblica Bolivariana da Venezuela, Repblica Dominicana, So Cristvo e Nvis e Uruguai. Por sua vez, o Chile, Cuba e El Salvador assinaram o Protocolo Facultativo entre 1999 e 2001, sem hav-lo ratificado at hoje. Desde ento at maro de 2010, nenhum outro pas da regio o assinou ou ratificou. Esta situao indica que os Estados reconhecem os direitos das mulheres, mas no esto dispostos a adotar os instrumentos necessrios para torn-los efetivos. Veja [on-line] http://www.cepal.org/oig. O Consenso de Quito aprovado pela dcima Conferncia Regional sobre a Mulher da Amrica Latina e do Caribe (2007) reconhece a paridade como um dos propulsores determinantes da democracia, cujo fim alcanar a igualdade no exerccio do poder, na tomada de decises, nos mecanismos de participao e representao social e poltica, e nas relaes familiares ao interior dos diversos tipos de famlias, nas relaes sociais, econmicas, polticas e culturais, alm de constituir uma meta para erradicar a excluso estrutural das mulheres (CEPAL, 2007a, pg. 3).

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

oferecendo vises novas e inovadoras que ainda devem plasmar-se na prtica cotidiana e no sentido comum. importante destacar que para que a redistribuio e o reconhecimento do trabalho domstico se potenciem reciprocamente se requer o fortalecimento das capacidades internas e externas das pessoas (Nussbaum, 2000), alm de um desenvolvimento produtivo dinmico que estimule a autonomia econmica das mulheres. A partir da diviso do trabalho, se constroem e reafirmam hierarquias sociais consideradas universais e se constroem sujeitos sociais homens, mulheres, adultos, crianas, empregadores, empregadas, todas elas baseadas em relaes de poder caractersticas de uma sociedade que outorga prerrogativas e privilgios de domnio ao sexo masculino em relao ao feminino, isto , uma sociedade patriarcal. Neste contexto tambm se tecem as relaes entre homens e mulheres pertencentes a estratos socioculturais diferenciados por condies de classe e de raa: o caso do servio domstico e os significados que estas relaes constroem e reconstroem em sociedades baseadas em discriminaes de gnero, raa e classe (Peredo, 2009). Tampouco tem ficado isento de tenses o reconhecimento da autonomia fsica entendida como a capacidade das mulheres de viver uma vida livre de

violncia e de decidir sobre sua sade e sexualidade. O direito a voz e voto das mulheres sobre seu corpo, sua vida e aos recursos que necessitam so condies necessrias para a redistribuio de responsabilidades no mbito privado e a ampliao de oportunidades na esfera pblica. Em contraste com o unnime reconhecimento da necessidade de erradicar a violncia contra a mulher ainda que os resultados sejam dolorosamente parcos a autonomia das mulheres em matria de sade sexual e reprodutiva continua sendo questionada em vrios pases, onde se frearam medidas to bsicas como o acesso a anticonceptivos de emergncia e imps-se, por esta via, a violncia da maternidade indesejada. Em sntese, uma agenda de igualdade de gnero hoje em dia no somente um enunciado das polticas necessrias, mas um reconhecimento das transformaes em curso que envolve novos papis do Estado, do mercado e das famlias no s de mulheres e homens com o objetivo de uma sociedade igualitria. O reconhecimento da desigualdade, por sua vez, requer o reconhecimento jurdico da discriminao, o desenvolvimento de polticas e o fortalecimento de capacidades para a construo do bem comum, a fim de que as pessoas escapem da tirania da tradio e dos preconceitos.

C. um difcil caminho em direo igualdadeDurante estes anos, ainda que por efeito dos processos de globalizao e consolidao democrtica se ampliasse o campo da promoo dos direitos, no mbito da economia as polticas macroeconmicas propunham a reduo do papel do Estado. Isto significou que enquanto se produzia o reconhecimento legal dos direitos e especialmente dos direitos das mulheres, se debilitava a institucionalidade do Estado e geralmente se subordinaram os objetivos de igualdade aos objetivos de crescimento. Os resultados destas polticas em matria de equidade social tm sido escassos, apesar dos logros mais reconhecidos como o controle da inflao, a poupana fiscal e o aumento das exportaes, que tampouco foram suficientes para consolidar a estabilidade do crescimento. Por outro lado, os logros da regio nos anos de crescimento que antecederam a ltima crise financeira (CEPAL, 2009a) no desmontaram a heterogeneidade estrutural que ocasiona, em grande medida, a profunda desigualdade social da Amrica Latina e do Caribe8. Esta se observa nas brechas de produtividade que8

Depois de seis anos de crescimento nos quais se reduziu a pobreza, estima-se para a Amrica Latina e o Caribe em 2009 uma queda do PIB de 1,8% e do PIB por habitante prxima a 2,9% (CEPAL, 2009a).

refletem e ao mesmo tempo reforam as brechas das capacidades, da incorporao de progresso tcnico, do poder de negociao, do acesso a redes de proteo social e de opes de mobilidade ocupacional ascendente ao longo da vida de trabalho (CEPAL, 2010a). As maiores brechas de produtividade na regio, em comparao com os pases desenvolvidos, implicam maiores brechas salariais e piores distribuies de renda, que no caso das mulheres se acentuam. Por ltimo, com relao s limitaes autonomia fsica das mulheres antes mencionadas, se identificaram desafios para as polticas pblicas: devem ou podem os Estados limitar sua oferta de servios de sade para no contrariar as convices de uma parte de seus cidados? Nestes debates, cada vez mais freqentes na regio, est presente a diversidade de vises sobre o tipo de Estado e o tipo de igualdade que distintos atores e coletividades com graus de poder desiguais concebem. Os nveis de desigualdade levam a questionar tambm a validade do suposto no qual se considera o Estado uma instituio neutra frente s desigualdades sociais e, particularmente, frente s desigualdades entre homens e mulheres. Neste documento se suscita a pergunta sobre o grau de incidncia do crescimento

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econmico, da distribuio de renda e da crise financeira internacional na igualdade, especificamente na igualdade de gnero. Tambm se suscita o efeito que tem na igualdade de gnero as distintas polticas e leis orientadas a promover o desenvolvimento econmico e social ou a modificar a diviso social e sexual do trabalho, a distribuio dos recursos do tempo e os poderes de fato que sustentam a desigualdade das mulheres ao longo de todo seu ciclo de vida.

A persistncia da discriminao e da desigualdade se expressa em que, apesar de que se obtiveram importantes conquistas, a maioria das mulheres ainda est longe de alcanar a autonomia econmica, poltica e fsica. As barreiras presentes nestas trs esferas de autonomia interagem reforando-se mutuamente e impedem as mulheres de participar na sociedade, na poltica e no desenvolvimento econmico, caso que se aborda no presente documento.

d. a economia do cuidadoAs relaes sociais se entendem desde a perspectiva de gnero como relaes de poder em todos os mbitos: econmico, social, poltico e cultural. A diviso sexual do trabalho que organiza a ordem de gnero separa o trabalho produtivo do reprodutivo de maneira paradigmtica e determina o lugar de mulheres e homens na economia. Esclarecer a forma em que estas relaes perpetuam a subordinao e a excluso das mulheres limitando sua autonomia ajuda a compreender sua influncia no funcionamento do sistema econmico. Esta maneira de analisar as relaes econmicas e sociais brinda uma viso mais ampla que a convencional ao incorporar dimenses ausentes (Picchio, 2001 e 2005) como o trabalho no remunerado e se desenvolve at tornar visvel a economia do cuidado, prestando especial ateno reproduo social que realizam principalmente as mulheres. Igualmente demonstra a contribuio desta tarefa ao desenvolvimento econmico e transparenta que as relaes sociais esto tambm impregnadas de valores culturais que caracterizam o trabalho de cuidado como uma qualidade feminina (CEPAL, 2009d).

Requadro I.2 DEFINIO DO CUIDADO O cuidado uma atividade especfica que inclui todo o que fazemos para manter, continuar e reparar nosso mundo, de modo que possamos viver nele to bem como possvel. Esse mundo inclui nossos corpos, nosso ser e nosso ambiente, tudo o que buscamos para tecer uma complexa rede de sustentao da vida (Fisher e Tronto (1990), citado em Tronto (2006), pg. 5). Esta definio inclui tanto a possibilidade do autocuidado como a de cuidar de outros, sem contar sua dimenso afetiva, mas no o equipara a uma atividade mercantil qualquer. Tambm incorpora tanto a perspectiva de quem outorga como de quem recebe cuidado.

Fonte: Joan Tronto, Vicious circles of privatized caring, Socializing Care: Feminist Ethics and Public Issues, Maurice Hamington e Dorothy Miller (eds.), Lanham, Rowman and Littlefield Publishers, 2006.

A essencialidade do trabalho reprodutivo tem sido reconhecida de muitas maneiras, geralmente como homenagem simblica maternidade e exaltando isto , propondo como conduta socialmente desejvel a abnegao feminina. De modo mais pragmtico, no Informe Beveridge (1942), que guiou a poltica trabalhista britnica de seguridade social e no qual se proclamou o princpio da cobertura universal para todos desde o bero at a tumba, se reconhecia explicitamente o subsdio gratuito das mulheres ao sistema econmico, assinalando: [] h que considerar que a grande maioria das mulheres casadas se ocupa de um trabalho que resulta vital, ainda que no se

pague, sem o qual seus maridos no poderiam realizar trabalho remunerado e sem o qual a nao no poderia persistir (Aguirre e Scuro Somma, 2010, pg. 12)9.9

O ministro do trabalho britnico da poca solicitou a William Beveridge decano da Universidade de Oxford um informe sobre a proteo social. O relatrio, intitulado Informe ao Parlamento acerca da seguridade social e das prestaes que dela se derivam (conhecido como Informe Beveridge), se fez pblico em 1942. Beveridge buscava assegurar um nvel de vida mnimo abaixo do qual ningum deveria estar. Para convencer os conservadores cticos, Beveridge explica que a assuno por parte do Estado dos gastos de enfermidade e das penses de aposentadoria permitiria indstria nacional beneficiar-se do aumento da produtividade e, como consequncia, da capacidade de competio.

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

importante destacar que esta frase alude no s reproduo cotidiana da fora de trabalho, mas tambm do Estado, que para existir requer funcionrios, soldados e cidados, entre outros. No obstante, este reconhecimento no foi considerado no pensamento econmico contemporneo nem nas polticas pblicas sustentadas neste10. Tem sido mais o impacto mltiplo

na vida familiar, de trabalho, poltica e cientfica da crescente autonomia das mulheres o que est dando impulso a uma reviso dos modelos explicativos da economia. No entanto, so vrios os pases que incluram o reconhecimento do trabalho no remunerado das mulheres nas constituies.

Requadro I.3 REFORMAS CONSTITUCIONAIS NAS QUAIS SE RECONHECE O TRABALHO NO REMUNERADO E DE CUIDADO Na Constituio da Repblica Bolivariana da Venezuela de 1999 se reconhece de modo explcito o trabalho da casa como atividade econmica que cria valor agregado e produz riqueza e bem-estar social, e o direito de toda pessoa segurana social onde se inclui especificamente as donas de casa como servio pblico de carter no lucrativo, que garanta a sade e assegure a proteo em contingncias de maternidade. No caso do Equador a constituio garante o direito seguridade social irrenuncivel para todas as pessoas, alm de dar nfase especial ao cuidado de idosos e destaca que o Estado estabelecer polticas pblicas e programas de ateno para idosos, que consideraro as diferenas especficas entre reas urbanas e rurais, as desigualdades de gnero, a etnia, a cultura e as diferenas prprias das pessoas, comunidades, povos e nacionalidades; tambm, fomentar o maior grau possvel de autonomia pessoal e participao na definio e execuo destas polticas. Igualmente, reconhece como labor produtivo o trabalho no remunerado de autossustento e cuidado humano que se realiza em casa. No Estado Plurinacional da Bolvia, a Nova Constituio Poltica do Estado estabelece em seu artigo 338 que deve reconhecer-se o valor econmico do trabalho da casa como fonte de riqueza que dever ser quantificado nas contas pblicas. Este artigo reconhece no s o trabalho no remunerado das mulheres, mas tambm faz referncia necessidade de quantific-lo nas contas nacionais, o que desafia o pas a desenvolver fontes de informao e implementar metodologias destinadas valorizao econmica deste recurso pblico no monetrio. Na Repblica Dominicana, em 26 de janeiro de 2010 proclamou-se a Nova Constituio Poltica do Estado, onde se assinala, junto com o princpio de igualdade, o direito das mulheres a uma vida livre violncia, o reconhecimento do valor produtivo do trabalho domstico, o reconhecimento da unio de fato, a igualdade salarial por igual trabalho e a iniciativa legislativa popular, observando a linguagem de gnero em todo o texto constitucional.

Fonte: Constituies do Equador, do Estado Plurinacional da Bolvia, da Repblica Bolivariana da Venezuela e da Repblica Dominicana.

Em nvel macroeconmico, considerar a articulao entre o trabalho remunerado e o trabalho no remunerado tem diversas implicaes. Picchio (2001) e outras autoras propem renovar a representao tradicional do circuito econmico e em particular o esquema do fluxo circular da renda, que abrange as relaes entre os domiclios e as empresas. Aqui se recorre a Picchio, que prope incorporar neste esquema um espao econmico que poderia denominar-se de reproduo social11.10

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Picchio (2001, pg. 3) assinala que os economistas clssicos (Quesnay, Smith, Ricardo e, a seu modo, Marx) outorgavam visibilidade na anlise do mercado de trabalho tanto aos aspectos produtivos como aos reprodutivos, entendidos no de maneira reducionista no sentido biolgico, mas tambm num sentido social. Picchio (2001) o denomina espao de desenvolvimento humano, mas este termo pode ser confundido com a noo divulgada em torno ao ndice de desenvolvimento humano (IDH) estimado anualmente pelo Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ou com o conceito de capital humano, que se refere a um uso instrumental das pessoas como elementos de produo que preciso atualizar e valorizar para aumentar sua produtividade.

Na representao tradicional do fluxo circular da renda, os domiclios aportam sua fora de trabalho s empresas que pagam salrios como remunerao ao trabalho. As rendas salariais se destinam a pagar os bens e servios produzidos pelas empresas em funo dos preos destes determinados pela confrontao entre a oferta (das empresas) e a demanda (dos domiclios). representao do fluxo circular ampliado da renda elaborada por Picchio (2001) se agrega o que sucede nos domiclios12. Este o elemento central da contribuio da economia feminista a esta representao do funcionamento do sistema econmico. No espao da reproduo social, se distinguem as funes econmicas desenvolvidas no mbito privado dos domiclios. Estas funes so as seguintes: a ampliao ou extenso da renda monetria em forma de nvel de vida ampliado (o consumo real), isto , comida preparada, roupa limpa e outras. Em diferentes palavras, se incluem as mercadorias adquiridas com o salrio monetrio e tambm a12

Veja o fluxo circular da renda ampliado no anexo 1.

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transformao destes bens e servios em consumo real, mediante a intermediao do trabalho de reproduo social no remunerado; a expanso do consumo em forma de condio de bem-estar efetiva que consiste em dispor de nveis convencionalmente adequados de educao, sade e vida social, possveis graas mediao do trabalho de cuidado no remunerado (por exemplo, velando pela assistncia educativa das crianas, controle de sua sade e outras)13; a habilitao da populao para sair ao mercado de trabalho assalariado ou para estabelecer-se nos mercados de bens e servios como trabalhadores independentes. O trabalho no remunerado facilita material e psicologicamente os processos de adaptao aos requisitos organizacionais e tecnolgicos da produo de bens e servios por parte dos trabalhadores. Esta terceira funo vale tanto para a economia nacional como para as economias do resto do mundo, para onde emigra parte da populao gerada no espao de reproduo. Tambm se deve considerar que os trabalhadores emigrantes enviam remessas aos domiclios de origem. a regulao da fora laboral para a atividade econmica, pois a arbitragem que ocorre dentro dos domiclios, entre o trabalho reprodutivo inerente ao espao de reproduo e o trabalho remunerado correspondente atividade econmica, determina, junto com a demanda laboral e as condies do mercado, o volume de trabalho disponvel para esta. Estas funes se referem a processos muito concretos que ocorrem nos domiclios e, como assinalado, so vitais para o funcionamento da economia. Os domiclios adquirem os bens e servios que requerem para satisfazer suas necessidades e desejos graas aos recursos monetrios derivados de sua participao na produo de bens e servios inclusive para outros domiclios empregadores no espao de produo mercantil e no mercantil do setor pblico e renda proveniente dos mecanismos de redistribuio de renda entre os domiclios ou a partir da proteo ou da assistncia social ou das remessas dos trabalhadores emigrantes14. Uma vez adquiridos, preciso transformar os bens e servios em consumo efetivo mediante o trabalho no remunerado, sobretudo os afazeres domsticos. Conseguese ento a extenso aos padres de vida ampliados. tambm mediante o trabalho no remunerado de cuidado que as pessoas expandem esses padres de vida em bemestar mediante atividades relacionadas com o cuidado, a13

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Picchio (2005) entende o bem-estar, segundo o enfoque de Sen (1985) e Nussbaum (2000), como um conjunto de capacidades humanas e de funcionamentos efetivos na esfera social. Os domiclios tambm destinam, sobretudo no meio rural, parte de sua produo de mercadorias ao autoconsumo. Os bens destinados ao autoconsumo so transformados pelo trabalho domstico.

sade, a educao e o lazer, entre outras. O reconhecimento das necessidades, capacidades e aspiraes justamente o que caracteriza o processo de expanso da renda, designado como bem-estar (Picchio, 2001, pg. 16). No caso do fluxo ampliado diferena do fluxo circular tradicional, os domiclios no so considerados instituies harmnicas. Pelo contrrio, a incluso do trabalho no remunerado na anlise torna mais complexa a situao dos domiclios, cujos membros agora devem explcita ou implicitamente negociar e decidir sua prpria diviso do trabalho15. Dito de outra maneira, a oferta de trabalho remunerado se regula a partir da negociao que se efetua nos domiclios sobre a distribuio do trabalho no remunerado para a reproduo entre os membros do domiclio segundo o sexo e a gerao. Esta regulao feita mediante a alocao de tempo ao trabalho no remunerado e ao trabalho remunerado: as pessoas, mulheres principalmente, que assumem o trabalho no remunerado liberam os trabalhadores potenciais da responsabilidade do cuidado. O trabalho no remunerado ento influi no s sobre a quantidade de pessoas disponveis para o trabalho remunerado, mas tambm sobre a quantidade de horas alocadas ao trabalho remunerado. Isto significa que as pessoas que integram a fora de trabalho ocupada dentro das fronteiras nacionais desenvolvem estratgias de combinao de tempo parcial de trabalho para o mercado com suas jornadas cotidianas de trabalho no remunerado ou combinam, de maneira crescente, jornadas de trabalho a tempo integral para o mercado com jornadas de trabalho no remunerado. Enquanto isso, as pessoas que se dedicam exclusivamente ao trabalho no remunerado ficam excludas da atividade econmica, isto do emprego assalariado ou do trabalho independente. Alm de contribuir na determinao da quantidade (em pessoas e horas) da fora de trabalho potencial que ir inserir-se no trabalho assalariado ou no trabalho independente dentro das fronteiras nacionais, ou que se exportar para outros pases do mundo aproveitando a demanda de mo de obra expressada nos pases estrangeiros, o trabalho no remunerado influi sobre a qualidade dos trabalhadores. Esta influncia est relacionada por sua vez com os cuidados gerados no mbito domstico e com os valores, as habilidades e a capacidade de agncia no sentido de Sen (1990) que se transmitem no sistema educativo, nos domiclios e na sociedade. Deste modo, segundo Picchio (1999), a produo de mercadorias no s incorpora trabalho de produo remunerado, mas tambm trabalho de reproduo no remunerado que se encontra incorporado na fora de trabalho assalariada e nos trabalhadores independentes. Quando assim se integra o trabalho de cuidado no15

A ideia de domiclios como unidades no harmnicas faz referncia ao conceito de conflitos cooperativos de Sen (1990).

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remunerado na anlise das relaes capitalistas de produo e da pequena produo mercantil, este trabalho pode ser interpretado como uma transferncia ou, melhor dito, um subsdio do mbito domstico para a acumulao de capital (a partir do trabalho assalariado). Tambm parte do salrio recebido pelo trabalhador assalariado na empresa capitalista ou parte da renda da pequena produo mercantil se transfere para o trabalho no remunerado realizado no domiclio, no como contraparte do subsdio, mas como fonte de financiamento dos insumos do trabalho no remunerado. Estas transferncias se encontram indeterminadas na medida em que no se conhecem como se realiza a distribuio das rendas monetrias entre o domiclio e o trabalhador mesmo nem a distribuio intradomiciliar dos recursos efetivamente alocados16. As transferncias derivadas do salrio como remunerao do trabalho assalariado dependem, por outro lado, do grau de explorao do capital sobre o salrio17. Si se considera, dada a evidncia histrica, que mais provvel que as empresas capitalistas tendam a exercer uma presso para baixar os salrios, mant-los baixos ou conter sua subida a fim de garantir ou aumentar sua taxa de lucro ou sua participao no valor agregado, se compreende a intensidade e inevitabilidade do trabalho no remunerado, domstico e de cuidado, sobretudo no

caso dos trabalhadores no qualificados ou com escassa qualificao. A reproduo se encontra prisioneira entre um salrio dado e as necessidades e carncias que deve atender. Este ao mesmo tempo um problema de relaes de poder de classe e de gnero, cada vez que a relao inversa entre salrios e benefcio se converte em uma relao direta entre trabalho domstico no remunerado e benefcio (Picchio, 1999, pg. 220). Nesta proposta se estabelecem os vnculos entre o reconhecimento do trabalho no remunerado e a anlise macroeconmica, as polticas pblicas e, ultimamente, o estudo das migraes, que incidem substancialmente na distribuio da renda. As polticas pblicas intervm tanto na regulao da produo e no fundo de salrios como no aumento do bem-estar das pessoas, por meio de polticas de proteo e de assistncia social ou mediante transferncias aos domiclios. Da mesma forma o setor pblico emprega uma proporo importante da fora de trabalho nacional, integrando-se como empregador ao fluxo da renda. Por outro lado, a renda circular em uma economia aberta se vincula com as economias dos demais pases do mundo mediante os fluxos migratrios, sobretudo as exportaes de mo de obra, a transnacionalizao dos processos produtivos, a liberalizao comercial e os fluxos de renda, em particular os provenientes das remessas.

e. os sistemas de emprego a partir da perspectiva de gneroDe uma perspectiva sociolgica, a CEPAL tem trabalhado no fortalecimento da anlise dos vnculos entre a esfera pblica e a privada, entre o trabalho remunerado e o no remunerado18. Do ponto de vista econmico, se suscita uma representao do fluxo circular da renda ampliado como representao da articulao determinante entre o trabalho reprodutivo e o produtivo. Aps revisar o papel fundamental do trabalho reprodutivo na economia mediante a representao, para capturar de maneira sistemtica a articulao esboada entre o trabalho no remunerado e o trabalho remunerado, necessrio construir um marco conceitual de gnero nos sistemas de emprego sabendo que o trabalho remunerado a principal fonte de recursos monetrios para a maioria das pessoas, inclusive para as mulheres. Dada a heterogeneidade das estruturas produtivas dos pases da regio e, em consequncia, das ocupaes das pessoas, prope no tomar como base o mercado16

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Esta distribuio depende das relaes de gnero que conformam as unies, as famlias ou os domiclios como tais e que definem as funes sociais e econmicas dos homens e das mulheres. Em outros termos, dependem da participao da massa salarial e dos benefcios no produto. Veja uma anlise mais detalhada em CEPAL (2007b) e Montao (2010).

de trabalho que se refere mais confrontao entre uma oferta de trabalho por parte das pessoas e uma demanda de trabalho por parte das empresas ou de outros empregadores, mas a noo de sistema de emprego. Este pode ser definido como um conjunto de estruturas heterogneas articuladas entre si mediante mecanismos regulatrios que permitem sua reproduo dinmica (Lautier, 1990). Desta perspectiva, possvel considerar tanto o trabalho assalariado que o primeiro espao de insero laboral na regio para homens e mulheres como o trabalho independente ou autnomo, que absorve cerca de 20% da populao ocupada. A configurao do sistema de emprego o resultado das aes e as interdependncias de trs atores principais: as empresas (capitalistas ou de pequena produo mercantil), o Estado e as famlias. As empresas aplicam estratgias e prticas de gesto das relaes salariais ou no salariais. O Estado intervm no mercado de trabalho para estabelecer as condies de uso da fora de trabalho e compensar a discrepncia entre a renda laboral e as necessidades dos domiclios. Tambm intervm como empregador de uma porcentagem significativa da populao ocupada. No caso do trabalho autnomo, os mecanismos estatais se referem principalmente s condies de constituio e funcionamento dos19

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estabelecimentos econmicos. As famlias, como espaos do trabalho reprodutivo, assumem as funes descritas e constituem um mbito em que se desenvolve a pequena produo mercantil, caracterizada por uma fina diviso entre o oramento da famlia e as finanas da empresa. Tambm as famlias quando usam o trabalho domstico remunerado so empregadoras. O mercado de trabalho assalariado e o trabalho autnomo sero tratados a seguir em forma separada, considerando a ocorrncia de vrias articulaes: i) entro dos domiclios, quando se combinam empregados assalariados e trabalhadores autnomos, trabalhadores familiares auxiliares, dentre outros e ii) nos mercados, quando parte da demanda de bens e servios dos assalariados se dirige s empresas de trabalhadores autnomos. Trata-se de entender o modo em que as relaciones de gnero baseadas em percepes de diferenas entre homens e mulheres compem o mercado de trabalho assalariado e o universo do trabalho independente ou da pequena produo mercantil at gerar tanto inseres trabalhistas diferenciadas segundo o sexo das pessoas ocupadas como desigualdades nas remuneraes.

1. o mercado de trabalho assalariadoNa demanda de trabalho assalariado das empresas se retomam os esteretipos da capacidade de trabalho das mulheres. Deste modo, mediante processos de contratao discriminatrios, se estabelecem correspondncias entre as ocupaes ou as atividades alocadas s mulheres e esses esteretipos. As tarefas de cuidado das mulheres tambm so um argumento decisivo da demanda de trabalho assalariado. As estratgias de contratao e de remunerao se baseiam no perfil das mulheres (a idade, a existncia de filhos, a qualificao) e se beneficiam das estratgias familiares de cuidado sem pagar os custos dos servios de cuidado fora de casa. Para contar com mo de obra disponvel, manter os custos salariais ou conter o aumento dos salrios, reduzir os custos ligados s prestaes por maternidade ou os custos da rotao de trabalhadores, as empresas tendem a escolher distintos perfis em concordncia com as obrigaes objetivas do cuidado e os esteretipos correspondentes. Quando escolhem mulheres jovens sem filhos, trata-se de uma discriminao contra as mulheres com responsabilidades de trabalho reprodutivo em paralelo com o controle do tempo da mo de obra. Na seleo de mulheres adultas, casadas e com filhos est subjacente o suposto de que as mulheres aceitam salrios baixos pela necessidade de financiar o cuidado e a reproduo de sua famlia. Esta estratgia converte o cuidado como funo social em um instrumento de discriminao e de controle da remunerao da mo de obra.

Quanto oferta de trabalho, as mulheres tm que considerar as modalidades de conciliao do trabalho reprodutivo e o trabalho assalariado. A carga de trabalho no remunerado que lhes est alocada determina uma dotao de tempo para o trabalho remunerado que , em geral, inferior dos homens que no se dedicam ao cuidado. Afirma-se que, ao aceitar determinado emprego, as mulheres revelam suas preferncias; por exemplo, escolhem um emprego de tempo parcial para atender o trabalho reprodutivo. Estas preferncias esto restringidas por diversos fatores, dentre outros: a diviso sexual do trabalho imperante na famlia e, em consequncia, na sociedade, quando no existem servios de cuidado universais que liberem o tempo das mulheres ou quando a mulher vtima de violncia econmica por parte de um cnjuge que impe condies a seu acesso ao mercado laboral19, e a discriminao incorporada nas estratgias das empresas que oferecem determinadas oportunidades de emprego s mulheres. Dessa maneira, a confluncia da demanda e da oferta de trabalho segundo a descrio anterior, ou seja, a dupla discriminao das empresas (a manuteno dos esteretipos e a instrumentalizao do cuidado) e a alocao do trabalho reprodutivo nas famlias determinam a segmentao trabalhista dos homens e das mulheres quanto aos ramos de atividade, o tipo de ocupao, a posio hierrquica e o perfil da carreira profissional. Essa confluncia determina tambm a fixao dos nveis dos salrios no mbito das estratgias financeiras, comerciais, organizacionais e tecnolgicas das empresas para aumentar sua taxa de lucro e conservar ou ampliar seus mercados sob as condies de funcionamento. Esta anlise implica um labor por parte dos investigadores e dos acadmicos a fim de incorporar a diversidade de mecanismos e situaes existentes em funo das caractersticas dos mercados nos que operam as empresas e das pautas culturais imperantes nas sociedades onde se inserem, entre outros fatores. As organizaes sindicais tambm podem participar nesta tarefa pedindo prestao de contas nos prprios lugares de trabalho. Alm disso, imprescindvel indagar a natureza das desigualdades entre homens e mulheres em cada nvel da hierarquia salarial. Por ltimo, necessrio garantir no19

A violncia econmica se define como uma srie de mecanismos de controle, vigilncia, desconfiana e ameaas em relao ao dinheiro que reforam o poder masculino no domiclio e podem restringir o acesso das mulheres s atividades produtivas (CEPAL, 2007c). Segundo os poucos dados disponveis, em 2008, 10,7% das mulheres entre 15 e 49 anos havia sofrido alguma vez violncia econmica por parte do parceiro no Estado Plurinacional da Bolvia. Dados anteriores em outros trs pases da regio mostram situao similar para 19,1% do mesmo grupo de mulheres na Colmbia (2005), 29,3% no Mxico (2003) e 13,7% no Peru (2004) (CEPAL, 2009b).

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

s a igualdade no acesso, mas na trajetria laboral, onde se identifica um grande ncleo de discriminao, depois de quase 30 anos de insero sustentada das mulheres no mercado de trabalho. O uso da fora de trabalho por parte das empresas se organiza principalmente em torno a seis pilares: i) a alocao aos postos de trabalho; ii) o tempo de trabalho (jornada laboral, tempos de descanso, licenas para maternidade, entre outros); iii) o tipo de contrato (explcito ou tcito) e sua durao; iv) o modo de remunerao ou forma de pagamento; v) o nvel de remunerao, e vi) a trajetria laboral. No entanto a conformao e a dinmica do mercado do trabalho assalariado no dependem exclusivamente da confrontao entre a demanda das empresas e a oferta proveniente dos domiclios, seno que o Estado pode intervir em sua regulao. O nvel de interveno e o papel que desempenhe o Estado no uso da fora de trabalho dependem de processos histricos mais ou menos reversveis, segundo as relaes de fora entre o Estado, o capital e os trabalhadores que determinem as conjunturas. Existem diversas possibilidades de exerccio deste papel, que podem surgir de: viso do papel do Estado na economia em geral e na regulao do uso da fora de trabalho em particular; contedo e extenso subsequente das normas (o conjunto de leis); capacidade institucional do Estado de fazer respeitar essas normas, e decises polticas sobre o contedo das normas e o uso desta capacidade institucional. Historicamente, os Estados latino-americanos e caribenhos tm tido uma gesto ambgua sobre o uso da fora de trabalho, procurando leis sem necessariamente tomar ou poder tomar as medidas idneas para apliclas. Deste modo, pode-se falar de relaes salariais heterogneas nas quais o uso informal, isto , fora da normativa estatal, de segmentos da fora de trabalho coexiste com um uso conforme a lei em outros. Por outro lado, certos segmentos do mercado de trabalho assalariado so regulados pelo Estado enquanto outros no o so, por omisso do Estado ou por deciso prpria, ao enunciar que a populao em questo no est amparada pelas leis vigentes.

2. o trabalho independente ou a pequena produo mercantilO trabalho independente toma a forma de trabalho por conta prpria (sem assalariados ou com assalariados temporrios) tanto na agricultura como na economia urbana e, particularmente na regio, na economia informal, ou seja, no conjunto de atividades econmicas que se encontram fora da regulao do Estado (OIT, 2003).

Estas atividades tambm formam parte do mercado, pois produzem bens ou servios destinados venda a partir de uma combinao de ativos financeiros, fsicos e de trabalho do trabalhador por conta prpria em primeiro lugar e de vrias fontes de financiamento e de relaes com os fornecedores de insumos ou mercadorias. As pequenas empresas agrcolas do pequeno agricultor e as empresas dos trabalhadores por conta prpria se relacionam estreitamente com as famlias, enquanto as empresas de empregadores com assalariados permanentes se caracterizam mais por uma separao financeira entre a atividade empresarial e o funcionamento da famlia. Estas articulaes ocorrem em dois eixos principais: i) o traslado de custos da empresa famlia (Pourcet, 1995) e ii) a alocao dos membros das famlias ao trabalho reprodutivo e, antes que nada, ao trabalho produtivo na empresa do trabalhador ou da trabalhadora independente. No caso das empresas dirigidas por empregadores, o eixo principal das relaes entre a empresa e a famlia a alocao dos indivduos ao trabalho reprodutivo e ao trabalho produtivo. A incorporao ao trabalho independente e o desempenho das pequenas empresas de autnomos, assim como das pequenas empresas de empregadores, apresentam segmentaes e discriminaes por gnero que respondem s desigualdades de gnero vigentes na sociedade. Observa-se, por exemplo, que as mulheres cujas empresas se encontram nas faixas de baixa renda tendem a alocar os recursos ou os lucros reproduo do domiclio em lugar de direcion-los ao crescimento da empresa 20. A responsabilidade do trabalho reprodutivo imposta s mulheres tem vrias implicaes para o desempenho de uma atividade autnoma, como as limitaes em matria de distribuio do tempo, acesso educao e desenvolvimento de suas capacidades. A limitada disposio de tempo que deriva do trabalho no remunerado quando no existem os recursos financeiros para externaliz-lo conduz as mulheres a adiar a entrada ao trabalho autnomo, tanto no meio rural como no meio urbano21. Quando possvel iniciar atividades como autnoma, as mulheres devem fazer escolhas obrigadas. Por exemplo, escolhem atividades informais que facilitam a conciliao entre o trabalho reprodutivo e o trabalho produtivo. Entre outras cosas, isso limita as possibilidades de aumentar a renda, particularmente nas atividades de baixa produtividade nas quais tm20

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Isso responde a um tipo de racionalidade econmica que considera que certas atividades tm muito poucas probabilidades de crescer e converter-se em empresas bem-sucedidas com lucros superiores ao umbral de pobreza. Schwartz (2000) demonstra que no meio rural haitiano as mulheres que podem trasladar parte do trabalho de cuidado aos filhos e s filhas maiores tm maior participao na atividade econmica (sobretudo no comrcio).

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de trabalhar mais tempo para ganhar mais. Quando a conciliao feita mediante o trabalho em casa, o acesso a mercados amplos ou em vias de crescimento se v restringido para as mulheres pobres, pois permanecem em um mercado em que a demanda de bens e servios provm de outros domiclios pobres. A alocao tradicional ao trabalho reprodutivo e a falta de educao subsequente, por sua vez, contribuem a definir, para as trabalhadoras autnomas, especializaes em atividades que requerem habilidades adquiridas no domiclio, em atividades caracterizadas por baixa produtividade e baixa renda. Quanto a acesso aos ativos econmicos, os processos de discriminao contra as mulheres se baseiam em disposies legais ou do direito consuetudinrio tradicional referidas propriedade (mediante a herana e a compra) e posse e ao uso dos ativos, e nos usos que se refletem na famlia, no mercado de terras e nas polticas estatais de adjudicao e titulao de terras. Tanto as disposies quanto as prticas so modos de produo com vises em detrimento das mulheres. o caso, por exemplo, da economia agrcola do pequeno agricultor, que exclui, de um ou outro modo, as mulheres no obstante sua participao no trabalho agrcola como tal 22 no s da propriedade da terra, mas tambm do

acesso terra por preferncias masculinas na herana, privilgios masculinos no matrimnio, vises de gnero na participao no mercado de terras e vises masculinos nos programas estatais de distribuio da terra (Deere e Len, 2000)23. Alm disso, mesmo quando existam casos de mulheres que possuem terra na Amrica Latina e no Caribe, o controle efetivo, ou seja, a capacidade de decidir sobre o uso da terra e seus benefcios derivados nem sempre est garantida. o caso, por exemplo, da terra possuda que forma parte do patrimnio familiar administrado pelo chefe de famlia varo (Deere e Len, 2000). O acesso aos ativos e ao financiamento tambm determinado pela alocao tradicional das mulheres ao trabalho reprodutivo, na medida em que esta fundamenta na dependncia das mulheres em relao famlia. Uma das principais fontes de financiamento das mulheres para adquirir ativos ou mercadorias a transferncia intradomiciliar da renda do cnjuge, somada s doaes ou aos emprstimos outorgados por familiares. Tambm o acesso aos ativos determinado pela insero prvia das mulheres em empregos de baixa produtividade ou mal remunerados; a poupana de parte da renda recebida nos empregos anteriores serve como financiamento inicial para entrar no mercado.

F. o papel do estado e o direito ao cuidadoA maioria dos pases estabelece obrigaes de cuidado dos membros da famlia. Ainda que exista uma clara definio das obrigaes legais de cuidado de ambos os cnjuges em relao com seus descendentes e ascendentes, h um vazio entre essas normas e os servios, a infraestrutura e as provises disponveis para sua realizao. As ordenanas jurdicas impem aos pais e s mes a obrigao de brindar cuidado e ateno s crianas, no mbito da regulao das relaes familiares. De modo similar, as normas civis clssicas estabelecem a obrigao das famlias de brindar cuidado r ateno aos idosos e s pessoas necessitadas. No entanto, em termos normativos, os pases da regio geralmente restringem suas intervenes em matria de cuidado a duas esferas que podem diferenciar-se a grandes rasgos. Por um lado, mediante a proteo me trabalhadora no mbito das leis trabalhistas (fundamentalmente no perodo de gestao, parto e lactncia). Por outro lado, por meio da22

obrigatoriedade da educao bsica, que em alguns casos o Estado se obriga a garantir desde os 45 dias de idade. Um aporte ao debate e formulao de polticas de desenvolvimento com enfoque de gnero consiste em incorporar nos diagnsticos e estudos setoriais a anlise das disparidades entre as ordenanas legais, as polticas aplicadas e a situao de fato que atravessam as mulheres tanto no momento de inserir-se no mercado de trabalho como no transcurso de sua trajetria laboral. Isto significa que antes de recomendar as prticas, deve analisar-se o alcance das regulaes para cada atividade produtiva e, em particular, o marco normativo laboral. Tratando-se de obrigaes jurdicas ou de boas prticas dos empregadores pblicos e privados, ambas excluem todas as pessoas que no tenham um contrato de trabalho registrado, isto , que no sejam assalariados e assalariadas formais que contribuem seguridade social e se encontrem protegidos pelo direito do trabalho.23

As estatsticas disponveis que descrevem a insero das mulheres e dos homens por categoria ocupacional no setor agrrio indicam que a maioria dos agricultores estabelecidos como autnomos ou como empregadores so vares. As mulheres so preferentemente classificadas como trabalhadoras familiares auxiliares no remuneradas. Esta classificao merece uma reviso. Pelo menos, os estudos qualitativos que registram a diviso sexual do trabalho agrcola nas propriedades familiares indicam as tarefas a cargo das mulheres, dos homens ou de ambos.

Segundo Deere e Len (2000, pg 3), Enquanto os direitos so reclamaes legal e socialmente reconhecidas e aplicveis por uma autoridade externa legitimada, como a comunidade ou o Estado, o acesso terra inclui no s o direito a esta, mas tambm aos meios informais de obter terra, como pedindo emprestada durante uma estao de cultivo a um familiar ou vizinho.

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

No contexto de flexibilizao laboral e informalidade existente na regio, o padro de emprego protegido (formalizado) minimizaria os efeitos da segregao ocupacional, que seriam problemas a resolver por meio da negociao coletiva ou outras formas de acordo entre trabalhadores, trabalhadoras e empregadores. No entanto, poucas vezes se repara nas discriminaes implcitas nos prprios cdigos e regulaes trabalhistas. Isto mostraria uma dbil mas no menos importante vinculao entre as esferas da cidadania e o verdadeiro alcance do princpio de igualdade de oportunidades e de tratamento. necessrio realizar um esclarecimento prvio: o direito em geral e o direito trabalhista em particular revela a tenso constante entre a regulao do mbito pblico e o discurso liberal de no intromisso do Estado no mundo privado, que deve estar livre de sua interveno. Em rigor, o direito laboral surge superando a clssica diviso do direito pblico e privado para situar-se no meio de ambos ao romper o princpio de igualdade entre as partes contratantes, estabelecendo que dada a relao de subordinao que caracteriza o vnculo trabalhista a parte trabalhadora requer proteo especial24. Tambm, neste ramo do direito se apresenta uma dicotomia na que competem dois valores diferentes: por um lado, se aceita a vigncia do princpio de igualdade entre os trabalhadores, mas, por outro, se reclama a regulao diferencial para certos supostos. Esta dicotomia adquire especial relevncia em matria de trabalho feminino, dado que recorre os ciclos reprodutivos e as conseguintes relaes sociais que implica assumir as responsabilidades familiares combinadas com as produtivas. A tal ponto esta relao se tensa que se termina afirmando a diferena para reclamar a igualdade. Na maioria dos cdigos trabalhistas e regulamentaes especficas da Amrica Latina, a dicotomia foi resolvida priorizando a proteo maternidade e no a igualdade, situao que no foi revisada nos ltimos 30 anos. Novamente, esta opo se condiz com os compromissos assumidos pelos Estados no marco das conferncias internacionais, em especial a Conveno sobre a eliminao de todas as formas de discriminao contra a mulher, os convnios da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e os planos nacionais de igualdade de oportunidades. Tampouco se ha considerado o descrito pela Conveno sobre os Direitos da Criana, que estabelece a obrigatoriedade de cuidado das crianas por parte de ambos progenitores. Igualmente significa reconhecer as limitaes que a prpria natureza do discurso normativo impe, e se incorpora o suposto de que no toda desigualdade discriminatria, dado que a garantia de igualdade no deve implicar o24

O direito pblico se refere s relaes entre as dependncias do Estado ou entre este e os particulares, enquanto o direito privado regula as relaes entre os particulares. Desde uma perspectiva de gnero, se designa como privado o espao e as relaes que ocorrem ao interior dos domiclios e como pblico, o espao, os processos e as relaes que ficam fora deles (Pautassi, 2007a).

tratamento igualitrio daqueles que se encontram em circunstncias diferentes. No entanto, o reconhecimento normativo da diferena destinado a brindar efetivas condies de igualdade de oportunidades para as mulheres no considera a diviso sexual do trabalho em casa. Dito de outra forma, o protegido e regulamentado para as mulheres se relaciona com sua responsabilidade sobre o mundo privado mais que sobre o processo contnuo de produo e reproduo como eixo de anlise de relaes que incluem homens e mulheres ou sobre a eliminao de discriminaes na esfera pblica (Pautassi, Faur e Gherardi, 2004). Quanto pauta de insero estvel na Amrica Latina e no Caribe continue sendo o emprego assalariado e o conseguinte acesso aos direitos econmicos, sociais e culturais, e no mudem as pautas de acesso s esferas da cidadania, pouco se poder fazer alm da insero ocupacional assalariada. O cuidado como direito garantido em instrumentos internacionais de direitos humanos e em compromissos assumidos pelos governos da regio. J em 1948 ficou estabelecido no artigo 25 inciso 2 da Declarao Universal de Direitos Humanos que a maternidade e a infncia tm direito a cuidados e assistncia especiais. Considerando o princpio de interdependncia consagrado na Declarao e Programa de Ao de Viena de 1993, pode-se entender que o direito ao cuidado concebendo a pessoa como receptora ou como doadora de cuidado integra o conjunto dos direitos universais consagrados nos diversos instrumentos internacionais, apesar de no estar explicitamente denominado como tal (Pautassi, 2007b). Quanto aos idosos, na Observao geral N 6 do Comit de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (Naes Unidas, 1995b) se assinala que dos direitos econmicos, sociais e culturais das pessoas maiores se derivou o direito ao cuidado deste grupo vulnervel. Posteriormente, o direito das pessoas idosas ao cuidado se incorporou de maneira explcita no artigo 17 do Protocolo de San Salvador, ao estabelecer-se que toda pessoa tem direito a proteo especial durante sua ancianidade. Para tal fim, os Estados participantes se comprometem a adotar de maneira progressiva as medidas necessrias a fim de levar prtica este direito... (OEA, 1988). Na Conveno sobre a eliminao de todas as formas de discriminao contra a mulher (artigo 11, incisos 2 e 2.c), se dispe que a fim de impedir a discriminao contra a mulher por razes de matrimnio ou maternidade e assegurar a efetividade de seu direito a trabalhar, os Estados Partes tomaro medidas adequadas para () alentar o fornecimento dos servios sociais de apoio necessrios para permitir que os pais combinem as obrigaes para com a famlia com as responsabilidades do trabalho e a participao na vida pblica, especialmente mediante o fomento da criao e desenvolvimento de uma rede de servios destinados ao cuidado das crianas (Naes Unidas, 1979).23

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O Consenso de Quito contm o plano de ao ao que se comprometeram os governos nacionais da regio. Em particular, os governos decidem: adotar as medidas necessrias, especialmente de carter econmico, social e cultural, para que os Estados assumam a reproduo social, o cuidado e o bem-estar da populao como objetivo da economia e responsabilidade pblica indelegvel (CEPAL, 2007a, pargrafo xxvii). Desde a perspectiva do enfoque de direitos, o acesso ao cuidado se vincula, tambm, com o acesso justia. Esta maior participao dos tribunais de justia na promoo da plena vigncia dos direitos humanos se vincula com a consolidao da corrente de opinio que sustenta que os direitos econmicos, sociais e culturais tm a mesma origem, o mesmo titular e o mesmo destinatrio que os direitos civis e polticos. Superando a clssica posio que sustentava a distino entre ambas classes de direitos com argumentos baseados em sua eficcia, exigibilidade e possibilidade de ser justificvel, atualmente tem se fortalecido o conceito que afirma que

todos os direitos humanos so reclamveis, indivisveis, interdependentes e universais. Em consequncia, o Estado se encontra obrigado a promover e proteger os direitos humanos em sua integridade, sem que corresponda fazer distino entre os direitos sociais e os direitos civis e polticos (Abramovich e Courtis, 2002). Este novo paradigma, que ilustra a importncia que o enfoque de direitos tem em termos de titularidade e no da mera garantia, no deve ser pensado como uma instncia desvinculada da obrigatoriedade dos poderes executivos e legislativos de formular polticas pblicas universais nas que se assuma como suposto intrnseco o fato de que as relaes laborais se vinculam necessria e indissoluvelmente com os mecanismos de reproduo social. Deve-se considerar que estes mecanismos no so autorregulados, mas que se necessitam polticas ativas e aes positivas que promovam seu melhor funcionamento; uma poltica pblica no pode salvar uma gerao custa de aumentar as responsabilidades do cuidado e fazer que recaiam exclusivamente nas mulheres25.

g. Reduo da distncia existente entre a produo e a reproduo socialO trabalho no remunerado tem implicaes importantes para a economia. O fato de prestar ateno atividade de reproduo social realizada nos domiclios ajuda a entender a dinmica da relao entre a produo e a redistribuio da riqueza. A visibilidade do trabalho domstico como reivindicao poltica no s tem como objetivo tornar explcita a relao entre o trabalho de reproduo e o produto social, sino tambm abrir um debate sobre as normas da distribuio, os modos de produo e a qualidade da relao entre a produo e a reproduo. Apesar de que se observem alguns avances, este debate ainda muito incipiente no mundo poltico. A omisso do reconhecimento do trabalho no remunerado no funcionamento da economia conduz, na maioria dos pases, a enfrentar a desigualdade entre homens e mulheres implantando programas parciais que no consideram as necessidades de cuidado e, portanto, no tratando a sua redistribuio social. A conciliao entre a vida laboral e a vida familiar, inscrita, por sua vez, na redistribuio das tarefas reprodutivas entre o Estado, o mercado e as famlias, continua sendo o ponto cego das polticas pblicas da Amrica Latina e do Caribe. Um Estado que se oriente nesta direo e fortalea as iniciativas existentes na regio criaria as condies e capacidades para que o desenvolvimento produtivo conte irrestritamente com o aporte das mulheres que alcanaram a igualdade na educao, mas que ainda no conseguiram superar os obstculos que lhes impedem maior mobilidade laboral, trajetria laboral livre de discriminaes e exerccio pleno da cidadania.24

Assumindo que a produo e a reproduo suscitam o problema da articulao entre o sistema de emprego e a famlia e que esta ltima tem sido o espao a partir do qual o trabalho das mulheres contribuiu para concretizar o direito ao cuidado das pessoas, necessrio que este pacto implcito na formulao das polticas pblicas se transforme em um pacto explcito enfocando-o da perspectiva da titularidade dos direitos daqueles que do e recebem cuidados. Neste marco, cabe perguntar-se sobre o papel protagonista do Estado. Ao longo da histria e particularmente durante as ltimas dcadas, o Estado tem sido objeto de importantes reformas, alm de ser um ator decisivo das polticas que tm permitido o avano das mulheres em direo igualdade. Mas tambm tem sido responsvel (por ao ou omisso) do atraso e da lentido no cumprimento dos compromissos internacionais. Ressurgem ento as perguntas: Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade? Que papel nivelador est cumprindo o Estado em tempos de globalizao e de crise? At onde se busca a interveno do Estado nas famlias e no mercado e que tipo de interveno as mulheres esperam? Que esto fazendo os governos da regio? Como o esto fazendo? Que e quanto falta por percorrer e como se poderia ir mais rpido? A Amrica Latina e o Caribe como muitas vezes dito dispe, em alguns mbitos, com um marco jurdico25

Serrano (2005) assinala que importante reconhecer que para satisfazer as necessidades das crianas e dos jovens preciso fazer o mesmo com as geraes adultas que esto a cargo do cuidado.

Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

suficiente para alcanar a igualdade entre mulheres e homens (CEPAL, 2007b) e adotou na prtica uma grande quantidade de iniciativas para tratar os problemas urgentes das mulheres. Mas, existem polticas de igualdade real? De que maneira se favorece a fruio plena dos direitos nos diversos mbitos do desenvolvimento e da democracia? Qual tem sido o sentido das polticas aplicadas nos ltimos anos e os seus efeitos sobre a autonomia das mulheres? At que ponto a responsabilidade pblica foi priorizada sobre a organizao e a proviso de cuidado? A 15 anos de Beijing, a regio ainda oscila entre a aceitao formal do princpio de igualdade, o desenvolvimento de polticas e programas eficientes e inovadores, a insuficincia de recursos destinados aos mecanismos estatais para o avano em matria de igualdade de gnero e a resistncia poltica e cultural de pessoas e instituies a pagar o preo econmico, poltico e social dessa igualdade. A transversalidade da perspectiva de gnero nas polticas pblicas um processo inconcluso, com luzes e sombras que se alternam como parte dos processos de desenvolvimento. Sem desconhecer a importante bagagem de polticas e programas existentes na regio e que tem sido coadjuvante do avano das mulheres, chama a ateno que as instituies sociais e polticas continuem operando com o suposto de uma rigorosa diviso sexual do trabalho que mantm o esteretipo das mulheres como provedoras de cuidados e dos homens como provedores de renda, com todos os efeitos sociais que esta diviso produz em termos de desigualdade e discriminao das mulheres. No plano das ideias, este suposio permite que os interesses particulares dos homens como coletivo sejam considerados universais e as polticas de gnero, quando existem, sejam acessrias ou muitas vezes estejam a contrapelo das polticas gerais (Montao, 2010). No entanto, da anlise destas polticas surgem algumas condies necessrias que contribuem para o alcance da igualdade real. Mais que definir o Estado ideal para alcanar a igualdade pode-se identificar tipos de sociedades em que os Estados formam parte de uma constelao ideal para a construo da igualdade.

Entre as condies necessrias, se consideram em primeiro lugar o respeito, a proteo e o cumprimento do marco internacional de direitos humanos que permitam a fruio efetiva desses direitos. Necessita-se logo: i) a formulao de polticas de desenvolvimento produtivo que incluam a redistribuio do trabalho remunerado e no remunerado entre homens e mulheres e entre o mercado, o Estado e os domiclios; ii) o funcionamento transparente de instituies democrticas que disponham, por sua vez, de mecanismos claros de prestao de contas; iii) processos de tomada de decises que tenham como objetivo a paridade26, e iv) uma cultura de respeito pela diversidade com igualdade. Estas caractersticas podem favorecer o desenvolvimento de um conjunto de aes e polticas que visem a igualdade, sobretudo de polticas integrais e integradas em cuja formulao e implementao a perspectiva de gnero tenha um papel articulador e ordenador. No entanto, nenhuma destas condies exime os pases de formular e pr em prtica polticas especficas para visibilizar a relevncia social e poltica da igualdade de gnero, dot-la de recursos e dar-lhe a hierarquia necessria na agenda poltica. A transversalizao da perspectiva de gnero efetuada em muitos pases deixa importantes lies neste sentido e sugere as vantagens de combinar uma institucionalidade de gnero capaz de dar espao ao dilogo entre os diversos setores de mulheres e atores do Estado, do mercado e da sociedade, por um lado, e de liderar, por outro, a incorporao do enfoque de igualdade nas prioridades dos distintos poderes e nveis do Estado no mbito de um projeto de consenso de desenvolvimento com igualdade. Pelo contrrio, se os esforos chocam contra os obstculos de uma baixa institucionalidade, com brechas resultantes da discriminao e com sociedades ancoradas em preconceitos, muito provvel que no sejam sustentveis no tempo. Como podemos construir e protagonizar essa constelao para a igualdade, desde que ponto do caminho, com quais instrumentos de poltica? As respostas a estas perguntas so o objeto dos prximos captulos.

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A paridade tem formado parte da agenda regional desde a nona Conferncia Regional sobre a Mulher da Amrica Latina e do Caribe realizada no Mxico em 2004, que se consolidou com a aprovao do Consenso de Quito na dcima Conferncia Regional de 2007.

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Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?

Captulo II

a situao das mulheres

a. a igualdade de gnero a 15 anos de BeijingPassaram-se 15 anos desde a Quarta Conferncia Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995). Considerando de uma perspectiva histrica, trata-se de pouco tempo para a profundidade da mudana cultural propiciada por esta instncia de encontro dos governos do mundo. Justamente devido a isto, surpreendente que em um perodo to reduzido de tempo o perfil das relaes de gnero na regio tenha mudado tanto: o resultado at o momento foi a conquista de mais direitos, igualdade e peso poltico e econmico pelas mulheres. O que no surpreende, ao contrrio, o peso das prticas, das ideias e das estruturas de subordinao das mulheres, q