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Quem é Homem? Erich Fromm 1 A pergunta “Quem é homem?” leva-nos diretamente ao âmago do problema. Se o homem fosse uma coisa, então poderíamos perguntar o que ele é e defini-lo do modo que definimos um objeto na natureza ou um produto industrial. Mas o homem não é uma coisa e não pode ser definido do mesmo modo que definimos uma coisa. Apesar disso, entretanto, o homem é freqüentemente visto como uma coisa. É descrito como um operário, um gerente de fábrica, um médico, etc. Mas tais descrições nos dizem apenas qual é a função social de um indivíduo. Em outras palavras: o homem é definido em termos de seu lugar na sociedade. O homem não é uma coisa; é um ser vivo envolvido num processo contínuo de desenvolvimento. Em cada ponto de sua vida, ele ainda não é o que pode ser e o que ainda pode vir a ser. Embora o homem não possa ser definido do modo que definimos uma mesa ou um relógio, ele não foge inteiramente à definição. Podemos dizer mais sobre ele do que não é uma coisa mas um processo vivo, O mais importante aspecto da definição de homem é que seu pensamento pode ir muito além da satisfação de suas necessidades físicas. Para ele, pensar não é - como para um animal - simplesmente um meio de obtenção de bens desejados; é também um meio de exploração da realidade do seu próprio ser e do mundo à sua volta, independentemente de suas simpatias e antipatias. Em outras palavras: o homem não só tem inteligência, o que os animais também possuem, mas tem ainda razão, a qual ele pode usar para perceber a verdade. Quando o homem se deixa guiar por sua razão, atua de acordo com os seus melhores interesses como ser intelectual e físico. Mas sabemos por experiência que muitas pessoas, cegas pela cobiça e a vaidade, não atuam racionalmente em suas vidas privadas. Pior ainda, as ações de nações são guiadas ainda menos pela razão, porque os demagogos estão sempre a postos para fazer o cidadão esquecer que levarão sua cidade e seu mundo à ruína se der crédito aos demagogos. Muitas nações caminharam irremediavelmente para a destruição por não terem logrado se libertar das emoções irracionais que estavam determinando seu comportamento e por não terem aprendido o caminho da razão. A tarefa crucial que os profetas do Antigo Testamento realizaram não foi, como pensa muita gente, predizer o futuro. Foi proclamar a verdade e, assim, sugerir indiretamente quais seriam as conseqüências futuras das ações presentes das pessoas. Como o homem não é algo que possamos descrever desde fora, por assim dizer, temos que recorrer à nossa própria experiência pessoal como seres humanos para defini-lo. Portanto, a pergunta “Quem é homem?” obriga-nos a indagar, “Quem sou eu?”. Se queremos evitar o erro de tratar o homem como uma coisa, a única resposta que podemos dar à pergunta “Quem sou eu?” é “um ser humano”. A maioria das pessoas nunca tomou conhecimento de sua identidade como ser humano. Elas criam toda a espécie de imagens ilusórias de si mesmas, suas qualidades e sua identidade. Responderão freqüentemente à nossa pergunta como “Sou professor”, “Sou operário”, “Sou médico”. Mas essa informação sobre o trabalho de uma pessoa nada nos diz sobre essa pessoa e não contém qualquer pista para ajudar-nos a responder à pergunta “Quem é ele?”, “Quem sou eu?”. Neste ponto, deparamo-nos ainda com uma outra dificuldade. Todos temos uma certa orientação social, moral e psicológica. Quando e como sei se uma direção que alguém tomou será sua direção permanente ou se alguma experiência poderosa será capaz de fazê-la mudar de orientação? As pessoas atingirão um ponto em que estão * * Erich Fromm (1900 - 1980) , um dos mais destacados teóricos da psicanálise contemporânea, alemão, tornou-se cidadão norte-americano em 1938. Escreveu: "O Medo à Liberdade", "Análise do Homem" e "Psicanálise da Sociedade Contemporânea". - 1 -

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Quem é Homem?          

Erich Fromm1

 A pergunta “Quem é homem?” leva-nos diretamente ao âmago do problema. Se o

homem fosse uma coisa, então poderíamos perguntar o que ele é e defini-lo do modo quedefinimos um objeto na natureza ou um produto industrial. Mas o homem não é uma coisae não pode ser definido do mesmo modo que definimos uma coisa. Apesar disso,entretanto, o homem é freqüentemente visto como uma coisa. É descrito como umoperário, um gerente de fábrica, um médico, etc. Mas tais descrições nos dizem apenasqual é a função social de um indivíduo. Em outras palavras: o homem é definido em termosde seu lugar na sociedade.

O homem não é uma coisa; é um ser vivo envolvido num processo contínuo dedesenvolvimento. Em cada ponto de sua vida, ele ainda não é o que pode ser e o queainda pode vir a ser.

Embora o homem não possa ser definido do modo que definimos uma mesa ou umrelógio, ele não foge inteiramente à definição. Podemos dizer mais sobre ele do que não éuma coisa mas um processo vivo, O mais importante aspecto da definição de homem éque seu pensamento pode ir muito além da satisfação de suas necessidades físicas. Paraele, pensar não é - como para um animal - simplesmente um meio de obtenção de bensdesejados; é também um meio de exploração da realidade do seu próprio ser e do mundoà sua volta, independentemente de suas simpatias e antipatias. Em outras palavras: ohomem não só tem inteligência, o que os animais também possuem, mas tem ainda razão,a qual ele pode usar para perceber a verdade. Quando o homem se deixa guiar por suarazão, atua de acordo com os seus melhores interesses como ser intelectual e físico.

  Mas sabemos por experiência que muitas pessoas, cegas pela cobiça e avaidade, não atuam racionalmente em suas vidas privadas. Pior ainda, as ações denações são guiadas ainda menos pela razão, porque os demagogos estão sempre apostos para fazer o cidadão esquecer que levarão sua cidade e seu mundo à ruína se dercrédito aos demagogos. Muitas nações caminharam irremediavelmente para a destruiçãopor não terem logrado se libertar das emoções irracionais que estavam determinando seucomportamento e por não terem aprendido o caminho da razão. A tarefa crucial que osprofetas do Antigo Testamento realizaram não foi, como pensa muita gente, predizer ofuturo. Foi proclamar a verdade e, assim, sugerir indiretamente quais seriam asconseqüências futuras das ações presentes das pessoas.

Como o homem não é algo que possamos descrever desde fora, por assim dizer,temos que recorrer à nossa própria experiência pessoal como seres humanos paradefini-lo. Portanto, a pergunta “Quem é homem?” obriga-nos a indagar, “Quem sou eu?”.Se queremos evitar o erro de tratar o homem como uma coisa, a única resposta quepodemos dar à pergunta “Quem sou eu?” é “um ser humano”.

A maioria das pessoas nunca tomou conhecimento de sua identidade como serhumano. Elas criam toda a espécie de imagens ilusórias de si mesmas, suas qualidades esua identidade. Responderão freqüentemente à nossa pergunta como “Sou professor”,“Sou operário”, “Sou médico”. Mas essa informação sobre o trabalho de uma pessoa nadanos diz sobre essa pessoa e não contém qualquer pista para ajudar-nos a responder àpergunta “Quem é ele?”, “Quem sou eu?”.

Neste ponto, deparamo-nos ainda com uma outra dificuldade. Todos temos umacerta orientação social, moral e psicológica. Quando e como sei se uma direção quealguém tomou será sua direção permanente ou se alguma experiência poderosa serácapaz de fazê-la mudar de orientação? As pessoas atingirão um ponto em que estão

** Erich Fromm (1900 - 1980), um dos mais destacados teóricos da psicanálise contemporânea, alemão, tornou-secidadão norte-americano em 1938. Escreveu: "O Medo à Liberdade", "Análise do Homem" e "Psicanálise da SociedadeContemporânea".

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fixadas tão firmemente em seus rumos que se possa corretamente dizer delas que sãoquem são e nunca mudarão? Estatisticamente pode ser possível dizer isso de muita gente.Mas poderemos dizê-lo a respeito de cada pessoa até o dia de sua morte, e poderemosdizê-lo se considerarmos que talvez ela mudasse se tivesse vivido mais tempo?

Podemos definir o homem ainda de uma outra maneira. Ele é guiado por dois tiposde emoções e impulsos. Um tipo é de origem biológica e basicamente o mesmo em todasas pessoas. Inclui tudo o que se enquadra nos requisitos para a sobrevivência: anecessidade de satisfazer a fome e a sede, a necessidade de proteção, a necessidadede alguma forma de estrutura social e, num grau muito menor, a necessidade derealização sexual. As emoções do segundo tipo não têm raízes na biologia e não sãoidênticas para todas as pessoas. Essas emoções - como amor, alegria, solidariedade,inveja, ódio, ciúme, competitividade, cobiça, etc. - originam-se em diferentes estruturassociais. No caso do ódio, temos que distinguir entre ódio reativo e endógeno1.Entendemos esses termos como paralelos à depressão reativa e endógena. O ódioreativo é uma resposta a um ataque ou uma ameaça a nós mesmos ou ao nosso grupo, epassa usualmente assim que o perigo passou. O ódio endógeno é um traço de caráter.Uma pessoa cheia dessa espécie de ódio está sempre buscando novos meios de passarao ato, de concretizar esse ódio.

Ao invés das emoções de base biológica, as emoções socialmente geradas queacabei de mencionar são produtos de estruturas sociais específicas. Numa sociedadeonde uma minoria exploradora domina uma maioria indefesa e empobrecida, existe ódiode ambos os lados. É mais do que óbvio que a maioria explorada sentirá ódio. Entretanto,o ódio da minoria dominante será alimentado pelo medo da vingança que os oprimidospossam um dia levar a efeito. Além disso, a minoria tem que odiar as massas a fim desufocar seus próprios sentimentos de culpa e justificar sua exploração. O ódio nãodesaparecerá enquanto faltarem justiça e igualdade. Do mesmo modo, a verdade nãoprevalecerá enquanto as pessoas tiverem que mentir para justificar suas violações dosprincípios de igualdade e justiça.

 Algumas pessoas afirmam que princípios como igualdade e justiça são ideologiasque se desenvolveram no curso da história e não fazem parte do equipamento básico,natural, do homem. Não posso dedicar-me aqui a uma refutação desse argumento masquero enfatizar um ponto que fala contra ele: o modo como as pessoas reagem se umgrupo hostil viola os princípios de justiça e igualdade demonstra que as pessoas têm, nomais profundo de seu íntimo, um forte sentido desses valores. A sensibilidade daconsciência humana em nenhuma parte é mais evidente do que no modo como a maioriadas pessoas reage até às mais pequenas violações da justiça e da igualdade, desde que,é claro, não sejam elas próprias as acusadas de cometer tais violações; E assim é que aconsciência encontra veemente expressão nas acusações que grupos nacionais fazemcontra seus inimigos. Se as pessoas não possuíssem sensibilidade moral natural, comoseria possível incitá-las a tão violentas paixões informando-as sobre as atrocidades que sealega terem sido cometidas por seus inimigos?

  Ainda uma outra definição de homem diz que ele é um ser em que o governoinstintivo do comportamento foi reduzido a um mínimo. O homem reteve, obviamente,certos elementos da motivação instintiva, como em sua necessidade de satisfazer a fomee de se reproduzir. Mas é somente quando a sobrevivência do indivíduo ou da comunidadeestá em jogo que o homem é primariamente motivado pelo instinto. A maioria dosimpulsos que motivam as pessoas - ambição, inveja, ciúme, vingança - surge e éalimentada por constelações sociais específicas. O fato de que esses impulsos podemassumir prioridade, até mesmo sobre o instinto de sobrevivência, demonstra até que pontoeles podem ser poderosos. As pessoas estão freqüentemente preparadas para sacrificara vida a serviço tanto de seus ódios e ambições quanto de seus amores e lealdades.

  O mais abominável de todos os impulsos humanos, a necessidade de usar umaoutra pessoa para satisfazer os próprios fins, em virtude do próprio poder sobre essa

1 en.dó.ge.no: adj. 1. Que cresce dentro de. 2. Originado dentro do organismo. Var.: endógene.

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pessoa, pouco mais é do que uma forma refinada de canibalismo. Esse impulso irrefreávelpara usar outros com vistas aos nossos próprios fins era desconhecido nas sociedadesneolíticas. Para quase todos os que vivemos hoje é praticamente impossível imaginar quetivesse havido alguma vez um período histórico em que os homens não queriam explorarnem eram explorados. Mas esse tempo existiu. Nas primitivas culturas decaçadores-coletores e agrícolas, todos tinham o suficiente para viver e seriadespropositado acumular bens. A propriedade privada não podia ainda ser investidacomo capital e usada como fonte de poder. Essa fase do pensamento humano estárefletida de forma simbólica no Antigo Testamento. Os filho de Israel foram alimentados nodeserto com maná. Havia maná em abundância e todos podiam comer quanto quisessem,mas o maná não podia ser armazenado. Todo o que não fosse comido estragava-se edesaparecia no mesmo dia. Não adiantava especular sobre se viria logo ou não maismaná. Mas bens como cereais ou ferramentas não desaparecem. Podem ser acumuladose dar poder àqueles que possuem maior quantidade de tais bens. Somente quando osexcedentes começaram a ultrapassar um certo limite é que se tornaram vantajosos para aclasse dominante, a fim de exercer o poder sobre outras classes e obrigá-las a executartrabalhos para os seus senhores, aceitando como seu quinhão o estritamente mínimonecessário à existência. O triunfo do Estado patriarcal fez dos escravos, trabalhadores emulheres as principais vítimas da exploração.

 Somente quando o homem deixar de ser um artigo de consumo para o seu“semelhante” mais forte, poderá o nosso período canibalístico, pré-histórico, terminar, e anossa história verdadeiramente humana começar. Para que se efetue tal mudança,teremos que adquirir plena consciência de até que ponto são criminosos os nossos modose costumes canibalísticos. Mas até a plena consciência permanecerá ineficaz se não foracompanhada de um remorso igualmente abrangente.

O remorso é mais do que sentirmo-nos meramente arrependidos a respeito dealgo. O remorso é uma emoção poderosa. Uma pessoa com remorsos sente verdadeirarepulsa por si mesma e pelo que fez. O remorso e a vergonha que o acompanha são asúnicas emoções humanas que podem impedir que velhos crimes sejam repetidoscontinuamente. Onde não há remorso pode surgir a ilusão de que não foram cometidoscrimes. Mas onde encontramos qualquer remorso genuíno? Os israelitas sentiram remorsopelo genocídio que perpetraram contra as tribos de Canaã? Os americanos sentemremorso pelo extermínio quase completo dos índios? Durante milênios o homem tem vividonum sistema que alivia o vencedor de remorso porque equipara poder e direito. Cada umde nós deveria confessar plenamente os crimes que nossos antepassados, nossoscontemporâneos ou nós mesmos cometemos, diretamente ou através de omissão quandodeveríamos protestar. Devemos confessar esses crimes abertamente, publicamente, emforma ritual, por assim dizer. A Igreja católica romana oferece ao indivíduo a oportunidadede confessar seus pecados e deixa que a voz da consciência seja ouvida. Mas a confissãoindividual não é bastante, porque não envolve os crimes que são cometidos por um grupo,uma classe, uma nação ou, de suma importância, por um Estado soberano, o qual nãoestá sujeito aos ditames da consciência individual. Enquanto formos relutantes em fazer“confissões de culpa nacional”, continuaremos adotando os nossos velhos hábitos,mantendo os olhos abertos para os crimes dos nossos inimigos mas permanecendocegos para os crimes do nosso próprio povo. Como podem os indivíduos começar aobedecer aos ditames da consciência de um modo sério quando nações, que professamser guardiãs da moralidade, agem sem consideração alguma pela consciência? O queinevitavelmente se segue é que a voz da consciência é silenciada em cada ocasião, pois aconsciência é não menos divisível do que a verdade.

Se a razão humana pretende tornar-se um guia efetivo para as nossas ações, elanão pode ser dominada por emoções irracionais. A inteligência continua sendointeligência, mesmo quando devotada a fins perversos. A razão, porém, a nossapercepção consciente da realidade tal como é e não como gostaríamos de vê-la a fim depodermos explorá-la para os nossos próprios fins - a razão, nesse sentido, só pode sereficaz na medida em que pusermos de lado as nossas emoções irracionais, isto é, na

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medida em que, como seres humanos, nos tornarmos verdadeiramente humanos e osimpulsos irracionais deixarem de ser a principal força motivadora subjacente em nossasações.

Isso leva-nos à questão seguinte: que impulsos são necessários à sobrevivência daraça humana? A agressão e a destrutividade podem ajudar um grupo a erradicar um outroe assim assegurar sua própria sobrevivência, mas esses impulsos assumem umsignificado diferente se os considerarmos no contexto da humanidade como um todo. Se aagressividade se propagasse à população humana inteira, culminaria não só nadestruição de um grupo ou outro mas, em última instância, na erradicação de toda a raçahumana. No passado, tal pensamento não se relacionava com a realidade e consistiameramente em especulação ociosa. Hoje, o nosso amor à vida atingiu seu ponto maisbaixo. A destruição da humanidade como um todo é uma possibilidade concreta, porquedispomos hoje de meios de autodestruição maciça e porque brincamos realmente com aidéia de utilizá-los. Hoje, temos de compreender que o princípio de sobrevivência dos maisaptos - a irrestrita vontade de poder de Estados soberanos - pode resultar na destruiçãoda humanidade inteira.

No século XIX, Emerson disse: “As coisas estão na sela e cavalgam ahumanidade.” Hoje podemos dizer: “O homem fez das coisas seus ídolos e o culto dessesídolos pode destruí-lo.”

Dizem-nos repetidamente não haver limites para a maleabilidade dos sereshumanos e, à primeira vista, isso parece ser verdadeiro. Um exame do comportamentohumano através dos tempos mostra-nos não existir praticamente nenhum ato, do maisnobre ao mais vil, de que o homem não seja capaz e não tenha realmente realizado. Mas atese da maleabilidade dos seres humanos sofre restrições. Qualquer comportamento quenão sirva ao crescimento de uma pessoa, ao seu progresso no sentido da auto-realização,tem seu alto preço. O explorador teme o explorado. O homicida teme o isolamento a quesuas façanhas o condenam, mesmo que o isolamento não assuma a forma de isolamentona prisão. O destruidor teme sua própria consciência. O consumidor sem alegria temeviver sem estar verdadeiramente vivo.

Implícita na afirmação que o homem é infindavelmente maleável está apossibilidade que ele possa estar vivo, do ponto de vista fisiológico, mas mutilado numsentido humano. Tal pessoa será infeliz. Não experimentará nenhuma alegria. Estarárepleta de amargura, e a amargura a tornará destrutiva. Somente se ela puder libertar-sedesse círculo vicioso reabrirá a possibilidade para a alegria. Se pusermos de ladocondições patológicas congênitas, podemos dizer que os seres humanos sãopsiquicamente saudáveis ao nascer. Eles só se incapacitam nas mãos de outros quequerem exercer total controle sobre seus semelhantes, que odeiam a vida e que nãosuportam ouvir risos de alegria. Se uma criança fica então mutilada, eles sentem-sejustificados em sua atitude hostil para com essa criança e consideram sua hostilidade umaconseqüência do comportamento doentio da criança, não sua causa.

Por que quereria alguém fazer de outrem um mutilado? A resposta a essa perguntareside no que eu disse a respeito do canibalismo que ainda está presente hoje em nossasociedade. Uma pessoa psiquicamente mutilada pode ser mais facilmente explorada poruma forte. A pessoa forte pode revidar; a fraca não pode. Ela está à mercê das pessoasmalévolas no poder. Quanto mais um grupo dominante pode converter em mutiladospsíquicos aqueles a quem domina, mais fácil é para ele explorar seus subordinados,usando-os para promover seus próprios fins.

Por ser o homem dotado de razão, ele pode analisar criticamente sua experiência ediscernir o que promove seu desenvolvimento e o que o impede. Trabalha para alcançar omais harmonioso crescimento possível de todos os seus poderes mentais e físicos, tendopor meta final a realização do bem-estar. O oposto do bem-estar é a depressão, comodemonstrou Spinoza. Isso sugere que a alegria é um produto da razão e a depressão é oque resulta de um modo incorreto de vida. Isso encontra a mais clara das confirmações noAntigo Testamento, onde é interpretado como grave pecado por parte dos israelitas quesuas vidas sejam desprovidas de alegria, ainda que vivam no meio da abundância.

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Os pressupostos básicos da sociedade industrial estão em conflito com obem-estar humano. Quais são esses pressupostos?

O primeiro pressuposto básico é que a natureza tem de ser controlada. Mas asociedade pré-industrial não controlou também a natureza? É claro que sim; casocontrário, o homem já teria morrido de fome há muito tempo. Mas o modo comocontrolamos a natureza na sociedade industrial é distinto de como as sociedadesagrícolas o fizeram. Isso é particularmente verdadeiro a partir do momento em que asociedade industrial passou a usar a tecnologia para controlar a natureza. A tecnologia usaa capacidade de pensar do homem para produzir coisas. É o substituto masculino doventre feminino. Por isso é que no começo do Antigo Testamento se descreve como Deuscriou o mundo através do Verbo. No mais antigo mito babilônico da criação, é a GrandeMãe quem gera o mundo.

O segundo pressuposto básico da sociedade industrial é que os seres humanospodem ser explorados por meio da força, recompensas ou - com maior freqüência - umacombinação de ambas.

O terceiro pressuposto é que a atividade econômica tem que ser lucrativa. Nasociedade industrial, o motivo de lucro não é, primordialmente, uma expressão deganância pessoal, mas antes, um teste para a correção do comportamento econômico.Não produzimos bens para serem usados, embora a maioria dos bens tenha que ter algumvalor utilitário se quiserem ser vendáveis. Produzimos bens para obter lucro. O resultadofinal de minha atividade econômica tem que ser que ganho mais do que tenho de gastarpara a produção ou aquisição de bens comerciáveis. É um erro comum representar omotivo de lucro como um traço psicológico pessoal, peculiar das pessoas gananciosas. Odesejo de lucro pode, é claro, ser apenas isso, mas tal noção do motivo de lucro nãocaracteriza a norma típica numa sociedade industrial moderna. O lucro é simplesmenteuma prova de comportamento econômico correto e, por conseguinte, um critério para acompetência nos negócios.

Um quarto traço, que é uma característica clássica das sociedades industriais, é acompetição. A história mostrou, porém, que como resultado da crescente centralização edas dimensões de algumas empresas - e como resultado, também, da ilegal mas, nãoobstante, praticada fixação de preços - a competição entre grandes companhias deu lugarà cooperação. Onde existe competição, é mais provável que ocorra entre duas pequenaslojas de varejo do que entre grandes organizações industriais. Em toda a nossa modernaordem econômica, inexistem vínculos emocionais entre vendedor e comprador. Emépocas antigas, havia uma relação especial entre um comerciante e seu freguês. Ocomerciante estava interessado em seu freguês e a venda era mais do que uma transaçãofinanceira. O negociante sentia uma certa satisfação em vender à sua clientela um artigoque era útil e atraente. Isso ainda acontece hoje, é claro, mas é a exceção e está limitadoprincipalmente a pequenas lojas de um tipo antiquado. Numa dispendiosa loja dedepartamentos, os vendedores sorriem polidamente. De um modo vulgar, põem os olhosindiferentemente no espaço. Não precisaria assinalar que o sorriso na loja cara é falso efaz parte das despesas gerais refletidas nos preços mais elevados.

O quinto ponto que quero mencionar é que a capacidade de simpatia reduziu-semuito no nosso século. E deveria talvez acrescentar que a capacidade de sofrimentoencolheu com ela. Não quero dizer com isso, é claro, que as pessoas sofrem hoje menosdo que era costume. Mas encontram-se tão alienadas de si mesmas que já não possuemplena consciência de seu sofrimento. Tal como alguém com uma dor física crônica, elasacabam aceitando seu sofrimento como um dado normal e só o percebem quando eleaumenta além de sua intensidade usual. Mas não deveríamos esquecer que o sofrimento éa única emoção que parece ser verdadeiramente comum a todos os seres humanos, naverdade, talvez, a todos os seres sencientes1. Por essa razão, uma pessoa sofredora quereconhece até que ponto o sofrimento é generalizado pode sentir o consolo dasolidariedade humana.

1 [Do lat. sentiente.] adj. 1. Que sente. 2. Que tem sensações.

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Existem muitas, inúmeras, pessoas que nunca conheceram a felicidade. Mas nãoexiste uma só que nunca tenha sofrido, por mais obstinadamente que tenha lutado parareprimir sua própria consciência do sofrimento. A simpatia é inseparável do amor àhumanidade. Onde não há amor não pode haver simpatia nem compaixão. A indiferença éo oposto da compaixão e podemos descrever a indiferença como um estado patológicocom tendências esquizóides. O que passa por ser amor por um outro individuo prova, comfreqüência, não ser mais do que dependência dessa pessoa. Quem ama somente umapessoa não ama realmente ninguém.

In: FROMM, Erich. Do amor à vida: palestras radiofônicas organizadas por HansdJürgen Schultz. Rio, Zahar Ed., 1986. pg.138-145.

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