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QUEM SÃO AS LOUCAS INFRATORAS? UMA REFLEXÃO SOBRE AS MULHERES QUE
CUMPREM MEDIDA DE SEGURANÇA E A GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA
SAÚDE MENTAL
Anne Piauilino Leopoldo1
Lucia Cristina dos Santos Rosa2
RESUMO: Com o objetivo de desenvolver uma reflexão sobre o processo histórico acerca da condição da pessoa com transtorno mental que cometeu ilícito penal, a partir do processo de reforma psiquiátrica brasileira, analisa-se, apoiada em revisão bibliográfica e no censo dos Estabelecimentos de Custodia e Tratamento Psiquiátrico de 2011, a implementação da medida de segurança no Brasil e a gestão de políticas públicas no âmbito da saúde mental, a partir de uma perspectiva de gênero, com ênfase na situação das mulheres, que embora conformando um grupo minoritário, vivenciam situação de desvantagem social, sem políticas orientadas na equidade e interseccionalidade.
Palavras-chave: Medida de segurança. Saúde mental. Mulheres. Políticas públicas.
ABSTRACT: With the objective of developing a reflection on the historical process about the condition of the person with mental disorder who committed criminal offense, starting from the process of Brazilian psychiatric reform, it is analyzed, supported by bibliographical review and census of Custody and Treatment Establishments Psychiatry of 2011, the implementation of the Brazilian security measure and the management of public policies in the field of mental health, from a gender perspective, with emphasis on the situation of women, who although forming a minority group, experience a disadvantage social, without policies oriented on equity and intersectionality.
Keywords: Safety measure. Mental health. Women. Public policies.
1 Advogada, Especialista em Direitos Humanos, Mestranda em Políticas Públicas pela Universidade
Federal do Piauí. Email: [email protected] 2 Assistente social e Docente do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas, Universidade
Federal do Piauí, doutora em Serviço social. Email: [email protected]
1 INTRODUÇÃO
O movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil, iniciado ao final dos anos 70,
procurou construir a cidadania da pessoa com transtorno mental, a partir dos direitos civis,
ou seja, fundado no asseguramento do direito às liberdades básicas, sobretudo o de ser
cuidada em liberdade, haja vista o modelo hospiciocêntrico/manicomial, ser condenado por
organismos internacionais da saúde, por produzir iatrogênia e violação de direitos humanos
(ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 1990) e priorizar a produção do cuidado
na atenção primária.
A partir dos anos 1990, outra política de saúde mental passa a ser construída no
Brasil, orientada pela perspectiva da atenção psicossocial, considerada como sinônimo de
cidadania (SARACENO, 1999) e apoiada em serviços comunitários, principalmente os
Centros de Atenção Psicossocial - Caps, equipamento com a missão de desconstruir a
cultura manicomial e reinserir a pessoa com transtorno mental na comunidade, haja vista a
segregação que historicamente cercou esse segmento, cuja identidade passou a ser
associada à incapacidade e à periculosidade, a partir do século XVIII, com a crescente
medicalização e criminalização da loucura (DELGADO, 1992).
Nesse sentido, a nova política de saúde mental, ancorada no movimento da
reforma psiquiátrica brasileira buscou descontruir todo aparato administrativo, assistencial e
legal que cercou a pessoa com transtorno mental, a partir de um entendimento popular de
que “lugar de louco é no hospício”, máxima que foi forjada com o beneplácito científico.
Entretanto, um segmento ficou marcado sócio-culturalmente, com a lógica anterior,
tendo maior dificuldade em se inserir na nova perspectiva, pela marca histórica da
associação do louco à periculosidade, conhecido popularmente, como “louco-infrator”,
juridicamente, configurando a pessoa que cometeu ilícito penal em decorrência ou pela
associação com um transtorno mental, presumindo-se que estava com dificuldade de
discernimento para cometer o ato.
Esse segmento era encaminhado para os “manicômios judiciários”, ou
denominados Hospitais de Custódia e Tratamento Judiciário – sendo segregados e
submetidos a medidas de segurança, conceituadas como “uma providência do Estado,
fundamentada no jus puniendi, imposta ao agente inimputável ou semi-imputável que pratica
fato típico e ilícito, com base no grau de periculosidade do mesmo” (FREITAS, 2014, 01). Na
prática, a medida de segurança redunda(va) em prisão perpétua, regime que não existe no
país, mas que acabou se implementando, pela dificuldade em desinternar esse segmento,
historicamente sob guarda do sistema de segurança pública/sistema penitenciário brasileiro.
Com a implementação das mudanças postas pelo novo paradigma, passa a ser
proibida a construção de novos “manicômios judiciários” e a população sob medida de
segurança, passa a ser considerada sujeito de direitos, sob a lei nº 10.216/2001 que “dispõe
sobre a proteção e dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona
o modelo assistencial em saúde mental” (BRASIL, 2004, p.17).
Em 2002 é implementado um Seminário que discutiu a “Reforma psiquiátrica e
manicômio judiciário” (BRASIL, 2002), havendo consenso de que “o Sistema Único de
Saúde e a rede de atenção à saúde mental devem responsabilizar-se pelo tratamento da
pessoa submetida à medida de segurança” (p.06), o que paulatinamente passa a ocorrer,
reforçado pelo parecer sobre medidas de segurança e hospitais de custódia e tratamento
psiquiátrico sob a perspectiva da lei n. 10.216/2001 (BRASIL, 2011).
Em 2009 Debora Diniz lança o documentário A Casa dos Mortos, em que, a partir
do Manicômio Judiciário da Bahia, mostra os impasses que ocorre entre o sistema de saúde
e o sistema judiciário brasileiro, com vários internos com cessação de periculosidade
atestado por médico psiquiatra, sem que o sistema de garantia de direitos assegure o
retorno ao convívio comunitário.
Apesar dos variados estudos no campo da saúde mental somente em 2011 foi
divulgado o primeiro censo relativo às pessoas que cumprem medida de segurança no
Brasil. Débora Diniz nomeia de “o censo de uma população invisível — os loucos infratores
que vivem em estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátrico no Brasil” (DINIZ,
2013, p. 13). Neste censo computou-se 3.989 internos, sendo 3.684 homens e 291 (7%)
mulheres internadas em hospitais ou alas psiquiátricas de presídios sendo possível
identificar uma “população majoritariamente masculina, negra, de baixa escolaridade e com
periférica inserção no mundo do trabalho, que em geral cometeu infração penal contra uma
pessoa de sua rede familiar ou doméstica” (DINIZ, 2013, p. 16). Em torno da população
que é submetida à medida de segurança há poucos estudos que relacionam prisão e saúde
mental com o recorte nas questões específicas de gênero, e há menos investimento ainda
no que se refere à situação das mulheres.
Dentre os parcos estudos, Silva (2012) sinaliza que tradicionalmente houve
associação entre mulher e criminalidade em duas direções, uma primeira, e mais dominante,
é quando a mesma é vítima, no geral de violência de parceiro íntimo, violência doméstica e
de gênero, ou quando é a perpetradora. Nessa segunda dimensão, tradicionalmente foram
associados às mulheres os crimes de:
o aborto (que na realidade denuncia a falta de autonomia das mulheres sobre o seu corpo e sua sexualidade); a prostituição; o adultério (que era considerado como crime, até a Constituição Federal de 1988) e o infanticídio (sobre o qual podemos questionar: a mulher não desenvolve o “papel” de educadora e protetora dos filhos, por que os mata) ( SILVA, 2012, p. 209/10).
Nesse enquadre, observa-se a correlação entre os crimes e o papel historicamente
atribuído às mulheres na sociedade, mais relacionado ao espaço privado, à esfera íntima,
da relação com o seu corpo, com marido e filhos.
Claudia Silva (2012) sinaliza que houve mudança nesse perfil, com as mulheres
também ocupando posições no crime que historicamente eram dos homens, tais como
postos de comando no narcotráfico.
Apesar disso, no censo de 2011, Debora Diniz identifica que as mulheres
representavam uma minoria na proporção de “uma mulher para cada doze homens, elas
cometem mais homicídios que os homens, e suas principais vítimas são os filhos (24% das
vítimas dos homicídios cometidos por mulheres)” (DINIZ, 2013, p. 16). Numericamente, 55%
dos crimes cometidos por elas são contra a vida (pelos homens totaliza 42%); 22% contra o
patrimônio (por eles 29%) e 7% lesões corporais. Em terceiro lugar, entre os homens,
destaca-se crimes contra a família (16%). Ou seja, ao se destacar a mulher com transtorno
mental, o crime que ganha maior projeção, é aquele relacionado a seu papel tradicional,
como mãe.
Nesse contexto, tendem a ser mais julgadas social e moralmente, a receber menos
visitas, ser mais estigmatizadas, como “mães desnaturadas”, fatores de agravos à saúde
mental. Ocorre que, certamente tais crimes foram cometidos, porque, como a própria autora
sinaliza, houve falha na política pública, em termos de suporte à mãe gestante ou puérpera,
sobretudo aquela com diagnóstico de transtorno mental ou problemas relacionados ao
consumo de substâncias psicoativas.
Uma grande questão é como descontruir a identidade dessas mulheres, congeladas
pelo estigma de loucas e assassinas dos próprios filhos. Hall (2007) observa que em vez de
entender a identidade como algo acabado, deve-se falar de identificação e vê-la como um
processo em andamento e em construção. A identidade não está relacionada a um todo que
é preenchido a partir do exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos
por outros.
Para Cuche (2001), a identidade se refere, ao mesmo tempo, à inclusão e exclusão.
Caracteriza-se pelo conjunto de suas vinculações em um sistema social. Assim, “a
identidade permite que o indivíduo se localize em um sistema social e seja localizado
socialmente” (CUCHE, 2001, p. 177).
Nesse sentido, é imperativo as ações das políticas públicas para a reinserção
social, e reposicionamento dessas mulheres na sociedade, e na vida em geral. Para tanto,
torna-se indispensável explorar as variáveis que compõe a situação social das internas tais
como as relações de gênero, raça, poder e vínculos sociais, visto que, o sistema
penitenciário brasileiro é voltado sobretudo para o pobre e negro, segmento historicamente
marcado pelas desigualdades sociais, desde o processo de abolição da escravidão no
Brasil, e a consequente inexistência de políticas que integrassem esse grupo. A ausência da
intersetorialidade e sobretudo, da interseccionalidade, configura uma barreira para a
elaboração de políticas publicas em saúde mental voltada especialmente à população
feminina que cumpre medida de segurança uma vez que, o poder se distribuiu
desigualmente na divisão sexual do trabalho, figurando as mulheres como cuidadoras da
família e dos filhos, quando empregadas, recebem salário bem menores que o dos homens
e ficam sobrecarregadas com a dupla jornada de trabalho, fora e dentro do lar. Além disso, a
“autopercepção do estado de saúde indicam que as mulheres tendem a considerar sua
saúde pior em comparação com a percepção que os homens têm de sua própria saúde”
(BARATA,2009, p. 86), ficando mais vulneráveis a serem medicalizadas. Como alertam os
estudiosos da questão, “cuidar do louco sem colidir com suas prerrogativas de cidadão
implica desenvolver novos arranjos institucionais, diferentes formulações teóricas e técnicas,
e conquistar outros parceiros políticos para a dinâmica do cuidado” (DELGADO, 1992, p.
17).
Assim, apoiada nos dados apresentados este trabalho nasce das reflexões sobre a
construção das identidades das mulheres tidas como loucas que cometeram infração penal
com o intuito de contribuir para a gestão de políticas públicas no âmbito da saúde mental
para estas mulheres.
2 UM BREVE RECORTE DA HISTÓRIA DA LOUCURA E DA MEDIDA DE SEGURANÇA
NO BRASIL
Cristina Rauter (2003) coloca que foi a partir da segunda metade do século XIX que
a criminologia e a psiquiatria passaram a ter um diálogo contínuo ao tempo que cada ciência
conservava suas respectivas particularidades e distinções. Diante disso a diferença
essencial entre a criminologia e o discurso psiquiátrico sobre o crime reside no fato de que,
enquanto aquela constitui uma transformação interna do direito penal, a psiquiatria emerge
do exterior deste campo das ciências humanas e passa a disputar com o direito penal a
função de gestora das pessoas que cometem crime, por meio da relação crime e “doença”
mental.
A ligação entre a psiquiatria e o direito penal no Brasil pode ser analisada a partir
dos códigos penais brasileiros na perspectiva da responsabilidade criminal do louco. Rauter
apresenta que o primeiro código penal brasileiro, de 1830 (o Código do Império), foi
embasado nos códigos dos países europeus sob influência francesa “fundava a
responsabilidade penal sobre o livre arbítrio, que, enquanto capacidade racional de
discernimento, estava ausente no louco” (RAUTER, 2003, p. 42). Com isso, retirava a
responsabilidade penal de todos "os loucos de todo gênero salvo se tiverem intervalos
lúcidos e neles cometerem crimes3”, pois a “existência de loucura tornava o crime
inexistente no sentido jurídico, e neste momento a loucura era compreendida como o
contrário da lucidez, como a incapacidade de discernir segundo a razão. Os loucos seriam
desarrazoados e por isso incapazes para o contrato social” (RAUTER, 2003, p. 42).
Ocorre que somente 1841 que as primeiras ações de assistência psiquiátrica
aconteceram no Brasil, com o primeiro hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro (apesar de
não ter sido reconhecido, no primeiro momento, pela sociedade, como um lugar para o envio
de loucos), que conformou o modelo hospiciocentrico/manicomial que se disseminou pelo
país, sendo implantado nas capitais de cada estado. Com isso, o campo da psiquiatria
passou a dispor de um duplo poder de sequestro: um advindo da incapacidade para o
contrato social e outro de fundamento médico.
Em razão da expansão e dos resultados dos estudos da criminologia, Rauter elenca
que o Código Penal de 1940 trouxe duas inovações: o critério da periculosidade para a
aplicação da pena e o dispositivo da medida de segurança. Com isso, a pena no seu sentido
punitivo é sucedida pelo tratamento e readaptação do indivíduo. Apesar dessa substituição
se reconhece que as medidas de segurança é uma nova modalidade de sanção penal, mas
com caráter terapêutico, assim, “o destino do louco criminoso é a medida de segurança, a
ser cumprida em manicômio judiciário, por um período determinado, ao fim do qual será
avaliada a cessação de sua periculosidade e a cura de sua doença, o que poderá não
ocorrer jamais ...” (RAUTER, 2003, p. 72).
Nesta perspectiva tem-se que a medida de segurança é a modalidade de sanção
penal de caráter terapêutico, destinada a tratar inimputáveis e semi-imputáveis, com o intuito
3 Código Criminal de 1830 – Art. 10. Também não se julgarão criminosos:
[...] 2º Os loucos de todo o gênero, salvo se tiverem lúcidos intervallos, e nelles commetterem o crime.
de evitar que pratiquem novas infrações penais (MASSON, 2017). A partir deste
entendimento a periculosidade é compreendida no âmbito jurídico como a probabilidade
efetiva de alguém voltar a cometer crimes ou contravenções penais. O juízo de
probabilidade canalizado para o futuro é realizado com base na natureza, na gravidade do
fato cometido e nas circunstâncias indicadas na legislação.
O Código Penal Brasileiro adotou para a aferição da inimputabilidade do agente o
critério biopsicológico. Tal método exige a averiguação da efetiva existência de um nexo de
causalidade entre o estado mental e o crime praticado. A questão não é apenas diagnosticar
a pessoa com transtorno mental, uma vez que também se faz necessário analisar a
responsabilidade penal do período ou da estrutura psíquica do indivíduo e da natureza do
crime.
Consoante com o sistema escolhido pelo Código Penal, a periculosidade pode ser
presumida ou real. A primeira é a que ocorre quando a lei, expressamente considera
determinado indivíduo perigoso. Aplica-se aos inimputáveis o artigo 26, caput, do Código
Penal.
Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (BRASIL, 1940).
Enquanto que a periculosidade real é a que deve ser justificada no caso concreto,
isto é, a lei não presume sua existência, neste caso é aplicado aos semi-imputáveis o
dispositivo do parágrafo único do artigo 26 do Código Penal.
Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (BRASIL, 1940).
O artigo 96 do Código Penal apresenta duas espécies de medidas de segurança, a
detentiva e a restritiva. Aquela consiste na internação em hospital de custódia e tratamento
psiquiátrico e importa em privação de liberdade do agente. A restritiva é a sujeição em
tratamento ambulatorial, onde o agente permanece livre, mas submetido a tratamento
médico.
Conforme dispõe o referido Código, o critério para escolha da espécie de medida
de segurança a ser aplicada reside na natureza da pena cominada à infração penal. Se o
fato é punido com pena reclusão determinar-se-á a internação. Mas se o fato for punível
com detenção, poderá o juiz optar entre internação e o tratamento ambulatorial a depender
do grau de periculosidade do réu. Ocorre que o critério adotado pelo Código Penal é ponto
de críticas por estabelecer um modelo padrão para medidas de segurança e levar a
internação de diversas pessoas que poderiam ser tratadas de forma mais branda.
Neste sentido a sexta turma do Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento de
que na definição da medida de segurança não se vincula a espécie da medida (detentiva ou
restritiva) a gravidade do delito, mas a periculosidade do agente. Assim sendo, é facultado
ao magistrado a escolha do tratamento mais adequado, ainda que seja imputado ao
inimputável delito punível com reclusão e consequentemente internação em hospital de
custódia com privação de liberdade4. Ocorre que tendo como referência o estágio de
desenvolvimento dos conhecimentos referentes à pessoa com transtorno mental, discute-se
que com o advento da Lei 10.216/2001, o instituto da Medida de Segurança é questionado e
instado a passar por reatualizações.
Nessa perspectiva Débora Diniz afirma que a periculosidade não é peculiar aos
diagnósticos psiquiátricos visto que a diagnose não é decisiva para a realização do ato
infracional, pois “o que há são indivíduos em sofrimento mental que, em algum momento da
vida, por razões que não fomos capazes de identificar pela pesquisa documental em
dossiês, cometem infrações penais” (DINIZ, 2013, p.15).
Desse modo as perspectivas da saúde pública e de direitos humanos não devem
ser excludentes, a igualdade não pode entendida unicamente como princípio formal, deve
conter em seu paradigma a noção de que há diferenças substanciais consoantes às
condições de existência e que para ser consolidada precisa buscar proteger o lado mais
fraco das relações. A partir dessa concepção, Antunes (2003) dispõe que os direitos
fundamentais para pessoas que cumprem Medida de Segurança podem ser suprimidos pelo
fato de que muitas vezes a medida torna-se mais pesada e duradoura que a pena aplicável
ao fato ilícito caso o agente fosse imputável. Isso porque a descrição de presos-pacientes
também é variada e forma subgrupos que se distinguem pelas categorias processual-penal
como indivíduos internados em situação temporária, indivíduos internados para laudo
pericial, ou pela classificação psiquiátrica que embasa a inimputabilidade para os atos
infracionais como indivíduos com epilepsia, esquizofrenia, retardo mental (DINIZ, 2013).
4 STJ - REsp: 1702258 MG 2017/0255347-0, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Publicação:
DJ 02/03/2018.
3 REFORMA PSIQUIÁTRICA NO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS NA SAÚDE MENTAL, SOB RISCOS DE RETROCESSOS
Ser socialmente perigoso não é um atributo das pessoas em sofrimento mental. A
possibilidade de cometer um ato infracional se estabelece como processo sócio-cultural,
sendo que “os fatores educacionais e de equilíbrio social poderiam contribuir para a
diminuição de comportamentos de violência na população em geral, assim como entre
aqueles com transtornos mentais” (VALENÇA, 2008, p. 259). Neste sentido, faz-se
necessário que os direitos expressos na Constituição Federal (BRASIL, 1988) como
educação, saúde e trabalho, sejam garantidos e as instâncias de proteção social estejam
preparadas para atender, não apenas com prescrição medicamentosa, mulheres que
apresentem depressão e psicose. É preciso, sobretudo, que os sistemas de saúde mental
estejam atentos e aptos a dar resposta às suas múltiplas solicitações (VALENÇA, 2008),
envolvendo a geração de renda, as relações conjugais e familiares e sua saúde.
Os mecanismos de condução da loucura, especialmente a loucura infracional, para
Omar Bravo longe de serem resíduos acidentais de “cada modo de produção e forma
histórica [...] servem ao propósito de reproduzir modelos sociais que quanto mais injustos
em termos de distribuição de poder e riqueza mais precisam de seu funcionamento”
(BRAVO, 2007, p.34). Com isso a dupla identificação de “presa e louca” contribui para o
agravamento do sofrimento mental da mulher que cumpre medida de segurança. Aí que
surge a potencialidade nociva desse raciocínio, os sujeitos presos à lógica da periculosidade
“não têm condições de elaborar o fato criminoso cometido, elaboração esta que contribuiria
para um processo clínico” (BRAVO, 2007, p. 40).
Compreende-se que os recursos psíquicos são construídos a partir do acolhimento
da pessoa no mundo e da construção de vínculos que possibilitem seu desenvolvimento e
que lhe tragam segurança. Embora se entenda que o psíquico possui uma base biológica,
ele é estruturado na experiência social de cada um. Sendo assim, a possibilidade de que um
indivíduo possa ser acometido por um transtorno, vai depender não só de suas
características intrínsecas, mas do contexto social em que vive. Por essa razão, as
perspectivas da saúde pública e de direitos humanos devem conter em seu paradigma a
noção de que há diferenças substanciais consoantes às condições de existência e que para
ser consolidada precisa buscar proteger o lado mais fraco das relações.
No entanto, a forma como as medidas de segurança são executadas, muitas vezes
padecidas de irregularidades, são causas centrais de violação de direitos humanos. Diante
disso, propõe-se uma nova forma de encarar a diversidade mental e o processo de
enlouquecimento na reformulação da imagem dos sujeitos excluídos da convivência social e
dos direitos sociais.
A Lei nº 10.216 de 2001, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, estabelece
que é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a
assistência e a promoção de ações de saúde às pessoas com transtornos mentais, com a
devida participação da sociedade e da família. A partir deste marco legal estabelece-se a
conciliação entre políticas públicas e o envolvimento da sociedade civil nas demandas de
saúde mental a partir do processo de desinstitucionalização.
Nesta concepção, a execução da medida de segurança deve ser apoiada nos
fundamentos da reforma psiquiátrica que são: a desinstitucionalização; negação do caráter
terapêutico do internamento como regra; e redirecionamento do modelo assistencial à saúde
mental em serviços substitutivos em meio aberto. Para tanto, faz-se necessário o
fortalecimento e mais investimentos na perspectiva da reestruturação da Rede de Atenção à
Saúde Mental para que haja viabilidade da desinternação e o fortalecimento de toda a rede
de apoio para que o acompanhamento possa ser realizado de forma multidisciplinar, o que
tem sido negado pela intensificação de desinvestimento em gastos sociais e, sobretudo
desmonte da rede de atenção psicossocial criada para manter todo processo iniciado nos
anos 90, no cerne do Sistema Único de Saúde.
4 CONCLUSÃO
A relação entre transtornos mentais e criminalidade é bastante complexa por isso a
necessidade da discussão sobre a efetivação dos direito daqueles que são diferentes ao
modo de ser convencional. A reforma psiquiátrica trouxe relevantes contribuições, na
perspectiva de desconstrução de todo aparato legal e assistencial que segregava a pessoa
com transtorno mental que cometeu ilícito penal, edifício que se vê ameaçado diante da
perspectiva de retrocessos, pois fortalece o modelo manicomial.
Neste artigo, procurou-se estabelecer uma reflexão acerca do gênero e da
construção da identidade envolvidos na medida de segurança, a partir do recorte histórico
em que as instituições foram criadas no âmbito da psiquiatria e do direito penal, e como são
compreendidas no ordenamento jurídico e na realidade. A partir disso, tem-se que as
mulheres acometidas por um transtorno mental e marcadas por um crime encontram-se
numa desvantagem social, uma vez que é fruto de uma formação patriarcal, sexista,
machista e constituídas por discursos, experiências, acontecimentos e por atos
interpretados pela sociedade como loucura.
Assim, ao apresentar às críticas a forma como são executadas as medidas de
segurança, busca-se também resgatar o princípio da dignidade humana e a necessidade de
efetivação dos direitos fundamentais, como instrumentos condutores ao caminho da
igualdade para reconstrução da multiplicidade da identidade da mulher que cometeu ilícito
penal em decorrência de um transtorno mental, o que convoca ações intersetoriais e
interseccionadas sobretudo com gênero, classe e raça etnia.
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