questões processuais do novo cc - mazei

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5 Í 1 DO NOVO CÓDIGO CIVIL ipê SlHliMiilíitt Rodrigo Mazzei Alexandre Freitas Câmara Antônio de Pádua Notariano Júnior Carolina Bonadiman Esteves Cristiano Chaves de Farias Danilo Vieira Vilela Fernando Rister de Sousa Lima Francisco Glauber Pessoa Alves Fredie Didier Jr. Gabriel Seijo Leal de Figueiredo Geovany Cardoso Jeveaux Hélio Rubens Batista Ribeiro Costa llton Carmona de Souza Luciano Rodrigues Machado Marcelo da Rocha Rosado Mariana Ribeiro Santiago Osmar Mendes Paixão Cortes Pedro Paulo de Rezende Porto Filho Raphael Augusto Sofiati de Queiroz Rodrigo Barioni Rodrigo Mazzei Sérgio Shimura Vivien Lys Manole

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Page 1: Questões processuais do novo CC - Mazei

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Í 1

DO NOVO CÓDIGO CIVIL ipê

S l H l i M i i l í i t t

Rodrigo Mazzei

Alexandre Freitas Câmara Antônio de Pádua Notariano Júnior Carolina Bonadiman Esteves Cristiano Chaves de Farias Danilo Vieira Vilela Fernando Rister de Sousa Lima Francisco Glauber Pessoa Alves Fredie Didier Jr. Gabriel Seijo Leal de Figueiredo Geovany Cardoso Jeveaux Hélio Rubens Batista Ribeiro Costa

llton Carmona de Souza Luciano Rodrigues Machado Marcelo da Rocha Rosado Mariana Ribeiro Santiago Osmar Mendes Paixão Cortes Pedro Paulo de Rezende Porto Filho Raphael Augusto Sofiati de Queiroz Rodrigo Barioni Rodrigo Mazzei Sérgio Shimura Vivien Lys

Manole

Page 2: Questões processuais do novo CC - Mazei

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QUESTÕES PROCESSUA IS DO NOVO CÓDIGO CIV IL

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QUESTÕES PROCESSUA IS DO NOVO CÓDIGO CIV IL

R O D R I G O M A Z Z E I

(COORDENADOR )

Page 4: Questões processuais do novo CC - Mazei

Copyright © 2006 Editora Manole Ltda., por meio de contrato de co-edição com o Insti tuto Capi­xaba de Estudos Ltda.

Editoração eletrônica: Know-How Editorial Ltda.

Projeto gráfico: Acqua Estúdio Gráfico

Capa: Genison Elbert Kobe

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL)

Questões processuais do novo código civil/ Rodrigo Mazzei (coordenador) . - Barueri, SP: Minha Editora; Vitória, ES: ICE - Insti tuto Capixaba de Estudos, 2006.

Vários autores. Bibliografia. ISBN 85-98416-03-7 (Minha Editora)

1. Direito civil - Legislação - Brasil 2. Processo civil - Brasil I. Mazzei, Rodrigo.

06-3447 CDU-347(094.4):347.9(81)

Índices para catálogo sistemático:

1. Código civil de 2002 e processo civil :

Brasi l : Direito 347(094.4) : 347.9(81)

Todos os direitos reservados. N e n h u m a parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução p o r xerox.

Editora Manole Ltda. Avenida Ceei, 672 - Tamboré 06460-120 - Barueri - SP - Brasil Tel.: (11) 4 1 9 6 - 6 0 0 0 - F a x : (11) 4196-6021 www.manole .com.br [email protected]

Impresso n o Brasil Printed in Brazil

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Sumário geral

Prefácio IX Apresentação XI

1. As relações entre o direito material e o direito processual 1 Geovany Cardoso Jeveaux

2. Inexistência, nulidade e irregularidade no processo civil e os planos da existência, validade e eficácia dos atos jurídicos no direito civil 23 Osmar Mendes Paixão Cortes

3. A lesão nos contratos e o princípio da proporcionalidade 59 Pedro Paulo de Rezende Porto Filho

4. Abuso do direito no novo Código Civil e o abuso processual 70 Danilo Vieira Vilela

5. Abuso do direito e abuso do processo: existem recursos manifestamente protelatórios? 89 Carolina Bonadiman Esteves

6. A autotutela e o Código Civil de 2002 131 Vivien Lys

7. Aspectos processuais da indenização de dano moral 152 Hélio Rubens Batista Ribeiro Costa

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VI QUESTÕES PROCESSUAIS DO NOVO CÓDIGO CIVIL

8. A liquidação das pretensões indenizatórias no Código Civil de 2002 201 Francisco Glauber Pessoa Alves

9. Prescrição e decadência 231 Sérgio Shimura

10. A prescrição da pretensão e da exceção no novo Código Civil 266 Raphael Augusto Sofiati de Queiroz

11. O pedido genérico na ação de revisão contratual 278 llton Carmona de Souza

12. A denunciação da lide no novo Código Civil 303 Rodrigo Barioni

13. A função social e a legitimação para a causa 318 Luciano Rodrigues Machado

14. Embargos de retenção por benfeitorias e acessões com o novo Código Civil 353 Fernando Rister de Sousa Lima

15. Da (i)legitimidade passiva do detentor para a demanda reivindicatória .... 383 Alexandre Freitas Câmara

16. Da impossibilidade de concomitância entre juízo possessório e juízo petitório 405 Mariana Ribeiro Santiago

17. Alguns aspectos relevantes da usucapião e da expropriação privada 415 Marcelo da Rocha Rosado

18. Exemplo de litisconsorte necessário-simples: desapropriação e o direito de superfície (art. 1.376) 430 Rodrigo Mazzei

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SUMÁRIO GERAL VII

19. A participação das pessoas casadas no processo 454 Fredie Didier Jr.

20. A proclamação da liberdade de não permanecer casado (ou um réquiem para a culpa na dissolução das relações afetivas) 468 Cristiano Chaves de Farias

21. Primeiras impressões sobre o regime da participação final nos aquestos em face da legitimidade do cônjuge do devedor para oposição de embargos 490 Antônio de Pádua Notariano Júnior

22. Reflexos do Código Civil de 2002 nos processos de inventário e partilha .... 511 Gabriel Seijo Leal de Figueiredo

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Prefácio

Honra-nos - ao lado de nossa imensa satisfação - o convite para prefaciar a obra intitulada Questões processuais do novo Código Civil, coordenada por nosso muito estimado amigo e ilustre jurista, Prof. Rodrigo Mazzei.

Rodrigo Mazzei é autor que se ostenta no cenário jurídico brasileiro, tendo publicado, em obras e revistas especializadas em todo o País, diversos trabalhos em direito civil e direito processual civil, assuntos que aborda com idêntico êxito e domínio. É professor de diversas instituições de ensino, em nível de graduação e de pós-graduação. Já era nosso amigo e foi nosso aluno - dos mais brilhantes que tivemos em nossa vida acadêmica — no curso de Mestrado da Pontifícia Uni­versidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

A obra que vem a lume, sob o título Questões processuais do novo Código Civil, evidencia o espírito inquieto de seu coordenador, além de sua sensibilidade e sintonia para com as novas questões que se colocam ao profissional do direito e que exigem atenção e reflexão.

Com esse trabalho, versando as interferências do novo Código Civil nas regras de direito processual civil, busca-se servir de material de apoio à solução dos diversos problemas daí surgidos.

No presente trabalho, há artigos de autores de renome - tais como Sérgio Shimura, Alexandre Freitas Câmara, Fredie Didier Jr., Cristiano Chaves de Farias, Francisco Glauber Pessoa Alves e o próprio coordenador, dentre outros igual­mente notáveis - e de outros jovens estudiosos que, por certo, trilharão o mesmo caminho. Os assuntos abordados nesses trabalhos são interessantíssimos e bas­tante atuais em torno da temática eleita pelo coordenador. É obra útil para advo­gados, juizes e para as academias de direito, porquanto se propõe a elucidar a influência de regras do vigente Código Civil em relação ao direito processual

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X QUESTÕES PROCESSUAIS DO NOVO CÓDIGO CIVIL

Arruda Alvim

civil. São textos a u m tempo profundos, claros, minudentes e que enfrentam problemas cuja solução não é fácil nos primeiros momentos de vigência do Código Civil.

Temos a certeza, pela temática abordada no trabalho por diversos juristas ilustres e lúcidos, que o êxito da edição é certo, ao lado da sua serventia para o nosso meio jurídico.

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Apresentação

Na presente coletânea, buscamos trazer relevantes estudos sobre a aplicação do Código Civil, com especial atenção em questões que possuem desdobramen­tos processuais, fazendo-se, pois, necessário o diálogo entre a codificação civil e a legislação processual, alterando-se postura pretérita quando se buscava uma absoluta separação entre o Direito Processual Civil e o Direito Civil.

Com efeito, no passado, o processo e seus institutos eram estudados apenas como mero procedimento, em simples apêndice do direito material. Predomina­va o raciocínio de que a ação era uma conseqüência do direito, de m o d o que o processo era o procedimento lógico para se obter do Estado-Juiz aquilo que o ordenamento legal outorgava como "direito" ao seu titular. Não se cogitava a autonomia do direito processual, negando-se a existência de uma independência científica. Esse primeiro capítulo, chamado de primeira fase (procedimentalis-mo) , em que se vislumbrou o sincretismo entre o direito processual e o direito privado, perdurou até a segunda metade do século XIX. A partir de análises pro­fundas sobre a actio romana, com acirrada discussão entre Bernardo Windscheid e Teodoro Muther, os estudos do direito processual civil (autonomia), o proces­so passa a ser estudado como ciência própria, diante da natureza diversa entre processo e procedimento, sendo o primeiro visto como a relação jurídica e o segundo como exteriorização daquele. A ciência processual aprofunda-se em reflexões sobre a jurisdição, a ação, a defesa e, mais ainda, desvendando-se os pressupostos para, mais tarde, desencadear a discussão sobre as condições da ação.

Houve grande evolução no estudo do direito processual; u m avanço que propiciou que o sincretismo privatista cedesse à autonomia científica do direito processual. No entanto, em dado momento, após o amadurecimento da nova

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XII QUESTÕES PROCESSUAIS DO NOVO CÓDIGO CIVIL

1 José Roberto dos Santos Bedaque. Direito e processo (influência do direito material sobre o processo). 2.ed. São Paulo, Malheiros, 2001, p.20.

ciência, verificou-se que o processo - apesar de sua autonomia - não pode ser pensado sem sopesar sua finalidade, o que alterou o rumo dos estudiosos para a busca do resultado útil, em postura aguda que acabou por, involuntariamente, estrangular os abstratos caminhos que estavam sendo seguidos na fase autono­mista.

Fala-se, já, em nova fase, em instrumentalidade das formas, em acesso à justiça, fixando-se o mote do direito processual como ciência de resultado, fazen­do com que a expressão "efetividade da tutela jurisdicional" se transforme em bússola para os "estudiosos do processo".

Após a breve resenha, não há dúvida que o processualista de hoje possui visão de que a ciência-alvo de sua dedicação, apesar de possuir autonomia, está voltada a propiciar a efetividade da tutela jurisdicional, sendo, por tal passo, inviável se "pensar" em processo de forma absolutamente desapegada ao direito material.

Note-se que a alteração da leitura da relação entre o direito material e o direito processual não pode se efetuar em "mão única", ou seja, part indo apenas dos processualistas. A concepção civilista que rejeita a importância da relação processual está, na atualidade, absolutamente ultrapassada. De que adiantaria a existência de direito garantido pelo legislador no plano material, se não existirem meios para o seu sadio reclame?

Dessa forma, exame mais detido aos princípios do Código Civil de 2002 (socialidade, eticidade e operabilidade) permite identificar que a "realização do direito" é uma diretriz principiológica do referido diploma material. Isso porque, a nosso sentir, é correta a assertiva de que com o princípio da operabilidade bus­cou-se que as matérias dispostas no Código Civil sejam de fácil aplicação, não causando embaraço na efetivação. Institutos e dispositivos confusos ou duvi­dosos não podem ser prestigiados, até porque, como lembra a boa doutrina, a "possibilidade de a tutela jurisdicional atuar como efetivo fator de pacificação social depende fundamentalmente da perfeita compreensão a respeito de inúmeras situações da vida sobre o que o provimento surtirá efeito. Somente assim poderá o processualista prever tutelas adequadas ao escopo da função jurisdicional" 1 .

Com esta nova concepção, foram simplificados alguns dispositivos de direi­to material, facilitando sua aplicação. Exemplo frisante está na adoção de critério

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APRESENTAÇÃO XIII

mais seguro no Código Civil atual em relação à codificação anterior, quanto à distinção da prescrição e da decadência, seguindo linha positiva que - apesar de sujeita, em termos, às críticas científicas - já vinha sendo adotada no Código de Defesa do Consumidor (arts. 25 a 27), tendo o legislador civil o zelo de estampar rol respectivo no novel (arts. 205 e 206, do Código Civil), o que, sem dúvida, cria ambiente mais seguro ao jurisdicionado. Outro interessante exemplo está no art. 1.417 do Código Civil, quando o legislador fez o divisor das situações em que a promessa de compra e venda será direito real de aquisição, fixando seus pressu­postos. Às claras, com dispositivos mais simples no Código Civil em pontos capi­tais, há uma tendência de justiça mais efetiva, na medida em que são evitadas discussões de natureza acadêmica.

De outra parte, em outra faceta do princípio da operabilidade, não há como se deixar de anotar a inserção, no Código Civil, de dispositivos para a postulação contraposta, permitindo-se que (novos) pedidos sejam formulados pelo réu na sua contestação, notadamente para a manutenção das relações jurídicas mate­riais. Exemplos no sentido podem ser retirados dos arts. 157, parágrafo 2 o , e 479 da nova codificação que, como é curial, não possuem precedentes no diploma de 1916. Dessa forma, dentro da idéia de realização do direito, não parece ter ocor­rido sacrilégio na inclusão, em alguns momentos, de normas com índole hetero-tópica no Código Civil, notadamente no que se refere aos pedidos contrapostos inseridos, pois tal técnica permite a agilização do resultado útil da pendenga, isto é, em determinadas situações selecionadas pelo legislador, foi eliminada a neces­sidade da formalização (física) de dois processos.

Portanto, dentro da nova era que vivemos, tanto no âmbito do direito processual quanto no espectro do direito material, a empreitada levada a cabo (estudos de questões processuais com raízes no Código Civil de 2002), além de marcada pelo desbravamento de temas ainda virgens, é extremamente útil para a sadia aplicação de nosso atual diploma codificado, sendo a presente obra uma contribuição positiva no sentido.

Seguindo tal norte, os estudos selecionados para compor a coletânea partem da concepção de que as regulações materiais do Código Civil de 2002 devem ser aplicadas de forma efetiva, gravitando os textos não apenas quanto à análise de acerto (ou não) das previsões legais, mas também dos caminhos e obstáculos que serão enfrentados na tutela jurídica do direito protegido pelo diploma.

Apresentadas estas palavras prévias, agradecemos a todos pela finalização vencedora do projeto, com especial reverência aos juristas que cederam textos de

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XIV QUESTÕES PROCESSUAIS DO NOVO CÓDIGO CIVIL

Vila Velha/ES, carnaval de 2006 Rodrigo Mazzei

calibre para a composição da obra e aos responsáveis pela veiculação (Editora Manole e Instituto Capixaba de Estudos) por apostarem na idéia. Por derradeiro, mais uma vez, agradecemos a Deus, por tudo que nos propicia dia-a-dia, sendo este livro mais u m presente divino.

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AS R E L A Ç Õ E S E N T R E O D I R E I T O MATER IAL E O D I R E I T O P R O C E S S U A L

GEOVANY CARDOSO JEVEAUX*

Sumário 1. Introdução. 2. O binômio público e privado. 3. O direito material como ponto de partida das normas processuais. 4. Três exemplos salientes. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

O objeto do presente trabalho são as relações existentes entre o direito ma­terial e o direito processual, ambos em sua perspectiva civil.

A preocupação que me levou a tratar do tema nasceu da experiência obtida no ensino do direito processual civil em cursos de graduação e de pós-graduação lato sensu, cursos nos quais os alunos mostravam-se carentes de exemplos que con­cretizassem a abstração teórica tanto do processo quanto das diversas correntes processualistas que se acotovelam para formar uma escola, naquilo que Thomas S. Kuhn chamou de "fase pré-paradigmática da comunidade científica", ou seja, o pe­ríodo de crise que antecede a substituição de um paradigma científico por outro. 1

Essa pugna hegemônica entre correntes do direito processual contribui pa­ra obscurecer a noção de instrumentalidade, ao mesmo tempo em que a torna um pseudo-sinônimo para a desformalização do direito processual e para a sua maior

Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Doutor em Direito Público pela Universidade Gama Filho (UGF/RJ). Juiz do Trabalho - TRT da 170a Região. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato e stricto sensu (mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais) das Faculdades Integradas de Vitória (FDV). KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas, p.73 e ss.

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2 GEOVANY CARDOSO JEVEAUX

proximidade do direito material, no sentido de sua realização prática. Trata-se de uma falsa promessa teorizar sobre o processo como um instrumento do direito material e, portanto, torná-lo inacessível à comunidade acadêmica e mesmo in­compreensível no sentido cognitivo do termo, mediante o emprego de teorias abs­tratas que mais confundem do que explicam.

Em vários sentidos, o ensino do direito processual transforma-se em uma resistente repetição do pensamento dos autores, desprovida de juízo crítico pré­vio acerca da plausibilidade dos próprios institutos processuais, quanto à sua ori­gem e ao seu propósito.

Desde logo, deve-se afirmar que este trabalho pretende apenas realçar as mais salientes relações entre o direito material e o direito processual civil, a fim de colocá-las à prova por si mesmas e de demonstrar como a simplicidade, antes de qualquer pretensão de falsa intelectualidade, pode dar respostas muito sen­satas e racionais aos institutos do direito processual civil por meio do direito material.

2. 0 BINÔMIO PÚBLICO E PRIVADO

O ponto de partida para o propósito anteriormente declarado é a distinção, ou melhor, a oposição entre direito público e direito privado.

O binômio em exame torna a aproximação entre o direito material civil e o direito processual civil inicialmente problemática, porque, de acordo com a dou­trina positivista clássica, público e privado são objetos que convivem entre si, to­davia, como o óleo e a água, não se misturam. Por aí já percebe-se que o publicis-mo do direito processual não faz concessões fáceis à injunção do direito material, quando o objetivo desse último é conferir sentido ao primeiro. Afinal, foram anos de afirmação do caráter abstrato do direito de agir em relação ao direito mate­rial, e de forte defesa da autonomia da disciplina processual em relação às disci­plinas privatistas (direitos comercial, civil e trabalhista).

Entretanto, u m importante dado histórico deve ser realçado: o direito pú­blico nasce do direito privado. Sendo assim, conforme André Hauriou, a convi­vência entre eles é possível se levadas em conta as suas peculiaridades.

Enquanto as normas de direito privado são marcadas pela existência de u m a só categoria de sujeitos, com igualdade de direitos e idêntica subordinação à le­galidade, as normas de direito público, por sua vez, notabilizam-se pela existên­cia de categorias distintas de sujeitos (administrados e administradores) e de di­reitos diversos, rotulados pela superioridade da Administração. Tais direitos são

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AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO MATERIAL E O DIREITO PROCESSUAL 3

2 HAURIOU, André. A utilização em direito administrativo das regras e princípios do direito privado. Revista de Direito Administrativo, v.I, fase. 2, 1945, p.466-8.

3 Ibidem, p.469. 4 O Estado-nação é uma "representação política que implica o fato de que as popula­

ções que constituem uma sociedade no mesmo território reconhecem-se como per­tencentes essencialmente a um poder soberano que emana delas e que as expressa". CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; PISIER-KOUCHNER, Evelyne. História das idéias políticas, p.85. Ele surge com a Restauração Inglesa de 1690 e afirma-se com as Revoluções Americana de 1776 e Francesa de 1789.

decorrentes do conceito de autoridade pública, de sua dominação intrínseca e de sua ação própria, além de estarem afeitos intimamente a uma finalidade públi­ca. 2 De tal modo que, no campo do direito administrativo, as regras de direito privado teriam função supletiva às normas de direito público. 3

Tais características distintivas entre público e privado surgiram em momen­to histórico determinado: o período pós-revolucionário liberal do final do sécu­lo XVIII. Até então, todo espaço político era ocupado pelo absolutismo e por sua estrutura de privilégios. À medida que o poder se despersonaliza, saindo da pes­soa física do rei para a pessoa fictícia da "nação", 4 surgem com maior nitidez dois espaços de interesses: o público, concentrado na "nação" e figurado pela repre­sentação política e pelo conseqüente princípio da maioria; e o privado, expresso pela área econômica em que o estado civil não deveria, por regra, interferir, por não tratar-se de agente da economia ou da riqueza, mas mero administrador da coisa pública.

No liberalismo clássico, essas esferas correspondiam a um amálgama contra­ditório de idéias, por conjugar duas noções antagônicas a respeito do indivíduo e de seus direitos: a da "vontade geral" rousseauniana, que pressupunha a renúncia de todos os direitos, inclusive o direito à vida, para o ingresso no estado de socie­dade; e a da "proteção da propriedade", de Locke, que a elege como produto do tra­balho humano e, portanto, como algo que está no homem (in re ipsa) individual, precedente ao estado civil. Essa contradição não é nova e levou Benjamin Constant a denunciá-la, ao dizer que a liberdade individual, isto é, a exploração dos interes­ses privados sem a intervenção estatal, ocupava demasiadamente o homem, privan­do-o da participação política, o que teria como conseqüências a renúncia desse di­reito político e uma nova cisão entre os titulares de direitos e os titulares do poder:

0 perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a participação no poder social, os homens não se preocupassem com os

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4 GEOVANY CARDOSO JEVEAUX

direitos e garantias individuais [...] 0 perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso direito de participar do poder político.5

Também o neoliberalismo, mais recentemente, acusou a mesma contradi­ção, embora ele mesmo seja avesso a direitos imutáveis que emperrem uma or­dem econômica verdadeiramente livre (catalaxia). 6

Na passagem do estado liberal para o estado social, a dicotomia público/pri­vado ganha novo sentido, servindo o direito administrativo de b o m exemplo de sua evolução.

O direito administrativo tem seu nascimento marcado no Estado-Nação do início do século XX, 7 entendido como: a) criação de uma sociedade de pessoas, co­nhecida por população; b) localizada e identificada em um território específico; c) na qual o poder soberano nasce desse ato voluntário de criação; d) e a vontade é regida pela representação política. 8 Dessa origem decorre o seu núcleo essen­cial, fundado simultaneamente nos poderes de perseguir os objetivos públicos e nas garantias processuais aos indivíduos contra o uso arbitrário e irracional des­ses poderes, de acordo com Mario P. Chiti. 9

O surgimento do direito administrativo com tais características coincide com a passagem do liberalismo para o Estado social, quando o Estado deixou a posi­ção passiva diante das relações econômicas e passou a nelas atuar e a intervir, dian­te do risco de mudanças sociais abruptas, depois dos exemplos das revoluções so­viética e mexicana de 1917. Para atender cada vez mais às demandas sociais, e mormente para se legitimar, tal Estado de providência teve de aumentar a sua es­t rutura e, assim o fazendo, promoveu o crescimento dos atos de gestão e de im­pério e, com eles, também do direito administrativo, como entidade autônoma dos demais ramos do direito.

Com a expansão desmedida das fronteiras da economia para além de qual­quer possibilidade de controle efetivo por parte do Estado, e diante da impossi-

5 CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista Filosofia Política, n.2,1985, p.23.

6 HAYEK, Friedrich A. Von. Os princípios de uma ordem social liberal. Ideologias polí­ticas, p.47-51.

7 CHITI, Mario P. Monismo o dualismo. In: Diritto Amministrativo: Vero o Falso Di-lemma? Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, n.2, 2000, p.301-20.

8 A respeito, consulte-se CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier e PISIER-KOUCHNER, Evelyne. Op. cit, p.85.

9 CHITI, Mario P. Op. cit., p.314.

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AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO MATERIAL E O DIREITO PROCESSUAL 5

bilidade material de atender a todas as demandas, o Estado social entrou em crise de governabilidade, por conta da relação desproporcional entre as demandas (in-put) e a sua capacidade de resposta (output).10 Como resultado, consoante Mario P. Chiti, o Estado limita a sua intervenção econômica e o direito administrativo perde a sua hegemonia, particularmente por causa: a) da diminuição do Estado e dos poderes públicos; b) da retrocessão do ato administrativo, como instrumen­to e centro das ações públicas; c) do conseqüente aumento dos atos bilaterais com particulares, na entrega de funções públicas; d) da prestação de serviços públicos por particulares; e) das privatizações. 1 1

No entanto, o Estado perde também a sua centralidade com as experiências supranacionais, como a União Européia. Nesse contexto, o direito administrati­vo assume uma natureza mista, na qual não é mais possível diferenciar os limi­tes entre o direito público e o direito privado, naquilo que Chiti chama de direi­to mestiço ou híbrido. Isso é explicado, por exemplo, pelo conceito de bem cultural que na common law pertence ao direito geral, enquanto na Itália e na Espanha pertence ao direito administrativo. Quando tutelado pelo ordenamen­to comunitário, o regime da common law passa a ser influenciado por normas de direito público, como a desapropriação (para aqueles que não protegem os bens culturais) e os incentivos fiscais (para aqueles que o fazem). No caminho opos­to, o crescimento dos atos bilaterais com os particulares faz ressurgir princípios do direito privado, de modo que "in breve, il pluralismo giuridico è causa dello sfumare di molte tradizionali distinzioni tra le discipline giuridiche e delia recipro­ca influenza tra i vari diritti".12

Premido pela crise de governabilidade e pela necessidade de adequação a um novo mercado sem fronteiras, o Estado social promove então reformas cons­titucionais, retirando-se do meio econômico privado interno e atirando-se no meio econômico externo, que não é nem público nem privado. Ao fazê-lo, retira também algumas prestações positivas de seus cidadãos ou lhes impõe ônus antes inexistentes, sem lhes conferir, tão unilateralmente como no primeiro caso, qual-

1 0 Cf. BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade. Para uma teoria geral da política, p.36, 60 e 126.

1 1 CHITI, Mario P., Op. cit., p.303. 1 2 Ibidem, p.306 ("em breve, o pluralismo jurídico será a causa do evaporar de muitas

distinções tradicionais entre as disciplinas jurídicas e da recíproca influência entre os vários direitos"); para as demais idéias, p.304-8 (perda de centralidade do Estado), p.305 (direito mestiço), p.307 (hibridismo) e p.308 (sem preponderância do direito público ou privado).

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6 GEOVANY CARDOSO JEVEAUX

quer contrapartida na sua inserção nos mercados comuns. O resultado disso não chega a uma retroação legislativa, mas, principalmente, em uma retirada de di­reitos antes adquiridos seja, mais uma vez, em nome da prevalência de uma su­posta vontade coletiva ou pública, seja da prevalência dos poderes do Estado.

O grande problema daquele bifrontismo, portanto, além da contradição que ele carrega, é a alternância exagerada entre os pólos. Assim, se o plano priva­do/individual foi exacerbado no liberalismo, o plano público/coletivo foi levado ao outro extremo no Estado social. Estando o Estado social em crise de governa­bilidade, por desequilíbrio entre as demandas sociais (inpuf) e a capacidade do governo em responder a elas (output),1* pergunta-se agora acerca da sobrevida daqueles binômios.

Boaventura de Souza Santos, manifestando-se sobre essas dicotomias da modern idade , diz que elas apresentam duas características, as quais as condu­ziram para o declínio: a polarização entre u m ou outro extremo, de fases em fases históricas, e a falta de mediação entre esses extremos, porque "o déficit da capacidade de mediação exacerba a polarização das dicotomias e, inversa­mente , esta úl t ima agrava o primeiro". Como resultado, os pólos passam a se aproximar,

[...] a tal ponto que cada um dos pólos tende a transformar-se no duplo do pólo a que se opõe. Nesta medida, as dicotomias que subjazem ao projeto da modernida­de tendem a colapsar e os movimentos de oscilação entre os seus pólos são mais aparentes que reais.

C o m o exemplo, Boaventura menciona as contradições do b inômio Esta­do e Sociedade, que demons t ram essa aproximação, a saber: a) o Estado é visto como inimigo da liberdade e, ao mesmo tempo, como agente de seu exercício; b) a separação entre economia e política (princípio do laissez-faire) não é rígida, porque: b . l ) o Estado deve zelar pelo desenvolvimento econômi­co e pela expansão do mercado; b.2) dependendo da ótica, o interesse envol­vido pode não ser estri tamente privado ou público, como no caso das leis das SAs inglesas do período de 1825 a 1865, "consideradas por uns como u m b o m exemplo do laissez-faire, por eliminar as restrições à mobil idade do capital, e por outros, como u m a nítida violação desse mesmo laissez-faire, por conceder às sociedades comerciais privilégios que eram negados aos empresários indi­viduais"; c) mesmo no per íodo da economia liberal, "o Estado teve que inter-

Cf. BOBBIO, Norberto. Op. cit, p.36, 60 e 126.

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AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO MATERIAL E O DIREITO PROCESSUAL 7

vir para não intervir", porque as práticas políticas afetam necessariamente a capacidade do Estado de mante r o seu desenvolvimento econômico. 1 4

Logo se vê, com essa exposição histórica, que a distinção entre público e pri­vado é mais aparente do que real, e que, portanto, não pode servir de escudo con­tra a aproximação do direito material privado com o direito processual público, tanto mais pela instrumentalidade que deve uni-los.

3. 0 DIREITO MATERIAL COMO PONTO DE PARTIDA DAS NORMAS PROCESSUAIS

O direito material funciona como ponto de partida para o direito proces­sual, no sentido de não se pensar o processo em direção ao direito material, mas, bem ao contrário, pensar-se do direito material para o direito processual.

Um exemplo simples do que foi dito são os procedimentos especiais, que são especiais precisamente para se amoldar ao direito material de caráter excepcio­nal, cuja persecução eles regulam. 1 5

Outros exemplos são os princípios dispositivo e inquisitório do processo ci­vil. Pensados do processo para o direito material, torna-se necessário que se ex­pliquem conceitos mais ligados aos poderes do juiz do que ao direito material perseguido em juízo. Explicados em sentido contrário, dão sentido à razão dos poderes do juiz na condução do processo e da prática de atos processuais de sua iniciativa. Nos casos em que o direito material posto em juízo é disponível, vale dizer que o seu titular tem o poder de dispor dele 1 6 como melhor lhe aprouver. Via de regra aplica-se o princípio dispositivo, que impossibilita o juiz a tomar inicia-

1 4 SANTOS, Boaventura de Souza. O estado e o direito na transição pós-moderna: para um novo senso comum. Revista Humanidades, v.7, n.3, 1991, p.268-82; p.269, 271 e 272 (para os trechos citados, respectivamente).

1 5 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, v.III, p.4-5; GRECCO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro, v.31, p.200; SANTOS, Ernani Fidelis dos. Manual de direito processual civil, p.2.

1 6 O poder de disposição de um direito é um dos poderes típicos do direito de proprie­dade, ao lado dos poderes de uso, gozo e fruição. A disposição ocorre por atos de alie­nação, que é gênero das seguintes espécies: compra e venda, locação, comodato, mútuo, abandono, oneração, etc. Os direitos privados são de regra disponíveis, enquanto os direitos públicos são de regra indisponíveis, variando a intensidade da indisponibili-dade. Assim, a indisponibilidade ora está na coisa objeto do direito (bem doado com cláusula de indisponibilidade), ora na pessoa de seu titular (bem por natureza dispo­nível herdado por incapaz) e ora em ambos (bem público).

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tiva de atos processuais que a lei atribui às partes a fim de gerar a preclusão e, com ela, o curso forçado do procedimento. Tudo porque, nesse caso, entende-se que os atos processuais que as partes devem praticar também lhes são disponíveis. Quan­do, porém, o direito material posto em juízo não permite ao seu titular a livre dis­posição, aplica-se, habitualmente, o princípio inquisitório, sob o entendimento implícito de que, nesse caso, não há disponibilidade também para os atos proces­suais, de modo que o silêncio da parte não impede o conhecimento da matéria ou a prática do ato ex officio pelo juízo a fim de evitar a preclusão processual e, com ela, o perecimento do direito material instrumentalizado pelo processo.

Cite-se, ainda, a título introdutório, o princípio da instrumentalidade de formas, o qual se vale de conceito básico da teoria geral dos contratos, que é o da liberdade de formas. Princípio este que também vigora no processo civil mas para os atos processuais, de modo que o atingimento do fim por ele visado é mais importante do que a forma adotada para alcançá-lo (art. 158 do CPC), e ainda, quando a lei exigir uma forma específica, o ato será válido se igualmente atingir o fim pretendido pela lei (art. 244 do mesmo código).

Outra aproximação sensitiva é o critério do maior interesse para se saber da natureza do provimento jurisdicional pretendido, se meramente declaratório, constitutivo ou condenatório - que curiosamente é o mesmo critério para se saber da verdadeira natureza das prestações na teoria geral das obrigações —, entre as de dar, de fazer ou de não-fazer. Isso ocorre porque, "cuando se trata de determinar los distintos tipos de sentencia en consiâeración al âerecho sustância! o material que ellas ponen en vigor, entonces la clasificación se divide en otros tipos: sentenciais declarati-vas, de condena, constitutivas y cautelares", nas palavras de Eduardo J. Couture. 1 7

Tais circunstâncias põem à mostra as peculiares relações entre o direito ma­terial e o direito processual, com o intuito de aproximá-los de baixo para cima.

4. TRÊS EXEMPLOS SALIENTES

Neste item passo a descrever, com maior minúcia, três exemplos paradigmá­ticos que chamam a atenção para a proximidade entre o direito material e o di­reito processual e que exigem conhecimento do primeiro para se chegar ao real sentido do segundo.

COUTURE, Eduardo J. Fundamentos dei derecho procesal civil, p.314.

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AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO MATERIAL E O DIREITO PROCESSUAL 9

4.1 Direitos adquiridos processuais

Considerando o campo material, no qual surgem as maiores questões em torno do direito adquirido, principalmente em face de sua conotação patr imo­nial, verifica-se a sua eventual incidência no campo do processo sempre relega­da a segundo plano. Talvez por isso não haja monografias sobre o tema, limitan­do-se a doutrina, às vezes, a falar sobre a intertemporalidade das leis processuais e, outras vezes, a negar a existência de um direito adquirido dessa índole, como fez Wellington Moreira Pimentel acerca do procedimento, parecendo estender tal concepção a todas as demais normas de processo, diante de sua aplicação imediata. 1 8

Fora da doutr ina processual, todavia, Roubier já havia ressaltado as situa­ções jurídicas materiais protegidas por uma ação ou uma exceção, dando conta, assim, de uma projeção necessária entre a estabilidade do direito e os instrumen­tos de defesa a seu respeito. 1 9 Alheio ao fato de essa ótica ter coloração nitida­mente imanentista, já abandonada pela teoria processual, cuida-se de noção de certa forma arraigada na doutrina geral, dizendo Othon Sidou, por exemplo, que

A ação judicial persecutória de uma situação jurídica concreta (direito já adquirido) constitui, por extensão, direito adquirido - o direito de acionar, para depois advertir "[...] que o que é imune aos efeitos da lei nova é o direito à ação já proposta, não os atos processuais sobre os quais ela se desdobra e podem ser modificados ao arbítrio do legislador, como regras de direito público que são".20

A advertência citada não deixa de situar a colocação na linha da teoria ima­nentista, ao associar a aquisição do direito à ação concomitante com a defesa do direito material, porque aí se tem presente a idéia de actio nata, ou da data de nascimento do direito de agir, vis-à-vis ao direito material ofendido, quando o que ocorre, na verdade, é o surgimento da causa de pedir próxima, antes mesmo do exercício do direito de agir. De todo modo, há na doutrina uma expressa admissão de direitos adquiridos propriamente processuais, condicionados, con-

1 8 PIMENTEL, Wellington Moreira. A aplicação do novo Código de Processo Civil às cau­sas pendentes, p.l 1-2: "não há que se falar em retroatividade da lei processual, a menos que, por equívoco, se suponha a existência de direito adquirido a uma determinada forma procedimental".

1 9 Apud BATALHA, Campos. Direito intertemporal, p. 119. 2 0 SIDOU, J.M. Othon. O direito legal: história, interpretação, retroatividade e elaboração

das leis, p.232-3.

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IO GEOVANY CARDOSO JEVEAUX

tudo, por certo grau de indisponibilidade peculiar das normas de processo, asse­verando Galeno Lacerda que

[...] podemos e devemos considerar a existência de direitos adquiridos processuais, oriundos dos próprios atos ou fatos jurídicos processuais, que emergem, em cada processo, do dinamismo desse relacionamento jurídico complexo. Aliás, o novo Códi­go é expresso, no art. 158, no reconhecimento desses direitos. Existem direitos adqui­ridos à defesa, à prova, ao recurso, como existem direitos adquiridos ao estado, ã posse, ao domínio. Acontece que os direitos subjetivos processuais se configuram no âmbito do direito público e, por isso, sofrem o condicionamento resultante do grau de indisponibilidade dos valores sobre os quais incidem.21

Por conta da indisponibilidade, Lacerda, desde logo, faz as seguintes exclu-sões ao direito adquirido: 1) competência absoluta e organização judiciária, o mesmo não ocorrendo com a competência relativa, salvo se for modificada para a natureza absoluta; 2) convalidação de ações movidas por sociedades sem per­sonalidade jurídica no tempo do CPC/1939, quando a sua presença ativa era vedada pela nova regra do art. 12, VII, que revogou o art. 20, parágrafo 21, do CCB; 3) conversão do rito ordinário para o sumaríssimo; 4) prazo de prescrição, quando diminuído, para o credor; 5) preferência cronológica da penhora reali­zada anteriormente à regra do art. 612 do CPC/1973. 2 2

Quanto aos direitos adquiridos processuais propriamente ditos, sempre na passagem do CPC/1939 para o CPC/1973, Lacerda os enumera do seguinte modo: 1) direito à audiência de instrução, se já saneado o processo, contra o jul­gamento antecipado da lide ( também nas antigas ações executivas, com ou sem revelia); 2) direito à não-contagem de prazo de abandono recíproco do proces­so, pela nova regra do art. 267, II, do CPC/1973; 3) direito à ação, mesmo quan­do suprimida a ação especial (como a imissão na posse), que passa então a ser processada pelo procedimento comum; 4) direito à remição, pessoalmente pelo devedor, de bem penhorado, não arrematado ou adjudicado; 5) direito ao peri­to nomeado pelas partes, se já prestado o compromisso; 6) direito de novo termo inicial, para o devedor, quando diminuído o prazo prescricional; 7) direi­to à não rescindibilidade das sentenças não sujeitas a tal via no regime de 1939; 8) direito à condição de litisconsorte do assistente, se já admitido nessa condi­ção antes do CPC/1973; 9) direito de o nomeante à autoria contar com o

LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes, p.13. Ibidem, p.17-8 (item 1); p.33 (item 2); p.43 (item 3); p.54 (item 4); p.61 (item 5).

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AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO MATERIAL E O DIREITO PROCESSUAL 11

nomeado como seu litisconsorte, apesar de sua recusa; 10) direito ao recurso, na data da decisão, considerado como um "verdadeiro direito adquirido proces­sual". 2 3

Tais enumerações evidentemente não são taxativas, havendo, inclusive, regras que fogem da questão dos direitos adquiridos para se colocarem no plano da in-tertemporalidade. Assim, aplica-se, por exemplo, a lei da data da ação para as con­dições da ação e para a capacidade processual; quanto aos prazos, aplica-se a lei nova quando forem dilatados e, quando diminuídos, conta-se o saldo do prazo velho, se inferior ao prazo novo, ou o prazo novo, se o saldo do prazo velho for su­perior. A primeira regra sobre os prazos, contudo, não se aplica aos recursos, nos quais os prazos têm natureza peremptória e de interesse público, nada havendo, aqui, de acordo com Lacerda, de direito adquirido. 2 4

Com base nessas noções, alguns direitos adquiridos processuais podem ser destacados já no regime do CPC de 1973 concernente à reforma de 1994, a saber: 1) direito à legitimidade ad causam para as ações possessórias então movidas por ambos os cônjuges, ou em face deles (parágrafo 21 do art. 10); 2) direito à liqui­dação dos danos processuais decorrentes de litigância de má-fé já iniciados, para além da arbitragem judicial do novo texto do parágrafo 21 do art. 18; 3) direito ao recebimento imediato dos honorários periciais, tão logo protocolizado o laudo, ainda que o depósito tenha sido realizado antes do acréscimo do parágra­fo único ao art. 33; 4) direito à legitimidade ativa multitudinária, se antes não rejeitada pelo juízo no despacho da inicial (art. 46); 5) direito à audiência de ins­trução e julgamento, se já proferido despacho saneador contra a marcação de audiência conciliatória prévia (art. 331), salvo consenso entre as partes; 6) direi­to à invalidade dos atos praticados entre as 18h e 20h, antes da ampliação do art. 172, se ocorrer agressão ao direito constitucional à intimidade da vida privada 2 5

e não for o caso de instrumentalidade de formas (arts. 154 e 244); 7) direito à interrupção prescricional na data do despacho ordenatório da citação já proferi­do, sem retroação à data da distribuição (219, parágrafo 11); 8) direito ao com­plemento do ato cientificatório por duas testemunhas, quando realizado antes do novo texto do inc. III do art. 239; 9) direito à citação do réu para contra-arra-

Ibidem, p.28-40 (item 1); p.30 (item 2); p.42 (item 3); p.46 (item 4); p.51 (item 5); p.54 (item 6); p.56 (item 7); p.57 (item 8); p.58 (item 9); p.68 e 72 (item 10). Ibidem, p.33 (condições e capacidade); p.91-100 (prazos); p.85 e 93-4 (prazos nos recursos). Cf. G1ANNOTTI, Edoardo. A tutela constitucional da intimidade.

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zoar a apelação de sentença terminativa por indeferimento sumário da inicial, quando já interposta antes do novo texto do art. 296, diante dos efeitos gerados pela citação em favor do credor, conforme o art. 219; 10) direito à imediata ver­são datilográfica dos depoimentos testemunhais, se já prestados anteriormente (art. 417); 11) direito à tempestividade do recurso já despachado e recebido pelo juiz, antes da exigência de protocolo do art. 506; 12) direito ao preparo no prazo do recurso que o exige, ainda que já interposto, quando o início do prazo ocor­reu antes do novo texto do art. 511; 13) direito à contagem do preparo da apela­ção pela contadoria, com o conseqüente depósito posterior à interposição, com prazo iniciado antes do novo texto do art. 518; 14) direito ao duplo efeito da ape­lação de sentença terminativa liminar de embargos à execução, quando proferi­da antes do texto do art. 520; 15) direito aos embargos de declaração por dúvida, com prazo aberto antes do texto do art. 535,1 , que a eliminou como causa do recurso; 16) direito à multa máxima de 1% dos embargos declaratórios protela-tórios já interpostos, exceto perante os tribunais, antes da unificação e do aumento da multa pelo novo texto do parágrafo único do art. 538; 2 S 17) direito à extinção conjunta da ação de execução e dos embargos à execução por desis­tência do credor ao direito de ação, manifestada antes da nova redação do art. 569, t ratando os embargos tanto de questões processuais quanto do mérito cons­titutivo do título; 18) direito à execução de sentença homologatória de transação ou conciliação acerca de questão ainda não posta em juízo, entre a sua inclusão pela Lei n. 8.953/1994 e a sua eliminação pela Lei n. 9.307/1996 (art. 584, III); 19) direito ao levantamento da coisa depositada pelo credor, na execução para entre­ga de coisa certa, quando os embargos já opostos não gozarem ainda do efeito suspensivo genérico do art. 739 (art. 623); 20) direito à validade do edital de arre-matação já publicado sem a advertência de ônus, recurso ou causa pendente a respeito do bem (art. 686, V).

Ainda na linha desses princípios, outras tantas posições de vantagem podem ser imaginadas, sob proteção de qualquer alteração legislativa ou judiciária de ca­ráter prejudicial, por exemplo, o direito adquirido processual: 1) aos efeitos regu-lares do ato contestatório, se a incapacidade da parte passiva for verificada após a sua prática e permanecer silente à ordem de sanação do art. 13, II; 2) aos ho-

Em sede de recursos, sustenta Galeno Lacerda, que a lei aplicável é a do dia da decisão impugnável, ainda que não publicada. Op. cit, p.68, 71-72 e 84. Critica ainda a posi­ção do STF, quando da eliminação constitucional do RO em MS e dos infringentes na­quela instância, ao deixar de conhecer os recursos já pendentes (p. 69).

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AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO MATERIAL E O DIREITO PROCESSUAL 13

O art. 47 do CPC, acerca da condição de validade da sentença proferida em face dos litisconsortes necessários, só é rígido para o litisconsórcio necessário unitário, mas não para o comum, de modo que a ausência de um dos litisconsortes necessários comuns não nulifica a sentença, que poderá ser complementada por outra, em outra lide. (MOREIRA, José Carlos Barbosa, Litisconsórcio unitário, p.233)

norários advocatícios de sucumbência e aos honorários dos demais auxiliares, ain­da que não declarados expressamente na sentença; 3) aos honorários advocatí­cios de sucumbência, se a não-argüição dos fatos impeditivos, modificativos ou extintivos decorrer de justa causa, tal como configurada no art. 183 (art. 22); 4) ao não-pagamento de honorários advocatícios de sucumbência, quando da desis­tência do direito de agir manifestada antes da citação (art. 267, VIII, parágrafo 41); 5) à devolução do prazo, quando retirados os autos de cartório por uma das partes, na ocasião em que o curso era comum (art. 40, parágrafo 21); 6) à valida­de da sentença proferida em face de alguns litisconsortes necessários, embora igno­rados outros, se no resultado o julgamento era comum, e não-unitário, desde que movida a ação complementar em face dos ausentes (art. 47); 2 7 7) à citação postal pessoal, contra o princípio da aparência (art. 223, parágrafo único), observada a instrumentalidade; 8) ao direito de defesa decorrente de fatos impeditivos, modi­ficativos ou extintivos, quando o titular for a fazenda pública, de modo a tais fatos poderem e deverem ser conhecidos de ofício pelo juízo, ainda quando não argüídos, por força da norma do art. 67 do CCB; 9) à validade dos atos, ainda que praticados fora da forma expressa, quando existente, se atingidos os seus fins, sem prejuízo para a parte contrária (arts. 154 e 244); 10) à suspensão do processo decorrente de convenção das partes (art. 265, II).

As listas acima são igualmente exemplificativas, e desconsideram as altera­ções feitas para melhorar a interpretação dos dispositivos anteriores, a posição de ambas as partes ou a prestação jurisdicional, fixando-se apenas nos casos em que uma posição de vantagem processual anteriormente adquirida possa ficar à mer­cê da livre disposição legislativa ou judicial. Isso confirma que regras individua­listas de processo, como as do CPC de 1973, concebido para lides individuais, so­bre objetos atribuíveis a titulares determinados, ainda que de natureza pública, ficam isentas de alterações supressivas ou modificativas para pior. Trata-se de uma espécie de limite à regra absoluta do interesse público, como extensão cor­relata da proteção dos direitos individuais ao poder de reforma constitucional do art. 60, parágrafo 4, IV, da CF.

Ao contrário do exposto, quando o processo é pensado em termos coletivos ou difusos, a tendência é a de sobrepesar os interesses tutelados em detrimento de

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posições individuais, por exemplo, a desistência do direito de agir ou o abandono do processo na ação popular, quando o seu exercício não é aceito sob o exclusivo arbítrio omissivo do autor, determinando-se ao Ministério Público e facultando-se a outros cidadãos que assumam a posição ativa (art. 91 da Lei n. 4.717/1965).

4.2 Prescrição, decadência, perempção e preclusão

No tempo da teoria imanentista, a prescrição era tida como a perda do di­reito de agir, conforme a antiga dicção do art. 75 do CCB revogado: "A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura".

Isso ocorria porque o direito de agir era apenas um dos elementos do pró­prio direito material, ou seja, era imanente a ele, de modo que, esgotado o prazo de exercício desse direito, morria com ele o poder de seu titular de exigir do devedor a prestação devida. Logo se vê que tal conceito tem intrínseca ligação com a teoria das obrigações, mais especificamente com o objeto das prestações de dar, fazer ou não-fazer, que é o poder de o credor exigir do devedor a prestação devida.

Entretanto, com a prevalência da teoria abstrata do direito de agir, a prescri­ção não pôde mais ser usada com tal natureza, porque esse direito era usado mes­mo quando o réu a argüia e com ela gerava a extinção do processo, quanto mais então quando o réu não a argüia, ocasião em que era exercido não apenas o direi­to de agir, mas também o direito material, embora prescrito.

Foi necessária a distinção da natureza do direito material, entre potestativos e não potestativos, para se saber dos casos de prescrição e dos casos de decadên­cia, e, com isso, separar tais institutos de direito material do direito processual, estes assumindo apenas efeito processual indireto, extintivo do feito.

Desse modo , quando um determinado direito pode ser exercido por seu ti­tular sem a concorrência de qualquer outra pessoa, de qualquer outra manifesta­ção de vontade ou de qualquer outra contraprestação, fala-se que ele é potestativo, originário de potestas, ou seja, o poder que a pessoa tem de levar a efeito a reali­zação de seu interesse. No entanto, quando o exercício de um direito depende de outrem para manifestar a sua vontade ou cumprir a sua contraprestação, diz-se haver aí u m direito não potestativo.

A realização material do primeiro encontra-se sob exclusiva vontade de seu titular, enquanto a do segundo ocorre somente com o concurso de outra pessoa, normalmente o devedor.

Decorrido o prazo de exercício do direito, assinalado em lei, o direito potes­tativo se extingue, mas o direito não potestativo permanece íntegro. Isso aconte-

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AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO MATERIAL E O DIREITO PROCESSUAL 15

ce porque, nesse caso, o devedor passa a reter o direito de se defender contra a investida do credor, realizada então fora do prazo. Esse direito conferido ao deve­dor com o vencimento do prazo de exercício é, em si, um direito potestativo, por­que ele o exercerá se e quando lhe aprouver.

Desse modo se explica que, tratando-se de direito patrimonial, o fato de o juiz não poder conhecer de ofício da prescrição (art. 219, parágrafo 51, do CPC -ao menos até a eficácia da Lei n. 11.280, publicada em 17/2/2006 e com vacatio legis de 90 dias, que alterou tal dispositivo e passou a admitir o conhecimento da prescrição de ofício pelo juiz), porque, sendo direito subjetivo do obrigado, e inde­pendente da prestação de outrem (potestativo), ele o exercerá (resistência à pre­tensão) se quiser. Já a decadência, por se referir a direitos cujo exercício dependia tão-somente do esforço do credor, decreta a morte do próprio direito material, podendo ser conhecida de ofício pelo juiz (art. 295, IV, do CPC). A prescrição ape­nas aufere ao devedor um direito reverso, de resistência legítima a futura preten­são deduzida, sem ferir o direito de ação ou mesmo o direito material, em caso de não ser argüida como matéria de defesa, no momento processual adequado (leia-se: contestação - art. 300 do CPC).

A perda do direito de ação ocorre no caso de perempção, ou seja, na hipó­tese de abandono (art. 267, III, parágrafo 11 e 21 , CPC o art. 268, parágrafo único) , 2 8 enquanto a preclusão é a simples perda (endoprocessual) do direito de se praticar um ato do processo. Estes últimos, sim, são institutos de direito pro­cessual.

4.3 Teoria das obrigações no processo

As obrigações são vínculos jurídicos reconhecidos pela lei ou pelo contrato que se estabelecem entre um sujeito ativo/credor e um sujeito passivo/devedor, tendo por objeto prestações determinadas de dar, fazer ou não fazer. Elas pressu­põem a capacidade dos sujeitos, tanto para o exercício quanto para a sua contra­ção, e a licitude do objeto, sendo livre a forma de se manifestar, a menos que a lei imponha forma específica. Em atos bilaterais voluntários exige-se a livre mani­festação da vontade, a disponibilidade e potestas do credor para exigir do deve­dor a prestação devida, que haveria de se cumprir no tempo, no lugar e/ou no modo previstos no negócio.

Para tais distinções, consulte-se PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, v.III, p.227 e ss.

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Não cumprida a prestação nas condições citadas previstas, encontra-se o de­vedor em mora ou inadimplemento relativo, permanecendo nesse estado até que honre a dívida e purgue a mora ou que haja o inadimplemento absoluto, ou seja, quando a prestação se torne impossível ao devedor faltoso ou inútil ao credor, caso em que a prestação originária se convola em perdas e danos.

Estando o devedor apenas em estado de mora, aufere o credor o direito de exigir o cumpr imento da prestação devida, ainda no plano do direito material. Cobrado o devedor e cumprida a prestação, extingue-se a obrigação, mas, cobrado o devedor e este queda inerte ou simplesmente recusa a pretensão cre-ditícia, nasce o direito de agir ou a actio nata. Isso se explica porque, antes do ato de resistência do devedor, sendo ainda útil a prestação ao credor e possível ao devedor, o simples adimplemento provocado por qualquer das partes torna­rá desnecessária/inútil a intervenção judicial. Agora, a partir do ato de resistên­cia, manifestado ainda no plano do direito material, não podendo o credor tomar para si, à força, aquilo que considera seu, e incriminando o estado de direito o uso arbitrário das próprias razões, não tem ele outra alternativa senão pedir proteção ao Estado para o exercício de seu direito material. A necessidade e a utilidade dessa proteção definem o interesse de agir, que, por sua vez, expli­ca a legitimidade.

Portanto, ao mesmo tempo em que o ato de resistência tácita ou expressa do devedor faz surgir o direito de agir do credor, in concreto (porque in abstrato ele existe na cláusula constitucional da inafastabilidade), fazendo surgir o interesse e a legitimidade, permite ele a clara separação entre as causas de pedir remota e próxima, ficando a primeira com o início da relação jurídica entre as partes, até o ato de resistência, e a segunda com as conseqüências jurídicas desse mesmo ato de inadimplemento.

Logo, o direito material surge historicamente antes do direito de agir, ambos em sua perspectiva de direito subjetivo concreto, e a definição da fronteira entre as causas de pedir remota e próxima se dá no preciso momento da lide material, ou seja, quando o devedor não se submete à pretensão do credor, manifestada ainda n o plano do direito material. O que confirma também que na causa de pe­dir remota há fatos e fundamentos jurídicos para o pedido, porém, ligados à ca­racterização do inadimplemento relativo, motivo pelo qual não é o ato citatório válido, ao contrário do que informa o art. 219 do CPC, que constitui o devedor em mora, mas a conduta pretérita do devedor. O que fica para a causa de pedir próxima é a lide material e as conseqüências jurídicas da mora.

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Após serem explicados esses conceitos sem recurso ao direito material, mais precisamente à teoria das obrigações, eles têm de ser decorados, e decorar con­ceitos é o primeiro passo para esquecê-los. Entretanto, se explicados a partir do direito material, são facilmente apreendidos e dispensam o enfadonho exercício de memória repetitiva.

A teoria das obrigações ajuda ainda a compreender outros institutos de di­reito processual, que serão descritos exemplificativamente. Por exemplo, o concei­to de pedido alternativo é estritamente ligado ao conceito de obrigação alternati­va, que significa a existência de mais de um modo de se cumprir uma prestação obrigacional (arts. 252 a 256 do CCB em vigor). Cabendo a escolha ao credor, deve este indicá-la na inicial; cabendo ao devedor, deve este escolher o meio de cumprimento após a citação, faculdade que retorna ao credor em caso de inércia. Portanto, pedido alternativo não se confunde com pedido sucessivo, porque en­quanto naquele os modos de cumprimento da prestação são equivalentes e têm a mesma fonte, neste último as prestações não têm o mesmo peso e possuem fon­tes diversas; no primeiro, a escolha das prestações cabe ao credor ou ao devedor, já no segundo, a escolha é exclusiva do credor; no primeiro, é o direito material que define o pedido, enquanto no segundo, é apenas a ordem auto-excludente das pretensões que define a sucessão entre elas.

Com as obrigações solidárias ocorre maior sorte de exemplos. A obrigação solidária é caracterizada por uma unidade objetiva e uma plu­

ralidade subjetiva, ou seja, o objeto da obrigação é objetivamente uno, embora atribuído a vários credores e/ou a vários credores, que a ele concorrem por cotas-partes que somente valem entre si, mantida a unidade do objeto em favor da parte contrária. Isso explica o fato de cada um dos credores ter direito "a exigir do de­vedor o cumprimento da prestação por inteiro" (art. 267 do CCB) e de o credor ter direito "a exigir e receber de u m ou de alguns dos devedores, parcial ou total­mente, a dívida comum" (art. 275 do CCB). Logo e respectivamente, "o paga­mento feito a u m dos credores solidários extingue a dívida até o montante do que foi pago" (art. 269 do CCB), enquanto "o pagamento parcial feito por u m dos devedores e a remissão por ele obtida não aproveitam aos outros devedores, se­não até à concorrência da quantia paga ou relevada" (art. 277 do CCB).

Se o objeto pode ser entregue inteiramente a apenas u m dos credores soli­dários ou cobrado inteiramente de apenas um dos devedores solidários, segue-se que o litisconsórcio ativo ou passivo será sempre facultativo quando houver obri­gação solidária como pano de fundo/mérito do processo. Portanto, no momen­to da formação da relação jurídico-processual, o litisconsórcio entre co-credores ou

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co-devedores solidários não é imprescindível. Quanto a saber, n o resultado, ou seja, no momento da prolação da sentença, se o litisconsórcio facultativo forma­do entre eles será comum ou unitário, isso dependerá da condição ostentada pe­los devedores solidários no pólo passivo.

As obrigações, do ponto de vista passivo, possuem dois elementos básicos: u m material e outro formal. O primeiro contém a dívida, ou debitum/schuld, e o segundo, a responsabilidade patrimonial, ou obligatio/haf-tung.29 A dívida tem relação com o direito material, sendo o elemento pessoal da obrigação passiva porque traduz o benefício direto do negócio jurídico havido por aquele que o contrai. Já a responsabilidade patrimonial tem relação com o direito processual, sendo o elemento patrimonial da mesma obrigação porque traduz o ônus da­quele beneficiário em empenhar seus bens para a garantia do negócio.

Aquele que assume originariamente uma obrigação retém tanto a dívida quan­to a responsabilidade patrimonial, onerando seus bens, presentes e futuros, em favor do cumprimento da prestação (art. 591 do CPC). Pode, do mesmo modo, por vontade própria e conjunta com a outra parte, ou mesmo em face da lei, ter outros co-obrigados, a título principal ou secundário. No primeiro deles, o co-obrigado identifica-se com o devedor, também retendo a dívida e a responsabilidade. No segundo, assume tão-somente a responsabilidade patrimonial. Trata-se, respectiva­mente, da solidariedade passiva principal e da solidariedade passiva secundária.

Disso resulta que inexiste dívida sem responsabilidade, sendo o contrário per­feitamente possível. Ao mesmo tempo, a existência isolada da responsabilidade patrimonial somente traz para o co-devedor a assunção de obrigações de dar, mas nunca as de fazer ou não fazer, atribuída à pessoa do titular da dívida.

Em caso de solidariedade passiva secundária, o co-obrigado, que não retém dívida, quando demandado sozinho, no processo de conhecimento, pode fazer uso do chamamento ao processo, a fim de ver integrada a relação jurídica processual dos demais co-devedores ou do devedor titular, não apenas para isso, mas também para ver a sua responsabilidade assumida, bem como para exercer, já no processo de execução, o beneficio de ordem de que cuida o art. 595 do CPC. Aí reside a sub-sidiariedade! Esta não tem uma existência independente de qualquer obrigação, mas se vincula às obrigações solidárias secundárias, ou meramente passivas. Somente não há subsidiariedade, obviamente, quando a obrigação solidária é prin­cipal entre todos os responsáveis, por deterem a dívida conjuntamente.

Cf. GOMES, Orlando. Obrigações, p.14 e ss.; LIMA, Alcides de Mendonça. Comentá­rios ao Código de Processo Civil, v.VI, p.148.

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AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO MATERIAL E O DIREITO PROCESSUAL 19

Logo, havendo litisconsórcio facultativo exclusivamente entre devedores solidá­rios principais ou entre devedores solidários secundários, o resultado do julgamen­to deve ser idêntico para todos, sendo diverso apenas quando os devedores litiscon-sortes forem solidários de graus distintos, ou seja, principal e secundário. 3 0 Do contrário, devedores de mesmo grau poderiam ser aquilatados entre si de acordo com a sua cota-parte, divisão que somente tem valia entre eles, para o exercício do direito regressivo de que tratam os arts. 283 do CCB em vigor e 595 do CPC, mas não quanto ao autor/credor, já que tal divisibilidade subjetiva não lhe pode ser oposta.

Outro instituto de direito processual explicado pela obrigação solidária é a espécie de intervenção de terceiros nominada de chamamento ao processo (arts. 77 a 80 do CPC).

O que justifica a figura do chamamento ao processo é precisamente a sua unidade objetiva e a facultatividade do litisconsórcio passivo. Explica-se: sendo da livre escolha do credor de devedores solidários quem pretende demandar, pode ele demandar todos, alguns ou apenas um dos devedores solidários. Exer­cendo tal faculdade nos dois últ imos casos, todavia, o credor limita o eventual exercício daquele direito regressivo entre os co-devedores citados e aqueles outros que não o foram. Assim, menos como limitação da unitariedade objeti­va ou do caráter facultativo do litisconsórcio passivo e mais em favor daquele direito de regresso, faculta-se ao devedor solidário, demandado sozinho, o ato de chamar ao processo os demais co-devedores, para, na eventualidade de ter seu pa t r imônio atingido para a satisfação da dívida toda, poder exercer direito regressivo em face dos demais devedores, deles recebendo a sua cota-parte. Tanto que, não é possível o chamamento ao processo do devedor principal o devedor secundário, mas apenas: a) os devedores principais (inc. III do art. 77 do CPC), b) os devedores secundários (inc. II) e c) os devedores secundários em relação aos principais (inc. I), porque o direito de regresso citado anterior­mente não ocorre de cima para baixo.

Também a responsabilidade pelo fato de terceiro e alguns direitos de regres­so são motivos de explicação de outras figuras de intervenção de terceiros, como a nomeação à autoria e a denunciação da lide.

Para Cândido Rangel Dinamarco, as obrigações solidárias são incompatíveis não ape­nas com o litisconsórcio necessário, mas também com o litisconsórcio unitário. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio, p. 195-218) Também Barbosa Morei­ra sustenta a incompatibilidade da obrigação solidária com o litisconsórcio unitário. (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Op. cit., p.146, nota 53, 185 e ss., 224-5)

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A responsabilidade pelo fato de terceiro ocorre em três circunstâncias, a sa­ber: quando o devedor originário se faz substituir por outrem no cumprimento da obrigação; quando subcontrata com outrem para isso; ou quando se coliga com outrem no uso de coisa a restituir. 3 1 No primeiro caso, o devedor originário, desde que autorizado pela avença, entrega o objeto contratado a terceiro, cuidan­do, todavia, da sua execução e mantendo-se vinculado ao credor. Naturalmente, essa modalidade de subcontratação somente ocorrerá nas obrigações fungíveis e, entre essas, naqueles liames que prevejam expressamente a substituição. No se­gundo caso, o devedor originário não apenas intervém na execução, como tam­bém concorre com o terceiro chamado a auxiliá-lo no mister. Esse auxílio tanto ocorre mediante uma relação de dependência entre o devedor e o terceiro, nas hipóteses do empregado e do preposto, como em uma relação de independência hierárquica. No último, o devedor originário, autorizado pelo contrato, admite no gozo da coisa que deve restituir u m terceiro.

Em todas elas cogita-se a responsabilidade do devedor originário pelos atos dos terceiros com ele comungados, a partir da noção de culpa por fato danoso desse terceiro em detrimento da obrigação assumida.

Especificamente sobre as culpas in viliganão e/ou in eligendo, trata-se de hi­póteses inseridas tão-somente no segundo tipo de responsabilidade por ato de terceiro. Com efeito, na concorrência da execução das prestações de uma avença, o auxiliar do devedor, que assume originariamente a dívida e a responsabilidade patrimonial, pode praticar atos, omissivos ou comissivos, que tragam inadimple-mento relativo (mora) ou absoluto, em comportamento negligente, imperito ou imprudente passível de extensão fictícia ao devedor. Aliás, nesse sentido dispõe o art. 932, III, do CCB em vigor, ser de responsabilidade do empregador ou comi-tente a reparação civil dos danos causados por seus empregados, serviçais e pres-postos no exercício do trabalho que lhes competir ou por ocasião dele, desde que haja confluência culposa (art. 934). Essa teoria, em especial, decorre da noção de culpa presumida por tais atos, por má escolha do auxiliar ou vigilância indevida, contraposta às teorias da garantia tácita, 3 2 do risco 3 3 e da representação. 3 4

GOMES, Orlando. Op. cit., p.194. Que pressupõe a culpa do devedor mesmo que o auxiliar não a tenha. Que admite a plena objetividade da culpa do devedor diante do risco assumido ao contratar o auxiliar. Conforme a qual o auxiliar representa o devedor e, ao praticar o ato, assume a feição do devedor ao representá-lo.

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AS RELAÇÕES ENTRE O DIREITO MATERIAL E O DIREITO PROCESSUAL 21

Assim, por exemplo, se um caseiro de uma casa de campo pouco freqüentada pelo proprietário é demandado pelo vizinho, em ação de indenização por danos causados em virtude de uma mudança de curso d'água, na crença de que se trata do proprietário, deve o caseiro nomear à autoria o seu empregador, na forma dos arts. 62 e 63 do CPC, sob pena de, não o fazendo, responder por perdas e danos, consoante o art. 69 ,1 , do mesmo código. Agora, se a ação é movida em face do empregador/proprietário por conta do mesmo ilícito civil, pode ele denunciar à lide o seu caseiro, por força do art. 70, III, do CPC o art. 934 do CCB em vigor.

Em uma frase: as figuras de intervenção de terceiros de nomeação à autoria e de denunciação da lide podem, em um mesmo exemplo, ser elucidadas por con­ta da responsabilidade pelo fato de terceiro que detém o empregador em face dos atos de seu empregado e da responsabilidade regressiva deste.

5. CONCLUSÃO

Outros tantos exemplos poderiam ser utilizados aqui, mas os paradigmas versados são suficientes para mostrar a interdependência do direito processual em relação ao direito material, e a necessidade de o ensino de processo não se des­vincular do direito material, sob pena de tornar referida matéria uma área de difícil acesso aos alunos.

É certo que a corrente processualista que prega a instrumentalidade e que, nas últimas reformas tem privilegiado, por exemplo, o cumprimento das obriga­ções in specie, deixando apenas como última alternativa a sua conversão em per­das e danos, não tem culpa alguma pelas abstrações alheias. Todavia, é preciso, cada vez mais, chamar a atenção para a importância do direito material como base do ensino jurídico, a fim de que os acadêmicos do curso de direito não se trans­formem em formalistas que ignoram o direito subjetivo material, embora pare­çam excelentes repetidores de teorias decoradas, que logo serão esquecidas.

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I N E X I S T Ê N C I A , N U L I D A D E E I R R E G U L A R I D A D E N O P R O C E S S O CIV IL

E O S P L A N O S D A E X I S T Ê N C I A , V A L I D A D E E E F ICÁC IA D O S A T O S

J U R Í D I C O S N O D I R E I T O C IV I L

OSMAR MENDES PAIXÃO CORTES*

Sumário 1. Delimitação do tema. 2. Considerações gerais sobre os atos processuais. 3. Direito privado e direito públi­co. 4. Planos da existência, validade e eficácia dos atos jurídicos. 5. Sistematização. 6. Princípios norteadores das nulidades processuais. 7. A existência, a validade e a eficácia dos atos jurídicos no novo Código Civil e os reflexos no processo civil. Referências bibliográficas.

1. DELIMITAÇÃO DO TEMA

O presente estudo versa sobre a sistematização dos vícios que ocasionam a inexistência, a nulidade e a irregularidade no processo civil a partir da parte lógi­ca da tricotomia existência-validade-eficácia dos atos jurídicos do direito civil.

Para tanto, formulam-se considerações gerais sobre os atos processuais, diferenças entre o direito público e o direito privado, existência, validade e eficá­cia, em cotejo com a tradicional divisão entre os planos, no direito civil, para se chegar à sistematização dos vícios da inexistência, da nulidade e de irregularida­de no processo civil.

* Advogado e professor. Doutorando em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual.

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Em seguida, analisa-se cada u m dos vícios, enfatizando as nulidades processuais.

Ao final, antes da bibliografia, refere-se ao tema dos três planos, tratados pelo Código Civil em vigor, substancialmente, da mesma forma que o anterior.

2. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE OS ATOS PROCESSUAIS

Até o século XIX predominava a confusão entre direito processual e direito material, u m sincretismo jurídico sucedido pela fase de afirmação do processo como ciência autônoma. Conquistada a autonomia, após grandes avanços técni­cos, são repensadas as funções e escopos do processo.

Não se pode pensar no processo como u m fim em si mesmo, mas como um ins t rumento 1 à disposição do Estado para a realização de objetivos relacionados ao direito material para fins sociais e políticos.

Uma idéia, entretanto, sempre esteve ligada ao processo, qual seja, a de uma seqüência ordenada de atos. Mas não é apenas isso.

Bülow bem destacou que o processo não pode ser entendido apenas como uma marcha gradual, mas como uma relação progressiva entre o Estado-juiz e as partes:

En lugar de considerar al proceso como una relación de derecho público, que se de-senvuelve de modo progresivo, entre el tribunaly Ias partes, ha destacado siempre uni­camente aquel aspecto de Ia noción de proceso que salta a Ia vista de Ia mayoría: una marcha o adelanto gradual, el procedimiento [...].2

O processo não seria mero procedimento, mas, e essa é a corrente doutriná­ria tradicional, a seqüência dos atos concatenados para a realização de um fim. Nas palavras de Carnelutti:

Chamamos (por antonomásia) processo a um conjunto de atos dirigidos à formação ou à aplicação dos preceitos jurídicos, cujo caráter consiste na colaboração para tal finalidade das pessoas interessadas (partes...) com uma ou mais pessoas desinteressadas (juizes; ofício judicial.

E defende-se que o centro do direito processual não é mais a actio, mas a jurisdição. Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentaliáade do processo. BÜLOW, Oskar Von. La teoria de ias excepciones procesales y los presupuestos procesa-les, p.3. CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil, v.I, p.71-2.

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INEXISTÊNCIA, NULIDADE E IRREGULARIDADE NO PROCESSO CIVIL 25

O procedimento, por sua vez, seria a marcha dos atos do juízo, a exterioriza­ção do processo, coordenados, segundo Frederico Marques, sob formas de ritos, para que se atinjam os fins compositivos do processo, que substancia uma rela­ção de direito. 4

Hoje, questionam-se essas definições tradicionais e busca-se a caracteriza­ção do processo como o procedimento em contraditório. 5

É certo, entretanto, que no processo realizam-se fatos, gênero do qual são es­pécies os atos (decorrentes da vontade), praticados pelos sujeitos processuais -juiz e partes.

A prática dos atos pode ser orientada por dois sistemas: o da liberdade das formas processuais e o da legalidade das formas processuais.

Calamandrei ensina que:

Segundo o primeiro destes sistemas (que provavelmente na prática não tem sido nunca aplicado de um modo integral), se deixaria àqueles que aspiram obter uma providência jurisdicional na liberdade de se dirigir ao juiz nas formas que conside­rassem mais oportunas e persuasivas, sem a necessidade de dever seguir ordem e modos preestabelecidos.6

No sistema da legalidade das formas, ao contrário, deve-se observância a normas estabelecidas com o intuito de organizar o desenvolvimento da relação jurídico-processual e trazer certeza e segurança às partes litigantes.

Esse é o sistema seguido pelas legislações processuais em geral, o que não significa necessariamente u m mal. Calmon de Passos bem explica o porquê de se seguir o sistema da legalidade das formas:

Deixar que a atividade processual se desenvolva segundo melhor pareça às par tes-os mais autorizados juizes do próprio interesse, ou nos moldes fixados pelo magis­trado - o melhor árbitro das necessidades do caso particular, porque técnico e im­parcial, seria olvidar-se que numa ou noutra hipótese a incerteza e a insegurança re­presentariam o alto preço de vantagens muito discutíveis. A legalidade da forma, conseguintemente, se impôs como solução universal, estando na lei, e somente nela, toda a ordenação da atividade que deve ser desenvolvida para que o Estado realize os seus fins de justiça.7

4 MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil-, v.I. 5 Cf. FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 6 CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil, v.I, p.254. 7 PASSOS, José Joaquim Calmon de. A nulidade no processo civil, p.32.

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Os atos processuais devem, portanto, ser realizados de forma satisfatória, ou regular, para o direito, além de ser corrigidos ou anulados se em desconformida-de com a ordem estabelecida. Daí porque é importante tratar da formação do ato jurídico, de sua existência e, também, dos seus requisitos de validade e eficácia.

3. DIREITO PRIVADO E DIREITO PÚBLICO

O tema da existência, da validade e da eficácia dos atos jurídicos, tradicional­mente tratado pelo direito civil, pertence à teoria geral do direito. Na seara pro­cessual, ramo do direito público, há que se observar certas particularidades, não podendo simplesmente se importar a teoria desenvolvida para o direito privado sem restrições e cuidados.

Galeno Lacerda, por exemplo, bem ressalta que "autônomas se apresentam as nulidades processuais, em relação às de direito privado. Como estas, porém, nascem do tronco comum da teoria geral".8

De início, cumpre observar que a sistemática de direito material não é a mesma, tendo em vista a natureza pública cogente das normas de direito proces­sual civil e o fato de não constituir este u m fim em si mesmo, mas um meio para se atingir determinada finalidade de direito substancial. 9

O direito processual surgiu como um apêndice do direito material. A in­fluência e a dominação do direito privado sobre o processo é clara se examinado o direito romano.

Os dois primeiros sistemas de processo civil romano - ações da lei e formu­lário - demonst ram a total vinculação do processo ao direito privado.

Havia a divisão da instância em in iure e apud iudicem, desenvolvida, respec­tivamente, perante o magistrado e o juiz, que não era funcionário do Estado, e a submissão às regras do ordo iudiciorum privatorum.

Já na terceira fase - cognitio extraordinária — o processo desenvolvia-se todo perante o magistrado, e não se fazia necessária a nomeação de um juiz privado. José Carlos Moreira Alves bem ressalta que o processo extraordinário surgiu para dirimir questões de natureza administrativa ou policial, mas a sua aplicação "aos conflitos subordinados à jurisdição cível foi apenas questão de tempo". 1 0

LACERDA, Galeno. Despacho saneador, p.70. Além do escopo jurídico, o processo, pela jurisdição, tem objetivos de natureza social e política, que são aqui referidos, mas não constituirão objeto específico do estudo. ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano, v.I, p.241.

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INEXISTÊNCIA, NULIDADE E IRREGULARIDADE NO PROCESSO CIVIL 27

Uma conseqüência importante dessa fase foi a busca da desvinculação do direito processual do direito privado e sua regência pelo direito público, alcança­da de modo definitivo e marcante no século XIX."

O direito público é regido por normas próprias, nem sempre plenamente compatíveis com as de direito privado. Teresa Arruda Alvim Wambier, quanto às nulidades, que estão relacionadas aos requisitos de validade, destaca que isto "faz com que no que tange, principalmente, aos efeitos seja impossível aplicar-se ao direito público a teoria das nulidades, concebida na esfera do direito civil".12

Couture, de forma mais amena, também reconhece que o "direito proces­sual adota, em matéria de nulidades, a noção geral comum a todos os ramos do direito. Possui, ademais, certos princípios que lhe são próprios". 1 3

O direito processual possui, assim, pecularidades, no tema dos requisitos de validade. Não se aplicam de todo regras e princípios desenvolvidos pela teoria geral do direito e pelo direito civil, que, ao mesmo tempo, não são desconsiderados.

O processo esteve por muito tempo ligado indissociavelmente ao direito ci­vil, tendo, por isso, institutos desenvolvidos simultaneamente com os deste ramo do direito. Também recorre-se a conceitos desenvolvidos no âmbito do direito administrativo. 1 4

Chiovenda, após ressaltar que o direito processual possui certas particulari­dades, pela natureza especial da relação jurídica, traça alguns pontos distintivos das nulidades processuais e substanciais 1 5 que, repita-se, estão relacionados à validade do ato:

1 1 É importante destacar que o processo civil, notadamente o brasileiro, de desenvolvi­mento centrado na lide, ainda está ligado à origem privatista, embora o caráter públi­co tenha preponderado. Cândido Rangel Dinamarco (Op. cit, p.48 e segs.), de forma precisa, destaca que há um paradoxo metodológico no posicionamento do processua­lista brasileiro, tendo em vista que a nossa ordem político-constitucional republicana inspirou-se no modelo norte-americano (de espírito notadamente de direito públi­co) e o nosso processo sofreu influência dos países europeus continentais, da família "romano-germânica", dos quais recebemos o direito privado e o penal.

1 2 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença, p. 120. 1 3 COUTURE, Eduardo J. Fundamentos do direito processual civil, p.299. 1 4 Teresa Arruda Alvim Wambier (Op. cit., p.122 e segs.) sustenta que, não obstante o

direito positivo brasileiro não forneça "base concreta para que se possa proceder à elaboração de uma teoria das nulidades no direito público", a Lei n. 4.717/1965, disci-plinadora da ação popular, fornece "elementos que nos podem servir de ponto de par­tida para esboçar uma 'Teoria Geral das Nulidades' no direito público", por dar feição pública aos incisos do art. 145, do Código Civil.

1 5 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, v.II, p.321.

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a) O vício que afeta a relação jurídico-processual não impede a existência atual da relação, e o órgão judicial tem a obrigação de se manifestar, ao menos para declará-la viciada. Daí decorre que os efeitos processuais da demanda "nascem mesmo no processo nulo e duram até que a nuli-dade seja declarada no próprio processo" e que até na sentença decla-ratória da nulidade da relação processual "existem partes em causa e pode haver, por isso, condenação nas custas, fundada, se não na derro­ta, ao menos na culpa;

b) a quase totalidade dos motivos de nulidade da relação processual "desa­parecem com o tornar-se definitivo o resultado de u m processo".

4. PLANOS DA EXISTÊNCIA, VALIDADE E EFICÁCIA DOS ATOS JURÍDICOS

Por vezes, tenta-se importar, sem restrições, para o direito processual teorias do direito civil, 1 6 o que, como já exposto, não é possível, em vista das peculiari­dades que guardam o processo, ramo do direito público.

Não obstante, faz-se mister referência aos três planos tradicionalmente tra­çados dos fatos jurídicos - o da existência, o da validade e o da eficácia - , porque toda parte lógica dessa teoria desenvolvida pela teoria geral do direito e pelo direito civil é aplicável ao processo.

Um fato do mundo real passa a ser um fato jurídico quando sobre ele incide norma jurídica, ou seja, quando acontece no mundo real o que está previsto na norma (preenchimento do suporte fático) e há a existência de um fato jurídico. A partir daí, verifica-se se ele é apto a produzir efeitos, se tem eficácia jurídica.

Entre esses dois planos, o da existência e o da produção de efeitos (eficácia), há o plano da validade, que, conforme explica Antônio Junqueira de Azevedo, no que diz respeito aos negócios jurídicos, deve ser examinado tendo em vista que "seus efeitos estão na dependência dos efeitos que foram manifestados como queridos", 1 7 exigindo o direito, portanto, de que a declaração de vontade preen­cha certos requisitos.

1 6 A própria utilização da expressão teoria das nulidades pode levar a equívoco, deven-do-se observar que a palavra nulidade está sendo utilizada em sentido amplo. Em sen­tido estrito, relaciona-se a atos inválidos, ao plano da validade. Em sentido amplo, refere-se à não-produção dos efeitos programados do ato.

1 7 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia, p.24.

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O preenchimento de pressupostos 1 8 indispensáveis diz respeito à existência de um fato, ato ou negócio jurídico. Arriscamos enumerar os pressupostos gerais aos atos jurídicos - agente, objeto, forma, tempo e lugar. 1 9

Em u m segundo momento, cumpre verificar se foram observados os requi­sitos 2 0 previstos em lei e inerentes ao ato para verificar se o ato existente vale. An­tônio Junqueira de Azevedo, para quem "o plano da validade é próprio do negó­cio jurídico", 2 1 afirma que a validade é "a qualidade que o negócio deve ter ao entrar no m u n d o jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas". 2 2

Pontes de Miranda ensina que:

Para que algo valha é preciso que exista. Não tem sentido falar-se de validade ou de invalidade a respeito do que não existe. A questão da existência é questão prévia. Somente depois de se afirmar que existe é possível pensar-se em validade ou em invalidade. Nem tudo que existe é suscetível de a seu respeito discutir-se se vale, ou se não vale. Não se há de afirmar nem de negar que o nascimento, ou a morte, ou a avulsão, ou o pagamento valha. Não tem sentido. Tampouco, a respeito do que não existe: se não houve ato jurídico, nada há que possa ser válido ou inválido. Os con­ceitos de validade ou de invalidade só se referem a atos jurídicos, isto é, a atos

Foi utilizada a palavra pressuposto por ser considerada mais técnica. Em trabalho an­terior (Agravo de instrumento contra decisão denegatória de recursos extraordinários, p.33 e ss.) já defendemos essa posição, na esteira de lição de Calmon de Passos, Esbo­ço de uma teoria das nulidades. Revista de Processo, n.56. Pressuposto significa o que vem antes, antecede o ato. Antônio Junqueira de Azevedo (Op. cit., p.29) utiliza a palavra elemento relacionado com existência. À validade relaciona requisitos, e à efi­cácia fatores. Antônio Junqueira de Azevedo fala em elementos gerais do negócio jurídico - intrínse­cos (forma, objeto, circunstâncias negociais) e extrínsecos (agente, lugar e tempo). Op. cit., p.31-3. Segundo Calmon de Passos (Op. cit., p.13), requisito diz respeito "a tudo quanto inte­gra a estrutura executiva do ato". Antônio Junqueira de Azevedo relaciona os requi­sitos de validade do negócio jurídico - declaração de vontade resultante de processo volitivo, desejada com plena consciência da realidade, escolhida com liberdade e deli­berada sem má-fé; objeto lícito, possível e determinado ou determinável; forma livre ou conforme previsão legal (se a lei exigir); agente capaz e legitimado para o negócio, tempo útil (se previsto que o negócio seja feito em determinado momento); lugar apro­priado (se houver a previsão de determinado lugar). AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Op. cit., p.40. No mesmo sentido, Pontes de Miranda defende que a validade "só diz respeito aos negócios jurídicos e aos atos jurí­dicos stricto sensu. (Tratado de direito privado, v.IV, p.4) Ibidem, p.41.

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humanos que entraram (plano da existência) no mundo jurídico e se tornaram, assim, atos jurídicos.23

Cumpre referir que, no plano da validade, a doutrina costuma fazer a distin­ção entre duas categorias: o nulo (nulidade absoluta e relativa) e o anulável.

Em momento posterior, se existente e válido o ato, cabe verificar se está apto a produzir efeitos, se é ou não eficaz.

Discute-se se a eficácia é a produção dos efeitos programados pela norma e queridos pelo agente (efeitos típicos), 2 4 ou se é a aptidão para produzir efeitos.

Entendemos referir-se à aptidão para produzir efeitos. No processo civil, por exemplo, se uma sentença existe e é válida, só se torna eficaz quando é publica­da. A partir desse momento , ela está apta a produzir efeitos. Se, porventura, vier a ser descumprida pelas partes, não deixa de ser eficaz, apenas não produziu efei­tos in concreto.

Pode-se, inclusive, dizer que aptidão refere-se à eficácia em sentido estrito e a produção de efeitos típicos in concreto à eficácia em sentido amplo.

Deve-se, ainda, atentar para a confusão terminológica entre eficácia em sen­tido estrito e validade. Pontes de Miranda faz a diferenciação:

A distinção entre nulidade e ineficácia é assente na distinção entre validade e efica-ciedade, depois que a ciência do direito apurou, a fundo, que a defeituosidade não se confunde com a falta de requisitos para a irradiação de efeitos. Toda validade se liga ao momento em que se faz jurídico o suporte fáctico; toda eficácia será produ­ção da juridicidade do fato jurídico.25

A eficácia não diz respeito, assim, a defeitos na formação do ato, mas refe­re-se a condições para a produção de efeitos (externas ao ato).

Não obstante, Carnelutti prega a inutilidade prática da distinção entre efi­cácia e validade:

[...] De igual modo que validez y eficácia, así también ineficácia e invalidez son con­siderados por mí, si no por todos, como sinônimos; Ias distinciones que se suelen po-ner entre estas dos parejas complementarias de vocablos no pueden, ciertamente, considerarse incorrectas, pero no me parecen convenientes, sobre todo en orden a Ia necessidad de simplificar, dentro de Io posible, Ia construcción y Ia designación de los conceptos. A Io sumo, cabe designar como "invalidez" Ia consecuencia de Ia fata (s/c)

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p.6-7. Teresa Arruda Alvim Wambier defende essa posição.Op. cit., p.l 13. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p.l6 .

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INEXISTÊNCIA, NULIDADE E IRREGULARIDADE NO PROCESSO CIVIL 31

de un requisito interno, y como "ineficácia", Ia consecuencia de Ia carência de un re­quisito externo dei acto; pero no creo que, expuesta en esos términos, Ia distinción tenga ninguna utilidad práctica.26

Em suma, se um ato é inexistente, nem se chega a cogitar sua validade e efi­cácia, mas pode-se dizer, mesmo que tecnicamente não seja recomendado, que é ineficaz (em sentido amplo). Se u m ato existe e não é válido, não se chega a exa­minar a sua eficácia, mas, da mesma forma, pode-se falar que é ineficaz.

A regra é essa - um plano vem antes do outro. Primeiro o da existência, de­pois o da validade e, por fim, o da eficácia.

Entretanto, pode ocorrer de atos inválidos produzirem efeitos. São exceções e não se relacionam à produção dos efeitos típicos do ato, mas de produção de efei­tos atípicos, não desejados. 2 7

Quanto a eventual produção de efeitos de atos inexistentes no m u n d o jurí­dico, Pontes de Miranda ressalta que o "que se não pode dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz, sem ser; porque não há validade, ou eficácia do que não é".28

Deve-se ignorar, portanto, essa eventual produção de efeitos de ato inexis­tente. É importante lembrar que, no processo civil, apesar de se poder adotar a mesma postura frente a um ato inexistente, se os efeitos no mundo real irradia­rem-se a ponto de atingir a esfera de quem não foi parte no processo, ou foi parte em processo inexistente, deve-se lançar mão da ação objeto do presente estudo -declaratória de inexistência.

No direito civil, a nulidade não é, por regra, fruto de decretação judicial, sal­vo exigência da lei. No processo civil, ao contrário, a nulidade e a inexistência são sempre fruto de pronunciamento judicial. Antes disso, pode-se alegar vícios ati-nentes à existência e à validade ainda não declarados.

Por fim, vale referir que, no direito civil, os atos inexistentes e nulos não po­dem ser convalidados, 2 9 enquanto os anuláveis podem.

Já no processo civil, todos os vícios relacionados à validade são sanáveis. Só não o são os atinentes à inexistência.

CARNELUTTI, Francesco. Sistema de derecho procesal civil, v.III, p.558. Por exemplo, o casamento putativo que tem eficácia civil em relação ao cônjuge de boa-fé e aos filhos. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p.15. Vale ser notado o art. 169 do novo Código Civil, segundo o qual "o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo".

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5. SISTEMATIZAÇÃO

Muito se discutiu, e se discute, acerca da sistematização dos vícios que atin­gem os atos processuais, na sua existência, validade ou eficácia. Como será de­monstrado, ela é possível desde que traçadas considerações terminológicas que busquem a clareza dos conceitos.

Os vícios do ato ou da relação processual são de três ordens. O mais grave é o que acarreta a inexistência, o menos grave, acarreta a irregularidade. Em posição intermediária, há os vícios que levam à nulidade, que, por sua vez, pode ser abso­luta ou relativa. 3 0 Essa é a terminologia lógica e adequada.

Observa-se, entretanto, que, muitas vezes, utiliza-se inexistência e nulidade como sinônimos, fala-se em nulidades ipso iure, como categoria distinta das nuli-dades, em anulabilidade, ao lado da nulidade relativa, e não se mencionam as irregularidades. 3 1

A confusão entre nulidade e inexistência tem razões históricas, uma vez que no direito romano não se distinguia claramente esses dois conceitos. Pode-se di­zer que diferenciava, basicamente, a sentença válida da inválida.

Nulla, no direito romano, relacionava-se à negação da sentença, portanto, à inexistência. Utilizando-se posteriormente "nula" também com outro sentido, sur­giram as controvérsias. Daí porque sempre houve discussão acerca da categoria inexistência e da sua diferenciação precisa da validade (nulidade).

O Código Civil e o Código de Processo Civil não tratam da inexistência, o que contribui ainda mais para o surgimento de dúvidas.

A inexistência é categoria diversa da nulidade, referindo-se, no caso da rela­ção processual, aos seus pressupostos de existência. Ambas, entretanto, precisam ser declaradas judicialmente.

Quanto à nulidade, pode ser ela absoluta ou relativa, o que será objeto de tópico específico. A chamada nulidade ipso iure, muitas vezes tratada como ca­tegoria intermediária, nada mais é do que uma nulidade absoluta e, portanto, sanável.

Tratar-se-á de cada uma dessas categorias de vícios a seguir, em tópicos separados. Desde já, cumpre destacar, entretanto, algumas questões adotadas atinentes à termi­nologia e a diferentes classificações dos vícios. Além de absoluta e relativa, as nulida­des serão divididas em de fundo ou deforma e em cominada e não-cominada, o que será objeto de apreciação em item específico. As irregularidades, como será visto a seguir, são vícios que não chegam a atingir a efi­cácia do ato (item n).

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INEXISTÊNCIA, NULIDADE E IRREGULARIDADE NO PROCESSO CIVIL 33

Pontes de Miranda, ao contrário, fala que a nulidade ipso iure não convali-da. Exemplifica com a sentença proferida contra quem não foi uma das partes. Nesse caso, entende o citado autor, a sentença é nula para aquela pessoa que não fez parte da relação. 3 2

Nossa posição é diversa - ou fala-se em inexistente ou em nulo. E só a ine­xistência não convalida. No exemplo citado por Pontes de Miranda, entendemos tratar-se de inexistência jurídica, não de nulidade. Teresa Arruda Alvim Wambier também entende nesse sentido. 3 3

A categoria das irregularidades, por sua vez, diz respeito a vícios que não são relevantes a ponto de causar prejuízo às partes e impossibilitar o regular desen­volvimento da relação processual. São vícios leves, de pequena importância, que não interferem na produção de efeitos do ato nem atingem a sua estrutura ou a da relação processual. Podem ser sanadas de ofício pelo juiz ou pelo executor do ato. Há autores que fazem, ainda, uma distinção entre as que podem ser corrigi­das e as que permanecem do modo como foram feitas.

Quanto à anulabilidade no processo civil, entendemos não poder ser distin-guida da nulidade relativa. Seguimos, nesse caso, a opinião de Pontes de Miranda:

No Código de 1973, como no de 1939, não há anulabilidades. 0 ato processual ou não existe, ou existe e é nulo, ou existe e é válido. Conhece o Código nulidades sanã-veis e nulidades insanáveis, nulidades que a sentença cobre e nulidades que atraves­sam a sentença e invalidam a própria sentença. 3 4

Couture também não fala em anulabilidade, e adota postura no sentido de que são três os graus de ineficácia. Em primeiro lugar, a inexistência, em segun­do, a nulidade absoluta, e, por fim, a nulidade relativa. 3 5

Ilustres processualistas, como Egas Dirceu Moniz de Aragão e Galeno Lacer­da, que adotam como critério diferenciador a natureza da norma, entendem a questão em sentido contrário. Quando ela tiver natureza cogente, a infringência acarretará nulidade relativa. A anulabilidade, por sua vez, é vício resultante da violação da norma dispositiva. 3 6

>2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, t.III, p.364.

13 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Op. cit., p.226. 14 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op cit., p.261. 15 COUTURE, Eduardo J. Op. cit., p.301. 16 LACERDA, Galeno. Despacho saneador, p.72-3; ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Co­

mentários ao Código de Processo Civil, p.267-8.

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Cumpre referir, ainda, a figura da inadmissibilidade, 3 7 desenvolvida por Car-nelutti, que se situaria entre a irregularidade (menor grau de imperfeição) e a nu­lidade (grau máximo de imperfeição). Seria uma espécie de nulidade não extensi­va, ou não contagiosa, que não vicia atos posteriores da relação processual, como a sentença.

Enfatizamos nossa posição no sentido de que, ou o vício relaciona-se à ine­xistência, ou à nulidade, ou à irregularidade, não havendo necessidade de se criar categorias intermediárias. Na realidade, o nome dado a cada categoria não impor­ta na alteração do seu conteúdo. Araújo Cintra, Ada Pellegrini e Cândido Dina-marco, relacionando a terminologia por eles utilizada com a de outra parcela da doutrina, bem ilustram esse fenômeno:

Parte da doutrina nega que haja essa categoria de atos inexistentes, falando, an ­tes, em nulidade absoluta. Falam alguns autores em atos anuláveis (para o que chamamos de nulidade relativa), atos relativamente nulos (para o que chamamos de nulidade absoluta) e atos absolutamente nulos (para o que chamamos de ine­xistência jurídica). A divergência, como se vê, é porém mais terminológica que real. 3 8

O Código de Processo Civil brasileiro de 1973, seguindo a orientação já ado­tada em 1939, afastou-se do antigo modelo de enumeração de causas de nulidade. Galeno Lacerda explica de forma clara e precisa o método já seguido pelo legisla­dor de 1939:

No ante-projeto BATISTA MARTINS, os casos de nulidade eram discriminados, assim como os termos considerados essenciais ao processo. Refundiu-se a matéria no Código com rara felicidade, dentro de princípios gerais e elásticos, em que predominam as idéias de finalidade, conversão, prejuízo e

repressão ao dolo processual. Outorgaram-se ao juiz poderes inquisitórios e arvo­rou-se o suprimento como norma de conduta, tanto para casos de nulidade como de anulabilidade. Excetuaram-se, porém, os casos insanáveis, insupríveis por definição. 3 9

D e fato, também no Código de 1973 predominam essas idéias, sendo a prin­cipal, a nosso ver, a da finalidade e da instrumentalidade.

3 7 CARNELUTTI, Francesco. Op. cit., v.I, p.583 e ss. 3 8 CINTRA, Antônio Carlos Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cân­

dido Rangel. Teoria geral do processo, p.344-5. 3 9 LACERDA, Galeno. Op. cit., p.69.

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Calmon de Passos fala que o vício que deve ser sancionado com nulidade é o que acarreta "prejuízo para os fins de justiça do processo, deixando inatingido o fim particular posto para o ato". 4 0

Já na Exposição de Motivos do Código de 1939, observa-se o traço da orien­tação publicística e o afastamento do sistema formalista, no qual as violações da forma processual sempre importam em nulidade.

Ao tratar dos princípios norteadores das nulidades, dar-se-á maior ênfase à orientação seguida pelo Código de Processo Civil em vigor, no Brasil.

Como já referido, adotamos posicionamento no sentido de que somente vícios relativos à existência são insanáveis no processo civil. Os atinentes à nuli­dade, tanto relativa quanto absoluta, são sempre sanáveis. Explicamos:

A nulidade e a inexistência dependem de reconhecimento judicial. Um deter­minado ato do processo não é tido como nulo, ou como inexistente, passível de ser desconsiderado no desenvolvimento da relação processual, sem que tenha havi­do pronunciamento judicial nesse sentido.

Da mesma forma, não se considera, simplesmente, uma relação processual nula ou inexistente, e não se cumpre a sentença que nela pôs f i m por entendê-la nula ou inexistente, sem que o Poder Judiciário reconheça o vício.

Uma sentença, ou um ato do processo, possui carga de credibilidade. Daí por­que deve ser judicialmente declarado inexistente ou nulo. Nisso residem a segu­rança e a previsibilidade próprias do sistema processual.

Teresa Arruda Alvim Wambier, em raciocínio análogo, salienta que seria o caos se todos pudessem deixar de cumprir contratos, por considerá-los inexisten­tes, ou leis, porque são inconstitucionais. 4 1

Transitada em julgado uma sentença, ou verificada a preclusão temporal pelo decurso do prazo recursal, todos os atos praticados, e a própria constituição da re­lação processual, ainda que eivados de vícios, são considerados válidos e os vícios são sanados. É claro que a sanabilidade fica submetida a uma condição - o de­curso do prazo de dois anos para a propositura de ação rescisória. Transcorrido esse lapso, ocorre a sanatória geral.

Com ela, todos os vícios são definitivamente sanados, e só os atinentes à exis­tência da relação processual e da sentença podem ser atacados a qualquer tempo.

4 0 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, t.III. Egas Dirceu Moniz de Aragão, em seu Comentários ao Código de Processo Civil, p.260, repu­ta por demais subjetiva a apreciação dos fins de justiça do processo referidos por Cal­mon de Passos.

4 1 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Op. cit., p. 131.

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Note-se que estamos falando de sanabilidade dos vícios após o trânsito em julgado da decisão, o que não pode ser confundido com convalidação dos atos viciados dentro da mesma relação processual.

Nesse ponto, é interessante notar que, dentro da relação processual, há os atos viciados que podem e os que não podem ser convalidados, ou as nulidades sanáveis e as insanáveis, como prefere a maior parte da doutrina.

Tradicionalmente, diz-se que os atos absolutamente nulos são inconvalidá-veis, ao contrário dos relativamente nulos, que podem ser convalidados.

Calmon de Passos, com precisão, coloca que quando se fala em nulidade sa-nável ou insanável, fala-se, na verdade, da extensão dos efeitos das nulidades. Se­gundo o ilustre processualista baiano:

[...] As sanáveis, que corrigem, quanto à repercussão de seus efeitos, pela repetição do ato ou dos atos atingidos, sobrevivendo o processo. As insanáveis, quando o ato não pode ser repetido operando elas sobre o processo, atingindo-o na sua validade, como um todo. 4 2

Dentro da mesma relação processual também pode haver a correção de um ato viciado pela interposição do recurso cabível contra a sentença, hipótese em que será determinado que seja o ato, reconhecido como nulo, praticado nova­mente, de forma regular, ou o órgão julgador ad quem corrigirá o vício.

5.1 Inexistência

Quando do exame de u m ato, ou de relação processual, em primeiro plano deve-se cogitar sua existência. Só após verificado o preenchimento dos pressu­postos de existência, pode-se continuar no exame da sua validade. Apenas o que existe é válido.

Ato existente juridicamente é aquele que entrou no mundo jurídico e pode ser valorado do ponto de vista da validade e da eficácia.

O direito romano, bem como o direito dos países europeus até o século XIX, não conheceram a categoria da inexistência jurídica, ou melhor, não desenvolve­ram uma teoria acerca da inexistência. 4 3

4 2 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Op. cit., t.IIÍ, p.414. 4 3 Note-se, por exemplo, a obra de Francisco Eugênio de Toledo, publicada no início do

século XX, Nulliãades do processo civil e commercial, que, ao tratar dos elementos cons­titutivos dos atos jurídicos, não se refere à inexistência, mas somente à validade. Diz o autor que: o elemento essencial geral do ato, que é aquele "sem o qual não pôde o acto subsistir", é exigível para a "validade de todos os actos jurídicos" (p.13).

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Como será demonstrado, ocorria uma certa confusão entre o que inexiste e o que é nulo.

Não obstante, a categoria da inexistência e os pressupostos de um ato, ou re­lação processual, são de fundamental importância teórica e prática. Pontes de Mi­randa afirma que "dizer que o legislador pode destruir a separação entre inexis­tência e nulidade é o mesmo que supô-lo apto a, por exemplo, decretar mudança de sexo ou abrir audiência na lua". 4 4

A teoria da inexistência surgiu no âmbito do direito privado, na França, no início do século XIX, desenvolvida por Zacharie, com o intuito de, segundo Cal­m o n de Passos, "justificar a ineficácia total de certos atos praticados no campo do direito de família e que não era explicada pela teoria das nulidades". 4 5

Zacharie, segundo Roque Komatsu:

(...) distinguiu as condições de existência e as condições de validade, designando aque­las como as resultantes da natureza própria das coisas e as últimas, como condições fixadas pela lei, ou seja, quaestio facti (verificação do evento que a lei designa como casamento) e quaestio júris (verificação da validade e eficácia jurídicas). 4 6

A existência está ligada a elementos relacionados de fato à natureza ou obje­to do ato. Já a validade refere-se à obediência à previsão ou proibição legal.

Essa teoria começou a ser impugnada e questionada, ainda no final do sécu­lo XIX e na primeira metade do século XX, no próprio meio do direito privado, onde surgiu.

Orlando Gomes chega a falar que a "teoria da inexistência é tida como cons­trução inút i l" 4 7 e fundamenta sua objeção no fato de que, na prática, "é indife­rente que o obstáculo à validade de negócio jurídico seja de ordem natural ou legal. Em qualquer hipótese, não valerá". 4 8

No processo, entretanto, a idéia de existência é admitida de forma quase unâ­nime. Segundo Couture:

0 conceito da inexistência é utilizado, portanto, para designar uma coisa que carece daqueles elementos que são a própria essência e vida do ato; um 'quid' incapaz de qualquer efeito. A seu respeito só se pode falar por meio de negativas, já que o con-

4 4 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Op. cit., t.III, p.353. 4 5 Idem. A nulidade no processo civil, p.49. 4 6 KOMATSU, Roque. Da invalidade no processo civil, p.155. 4 7 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, p.470. 4 8 Ibidem.

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ceito de inexistência é uma idéia convencional que significa a negação de tudo o que pode constituir um objeto jurídico.49

Frederico Marques também defende que:

Atos processuais se apresentam que, pela absoluta dissonância que há entre eles e o respectivo modelo legal, não possuem existência jurídica. A esses atos dá-se a deno­minação de atos processuais inexistentes.50

Não se pode, dessa forma, negar a categoria dos atos inexistentes, que são aqueles que não reúnem os pressupostos essenciais à sua inclusão no universo ju­rídico como ato de determinado tipo. São os não-atos que não devem ser exami­nados do ponto de vista da validade e produção de efeitos, porque não existem.

Lê-se n o Vocabulaire Juridique, de Henri Capitant, que a inexistência de u m ato resulta da ausência de u m dos elementos constitutivos essenciais à sua formação. 5 1

O ato nulo, ao contrário, é inválido e não produz efeitos, não porque não exis­te, mas porque não atendeu a determinado requisito legal.

O ato inexistente, não obstante fale-se que esteja viciado, com o intuito de facilitar a explicação, tecnicamente não pode ser considerado viciado ou defei­tuoso, uma vez que não existe, e, ao que não existe, não pode ser atribuído nada, muito menos falhas.

A postura adequada frente ao ato inexistente, portanto, é a da indiferença. Se, porventura, o ato juridicamente inexistente produzir efeitos no m u n d o real, deve-se reagir a eles, mas não ao próprio ato. O que pode vir a ser feito, contra o ato, é a declaração da sua inexistência.

Por ser u m nada no m u n d o jurídico, u m não-ato não precisa estar previsto no ordenamento jurídico. Calmon de Passos assim entende e justifica:

Disso se deduz não precisarem ser postas em norma pelo legislador as causas de ine­xistência, visto como elas são extraídas ou dos expressos ditames da lei, ou dos prin­cípios gerais do direito, ou de todo o complexo do sistema legislativo, ou de um ramo jurídico particular, representadas pelos elementos que são indispensáveis para a constituição de um ato, de maneira que, quando um falta ou é viciado, desnatura-se o ato, sendo supérfluo que a lei o diga inexistente, porque a sua inexistência jurí-

COUTURE, Eduardo J. Op. cit., p.302. MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil, v.II, p.400. CAPITANT, Henri. Vocabulaire juridique, p.285. "Inexistence. Défaut d'existence d'un acte juridique résultantde Vabsence d'un des éléments constitutifs essentiels à saformation".

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dica é evidente; não há necessidade de que a lei diga que aquilo que é branco não pode ser negro; assim como é supérfluo que a lei declare nulo o ato inexistente, no sentido de fazê-lo improdutivo de efeitos jurídicos. 5 2

Afirmamos que a inexistência jurídica é categoria nova, o que pode ser atri­buído ao fato de não ter sido tratada de forma separada da nulidade. Roque Ko-matsu reconhece a confusão entre os conceitos e afirma que se "o vocábulo ine­xistência era usado, só o era com o fim de expressar a carência absoluta de efeitos do ato nulo". 5 3

Alertamos que, até hoje, fala-se, na maior parte das vezes, em nulidade, ao invés de inexistência, porque:

a) a própria separação entre os planos da existência e da validade foi controvertida;

b) o desenvolvimento da teoria da inexistência é posterior ao desenvolvi­mento da teoria das nulidades, ou invalidades;

c) confunde-se, por vezes, nulidade ipso iure e inexistência.

5.2 Nulidade

5.2.1 Nulidade e sanção Superado o exame da existência de um ato, ou de uma relação jurídica, o pró­

ximo passo é a verificação da validade, que diz respeito ao preenchimento de cer­tos requisitos exigidos por lei para a sua perfeita realização.

Se o ato, ou relação, existente é imperfeito, não correspondendo à prescri­ção legal estabelecida, há de ser eliminado do m u n d o jurídico, ou corrigido. O vício não deve subsistir. O ato imperfeito sofre, assim, uma sanção (não eficácia, ou não produção de efeitos).

A nulidade é uma sanção imposta ao ato viciado pelo descumprimento dos requisitos determinados para a sua validade e deve sempre ser declarada judicialmente.

Há autores que defendem não ser a nulidade uma sanção. Pontes de Miran­da afirma que:

Nulidade não é pena, posto que as leis e os juristas digam, a cada passo, "sob pena

de nulidade". É conseqüência da violação da lei de forma a que se atribuiriam, se

PASSOS, José Joaquim Calmon de. Op. cit, p.57. KOMATSU, Roque. Op. cit., p.154.

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nula não fosse, algum ou alguns efeitos. As penas são outras conseqüências, que às vezes concorrem com a de nulidade. O infrator sofre as duas, talvez mesmo a de nuli­dade e duas ou mais penas. A lei processual evitou aí a palavra "pena", e pôs sim­plesmente "cominação". 5 4

Roque Komatsu também entende não ser a nulidade uma sanção. Faz cons­trução a partir das normas potestativas e conclui que a nulidade, reverso de váli­do, opera no plano do tipo, e a sanção é o resultado da determinação de que se observou (ou não) o tipo, e que as normas de dever prescrevem. 5 5

Nosso ponto de vista é outro. A nulidade é uma sanção. A lei processual é imperativa e deve ser cumprida. O ato, ou a relação, devem

corresponder às determinações estabelecidas no ordenamento jurídico. Não o fazendo, a lei prevê que não produzirá seus efeitos.

A regra sancionadora, por sua vez, impõe, como conseqüência, medidas es­tabelecidas para o descumprimento dos preceitos imperativos.

A nulidade é fruto de pronunciamento judicial, e é decretada quando há o descumprimento dos preceitos legais imperativos. É, portanto, sanção, e torna ineficaz o ato, ou a relação, impedindo a produção regular de efeitos.

Até que a nulidade seja decretada, entretanto, o ato é válido. Couture bem ressalta que o ato tem uma "espécie de vida artificial até o dia da sua expressa invalidação". 5 6

Calmon de Passos também defende ser a nulidade uma sanção, assim como José Frederico Marques. 5 7 Segundo o processualista baiano:

[...] o vício, a imperfeição do ato é um estado anterior ao estado de nulo. 0 ato, por sua atipicidade, se faz viciado, ou imperfeito, não porém nulo. E enquanto viciado e imperfeito, desviado do tipo, êle é ato que produz efeitos, é ato válido, eficaz. Toda­via, porque viciado e porque imperfeito, a lei, que dá ao tipo relevância jurídica, fa­

lo susceptível de impugnação, para, mediante pronunciamento judicial, merecer ou não a sanção da nulidade, isto é, a sua transformação de ato defeituoso, atípico, em ato nulo, ato ineficaz. 0 estado de nulo é um estado posterior ao pronunciamento judicial, é o estado do ato após a aplicação da sanção, que é a nulidade.

5 4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, t.III, p.365.

5 5 KOMATSU, Roque. Op. cit., p.189. 5 6 COUTURE, Eduardo J. Op. cit., p.303. 5 7 MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil, v.II, p. 117.

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Só os atos inexistentes são ineficazes intrinsecamente, porque intrinsecamente im­potentes para a produção de qualquer efeito. Todos os atos processuais, entretanto, são eficazes, e a eficácia própria deles somente pode ser retirada com a aplicação, pelo juiz, da sanção legal da nulidade. 0 ato não é nulo pela sua imperfeição cons­titutiva, por sua atipicidade (muitos são, no processo, os atos atípicos e eficazes), sim pela ineficácia derivada do pronunciamento judicial, impondo a sanção da lei, em face da relevância do defeito, do vício, em resumo, da atipicidade. 5 8

5.2.2 Nulidades de forma e de fundo A lei processual estabelece formas 5 9 que devem ser observadas, formas essas

essenciais na medida em que trazem previsibilidade ao sistema. O desrespeito a elas pode levar, como visto, à imperfeição do ato e à conse­

qüente decretação de sua nulidade. Mas não apenas isso, acarreta a sanção, pois os vícios podem decorrer, além

da forma, também da substância. As nulidades dividem-se, portanto, em nulida­des de forma e de fundo. Segundo Calmon de Passos:

0 termo forma, por mais extensão que se lhe dê, apenas pode incluir os elementos extrínsecos do ato, traduzindo seu aspecto exterior. E o direito processual é mais que regulamentação de forma, é regulamentação de atividade, isto é, do conteúdo e da forma do comportamento dos sujeitos no processo.60

Ao lado dos vícios formais, que, segundo Roque Komatsu, "abrangem as cir­cunstâncias de lugar, tempo e meios de expressão", 6 1 há os vícios de fundo, estra­nhos à estrutura externa do ato.

PASSOS, José Joaquim Calmon de. Op. cit., p.73. É interessante observar a distinção feita por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira entre forma em sentido amplo, em sentido estrito, e formalidades. Forma em sentido estri­to diz respeito à maneira como o ato deve exteriorizar-se e aos requisitos a serem obser­vados na sua celebração. Formalidades são as circunstâncias extrínsecas ao ato, que delimitam os poderes dos sujeitos e organizam o processo (lugar, tempo...). Forma em sentido amplo, ou formalismo, é a totalidade formal do processo, "compreendendo não só a forma, ou as formalidades, mas especialmente a delimitação dos poderes, faculda­des e deveres dos sujeitos processuais, coordenação de sua atividade, ordenação do procedimento e organização do processo, com vistas a que sejam atingidas suas fina­lidades primordiais". {Do formalismo no processo civil, p.7) Ibidem, p.72. KOMATSU, Roque. Op. cit., p.220.

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Henri Capitant, ao definir nulidade, já afirma ser a ineficácia de u m ato jurí­dico resultante da ausência de uma das condições de fundo ou de forma essen­ciais à sua validade. 6 2

Quanto à vontade, no processo civil, não é levada em consideração. Calmon de Passos bem demonstra que a vontade é elemento essencial constitutivo do ato, não da sua estrutura executiva. E ao tipo (ato na sua integridade), só a execução interessa. Conclui o ilustre professor que "porque o problema da nulidade é pro­blema de sanção à atipicidade, faz-se estranho ao tema das nulidades processuais o exame dos vícios da vontade". 6 3

Se decorrente de vício de forma, o ato pode ser absoluta ou relativamente nulo, como tratado a seguir.

Frente à instrumentalidade das formas - toda forma objetiva a consecução de um fim - , é interessante observar a importância do art. 244 do Código de Pro­cesso Civil brasileiro, 6 4 e a tendência a que todos os vícios de forma provoquem nulidades relativas, ao invés de absolutas.

A nulidade será absoluta, por vício de forma, somente se prevista em lei, frente ao disposto no referido artigo.

Entretanto, as nulidades de fundo são sempre absolutas e relacionam-se aos requisitos de validade do ato, ou da relação processual, e às condições da ação. 6 5

Enquanto no Brasil é feita a distinção no plano doutrinário, merece referên­cia o Código de Processo Civil francês, que expressamente divide as nulidades dos atos em de fundo e de forma.

Nos termos do art. 117 do Code de Procédure Civile,66 constituem irregulari­dades de fundo que afetam a validade do ato:

a) A falta de capacidade para agir em juízo;

CAPITANT, Henri. Op. cit., p.347. Tradução nossa. No original lê-se: "Nullité - Ineffica-cité á'un acte juridique résultant de Vabsence de Vune des conditions defond ou de forme requisespour as validité." PASSOS, José Joaquim Calmon de. A nulidade no processo civil, p.74. Art. 244. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade. Teresa Arruda Alvim Wambier adota classificação semelhante. Op. cit., p.157. Art. 117. Constituent des irrégularités defond affectant la validité de Vacte: a) Le défaut de capacite d'ester em justice; b) Le défaut depouvoir d'unepartie ou d'une personne figurant au procès comme représen-tant soit d'une personne morale, soit d'une personne atteinte d'une incapacite d'exercice; c) Le défaut de capacite ou de pouvoir d'une personne assurant la représentation d'une partie em justice.

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INEXISTÊNCIA, NULIDADE E IRREGULARIDADE NO PROCESSO CIVIL 43

b) A falta de mandato de uma das partes ou de uma pessoa figurante no processo como representante legal, seja de uma pessoa jurídica, seja de uma pessoa relativamente incapaz;

c) A falta de capacidade ou do mandato do representante de uma das par­tes em juízo.

É importante a distinção entre nulidades de forma e de fundo, principalmen­te tendo em vista a conseqüência que a sua decretação acarreta.

Caso se esteja diante de ato decisório viciado, recorre-se dele para instância superior se o vício for de fundo. O órgão ad quem decreta a nulidade e extingue o processo.

Todavia, se o vício for de forma, por estar relacionado a elemento exterior ao ato, a nulidade é decretada e determina-se o retorno dos autos ao juízo de origem 6 7

para nova apreciação. Justificativa para a extinção, no caso de vício de fundo, é o fato de que o pro­

cesso torna-se totalmente inadequado ao fim pretendido. Faz-se necessário, por­tanto, até por economia processual, pôr-lhe fim. Note-se a previsão do art. 267, parágrafo 3 o , do CPC, 6 8 no sentido de que o juiz pode conhecer de ofício de ques­tões relativas a pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do proces­so, a pressupostos extrínsecos de validade (perempção, litispendência e coisa jul­gada) e a condições da ação e extinguir o processo sem julgamento do mérito.

Couture bem resume a diferença no tratamento dos dois tipos de vícios:

Deve ser diversa a conduta processual quando a nulidade se refere à forma e quan­do se refere ao fundo. Se a instância superior, chamada a conhecer de um recurso de

nulidade, verifica que a infração é referente à forma, deve fazer o que se chama tra­dicionalmente renvoi: mandar devolver os autos à instância inferior para que esta se pronuncie na forma legal. Tem-se por não praticado tudo o que é nulo, e se restitui a

causa ao ponto em que se achava no momento em que se consumou a nulidade. Isto é uma conseqüência necessária da nulidade por vício de forma, uma vez que é apli-

Cumpre destacar que não se está diante de caso de convalidação do vício. A decretação de nulidade pela instância superior e a determinação do retorno dos autos à origem não se confundem com convalidação ou sanabilidade, tanto que o vício foi constata­do e a nulidade decretada. Art. 267, parágrafo 3 o O juiz conhecerá de ofício, em qualquer tempo e grau de juris­dição, enquanto não proferida a sentença de mérito, da matéria constante dos ns. IV, V e VI; todavia, o réu que a não alegar, na primeira oportunidade em que lhe caiba falar nos autos, responderá pelas custas de retardamento.

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cavei ao direito processual o princípio da teoria geral, de que a nulidade de um ato acarreta a invalidez de todos os atos posteriores que dele dependam. Por outro lado, quando a nulidade seja de fundo, como então o vício não está no pro­cesso mas na própria sentença, o juiz da nulidade assume ambos os poderes do juiz de apelação e profere a sua decisão 'como entender de direito e justiça'. 6 9

5.2.3 Nulidades absolutas e relativas O ato nulo é o que contém os vícios mais graves após a inexistência. Entre eles

há u m escalonamento entre os absolutamente e os relativamente nulos. O ato inexistente nem chega a compor a categoria dos atos jurídicos. Já o ato

absolutamente nulo existe, mas está afetado de forma grave por u m vício. A sua efi­cácia só cessará, entretanto, quando houver pronunciamento judicial a respeito.

As nulidades absolutas não podem ser sanadas, e qualquer ato que delas de­penda é também nulo. Segundo Couture:

0 ato absolutamente nulo tem uma espécie de vida artificial até o dia da sua expres­sa invalidação; mas a gravidade mesma do seu defeito impede que sobre êle se ba­seie qualquer outro ato válido.

A fórmula seria, pois, a de que a nulidade absoluta não pode ser sanada, mas preci­sa ser declarada. 7 0

O critério diferenciador reside no interesse tutelado pela norma desrespeita­da. Se tutelar interesse público, a nulidade é absoluta. Se tutelar interesse de cunho privado, é relativa.

É importante lembrar que o processo é ramo do direito público, e a jurisdi­ção possui objetivos não apenas jurídicos, mas também sociais e políticos. Em to­das as normas processuais há, dessa forma, u m interesse público, uma finalidade de direito inerente ao papel do Estado.

Ao falar das nulidades relativas decorrentes da violação de normas que tu­telam interesses privados, não se pode olvidar que uma carga de interesse público sempre está presente. Deve-se entender que elas decorrem, portanto, de infrin-gência a dispositivos que tutelam, de preferência, interesses privados.

Galeno Lacerda destaca que se na norma violada "prevalecerem fins ditados pelo interesse público, a violação provoca a nulidade absoluta, insanável, do ato". 7 1

6 9 COUTURE, Eduardo J. Op. cit., p.313. 7 0 Ibidem, p.303. 7 1 LACERDA, Galeno. Op. cit., p.72.

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INEXISTÊNCIA, NULIDADE E IRREGULARIDADE NO PROCESSO CIVIL 45

No entanto, continua o autor, quando "a norma desrespeitada tutelar, de prefe­rência, o interesse da parte, o vício do ato é sanável. Surgem aqui as figuras da nulidade relativa e da anulabilidade". 7 2

Conforme já mencionado, há autores que fazem a distinção entre anulabili­dade e nulidade relativa. Galeno Lacerda é um deles, e faz repousar o critério di-ferenciador na natureza da norma violada. Se for de natureza cogente, trata-se de nulidade relativa, e, se for dispositiva, de anulabilidade.

A importância da distinção estaria na possibilidade de o vício ser sanado de ofício. Na nulidade relativa, o vício pode ser sanado de ofício, o que não ocorre nos casos de anulabilidade.

Frederico Marques também adota essa distinção e destaca que:

Do ato processual nulo, distingue-se o ato processual anulável. Aquele nasce inefi­caz, embora possa convalidar-se ulteriormente (o que sucede em se tratando de nuli­dade relativa) -, ao contrário do ato anulável, que será considerado válido ou eficaz, enquanto não anulado. 7 3

No mesmo sentido entende Chiovenda, para quem a própria lei processual prevê que "um vício na relação processual tem de ser argüido de ofício pelo juiz (nulidade), ou que se pode declarar a pedido da parte (anulabilidadey.74

Entendemos, assim como Pontes de Miranda, não ter importância prática essa distinção, devendo as nulidades serem divididas apenas em relativas ou absolu­tas, face à sistemática adotada pelo nosso ordenamento.

A nulidade absoluta, por relacionar-se a infringência de norma de interesse público:

a) pode ser argüida a qualquer tempo; b) pode ser suscitada de ofício, pelo juiz; 7 5

c) os atos eivados de nulidade absoluta transitam em julgado material­mente.

A nulidade relativa, que se relaciona ao descumprimento de norma disposi­tiva, protetiva, de preferência de interesse particular:

7 2 Ibidem. 7 3 MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil, v.II, p.l 19. 7 4 CHIOVENDA, Giuseppe. Op. cit., p.325. 7 5 Nesse sentido, o parágrafo único do art. 245 do CPC: Não se aplica esta disposição às

nulidades que o juiz deva decretar de ofício, nem prevalece a preclusão, provando a parte legítimo impedimento.

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a) deve ser suscitada pela parte prejudicada (que não deu causa à nulidade); 7 6

b) deve ser argüida em oportunidade própria; c) se a parte prejudicada não argüir, os atos relativamente nulos são aco­

bertados pela eficácia preclusiva. 7 7

As nulidades absolutas, portanto, não convalidam (dentro da relação pro­cessual), já que podem ser argüidas por qualquer parte e até mesmo de ofício. Ao contrário, as nulidades relativas podem vir a ser convalidadas se suscitadas opor tunamente . .

O significado de que os atos relativamente nulos são acobertados pela eficá­cia preclusiva é o de que, se não argüidos em tempo, há a perda da faculdade de a parte prejudicada suscitá-los; ocorre a preclusão.

Com as nulidades absolutas isso não ocorre, podendo ser suscitadas a qual­quer tempo e a qualquer grau.

A afirmação de que os atos absolutamente nulos não transitam em julgado materialmente significa que não estão sujeitos à preclusão e não são convalida-dos pela inércia da parte. O ato absolutamente nulo, assim, transita em julgado eivado de vícios (são então sanados com a condição de não serem impugnados dentro do prazo de dois anos da ação rescisória).

Isso traz a seguinte conseqüência: os atos absolutamente nulos podem ser objetos de ação rescisória, mesmo que não impugnados por recurso na época pró­pria. Vale dizer que se a nulidade é relativa e não foi objeto de recurso, ocorre a preclusão, e a decisão viciada é convalidada e não pode ser atacada pela via res­cisória. No que tange às nulidades absolutas, o vício não convalida dentro da re­lação processual e, formada a coisa julgada material, a via rescisória é meio hábil para impugnar a decisão.

Em qualquer das hipóteses, de nulidade absoluta ou relativa, entretanto, a nulidade é sanada, seja pela preclusão, seja pelo trânsito em julgado material da decisão, hipótese em que, ultrapassado o prazo para a propositura da ação resci­sória, há a "sanatória geral".

Quanto à afirmativa de que as nulidades absolutas podem ser argüidas em qualquer tempo e qualquer grau de jurisdição, vale destacar que os Tribunais Supe-

Nesse sentido, o art. 243 do CPC: Quando a lei prescrever determinada forma, sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa. Art. 245. A nulidade dos atos deve ser alegada na primeira oportunidade em que cou­ber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão.

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INEXISTÊNCIA, NULIDADE E IRREGULARIDADE NO PROCESSO CIVIL 47

riores têm exigido o preenchimento do requisito do prequestionamento também quanto às nulidades absolutas. Merece referência o seguinte aresto:

Ementa: Recurso especial - Prequestionamento.

Mesmo as nulidades absolutas não poderão ser examinadas no especial se a maté­ria pertinente não foi, de qualquer modo, cogitada pelo acórdão recorrido, excetuan­do-se apenas aquelas que decorram do próprio julgamento (STJ, REsp. 3409/AL, Rei. Min. Eduardo Ribeiro, DJ 19/11/1990).

O fundamento de que os Tribunais Superiores não podem examinar maté­ria que não esteja posta na decisão recorrida é forte. E o fato de não abrirem ex­ceção quanto à análise de nulidades absolutas não versadas e discutidas na ins­tância a quo não causa estranheza, face às tendências de estreitamento das vias de acesso às instâncias extraordinárias.

Fica nossa ressalva de opinião, no sentido de que as nulidades absolutas de­veriam ser conhecidas de ofício em qualquer grau, independentemente de pre­questionamento, por decorrerem de imperfeições tão grandes e gritantes que o ato não deveria produzir efeitos, ous seja, ser eficaz.

Para o processo, o prejuízo decorrente do não exame das argüições de nuli­dades absolutas é muito maior do que o de um Tribunal Superior examinar alguns poucos processos a mais, no universo do que lhes é levado à apreciação.

Por fim, é importante lembrar a diretriz adotada pelo Código de Processo Ci­vil pátrio, de valorização da finalidade do ato, da necessidade de causar prejuízo e de aproveitamento dos não-viciados. 7 8

Art. 244. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade -para casos de nulidade relativa, conforme já exposto supra. [...] Art. 248. Anulado o ato, reputam-se de nenhum efeito todos os subseqüentes, que dele dependam; todavia, a nulidade de uma parte do ato não prejudicará as outras, que dela sejam independentes. Art. 249. O juiz, ao pronunciar a nulidade, declarará que atos são atingidos, ordenan­do as providências necessárias, a fim de que sejam repetidos, ou retificados. Parágrafo I o O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a parte. Parágrafo 2 o Quando puder decidir do mérito a favor da parte a quem aproveite a declaração da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato, ou suprir-lhe a falta.

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5.2.4 Nulidades cominadas e não-cominadas A doutr ina também distingue as nulidades em cominadas e não-cominadas. Cominadas são aquelas expressamente previstas em lei. Por exemplo, "se não

atendido o requisito A, o ato é nulo". No Código de Processo Civil, o art. 246 traz a hipótese de nulidade cominada no seu caput. se o Ministério Público não for in­t imado a acompanhar feito em que deveria intervir. 7 9

Roque Komatsu explica que o princípio da legalidade, ou seja, de que o ato pro­cessual só pode ser declarado nulo se a lei expressamente cominar a sanção de nuli­dade, foi consagrado no sistema brasileiro até o advento do Código de Processo Ci­vil de 1939, a partir do qual "abandonou-se a discriminação dos casos de nulidade. Mas não se fugiu à distinção entre nulidade cominada e nulidade não-cominada". 8 0

As nulidades cominadas nem sempre são absolutas. Há hipóteses de nulida­des cominadas que são relativas 8 1 e absolutas. 8 2

Segundo Egas Dirceu Moniz de Aragão, a "natureza do vício não se altera, por estar ou não-cominada na lei a nulidade do ato assim praticado". 8 3

Quando tratadas as nulidades de forma, destacou-se a importância do art. 243 do Código de Processo Civil, o qual prevê que se a lei prescrever determina­da forma, sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa.

O artigo refere-se a casos de nulidades cominadas. E, se for relativa, a parte que deu causa não pode argüi-la.

O art. 244 do mesmo Diploma consagra o princípio da finalidade e refere-se a casos de nulidades não cominadas: se a lei não prever sanção de nulidade para o descumprimento de determinada forma, o juiz poderá considerar válido o ato se, realizado de outro modo, alcançar a finalidade.

Roque Komatsu conclui que "fora do âmbito da incidência do art. 244 só se encontram as hipóteses de nulidades cominadas". 8 4

Art. 250. O erro de forma do processo acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem necessários, a fim de se observarem, quanto possível, as prescrições legais.

7 9 Art. 246, caput, do CPC: É nulo o processo, quando o Ministério Público não for in­timado a acompanhar o feito em que deva intervir.

8 0 KOMATSU, Roque. Op. cit., p.211. 81 V.g. art. 11, parágrafo único, 13,1, 84,1, 236, parágrafo I o . 82 V.g. art. 113, parágrafo 2 o . 8 3 ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Op. cit., p.276. 8 4 KOMATSU, Roque. Op. cit., p.214.

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5.3 Irregularidades

O vício menos grave do ato ou da relação processual provoca a sua irregu­laridade.

Segundo Frederico Marques, ato processual irregular "é aquele afetado por pequenos vícios de forma que em absoluto afetam a sua validade". 8 5

Quem melhor trata das irregularidades é Carnelutti, que parte da distinção entre os vícios essenciais e acidentais, feita segundo a importância dos requisitos do ato.

O desrespeito a requisitos necessários do ato ocasiona vícios essenciais e a sua conseqüente nulidade, ao passo que as violações a requisitos úteis do ato acarretam os vícios acidentais (não essenciais) e constituem irregularidades. Nas palavras do processualista italiano:

Por tanto, si el acto respecto aí que se produce un vicio no esencial, no es nulo, existe sin embargo, entre él y el acto inmune incluso de esse vicio, una diferencia que conviene de­signar com un nombre. A esse acto se le llama irregular.'1''

Carnelutti adverte, ainda, que o ato irregular pode ter o mesmo valor do re­gular, o que não é regra, pois a irregularidade pode estar relacionada aos efeitos do ato regular e produzir outros que não se haveriam produzido:

No hace falta creer que la irregularidad sirva para designar un modo de ser dei acto ju­ridicamente intranscendente, en el sentido de que el acto irregular tenga el mismo va­lor jurídico que el acto regular. Existen casos em que elle es cierto, pero no constituyen la regia, precisamente, si el acto irregular determina los efectos dei acto regular, produ­ce también otros que sin el vicio no se habrián producido; por tanto, entre irregulari­dad e ineficácia media casi una antítesis, puesto que, en el primer caso, el acto vicia­do produce un plus y no un minus de efectos en comparación com el acto no viciado.117

Cumpre destacar que há processualistas, como Couture, que falam em irregu­laridade como gênero, e inexistência e nulidade como espécies. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, em sua Teo­ria geral do processo,™ também adotam essa mesma posição e dizem haver quatro

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil, v.II. p.409. CARNELUTTI, Francesco. Sistema de derecho procesal civil, v.III, p.561-2. Ibidem, p.562. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p.339.

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grupos de irregularidades: as sem conseqüência, as que acarretam sanções extra-processuais, as que acarretam nulidade e as que acarretam inexistência jurídica.

Calmon de Passos nota essa questão terminológica e defende ser "ineficácia" o gênero do qual a inexistência e a nulidade são espécies. "A irregularidade está fora, porque é u m defeito na estrutura do ato sem reflexos na sua eficácia."8 9

É opor tuna a explicação de Calmon de Passos. De fato, a irregularidade pode ser entendida não como espécie do gênero ineficácia, porque o ato ou a relação não chegam a ser atingidos na sua estrutura. Não haveria, portanto, nenhuma in­terferência intrínseca que afetasse a possibilidade de produção de efeitos do ato.

De qualquer forma, a produção de efeitos pode ficar comprometida, ainda que não pela ausência de requisitos essenciais de validade do ato, como destaca Carnelutti, mesmo que de forma branda.

Frederico Marques distingue as irregularidades que podem e as que não po ­dem ser reparadas. Quando se trata destas últimas, "o juiz poderá aplicar sanções disciplinares previstas nas leis de organização judiciária". 9 0

Segundo Roque Komatsu:

Nem todas as irregularidades são passíveis de regularização. Algumas são reparáveis ou corrigíveis e outras, irreparáveis ou incorrigíveis. Nestas se enquadra a decorren­te da inobservância dos prazos impróprios (pelo juiz ou por seus auxiliares) e naque­las, a representada pela ausência de rubrica ou numeração de folhas pelo escrivão.9 1

6. PRINCÍPIOS NORTEADORES DAS NULIDADES PROCESSUAIS92

6.1, Princípio da finalidade

Por este princípio, deve-se valorizar mais a finalidade, ou o objetivo, do ato do que a sua forma.

PASSOS, José Joaquim Calmon de. A nulidade no processo civil, p.79, nota n. 74. MARQUES, José Frederico. Op. cit., v.II, p.409. KOMATSU, Roque. Op. cit., p.168. As normas jurídicas dividem-se em regras e princípios. Estes, que são mais abertos que as normas, comportando uma série de hipóteses fáticas, podem ser positivados ou gerais do direito. Eros Roberto Grau (A ordem econômica na Constituição de 1988) bem explica que os positivados, inerentes a cada ordenamento jurídico, podem já ter sido gerais do direito e de lá foram resgatados. No presente tópico, tratar-se-á dos prin­cípios positivados e previstos no ordenamento jurídico brasileiro.

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O art. 154, 9 3 do Código de Processo Civil consagra a instrumentalidade das formas.

Se atingida a finalidade do ato, são consideradas sanadas as infrações de forma.

No nosso direito observa-se uma mitigação desse princípio. O art. 244 do CPC estabelece que o ato praticado sem respeito à forma, caso alcance a finalida­de, será considerado válido, desde que a nulidade não esteja cominada em lei. Se a nulidade estiver expressamente prevista, não prevalece o princípio.

Os atos inexistentes e os eivados de vícios que acarretam a nulidade absolu­ta também não são atingidos por essa norma; os primeiros não são atos proces­suais, e os segundos porque contêm vícios insanáveis, em decorrência de infra­ção de norma protetiva de interesse público.

6.2 Princípio da especificidade

Este princípio teve origem na reação ao excessivo formalismo e na solenida­de do procedimento romano. Qualquer norma procedimental descumprida ou o mínimo desrespeito à forma levava à anulação (declaração de inexistência) do ato.

As legislações começaram, então, a prever as nulidades. O que não está pre­visto como nulo não o é. Roque Komatsu demonstra que, com isso, "se limitavam os poderes judiciais". 9 4

Esse princípio também sofre limitações no nosso sistema em face da não cominação de todas as nulidades.

Teresa Arruda Alvim Wambier explica o porquê de o ordenamento não ser exaustivo na enumeração das nulidades:

0 argumento que nos parece fundamental e decisivo, no sentido de se demonstrar ser impossível a interpretação rígida deste princípio, segundo o qual não pode haver nulidade se não for expressamente prevista em lei, é o de que é impossível, ou, pelo menos, muito difícil, que o legislador preveja todos os casos em que os vícios dos atos

jurídicos sejam de tal porte a ponto de serem aptos a torná-los nulos. Não se trata de uma "escolha" legislativa como a dos integrantes do elenco dos títulos executivos

Art. 154. Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial. KOMATSU, Roque. Op. cit., p.240.

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extrajudiciais ou dos direitos reais. Esta escolha tem outra natureza - para que a lei fosse taxativa, numa linguagem leiga, deveria ser factível conceberem-se todos os

possíveis vícios graves de que pudesse padecer um ato jurídico. Seria como se um médico tivesse que conceber todas as doenças possíveis, num plano abstrato. Numa perspectiva de fora do sistema, ter-se-ia de admitir que, se ao legislador tivesse "es­

capado" uma determinada hipótese, uma vez se tendo configurado concretamente, tratar-se-ia então de uma anulabilidade? Ou de um caso de inexistência? Ou de um ato imaculado? 9 5

6.3 Princípio do prejuízo

O Código de Processo Civil consagra este princípio no parágrafo I o do art. 2 4 9 % e no parágrafo único do art. 250. 9 7

Só a parte que sofre prejuízo com o ato pode invocar o vício que o atinja e requerer a decretação da sua nulidade.

Esse princípio não alcança os atos inexistentes e os atos absolutamente nu­los, cuja nulidade pode ser argüida por qualquer dos sujeitos processuais.

Segundo Roque Komatsu:

A existência do prejuízo deve ser concreta e devidamente evidenciada. A mera inter­venção genérica de que se violou o direito de defesa em juízo não satisfaz nem su­pre a exigência de indicar, ao tempo de promover-se o incidente de nulidade e como um requisito de admissibilidade, qual é o prejuízo sofrido, as defesas de que se viu privado ou as provas que não pôde produzir. Não bastam, para que a nulidade pro­cessual seja procedente, a existência de um vício e a ineficácia do ato, se a omissão ou o ato defeituoso ou não prejudica os litigantes, que, apesar disso, exerceram suas faculdades processuais, ou não o fizeram porque não tinham defesa a opor ou nada a dizer ou a observar no caso. 9 3

Há a preocupação do legislador em não prejudicar a parte que não deu cau­sa à nulidade e em possibilitar a sua manifestação quando for atingida. Merece referência o parágrafo 2 o do art. 249, o qual espelha esse princípio, ao determinar

9 5 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Op. cit., p. 148. 9 6 Parágrafo I o O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a

parte. 9 7 Parágrafo único. Dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados, desde que não resul­

te prejuízo à defesa. 9 8 KOMATSU, Roque. Op. cit., p.241-2.

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que, se o juiz puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveite a decla­ração da nulidade, não a pronunciará nem mandará repetir o ato, ou suprir-lhe a falta.

No mesmo sentido, o parágrafo único do art. 250, segundo o qual os atos que possam ser aproveitados, em processo com erro de forma, só o serão se não causarem prejuízo à defesa.

6.4 Princípio da preclusão

A parte deve alegar a nulidade na primeira oportunidade que tiver para falar nos autos, sob pena de preclusão, conforme o caput do art. 245 do Código de Processo Civil.

O objetivo deste princípio é evitar que atos viciados se prorroguem, corrobo­rando para a celeridade processual, pois tão logo reconhecido o vício e decretada a sua nulidade, mais rápido obter-se-á um pronunciamento judicial definitivo.

Se a nulidade não for suscitada pela parte interessada, oportunamente, ocor­re a preclusão, não podendo mais ser argüida. Isso acontece em nome da seguran­ça e previsibilidade jurídicas, uma vez que o jurisdicionado não pode ser, a qualquer tempo, surpreendido com decretações de nulidade tardias, e o próprio processo, que tem também funções sociais e políticas, não pode desenvolver-se como que de forma provisória, sujeito a reconhecimentos, a qualquer tempo, de nulidades.

É claro que esse princípio não se aplica às hipóteses de nulidade absoluta e inexistência, que podem ser suscitadas a qualquer tempo.

6.5 Princípio da convalidação

Como visto anteriormente, há um momento no qual devem ser suscitadas as nulidades, sob pena de preclusão. Segundo o art. 245 do Código de Processo Civil, esta deve ser na primeira oportunidade para falar nos autos.

O efeito da não-argüição oportuna é a convalidação do a to . " Entende-se co­mo um consentimento da parte prejudicada à convalidação do ato viciado.

Mas a convalidação não se resume aos casos de omissão na impugnação do ato defeituoso. Os vícios processuais podem ser "consertados", aproveitados. Te­resa Arruda Alvim Wambier mostra exemplo que facilita a compreensão:

As nulidades absolutas e a inexistência, como exposto, não precluem.

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54 OSMAR MENDES PAIXÃO CORTES

[...] Assim, por exemplo, se alguém intenta determinada ação, sem ter legitimidade para fazê-lo, e ninguém aponta esse defeito (= defeito de fundo, nulidade processual), se este alguém adquirir legitimidade no curso do processo, o defeito estará sanado. 0 processo, num caso como este, não poderá ser extinto sem julgamento do mérito porque a parte era ilegítima quando da propositura da ação. O vício se terá, num caso como este, se "sanado", não no sentido de que seria desconsiderado, ainda que subsis­tente, não no sentido de que o que viciado seria considerado como não mais o sendo, como ocorre, por exemplo, com vício da incompetência relativa, que, havendo pror­rogação, se "sana", mas como ocorre com a parte que, no princípio ilegítima, se torna, efetivamente, legítima.™0

Cumpre lembrar, entretanto, como exposto anteriormente, que todas as nu­lidades, com o trânsito em julgado da decisão, são sanadas porque operada a efi­cácia preclusiva ou devido ao trânsito em julgado material. O defeito da inexis­tência, no entanto, não é sanado jamais.

6.6 Princípio da conservação

No processo há sempre a intenção de se aproveitarem os atos. Nessa idéia re­side o princípio: salvar tudo o quanto for possível, em qualquer um dos planos. E a sua importância é grande, pois segundo Roque Komatsu:

A doutrina, na observação de Conso, costuma resumir todos os motivos de econo­mia, certeza jurídica, acrescente-se, de segurança e firmeza jurídica, neste genérico princípio dito de conservação dos atos imperfeitos. 1 0'

O Código de Processo Civil traz este princípio insculpido no art. 248, segun­da par te . 1 0 2 As partes não viciadas do ato anulado serão aproveitadas, desde que independentes.

O referido dispositivo menciona também o que se convencionou chamar de princípio da não contagiação da nulidade, que entendemos estar abrangido pelo princípio da conservação.

Note-se que a preocupação do legislador de 1973 foi tão grande que este não previu o aproveitamento do processo, mas do próprio ato viciado.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Op. cit., p.147. KOMATSU, Roque. Op. cit., p.248. Art. 248. Anulado o ato, reputam-se de nenhum efeito todos os subseqüentes, que dele dependam; todavia, a nulidade de uma parte do ato não prejudicará as outras, que dela sejam independentes.

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INEXISTÊNCIA, NULIDADE E IRREGULARIDADE NO PROCESSO CIVIL 55

O princípio da finalidade também reflete a mesma preocupação em eleger a segurança e a celeridade como valores de vital importância para o processo.

Exemplo da aplicação desse princípio é a disposição constante do parágrafo I o do art. 214 do CPC, no sentido de que o comparecimento espontâneo do réu supre a falta de citação.

6.7 Princípio da proteção

Segundo este princípio, só a parte que não deu causa à nulidade pode argüi-la, e é baseado na idéia de lealdade e na boa-fé processuais. A esse respeito, nos diz Egas Dirceu Moniz de Aragão:

A norma se aproxima do princípio, válido para o Direito Material, consagrado no bro-cardo nemo allegans propriam turpitudinem auditur, e tem por fim punir o dolo pro­cessual, impedindo que o causador do vício venha decliná-lo, a fim de lhe ser outor­gada posição de vantagem, decorrente da decretação da nulidade de seu próprio ato. 1 0 3

O Código de Processo Civil adota o princípio no art. 243, que não se aplica aos casos de nulidades absolutas e inexistência.

7. A EXISTÊNCIA, A VALIDADE E A EFICÁCIA DOS ATOS JURÍDICOS NO NOVO CÓDIGO CIVIL E OS REFLEXOS NO PROCESSO CIVIL

Como observado, e essa é a intenção do presente estudo, é possível traçar um paralelo entre a tricotomia existência-validade-eficácia do direito civil e a inexis­tência, a nulidade e a irregularidade do processo civil.

Há "vícios" graves, de formação, que podem atingir o ato processual na sua existência; outros, relativos a requisitos de validade do ato, podem afetá-lo tornan­do-o nulo; e os que podem apenas interferir na eficácia do ato, na sua aptidão para produzir efeitos (em função de condições externas à estrutura do ato), cau­sando irregularidades.

O Código Civil revogado não adotou expressamente a teoria da inexistên­cia, validade e eficácia. A doutrina, não obstante, durante toda a vigência do anti­go Diploma, desenvolveu e aperfeiçoou os três planos.

ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Op. cit., p.273.

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56 OSMAR MENDES PAIXÃO CORTES

Imaginava-se que o novo Código Civil fosse adotá-la, o que não ocorreu. Um dos autores do Anteprojeto do Código, o ministro José Carlos Moreira Alves, ao responder a crítica do professor Clóvis do Couto e Silva, deixou clara a opção ao registrar que "não se deve modificar a sistemática seguida no Anteprojeto, quanto aos negócios jurídicos, para ajustá-la, rigidamente, à tricotomia existên-cia-validade-eficácia".m

O mesmo autor destaca, ainda, que ao disciplinar o negócio jurídico, "não seguiu o Anteprojeto sistemática baseada na tricotomia (que não é tão moderna quanto pretendem alguns) existência-validade-eficácia, mas procurou respeitar, nas linhas fundamentais, a sistemática do Código em vigor". 1 0 5

Também Humber to Theodoro Júnior anota que o legislador preferiu não adotar a tricotomia dos planos da existência, validade e eficácia, incorrendo em falha:

0 legislador ignorou não só o avanço da ciência jurídica consolidado em amplo con­senso doutrinário, como desprezou a larga construção do direito comparado ao lon­go do século XX em torno dos planos da existência, validade e eficácia. Códigos anti­gos, como o da Argentina, v.g., passaram por reforma de texto, a fim de que a fraude contra credores tivesse seu regular enquadramento no plano de ineficácia relativa e não mais no campo da invalidade. 1 0 6

O que a ciência processual aproveitou, portanto, da teoria da existência, va­lidade e eficácia dos atos jurídicos para desenvolver a sistemática dos vícios da ine­xistência, nulidade e irregularidade, não adveio do direito positivo. No ponto, o novo Código em nada influencia diretamente o processo civil.

A sistematização lógica em vícios que atingem a existência, a validade e a efi­cácia do ato, no processo civil, criando as classes de inexistência, nulidade e irre­gularidade, permanece intacta.

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ALVES, José Carlos Moreira. A parte geral do projeto do Código Civil brasileiro, p.42. Ibidem, p.78. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil, v.III, t.I, p.18.

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A L E S Ã O N O S C O N T R A T O S E O P R I N C Í P I O D A P R O P O R C I O N A L I D A D E

PEDRO PAULO DE REZENDE PORTO FILHO*

Sumário 1. O princípio da proporcionalidade. 2. Da figura da lesão no Código Civil de 2002.

1. 0 PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

O princípio da proporcionalidade há tempos vem sendo reconhecido e des­tacado por juristas e por tribunais em razão de sua grande relevância como ins­t rumento jurídico para solução de conflitos.

Acontece que, historicamente, o nascimento e a evolução do princípio da pro­porcionalidade decorrem somente das relações públicas. Referido princípio era estudado pelos especialistas apenas como uma norma norteadora dos atos estatais.

O presente artigo pretende demonstrar que o princípio da proporcionalida­de também tem sua aplicação no campo privado, em especial com a edição do novo Código Civil.

No entanto, antes de adentrarmos o ponto central do presente estudo, deve­mos fazer algumas considerações preliminares fundamentais para a compreen­são desse princípio.

Cabe demonstrar, em primeiro lugar, a diferença entre princípios e regras de direito.

Os princípios: (i) são normas 1 com grau de abstração maior do que as re­gras; (ii) necessitam de mediadores, enquanto as normas de direito são aplicadas

Mestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Os princípios são normas que estão dispostas de modo expresso ou implícito no or­denamento jurídico. Nos debruçaremos sobre as lições de Norberto Bobbio: "A palavra

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60 PEDRO PAULO DE REZENDE PORTO FILHO

diretamente; (iii) são critérios axiológicos mais importantes que as regras. Apre­sentam posição superior de hierarquia no ordenamento jurídico; 2 (iv) estão ligados à idéia de "justiça", ou seja, são normas gerais de direito vinculados à manutenção da "justiça". Já as regras podem ser vinculadas a u m conteúdo funcio­nal; (v) são fundamentos das regras. Isto quer dizer que os princípios estão na base ou constituem a razão das regras de direito.

A distinção destacada vem sendo utilizada por importantes juristas. 3 Ocor­re, todavia, que a tarefa de promover tal distinção é bastante complexa, tendo em vista a dificuldade de se saber a real função dos princípios no ordenamento jurí­dico e se entre os princípios e regras existe uma diferença qualitativa.

O professor português, J . J . Gomes Canotilho, destacou muito bem a dife­rença qualitativa entre os princípios e as regras de direito, a qual transcrevemos:

Os princípios interessar-se-ão, aqui, sobretudo na sua qualidade de verdadeiras nor­mas, qualitativamente distintas das outras categorias de normas-as regras jurídicas. As diferenças qualitativas traduzir-se-ão, fundamentalmente, nos seguintes aspectos:

1) os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõem, per­mitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de DWORKIN: applicable

in all-or-nothing faschion); a convivência dos princípios é conflital (ZAGREBELSKY); a convivência de regras é antinómica. Os princípios coexistem; as regras antinómicas excluem-se; 2) conseqüentemente, os princípios, ao constituírem exigências de optimização, per­mitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à ló­gica do tudo ou nada), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios even-

princípios leva a engano, tanto que é velha a questão entre os juristas se os princípios gerais são normas. Para mim não há dúvida: os princípios gerais são normas como todas as outras". (Teoria do ordenamento jurídico. 6.ed. Brasília, UnB, p.158) Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello: "Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica em ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comando. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princí­pio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão dos seus valores fundamentais, contumélia irremissível ao seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra." (Curso de Direito Administrativo. 16.ed. São Paulo, Malheiros. p.818) CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6.ed Coimbra, Almedina; ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales; DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério.

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A LESÃO NOS CONTRATOS E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE 61

4 CANOTILHO, J. J. Gomes. Op. cit., p. 167. 5 A sub-regra exige a correta adequação entre o meio empregado e o fim desejado. 6 A sub-regra pressupõe que o meio empregado seja o menos gravoso para a parte. 7 A "proporcionalidade em sentido estrito" é a "lei da ponderação". Ela se refere a ins­

tituto jurídico da ponderação de valores histórico-sociais na hipótese de um conflito de interesses.

tualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exata medida das suas pres­crições, nem mais nem menos;

3) em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de har­monização, pois eles contêm apenas exigências ou standards que, em primeira linha {prima jade), devem ser realizados; as regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insustentável a validade simultânea de regras contraditórias;

4) os princípios suscitam problemas de validade e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas).4

Mas não é só isso. Como já dissemos anteriormente, os princípios apresentam uma outra difi­

culdade para o operador do direito. Qual é a sua função no sistema legal? Enten­demos que os princípios exercem várias funções em nosso ordenamento jurídico. Eles podem desempenhar função argumentativa ou, ainda, de normas de conduta.

Fixada a idéia de princípio, bem como sua função no ordenamento legal, pas­saremos agora a fazer considerações sobre o princípio da proporcionalidade.

Em uma concepção genérica, o princípio da proporcionalidade é a exigên­cia de que os atos estatais não estejam desprovidos de uma sustentação mínima de coerência. Já em uma visão mais restrita do referido princípio, pode-se dizer que ele é a adequada relação entre os meios e os fins.

Nesse passo, destacamos três elementos necessários e identificadores do prin­cípio da proporcionalidade, ou sub-regras: (i) a conformidade e a adequação dos meios utilizados; 5 (ii) a necessidade da medida adotada; 6 (iii) a proporcionalida­de em sentido estrito. 7

Nesse sentido, é emblemática a decisão do Tribunal Constitucional alemão, que, com precisão, fixa os elementos constitutivos do princípio da proporcionalidade:

0 meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atin­gido o fim almejado. 0 meio adequado, quando com o seu auxílio se pode promo­ver o resultado desejado; ele é exigível, quando o legislador não poderia ter escolhi-

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62 PEDRO PAULO DE REZENDE PORTO FILHO

do outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não prejudicial ou portador de

uma limitação menos perceptível a direito fundamental. 8

Ressalte-se que não estamos falando apenas de ato administrativo em sen­tido estrito. Depois da Segunda-Grande Guerra Mundial, os sistemas legais vigentes dos países europeus, em especial da Alemanha, introduziram o princí­pio da proporcionalidade no ordenamento jurídico em nível constitucional. Com a elevação do princípio da proporcionalidade, sua aplicação foi generaliza­da pela doutrina, alcançando todos os atos estatais, inclusive a edição de leis.

Dessa forma, a proibição do "excesso legislativo" passou, também, a ser estu­dada pelos doutrinadores sob o prisma do princípio da proporcionalidade. Nos­sos tribunais t ambém admitem o princípio da proibição do "excesso legislativo" como instrumento de verificação de leis.

Já decidiu nosso Supremo Tribunal Federal que:

Gás liqüefeito de petróleo: lei estadual que determina a pesagem dos botijões entre­gues e recebidos para substituição à vista do consumidor, com pesagem imediata de eventual diferença a menor: argüição de inconstitucionalidade fundada no art. 22m IV e VI (energia e meteorologia), 24 e pars., 25, par. 2,238, além das violação ao prin­cípio da proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direito: plausibili-dade jurídica da argüição que aconselha a suspensão cautelar da lei impugnada, a fim de evitar danos irreparáveis a economia do setor, no caso de vir declarar a in­constitucionalidade: liminar deferida.9

Para um correto entendimento do princípio da proporcionalidade, torna-se imprescindível estabelecer sua diferenciação com o princípio da razoabilidade. Aquele tem sua origem no direito público alemão, enquanto o da razoabilidade, nos tribunais anglo-saxônicos.

Enquanto o princípio da razoabilidade constitui um princípio essencialmen­te de interpretação jurídica, o da proporcionalidade vai além, sendo u m verda­deiro princípio jurídico-material. Além disso, o princípio da razoabilidade tem função negativa, enquanto o da proporcionalidade também assegura, de forma positiva, os interesses constitucionais. 1 0

8 BVerfGe 30, 316. Apud Gilmar Ferreira Mendes. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, disponível em www.direitopublico.com.br

9 STF, ADIn, Medida Cautelar, DJ 1/10/1993, relator Sepúlveda Pertence. 1 0 Tal distinção foi muito bem apontada por PONTES, Helenilson da Cunha, em O

princípio da proporcionalidade no direito tributário. São Paulo, Dialética, p.88-9. Des­tacamos, contudo, que não seguimos toda a diferenciação proposta pelo autor.

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A LESÃO NOS CONTRATOS E O PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE 63

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional/Celso Bastos, p.67. Nesse sentido, o princípio da proporcionalidade é instrumento hábil e eficaz para con­formar os direitos decorrentes de princípios fundamentais, por exemplo, a restrição ao direito de manifestação, previsto na Constituição Federal. É digno de citação o voto do ministro Gilmar Ferreira Mendes, extraído do polêmico habeas corpus, que teve

Não há como negar, contudo, que o princípio da razoabilidade está intima­mente ligado ao princípio da proporcionalidade. Na verdade, está inserido nesse último como a sub-regra "adequação".

Todo ato não razoável viola, necessariamente, o princípio da proporcionalida­de, mas nem todo ato desproporcional tem de violar o princípio da razoabilidade.

Feita essa distinção, passemos a analisar o princípio da proporcionalidade em nosso ordenamento jurídico. O princípio da proporcionalidade não é uma regra intuitiva, uma percepção, mas, sim, um "princípio de direito", devendo obedecer todos os requisitos de validade e eficácia.

No Brasil, o princípio da proporcionalidade não aparece expresso na Consti­tuição Federal de 1988, o que acarreta outra grande divergência entre os juristas.

Alguns estudiosos entendem que o princípio da proporcionalidade decorre da cláusula do devido processo legal, prescrito no art. 5 o , LIV, da Constituição Federal. Outros professores, contudo, entendem, ainda, que o princípio da proporcionalida­de tem sua origem no princípio da isonomia, insculpido no art. 5 o da Constituição Federal. Por fim, há aqueles que defendem que o mencionado princípio tem seu fundamento na dignidade humana, prescrito no art. I o , III, da Carta Magna.

A par dessa controvérsia, nenhum jurista deixa de reconhecer a importân­cia do princípio da proporcionalidade em nosso sistema legal.

Trazemos as preciosas lições de Willis Santiago Guerra Filho:

Essa característica do princípio da proporcionalidade nos sugeriu a hipótese de que

ele poderia fazer as vezes mítica da norma fundamental de KELSEN, rompendo as­

sim a inadequada linearidade da sua concepção do sistema jurídico, e propondo um sistema circular, em que a norma "mais alta" é também a que está na base do siste­ma - literalmente Grund-norm - por ser capaz de fundamentar, diretamente, aquelas normas mais concretas, como são as sentenças judiciais e medidas administrativas.1 1

Assim como a norma hipotética de Hans Kelsen, o princípio da proporcio­nalidade encontra-se situado no topo do ordenamento jurídico, conformando e fundamentando todos os demais, além de todas as regras de direito até as normas mais baixas da pirâmide. 1 2

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64 PEDRO PAULO DE REZENDE PORTO FILHO

O princípio da proporcionalidade não é apenas um direito público subjeti­vo, o qual garante ao titular desse direito a faculdade de voltar-se contra os atos estatais. É bem verdade que o princípio da proibição de "excessos" surgiu como ins­trumento de defesa contra atos estatais, mas se transformou em u m direito fun­damental , 1 3 irradiando seus efeitos para todo o ordenamento jurídico e alcançan­do os legisladores, as relações coletivas e as interprivadas. 1 4

como paciente o autor sulista Siegfried Ellwanger. (STF, HC n. 82.424 - Rio Grande do Sul) Dispõe expressamente o mencionado voto: "O princípio da proporcionalidade, também denominado princípio do devido processo legal em sentido substantivo, ou a proibição do excesso, constitui exigência positiva e material relacionada ao conteú­do de atos restritivos de direitos fundamentais, de modo a estabelecer 'limite do limite' ou uma 'proibição de excesso na restrição de direitos'. A máxima da proporcionalida­de, na expressão de Robert Alexy (Theorie der Grundrechte, Frankfurt, Main, 1986), coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais con­cebido de modo relativo - tal como defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de res­trição legítima de determinado direito fundamental". (Consultor Jurídico, 8/8/2003)

1 3 São características de uma teoria dos direitos fundamentais, segundo Alexy: a) é uma teoria de direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, b) teoria jurí­dica, c) teoria geral.

1 4 Destacam-se as preciosas lições de Luis Fernando Martins Silva, que dispõe sobre a inci­dência das normas fundamentais nas relações privadas: "É importante ressaltar, que sob a capa ou conceito 'neutro' de 'vinculação das entidades privadas aos direitos fundamen­tais' vislumbram-se duas realidades distintas, tal como foram introduzidas pela doutri­na alemã: 'a eficácia externa dos direitos fundamentais' (Drittwirkung der Grundrechte) e a 'eficácia horizontal dos direitos fundamentais' (Horizontalwirkung der Grundrechte). No primeiro caso, a eficácia externa dos direitos fundamentais assenta na idéia de que os particulares regem em exclusivo as relações entre o Estado e os particulares, pelo que a idéia da sua eficácia externa, perante terceiros, implicaria somente que nas rela­ções interprivadas os particulares respeitassem os direitos dos seus semelhantes, limi­tando a sua autonomia privada através da imposição de um dever geral de respeito pelos direitos dos outros. Os particulares, enquanto terceiros, ficariam adestritos a uma atitude negativa de respeito pelos direitos constituídos dos demais cidadãos, por força da atribuição de uma eficácia externa dos direitos fundamentais. Na segunda hipótese, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais significaria algo mais. Não se trataria, apenas, de atribuir um efeito externo aos direitos fundamentais, mas sim de determinar que estes valem não apenas nas relações verticais (Mittelbare, indirekte Drittwirkung), estabelecidas entre o Estado e os particulares, mas também nas próprias relações interprivadas, isto é, ao nível das relações bilaterais e horizontais (Un-mittelbare, direkte Drittwirkung) estabelecidas entre os particulares. A sua atuação seria, pois, mais marcante, e porventura excessivamente limitadora da autonomia privada e respectiva liberdade negociai". (A incidência e eficiência dos direitos fundamentais nas relações com particulares, Jus Naviganti) Nesse sentido, confira a decisão do Supremo

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A LESÃO NOS CONTRATOS E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE 65

São claras as palavras de Ferrer i Riba e Salvador Coderch:

As normas sobre direitos fundamentais apresentam ínsitas a elas mesmas, um man­dato de proteção, que obriga o Estado a impedir que tais direitos sejam vulnerados tam­bém nas relações privadas. 1 5

Parafraseando Jean Rivero, a não incidência das normas fundamentais nas relações interprivadas seria o mesmo que escapar da arbitrariedade do Estado para cair na tirania do poder econômico dos particulares, mudando apenas o dominador. 1 6

2. DA FIGURA DA LESÃO NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Nesse contexto, a nova lei civil prescreve, em seu art. 157, que "ocorre a le­são quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta".

A desproporção das prestações será verificada segundo valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico. 1 7 E ainda, não será decretada a anulação do contrato desequilibrado se for oferecido suplemento suficiente ou se a parte favorecida aceitar reduzir seu proveito.

Frise-se que, como o negócio celebrado com lesão é apenas passível de anu­lação, ele pode ser objeto de confirmação pelas partes, nos termos do art. 172 do novo Estatuto Civil.

Em uma rápida leitura do mencionado artigo legal, poder-se-ia dizer que es­tamos diante apenas da cláusula rebus sic stantibus.

Tribunal Federal (RE n. 158.215), o qual julgou nula a decisão de uma determinada Associação que expulsou seu membro sem lhe garantir o direito de defesa prévio. No voto condutor, o ministro Marco Aurélio de Mello é claro ao dispor que as normas fundamentais têm aplicação direta nas relações interprivadas.

1 5 Ferrer i Riba e Salvador Coderch. Associaciones, derecho fundametales y autonomia privada, p.94. Apud BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associação, expulsão de sócios e direitos fundamentais. Revista Diálogo Jurídico. Disponível em: www.direitopu-blico.com.br.

1 6 Jean Rivero. Tribunales constitucionales europeos y derechos fundamentales. Madri, CEC, 1984, p.673. Apud BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Associação, expulsão de sócios e direitos fundamentais. Revista Diálogo Jurídico. Disponível em: www.direitopu-blico.com.br.

1 7 BECKER, Analise. Teoria geral da lesão nos contratos. São Paulo, Saraiva, p.89.

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66 PEDRO PAULO DE REZENDE PORTO FILHO

Segundo essa disposição normativa, as obrigações contratuais assumidas pe­las partes devem manter-se comutativas, ou seja, em u m "estado de equilíbrio" du­rante toda a execução do contrato. 1 8

Nesse sentido, vale conferir as palavras de Caio Mário da Silva Pereira:

A cláusula rebus sicstantibus considerava-se inserta nos contratos de duração e nos de execução diferida, como condição de sua força obrigatória. Para que conservas­sem sua eficiência, era subentendido que não deveria ser alterado o estado de fato existente no momento de sua formação. Admitia-se, em suma, que contractus qui ha-

bente tractum sucessivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur.

Assim deveriam ser entendidos, presumida a cláusula.

Tratava-se, porém, de construção rudimentar, porquanto baseada na existência de con­dição resolutiva implícita, sem levar em conta fatores que vieram a ser fixados como elementos decisivos à revogação circunstancia! do princípio da força obrigatória. Não deve bastar, com efeito, a alteração do estado de fato no momento da formação do vínculo. É preciso algo mais que justifique a quebra da fé jurada. A impossibilidade de prever a mudança desse estado veio a ser considerada condição indispensável à modificação do conteúdo do contrato pela autoridade judicial, ou à sua resolução. Julgou-se esse requisito tão importante que a construção nova passou a se conhecer sob a denominação de teoria da imprevisão.

Novas técnicas de redação do contrato generalizaram as hardship clauses do direito internacional, que autorizam a revisão do contrato no caso de circunstâncias superve­nientes alterarem substancialmente o equilíbrio original das obrigações das partes.1 9

1 8 Sobre a equivalência das obrigações, vide as palavras do ministro Marco Aurélio de MeEo: "A máxima segundo qual o que pactuou há de ser observado pelas partes cede às modificações de fato, havidas, viabilizando, assim, a revisão a manter-se, justamente, o equilíbrio entre direitos e obrigações que ensejou o contrato. É tradição do nosso Direi­to a admissibilidade desse enfoque, mesmo em se tratando de contrato administrativo. (Supremo Tribunal Federal, Agravo n. 222245/RS, publicado em 6/10/1998, DJ, p.27)

1 9 GOMES, Orlando. Contratos. 12.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1989, p.40-1. Confira também Silvio Rodrigues: "A cláusula rebus sic stantibus, elaborada pelos pós-glosa-dores, esposa a idéia de que todos os contratos dependentes de prestações futuras incluíam cláusula tácita de resolução, se as condições vigentes se alterassem profun­damente. Contractus qui habente tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur". (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade, 19.ed. atualizada, São Paulo, Saraiva, 1990, v.III, p.22, nota de rodapé) Tal idéia se inspirava em princípio de eqüidade, pois se o futuro trouxesse um agrava­mento excessivo da prestação de uma das partes, estabelecendo profunda desproporção

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A LESÃO NOS CONTRATOS E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE 67

Apesar de a cláusula rebus sic stantibusjá representar uma das faces do prin­cípio da proporcionalidade, uma vez que demanda equilíbrio entre as obrigações assumidas pelas partes contratadas durante toda execução do ajuste assumida, o art. 157 do Código Civil vai ainda mais longe.

A mencionada disposição legal estabelece haver lesão já na formação da re­lação jurídica, se uma das partes contratadas, seja por estado de necessidade, 2 0 seja por inexperiência, assume u m a obrigação desproporcional em relação à contra­prestação ajustada. Ou seja, o contrato já nasce lesionado se o ajuste celebrado não estabelecer uma relação de meio e fins adequados em relação às prestações assumidas por cada uma das partes.

Não há que se falar aqui em restabelecer o equilíbrio, como determina a cláu­sula rebus sic stantibus, mas sim em alterar o que foi inicialmente convencionado pelas partes. 2 1 Trata-se de u m vício de consentimento, que procura privilegiar a eqüidade entre as partes contratadas.

Para caracterização da lesão dos contratos, devem ser apurados dois requi­sitos: um objetivo e outro subjetivo. 2 2

O primeiro, objetivo, é a verificação da desproporcionalidade das prestações assumidas por uma das partes. Mas não é qualquer desproporção contratual que deve ser revista pelo Poder Judiciário. É certo que a nova lei não identificou as condições de desproporcionalidade. Diante disso, caberá ao Magistrado, ao veri­ficar as condições contratuais, amparar-se nos elementos identificadores do prin­cípio da proporcionalidade. Deve-se destacar que, a identificação da lesão nos contratos privados deve apoiar-se em critérios objetivos e sólidos, pois a não-uti-lização de critérios comparativos claros poderá provocar uma intervenção dema­siada do Poder Judiciário na liberdade de contratar dos particulares, o que trará como conseqüência um déficit de previsibilidade dos negócios jurídicos, provo-

com a prestação da outra, seria injusto manter-se a convenção, pois haveria o indevi­do enriquecimento daquele, com o injustificado empobrecimento deste. Não se pode confundir o estado de necessidade com o estado de perigo disposto no Código Civil. Sobre as diferenças, confira o artigo de LOPEZ, Tereza Ancona, "O esta­do de perigo como defeito do negócio jurídico". Revista do Advogado, ano XXII, n.68, p.49, dez./2002. Não se pode confundir, portanto, a cláusula rebus sic stantibus com a lesão propria­mente dita. Conforme apontado acima: i) a lesão é contemporânea com o surgimen­to do ajuste, a imprevisão decorre da mutação das relações contratuais durante sua execução; ii) a lesão depende do requisito subjetivo, a imprevisão não. Nesse sentido, confira PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do direito civil. 12.ed. v.I, p.378.

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cando u m aumento sensível no custo dos atos negociais e uma insegurança nas relações contratuais. 2 3

Portanto, deverá o Juiz, ao verificar a existência de lesão nas relações privadas, valer-se de critérios objetivos para a solução do conflito, tais como a comparação de preços, práticas e atos de mercados na época e no local da celebração do ajuste, entre outros. Esses parâmetros factuais são importantes para instruir o operador do direito na verificação da desproporcionalidade das obrigações assumidas.

O segundo requisito, subjetivo, é a vontade do agente em tomar proveito da condição fraca da parte. A nova lei não fixa como requisito da lesão apenas o dano, sendo imprescindível a busca pela real vontade das partes contratantes.

No caso, para haver lesão contratual a parte deve, deliberadamente, tomar proveito da posição da outra, em virtude de seu estado de necessidade ou de sua inexperiência. Nem sempre é possível verificar a vontade das partes na realização do negócio jurídico. A parte beneficiada, geralmente, não deixa provas contun­dentes de sua intenção de prejudicar a outra parte contratada.

Nesse diapasão, visando verificar a vontade da parte beneficiada, deve o Po­der Judiciário apoiar-se em critérios probatórios não tão rígidos, utilizando-se de feixe de indícios convergentes, tais como a relação pré-contratual, a condição eco­nômica das partes etc. 2 4 Também deve ser afastado qualquer tipo de presunção, seja a favor da parte lesionada, seja a favor da parte beneficiada.

Confira o nosso "O novo conceito de equilíbrio econômico dos contratos administra­tivos de relação de consumo". Publicado no Informativo de Licitações e Contratos - ILC. Zênite, ano IX, n.104, p.828, 2002. Trazemos as preciosas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello dispondo sobre o va­lor das provas para caracterização de desvio de poder, na qual podemos fazer um pa­ralelo com o presente caso. "Em síntese: para detectar o desvio de poder estranho a qualquer interesse público, cumpre analisar todo o conjunto de circunstâncias que en­volve o ato, verificando-se, assim, se a discricionariedade alegável foi bem usada ou se correspondeu a um pretexto para violar o fim legal e saciar objetivos pessoais. Para tanto, examinam-se seus antecedentes, fatos que o circundam, momento em que foi editado, fragilidade ou densidade dos motivos que o embasam, ocorrência ou ino-corrência de fatores que poderiam interferir com a serenidade do agente, usualidade ou excepcionalidade da providência adotada, congruência do ato com anterior con­duta administrativa e até mesmo características da personalidade do agente exibidas em sua atuação administrativa. Com efeito, trata-se de colher "um feixe de indícios convergentes", na expressão já referida de Rivero, capazes de autorizar a "convicção mo­ral do tribunal", a que aludiu Garcia de Enterría, reportando-se à decisão jurisdicio-nal espanhola. (Discricionariedade e controle jurisdicional. 2.ed. São Paulo, Malheiros, p.80-1)

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A LESÃO NOS CONTRATOS E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE 69

Preenchidos os critérios, objetivo - desproporção das obrigações contratuais —, bem como o subjetivo — intenção de tomar proveito da outra parte contratante - , es­tamos diante de uma lesão contratual, conforme estabelecida pelo art. 157 do novo Estatuto Civil.

O novo diploma legal pretende proteger as partes mais fracas nas relações contratuais, ainda que estas tenham assumido livremente tal obrigação despro­porcional. Trata-se, portanto, de uma conformação da liberdade de contratar es­tabelecida pelo novo Código Civil. 2 5

Assim, frente ao crescimento da limitação à liberdade de contratar entre os particulares, o princípio da proporcionalidade, na qualidade de norma funda­mental, torna-se ferramenta indispensável para caracterização da lesão nos con­tratos, instituto este de relevante importância na busca do princípio da "justiça contratual".

Isto não quer dizer que "palavra dada" na celebração de negócio jurídico não tenha mais validade no novo Estatuto Civil. Outros fatores, contudo, devem ser analisados juntamente ao ato de celebração, como a boa-fé e a probidade dos contratantes (art. 422 do CC).

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4 A B U S O D O D I R E I T O N O N O V O C Ó D I G O C IV I L E O A B U S O P R O C E S S U A L

DANILO VIEIRA VILELA*

De nada aproveitam as leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra os abusos [...]

Rui Barbosa

Sumário 1. Apresentação. 2. Origens e evolução. 3. Abuso do direito. 4 . 0 novo Código Civil. 5 . 0 abuso processual. 6. Considerações finais. Referências bibliográficas.

1. APRESENTAÇÃO

O Direito e os direitos não existem por acaso. Seja qual for a explicação para a sua existência, certamente ter-se-á como uma de suas funções, talvez a pr imor­dial, a necessidade de controle das relações sociais. Assim, o homem, ao partici­par do "contrato social", reconhece sua situação de detentor de direitos e obriga­ções e que as controvérsias decorrentes do uso e gozo destes serão solucionadas pelo Estado enquanto instrumento de pacificação social.

Contudo, tão certa quanto a existência de direitos objetivos e subjetivos é a sua limitação em virtude de interesses maiores da sociedade. Dessa forma, o combate ao abuso do direito apresenta-se, hoje, como u m imperativo, tanto na

* Mestre em Direito Obrigacional Público e Privado na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Especialista em Direito Processual pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Assessor da Pró-reitoria Acadêmica, Coordenador dos cursos de pós-graduação em Direito e professor nos cursos de graduação e pós-graduação do

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ABUSO DO DIREITO NO NOVO CÓDIGO CIVIL E O ABUSO PROCESSUAL 71

manutenção da ordem social, e até mesmo processual, quanto como um pres­suposto para a (re)construção de valores éticos que devem permear o Direito.

Sendo assim, neste artigo serão apresentadas, em poucas palavras, as noções do abuso do direito decorrentes do novo Código Civil, bem como suas manifes­tações no Direito Processual. Para tanto, toma-se como ponto de partida a con­cepção do direito como instrumento necessário, mas não suficiente para a trans­formação social presente na nova lei civil.

Após uma análise histórica da evolução do abuso do direito e de suas mani­festações no ordenamento brasileiro, serão analisadas as inovações trazidas pelo novo Código Civil, de caráter muito mais principiológico que terminológico, ob­servando-se a tendência pós-positivista que permeia o Direito contemporâneo.

A seguir, serão analisados os casos mais comuns do abuso processual, obser­vando-se a nova roupagem que passaram a ter com o advento da Lei n. 10.406 que forçosamente conduziu o aplicador da lei a uma hermenêutica mais condizente com os postulados da Carta Constitucional de 1988 e com os ditames de uma so­ciedade ética, pluralista e democrática.

O novo Código Civil, dessa forma, afastando o caráter privatístico que susten­tou por muito tempo o ordenamento jurídico brasileiro, baseado na noção do patri­mônio, deverá alcançar todas as demais esferas do Direito pátrio, resultando em ati­tudes mais leais, inclusive no processo que, partindo-se de sua instrumentalidade, deverá rechaçar e punir todas as formas de litigância de má-fé e abuso processual.

2. ORIGENS E EVOLUÇÃO

Em relação às origens do Direito Romano, dificilmente pode-se falar em abu­so do direito, já que estes eram exercidos de maneira absoluta pelo seu detentor. Contudo, com o passar dos tempos, a noção de direito subjetivo passou a sofrer limitações, ampliando-se seu caráter de forma a abranger uma concepção volta­da para o interesse coletivo e social.

Assim, no direito de vizinhança começam a surgir as primeiras noções do abuso do direito, já que o proprietário de um prédio não poderia causar danos ao prédio vizinho, algo mui to comum quando se cerceava o acesso às fontes d'água. Também a ação de maltratar desnecessariamente os escravos é apontada por Gaio como uma forma de abuso do direito em Roma. 1 O movimento, no sen-

Centro Universitário do Espírito Santo (Unesc). Professor da Escola de Magistratura do Espírito Santo (EMES) e da Escola do Ministério Público de Espírito Santo. MARTINS, Pedro Baptista. O abuso do direito e o ato ilícito, p.22.

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tido do repúdio ao absolutismo dos direitos, não obstante conquistar cada vez mais espaço, enfrenta períodos de alargamento e outros de retração no decorrer da História.

Sendo assim, a Escolástica 2 retorna ao absolutismo dos direitos, que, a se­guir, seria novamente amenizado em virtude da Renascença. Contudo, o período das grandes codificações que se seguiram ao Código Napoleão representará, mais uma vez, u m regresso a uma dimensão bastante rígida do direito, diante da qual dificilmente poderá se falar em abusos — o que para Pontes de Miranda justifi­ca-se pelo fato de que a "renovação jurídica que se operava, no terreno político, precisava de noção absolutista dos direitos subjetivos para se erguer contra o abso­lutismo do antigo regime". 3 Todavia, nem mesmo as grandes codificações oito-centistas, centradas no conceito de propriedade, resistiriam às transformações do século XX, sobretudo no mundo pós-Segunda Guerra. Dessa forma, a conso­lidação do Estado de Bem-Estar Social teve repercussões diretas na compreensão do Direito, e, conseqüentemente, nas disposições legais e na prática jurídica.

Tem-se, nessa fase, a concessão de direitos sociais e o início do movimento que marcaria u m retorno à visão humanista do Direito, ainda hoje em processo de consolidação. Surgem os direitos trabalhistas e a compreensão de que o Esta­do deve interferir no sentido de equilibrar as partes envolvidas nas relações jurí­dicas, concretizando a igualdade formal.

Os direitos subjetivos, definitivamente, perdem o cunho egoísta que os ca­racterizava, impondo-se limitações em nome do interesse coletivo, da ordem pú­blica e dos bons costumes, sendo os tribunais aparelhados para, "na aplicação, corrigir as imperfeições da lei e empreenderem a empolgante tarefa da socializa­ção do direito". 4

Assim, inicialmente vivenciado como fato, o abuso do direito acaba por ser inserido nos diversos ordenamentos, visando coibir práticas que afrontam a vi­são de u m direito de cunho nitidamente social, incompatível com a ilimitabili-dade no exercício do direito, de tal forma que, para Everardo da Cunha Luna, "hoje, não se discute possa admitir-se o abuso de direito; discute-se, apenas, em que ele consiste".5

Considera-se Escolástica o período cristão que vai da constituição do Sacro Império Romano até o descobrimento da América (século IX até o fim do século XVI). PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, v.53. MARTINS, Pedro Baptista. Op. cit., p.11-2. LUNA, Everardo da Cunha. Abuso de direito, p.98.

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ABUSO DO DIREITO NO NOVO CÓDIGO CIVIL E O ABUSO PROCESSUAL 73

Entretanto, apesar de a grande maioria da doutrina ter como pacífica a com­preensão do abuso, há ainda aqueles que não o aceitam, ora por entender que é impossível se abusar de um direito, já que a presença do excesso afastaria a exis­tência do direito, ora porque realmente não reconhecem a limitação aos direitos subjetivos. Sobre essa questão, comenta Guilherme Fernandes Neto: 6

Os inimigos da teoria do abuso do direito, na realidade, encontram-se dentre os defen­sores do individualismo, do fenômeno do liberalismo e dos princípios e das teorias que em torno destes gravitam, tais como a igualdade formal das partes e da retrógrada conceituação absoluta dos direitos, inclusive o conceito absoluto da liberdade.

Posição parcialmente contrária é a de Pontes de Miranda, para quem a dou­trina do abuso do direito não seria derivada de reações ao individualismo, mas sim efeito desse regime, justificando:

Se todos têm, de per si, direitos, se o espaço A pode ser preenchido pelo exercício de mais de um direito, é de mister que se regule essa possibilidade de relações entre direitos. A doutrina do abuso do direito constitui, portanto, a teoria (individualista) das relações entre direitos individuais.7

3. ABUSO DO DIREITO

Admitida a existência do abuso do direito, necessária se faz uma indagação a respeito de seu alcance e compreensão. Antes de mais nada, é imprescindível uma explicação acerca da terminologia empregada: utiliza-se "abuso do direito", e não "abuso de direito", pois, ao adotar-se essa expressão, tem-se em mente o abuso de algum direito específico; de um direito que já se tem. Assim, ainda que boa parte da doutrina, e mesmo a jurisprudência, utilize indistintamente dessas duas for­mas, entende-se, mais uma vez com base na posição de Pontes de Miranda, 8 que o termo mais correto seja "abuso do direito".

Decorrente da doutrina da aemulatio, a primeira noção do abuso do direi­to fundamentava-se na malícia, já que aquela se baseava na causação de u m dano mediante exercício de um direito, cujo ato realizado fosse inútil ao agente e que essa realização ocorresse com a única finalidade de prejudicar terceiros. 9

FERNANDES NETO, Guilherme. O abuso do direito no Código de Defesa do Consumi­dor, p.194. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p.63. Ibidem, p.71. OLIVEIRA, Ana Lúcia Iucker Meirelles. Litigância de má-fé, p.27.

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Mesmo que, na seqüência, parte da doutrina e da jurisprudência passasse a ver o abuso do direito sem o caráter de ato impregnado com a intenção de causar dano a outrem, mas tão-somente como um ato que simplesmente contraria a fina­lidade do Direito, tomando-se de menor importância a vontade do agente de pre­judicar outrem, 1 0 mantém-se a compreensão do instituto atrelada à concepção de moral, o que, não obstante a evolução da doutrina rumo a tendências mais objeti-vistas, sempre esteve presente, vindo a ganhar força no ordenamento brasileiro com o advento do novo Código Civil, sobretudo com a dimensão do conceito de boa-fé nele empregada.

Assim, Georges Ripert," reconhecendo o sentido da teoria do abuso do direi­to como algo extremamente duvidoso, afirma ser esta inspirada pela idéia moral, penetrando no domínio jurídico de uma maneira apenas limitada, não podendo figurar-se como uma mera questão de responsabilidade civil.

Nesse sentido, faz-se necessária uma apreciação da conduta humana no m o ­mento de identificar a presença do abuso, afastando, assim, a tendência que pro­cura rechaçar do Direito a presença da moral.

Certamente não será tarefa fácil para o julgador analisar as intenções que levaram o sujeito a praticar determinado ato. Para tanto, deverá, antes de tudo, conhecer as conseqüências do ato para seu autor. Se legítimas, afastam a incidên­cia do abuso. Caso contrário, visando meramente causar prejuízos a outrem, sen­do inúteis para o sujeito, representarão um abuso do direito. Sobre as dificulda­des do magistrado em identificar as intenções do sujeito, nesse sentido se manifestou Ripert:

Será preciso que o juiz reconheça a intenção de prejudicar. Essa busca da intenção oferece dificuldades insuperáveis? Não é mais arbitrária que a análise da fraude ou da boa-fé. É uma quimera querer criar um direito civil puramente objetivo e julgar os fatos sem se ocupar das intenções. 1 2

Vale, contudo, ressaltar que a teoria do abuso do direito não visa evitar que determinados atos causem prejuízos a terceiros, mas, sim, coibir o fim prejudi­cial decorrente da inutilidade voluntária do ato. Ou seja, é perfeitamente com­preensível que, em uma sociedade, certos atos causem prejuízos a outrem, por exemplo, uma empresa que desenvolve um produto melhor e/ou mais barato que

1 0 MAIA, Valter Ferreira. Litigância de má-fé no Código de Processo Civil, p.55. 1 1 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis, p.168. 1 2 Ibidem,p.l76.

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o da concorrente. Nesse caso, a empresa que não acompanhou a evolução tec­nológica da outra, ou que não se adaptou às imposições do mercado, terá prejuí­zos. Todavia, mesmo havendo o dano, este não é passível de indenização, já que o sujeito responsável por causar o prejuízo, não o fez com a intenção única de pre­judicar o outro, mas sim movido por interesses legítimos.

Da mesma forma, existem direitos que, em virtude da possibilidade de seu exercício arbitrário, não são passíveis de resultar em abuso do direito. Assim ocor­re com o testador que, desde que se restrinja ao quinhão que a lei lhe permite, pode deixar seus bens para quem lhe aprouver, ainda que isso resulte em prejuí­zos para os herdeiros legítimos. Assim:

ciertos derechos no son susceptibles de abusos porque el titular de los mismos no tiene

que rendir cuentas de los motivos por los cuales Io ejerce [...] el titular dei derecho es el

solo juez dei deber que le incumbe [...]."

Apresentado desse modo, o abuso do direito mostra-se como uma das mui­tas variedades do ato ilícito, 1 4 caracterizando-se pela presença de um direito, em­bora viciado.

E foi justamente com base nessa concepção que o abuso do direito manifes­tou-se no Código Civil brasileiro de 1916, que, em seu art. 160,1, determinava que não constituíam atos ilícitos "os praticados em legítima defesa ou no exercí­cio regular de um direito reconhecido", de tal forma que era imposta ao intérpre­te uma regra jurídica de caráter pré-excludente. Assim, havendo o dano, quem exercia o direito cometia ato ilícito, salvo se o exercício fosse regular. Nesse con­texto, o ônus da prova caberia ao culpado, e não a quem o tenha sofrido, pois a este somente incumbia provar o dano e a culpa, apontando a contrariedade ao direito. 1 5

Ainda que consolidado em nosso ordenamento, o abuso do direito expan­diu-se significativamente com a criação do Código de Defesa do Consumidor, que, disciplinando no sentido de coibir práticas abusivas nas relações entre for­necedores e consumidores, ampliou as possibilidades de ocorrência do abuso, impondo, ainda, duras sanções, como a nulidade de cláusulas contratuais ou indenizações.

1 3 BOULANGER, Jean; RIPERT, Georges. Tratado de derecho civil según el tratado depla-niol. 2 a parte, t.V, p.80.

1 4 Ibidem, p.65-6. 1 5 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, v.2. p.291.

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Alguns critérios podem ser estabelecidos para se caracterizar a existência do abuso do direito nas relações de consumo: 1 6

desproporcionalidade; desvio da função social; desvio da função econômica; incompatibilidade com a eqüidade; incompatibilidade com a boa-fé.

Além de se manifestar nas relações civis e de consumo internas, o abuso do direito t ambém é encontrado em outras áreas do Direito, por exemplo, no Direi­to Internacional Privado, no qual a fraude à lei, ou seja, "a utilização das regras de conflito para a obtenção de direito que as regras substanciais territoriais rejeitam ou negam", 1 7 beira, para alguns autores, ao abuso do direito. 1 8

4. 0 NOVO CÓDIGO CIVIL

O Código Civil de 1916, apesar de ter sido aprovado e ter entrado em vigor já no século XX, é reflexo da realidade oitocentista, muito bem estampada no Có­digo Napoleônico, que reflete a mentalidade pós-Revolução Francesa, pautada pe­los interesses da burguesia, que buscava, com sua ascensão ao poder, o fim das de­sigualdades e dos privilégios do clero e da nobreza, daí resultando suas feições nit idamente voltadas à defesa da propriedade.

Acentuando a visão claramente patrimonialista, o Código Civil brasileiro, assim como diversos outros, atravessou o século XX trazendo em seu bojo um apego à noção de família e de contrato como meios de manutenção e circulação da propriedade, colocando-se como a "constituição do homem privado" titular de u m patr imônio. 1 9

Contudo, essa concepção individualista-patrimonialista acabou ruindo junto ao Estado Liberal, cujos postulados resultaram em abusos e desvios dos objeti­vos do Direito, passando a propriedade a ser explorada de maneira nociva à so­ciedade, desenvolvendo-se a família muito mais como u m centro de defesa do patrimônio do que propriamente um espaço de desenvolvimento do ser humano, e manifestando-se o contrato totalmente despido de sua função social.

1 6 FERNANDES NETO, Guilherme. Op. cit., p.92 e ss. 1 7 STRENGER, Irineu. Direito internacional privado, p.445. 1 8 PEREIRA, Luiz César Ramos. Limitação e não aplicabilidade do direito, p.160. 1 9 FACHIN, Luis Edson. Teoria crítica do direito civil, p.298.

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O Estado se depara, então, com a eclosão de conflitos sociais que exigem uma atuação do Direito enquanto manifestação do Estado, no sentido de buscar o equilíbrio das relações sociais por meio do controle do mercado e do combate a todas as espécies de abuso. Como resultado desse movimento tem-se a origem do Estado de Bem-Estar Social, refletido entre nós por meio da CF de 1988.

Antes de tudo, por representar a constitucionalização do Direito Privado, a Constituição de 1988 resultou em um conflito de idéias entre esta e o Código Ci­vil de 1916, acentuando a necessidade de aprovação de u m novo Código Civil, o que só ocorreria catorze anos após a Constituição e quase trinta anos após o iní­cio de seu trâmite legislativo.

Assim, a entrada em vigor do novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10 de janei­ro de 2002) representa a solidificação dos preceitos constitucionais de cunho social em detrimento da concepção liberal do Código de 1916, proporcionando uma nova forma de se observar as relações jurídicas a partir de uma verdadeira reper-sonalização do Direito em favor da dignidade humana e da solidariedade social.

Com base nessa visão antropocentrista é que o novo Código Civil discipli­na o abuso do direito, estabelecendo, em seu art. 187 que "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Baseado no art. 334 do Código Civil português, tal dispositivo reflete a noção de que não existe direito absoluto em nosso ordenamento. Portanto, mes­mo o direito contratual, que concede uma maior liberdade entre as partes, fica sujeito às limitações decorrentes da função social do contrato (art. 421 CC/2002), além de obrigar as partes a seguir os princípios da probidade e da boa-fé (art. 422 CC/2002). Fixando, no art. 2.035, que nenhuma convenção prevalecerá se con­trariar preceitos de ordem pública, o novo Código Civil visa assegurar a função social da propriedade e dos contratos, levando à conclusão de que qualquer dis­posição que ferir tais princípios representará u m ato abusivo, não devendo, por­tanto, ser amparada pelo Poder Judiciário.

Apresentando o abuso do direito como uma espécie de ato ilícito, o legisla­dor, no art. 187, estabelece seus parâmetros de maneira objetiva, desvinculando a ação abusiva de qualquer noção de culpa, bastando, para caracterizá-la, o desvio da finalidade do direito exercido. Da mesma forma, entende-se que não é neces­sária a presença do dano para a incidência do abuso do direito. 2 0

NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e legislação extravagante anotados, p.109.

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78 DANILO VIEIRA VILELA

Entretanto, visando a sanar as dificuldades na aferição do abuso do direito, que remete o juiz à análise das intenções do sujeito, foi bastante claro o legisla­dor ao evidenciar que só será abusivo o ato que exceder manifestamente os limi­tes impostos pelos seus fins. Ou seja, para que haja o abuso é necessário que o direito seja exercido "em termos clamorosamente ofensivos à justiça" 2 1 (grifo do autor) .

Assim, ainda que o ato abusivo se diferencie do ato ilícito stricto sensu, pre­visto no art. 186 do novo Código Civil, em face do qual investiga-se a incidência da culpa, em qualquer uma das suas modalidades, gera os mesmos efeitos desse, quais sejam, a necessidade de reparação dos danos, sejam patrimoniais ou morais, bem como a nulidade do ato ou do negócio jurídico.

Como é caso de nulidade, o ato abusivo pode ser apontado como matéria de defesa (prescinde de ação para ser reconhecido), pela parte, interessado ou MP, e deve ser declarado ex officio pelo juiz, porque matéria de ordem pública [...]. Não preclui, sendo admissível sua alegação a qualquer tempo e grau ordinário de jurisdição. 2 2

Apesar de já ter sido previsto no Código Civil de 1916, a jurisprudência pá­tria vem tendo uma atuação bastante tímida na caracterização do abuso do direi­to. Todavia, com a nova concepção de direito estampada no Código de Miguel Reale, a expectativa é a de que os operadores do Direito "refundem" a teoria do abuso do direito, agora mais do que nunca, como corolário para a defesa de anseios e princípios nitidamente sociais que norteiam a nova legislação brasileira.

O instrumento foi-nos dado pelo legislador. Agora basta que a hermenêuti­ca não desvirtue o sentido da lei e que o novo Código Civil não faça do Direito um obstáculo à transformação social, 2 3 mas, sim, o principal elemento dessa inadiá­vel transformação.

5. 0 ABUSO PROCESSUAL

Superada a fase da solução privada dos conflitos, o Poder Judiciário passou a ser o meio disponibilizado às partes para a solução de seus litígios. Assim, a Cons­tituição Federal de 1988 estabelece que "a lei não excluirá da apreciação do Po­der Judiciário lesão ou ameaça de lesão" (art. 5 o , XXXVI).

Ibidem, p.110. Ibidem. MONREAL, Eduardo Novoa. O direito como obstáculo à transformação social.

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ABUSO DO DIREITO NO NOVO CÓDIGO CIVIL E O ABUSO PROCESSUAL 79

No entanto, mesmo que o recurso ao Judiciário para a solução das contro­vérsias seja garantia de todos, é hoje pacífico que deva ser pautado por regras que impeçam que o poder judicial seja instrumento de trabalho para a consecução de fins ilegítimos. 2 4

Em épocas pretéritas, a revelia era vista como uma das principais atitudes que, por si só, era suficiente para a condenação do réu que, assim agindo, feriria objeti­vos inerentes à jurisdição. Hoje, os sistemas modernos, apesar de terem abandona­do a condenação ao réu contumaz pela revelia 2 5 (o que não exclui os efeitos desta para o processo), procuram, de diversas formas, punir aqueles que, de uma forma ou de outra, agem em desconformidade com os objetivos e funções do processo.

Com base nisso, o CPC brasileiro apresenta, em seu art. 14 e seguintes, dispo­sições acerca dos deveres das partes e dos seus procuradores, bem como as respon­sabilidades decorrentes de danos processuais, realçando os princípios éticos do pro­cesso e destacando o dever de lealdade que deve imperar entre as partes. 2 6

Ainda que o abuso processual seja decorrente da aemulatio, este pode, per­feitamente, ser vislumbrado sob a óptica do abuso do direito, já que nada mais é que uma decorrência de u m excesso no exercício de um direito, ferindo seus fins econômicos e sociais, nos moldes do art. 187 do novo Código Civil.

Assim, compete às partes e aos procuradores no processo (art. 14 do CPC):

I - expor os fatos em juízo conforme a verdade; II - proceder com lealdade e boa-fé; III - não formular pretensões, nem alagar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento;

IV - não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito.

Nesse sentido, não observando essas disposições, o litigante estará ferindo o sistema processual civil brasileiro e excedendo os limites de seus direitos postu-latórios. Para tais casos, o ordenamento pátrio oferece sanções fundamentadas no art. 16 do CPC, o qual determina que responderá por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente.

Tão certa quanto o direito de todos ao acesso à justiça é a responsabilidade das partes pelos e em seus atos processuais. Assim, "a responsabilidade proces-

LUNA, Everardo da Cunha. Op. cit., p. 110-1. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, v.II, p.432. GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro, v.l, p.106.

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80 DANILO VIEIRA VILELA

suai pode ser dividida em: objetiva - relativa às custas, decorrente tão-só da su-cumbência — e subjetiva, decorrente da litigância de má-fé", 2 7 de tal forma que essa má-fé, presente no art. 17 do Código de Processo Civil, possa decorrer tanto do abuso no direito de defesa daquele que se socorre da malícia para evitar o andamento do processo quanto daquele que deduz pretensão manifestamente infundada.

[...] o litigante de má-fé atua dolosamente e em contradição com a finalidade do pro­cesso, através da violação da verdade e do abuso dos atos processuais. Se opõe esse litigante, por vezes, a tudo e a todos, sempre e sempre, sem qualquer fundamenta­ção razoável.28

O primeiro inciso do art. 17 apresenta um dos principais limites impostos ao litigante como decorrência dos deveres processuais, qual seja: o de não deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso. Isso porque assim agindo a parte estaria movendo, desnecessariamente, o Poder Judiciário com fins diversos da prestação jurisdicional, uma vez que, postulando contra texto ex­presso de lei ou fato incontroverso, estaria ciente de não obter sucesso. Vale, entre­tanto, ressaltar que a existência de uma discussão doutrinária e/ou jurisprudencial sobre o alcance do texto legal é suficiente para descaracterizar o abuso da parte.

A alteração da verdade dos fatos também apresenta-se como fator caracte-rizador do abuso do postulante, já que, além de induzir o magistrado ao erro, im­põe à parte contrária a necessidade de provar algo que não seria cabível. A anti­ga redação do artigo, em seu inc. III, considerava litigante de má-fé aquele que omitisse intencionalmente fatos essenciais ao julgamento da causa. No entanto, a nova lei afastou a presunção da má-fé no caso de "uma das partes deixar de in­dicar todos os fatos eventualmente relavantes ao julgamento da causa, ainda que intencionalmente" 2 9 permitindo, assim, que uma parte não seja obrigada a pro­duzir provas contra si mesma.

Vale ressaltar que a alteração da verdade dos fatos, apesar de ser indicativo de má-fé e abuso processual, deixará de sê-lo quando for tão relevante que se afas­te o interesse processual, caso em que estar-se-á diante de u m ilícito civil puro . 3 0

OLIVEIRA, Ana Lúcia Iucker Meirelles. Op. cit., p.25. MAIA, Valter Ferreira. Op. cit., p.59. GRECO FILHO, Vicente. Op. cit, p.108. "A cobrança de dívida já paga constitui hipótese não de abuso de direito, pois a dívi­da não existe, não dando lugar ao interesse processual para a propositura da ação, mas de ilícito civil puro". OLIVEIRA, Ana Lúcia Iucker Meirelles. Op. cit., p.40.

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ABUSO DO DIREITO NO NOVO CÓDIGO CIVIL E O ABUSO PROCESSUAL 81

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33

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, p.61. OLIVEIRA, Ana Lúcia Iucker Meirelles.Op. cit., p.50. Ibidem, p.62.

Tendo-se em vista o caráter público do processo que hoje prepondera, favo­recido pelo vento dos princípios constitucionais do Estado social intervencio-nista, 3 1 o inc. III do citado art. 17 dispõe que também será considerado litigante de má-fé aquele que usa do processo para conseguir objetivo ilegal. Sendo assim, não é admissível o recurso ao processo para a obtenção de fins diferentes de suas finalidades, tais como a exposição da intimidade, a humilhação, a mera coação ou a diminuição do prestígio social da outra parte.

Caracteriza-se também como litigante de má-fé aquele que opõe resistência injustificada ao andamento do processo (art. 17, IV, do CPC), o que poderá con­sistir tanto em ações quanto em omissões que visem a perturbar o ri tmo normal do processo, cujo alcance pode ser compreendido desde a "não-apresentação de documentação completa, manobra comum, até a discussão sem fim de laudos periciais". 3 2 Esse dispositivo não busca, contudo, tolher as partes no exercício de suas faculdades processuais, mas sim coibir os abusos em seu exercício. Dessa for­ma, a sanção, em virtude da incidência desse inciso, somente poderá se dar quan­do a resistência for manifestamente injustificada.

Na esteira do inc. IV, proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo também configura má-fé processual, sujeita às sanções previstas no Código. Entretanto, como a má-fé não pode ser presumida, caberá a prova à quem a alegar e, sendo a temeridade qualificada como abuso do direito, da mesma forma deve ser rechaçada e punida.

Ainda no art. 17, o legislador previu duas outras formas de se caracterizar o litigante de má-fé. A primeira delas, presente no inc. VI, é a provocação de inci­dentes manifestamente infundados, o que deve ser aferido de plano, pelo simples exame do incidente ou ato, já que, se demandar grande esforço e arrazoado extenso para rejeitar ou decidir contrariamente, não se pode ter como infunda­do o incidente ou o ato. 3 3

Já no último inciso (VII), acrescido pela Lei n. 9.668, de 1998, o legislador pro­curou coibir a interposição de recursos com o intuito meramente protelatório, prática comum em nossos tribunais, que repercutem diretamente na morosida­de da justiça, impedindo uma tutela rápida, barata e justa.

Nessa esteira é que o art. 557 do Código de Processo Civil determina que o relator deverá negar seguimento ao recurso manifestamente inadmissível, im-

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82 DANILO VIEIRA VILELA

procedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de Tribunal Superior.

Em seu parágrafo 2°, determina ainda que quando o agravo for manifesta­mente infundado ou inadmissível, o tribunal condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre 1 e 10% do valor corrigido da causa. Além disso, determi­na que a interposição de qualquer outro recurso ficará condicionada ao depósi­to deste valor. Sobre o abuso processual, assim vem se manifestando a jurispru­dência brasileira:

0 ordenamento jurídico brasileiro repele práticas incompatíveis com o postulado ético-jurídico da lealdade processual. 0 processo não pode ser manipulado para viabi­lizar o abuso de direito, pois essa é uma idéia que se revela frontalmente contrária ao dever de probidade que se impõe à observância das partes. O litigante de má-fé -trate-se de parte pública ou de parte privada - deve ter a sua conduta sumariamente repelida pela atuação jurisdicional dos juizes e dos tribunais, que não podem tolerar o abuso processual como prática descaracterizadora da essência ética do processo.34

Caracterizando-se a litigância de má-fé, o juiz ou o tribunal condenará aque­le que feriu a lealdade e a probidade processuais ao pagamento de multa. Poden­do agir de ofício, deverão (juiz ou tribunal), ainda, condenar o litigante de má-fé a indenizar a parte contrária dos prejuízos que sofreu, além dos honorários advocatícios e outras despesas que tenha efetuado.

A multa por litigância de má-fé ou abuso processual não poderá exceder um por cento do valor da causa (art. 18). Já a indenização, na qual deve-se ter em conta, além dos prejuízos materiais, a incidência do dano moral, será fixada em quantia não superior a 20% sobre o valor da causa ou liquidado por arbitramen­to (art. 18, parágrafo 2 o ) . No caso de haver mais de um litigante, estes deverão ser condenados solidariamente ou, então, tendo-se em conta seu respectivo interes­se na causa.

Em virtude do "indiscutível caráter obrigacional do imperativo jurídico da lealdade processual" 3 5 e da necessidade de punir o litigante de má-fé, entendem alguns autores que o valor da multa deveria ser elevado para que, diante do caso concreto, o juiz pudesse alcançar o efetivo sentido da norma, qual seja, o de coi­bir o acesso infundado e temerário ao Poder Judiciário. Assim:

AI 193779, AgR-ED-PR, STF, 2 a turma, Rei. Min. Celso de Mello, Julgamento, 13/6/2000, DJ 8/6/2001, p. 14. EMENT v. 02034-02 p.372. MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil, v.2, p.269.

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ABUSO DO DIREITO NO NOVO CÓDIGO CIVIL E O ABUSO PROCESSUAL 83

A multa aplicável ao litigante de má-fé, cumulativamente com a obrigação de inde­nizar perdas e danos, com sua natureza jurídica de penalização deve ser elevada aumentando-se o limite legal de 1 % para 50% do valor da causa, como forma eficien­te de reprimir e prevenir a litigância de má-fé da parte, pois nos moldes do atuai artigo de lei é praticamente inócua a norma. 3 6

Em diversos outros pontos do Código de Processo Civil encontram-se obrigações processuais das partes. Assim, devem os litigantes tratar as testemu­nhas (art. 416, parágrafo I o ) e a outra parte (art. 446, III) com urbanidade, e não se comportar de maneira inconveniente (art. 445, II). Mas é no art. 273, o qual trata dos requisitos da antecipação da tutela, que o legislador apresenta a prin­cipal modalidade de sanção ao litigante que atua em desconformidade com os fins do processo:

Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívo­ca, se convença da verossimilhança da alegação e: [...]

II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito pro-telatório do réu.

Como a pena pecuniária e o ressarcimento não foram suficientes para coi­bir o abuso do direito processual, inovou o legislador ao conceder a antecipação da tutela com a finalidade de punir o réu. 3 7

Representando uma segunda via para a obtenção da tutela antecipada - já que a primeira seria o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação - , o inciso comentado criou uma "antecipação de tutela 'pura', desvinculada dos pres­supostos de urgência e do dano" 3 8 e que, em virtude de seus efeitos, é mais eficien­te que as previsões dos arts. 16 e 18 do CPC.

Além das disposições previstas no Código de Processo Civil, o abuso do di­reito processual também encontra-se disciplinado em outros textos legais, como é o caso da Lei de Falências ainda em vigor, apesar do estágio avançado do pro­jeto que pretende substituí-la:

Art. 20. Quem por dolo requerer a falência de outrem, será condenado, na sentença que denegar a falência, em primeira ou segunda instância, a indenizar ao devedor,

MAIA, Valter Ferreira. Op. cit., p.187. GAMA, Ricardo Rodrigues. Temas de direito processual, p.136. CARNEIRO, Athos Gusmão. Da antecipação de tutela no processo civil, p.33.

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liquidando-se na execução da sentença as perdas e danos. Sendo a falência requeri­da por mais de uma pessoa, serão solidariamente responsáveis os requerentes. Parágrafo único. Por ação própria, pode o prejudicado reclamar a indenização, no caso de culpa ou abuso do requerente da falência denegada.

Assim, levando-se em conta os danos, inclusive sociais, que podem decorrer de u m a falência, o legislador estabelece que aquele que a requerer a falência por dolo ou abuso do direito, deverá ser punido. Com isso, entende-se que, ao dene-gar a falência, o juiz poderá condenar o autor-requerente, além das custas pro­cessuais, nas perdas e danos (inclusive morais) sofridos pelo comerciante supos­tamente falido. Contudo, a presença do dolo deve ser muito bem caracterizada, já que, se não tiver a intenção de prejudicar nem tiver assumido o risco de pro­duzir prejuízo, não há como condenar o requerente. 3 9 Ficando evidente que a de­manda foi intentada com espírito de emulação, erro grosseiro ou interesses escu­sos, deverá haver a indenização, invocando-se, inclusive, os arts. 16 a 18 do CPC.

Neste caso, vale destacar a possibilidade de o juiz condenar o requerente, in­dependentemente da iniciativa da parte em reclamar a indenização, da mesma forma que ocorre na incidência dos arts. 17 e 18 do Código Processual Civil.

Não só a parte pode ser punida por abuso processual, mas também seu advogado. Apesar de indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão (art. 133 CF/1988), o advogado tem sua atuação restrita aos limites impostos pela lei, sendo responsá­vel pelos atos que praticar com dolo ou culpa no exercício profissional (art. 32 da Lei n. 8.906/1994).

No entanto, sendo a responsabilidade do advogado subjetiva, será solidaria­mente responsável pela lide temerária somente quando comprovado seu conluio com o cliente para lesar a parte contrária, o que será apurado em ação própria, conforme preceitua o parágrafo único do art. 32 do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Além da responsabilidade que pode decorrer do abuso processual, constitui, ainda, infração disciplinar "advogar contra literal disposição de lei, presumin-do-se a boa-fé quando fundamentado na inconstitucionalidade, na injustiça da lei ou em pronunciamento judicial anterior" (art. 34, IV, da Lei n. 8.906/1994).

PACHECO, José da Silva. Processo de falência e concordata. Comentários à Lei de Fa­lências, p.250.

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ABUSO DO DIREITO NO NOVO CÓDIGO CIVIL E O ABUSO PROCESSUAL 85

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O abuso do direito, tão antigo quanto o próprio direito, vem sendo discipli­nado de forma diversa no decorrer da História, oscilando conforme a maior ou menor interferência do Estado nas relações privadas. Dessa forma, nos períodos em que o Estado procura se afastar dessas relações, a tendência é que a noção do abuso seja mais restrita. Entretanto, nos períodos em que o Estado interfere de maneira mais significativa nas relações entre particulares, tem-se, como agora, uma ampliação da noção do abuso do direito, que, com o novo Código Civil, passa a se manifestar como qualquer exercício do direito que fira os limites impostos por seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes.

Entende-se que a tendência claramente social da nova lei civil deva alcançar também as relações processuais, ampliando a noção de litigante de má-fé e, mais que isso, proporcionando a efetiva aplicação das sanções àquele que comete abu­so processual, o que ainda ocorre de forma tímida em nosso País. 4 0

Não basta, portanto, a estipulação de deveres ao litigante de boa-fé, o que Giuseppe Chiovenda resumiu em três aspectos:

1. a obrigação de não sustentar teses de que, por sua manifesta inconsis­tência, é inadmissível que o litigante esteja convencido;

2. a obrigação de não afirmar conscientemente coisas contrárias à verdade; 3. a obrigação de comportar-se, em relação ao juiz e ao adversário, com

lealdade e correção. 4 1

O ordenamento brasileiro e o Poder Judiciário não podem ser coniventes com práticas atentatórias aos ditames da justiça, sendo, antes de tudo, necessário que o litigante de má-fé submeta-se à responsabilização por seus atos o qual, em virtude do abuso processual, vão além da simples responsabilidade decorrente da sucumbência. 4 2

4 0 MAIA, Valter Ferreira. Op. cit., p. 189. 4 1 CHIOVENDA, Giuseppe. Op. cit., p.437. 4 2 Francesco Carnelutti faz a distinção entre o alcance da responsabilidade normal e a

responsabilidade agravada pelo abuso processual: "[...] a responsabilidade normal do vencido não é uma responsabilidade subjetiva, porque não está ligada a outros pres­supostos a não ser ao vencimento [...]. Mas o caso da responsabilidade agravada é diferente já que, a agravação consiste naquele estado de consciência que constitui, pelo menos, o grau mínimo da desobediência e, portanto, da culpa". Instituições do processo civil, v.2, p.173.

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Diversas são as formas de se caracterizar o abuso do direito no processo, mas possíveis dificuldades na interpretação dos dispositivos do Código não podem ser vistas como justificativas na utilização do processo para fins diversos dos anseios que levaram o Estado ao monopólio da jurisdição.

Francesco Carnelutti é autor do clássico As misérias do processo penal, no qual trata da degeneração do processo penal como u m dos sintomas da civilização em crise. 4 3 Certamente, se o próprio Carnelutti ou qualquer outro autor tratasse das "misérias do processo civil", o abuso processual figuraria como u m dos tópicos de destaque, tendo-se em vista os males que causa às partes e à sociedade.

Procurou-se demonstrar os problemas decorrentes do abuso do direito e do abuso processual, geralmente ligados às partes e aos procuradores, contudo, não seria justo olvidar dos abusos que, mesmo sem explícita previsão legal, são diu-turnamente perpetrados pelos demais operadores do direito em detrimento da sociedade.

Nesse sentido, da mesma forma que compete às partes uma atuação leal e pautada pela boa-fé, é hora de magistrados, Ministério Público e demais órgãos ligados ao processo e à justiça assumirem também suas parcelas de responsabili­dade em um sistema que submete o litigante às suas inúmeras misérias.

O novo Código Civil é apresentado à sociedade como instrumento da mu­dança de u m sistema individualista-patrimonialista, em que os indivíduos eram disciplinados enquanto proprietários de bens, rumo a u m sistema no qual o ser h u m a n o é visto como sujeito de direitos que têm por escopo, justamente, uma maior inserção social.

Com base nisso, conclui-se, recorrendo novamente às palavras de Cândido Rangel Dinamarco, que, como poucos, apresentou o processo como instrumento:

Nenhum estudo processual será suficientemente lúcido e apto a conduzir a resulta­dos condizentes com as exigências da vida contemporânea, enquanto se mantiver na visão interna do processo, como sistema fechado e auto-suficiente. 0 significado político do processo como sistema aberto, voltado à preservação dos valores postos pela sociedade e afirmados pelo Estado, exige que ele seja examinado também a partir de uma perspectiva externa; exige uma tomada de consciência desse univer­so axiológico a tutelar e de maneira como o próprio Estado define a sua função e ati­tude perante tais valores.44

CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal, p.45. DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p.99.

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ABUSO DO DIREITO NO NOVO CÓDIGO CIVIL E O ABUSO PROCESSUAL 87

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A B U S O D O D I R E I T O E A B U S O D O P R O C E S S O : E X I S T E M R E C U R S O S

M A N I F E S T A M E N T E P R O T E L A R ) RI O S ?

CAROLINA BONADIMAN ESTEVES*

Sumário 1. Considerações iniciais. 2. Abuso do direito. 3. Abuso do processo. 4. Abuso do direito de recorrer. 5. Refle­xões finais. Referências bibliográficas.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Desde o momento em que foi atribuído ao Estado o poder-dever de dizer o direito no caso concreto, o processo — concebido como u m instrumento de apli­cação do direito material por meio da tutela jurisdicional estatal - só é conside­rado efetivo quando, diante do descumprimento do direito material entre as par­tes e da recusa de uma delas em cumpri-lo amigavelmente, o Poder Judiciário consegue restabelecer a situação anterior o mais próximo e o mais rápido possí­vel, a ponto de fazer com que a tutela jurisdicional estatal seja tão útil quanto seria se o direito material fosse cumprido sem sua atuação.

Em outros termos, o que se busca com o processo é a tutela efetiva de direi­tos, 1 pois, além de assegurá-los (tutela), deve garantir coercitiva e tempestiva-

Mestre e doutoranda em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP). Professora de Direito Processual Civil das Faculdades de Vitória (FDV). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Advogada. "Na medida em que a atuação da vontade concreta do ordenamento jurídico mate­rial e a pacificação da sociedade dependem, muitas vezes, da atuação jurisdicional, como esta desenvolve suas atividades e procura atingir tais escopos por meio do pro­cesso, a preocupação fundamental daqueles que procuram estudar esse instrumento

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mente a sua satisfação nas hipóteses em que não tiverem sido espontaneamente cumpridos (efetividade da tutela).

O sistema recursal, em rumo contrário a essa tendência moderna, 2 parece ser u m dos pontos de estrangulamento 3 do direito processual civil brasileiro, pois vários fatores a ele relacionados - como o grande número de recursos interpos­tos, o tempo despendido para o julgamento desses recursos, a desproporção entre o número de magistrados e o número de recursos interpostos e a demora para o julgamento de recursos de apelação causada pelo julgamento dos infindáveis recursos de agravo - , aumentam o tempo de duração do processo e, conseqüen­temente, d iminuem a sua efetividade.

Dos fatores mencionados, o que mais interessa, no momento , é o problema relativo à quantidade excessiva de recursos interpostos, que se tem atribuído, em parte, ao abuso do direito4 de recorrer e, mais especificamente, à interposição dos chamados recursos manifestamente protelatórios.

A questão que ora se pretende abordar é: existe abuso do direito de recorrer e, via de conseqüência, existem recursos manifestamente protelatórios7.

O questionamento principal abrange, necessariamente, algumas questões secundárias, mas prévias, tais como: (1) quais são as hipóteses de abuso do direi-

com que a jurisdição opera está voltada para os resultados que ele deve produzir. Busca-se, pois, a efetividade do processo". (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo, p.18)

2 "Aliás, a preocupação com o tempo do processo, e com a possibildiade de a demora gerar dano a direito passível de proteção, constitui apenas um dos aspectos inerentes à efetividade da tutela jurisdicional, tema central do processo civil moderno. Tentar eliminar o dano emergente da demora normal do processo é o grande desafio lança­do ao processualista. A ele cabe formular mecanismos destinados a possibilitar que o processo alcance seus escopos institucionais e não se transforme em nova fonte de insatisfações". (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p.21)

3 "Quais contribuições úteis pode o novo pensamento processual trazer para o aperfei­çoamento do sistema? Quais conclusões podem ser tiradas, para encaminhar o pro­cesso civil no rumo do cumprimento mais estrito, sem resíduos ou desvios, da sagra­da missão de trazer à sociedade como um todo e aos seus membros em particular um clima de mais paz e tranqüilidade? Na resposta a essas indagações estará, provavel­mente, a justificativa de todo o esforço sistemático dos processualistas da atualidade. Considerando ao mesmo tempo as experiências estrangeiras inovadoras, a legislação brasileira mais recente e as mazelas da nossa realidade nacional, podem ser indicados os seguintes pontos merecedores de atenção: [...] d) a simplificação processual". (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, p.306-7)

4 Ou, segundo parte da doutrina, abuso do ônus de recorrer ou abuso do poder de recorrer.

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 91

to (material) e quais são os critérios usados para a caracterização do abuso do direito? (2) De que forma a teoria do abuso do direito (material) aplica-se ao direi­to processual? (3) Quais são os sujeitos do abuso do processo? (4) Quais situa­ções jurídicas processuais podem ser objeto do abuso? (5) Quais são os critérios usados para a caracterização do abuso do processo? (6) Quais são as hipóteses legais de abuso do processo? (7) Há diferença entre abuso do direito de recorrer e abuso do direito no recurso7. (8) Existem, afinal, abuso do direito de recorrer e, con­seqüentemente, recursos manifestamente protelatóriosl

A pretensão deste trabalho, no entanto, não é trazer afirmações ou soluções definitivas para o problema do abuso do processo como um todo, mas tão-so­mente questionar e promover o debate sobre o abuso do direito de recorrer e, prin­cipalmente, sobre o recurso manifestamente protelatório.

2. ABUSO DO DIREITO5

2.1 Breve análise terminológica dos vocábulos "abuso" e "direito"

Antes de analisar os critérios usados para a caracterização do abuso do di­reito, é necessário analisar, terminologicamente, a expressão abuso do direito e a origem da teoria do abuso do direito.

O vocábulo abuso, segundo o Dicionário Aurélio, significa "mau uso, ou uso errado, excessivo ou injusto; excesso, descomedimento, abusão; exorbitância de atribuições ou poderes". 6 Segundo De Plácido e Silva, significa "o excesso de po­der ou de direito, ou ainda o mau uso ou má aplicação dele".7

Já o vocábulo direito apresenta várias acepções, mas, quando utilizado em conjunto com o vocábulo abuso, é tido como direito subjetivo8 [facultas agendi),

5 Não se recomenda o emprego da terminologia abuso de direito, porque transmite a idéia do abuso de direito em contraposição ao abuso de/ato. O que se abusa é o direi­to. Logo, a melhor terminologia seria abuso do direito.

6 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa, vocábulo "abuso", p.6.

7 DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico, v.I, vocábulo "abuso", p.15. 8 Segundo De Plácido e Silva, direito, no sentido subjetivo, significa "uma faculdade ou

uma prerrogativa outorgada à pessoa (sujeito ativo do drieito), em virtude da qual a cada um se atribui o que é seu (suum cuique tribuere), não se permitindo que outrem venha prejudicá-lo em seu interesse {neminem laedere), porque a lei (norma agendi), representando a coação social, protege-o em toda a sua amplitude". (DE PLÁCIDO E SILVA. Op.cit.,v.I, p.15)

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que é conferido às pessoas pelo direito objetivo [norma agendi), e pode ou não ser exercido por seu titular. Nesse sentido é a definição do Dicionário Aurélio, se­gundo o qual direito é a

faculdade legal de praticar ou deixar de praticar um ato; prerrogativa que alguém possui, de exigir de outrem a prática ou abstenção de certos atos, ou o respeito a situações que lhe aproveitam; faculdade concedida pela lei; poder legítimo.9

A expressão abuso do direito, formada por aquelas palavras, significa, segun­do De Plácido e Silva:

exercício anormal ou irregular do direito, isto é, sem que assista a seu autor motivo legítimo ou interesse honesto, justificadores do ato, que, assim, se verifica e se indica­do como praticado cavilosamente, por maldade ou para prejuízo alheio.10

Na doutrina, da mesma forma que houve críticas àquela expressão - sob o argumento de que haveria uma contradição entre as próprias palavras que a com­põem, pois não há como um ato ser, ao mesmo tempo, conforme o direito ou contrário ao direito 1 1 — houve reações 1 2 às críticas, pois, embora se reconheça que a melhor terminologia seja desvio de direito,13 a expressão abuso do direito não é equivocada, já que u m ato pode ser, simultaneamente, conforme u m direito (no sentido de direito subjetivo) ou contrário ao direito (no sentido de ordenamento jurídico), dependendo do sentido atribuído à palavra direito.

2.2 Noções sobre a teoria do abuso do direito

A teoria do abuso do direito, já consagrada na prática com essa denomina­ção, consiste em uma teoria abstrata e autônoma, segundo a qual nenhum direi-

9 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., vocábulo "direito", p.223. 1 0 DE PLÁCIDO E SILVA. Op. cit., v.I, p.16. 1 1 Essa última crítica, posteriormente corroborada por outros autores, foi feita por Mar­

eei Planiol, para quem um ato é exercido ou lícita ou ilicitamente; o excesso/abuso do direito seria, na verdade, a atuação de forma ilícita, pois, para ele, o direito cessa onde o abuso começa ("Ze droit cesse oü Vabus commence"). (PLANIOL, Mareei. Traité élémentaire de droit civil, p.158-9)

1 2 JOSSERAND, Louis. De Vesprit des droits et de leur relativité: théorie dite de Vabus des droits, p.333.

1 3 A palavra desvio já traduz um dos pressupostos para a aplicação da teoria - o desvio - e substituiria, com mais tecnicidade, a impropriedade contida nas expressões abuso de direito, abuso de poder, abuso de autoridade etc.

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 93

to material é absoluto 1 4 a ponto do seu pleno exercício ultrapassar seus próprios limites e causar danos a outras pessoas.

Em outros termos, segundo a teoria do abuso do direito, será responsável pe­los danos causados aquele que, no exercício irregular de seu direito, ultrapassar seus limites e causar prejuízo a alguém, já que mesmo os direitos antes conside­rados como absolutos são atualmente considerados como relativos, no sentido de que devem ser exercidos em conformidade com os fins visados pelo ordena­mento jurídico.

Embora haja divergência na doutrina sobre a sua origem, 1 5 a teoria do abuso do direito, tal como concebida nos dias hoje, foi criada apenas no início do sécu­lo XIX, logo após a Revolução Francesa.

Isso porque, como eram criadas para atender aos anseios da burguesia, as legislações daquela época previam o exercício pleno e absoluto dos direitos da­quela classe social e, com isso, possibilitavam que o mau uso ou o uso irregular de direitos por aquela classe causasse danos aos direitos das outras pessoas.

1 4 Segundo De Plácido e Silva, direito absoluto é aquele que, "por sua própria força e ple­nitude, é oposto a toda e qualquer pessoa, erga omnes, tal como o direito de proprie­dade, ou daquele que investe a pessoa no poder de exercitar um direito (faculdade), sem que possa ser impedido nele, em razão do móvel que impele o seu titular: o direi­to de defesa. O direito absoluto dá, assim, a faculdade de agir ou poder de agir, sem res­trições, contra a pessoa que venha atentar ou ferir o direito de que se é titular, dife-rençando-se do direito relativo, que nascido de uma relação jurídica ou de um vínculo jurídico estabelecido pela vontade de duas ou mais pessoas, somente pode ser opos­to contra uma dessas mesmas pessoas, tal como o direito do credor". (DE PLÁCIDO E SILVA. Op. cit, v.I, p.76)

1 5 Há quem defenda que a teoria do abuso do direito foi criada no direito romano (devi­do ao brocardo summum jus, summa injuria), mas esse brocardo não consistia em uma teoria autônoma, independente e abstrata, tal como é conhecida atualmente a teoria do abuso do direito. As demais regras relatadas nos textos antigos eram somente pontuais para casos específicos, que não podem ser consideradas como uma proibi­ção geral, razão pela qual a elaboração dessa teoria não deve ser atribuída aos roma­nos, e sim aos juristas contemporâneos. (BAPTISTA MARTINS, Pedro. O abuso do direito e o ato ilícito, p.21 e ss.)

Já na Idade Média, a teoria do abuso do direito foi confundida com a teoria dos atos emulativos (aemulatio), que, apesar de também repudiar o exercício abusivo do direi­to, exigia a caracterização do animus nocendi — um dos pressupostos típicos do ato emulativo, ou seja, aquele exercido sem utilidade ou interesse para o titular do direi­to, mas com o escopo de produzir mal a outrem - que não era requisito essencial para a caracterização do abuso do direito.

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Reagindo a esse individualismo característico das primeiras codificações modernas, a jurisprudência francesa do século XIX 1 6 estendeu o âmbito de apli­cação do art. 1.382 do Código Civil francês - que antes só se aplicava às hipóte­ses usuais de responsabilidade civil e, depois, passou a ser aplicado às hipóteses em que o exercício de u m direito causasse danos a outrem — e, com isso, criou a teoria do abuso do direito.

É preciso, agora, passar ao exame dos critérios usados para a identificação desse abuso para que, posteriormente, verifique-se de que forma essa teoria apli­ca-se ao processo civil, se pode haver abuso do processo, abuso do direito de recor­rer e, principalmente, recurso manifestamente protelatório.

2.3 Critérios para identificação do abuso do direito

Diversas teorias tentaram estabelecer os critérios para a caracterização e iden­tificação do abuso do direito.

O primeiro grupo de teorias - das teorias subjetivistas/psicológicas, que se desdobra em três correntes mais importantes — entende que são requisitos indis­pensáveis para a configuração do ato abusivo de direito: (1) a intenção de preju­dicar alguém; 1 7 (2) a intenção de prejudicar alguém e a inexistência de proveito ou utilidade do ato para o agente; ou (3) os mesmos requisitos necessários à ca­racterização do ato ilícito culposo. 1 8

Já o segundo grupo - das teorias objetivistas/finalistas - propõe critérios variados, 1 9 os quais dispensam o elemento subjetivo do agente e, ao mesmo tem-

Aceita-se, contudo, que alguns dos princípios informativos da teoria do abuso do direito têm suas raízes no direito romano e na teoria dos atos emulativos, já que foram encontrados vestígios da proibição ao abuso do direito.

1 6 OTEIZA, Eduardo. Abuso de los derechos procesales en America Latina. Revista de Processo, v.24, n.25, p.l5.

1 7 CASTRO FILHO, José Olímpio de. Abuso do direito no processo civil, p.26. 1 8 É o que defendiam os irmãos Mazeaud, para os quais o abuso do direito seria mera

conseqüência da aplicação dos princípios da responsabilidade civil por ato ilícito e, por­tanto, não haveria que se falar em fins sociais do direito. (MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, Léon. Traité théorique et pratique de la responsabilité civile délictuelle et contractuelle, p.520 e ss.)

1 9 Os critérios propostos pelos finalistas são os seguintes: (1) desatendimento à destinação econômica ou social do direito; (2) ausência de motivos sérios ou legítimos para a prá­tica do ato; (3) falta de utilidade ou interesse para o agente com a prática do ato; (4) exercício anormal ou irregular de direito, entre outros mencionados por Pedro Baptista Martins. (BAPTISTA MARTINS, Pedro. Op. cit., p.250)

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 95

po, apresentam um elemento objetivo em comum: o desvio de finalidade no exer­cício do direito subjetivo (uso anormal do direito). 2 0

Verifica-se, portanto, que o primeiro grupo de teorias apresenta critérios que, se isoladamente considerados, são de difícil aplicação — já que a caracterização do abuso dependeria da comprovação da intenção do agente ou do chamado animus nocendi11 (teorias subjetivistas/psicológicas) - , mas que, se combinados com o cri­tério do desvio de finalidade 2 2 (teorias objetivistas/finalistas) - cuja identificação é mais simples - , facilitaria a tarefa de identificar as hipóteses de abuso do direito.

Diante desses dois grupos de teorias, o jurista francês Louis Josserand - que trouxe enorme contribuição para a teoria do abuso do direito - parece ter se posicionado em u m terceiro grupo, o das teorias mistas/ecléticas, que se situa en­tre aqueles outros dois, 2 3 pois, em sua obra, 2 4 menciona a comprovação de ele­mentos tanto subjetivos (motivo ilegítimo) quanto objetivos (função social ou espírito do direito). Dessa forma, para esse jurista só haverá abuso do direito quando o exercício de um direito subjetivo for conduzido por um motivo não legítimo e ocasionar lesão ao espírito desse direito, já que, como todo direito sub­jetivo é relativo, deve ser exercido conforme o espírito da instituição.

O que importa, na verdade, é que, das teorias que tentaram fixar os critérios para a identificação do abuso do direito, todas elas comparti lham os seguintes critérios: a aparência de legalidade do abuso, a preexistência de u m direito sub­jetivo e a relação entre o abuso e o exercício do direito (e não entre o abuso e o direito propriamente dito).

2.4 Abuso do direito no Código Civil

O título III do livro I do Código Civil brasileiro (Lei n. 10.406, de 11/1/2002), sobre os atos ilícitos, prevê três artigos, quais sejam, os arts. 186, 187 e 188.

2 0 SALEILLES, Raymon. Théorie génerale de Vobligation. 2 1 Ocorre, por exemplo, quando um locatário pretende usar seu direito de preferência

na aquisição do imóvel locado apenas para que o locador perca a oportunidade de celebrar a venda para um terceiro.

2 2 Ocorre, por exemplo, quando um proprietário constrói um muro em seu terreno apenas para obstar a servidão de passagem em relação aos ocupantes dos terrenos vizinhos.

2 3 Nesse sentido, cf. dissertação de mestrado de Helena Najjar Abdo. (ABDO, Helena Najjar. Fundamentos sistemáticos do abuso do processo no direito processual civil, p.29, nota 52)

2 4 JOSSERAND, Louis. Op. cit., p.35, 364, 366 e 412-14.

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96 CAROLINA BONADIMAN ESTEVES

O primeiro deles (art. 186) diz respeito ao ato ilícito e, na verdade, consiste em u m aperfeiçoamento do correspondente art. 159 do Código Civil de 1916, pois acrescentou que ato ilícito é todo aquele que causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral (e não apenas prejuízo, que estava mais relacionado à idéia de dano exclusivamente material). Com efeito, segundo o novo dispositivo legal, "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".

0 segundo deles (art. 187), por sua vez, não tem um dispositivo correspon­dente no Código Civil de 1916, já que este não dispunha expressamente sobre o abuso do direito. No Código Civil em vigor, o abuso do direito passou a ser equi­parado ao ato ilícito, pois o art. 187 dispõe que:

também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifes­tamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Da redação desse dispositivo, extraem-se os critérios utilizados para a carac­terização da abusividade do ato, quais sejam: (1) o exercício do direito por seu respectivo titular; (2) a concomitância entre a prática do abuso e o exercício do direito; (3) o excesso aos limites impostos pelo fim econômico ou social do direi­to exercido, pela boa-fé ou pelos bons costumes e (4) o caráter manifesto do excesso cometido.

Por fim, o terceiro dispositivo legal contido no título III do Código (art. 188) praticamente manteve a redação do art. 160 do antigo Código Civil, já que tam­bém excluiu da relação de atos ilícitos a lesão à pessoa, a fim de remover perigo iminente. Com efeito, o art. 188 dispôs que:

Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

1 - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remo­ver perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inc. II, o ato será legítimo somente quando as circuns­tâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispen­sável para a remoção do perigo.

Verifica-se que, ainda que se enquadrem na hipótese prevista nos arts. 186 e 187 do Código, os atos que forem praticados em legítima defesa ou no exercício regular de u m direito não são considerados como atos ilícitos e, portanto, não se ensejam a responsabilidade civil aquiliana ou extracontratual.

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 97

Interpretando esse dispositivo legal, conclui-se que, podendo haver exercí­cio regular de um direito - que não é considerado ato ilícito - é porque pode ha­ver, em sentido contrário, o exercício irregular de um direito, o qual, por não estar abarcado na hipótese do art. 188, deve ser considerado ato ilícito.

Essa conclusão - de que o exercício irregular de um direito, assim como o abuso do direito, consiste em um ato ilícito - leva à conclusão de que, para a con­figuração do abuso também seria necessária a presença do elemento subjetivo, as­sim como ocorre quando configura-se uma responsabilidade civil extracontratual.

O Código Civil, portanto, parece ter adotado o critério comum às teorias eclé­ticas, segundo as quais seria necessária a comprovação do elemento principal de natureza objetiva - o desvio de finalidade - e de um dos elementos secundários de natureza subjetiva, entre os quais encontra-se a boa-fé objetiva.

Em outros termos, para verificar se o exercício de um direito excedeu os li­mites impostos pela boa-fé, não se deve levar em conta simplesmente a vontade ou a intenção do agente (boa-fé subjetiva). Deve-se, ao contrário, investigar a boa-fé objetiva, 2 5 ou seja, deve-se partir de uma regra de conduta ou de um dever de agir em conformidade com determinados padrões sociais estabelecidos e re­conhecidos (do homem médio, no caso concreto, levando em consideração os aspectos sociais envolvidos).

3. ABUSO DO PROCESSO

3.1 Noções sobre o abuso do processo

Embora não haja nenhum dispositivo do Código de Processo Civil que determine a aplicação do art. 186 do Código Civil ao direito processual civil -mesmo porque o diploma processual é anterior ao Código Civil em vigor - , a doutr ina 2 6 tem defendido a aplicação da teoria do abuso do direito (material) ao processo civil.

Assim, transpondo-se a teoria do abuso do direito para o processo civil, tem-se o chamado abuso do processo, o qual ocorre quando há uso anormal das

No ordenamento jurídico pátrio, diversos diplomas legais prevêem a chamada boa-fé objetiva, tais como a Constituição Federal de 1988 (arts. I o , IV; 3 o , I), o Código Civil (arts. 113, 187, 422 e 765), o Código de Processo Civil (art. 14, II), o Código de Defe­sa do Consumidor (arts. 4 o , III; 51, IV) e a Lei de Introdução ao Código Civil (art. 4 o), entre outros. Cf. as obras mencionadas na bibliografia deste trabalho.

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98 CARO LI NA BONADIMAN ESTEVES

situações jurídicas subjetivas (poderes, faculdades, ônus ou deveres) atribuídas ao sujeito do processo.

O uso anormal das situações jurídicas subjetivas processuais ocorre quando há uma disparidade entre os meios ou instrumentos utilizados pelo sujeito e os fins por ele almejados.

No plano do processo - que é um instrumento de aplicação da regra de direito material não cumprida voluntariamente por uma das partes - , uma situa­ção jurídica subjetiva pode ser utilizada para um determinado fim que, contudo, não condiz com os escopos do processo. 2 7 Em outros termos, quando o processo é utilizado para um fim diverso daquele de seus escopos - o escopo social (elimi­nação de conflitos e pacificação com justiça em cada caso concreto), o escopo po­lítico (imperatividade da decisão dos conflitos que lhe são apresentados) e o es­copo jurídico (atuação da vontade concreta do direito) - , fica caracterizado o desvio de sua finalidade e, portanto, o abuso do processo.

Esse possível desvio de finalidade, e, portanto, abuso do processo, ocorre em virtude do grau de liberdade que é conferido aos sujeitos do processo, pois, con­forme os limites legais impostos à sua conduta e as garantias constitucionais da legalidade e da liberdade, sua margem de atuação pode ser menor ou maior (caso em que as oportunidades para o abuso do processo aumentam).

Verifica-se, portanto, que a aplicação, ao processo civil, da teoria do abuso do direito apresenta algumas limitações em função das peculiaridades do proces­so, tais como os sujeitos, o objeto e, principalmente, os critérios de identificação do abuso do processo, conforme será demonstrado adiante.

3.2 Breves distinções conceituais

Antes de analisar os sujeitos, o objeto e, principalmente, os critérios de identificação do abuso do processo, é necessária u m a breve distinção entre os seguintes conceitos: abuso do processo, ato ilícito, contempt of court e litigância de má-fé.

Conforme será demonstrado em tempo oportuno, o abuso do processo pres­supõe (1) ação ou omissão no exercício de situação jurídica processual; (2) des­vio de finalidade; (3) aparência de legalidade; e (4) culpa. Portanto, o abuso dopro-

Cândido Rangel Dinamarco leciona que "a jurisdição não tem um escopo, mas esco­pos (plural); é muito pobre a fixação de um escopo exclusivamente jurídico, pois o que há de mais importante é a destinação social e política do exercício da jurisdição". (DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p.317)

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 99

cesso, que não necessariamente viola a lei, pode ser fonte de responsabilidade civil, mas a lesividade à administração da justiça é apenas u m reflexo, e não u m elemento do ato abusivo.

O ato ilícito, já abordado no item 2.4 citado anteriormente, consiste na ação ou omissão voluntária, na negligência ou na imprudência que viola o direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral (art. 186 do CC) e, por­tanto, é fonte de responsabilidade civil.

A contempt of court,2s por sua vez, teve origem nos sistemas da common law — que protegem o due process oflaw (devido processo legal) e o fair procedure (pro­cedimento justo) - , e consiste em ato de maliciosa rebeldia à autoridade judiciária. No Brasil, é tida como sinônimo de ato atentatório à dignidade ou à administra­ção da justiça e enseja medidas de caráter tanto preventivo quanto punitivo (para coibir ou punir atos causadores de dano à justiça).

Por fim, a litigância de má-fé ocorre apenas nas hipóteses legais de abuso do processo, ou seja, nas hipóteses previstas no art. 17 do CPC. Diante disso, pode-se afirmar que todas as hipóteses de litigância de má-fé consistem em hipóteses de abuso do processo, mas nem todas as hipóteses de abuso do processo consis­tem em hipóteses de litigância de má-fé.

3.3 Sujeitos do abuso do processo

É sabido que, em geral, deve haver ao menos dois sujeitos parciais - cada um ocupando u m pólo (ativo e passivo) da relação jurídica processual e defendendo pretensões contrapostas que formam o conflito de interesses levado a juízo - e um sujeito ou órgão colegiado, imparcial, ao qual incumbe a prestação da tutela jurisdicional para a solução do conflito.

Conforme a complexidade da relação de direito material, podem existir re­lações jurídicas processuais em que haja pluralidade de partes (no pólo ativo, no pólo passivo ou em ambos os casos, formando, respectivamente, litisconsórcio ativo, passivo ou misto), intervenção de terceiros (que não são partes, mas tam­bém são sujeitos da relação jurídica processual), intervenção do Ministério Público (cuja função, neste caso, é a de fiscalizar a aplicação da lei ou do direi­to sempre que houver interesse público e social), atuação de auxiliares da justi­ça, etc.

A contempt of court brasileira está prevista nos arts. 14, V; 125, III; 599; 600; 601; e 620 do CPC.

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100 CAROLINA BONADIMAN ESTEVES

Isso porque, embora no processo seja palco de discussão das pretensões das partes (que, diante disso, ficam mais propensas à prática do abuso do processo), 2 9

todos os sujeitos que atuam em uma relação jurídica processual - seja como parte, como advogado, 3 0 como magistrado, 3 1 como custos legis,32 como terceiro in-terveniente, seja como auxiliar da justiça — podem, eventualmente, fazer mau uso dos poderes ou das faculdades que lhes forem conferidos e podem, dessa forma, cometer o chamado abuso do processo.

Portanto, os sujeitos do abuso do processo são exatamente os mesmos sujei­tos da relação jurídica processual, já que são estes os titulares que podem causar ou sofrer o abuso do processo.

3.4 Objeto do abuso do processo

Se no plano do direito material o objeto do abuso é o (exercício de) direito subjetivo, no plano do direito processual civil o objeto do abuso do processo seria, por uma questão lógica, o (exercício de) direito subjetivo processual.

Contudo, a expressão direito subjetivo processual não tem sido utilizada e, sim, substituída por algumas das denominadas situações ou posições jurídicas subjeti­vas. Em outras palavras, a doutrina moderna abandonou a concepção tradicio­nal de direitos subjetivos processuais e a substituiu pelo conceito das várias situa­ções jurídicas subjetivas, pois esse conceito é mais restrito que aquele, portanto, podendo identificar melhor o objeto do abuso. 3 3

Nesse sentido, cf. CALAMANDREI, Piero. II processo come giuoco. Rivista di diritti processuale, p.25-6; THEODORO JÚNIOR, Humberto. Abuso de direito processual no ordenamento jurídico brasileiro. O processo civil brasileiro no limiar do novo século, p.100; PEYRANO, Jorge. Abuso de los derechos processales, p.76; LIMA, Alcides de Mendonça. Probidade processual e finalidade do processo, p.15. Esse é um tema que exige uma abordagem aprofundada, o que foge ao objetivo deste trabalho. No caso dos magistrados (juizes, desembargadores e ministros), a terminologia mais adequada seria abuso de poder, pois, diferentemente dos demais sujeitos - por exemplo, as partes, que exercem poderes, faculdades, ônus e deveres na relação jurídica proces­sual —, os sujeitos imparciais são autoridades que exercem um poder-dever jurisdicio-nal em relação aos demais sujeitos, submetidos que estão ao poder por eles exercido. No caso de abuso do processo cometido pelo Ministério Público, quem responde é o Estado ou, conforme o caso, o próprio membro do Ministério Público (se sua condu­ta for considerada abusiva ou desleal). "O sujeito pode abusar de um determinado poder processual que não configura, iso­ladamente considerado, um direito subjetivo processual. Pode ainda abusar de um ônus

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 101

As situações ou posições jurídicas subjetivas se dividem em duas grandes espécies: as ativas (poder, direito e faculdade) e as passivas (ônus, obrigação e de­ver), e podem variar conforme o grau de atuação ou de sujeição do seu titular.

O chamado direito subjetivo processual está sempre mais bem representa­do por alguma das situações jurídicas subjetivas em separado, mesmo porque, em alguns casos, a palavra direito - que, conforme será demons t rado a seguir, t raduz uma situação jurídica ativa, na medida em que permite ao sujeito rea­lizar atos — não será a mais adequada para indicar uma situação jurídica pro­cessual de natureza passiva, tal como o ônus (que impele o sujeito à prática de um ato).

Diante disso, segundo Cândido Rangel Dinamarco, são situações jurídicas ativas [faculdades que a lei outorga às partes e poderes do quais elas ou o juiz são titulares no processo) as que "permitem realizar atos processuais segundo a deliberação ou o interesse de seu titular, ou exigir de outro sujeito processual a prática de algum ato". Essas situações "são sempre favoráveis ao titular, porque apontam à realização, por ele própr io ou por outrem, de um ato de seu inte­resse". Entretanto, são passivas as situações jurídicas processuais "que impelem o sujeito a u m ato (deveres e ônus) ou lhe impõem a aceitação de u m ato alheio". 3 4- 3 5

Sendo assim, apenas as seguintes situações jurídicas subjetivas processuais estão sujeitas ao chamado abuso do processo: poderes, faculdades, ônus e deveres.

3.5 Critérios para a identificação do abuso do processo

Em virtude de o Código de Processo Civil não elencar claramente critérios para a identificação do abuso do processo, vários trabalhos científicos 3 6 ocupa­ram-se de tal tarefa e formularam um critério principal (desvio de finalidade) e outros critérios complementares (falta de fundamento da demanda, ilegitimida­de ou ilicitude do fim, lesividade à administração da justiça e culpa).

O desvio de finalidade, como requisito para a caracterização do abuso do processo, consiste na impropriedade ou no abuso da escolha dos fins do proces-

processual, conceito que está - de uma certa forma — na contramão daquele de direi­to subjetivo". (ABDO, Helena Najjar. Op. cit., p.68) Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, t. II, n.492. Idem. Os efeitos dos recursos. In: Aspectos polêmicos e atuais do recursos cíveis, v.V, p.25. Cf., por todos, dissertação de mestrado de Helena Najjar Abdo. (ABDO, Helena Najjar. Op. cit.)

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so, e não dos meios processuais, que, apenas de forma reflexa, acarretará o des­vio do meio processual. 3 7

Com efeito, considerando que a lei não prevê o fim de cada meio processual isoladamente, o desvio deve ser aferido em relação ao fim de cada processo como u m todo.

No item 3.1, demonstrou-se, que o processo persegue escopos sociais (elimi­nação de conflitos e pacificação com justiça em cada caso concreto), políticos (imperatividade da decisão dos conflitos que lhe são apresentados) e jurídicos (atuação da vontade concreta do direito). Portanto, quando não se atingem esses escopos, fica caracterizado o desvio de finalidade e, por conseqüência, o abuso do processo.

No entanto, o critério do desvio de finalidade não é suficiente para, de for­ma isolada, caracterizar o abuso do processo, razão pela qual, conforme o caso concreto, a doutr ina 3 8 sugere a adoção de outros critérios complementares que, quando combinados àquele critério principal, possibilitem a caracterização do abuso do processo.

O primeiro critério sugerido pela doutrina é o da falta de seriedade do ato ou falta de fundamento da demanda, que ocorreria nas hipóteses de erro quanto ao direito, impossibilidade jurídica do pedido, irrelevância da controvérsia para os fins visados, etc.

Um outro critério sugerido para a identificação do abuso do processo é o da ilegitimidade ou ilicitude do fim visado pelo sujeito na prática de um ato proces­sual. Influenciado pelos sistemas da common law — que empregam o critério da frivolousness (leviandade/frivolidade que motiva a parte) - , esse critério não trata da ilicitude do ato processual, mas apenas de seu fim. Nesse caso, o dolo ou a culpa do sujeito do processo acarreta u m outro critério - a lesividade à administração da justiça - , independentemente da ocorrência de dano patrimonial ou moral.

No entanto, ao contrário do que ocorre no plano do direito material - no qual, em geral, uma ação/omissão voluntária, negligência ou imprudência que

3 7 Embora o desvio refira-se à finalidade escolhida, só os meios ou instrumentos proces­suais podem ser objeto do abuso. Em outros termos, o objeto do abuso é a situação jurídica subjetiva exercida no processo e o modo pelo qual se abusa é desviando a finalidade dessa situação jurídica.

3 8 Cf. CASTRO FILHO, José Olímpio de. Op. cit.; OTEIZA, Eduardo. Op. cit.; THEO-DORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit.; CORDOPATRI, Francesco. La responsabilità processuale; TARUFFO, Michele. Uabuso dei processo: profili comparatistici. Revista de Processo; entre outros autores mencionados na bibliografia deste trabalho.

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 103

viola direito e causa dano a outrem é ilícita e, portanto, gera responsabilidade civil - , a prática de um ato que viole uma simples regra processual não necessa­riamente gera danos nem caracteriza necessariamente abuso do processo. Com efeito, não consistem em abuso do processo: a interposição de um recurso diri­gido a um órgão jurisdicional equivocado; a indicação, em embargos de declara­ção, de dispositivo legal equivocado; a carência da ação; e o não preenchimento de um pressuposto processual, entre outros.

Na verdade, as hipóteses nos quais pode ocorrer abuso do processo são aquelas em que há uma flexibilidade ou disponibilidade do processo, que é refle­xo de duas garantias constitucionalmente asseguradas às partes: a garantia de liberdade, de um lado, e a garantia de legalidade, de outro.

Assim, embora garanta 3 9 às partes certa liberdade de atuação - não só antes do processo (acesso à justiça) como também durante o processo (delimitação do âmbito de atuação do Poder Judiciário, ampla defesa e contraditório, escolha de meios de prova, entre outros) - , a lei também lhes impõe alguns limites, tanto em relação à forma dos atos processuais (cuja violação não configura abuso) quanto em relação ao conteúdo destes atos (cuja violação, ao contrário, configu­ra abuso). Ou seja, o abuso do processo ocorre normalmente sob a aparência de legalidade, razão pela qual entende-se necessária a comprovação não somente de um desses critérios mas também do último possível critério: a culpa.

A culpa é, em princípio, u m elemento necessário à caracterização do abuso do processo, mas é indispensável a análise do caso concreto para verificar se, apesar de sua não existência, existe algum dos outros critérios complementares que, combi­nados ao critério objetivo do desvio de finalidade, configure a hipótese de abuso.

3.6 Deveres previstos no CPC para evitar o abuso do processo (art. 14)

No Código de Processo Civil, alguns artigos prevêem condutas que nor­teiam e auxiliam a caracterização do abuso do processo, mas o dispositivo legal mais genérico que dispõe sobre os deveres dos sujeitos processuais e que, portan­to, se aplica a todos os tipos de processo e procedimentos, é o art. 14 do CPC.

São direitos processuais constitucionalmente garantidos: acesso à justiça, devido pro­cesso legal, direito de ação e de defesa, contraditório, impossiblidade de uso de provas ilícitas, juiz natural e vedação aos tribunais de exceção, imparcialidade, motivação das decisões, publicidade de julgamentos, auxílio jurídico aos menos desenvolvidos econo­micamente e tutela adequada e eficaz dos direitos constitucionalmente assegurados.

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Com efeito, o art. 14 do CPC dispõe:

Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:40 (I) expor os fatos em juízo conforme a verdade; (II) proceder com leal­dade e boa-fé; (III) não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; (IV) não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou des­necessários à declaração ou defesa do direito; (V41'42) cumprir com exatidão os provi­mentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.

Dos incisos transcritos, os quatro primeiros referem-se a deveres que depen­dem de um elemento subjetivo - a intenção do sujeito do processo ou a manifes­tação de vontade em relação a u m ato processual - , pois passam por u m juízo de valor do sujeito do processo.

O inc. I do art. 14 exige dos sujeitos do processo o dever de "expor os fatos em juízo conforme a verdade". Sobre este dever, é importante questionar alguns aspec­tos: O conceito de verdade é suficientemente objetivo para se distinguir o que é verdade e o que não é? Se, no processo, cada parte alega a sua versão sobre o que ocorreu, como saber se os fatos foram expostos conforme a verdade7. Qual é o limi­te entre a verdade, a mentira e a omissão? Pode-se falar em dever de dizer todos os fatos de que se tem conhecimento para que o juiz possa conhecer a verdade!

Já o inc. II do art. 14 prevê que as partes e todos aqueles que de qualquer forma participam do processo devem "proceder com lealdade e boa-fé", ou seja, aplicam-se ao processo civil os princípios da lealdade processual - segundo os quais os sujeitos do processo devem agir nos limites da liberdade concedida pela lei - e da boa-fé - que, conforme exposto na parte final do item 2.4, deve ser interpretada objetivamente. A questão principal consiste em saber o limite dessa

Redação atribuída pela Lei n. 10.358, de 27/12/2001, que incluiu o seguinte trecho: "e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo". Inciso incluído pela Lei n. 10.358, de 27/12/2001. A esse inciso aplica-se o parágrafo único do art. 14, que dispõe o seguinte: "Ressalva­dos os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inc. V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, apli­car ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será ins­crita sempre como dívida ativa da União ou do Estado", (incluído pela Lei n. 10.358, de 27/12/2001)

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 105

lealdade e dessa boa-fé: As partes devem ser leais entre si ou leais em relação ao Poder Judiciário? No primeiro caso, é razoável exigir que uma parte seja leal em relação à outra, com a qual mantém um conflito de interesses? O dever de leal­dade é interpretado, por parte da doutrina, como um dever de colaboração, mas esta deve existir entre as partes ou entre a parte e o Poder Judiciário? Quais são os limites da lealdade no processo civil?

O inc. III do art. 14, por sua vez, impõe aos sujeitos do processo o dever de "não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento". O que se considera como fundamento para os fins desse inciso? Seria esse inciso uma limitação ao direito de ação e à ampla defesa? Como pro­ceder nos casos dos recursos de fundamentação livre (que não exigem funda­mentação vinculada, a exemplo dos recursos extraordinários e dos embargos de declaração)?

O inc. IV do art. 14 dispõe sobre o dever de "não produzir provas, nem pra­ticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito". Mas a quem cabe o juízo de valor a respeito da utilidade ou necessidade das provas e dos atos processuais: ao juiz ou aos demais sujeitos do processo? Como estes su­jeitos saberão se, na concepção do juiz, a prova ou o ato serão úteis ou necessá­rios à declaração ou defesa do direito?

Por fim, o dever contido no último inc. do art. 14 — "cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final" - também se refere a um dever que depende do elemento subjetivo, mas o faz de forma um pouco diversa dos demais incisos. Com efeito, o dever contido neste inciso não depende de uma valoração do ato a ser praticado pelo sujeito do processo, mas sim da submissão da sua vontade ao poder jurisdicional estatal, representado por u m provimento judicial.

Da breve análise dos deveres processuais, verifica-se que, em princípio, os critérios aplicados ao processo civil são quase os mesmos utilizados pela teoria do abuso do direito.

No entanto, é preciso observar as peculiaridades dos critérios adotados para a caracterização do abuso do processo, o que se fará a seguir.

3.7 Abuso do processo no CPC (art. 17: litigância de má-fé)

Além de prever os deveres das partes e dos sujeitos do processo no art. 14 -como forma de evitar que se cometam abusos —, o Código de Processo Civil pre­vê algumas situações objetivas específicas e outras genéricas (denominadas liti-

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gância de má-fé), que caracterizam violação àqueles deveres, portanto, que carac­terizam o abuso do processo.

Com efeito, segundo a redação do art. 17 do CPC, o qual prevê situações objetivas genéricas, temos:

Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que: (I) deduzir pretensão ou defesa con­tra texto expresso de lei ou fato incontroverso; (II) alterara verdade dos fatos; (III) usar do processo para conseguir objetivo ilegal; (IV) opuser resistência injustificada ao andamento do processo; (V) proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; (VI) provocar incidentes manifestamente infundados; (VII) interpu­ser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Verifica-se que, no dispositivo legal que trata do abuso do processo, não fo­ram adotados exatamente os mesmos critérios da teoria do abuso do direito - tais como o desvio de finalidade e a intenção - , pois foram elencadas apenas de forma casuística, as situações que configurariam o abuso.

Apesar de não empregar a terminologia mais adequada, uma vez que se refere apenas aos litigantes (as partes envolvidas no litígio), excluindo os demais sujeitos que também se submetem aos deveres impostos pelo art. 14, o art. 17 prevê critérios que, em tese, parecem eficientes para a identificação do abuso do processo.

Mas surgem alguns questionamentos a respeito desses critérios genéricos adotados pelo CPC: Eles são adequados? Eles são taxativos? Eles têm fácil aplica­ção na prática?

Para responder a essas indagações, seria necessário analisar profundamente cada uma das hipóteses do art. 17, mas como este trabalho está voltado ao inc. VII deste artigo - que versa sobre os chamados recursos protelatórios - , optou-se apenas por formular indagações a respeito dos incs. I a VI, e, com isso, demons­trar a imprecisão da terminologia adotada pelo CPC.

O inc. I do art. 17 dispõe sobre a seguinte conduta: "deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso". Pergunta-se: A dedu­ção de pretensão ou de defesa contra texto expresso de lei inconstitucional ou inválida caracteriza litigância de má-fé?

O inc. II do art. 17, por sua vez, refere-se à conduta de "alterar a verdade dos fatos". Pergunta-se basicamente o mesmo que foi indagado em relação ao art. 14, I: O conceito de verdade é suficientemente objetivo para se distinguir o que é ver­dade e o que não é? Se, no processo, cada parte alega a sua versão sobre o que ocor­reu, como se faz para saber se a verdade dos fatos foi alterada? Pode-se falar em

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alteração da verdade dos fatos ou, em última análise, trata-se de versão menos pró­xima dos fatos7. A omissão pode se enquadrar como alteração da verdade dos fatos?

A hipótese prevista no inc. III do art. 17 ("usar do processo para conseguir objetivo ilegal") parece ser a que mais se aproxima dos critérios utilizados pela teoria do abuso do direito, já que se refere ao critério de desvio de finalidade. No entanto, ainda restam as mesmas indagações feitas ao inc. I do art. 17: se o obje­tivo visado no processo for proibido por uma lei inconstitucional ou inválida, haveria litigância de má-fé se o processo fosse utilizado para, reconhecendo-se a inconstitucionalidade ou invalidade da lei, atingir um objetivo contrário a essa mesma lei? O simples fato de não se preencher uma condição da ação prevista no CPC (mais especificamente, quando o pedido for juridicamente impossível por proibição legal) caracteriza litigância de má-fé?

O inc. IV do art. 17 trata da "resistência injustificada ao andamento do pro­cesso". Pergunta-se: quais são os critérios para verificar se uma resistência ao andamento do processo é justificada ou não?

A conduta de "proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo" foi prevista no inc. V do art. 17 do CPC. Segundo o Dicionário Aurélio, temerário é sinônimo de "arriscado, imprudente, perigoso, audacioso, infundado". 4 3

Segundo De Plácido e Silva, o vocábulo temerário, no plano jurídico, "resulta do abuso, da imprudência, ou da audácia, em se fazer, ou se tentar fazer, o que não é claramente apoiado em lei, mostrando-se arriscado, duvidoso, incerto" e, além disso, "os pedidos injustos, as petições injustificadas, as diligências extemporâneas, revelado­res de audácia, aventura, de imprudência, são temerárias, desde que se evidenciem notoriamente injustificadas e improcedentes'.^ Pergunta-se: a imprudência deve ser aferida em relação à pretensão de quem praticou o ato processual ou em relação ao processo como u m todo? A parte, ao defender seus interesses, deve fazer um prévio juízo de julgamento sobre a prudência de sua pretensão ou esse juízo cabe ao magistrado? O simples fato de u m pedido ser infundado, não ser justo (qual é o conceito de justo e para quem deve ser justo?) ou ser extemporâneo caracteriza a litigância de má-fé ou apenas improcedência/indeferimento do pedido formulado?

O inc. VI do art. 17 parece estar contido no inciso anterior, pois "provocar incidentes manifestamente infundados" consiste, em última análise, em proce­der de modo temerário no surgimento de um incidente, razão pela qual apli­cam-se, a esse inciso, as mesmas indagações formuladas sobre o inciso anterior.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., vocábulo "temerário", p.628. DE PLÁCIDO E SILVA. Op. cit., vocábulo "temerário", v.I, p.331.

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Por fim, o último inc. do art. 17 trata da interposição de "recurso com intui­to manifestamente protelatório", ou seja, cuida, em última análise, do chamado abuso do direito de recorrer, que será tratado no item 4 a seguir.

Percebe-se que, embora os critérios genéricos adotados pelo CPC sejam u m tanto quanto vagos e não abranjam todas as hipóteses possíveis de abuso do pro­cesso, a idéia de evitar os atos abusivos é necessária para que se atinja a efetivida­de do processo, inclusive no que concerne aos recursos.

4. ABUSO DO DIREITO DE RECORRER45

Antes de analisar o abuso do direito de recorrer e, principalmente, a existência ou não do chamado recurso manifestamente protelatório, é preciso analisar o con­ceito e a natureza jurídica do recurso, os seus objetivos, os seus efeitos e a distin­ção entre abuso do direito no recurso e abuso do direito de recorrer.

4.1 Conceito e natureza jurídica do recurso

Segundo o Dicionário Aurélio, recurso consiste no "meio de provocar, na mes­ma instância ou na superior, a reforma ou a modificação de uma sentença judi­cial desfavorável",4 6 e, segundo De Plácido e Silva, o vocábulo recurso, do latim recursus, corresponde, em sentido estrito, ao "meio pelo qual a par te , 4 7 prejudi­cada por uma decisão judiciária, dirige-se à autoridade que a prolatou ou à auto­ridade superior, a fim de obter uma reforma ou anulação da decisão, que reputa ofensiva a seus direitos". 4 8

Cândido Rangel Dinamarco define o recurso como "um ato de inconfor-mismo, 4 9 mediante o qual a parte pede nova decisão diferente daquela que lhe

4 5 Como as situações jurídicas subjetivas processuais que melhor se adequam ao caso dos recursos são as de poder e de ônus, parece ser mais adequado o emprego das ex­pressões abuso do poder de recorrer ou abuso do ônus de recorrer, mas, neste trabalho, será mantido o uso da expressão abuso do direito de recorrer, em virtude da sua ampla utilização na doutrina e na jurisprudência.

4 6 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., vocábulo "recurso", p.556. 47 Rectius: parte vencida, Ministério Público ou terceiro prejudicado (art. 499 do CPC). 4 8 DE PLÁCIDO E SILVA. Op. cit., vocábulo "recurso", v.I, p.53. 4 9 "é da essência do ser humano insurgir-se contra decisões que lhe são desfavoráveis, e

isto desde criança - quando, por exemplo, o filho recorre à mãe de uma decisão do pai que lhe foi desfavorável, ou vice-versa". (PINTO, Nelson Luiz. Manual dos recursos cíveis, p.81)

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 109

desagrada" 5 0 e lembra que "o processo não se duplica nem se cria uma nova rela­ção processual. Novo curso se instaura, ou nova caminhada, em prolongamento à relação jurídica processual pendente, e daí falar-se em re-curso".51

Esta também é a lição de Alcides de Mendonça Lima: "em diversas palavras, aquela partícula - re - traduz o significado de uma volta ao lugar de onde se par­tiu: retorno, refluxo, regresso". 5 2 Ou seja, o recurso está diretamente ligado à sucumbência, pois "recurso é o meio, dentro da mesma relação processual, de que se pode servir a parte vencida em sua pretensão ou quem se julgue prejudi­cado, para obter a anulação ou a reforma, total ou parcial, de uma decisão". 5 3

Nessa mesma linha de raciocínio, Vicente Greco Filho lembra que a sucum­bência "se identifica com o interesse de recorrer, é a situação de prejuízo causa­do pela decisão", que pode ser aferida em um "sentido comparativo, de relação entre a expectativa da parte e o que foi decidido". 5 4

No que concerne à natureza jurídica do recurso, Nelson Nery Jr. entende ser o recurso um

remédio processual que a lei coloca à disposição das partes, do Ministério Público ou de um terceiro, a fim de que a decisão judicial possa ser submetida a novo jul ­gamento, por órgão de jurisdição hierarquicamente superior, 5 5 em regra, àquele que a proferiu. 5 6

Também há quem entenda que o recurso consiste em um direito, como é o caso de José Afonso da Silva, que define o recurso como um "direito-meio" de a parte sucumbente, na demanda, "impugnar a decisão desfavorável, sob o funda-

DINAMARCO, Cândido Rangel. Os efeitos dos recursos. In: Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis, p.23. Ibidem, p.42. LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos recursos cíveis, p.123. Ibidem, p.l 15. GRECO FILHO, Vicente. Litigância de má-fé (art. 18 do CPC com a redação da Lei 8.952/94). In: Direito processual civil brasileiro, p.279. Em relação ao órgão julgador, parece mais adequada a lição de Ovídio Baptista da Silva, para quem recurso é o procedimento através do qual "a parte, ou quem esteja legitimado a intervir na causa, provoca o reexame das decisões judiciais, a fim de que elas sejam invalidadas ou reformadas pelo próprio magistrado que as proferiu, ou por algum órgão de jurisdição superior". (BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A.; GOMES, Fábio. Teoria geral do processo civil, p.307) NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Princípios fundamentais: teoria geral dos recursos, p. 17.

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110 CAROUNA BONADIMAN ESTEVES

mento, em regra, de erro do juiz, in procedendo ou in indicando, seja quanto ao fato, ou quanto ao direito, tenha ou não razão o recorrente". 5 7

A interposição do recurso pode ser tida, também, como u m ônus proces­sual, 5 8 pois, após a prolação de decisão desfavorável, o interessado terá de recor­rer para obter uma posição mais vantajosa no processo, sob pena de, não o fa­zendo, o próprio recorrente perder a oportunidade de ter uma possível vantagem. Ou seja, o recurso seria um ônus, porque consiste na possibilidade de o recorren­te praticar um ato processual que, caso não seja praticado, poderá acarretar con­seqüências apenas ao próprio recorrente.

A palavra poder, por sua vez, também é utilizada por alguns para traduzir a natureza jurídica do recurso, na medida em que implica a possibilidade de um sujei­to do processo influenciar a esfera jurídica de outro e fazer com que este se subme­ta à vontade daquele para que, no processo, haja um reexame da decisão recorrida.

Independentemente da natureza jurídica que se atribua ao recurso - ou me­lhor, independentemente da situação jurídica subjetiva processual em que se en­quadre o direito (que não parece ser o mais adequado, conforme exposto no item 3.4), poder ou ônus - , há consenso no sentido de que o recurso consiste em uma extensão ou u m prolongamento da ação ou da defesa,5 9 pois pressupõe a existên­cia de lide pendente sobre a qual ainda não se formou a coisa julgada.

4.2 Finalidade do recurso

Rodolfo de Camargo Mancuso, em obra sobre os recursos extraordinário e especial, formula a seguinte pergunta: "O que estaria à base do animus que con­duz a parte que ficou vencida - total ou parcialmente - a impugnar a decisão?" Em resposta à pergunta, este autor sugere três enfoques diversos, os quais se integram e formam um conjunto unitário: "pressão psicológica, 6 0 anseio de preservação do 'justo', e temor da irreparabilidade do dano jurídico". 6 1

5 7 SILVA, José Afonso da. Do recurso adesivo no processo civil brasileiro, p.l06. 5 8 PINTO, Neslson Luiz. Op. cit., p.23. 5 9 Cf. NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Op. cit., p.l84-206. 6 0 "Esse aspecto — o da 'carga de subjetividade' - imanente aos recursos, fica ainda eviden­

ciado quando estes se apresentam sob a forma adesiva (CPC, art. 500): em princípio, a disposição psicológica da parte era de não recorrer [...]; mas, como a contraparte impug­nou o julgado, dá-se uma transformação no animus da primeira, que, abandonando sua primitiva posição de mera espectadora da instância recursal (quando se limitara ao con-tra-arrazoado), lança-se também ao ataque." (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Recurso extraordinário e recurso especial, p.21)

6 1 Ibidem, p.l 8.

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 111

No que concerne ao primeiro enfoque (pressão psicológica 6 2), é importante transcrever a afirmação de Alcides de Mendonça Lima, no sentido de que

se o Estado permite que os indivíduos se utilizem do direito de ação para a defesa de seus interesses, em nome da própria harmonia social, é natural que o próprio Esta­do permita, igualmente, os recursos, em suas várias modalidades, para que os indi­víduos pugnem também pela defesa de seus direitos, desde que se sintam lesados pela manifestação do Estado, ao ser proferida uma decisão por um de seus legítimos representantes. A reação é inata. Faz parte da própria personalidade humana. 6 3

No que tange ao segundo enfoque (anseio de preservação do justo), cabe lembrar a lição do próprio Rodolfo de Camargo Mancuso, para o qual "os recur­sos revelam u m inconformismo ainda mais exacerbado do que o manifestado no plano do interesse de agir", ou seja, para este autor, "o recurso pressupõe não mais a simples pretensão resistida, que qualificaria a lide, mas já agora o descarte total ou parcial da posição sustentada; e é contra tal situação processual que ele bran­dirá o recurso, na busca sôfrega da verdade". 6 4

Por fim, concernente ao terceiro enfoque (temor da irreparabilidade do da­no jurídico), "recorrer de uma sentença significa denunciá-la como errada e pe­dir uma nova sentença que remova o dano injusto causado por ela".65 Ou seja, a razão jurídica de um recurso consiste na "necessidade de seu exercício pela par­t e 6 6 que ficou total ou parcialmente sucumbente, a fim de tentar afastar o dano que a inércia resultaria, com a preclusão formal ou material do julgado".

"Tem-se dito que o instituto dos recursos, em direito processual, responde a uma exi­gência psicológica do ser humano, refletida em sua natural e compreensível inconfor­midade com as decisões judiciais que lhe sejam desfavoráveis. Não resta dúvida de que este sentimento é decisivo para explicar a criação e a permanência, historicamen­te universal, do instituto dos recursos. Mas não se deve perder de vista que o senti­mento, em que se busca fundamentar os recursos, resume-se à compreensível segu­rança de que as partes podem gozar quando sabem que o Juiz da causa terá sempre sua decisão sujeita ao julgamento de outro magistrado, do mesmo nível ou de nível superior o que o tornará mais responsável e o obrigará a melhor fundamentar seu jul­gamento. Isto, no entanto, não legitima que se prodigalizem os recursos, reduzindo a limites intoleráveis a jurisdição de primeiro grau, como acontece entre nós". (BAP-TISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de processo civil, p.309) LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos recursos cíveis, p.129. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit., p.26. Cf. Manuale di diritto processuale civíle, II, n. 288, esp. p.253. Rectius: parte vencida, Ministério Público ou terceiro prejudicado, conforme dispõe o art. 499 do CPC.

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112 CAROLINA BONADIMAN ESTEVES

Do conceito de recurso formulado por José Carlos Barbosa Moreira - remé­dio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invali­dação, o esclarecimento ou a integração de decisão judicial que se impugna - , 6 7

verifica-se que o recurso tem lugar na mesma relação jurídica processual porque suas finalidades são: (1) prolongar a pendência da causa; (2) reformar, invalidar, esclarecer ou integrar a decisão recorrida.

Nesse mesmo sentido é a conclusão que se extrai do conceito de recurso for­mulado por Nelson Luiz Pinto, para quem recurso é uma

espécie de remédio processual que a lei coloca ã disposição das partes 6 8 para impug-nação de decisões judiciais, dentro do mesmo processo, com vistas à sua reforma, invalidação, esclarecimento ou integração, bem como para impedir que a decisão impugnada se torne preclusa ou transite em julgado. 6 9

Considerando, portanto, que o recurso é o meio através do qual se requer, no curso de u m processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a inte­gração de u m a decisão judicial, pode-se afirmar que, em todas essas hipóteses -que variam conforme o caso concreto - , a finalidade imediata do recurso consis­te em impedir a formação da coisa julgada para que, então, seja atingido o obje­tivo imediato conforme o caso concreto (reforma, anulação, esclarecimento ou integração da decisão recorrida).

Assim, a finalidade principal e comum a todos os recursos consiste em pro­longar o andamento do processo, para que, antes de transitar em julgado, a deci­são recorrida seja, conforme o caso concreto, reformada, anulada, esclarecida ou integrada.

4.3 Espécies de recurso quanto à fundamentação: livre e vinculada

Os recursos podem ter fundamentação vinculada ou fundamentação livre, con­forme a lei exija ou não os fundamentos que deverão ser utilizados para ensejar o pedido do recurso.

Com efeito, em alguns casos a lei, ao estabelecer as hipóteses de cabimento de u m recurso, limita sua fundamentação - portanto, restringe os tipos de críti-

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao código de processo civil, v.V, p.265. Rectius: parte vencida, Ministério Público ou terceiro prejudicado, conforme dispõe o art. 499 do CPC. PINTO, Nelson Luiz. Op. cit., p.23.

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 113

ca que se podem ser feitas à decisão recorrida - e, em outros casos, não estipula a fundamentação que deve ser argüida no recurso, deixando o recorrente livre para deduzir qualquer fundamento. 7 0

São recursos de fundamentação livre - que, portanto, não obedecem a ne­n h u m critério: a apelação, o agravo, o recurso ordinário e os embargos infringen-tes. Estes últimos, contudo, sujeitam-se a u m a limitação quanto à sua devolu-tividade, pois devem se ater ao âmbito da divergência entre os julgadores. No entanto, são recursos de fundamentação vinculada - que, portanto, devem res­peitar os princípios exigidos por lei: os embargos de declaração, 7 1 o recurso ex­traordinário e o recurso especial.

4.4 Efeitos do recurso

Entre os vários possíveis efeitos que um recurso pode produzir, serão abordados apenas efeitos que têm relação direta com o t empo de duração do processo e com a (in)existência do chamado recurso manifestamente protela-tório.

Um dos efeitos produzidos pelo recurso é o chamado efeito devolutivo do re­curso. Embora haja divergência sobre o conceito de devolução - que se trata da devolução a órgãos hierarquicamente superiores ou da devolução ao Poder Judi­ciário como u m todo, independentemente do órgão jurisdicional - , parece haver devolução do capítulo recorrido, 7 2 inclusive quando o recurso é endereçado ao pró­prio órgão que proferiu o ato impugnado, pois, ao que parece, devolução não sig­nifica, necessariamente, transferência, mas apenas abertura do procedimento re-cursal e criação do poder-dever de rejulgar. 7 3

Sobre esse efeito, Nelson Luiz Pinto lembra que:

se o recurso devolve ao Poder Judiciário, por força do efeito devolutivo, a apreciação da matéria impugnada, evidentemente, enquanto não julgado o recurso não se ha-

Ibidem, p.31. Embora haja divergência a respeito da natureza jurídica dos embargos de declaração, optou-se por seguir o disposto no CPC, em virtude de o foco e dimensão deste tra­balho não permitirem um estudo aprofundado sobre o assunto. O recurso pode ser interposto contra vários capítulos (total) ou apenas contra um capítulo (parcial), portanto, o efeito do recurso só será produzido em relação à parte recorrida. LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos recursos cíveis, p.286.

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I 14 CAROUNA BONADIMAN ESTEVES

verá de falar em coisa julgada ou em preclusão. A própria definição de coisa julga­da [...] deixa isto evidente.74

Nelson Nery Jr. também entende que o

efeito devolutivo prolonga o procedimento, pois faz com que o processo fique pen­dente até que a decisão judicial não mais seja impugnável [...]. Por outras palavras, o efeito devolutivo adia a formação da coisa julgada.7 5

Há quem entenda que, tecnicamente, u m recurso - interposto e desde que conhecido - só prolongará a duração da relação jurídica processual quando a decisão recorrida tiver, por si própria, a eficácia de pôr fim àquela relação, pois, como as decisões interlocutórias de qualquer grau de jurisdição não provocam a extinção do processo, apenas os recursos interpostos contra as sentenças ou con­tra os acórdãos terão o condão de prolongar a duração do processo. Mas este não parece ser u m argumento subsistente.

Isso porque, tanto no caso de recurso interposto contra sentenças e acórdãos quanto contra decisões interlocutórias, o efeito produzido por seu conhecimen­to acarretará, de uma forma ou de outra, o prolongamento da duração do proces­so, pois deverá haver julgamento a respeito da questão objeto do recurso e, com isso, o processo durará mais tempo do que duraria caso o recurso não tivesse sido interposto e conhecido.

Outro efeito produzido pelo recurso seria o do chamado efeito suspensivo (da eficácia da decisão recorrida), que consiste em uma qualidade do recurso que adia a produção dos efeitos da decisão impugnada, o qual só é produzido quan­do a lei assim determina.

Esse efeito consiste, na verdade, em uma condição suspensiva da eficácia da decisão recorrida, pois, conforme ressalta Nelson Nery Jr.,

a suspensividade respeita mais propriamente à recorribilidade porque o efeito suspen­sivo, na prática, tem início com a publicação da sentença e perdura, no mínimo, até que se escoe o prazo para a parte ou interessado recorrer.76

Embora o recurso só produza efeito suspensivo quando o direito positivo lhe confere tal atribuição, também há, nesses casos, u m prolongamento do pro­cesso, causado pela criação de u m procedimento recursal.

7 4 PINTO, Nelson Luiz. Op. cit., p.35-6. 7 5 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Op. cit, p.371. 7 6 Ibidem, p.383.

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 115

Além desses dois efeitos, existe um outro, que é comum a todos os recursos já admitidos 7 7 e que consiste em impedir o trânsito em julgado da decisão recorrida. 7 8

Nesse aspecto, Cândido Rangel Dinamarco ressalta que, embora tradicio­nalmente se afirme, na doutrina pátria, que qualquer recurso produz o efeito di­reto e imediato de prevenir a preclusão temporal, "esse efeito [...] chega ao ponto de integrar o conceito desse remédio processual". 7 9

Portanto, todo recurso, necessariamente, prolonga a duração do processo, conforme exposto no item 4.2.

4.5 Distinção entre abuso do direito no recurso e abuso do direito de recorrer

Questão relevante - porque necessária para a investigação sobre a existência ou não de recurso manifestamenteprotelatório — é a distinção entre abuso do direi­to no recurso e abuso do direito de recorrer.

A primeira situação ocorre quando, em sede recursal, há abuso no exercício de u m direito (material). Em outros termos, no bojo de um recurso pode haver o que se chama de abuso do direito (material), ou seja, exceder-se os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Nesse caso, deve-se aplicar a teoria do abuso do direito.

Já o abuso do direito de recorrer consiste em uma das hipóteses que é consi­derada litigância de má-fé, pois está previsto no art. 17, VII, do CPC, por meio do que se convencionou chamar de recurso manifestamente protelatório, e trata da hipótese em que o exercício do ato processual de recorrer excede, por si só, os limites impostos pelos fins ou objetivos do'recurso.

No entanto, aquele jurista lembra que "no momento da interposição do recurso igno­ra-se ainda qual destino terá" e que, por esse motivo "se o recurso não chegar ao julga­mento pelo mérito [...] o órgão destinatário não voltou a decidir sobre o que havia sido decidido na instância inferior — cuja decisão, nesse caso, será coberta por uma preclu­são retardada", ou melhor "como o ato de indeferimento ou não-conhecimento tem natureza declaratória de uma inadmissibilidade recursal preexistente, [...] a preclusão foi anterior". (DINAMARCO, Cândido Rangel. Os efeitos dos recursos. In: Aspectos polêmicos e atuais dos recursos, v.V, p.27-8) Dessa forma, apenas os recursos que ultra­passarem o juízo de admissibilidade é que produzirão os efeitos programados pela lei. Há divergência doutrinária a respeito do que produz esse efeito (se o recurso interposto ou o recurso admitido), mas parece ser mais adequada a doutrina que sustenta que ape­nas o recurso admitido produz tal efeito. Cf., por todos, CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil, v.II, p.76. DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit, p.26.

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116 CAROLINA BONADIMAN ESTEVES

4.6 Existem, afinal, recursos "manifestamente protelatórios"?

O foco deste trabalho consiste em refletir a respeito da existência dos chama­dos recursos manifestamente protelatórios, tal como previsto nos arts. 17, VII, 8 0 538, parágrafo único 8 1 e, de certa forma, 8 2 no art. 557, capuf3 e parágrafo 2 o , 8 4 do CPC.

Para tanto, é necessário esclarecer o que vem a significar a expressão manifes­tamente protelatório, para, então, verificar se essa expressão - introduzida no art. 17 do CPC pela Lei n. 9.668, de 23/6/1998 - é adequada ou não para a caracteri­zação do abuso do direito de recorrer.

O vocábulo protelatório consiste em um daqueles conceitos denominados con­ceitos vagos ou indeterminados (expressões lingüísticas cujo referencial semântico não é tão nítido e carece de contornos claros) e, sobre esse assunto, José Carlos Bar­bosa Moreira observa que, às vezes, a lei emprega conceitos juridicamente inde­terminados, porque seria impossível deixar de fazê-lo ou porque não convém empregar outra técnica. 8 5

Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que: (Redação dada pela Lei n. 6.771, de 27/03/1980) [•••]

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. (Inciso acrescen­tado pela Lei n. 9.668, de 23/06/1998) Art. 538. Os embargos de declaração interrompem o prazo para a interposição de outros recursos, por qualquer das partes. (Redação dada pela Lei n. 8.950, de 13/12/1994) Parágrafo único. Quando manifestamente protelatórios os embargos, o juiz ou o tri­bunal, declarando que o são, condenará o embargante a pagar ao embargado multa não excedente de 1% (um por cento) sobre o valor da causa. Na reiteração de embar­gos protelatórios, a multa é elevada a até 10% (dez por cento), ficando condicionada a interposição de qualquer outro recurso ao depósito do valor respectivo. (Redação dada pela Lei n. 8.950, de 13/12/1994) Este artigo se refere a recursos manifestamente inadmissíveis. Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, impro­cedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominan­te do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. (Re­dação dada pela Lei n. 9.756, de 17/12/1998) "§ 2 o Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, o tribunal conde­nará o agravante a pagar ao agravado multa entre 1% (um por cento) e 10% (dez por cento) do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor". (Parágrafo acrescentado pela Lei n. 9.756, de 17/12/1998) BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Regras de experiência e conceitos juridicamente indeterminados. Temas de direito processual, p.64.

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 117

D e qualquer fo rma , antes m e s m o de apl icar u m a n o r m a que contenha u m conceito vago o u inde te rminado , é preciso interpretá-lo. Sobre a interpretação desses conceitos, Tereza A r r u d a A l v i m W a m b i e r ressalta que:

quando se quer chegar à interpretação de um termo jurídico, se fazem duas pergun­tas. Uma, é relativa à própria significação do termo; a outra é ligada ao próprio obje­to, e consiste em se indagar se aquele determinado objeto pode ser designado por aquele termo. 8 6

E prossegue, a f i rmando que:

a primeira pergunta faz operar inevitavelmente certa margem de previsão das pos­síveis aplicações práticas do conceito [...] mas a aplicação prática só se dá quando, efetivamente, se responde à segunda questão.8 7

E m resposta à pr imei ra premissa (a significação do te rmo) , o vocábulo prote-

latório, segundo o Dic ionár io Aurél io, significa "própr io para protelar", 8 8 e o vocábu ­lo protelar, por sua vez, significa "protrair, adiar, retardar, prorrogar, procrastinar". 8 9

Segundo D e P lác ido e Si lva, protelar,

do latim protelare (prolongar, retardar), é geralmente empregado como procrastinar,

prolongar abusivamente, deixar para depois, usar de delongas, adiar propositadamen­

te, enfim, utilizar meios para espaçar, para passar o tempo, para ir além do prazo ou do justo tempo.90

O vocábulo protelatório, por sua vez, v e m de protelar e é empregado para iden ­tif icar todo ato, mane jo o u ardi l ut i l izado "para retardar a solução do feito, para cr iar embaraços à boa marcha do processo, o u empeços para que nada se faça r e ­gularmente" . Segu indo essa l inha , seria prote latór io:

todo recurso indevido ou extemporâneo, todo pedido impertinente, toda medida requerida despropositadamente, toda reclamação injustamente trazida ao procedi­mento, enfim, qualquer meio hábil de estabelecer tardança ou provocar perda de tempo. 9 1

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Questões de fato, conceito vago e sua controlabilidade através de recurso especial. In: Aspectos polêmicos e atuais do recurso especial e do recurso extraordinário, p.437. Ibidem, p.437-8. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit, vocábulo "protelar" p.534. Ibidem, vocábulo "protelatório", p.534. DE PLÁCIDO E SILVA. Op. cit., vocábulo "protelar", p.485. DE PLÁCIDO E SILVA. Op. cit, vocábulo "protelatório", p.485-6.

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118 CAROLINA BONADIMAN ESTEVES

O Superior Tribunal de Justiça também traz, em seu site oficial, uma defini­ção de ato protelatório e, ao mesmo tempo, u m curioso alerta: "ato protelatório: o que tem por escopo prejudicar o andamento regular do processo. Não usar no sentido de recurso protelatório". 9 2

Já o adjetivo manifesto é sinônimo de "patente, claro, evidente, notório, fla­grante", 9 3 segundo o Dicionário Aurélio. Por sua vez, De Plácido e Silva define o adjetivo manifesto como "o que está evidente, inequívoco ou claro. É o que não deixa dúvida".94

A diferença, portanto, entre u m ato protelatório e u m ato manifestamente protelatório consiste no fato de que, neste último, o elemento subjetivo - inten­ção do agente de cometer o abuso ou a sua culpa - é essencial e deve se fazer presente.

Ultrapassada a premissa — no sentido de que a expressão manifestamente pro­telatório é empregada para os atos processuais (e recursos) que prolonguem ou retardem o andamento do processo - , deve-se analisar a segunda indagação: Os recursos podem, de fato, ser designados pela expressão manifestamente protelató­rio7. Existe algum recurso que não seja manifestamente protelatório, ou melhor, que não prolongue a duração do processo?

Entende-se por recurso manifestamente protelatório aquele no qual o re­corrente pretende, de forma deliberada, um efeito repudiado pelo direito e inten­cionalmente lesivo, provocando verdadeira dilação indevida no processo, que tem efeitos negativos sobre os direitos da parte contrária e sobre a própria adminis­tração e dignidade da justiça. 9 5

As hipóteses de recurso manifestamente protelatório, em geral apresentadas pela doutrina, são as seguintes: recurso interposto contra matéria já transitada em julgado, matéria preclusa, matéria contrária a entendimento há muito paci­ficado pela jurisprudência, 9 6 mas, conforme lembra Paulo Henrique dos Santos Lucon,

Glossário encontrado no site oficial do STJ. Disponível em: www.stj.gov.br/ webstj/Processo/Jurisp/Thesaurus/default.asp?termo=ATO%20PROTELATORIO. Acesso em: 30/9/2003. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., vocábulo "manifesto", p.413. DE PLÁCIDO E SILVA. Op. cit., vocábulo "protelatório", p.148. LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Abuso do exercício do direito de recorrer. In: Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais, p.885. "A simples circunstância de um recurso questionar entendimento consolidado pela jurisprudência não deve ser considerada como demonstração inequívoca de litigân-

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 119

na maior parte dessas situações não há prejuízo para o recorrido, poisa preclusão no âmbito recursal gera o não conhecimento imediato do recurso, sem que haja um dis-pêndio de tempo a prejudicar o recorrido.9 7

Além disso, a doutr ina 9 8 apresenta outras possíveis hipóteses: quando há fun-gibilidade recursal - caso em que a má-fé depende necessariamente de uma aná­lise subjetiva do caso e o erro grosseiro deve ser necessariamente acompanhado da intenção deliberada de prejudicar; e quando há falta de fundamentação - caso em que não basta que o recorrente tenha sido displicente ou demonstre pouco conhecimento jurídico, mas sim que tenha tido intenção de prejudicar. No en­tanto, essas duas hipóteses podem variar conforme sejam vistas sob duas óticas: atecnicismo ou intenção de lesar a outra parte.

Ao aplicar-se aos recursos a expressão manifestamente protelatório, devem-se analisar duas possíveis interpretações.

Primeiramente, sob o aspecto de que o recurso retardar o andamento do processo, conclui-se que - em virtude de seu próprio conceito, de sua finalidade e dos efeitos que produzem (cf. os itens 4.1,4.2 e 4.4) - todos os recursos são ma­nifestamente protelatórios, desde que conhecidos. Em outros termos, o recurso só não será protelatório se não for conhecido, pois todo recurso que for conhecido prolongará, de uma forma ou de outra, a duração do processo. Ou seja, não há que se falar em desvio de finalidade, que é um requisito essencial para a caracte­rização do abuso.

Em segundo lugar - o fato de que a intenção do recorrente, ao interpor um recurso com o único objetivo de retardar o andamento do processo, configuraria o chamado recurso manifestamente protelatório t ambém demonstra certa ina­dequação do termo utilizado, por dois motivos: o primeiro é o de que todo recor­rente, por razões óbvias, visa o prolongamento do processo para que, ainda no seu curso (e antes da formação da coisa julgada) demonstre seu inconformismo (com fundamentação livre ou vinculada) e peça a reforma, a anulação, o esclare­cimento ou a integração de uma decisão. Assim, no recurso manifestamente pro­telatório não há que se falar em desvio de finalidade, pois, conforme demonstra­

da de má-fé", pois "não é possível, na maior parte dos casos, definir situações proces­suais estanques destinadas a permitir considerar de má-fé o litigante. As variáveis são tantas (e tão igualmente relevantes), que se mostra indispensável a análise detalhada do caso concreto". (Ibidem, p.888) Ibidem. Ibidem, p.890.

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do no item 4.2, a finalidade principal e comum a todos os recursos consiste em prolongar o andamento do processo para que, antes de transitar em julgado, a decisão recorrida seja, conforme o caso concreto, reformada, anulada, esclareci­da ou integrada.

O segundo motivo é o de que a investigação da intenção do recorrente - ele­mento essencialmente subjetivo - torna quase impossível a caracterização do abu­so do direito de recorrer no processo, pois, ao contrário do que ocorre no direito material, no qual situações substanciais são muito bem definidas, o direito pro­cessual procura a certeza jurídica, na medida do possível, por meio da convicção do julgador diante do direito material e da prova constante dos autos, dentro de u m procedimento que impõe regras de participação a serem cumpridas ." Sendo assim, se por u m lado existem deveres no processo, por outro existem também direitos, sendo certo que a violação daqueles gera a lesão destes.

No entanto, as regras de participação no processo não são claras, pois em­pregam conceitos vagos ou indeterminados, a exemplo do que ocorre com o art. 14 do CPC, objeto de questionamentos no item 3.6.

Por conseqüência, tornam-se extremamente difíceis a identificação do cha­mado recurso manifestamente protelatório ou infundado e a sua aplicação prática como causa de responsabilização por litigância de má-fé, pois, além de ser vago, esse conceito envolve um elemento de caráter essencial e intrinsecamente subje­tivo (e, com isso, abrange uma característica que só pode ser aferida em função da realidade íntima do recorrente).

No caso dos recursos de fundamentação livre, não há sequer como preten­der que, em função da intenção do recorrente, o recurso seja manifestamente pro­telatório ou manifestamente infundado, pois não se exige nenhuma fundamenta­ção específica e não há, em princípio, nenhum critério que sirva de parâmetro para verificar se o recurso é manifestamente protelatório ou infundado.

No entanto, em relação aos recursos de fundamentação vinculada, t am­bém não parecem ser suficientes os critérios da intenção do recorrente e dos fundamentos necessários à sua interposição, pois t ambém permanecem no âmbito essencialmente subjetivo, o que dificulta averiguar se o embargante agiu de má-fé ou não, ao opor, por exemplo, embargos de declaração para sanar contradição inexistente.

Portanto, além de não retratar os critérios utilizados para a configuração do abuso - quais sejam, os critérios objetivo (desvio de finalidade) e subjetivo (in-

9 9 Ibidem, p.880.

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 121

tenção do recorrente) - , a terminologia recursos manifestamente protelatórios[m

parece não ser a mais adequada, pois, na verdade, traduz a finalidade principal inerente aos próprios recursos: prolongar a duração do processo.

5. REFLEXÕES FINAIS

Conforme ressaltado anteriormente, não se pretende apresentar respostas definitivas a nenhum dos questionamentos feitos, mas apenas refletir sobre ques­tões jurídicas que, provavelmente, aliadas a várias outras de ordem econômica e social, tornam de difícil aplicação, na prática, a litigância de má-fé em virtude da interposição de recurso manifestamente protelatório.

Para que se encontre uma solução que ponha fim à demora do processo e à falta de efetividade do sistema recursal civil brasileiro, seria necessário apontar não os seus efeitos, mas as verdadeiras causas.

Como há vários fatores, já mencionados, que parecem contribuir para o surgi­mento desse problema - tais como o grande número de recursos interpostos, o tempo despendido para o julgamento desses recursos, a desproporção entre o número de magistrados e o número de recursos interpostos e a demora para o jul­gamento de recursos de apelação causada pelo julgamento dos infindáveis recursos de agravo - , não basta que apenas um deles seja resolvido; seria necessário atacar todas as situações que geram a falta de efetividade do sistema recursal brasileiro. 1 0 1

Embora seja costume afirmar que o número excessivo de recursos interpos­tos deve-se, em parte, aos chamados recursos manifestamente protelatórios, a exis­tência desses recursos foi questionada neste trabalho, pois, na verdade, todos os recursos adiam, indistintamente, o andamento do processo, portanto, podem ser considerados protelatórios ou manifestamente protelatórios.

Os recursos e os embargos manifestamente protelatórios estão previstos, res­pectivamente, nos arts. 17, VII, e 538, parágrafo único, do CPC, e consistem em hipótese de litigância de má-fé.

No entanto, desde as discussões a respeito da fungibilidadé recursal no sis­tema do CPC de 1939, já era difícil, para a doutrina e para a jurisprudência, esta-

Embora não pareça ser a mais adequada, essa terminologia foi utilizada ao longo do trabalho apenas para facilitar a identificação do problema, já que além de estar prevista no CPC, a expressão "recurso manifestamente protelatório" é amplamente uti­lizada na prática (g.n.). A efetividade do processo está diretamente relacionada ao fator tempo; a demora do processo freqüentemente impede a prestação de uma tutela efetiva do direito. Sobre

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122 CAROLINA BONADIMAN ESTEVES

belecer em que consistiram o "erro grosseiro" e a "má-fé" na interposição do re­curso errôneo, e o problema persiste no Código de Processo Civil em vigor, pois, no caput do art. 17, também empregou-se o termo má-fé.102

Nelson Nery Jr. ressalta, ainda, que "os critérios utilizados foram casuísticos e empíricos, não se chegando a formular algo de aceitação científica universal a respeito do significado do erro grosseiro e da má-fé" e que

havia até quem afirmasse que a má-fé seria apenas causa de agravamento do erro grosseiro, não sendo possível sua existência isolada, mesmo porque não se concebe que alguém pudesse recorrer por má-fé. 1 0 3

Diante da dificuldade de se estabelecer uma definição universal para o con­ceito de má-fé processual - já que a litigância de má-fé é prevista no CPC de forma casuísta - , Pedro Baptista Martins propôs que, para fins da aplicação do princí­pio da fungibilidade, "o juiz, em cada caso concreto, aferisse a existência ou não [...] da má-fé, baseando-se em 'circunstâncias objetivas'." 1 0 4

Além disso, parece inexistir dúvidas de que uma das causas da complexida­de e da inefetividade do sistema recursal brasileiro é o número excessivo de re­cursos interpostos, 1 0 5 pois, como bem lembrou William Santos Ferreira,

o acúmulo de recursos, que fez com que o então Presidente do Supremo Tribunal Federal anunciasse a proximidade da falência do sistema, gerou uma solução emer-gencial polêmica, com a adoção de novas regras que tornam o sistema recursal, efe­tivamente, mais complexo. 1 0 6

Considerando que esse excesso parece estar diretamente ligado à ampla re-corribilidade das decisões, 1 0 7 talvez fosse o caso de se rever não só os critérios ado-

este assunto, cf. TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e processo: uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual civil e penal.

1 0 2 Cf., por todos, NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Op. cit., p.116. , 0 3 Ibidem. 1 0 4 BAPTISTA MARTINS, Pedro. Recursos e processos da competência originária dos

tribunais, p.165. 1 0 5 Cf. BARBOSA MOREIRA, Carlos Roberto. Eles, os recursos, vistos por um advogado

(reflexões em matéria de recursos cíveis). Revista de Processo, n. 107. 1 0 6 pERREIRA, William Santos. Novas tendências do sistema recursal brasileiro e o

prosseguimento da reforma processual, p.320. 1 0 7 "Deve, porém, haver uma limitação à possibilidade de se recorrer. Deve-se chegar a um

momento em que a parte não mais poderá insurgir-se contra a decisão, sob pena, tam­bém, de se eternizarem os processos, em detrimento dos valores efetividade e segurança do

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 123

tados para a caracterização de abuso do processo, mas também de se limitar o número de recursos previstos no sistema recursal brasileiro. 1 0 8

Portanto, não se questiona a existência ou não do abuso do direito de recor­rer (que parece poder ocorrer na prática, mas que deve ser coibido para que não haja, em última análise, abuso do processo).

Questiona-se apenas se o verdadeiro problema do abuso do direito de recor­rer não consistiria na adoção de critérios inadequados - tal como a expressão recurso manifestamente protelatório — os quais não traduzem os critérios emprega­dos para a caracterização do abuso do processo e, portanto, dificultam a configu­ração do abuso na prática.

Além disso, embora os recursos objetivem atribuir segurança jurídica e efeti­vidade à prestação da tutela jurisdicional, é preciso verificar se, sob esse pretexto, a previsão de recursos em excesso não estaria, ao contrário, impedindo que o pro­cesso atinja seus escopos com efetividade.

Corroborando essa preocupação, Nelson Luiz Pinto ressalta que:

para que um sistema possa funcionar com segurança é preciso que haja um meca­nismo de equilíbrio entre a necessidade de que as decisões judiciais sejam revistas e a de que o processo tenha um fim.

Portanto, deve haver um equilíbrio "entre a possibilidade de se impugnar as decisões judiciais proferidas no processo e o instituto da coisa julgada [...] e, ainda, o instituto da preclusão.."109

Um fator que, segundo a doutrina, poderia, em tese, desestimular essa su­cessão de recursos seria a adequada motivação das decisões, 1 1 0 pois quanto mais sólidos fossem os motivos utilizados pelo Poder Judiciário para atribuir vitória à parte contrária, menor seria, em tese, a inclinação do potencial recorrente em interpor recurso.

processo. Chega-se, pois, a um ponto de equilíbrio entre a efetividade do processo, os ins­titutos da coisa julgada e da preclusão e, de outro lado, a idéia de necessidade de revisão das decisões através do expediente de limitação das vias recursais". (PINTO, Nelson Luiz. Op. cit., p.25-6)

1 0 8 Mas, no caso de restrição do número de recursos ou das hipóteses de cabimento dos recursos, seria necessário alterar a legislação pertinente ao mandado de segurança, que, em experiências passadas, foi utilizado para fazer as vezes de recurso.

1 0 9 PINTO, Nelson Luiz. Op. cit., p.24-5. 1 1 0 Cf. BARBOSA MOREIRA, Carlos Roberto. Op. cit., p.264.

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124 CAROLINA BONADIMAN ESTEVES

Contudo, basta a lembrança de que "ao advogado e a seu constituinte jamais parecerá suficiente o número de recursos, se o julgamento derradeiro lhes for desfavorável". 1 1 1

Haveria alguma outra forma de se resolver o problema da dificuldade de ca­racterização, na prática, do abuso do direito de recorrer?

Diante da sua difícil aplicação prática no processo civil, talvez fosse o caso de se reavaliar os critérios - principalmente os subjetivos — utilizados pelo CPC e pela própria doutr ina para a caracterização do abuso do direito de recorrer, já que o critério mais adequado para a caracterização do abuso não parece ser a fi­nalidade de protelar o andamento do processo (inerente ao próprio conceito de recurso).

Ao que parece, e considerando ser praticamente impossível a verificação da intenção dos recorrentes, o abuso do direito de recorrer está mais relacionado à in-terposição de recursos sem ou com fundamentação que não se adapta a algum critério, seja ele predefinido por lei (como é o caso dos recursos de fundamenta­ção vinculada) ou não (como é o caso dos recursos de fundamentação livre).

Para tanto, seria o caso de se aperfeiçoar os critérios já existentes (como o cri­tério das chamadas súmulas 1 1 2 ou jurisprudências dominantes previsto no art. 557 do CPC, desde que se permita a discussão de situações que, embora aparen­temente sejam abarcadas pelas súmulas ou jurisprudências, não tratam da mesma questão discutida) 1 1 3 ou de adotar critérios eminentemente objetivos (cuja interpretação, por ser mais fácil, aumentaria sua aplicação)? 1 1 4

Além disso, seria o caso de, eventualmente, rever algumas das causas do gran­de volume de recursos interpostos: a quant idade 1 1 5 de recursos previstos no orde-

1 1 1 Ibidem, p.258. 1 , 2 "... uma vez consolidado o entendimento dos Tribunais Superiores por meio de sú­

mula, eventual recurso deve ser havido como abusivo, pois atenta contra a própria administração da justiça". (LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Op. cit., p.889)

1 1 3 Dessa forma, permitir-se-ia que os recorrentes demonstrassem que os julgamentos que originaram as súmulas ou as jurisprudências dominantes não tratam, eventual­mente, do mesmo assunto levado a juízo por meio do recurso ou, ainda, que a súmu­la ou a jurisprudência dominante deve ser modificada para que haja uma adequação à época e ao contexto histórico do recurso interposto.

1 1 4 Em virtude de abuso do processo, e não de abuso do direito de recorrer ou de recurso manifestamente protelatório.

1 1 5 "Quanto ao duplo grau de jurisdição, já antes acenado, diga-se que hoje ele é usual­mente aceito como uma decorrência implícita do sistema constitucional, que, de um lado, organiza hierarquicamente as diversas instâncias jurisdicionais, e, de outro, ao

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ABUSO DO DIREITO E ABUSO DO PROCESSO 125

namento jurídico brasileiro, os pressupostos ou mesmo as hipóteses de cabimen­t o 1 1 6 de alguns recursos (tal como ocorreu, nas últimas reformas, com os embargos infringentes e agravo de instrumento)?

Talvez, dessa forma - com a adoção de critérios mais adequados à caracteriza­ção do abuso do direito de recorrer ou com a restrição da ampla recorribilidade das decisões e, portanto, com a diminuição do número de recursos interpostos - , os jul­gadores não despendam mais tanto tempo analisando inúmeros recursos abusiva-

conceituar o devido processo legal (CF, art. 5 o , LV), refere-se à 'ampla defesa', com os 'meios e recursos a ela inerentes'. Sem embargo, em nossa Constituição Imperial (1824), o 'duplo grau merecera acolhimento explícito no art. 158: 'Para julgar as causas em segunda e última instância haverá nas Províncias do Império as Relações, que forem necessárias para comodidade dos povos'. [...] Todavia, como já antes acenado, o duplo grau de jurisdição segue sendo questionado, mormente agora quando se buscam meios para ao menos mitigar o problema da excessiva duração do processo (ou pelo menos fazer com que ela não labore contra a parte assistida pelo bom direito)...". (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p.30) No mesmo sentido: "É característica do sistema processual civil brasileiro o duplo grau de jurisdição, sendo raríssimas as hipóteses em que a lei retira a possibilidade de re­curso às instâncias superiores (como, por exemplo, ocorre na Execução Fiscal, Lei 6.830/80, onde o art. 34 prevê que das sentenças de primeira instância proferidas em execuções até determinado valor não caberá apelação, mas tão-somente embargos infringentes e de declaração, dirigidos ao mesmo julgador de primeira instância). Nada, entretanto, impede que o legislador ordinário estabeleça restrições ao direito de recor­rer, como, por exemplo, a exigência de alçada (valor mínimo da causa), ou em razão da complexidade da causa, como forma de conter o volume de recursos que chegam aos tribunais". (PINTO, Nelson Luiz. Op cit, p.24) Isso porque "a adoção do princípio do duplo grau de jurisdição é uma questão de política legislativa, e não, necessariamente, uma característica inerente ao Judiciário e imposta obrigatoriamente pela Constituição Federal, se bem que a idéia de recurso re­monte às próprias origens mais remotas do Direito". (LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos recursos cíveis, p.129) Oreste Nestor de Souza Laspro, por sua vez, também entende que o duplo grau de jurisdição não pode ser considerado como um dos elementos formadores do devido processo legal, pois não assegura uma decisão mais justa, além de alongar o processo, sendo este, entretanto, entendimento minoritário. {Duplo grau de jurisdição no direi­to processual civil, p.177) Sobre esse aspecto, José Carlos Barbosa Moreira lembra que como "o processo deve necessariamente terminar mais cedo ou mais tarde, são limitadas as possibilidades de impugnação por essa via [dos recursos]. A lei trata de circunscrever o número de recursos utilizáveis, subordinando-os, ademais, a determinados requisitos de admissibilidade". (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro, p.144)

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126 CAROLINA BONADIMAN ESTEVES

mente interpostos e, então, obtenham mais tempo e condições para analisar e jul­gar os recursos em que efetivamente haja discussão sobre as questões principais." 7

E ainda talvez dessa forma seja atingido u m ponto de equilíbrio 1 1 8 entre a (ir)recorribilidade das decisões de u m lado, e as tão almejadas segurança jurídi­ca e efetividade do sistema recursal civil brasileiro de outro lado.

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1 1 7 "Assim é que se compreende seja a sentença, ato final e mais importante do processo, atacável pela apelação, recurso em que se podem mesclar os aspectos de fato e de di­reito; ao passo que as interlocutórias, resolvendo questões menores, são impugnáveis por recurso de extensão mais restrita, o agravo, ou mesmo, em modo retido, pelos re­cursos extraordinário e especial (§ 3 o do art. 542, cf. Lei 9.756/1998)". (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p.30)

1 1 8 "Efetivamente, para que um sistema possa funcionar com segurança é preciso que haja um mecanismo de equilíbrio entre a necessidade de que as decisões judiciais sejam revistas e a de que o processo tenha um fim, isto é, entre a possibilidade de se impug­nar as decisões judiciais proferidas no processo e o instituto da coisa julgada — que consiste na imutabilidade do comando contido na decisão final do processo, que dá força de lei às decisões emanadas do Poder Judiciário e, portanto, segurança e estabi­lidade ao mundo jurídico - e, ainda, o instituto da preclusão, - que gera a impossibili­dade de se praticar determinados atos no processo, ou de se discutir determinadas matérias..." (PINTO, Nelson Luiz. Op. cit., p.24-5)

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A A U T O T U T E L A E O C Ó D I G O C IV IL D E 2002 6

VlVIEN L.YS*

Sumário 1. O espírito do novo Código Civil e a autotutela. 2. Origem e conceito. 3. A previsão da autotutela no no­vo Código Civil. 4. A justificação da autotutela. 5. Ex­cesso de autotutela e responsabilidade do agente. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.

1. O ESPÍRITO DO NOVO CÓDIGO CIVIL E A AUTOTUTELA

O Código Civil de 2002 é fruto da concepção culturalista do professor Mi­guel Reale, que guiou a comissão elaboradora desse diploma legal, composta pe­los eméritos juristas: Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Torquato Castro e Clóvis do Couto e Silva, a fim de atender aos an­seios sociais da sociedade contemporânea.

Essa concepção culturalista, que é a base da teoria tridimensional do direi­to, concebe o homem como um ser que interage com a sociedade, sendo que suas ações sobre os fatos do m u n d o empírico são carregadas de significado, pois reve­lam a sua idéia de cultura.

A vinculação da realidade social com a sistematização das normas jurídicas presente na atual legislação civil denota a presença dos princípios da eticidade, 1

Advogada. Mestranda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). O princípio da eticidade confere maior liberdade ao juiz no momento de buscar a solução mais justa e eqüitativa aos conflitos apresentados, mas exige, por sua vez, uma decisão pautada em critérios éticos, como a boa-fé e a probidade.

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132 VIVIEN LYS

da socialidade 2 e da operabilidade 3 em cada artigo, que t ransmudam a atuação do Estado-juiz e até mesmo das relações individuais, pois agora devem preocu­par-se com esses paradigmas.

Essa conscientização é fundamental ao problema que será abordado no pre­sente artigo, pois a interação do homem gera conflitos que, por vezes, necessitam de uma iminente sanção que dispensa, excepcionalmente, a tutela jurisdicional adequada ao direito material violado.

A iminência da aplicação da sanção aparece no cenário do novo Código Civil com u m a inovação, pois há a reformulação e o aprimoramento do exercí­cio da autotutela, conferindo, assim, maior poder de atuação do particular na sociedade. Isso significa que o legislador conferiu maior liberdade ao sujeito de direitos para reagir diante de uma violação sofrida, sem a necessidade de invocar e aguardar a tutela jurisdicional.

Mas, nesse novo contexto, insta refletir se a autotutela seria compatível com o nosso sistema de socialidade e se, com a ampliação do uso desse mecanismo de defesa, o ordenamento jurídico brasileiro apresentou u m retrocesso em seus paradigmas.

É fato que o novo Código Civil prima pelo sentido social em detrimento do individualismo preponderante no Código Civil de 1916. Sua sistematização pri­ma por inovar e fazer evoluir a aplicação da sanção mediante a instituição de me­canismos que visem a agilizar a solução dos conflitos, sem, contudo, desnaturar o sistema processual.

Em outras palavras, a ampliação do uso da autotutela não confronta com toda a evolução e estrutura do ordenamento jurídico, tampouco reforça a idéia arcaica do provérbio "olho por olho, dente por dente", mas serve, como fato so­cial que é, em casos específicos e determinados por lei, como alternativa à lenta efetividade das decisões judiciais causada pelo congestionamento de processos no Poder Judiciário.

'2 O princípio da socialidade urge contra o arraigado sistema individualista preconiza­do pelo Código Civil de 1916, no qual o sentido social sempre era posto em detrimen­to ao direito individual. Como a própria evolução da sociedade exigia maior tutela ao bem social, o professsor Miguel Reale, que coordenou a elaboração do Código Civil de 2002, inseriu uma linha social em todos os artigos, como forma de suprir a deman­da da comunidade por um ordenamento jurídico mais social, a fim de encontrar um equilíbrio equânime.

3 O princípio da operabilidade busca facilitar a sistematização dos artigos dispostos do novo Código Civil, com o intuito de evitar qualquer obstáculo à sua aplicação.

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A AUTOTUTELA E O CÓDIGO CIVIL DE 2002 133

Não se pode olvidar também que a sociedade contemporânea apresenta-se cada vez mais complexa, exigindo meios de resolução de conflitos mais dinâmi­cos e eficientes.

É incontroverso que possibilitar ao particular reagir contra uma agressão injusta represente u m mecanismo de defesa iminente e eficaz.

No entanto, a aplicação e o exercício da autotutela devem ser executados nos limites do espírito social valorado pela nova legislação; ou seja, ao defender-se de uma lesão ao seu direito, o sujeito deve ter consciência de que sua reação deve ser exercida até o cessar do ato ilícito. Ir adiante implica excesso ou abuso de direi­to, o que é vedado pelo art. 187 do Código Civil, ao passo que vai além do fim econômico ou social do ato de defesa. Esse abuso é medido conforme os critérios éticos da boa-fé ou dos bons costumes.

Cumpre ressaltar, no entanto, que a linha tênue entre a legitimidade do uso da própria força para coibir violação a direito, e o abuso dessa ação, encontra-se delimitada por normas genéricas e cláusulas gerais, posto que não há um instru­mento exato para valorar o que seja a boa-fé e as regras do bom costume, sendo que esses variam conforme a época e o caso.

Mas isso não representa um problema insolúvel, pois o novo Código Civil possibilita a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, por intermédio dessas cláusulas gerais, como o conceito de boa-fé e bons costumes, que serão aplicáveis e valorados diante do julgamento do ato de defesa.

2. ORIGEM E CONCEITO

Como é cediço, a discussão em torno da autotutela sempre foi (e ainda é) muito acalorada, na medida em que representa u m instrumento de atuação dire­ta do particular em detrimento da tutela jurisdicional aplicada pelo Estado-juiz.

Desde os primórdios dos tempos sua eficácia foi posta em dúvida, uma vez que, como ação direta inibidora da ilicitude, por vezes, não era reconhecida co­mo norma válida.

A dificuldade do seu reconhecimento nas legislações prende-se ao fato de que sua aplicação vai de encontro a toda a missão e estrutura central do poder sancionador, pois permite que o próprio ofendido aplique a penalidade corres­pondente ao ato ilícito.

No entanto, em algumas circunstâncias, a autotutela era tolerada ou até mesmo reconhecida pelo ordenamento jurídico, por exemplo, para o exercício da legítima defesa.

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Não obstante, os marcos históricos, que remontam ao Direito romano, de­mons t ram o seu surgimento relacionado com o ressarcimento do ofendido pelo prejuízo sofrido. O cerne da questão girava em torno da responsabilidade cor­poral - único meio de responsabilidade na idade arcaica, ou seja, havendo lesão de direitos, o ofendido poderia, pelas próprias mãos, punir a pessoa do agente agressor (agressão física).

Nesse sistema não se pressupunha a submissão do caso à análise de uma autoridade competente - como o juiz. Bastava ocorrer a violação ao direito para que a sanção fosse aplicada pela própria vítima.

Essa concepção de "justiça" modificou-se com a legis actio per manus injectionem, que passou a contar com a presença do magistrado. Nessa fase ainda não havia a efetiva atuação deste como órgão jurisdicional, mas apenas u m con­trole, na medida em que os casos de ofensa a direitos eram por ele ouvidos - na qualidade de representante do Estado.

O ordenamento jurídico, nessa época, entendia que a execução pessoal era o remédio saneador da obligatio e de seu inadimplemento.

Nesse diapasão, cumpre analisar a concepção da autotutela, existente desde os primórdios dos tempos, em relação ao monopólio da execução da sanção. Para tanto, analisaremos as lições de Hans Kelsen.

Kelsen, em sua obra Teoria pura do direito, refere-se ao monopólio da coação exercido pelo órgão competente, enfatizando a necessidade de sua centralização, mas também elucida sobre o exercício de autotutela, relacionando-a com o está­gio primitivo da sociedade, pois, nessa época,

[...] aos indivíduos que se consideram lesados por uma conduta antijurídica de outros indivíduos que a ordem jurídica atribui o poder de utilizar a força contra os violadores do Direito - ou seja, quando ainda perdura o princípio da autodefesa.4

Este renomado autor, ao analisar a legitimidade da autotutela, discorre acerca da centralização ou descentralização do monopólio da sanção, enfatizando que:

Nas ordens jurídicas primitivas a reação da sanção à situação de fato que constitui o ilícito está completamente descentralizada. É deixada aos indivíduos cujos interesses foram lesados pelo ato ilícito. Estes têm poder para determinar, num caso concreto, a verificação do tipo legal do ilícito fixado por via geral pela ordem jurídica e para executar a sanção pela mesma determinada. Domina o princípio da autodefesa.5

4 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p.40. 5 KELSEN, Hans. Op. cit., p.43.

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Desta forma, segundo referido autor, a autotutela significa a descentralização do poder, a qual deve ser refutada, pois, caso contrário, não há Direito, que é ordem de coerção e, por sua vez, um sistema de segurança coletivo que existe apenas quan­do a centralização do monopólio coercitivo está nas mãos do órgão competente.

Aplicando-se essa visão da autotutela aos dias contemporâneos, vislumbra-se que a defesa exercida diretamente pelo ofendido não significa a descentrali­zação prejudicial ao monopól io coercitivo. Pelo contrário, representa u m meca­nismo alternativo à atual crise da efetividade do poder sancionatório conferido ao Estado.

Como é de amplo conhecimento, as dificuldades do acesso à justiça, causa­das pelo alto custo, pela falta de efetividade das decisões judiciais - em virtude da demora na prestação jurisdicional, resultante do acúmulo de processos - enfra­quecem o monopólio de coação do poder sancionatório.

Ao analisar a atual crise do Poder Judiciário, José Rogério Cruz e Tucci sin­tetiza as causas dessa situação em três itens: "... fatos institucionais, fatores de ordem técnica e subjetiva e fatores derivados da insuficiência material". 6

Esse momento crítico contradiz a missão do Estado, que, ao atrair para si o monopólio da sanção, proibindo a autotutela, comprometeu-se em tutelar adequa­da e efetivamente os litígios existentes. A ação judicial, que substitui a autodefe­sa, deveria atingir o mesmo resultado desta. 7 Mas, por vezes, isso não acontece.

Por esse motivo, a autotutela assume seu papel de fator social, que, ao ser exercida nos seus limites, reveste-se de plena legitimidade, pois supre a ausên­cia de aplicabilidade da sanção pelo poder competente, quando este não se apresenta imediatamente frente ao conflito surgido devido às razões acima identificadas.

A autotutela, também denominada autodefesa ou execução forçada, pode ser definida como um instrumento capaz de permitir ao ofendido satisfazer-se direta­mente perante a pessoa ou o patrimônio do agressor. Essa ação direta descarta a atuação do Estado-juiz e reveste-se de licitude, pois o ordenamento jurídico aprova e autoriza a sua aplicação. A ação do ofendido em "fazer justiça com as próprias mãos" urge como reação à prática do ato ilícito, que, por exigir a imediata sanção, a fim de não perecer o direito do ofendido, autoriza a aplicação desta pelo particular.

6 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Temas polêmicos de processo civil, p.50. 7 Cf. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela sancionatória e tutela preventiva. In: Temas

de direito processual, 2a série, p.21; SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de processo civil, v.3. p.13-4; CUNHA, Alcides Alberto Munhoz da. A lide cautelar no processo civil, p.18.

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Esse instrumento de defesa, mesmo que seja a forma mais primitiva de reso­lução de conflitos, reconhece a supremacia do interesse do ofendido perante a vio­lação ao seu direito material, tutelado pelo ordenamento jurídico.

Tal instituto de defesa não é reconhecido apenas no ordenamento jurídico pátrio. Outras legislações alienígenas abarcam esse instituto. À guisa de exemplo, cita-se o Direito português, que também prevê a aplicação da autotutela, no art. 21 da Constituição da República Portuguesa de 1976, ao dispor:

Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberda­des e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública, (g.n.)

A ação individual, como resposta à agressão, é a ultima ratio do cidadão ofendido em seus direitos, liberdades e garantias, o qual, para defender-se, dis­pensa a sanção advinda do poder sancionatório, em virtude da iminência do ato ilícito.

Assim, o Direito português autoriza a autodefesa, sem a necessidade de so­correr-se ao órgão judicante, posto que concebe esse mecanismo de defesa como mais uma forma de prevenção e repressão à violação do direito.

Ademais, não haveria de ser diferente, pois a autotutela conduz as partes à solução iminente do conflito, evitando o propósito protelatório do agressor na aplicação da sanção correspondente, que, diante da reação do ofendido, fica obri­gado a cessar o ato ilícito e, conforme as circunstâncias, realiza de imediato o res­sarcimento pleiteado.

Portanto, negar o completo exercício da autotutela é primar pelo engessa-mento do sistema de sanção aplicável em face do violador do direito material, posto que as relações sociais multiplicam-se e exigem, cada vez mais, a eficácia da pena imposta. Essa eficácia é atingida na aplicação da autotutela, que, diante da urgência do caso, atribui legitimidade a esse mecanismo de defesa.

3. A PREVISÃO DA AUTOTUTELA NO NOVO CÓDIGO CIVIL

O novo Código Civil reproduziu algumas hipóteses de autotutela já existen­tes no Código de 1916, por exemplo: a legítima defesa; o penhor legal exercido pelos donos de hospedagens; o casamento celebrado com nubente por tador de moléstia grave; o desforço necessário exercido na posse; e a execução privada nas obrigações de fazer e não fazer. A manutenção desses institutos foi seguida com a reformulação dos artigos referentes a essas modalidades. Além disso, ampliou-se

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o rol da autotutela, pois o novel civil instituiu o direito de o transportador reter bagagens do passageiro.

Toda essa mudança foi para aprimorar e criar outros mecanismos que pos­sam sanar a falência das tutelas jurisdicionais tradicionais.

Como a autotutela é anterior ao acesso à justiça, como já exposto, identifica-se, por meio da nova legislação, a existência de uma tutela preventiva típica, na me­dida em que o ordenamento jurídico autoriza, nas hipóteses elencadas, expressa­mente, o particular a exercer, por suas próprias mãos, a tutela de seus direitos.

Ressalte-se que essa reformulação das formas de autotutela no novo Código Civil confere ao particular maior poder de atuação, mas também exige maior res­ponsabilidade em seus atos.

Nesse ínterim, faz-se mister abrir um parêntese para fazer um paralelo entre o aprimoramento da autotutela no novel civil e a hipótese do exercício arbitrá­rio das próprias razões, disposta no art. 345 do Código Penal. Referido disposi­tivo legal tipifica como crime o ato de "fazer justiça pelas próprias mãos", apli­cando a pena de detenção de quinze dias a um mês, ou multa e, se for o caso, cumula-se a pena correspondente da violência exercida.

No entanto, admitir-se-á expressamente a existência de excludentes da tipi­ficação desse crime quando a lei autorizar o exercício arbitrário das próprias ra­zões, ou mais especificamente, a autotutela, pois:

Constitui elemento normativo do tipo do exercício arbitrário das próprias razões (CP, artigo 345) o não enquadrar-se o fato numa das hipóteses excepcionais em que os ordenamentos modernos, por imperativos da eficácia, transigem com a autotutela de direitos privados, que, de regra, incriminam. 8

Dessa forma, até a lei penal reveste de legitimidade a autotutela quando exer­cida nos exatos limites impostos pela lei civil. Passa-se, assim, à análise de cada hipótese do exercício desse instituto, previsto no novo Código Civil, destacan­do-se as diferenças em relação ao Diploma civil anterior e as inovações resultan­tes das alterações impostas pela legislação em vigor.

Para facilitar a compreensão do efetivo exercício da autotutela, insta anali­sar, a priori, a legítima defesa que, desde os primórdios da civilização, é reconhe­cida e considerada como excludente da ilicitude.

A legítima defesa transfere à vítima da agressão o direito de reagir e defen­der-se segundo suas próprias forças. Neste caso, ocorre a transferência do mono-

STF, I a T, HC n. 75.169-5/SP, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, j . 24/6/1997, v.u., ementa.

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pólio da sanção, pois configura-se "uma faculdade que emana, diretamente, da personalidade". 9

O indivíduo, sujeito de direitos e obrigações na órbita jurídica, detém o atri­bu to da personalidade, que lhe é inerente desde o seu nascimento com vida, 1 0

"[...] visto que não há como negar a associação de sua idéia à de atributo inse­parável do ser humano na ordem jurídica...".1 1

Assim, ao ser considerada uma repulsa proporcional à ofensa, 1 2 advinda da sua própria condição de ser humano no meio social, a autotutela reveste-se de legalidade, não configurando u m ato ilícito e sendo autorizada pelo ordenamen­to jurídico pátrio por meio da norma contida no inc. I do art. 188 do Código Civil. 1 3

Embora alguns juristas, como Pontes de Miranda, entendam que a legítima defesa não é espécie de autotutela, 1 4 máxima venia, discordamos com o ilustre au­tor, pois sustentamos que o ato de autodefesa configura-se pela realização ativa da justiça com as próprias mãos, o que caracteriza a autotutela.

Não é possível ignorar que no fato de defender-se do ataque sofrido há u m a ação ativa do ofendido, que, para cessar os efeitos da violação do seu direito, pratica u m a reação imediata ao ato ilícito. Essa defesa ativa, sem a invocação da tutela jurisdicional, representa a aplicação da sanção pela vítima, pois há

[...] situações geradas pela violência alheia cuja solução não pode aguardar a lenta e tardia reação da justiça pública. Para essas excepcionalidades, a civilização sempre conservou o reconhecimento da possibilidade de o agredido repelir, de imediato, a injusta agressão. Trata-se da legítima defesa, repulsa individual, com que o injustamen­te agredido repele, com os meios de força a seu alcance, o mal que o agressor está na iminência de infligir-lhe {vim vi repellere licet). (g.n.)15

9 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, v.I, nota 2 ao art. 160, p.345.

1 0 Cf. Art. 2 do Código Civil de 2002. 1 1 LOTUFO, Renan. Código Civil comentado: parte geral (arts. Io a 232), v.I, p.12. 1 2 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil e legislação

extravagante anotados: atualizado até 15/3/2002, p.l 12. 1 3 Correspondência legislativa: CC/1916, art. 160, inc. I. 1 4 PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, parte geral,

p.274, parágrafo 183. 1 5 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao novo Código Civil: dos atos jurídi­

cos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e da decadência. Da prova, v.3, t.2, p.136.

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Se a legítima defesa, ao ser exercida, não produz ato ilícito, não há que se falar em indenização no juízo cível nem em ressarcimento no juízo criminal (CP, art. 23, II). Será possível pleitear indenização tão-somente se ficar comprovado que o prejuízo foi causado por culpa de terceiro. Assim, o agente, autor do dano, poderá ser ressarcido pelo terceiro (CC/2002, art. 930, parágrafo único), pois não teria agido caso ele não tivesse provocado, culposamente, a agressão que resultou na aplicação da legítima defesa.

Por fim, assevera-se que os requisitos da legítima defesa remetem ao Códi­go Penal, que, no seu art. 25, determina a existência dos seguintes elementos para sua configuração: (i) agressão atual ou iminente e injusta; (ii) tutela de direito próprio ou alheio; (iii) moderação no ato inibidor do iminente ato ilícito.

Com a presença desses três elementos, é legítima a prática da legítima defe­sa que visa a produção de ato de repulsa individual diante de mal injustamente sofrido, expressando-se como autotutela por representar a ação ativa do ofendi­do, a fim de impelir a sanção correspondente.

Outro exemplo de autotutela refere-se à possibilidade de o dono da hospe­dagem ou fornecedores de pousadas ou alimentos reter as bagagens, móveis, jóias ou dinheiro do respectivo freguês inadimplente, no limite correspondente aos gastos efetuados (CC/2002, art. 1467,1).

O contrato de hospedagem é

aquele em que alguém (hoteleiro) se compromete perante outrem (hóspede) a pres­tar serviços de hotelaria, a alugar salão para eventos culturais, quarto ou apartamen­to mobiliado, a fornecer alimentos, a guardar bagagem ou bens mediante o paga­mento de remuneração.16

Sendo assim, vislumbra-se que a quitação das despesas efetuadas é condição essencial desse contrato inominado.

O dono da hospedaria, ao efetuar a retenção dos pertences do hóspede, exer­ce o efetivo exercício da autotutela, pois, independentemente de qualquer ordem judicial, aplica a sanção, constituída pela penalidade de não devolver para aque­le seus bens móveis. 1 7

1 6 DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos, p.3. 1 7 Essa retenção é denominada de penhor legal. Para aclarar essa conceituação, reme­

more-se que penhor "é o direito real que compete ao credor sobre coisa móvel que lhe fora entregue pelo devedor ou por terceiro para segurança de seu crédito; e, por força do qual, poderá retê-la até se verificar o pagamento ou aliená-la na falta deste". (FRAGA, Affonso. Direitos reais de garantia - Penhor, antichrese e hypotheca,

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140 VIVIENLYS

O ordenamento jurídico reconhece a validade dessa norma, posto que a san­ção nesse caso é o único meio hábil para coagir o devedor (hóspede) ao pagamen­to. Ademais, por se tratar de hospedagem, na qual a permanência do hóspede é transitória, caso (o hospedeiro) permitisse a saída do devedor, sem a quitação devi­da, e exigisse a invocação do Poder Judiciário para dirimir esse conflito, provavel­mente, jamais recebesse os valores devidos.

Assim, diante da ilicitude gerada pelo inadimplemento, o hospedeiro, na qua­lidade de credor, tem a faculdade de reagir a essa violação do seu direito a fim de assumir a condição de autoridade competente para aplicação da sanção devida ao devedor.

O Código Civil de 1916 estendia esse direito de efetuar o penhor legal tam­bém aos estalajadeiros (CC/1916, art. 776,1), que são os donos de estalagem. En­tende-se que a supressão dessa categoria não representou qualquer prejuízo, ao passo que o conceito de hospedagem abrange hotel, hotel-residência, hotel de la­zer, pousada, estalagem, enfim, hospedaria em geral.

U m outro caso no qual a autotutela também é aplicada, é quando um dos nubentes realiza o seu casamento em iminente risco de vida e, na ausência da au­toridade (isto é, o juiz de paz), celebra-o na presença de seis testemunhas, as quais não têm parentesco em linha reta, ou colateral, até segundo grau, com nenhum dos cônjuges (CC/2002, art. 1540). 1 8

Nessa situação, a competência que detém o juiz de paz é outorgada aos cônju­ges, que manifestarão sua vontade, declarando-se casados perante seis testemunhas, as quais assumem o dever de comparecer posteriormente 1 9 perante a autoridade ju­dicial, que ratificará o ato. Essa autotutela consiste no próprio poder conferido aos cônjuges, que, pelas circunstâncias dos fatos e a urgência, ao declararem de viva voz sua livre vontade de contrair núpcias, adquirem o estado civil de casados.

Além dessa espécie, o Código Civil de 2002 também retratou, no art. 1.2IO,20

parágrafo I o , a hipótese da autotutela exercida por meio da defesa imediata da posse (desforço in continenti). Nesse caso, o possuidor ou o proprietário adqui-

p.14) Ao aplicar esse conceito ao caso em tela, depreende-se que a retenção praticada fundamenta-se em uma garantia a favor do hospedeiro sobre as coisas móveis do hóspede devedor. Esse poder jurídico do credor constitui-se o controle material sobre a coisa corpórea, tangível e consistente. Correspondência parcial: CC/1916, art. 199, parágrafo único. As testemunhas devem comparecer perante a autoridade judicial no prazo de dez dias a contar da celebração do casamento. O Código Civil de 1916 já abarcava essa hipótese no art. 502 em seu parágrafo único.

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re legitimidade de manter-se ou restituir-se na posse, por intermédio da sua pró­pria força. A lei exige que o ato de reação à violência praticada seja exercido de imediato e dentro dos limites razoáveis.

Essa reação também é vista como legítima defesa, tanto no caso de esbulho como no de turbação, pois representa o uso da própria força - auffrischer Tat -imediatamente posterior à agressão sofrida.

Ela é também uma exceção à regra de que para todo o conflito existe uma prestação jurisdicional do Estado, pois é exercida em momento anterior à atua­ção do Estado-juiz, permit indo a realização de justiça por mão própria.

O exercício do desforço ou da defesa imediata da posse deve atentar-se para as nuances de sua aplicação, muito bem explicitadas pelo emérito Tupi-nambá Miguel Castro do Nascimento, cujos ensinamentos colacionam-se in verbis:

Concretamente, a defesa categoriza-se como um ato de força do possuidor, ou de quem seja legitimado para tal, com ou sem ajuda de terceiros. É o exercício da manu militari como exercício regular de direito e, por isso, ato civilmente lícito (art. 160,1, do Código Civil). O ato de força, porém, por ser exercício regular de direito, tem que obedecer a dois qualificativos: ser nos limites da necessidade e moderado. A neces­sidade é medida pela finalidade buscada, isto é, a que for suficiente para fazer cessar a agressão turbativa. O moderame se constata pela extensão do ato exercitado. Ambas, a necessidade e a moderação, devem ser examinadas em relação às circuns­tâncias do caso específico.

[...] 0 ato de desforço configura-se como um ato de força, desde que necessário e moderado nos tempos do ato de defesa, e se trata de justiça de mão-própria e exer­cício regular de direito.21

Assim sendo, o ato de força legítimo, exercido pelo possuidor ou por quem de direito, caracteriza-se como autotutela quando é executado nos limites da ne­cessidade da agressão da posse. Nesse cenário, atende aos requisitos da causalida­de (reação conforme a causa); da finalidade (os fins que justificam a moderação do emprego da força); e da temporalidade (a autodefesa deve ser exercida imediata­mente após a ameaça sofrida).

No tocante às obrigações, o novel civil também reproduz o Código anterior, trazendo duas hipóteses do emprego da autotutela, mas agora pontua mais pre­cisamente a causa destas, ao exigir a urgência para sua aplicação.

NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Posse e propriedade, p.184-5.

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Trata-se das hipóteses das obrigações de fazer e não fazer, previstas, respec­tivamente, nos arts. 249 2 2 e 2 5 1 2 3 do novo Código Civil. Em ambos os casos, o ordenamento jurídico confere ao credor a prerrogativa de mandar fazer ou des­fazer o ato, independentemente de autorização judicial, e sem prejuízo do ressar­cimento devido.

Na obrigação de fazer, exerce-se a autotutela diante da recusa ou mora do devedor em cumprir com sua obrigação. Na obrigação de não fazer, em decor­rência do descumprimento da abstenção da prática do ato pelo devedor, o cre­dor adquire legitimidade para desfazê-lo.

A inovação trazida pelo novo Código Civil consiste no fato de que, para exercer a autotutela nos moldes expostos anteriormente, deve-se estar diante de u m caso urgente. Havendo urgência, o credor é autorizado a agir conforme as nor­mas mencionadas. O Código anterior não abordava expressamente esse requisi­to da urgência.

O poder conferido ao credor, de acordo com referidos dispositivos legais, retrata a visão social do novel civil, à medida que, diante de uma situação emer-gencial, o ordenamento jurídico prima pela resolução do problema enfrentado, autorizando o próprio credor a executar a obrigação devida.

Essa nova concepção deve-se à preocupação do legislador em não majorar os prejuízos já sofridos pelo inadimplemento do devedor. É uma alternativa para o credor minimizar o dano e resolver, por si só, a situação. Com a ampliação do uso da autotutela nessa hipótese, vislumbra-se o fortalecimento desse mecanis­m o de defesa, a fim de viabilizar o patrocínio da justiça. Conseqüentemente, não há que se falar em prejudicialidade desse instituto nem tampouco no seu apri­moramento realizado pelo novel civil.

Por fim, o Código Civil de 2002, compreendendo as novas relações jurídicas e o dinamismo na sociedade contemporânea, criou uma outra espécie de auto­tutela no art. 742, 2 4 a qual dispõe:

0 transportador, uma vez executado o transporte, tem direito de retenção sobre a ba­gagem de passageiro e outros objetos pessoais deste, para garantir-se do pagamen­to do valor da passagem que não tiver sido feito no início ou durante o percurso.

A relação existente entre o transportador e o passageiro consiste em um con­trato bilateral, no qual ambas as partes assumem direitos e obrigações (CC/2002,

Correspondência legislativa: CC/1916, art. 881. Correspondência legislativa: CC/1916, art. 883. Não há correspondência legislativa no CC/1916.

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art. 476). Assim, no momento em que o transporte for realizado a contrapresta­ção deve ser efetivada, ou seja, o pagamento pela prestação desse serviço deve ocorrer.

Como, na hipótese suscitada pelo dispositivo legal em comento, o passa­geiro não cumpre com sua obrigação, a lei civil outorga ao t ransportador o poder de reter a bagagem daquele, a fim de coagi-lo a efetuar o pagamento cor­respondente.

Desta forma, a autotutela nada mais é que um instrumento de coação para o cumprimento do devedor com sua obrigação. Como o ordenamento jurídico confere ao credor legitimidade para reter os pertences do passageiro, independen­temente da intervenção judicial, a sua atuação atinge o resultado pretendido, diante da satisfação do crédito existente a favor do transportador.

Por todos os artigos mencionados anteriormente, deduz-se que o novel civil, com a autotutela, guia sua força executiva a fim de conferir ao particular, mediante o uso moderado da sua própria força, o mesmo resultado que seria alcançado pela invocação da tutela jurisdicional.

4. A JUSTIFICAÇÃO DA AUTOTUTELA

A negação do uso da autotutela deve-se à crença de que o transgressor do direito de outrem, espontaneamente, poderia, por meio de seus atos, recompor a lesão sofrida pela vítima ao estado anterior da agressão realizada; ou, caso não exista essa livre reparação, haveria a possibilidade de invocar a autoridade com­petente para analisar os fatos e aplicar a sanção devida no interregno capaz de ressarcir ou recompor, mediante ordem judicial, o prejuízo causado.

Tanto é assim que:

o Estado, ao proibir a autotutela privada, assumiu o compromisso de tutelar adequa­da e efetivamente os diversos casos conflitivos. 0 processo, pois, como o instrumen­to de prestação de tutela jurisdicional, deve fazer surgir o mesmo resultado que se verificaria se a ação privada não estivesse proibida.25

Mas, como é cediço, por vezes, o direito material violado não encontra sub­sistência na respectiva ação processual, a qual, por ser o caminho civilizado para dirimir conflitos, exige uma eficaz estruturação de procedimentos dirigidos a produzir a tutela jurisdicional adequada, o que, às vezes, demonstra-se ineficien-

MARINONI, Luiz Guilherme. Antecipação da tutela na reforma do processo civil, p. 17.

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te e ineficaz, independentemente do motivo, ocasionando a reestruturação do sistema jurídico de maneira a permitir a invocação de outros instrumentos hábeis a ressarcir o dano produzido.

Desta forma,

Le parti che danno vita ad un rapporto obbligatorio confidano nelPadempimento spon-taneo delle prestazioni dedotte, che rappresenta Ia vicenda conclusiva "fisiológica" dei vincolo esistente, e tuttavia, nel caso di mancato o non esatto adempimento, dispon-gono di un complesso sistema esecutivo volto a realizzare coattivamente il diritto dei

aeditore. Tale sistema, predisposto normativamente, ha alia base il principio secondo

cui il privato non ha diritto di "farsi ragione da sé", pervenendosi alia soddisfazione

dell'interesse finale solo grazie aWintervento delfautorità giurisdizionale. Tuttavia tale

principio non è assoluto, e per esigenze di economicità dei mezzi giuridici, accanto alia

constatazione che in taluni casi tipizzati Ia soluzione alternativa non turba 1'ordina

costituito, 1'autotutela rappresenta una deroga a tale principio generale.26 (g.n.)

De fato, o princípio da jurisdição, preconizado na Carta Magna, no art. 5 o , XXXV, segundo o qual o indivíduo deve socorrer-se e aguardar a satisfação do seu direito violado pelo poder competente sancionatório, não é absoluto, facultan-do-se o exercício da autotutela. Esta, por representar a exceção à regra da atuação do Estado-juiz, denota a exigência social de meios alternativos legítimos e efica­zes, visando agilizar a aplicação da sanção e, paralelamente, o auxílio na minimi-zação da atual crise do Poder Judiciário, existente no nosso País, buscando, assim, realizar, em conjunto com o órgão competente, a satisfação dos conflitos viven-ciados contemporaneamente.

Por essa razão, não é mais salutar compreender o instituto da autotutela como u m mecanismo prejudicial ao monopólio da coação exercido pelo poder competente. Não obstante, em decorrência da proliferação das relações sociais, que ensejam a criação de diversos e inúmeros conflitos entre as partes, devemos reconhecer a legitimidade desse instituto, acreditando na sua força ativa de dimi­nuir, nas hipóteses comentadas no presente artigo, a invocação do Poder Judiciá­rio, exercendo, assim, sua função, qual seja, satisfazer, eficazmente, a pretensão de direito material do ofendido.

Ao apresentar as justificativas da manutenção e o apr imoramento desse ins­ti tuto no ordenamento jurídico pátrio, cumpre transcrever o pensamento de Ni-ceto Alcalá-Zamora Y Castillo, que assevera:

2 6 OTTONELLO, Carla. Diritto & Diritti - Electronic law review. Disponível em: www.diritto.it.

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A julgar pela displicência com que os processualistas se ocupam dela, poder-se-ia crer que a autodefesa carece de razão de ser e que devemos considerá-la como um mal, em que mesmo uma mais perfeita organização do Estado não permita eliminá-la por completo ou reduzi-la a seus limites mínimos inevitáveis. A realidade, todavia, dista muito de corresponder com semelhante perspectiva, e a autodefesa só desaparece­rá no dia em que Estado e divindade se identifiquem.27

O referido autor enfrenta diretamente o preconceito que possa existir na ins­tituição da autotutela dentro de qualquer sistema jurídico, e justifica a necessida­de de sua aplicação ante a dicotomia entre Estado e divindade. Nessa compara­ção, depreende-se que a atuação do Estado-juiz só abrangerá todas as formas de conflitos e corresponderá de maneira satisfatória a todas as pretensões de, direi­to individual quando atingir o estágio divinatário, ou seja, no momento em que constituir-se em u m poder ágil na aplicação da sanção conforme a premente ne­cessidade exigida pelas relações sociais - isto é, atingir-se a perfeição.

Não se pode olvidar que esse estágio da "divindade" do poder sancionatório está longe de ser atingido, se é que será alcançado, considerando a tendência da sociedade de se tornar cada vez mais complexa, em virtude das inúmeras e novas relações que surgem no meio social.

Dessa forma, não se está condenando o atual sistema processual, que tem a função de harmonizar a defesa dos interesses meta e transindividuais. Pretende-se, sim, defender a legitimidade da autotutela, em face da utopia de desenvolver e aperfeiçoar o poder estatal sancionatório até o estágio em que se poderá descar­tar o uso de mecanismos alternativos auxiliares na busca da justiça e serão satis­feitas as pretensões de direitos materiais, postas no contexto jurídico e social como necessidades sempre iminentes na sua resolução.

5. EXCESSO DE AUTOTUTELA E RESPONSABILIDADE DO AGENTE

A força exercida na aplicação da autotutela deve corresponder exatamente ao grau da agressão sofrida pelo ofendido. Essa atuação é verificada por meio dos efeitos radiados da lesão sofrida em relação à ação de resistência ou repressão do ofendido sofredor do ato danoso. Ela também é medida por intermédio do espí­rito social inserido no novo Código Civil, ao passo que a reação vinculada ao ato

CASTILLO, Niceto Alcalá-Zamora y. Processo, autocomposícionón & autodefensa, p.55.

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ilícito produzido coaduna-se nos estritos limites em que se alcança a pretensão individual através da coação imposta ao ofensor.

O exercício da autotutela, em casos tipificados pela lei civil, ao substituir a atividade jurisdicional pela vontade do lesado, também tem por escopo a produ­ção dos mesmos resultados que o adimplemento teria sido produzido, sem qual­quer interferência, satisfazendo totalmente o direito subjetivo e dando efetivida­de plena ao preceito concreto de direito material. 2 8

O seu objetivo, contudo, não pode ser contrário à ordem social e à razoabi-lidade na aplicação da sanção, sob pena de produzir u m efeito negativo na des­centralização da aplicação da sanção e, dessa maneira deslegitimar esse instituto.

Assim, devemos pontuar as conseqüências advindas do excesso aos seus li­mites a fim de obstar qualquer reação ou resistência excessiva causada pelo ofen­dido, por ora produtor do ato ilícito, cuja atuação pode ser considerada como desproporcional.

É fato que os dispositivos legais, que prevêem a autotutela, não fazem menção sobre a responsabilidade do agente diante do excesso decorrente da sua aplica­ção. No entanto, é evidente que o ordenamento jurídico prevê essa responsabili­zação em outros artigos.

Para valorar exatamente a responsabilidade do agente ao repelir um ato ilí­cito, utiliza-se a regra da responsabilidade civil, que em sua essência não foi alte­rada pelo Código Civil de 2002, posto que subsiste a regra de que "aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito". 2 9 , 3 0

Segundo essa regra, o ofendido, ao resistir à iminente agressão, pode ser res­ponsabilizado se causar dano àquele que estiver lesionando os seus direitos. O dano produzido, neste caso, advém do excesso ou do abuso do poder conferido pe­lo ordenamento jurídico, o qual, ao legitimar o particular no exercício da autotu­tela, exige que o mesmo aja conforme os limites razoáveis, e até o instante em que for necessária a aplicação da sua força.

Em outras palavras, a lei admite o exercício da autotutela somente até que o direito material do ofendido, violado pelo agressor, seja restabelecido.

Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil, p.100. Código Civil de 2002, art. 186. A segunda parte desse art. traz uma inovação, na medida em que agora o ordena­mento jurídico prevê expressamente o dano moral oriundo da prática de um ato ilí­cito.

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Se o ofendido agir além desse limite, pratica abuso de direito, que é vedado pelo art. 187 do Código Civil. Ultrapassar a finalidade da autotutela representa transpor o fim econômico ou social do ato de defesa. Esse abuso é medido con­forme os critérios éticos da boa-fé ou pelos bons costumes, consoante dispõe referido dispositivo legal: " também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômi­co ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes".

Conseqüentemente, o ofendido não tem a prerrogativa, sob o fundamento de estar resistindo ou repelindo um ato ilícito, de exercer sua própria força de maneira a prejudicar o agressor, posto que "no ato abusivo há violação da finali­dade do direito, de seu espírito, violação essa aferível objetivamente, indepen­dentemente de dolo ou culpa".3 1

Se for constatado o desvio da finalidade da autotutela, o ofendido terá come­tido abuso de direito, mesmo que não tenha a intenção de produzir o dano oriun­do do excesso do seu ato, na medida em que:

0 dano indenizável é o causado pelo excesso. Tudo aquilo que estiver dentro do ato, se e enquanto normal, não responsabiliza. Assim, no excesso representado pela imoderação, busca-se cindir a conduta em atos até o momento em que se torna imoderado. Enquanto moderação, o ato é entendido como lícito. Ao se adentrar no excesso é que o ato se torna antijurídico. A circunstância do excesso, que é poste­rior, não se reflete em toda conduta para entendê-la integralmente excessiva. Tal cisão não há nos atos excessivos enquanto desnecessários ou cometidos fora do logo. Neste entendimento, quando o excesso é a imoderação, a responsabilidade pelo dano é limitada.32

Nesse cenário, o excesso do ato praticado pelo ofendido pode ensejar danos materiais ou, até mesmo, morais, como assevera Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, no trecho colacionado a seguir:

A compreensão de dano material face ao excesso é de fácil entendimento, a partir do instante em que se saiba o significado da materialidade do dano. É o que causa prejuízo ao patrimônio do ofendido, entendido o patrimônio como bens corpóreos que ele possua, e outros: a vida, a incolumidade física, a honestidade profissional, etc. É, assim, dano material o prejuízo que, por lesão, aparece como despesas médicas, hospitalares, etc. ou os lucros cessantes, que são resultantes de o ofendido não poder

LIMA, Alvino. Culpa e risco, n. 48, p.252. NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Op. cit., p.l88.

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trabalhar nem perceber seus salários. Todo dano que se configure como material de­ve ser indenizado, se com nexo de causa e efeito com o excesso. Outra coisa é o possível, mas difícil, dano moral. Aqui, não há ofensa ao patrimônio material. Dano moral tem outra compreensão. É, em termos gerais, tudo que anor-maliza a existência de uma pessoa, sem prejuízo material. A doutrina fala em dor psíquica, em dor interna. Ou, então, em pretium doloris ou pecúnia doloris. Em ter­mos concretos, é a ofensa a qualquer dos direitos subjetivos que o ser humano tem, tais como a honra, a estimatio, a imagem, etc. A indenização devida não é ressarcitó-ria, mas compensatória. Se o dano moral tem relação causai com o excesso havido, estamos diante da indenizabilidade por dano moral. 3 3

Nessa hipótese, como não será possível retornar ao status quo ante, o ofen­dido deverá ressarcir o agressor, que agora está sofrendo o dano, de acordo com a extensão deste. É o que preceitua o art. 944 do Código Civil vigente, que não apresenta dispositivo legal correspondente no diploma legal anterior e institui uma nova direção na mensuração do dano.

De acordo com esse artigo, o dano é medido pela sua exata extensão, a fim de apurar-se a exata dimensão do prejuízo causado para valorar a respectiva in­denização. Assim, a indenização que deverá ser suportada pelo ofendido deve ser proporcional ao prejuízo causado, evitando qualquer desproporção entre a gra­vidade do ato ilícito e o dano.

Por essa nova conceituação, vislumbra-se que a responsabilidade civil no atual Código preocupa-se com a dimensão do dano e suas causas correspondentes, para ser u m meio justo de impor a indenização, coibindo qualquer enriquecimento ilí­cito da outra parte. Aplicando essa nova visão ao excesso cometido pela autotu­tela, verifica-se que o ofendido deve respeitar seus exatos limites, sob pena de ser responsabilizado conforme a extensão do prejuízo causado.

6. CONCLUSÃO

Independentemente da forma assumida pela autotutela, seja ela como res­posta à agressão física, seja à diminuição no patrimônio do credor, ou, ainda, como declaração de estado civil, esse instituto reveste-se de legitimidade, à medida que atende à complexidade das relações sociais, garantindo, em hipóteses tipificadas por lei, ao particular, a resolução do seu direito material.

Ibidem, p. 188-9.

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O Código Civil de 2002, ao retratar esse instituto e criar mais uma forma para sua aplicação - por meio do direito do transportador de reter as bagagens do passageiro; na hipótese do não pagamento da passagem —, demonstrou que a sua existência no ordenamento jurídico pátrio detém papel de suma importância, posto que representa um mecanismo alternativo na solução da pretensão indivi­dual do direito material, que, ao lado do órgão competente (Estado-juiz), consti­tui um sistema eficaz na tutela pleiteada ou na aplicação da sanção devida.

A possibilidade de realização própria e individual do particular na tutela pleiteada garante-lhe uma segurança jurídica maior em suas relações sociais. Já a efetividade exigida na aplicação da respectiva sanção, correspondente a cada direito material violado, visa obstar o intuito protelatório do devedor, caso esse exista, no ressarcimento devido pelo prejuízo causado. Por vezes, os procedimen­tos judiciais possibilitam brechas que lhe garantam a postergação do cumpri­mento do seu dever. E, neste caso, o credor fica à mercê desse sistema.

Sob o fundamento dessa possibilidade é que o legislador do novel civil preo­cupou-se com a manutenção e a ampliação da autotutela, conferindo ao ofendi­do maior livre-arbítrio. Contudo, é exigida a responsabilidade deste perante esse "poder sancionatório particular", que lhe é dado para agir em situações excep­cionais, as quais fogem à regra da centralização do monopólio da sanção nas mãos do Estado.

Esse livre-arbítrio demonstra a visão social contida no novo Código Civil, na medida em que, diante de uma situação emergencial, o ordenamento jurídico pr ima pela resolução do problema apresentado, permitindo ao próprio particu­lar realizar, por sua própria vontade, a tutela pretendida ou a obrigação devida.

Insta ressaltar que o ato de realizar justiça por mão própria deve atender, es­tritamente, à finalidade do direito pretendido, sob pena de configurar abuso ou excesso de direito, ensejando, nessa hipótese, a responsabilização do agente de acordo com a extensão do eventual dano produzido.

Nessa limitação imposta pela atual legislação, ou seja, a autotutela poder ser exercida apenas legitimamente, dentro dos limites da boa-fé, dos bons costumes, da socialidade e da eqüidade, esse instituto reforça seu fator social por correspon­der exatamente à aplicação da tutela, sem primar por maiores prejuízos causa­dos a terceiros. A ação do agente aplicador da autotutela deve servir apenas como remédio solucionador do conflito existente, sem a necessidade de invocar-se o Poder Judiciário.

A dispensa do poder competente só é possível quando este não se apresen­ta imediatamente diante do conflito surgido, seja por fatos internos ou externos

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de sua estrutura. Nesse momento, a autotutela torna-se o único meio hábil para coagir o agressor, por meio da aplicação da sanção pelo particular, ou a única forma de satisfazer a pretensão individual, tutelada pelo ordenamento jurídico vigente.

Nessa direção, justifica-se ainda mais a utilização da autotutela, ao passo que a atual ineficiência na emanação de decisões pelo Estado-juiz exige a criação de u m mecanismo alternativo, a fim de suprir essa ausência e até mesmo de atingir a estrutura da justiça social.

Considerando que a atual crise judiciária tende a crescer, haja vista que ainda não surgiu u m projeto forte e decisivo para apresentar soluções para o "caos" exis­tente, a autotutela assume sua legitimidade e licitude dentro do ordenamento jurídico pátrio. Dessa forma, o Estado inoperante na sua função de órgão aplica-dor da sanção, sujeita a abertura de caminhos paralelos para que a justiça seja alcançada. Caso contrário, a realização do direito do cidadão tornar-se-á u m so­nho inalcançável.

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7 A S P E C T O S P R O C E S S U A I S D A I N D E N I Z A Ç Ã O D E D A N O M O R A L 1 , 2

HÉLIO RUBENS BATISTA RIBEIRO COSTA*

Sumário 1. Introdução. 2. Conceito de dano moral. 3. Compe­tência: dano moral ocorrido na relação trabalhista, na relação conjugai e a proposta do deslocamento do jul­gamento para o Tribunal Popular do Júri. 4. Condi­ções da ação. 5. Requisitos da petição inicial: pedido e valor da causa. 6. Instrução processual: a prova do dano moral e a chamada "reciprocidade da conduta culposa".

O presente artigo tem por objetivo abordar algumas questões processuais das ações de indenização de dano moral, passando ao leitor o posicionamento do autor e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribu­nal Federal, quando o caso.

Advogado. Mestrando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

1 Convidou-me o Dr. Rodrigo Mazzei, colega e amigo, para escrever um artigo sobre refle­xos processuais no direito civil, sobretudo à luz do Código Civil de 2002, para compor obra que contará com a sua coordenação. A idéia é sobremaneira oportuna: advogados, juizes, Ministério Público, professores e estudantes, enfim, todos que trabalham com o Direito necessitam de uma obra como esta. Espero que minha contribuição de fato esti­mule o debate em relação aos "temas processuais do dano moral".

2 Todo o trabalho de levantamento jurisprudencial foi realizado por Roberta Rauchfeld Amendola de Oliveira, minha amiga, à época de seu estágio conosco. Os agradeci­mentos agora tornam-se públicos.

1. INTRODUÇÃO

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ASPECTOS PROCESSUAIS DA INDENIZAÇÃO DE DANO MORAL 153

Para compor a obra, coordenada pelo professor Rodrigo Mazzei, analisare­mos, neste artigo, as questões processuais atinentes à indenização por dano de natureza moral, sobretudo as polêmicas e que tenham relação direta com o ad­vento do Código Civil de 2002.

Nosso estudo, portanto, objetiva tratar das questões processuais da indeniza­ção de dano moral. Abordaremos os seguintes pontos: (i) competência para conhe­cer e julgar ações de indenização de dano moral; (ii) condições da ação (possibili­dade jurídica do pedido, legitimidade de parte e interesse de agir); (iii) requisitos da petição inicial; e (iv) instrução processual.

No contexto desta temática, abordaremos: (a) dano moral ocorridos nas re­lações trabalhista e conjugai, e a proposta do deslocamento do julgamento para o Tribunal Popular do Júri, no que refere à competência; (b) dano moral e transa­ção, quanto ao interesse de agir; (c) dano moral e pessoa jurídica e dano moral e transmissão pela herança, quanto à legitimidade de parte; (d) possibilidade de cumulação com dano material, quanto à possibilidade jurídica do pedido; (e) pedi­do e valor da causa, no que atine aos requisitos da petição inicial, bem como, inci-dentalmente, a possibilidade recursal das sentenças de arbitramento, o controle do valor no âmbito do recurso especial e a impossibilidade de fixação da conde­nação com base no salário-mínimo; e (f) a prova do dano moral e a chamada "reciprocidade da conduta culposa", quanto à instrução processual.

2. CONCEITO DE DANO MORAL

O dano moral, durante muito tempo, foi entendido como dano não patri­monial, isto é, todo o prejuízo sem conteúdo financeiro, direto ou indireto, a afe­tar o patrimônio do ofendido. 3

Esta afirmativa pertence ao professor Yussef Said Cahali, em sua obra Dano moral, na qual escreveu literis: "Segundo entendimento generalizado na doutrina, e de resto consagrado nas legislações, é possível distinguir, no âmbito dos danos, a categoria dos danos patrimoniais, de um lado, e dos danos extrapatrimoniais, ou morais, de outro; respectivamente, o verdadeiro e o próprio prejuízo econômico, o sofrimento psíquico ou moral, as dores, as angústias e as frustrações infligidas ao ofendido". Prossegue o desembargador aposentado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, citando as doutrinas de Aguiar Dias: "Quando ao dano não correspondem as características de dano patrimonial, estamos na presença de dano moral"; Pontes de Miranda: "Dano patrimonial é o dano que atinge o patrimônio do ofendido; dano não patrimonial é o que é, só atingindo o devedor (sic) como ser humano, não lhe atinge o patrimônio";

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154 HÉLIO RUBENS BATISTA RIBEIRO COSTA

Sob o argumento da abstração do caráter estritamente econômico do patri­mônio, isto é, entendê-lo de forma mais ampla na esteira de concepções mais modernas como integrado "por valores imateriais, inclusive de natureza ética" pro­põe a doutrina de Yussef Cahali que o "critério distintivo à base da exclusão reve­la-se insatisfatório".

Concordamos com este posicionamento e, somado ao fato de que a concei-tuação pela negativa ("o dano moral é o não patrimonial") revela-se da mesma forma insatisfatória, parece-nos extremamente coerente que o dano moral seja conceituado, como propõe Yussef Cahali, pelos seus próprios elementos. 4

Em sua definição:

[...] tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes ã sua personalidade ou reconhecidos pela socie­dade em que está integrado, qualifica-se, em linha de princípio, como dano moral.

O indivíduo, como a pessoa jurídica, são detentores de direitos próprios, de cunho subjetivo, os quais a lei procura preservar. São estes direitos que, se viola­dos, devem ser objeto de indenização pelo dano causado, dano este que será de natureza moral . Todo o conjunto de direitos próprios à pessoa física e, no que lhe refere, à pessoa jurídica, se violado, enseja dano moral. Pode-se pensar que, à razão do princípio da igualdade previsto no art. 5 o da Constituição Federal, todos têm os mesmos direitos subjetivos, a mesma moral a defender, ao contrá-

e Orlando Gomes, este distinguindo a lesão ao direito personalíssimo que repercute no patrimônio da lesão que não repercute: "Ocorrem as duas hipóteses. Assim, o atentado ao direito à honra e boa fama de alguém pode determinar prejuízos na órbi­ta patrimonial do ofendido ou causar apenas sofrimento moral. A expressão dano moral deve ser reservada exclusivamente para designar o agravo que não produz qualquer efeito patrimonial. Se há conseqüências na ordem patrimonial, ainda que mediante repercussão, o dano deixa de ser extrapatrimonial".

4 Novamente, socorremo-nos da doutrina do professor Yussef Cahali que, citando Dal-martello, define dano moral "como a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranqüilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física, a honra e os de­mais sagrados afetos" e, depois, do saudoso Bittar, que estabelece: "qualificam-se como morais os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou o da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (o da reputação ou da consideração social)".

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rio do patr imônio que, enquanto conjunto dos bens corpóreos, em sociedade ca­pitalista, cada qual haverá de ter o seu.

Já a moral, insistimos, conquanto compreenda bens incorpóreos, de natu­reza eminentemente subjetiva, que a própria lei atribui caráter de direitos e garantias fundamentais, por tanto comum a todos, pessoas físicas ou jurídicas, deve ser entendida como u m direito comum à sociedade.

Assim propomos definir o dano moral como a violação, in concreto, de to­dos os valores abstratos pertencentes ao ser humano e também à pessoa jurídica que, em face do princípio da igualdade, são comuns a todos. Assim, a diferencia­ção com o dano patrimonial é bem-vinda, seja porque a definição se dá pela afir­mativa e não pela negativa, seja porque respeita a abstração do caráter estrita­mente econômico do patr imônio defendida por Yussef Cahali:

Nem todos terão, à forma de modelo de nosso Estado, patrimônio a ser objeto de garantia legislativa, mas, com certeza, em razão do princípio da igualdade, todos te­rão proteção ao conjunto abstrato de direito de cunho exclusivamente moral - nada obstante possam, as pessoas e as empresas, perderem sua moral e os atributos a ele ine­rentes, por ato próprio, ao longo de sua existência.''

3. COMPETÊNCIA: DANO MORAL OCORRIDO NA RELAÇÃO TRABALHISTA, NA RELAÇÃO CONJUGAL E A PROPOSTA DO DESLOCAMENTO DO JULGAMENTO PARA 0 TRIBUNAL POPULAR DO JÚRI

Muito se discute quanto à competência para conhecer e julgar ações que envolvem malferimento a direito com percepção de dano de natureza moral, por meio das quais se pretenda a indenização judicial, quando estes danos tenham origem nas relações conjugais e nas relações de trabalho. Paralelamente, há quem cogite também o deslocamento dos julgamentos para o Tribunal Popular do Júri.

A maçã do paraíso, verdadeiro fruto proibido, provoca o Homem a praticar atos que podem levá-lo à derrocada moral. Vivendo em uma sociedade altamente capitalista e competitiva, na qual o padrão social econômico sobrepõe-se, não raro, ao patrimônio moral, é comum vermos pessoas (físicas e jurídicas) praticando atos de duvidosa mo­ralidade: o Homem moderno, infelizmente, valora a moral como se fosse o último de seus bens. Felizmente, há numerosas e qualificadas exceções, mas tenhamos a cora­gem de assumir que muitos não superam as mais variadas tentações que aparecem e acabam comendo o fruto proibido.

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Dentro deste contexto, verificaremos o primeiro aspecto processual das in­denizações de dano moral, que é a fixação do juízo competente naquelas hipóte­ses mencionadas, bem como, ainda que rapidamente, analisaremos a proposta le­gislativa de atribuição de competência ao Tribunal Popular do Júri para julgar ações desta natureza.

3.1 Dano moral e relação conjugai

Em algumas comarcas, as relações conjugais são resolvidas em juízo de fa­mília, com varas e juizes especializados; em outras, seja porque trata-se de vara única, com amplitude de competência, seja por motivo de organização judiciá­ria, não há esta especificação.

Limitamos nosso estudo à existência das varas de família. Seriam elas com­petentes, então, para conhecer e julgar ações de indenização por dano de nature­za moral que derivem de uma relação conjugai ou regrada pelo direito de família?

Embora não se trate aqui de uma resposta singela, e nem mesmo passível de uma maior analogia à questão seguinte, referente ao dano moral ocasionado em re­lação de emprego, entendemos que o juízo competente para julgar o dano moral nas relações regradas pelo direito de família seja o juízo cível e não a vara de família.

Tome-se, por hipótese, o adultério. Caberá ao juízo de família o exame do pos­sível rompimento do vínculo conjugai; todavia, salvo melhor juízo, será de com­petência do juízo cível (e não à vara de família) julgar o eventual pedido de inde­nização por dano moral decorrente daquele ato.

3.2 Dano moral e relação de trabalho

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou a respeito da competência para o conhecimento e julgamento de causas que envolvam dano moral em uma rela­ção de emprego:

Compete à Justiça do Trabalho o julgamento de ação de indenização, por danos materiais e morais, movida pelo empregado contra seu empregador, fundado em fato decorrente da relação de trabalho (CF, art. 114), nada importando que o dissí­dio venha a ser resolvido com base nas normas de Direito Civil. (RE 238.737-SP. Rei. Min. Sepúlveda Pertence)6

"Tenho por adequada ao caso a invocação da decisão plenária do CJ 6.959 — colhida pelo recorrente de estudo do autorizado Pinto Pedreira sobre a questão específica deste

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A competência da Justiça do Trabalho para estas causas vem expressa no art. 114 da Constituição Federal, desde que, evidentemente, o fato seja decorrente da relação de trabalho, pois:

Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e

coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito públi­co externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.

Em nossa opinião, se o dano moral não tiver fundamento em fato decorren­te da relação de trabalho, pouco importando sejam partes na ação empregador e empregado, a contrario sensu, é competente a justiça comum para conhecer e jul­gar a indenizatória.

3.3 Competência do Tribunal Popular do Júri

No que se refere ao Tribunal Popular do Júri 7 conhecer e julgar ações que ver­sem sobre dano de natureza moral, pelo menos duas considerações de maior re-

caso: a competência para conhecer de ação de reparação de danos morais geradas pela injusta atribuição pelo empregador ao trabalhador de ato de improbidade no empre­go, a título de justa causa para a despedida". "Mutatis mutandis, aqui também, na espécie, a imputação caluniosa — causa petendi de ação reparatória de danos morais -surgiu exclusivamente em razão da relação de emprego, formulada como pretexto de justa causa para a resolução do contrato de trabalho pelo empregador". "Cuida-se, pois, de dissídio entre trabalhador e empregador, decorrente da relação de trabalho, o que basta, conforme o art. 114 da Constituição, a firmar a competência da Justiça do Tra­balho, nada importando que deva ser solvido à luz de normas do Direito Civil". Foi instituída pela Comissão dos Novos Advogados do Iasp subcomissão para a aná­lise do Projeto de Lei n. 4.729, de 2001, de autoria do Deputado José Roberto Bato-chio, que pretende atribuir ao Tribunal do Júri a competência para o processamento e julgamento de todas as ações cíveis que contenham pedidos de indenização por danos morais. Participaram dos trabalhos os Drs. Luiz Felipe Santoro, Hélio Rubens Costa, Pedro Dinamarco, Juliano Barra, Rodrigo Matheus e Fábio Delmanto. Assim, tivemos a oportunidade de integrar comissão especial para exame do assunto, coor­denada por Dr. Rodrigo Santoro, que produziu parecer contrário à fixação de com­petência do Tribunal do Júri para estas causas, submetendo-o ao exame da prestigio­sa Comissão dos Novos Advogados do Instituto dos Advogados de São Paulo. Neste, parte do parecer será transcrita, quando de nossa autoria, e parte mencionada, quan­do resultado do trabalho da referida comissão especial.

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levo devem ser feitas: a constitucionalidade da extensão da competência do refe­rido Tribunal para o julgamento destas ações e a adequação deste deslocamento de competência, sob o ponto de vista não apenas do direito - em especial de natureza federal infraconstitucional - mas também sob o ponto de vista da ciên­cia sócio-jurídica.

No que refere a u m exame de constitucionalidade, a despeito da alínea d do inc. XXXVIII do art. 5 o da Constituição Federal estabelecer a competência do Tribunal do Júri apenas para os crimes dolosos contra a vida, parece-nos que esta não seria a única competência possível a ser atribuída ao mencionado Tri­bunal .

Na verdade, a utilização da expressão "assegurados" constante do inc. XXXVIII do art. 5 o está a sugerir que, no mínimo, a competência para os crimes dolosos fosse respeitada. Isto, a nosso ver, sem limitação: apenas pretendeu o legislador que estes crimes fossem, necessariamente, julgados pelo Tribunal Popular do Júri.

Fazendo-se uma verificação histórica do instituto, merece maior análise o fato de que, na Constituição de 1946 a redação do parágrafo 28 do art. 141 esta­belecesse como: "mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja ímpar". Lá, havia a exigência expressa de que fosse ímpar o júri, podendo a lei dispor sobre as demais formas organizacionais. Ou seja, pode­ria fazer-se de tudo por via de legislação ordinária, desde que obedecida a exi­gência de imparidade do júri.

Já a Constituição de 1967 preferiu estabelecer que o júri teria competência para os crimes dolosos contra a vida, sem mais disciplinar e permit indo que, res­peitada esta exigência constitucional, dispusesse a lei sobre as demais formas de organização do júri.

Em nossa atual Constituição, o legislador preferiu estabelecer outras con­dições mínimas para o Tribunal do Júri, que são: (a) a plenitude de defesa; (b) o sigilo de votações; (c) a soberania dos veredictos; e (d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Além disso, a Constituição não previu a necessidade de composição ímpar dos jurados, mas esta existe em razão de lei.

Pelo desenvolvimento deste raciocínio, é possível compreender que, uma vez criado o Tribunal do Júri e estabelecidas as condições asseguradas na Constitui­ção, estas devam ser respeitadas, sob pena de inconstitucionalidade, mas que ou­tras também possam e devam ser estabelecidas em lei ordinária, desde que não entrem em conflito com aquelas previstas constitucionalmente.

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Celso Ribeiro Bastos 8 já teve oportunidade de se manifestar sobre o tema, adotando idêntica interpretação de que o inconstitucional é apenas subtrair da competência do Júri os crimes dolosos contra a vida, à luz da atual Constituição:

No passado, mais especificamente com a aparição da Emenda Constitucional n. 1/69, houve dúvidas quanto à interpretação da instituição do júri: "só há instituição do júri para julgamento dos crimes dolosos contra a vida". A redação de 1946 apontava niti­damente para o entendimento de que a lei poderia criar outros casos de competên­cia do júri. Cremos ser esta a melhor interpretação para o dispositivo sob comento. Fica dito que é assegurada ao júri, entre outras coisas, a competência para os crimes dolosos contra a vida. Essa é uma competência sem dúvida mínima. Em nenhuma hipótese um crime com estas características pode ser subtraído do júri, mas em ne­nhum momento está dito que outras atribuições não lhe podem ser acrescidas nos termos da lei ordinária.

No estudo comparativo entre a Constituição de 1988 e a de 1967 elaborado pela Price Waterhouse, é possível encontrar, na mesma linha, o argumento de que

da mesma forma que a Constituição de 1967, a Carta Magna vigente determina a com­petência do tribunal do júri, no que diz respeito ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Embora obrigatória, essa competência não é exclusiva: a lei ordinária poderá ampliá-la para o julgamento de outras infrações, sejam elas dolosas ou cul­posas. A Constituição determina a competência mínima, que se resume nos crimes contra a vida - o bem maior do indivíduo.

Nesta ordem de idéias, é possível sim à lei ordinária cuidar da competência para o Tribunal do Júri. O que a Constituição objetiva garantir é, tão-somente, que os crimes dolosos contra a vida sejam julgados em Júri; outros tipos de crime, só se assim o quiser o legislador ordinário.

Sobre o ponto específico, constitucional é o projeto que pretende atribuir competência ao Tribunal Popular do Júri para conhecer e julgar ações de dano moral.

No que se refere à adequação deste deslocamento de competência, sob o ponto de vista não apenas do direito - em especial de natureza federal infraconstitucio-nal — mas também sob o ponto de vista da ciência sócio-jurídica, rogamos vênia

BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo, Saraiva, 1988-1989.

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para, no que interessa, expor a posição tomada pela comissão especial que inte­gramos e que tratou do assunto, porquanto sejamos daquela opinião:

Importante lembrar que o Projeto de Lei ora analisado pretende a inclusão do art. 1.072-D no Código de Processo Civil, que prevê:

"A organização do Tribunal do Júri e o julgamento são os mesmos previstos no Código de Processo Penal, no que não for incompatível com o processo e o proce­dimento civis".

Desta forma, é preciso proceder a uma análise da "organização" e do rito processual destinado ao Tribunal do Júri, previsto na lei processual penal, a fim de saber se há viabilidade (material, processual e econômica) de sua aplicação para o julgamento de ações cíveis que versem sobre danos materiais e morais. Em uma análise sucinta, cremos que a aplicação da "organização do Tribunal do Júri" e de seu rito especial, previstos no CPP, para o julgamento de questões cíveis (no caso, ações de indenização por danos morais) trará inúmeros problemas, principal­mente no âmbito do processo civil, da Constituição Federal e da organização judiciá­ria. Como se sabe, o julgamento perante o Tribunal do Júri importa no gasto de muito dinheiro público, no dispêndio de tempo e na utilização de grande espaço público. Haveria, sem dúvida, um aumento considerável na despesa pública, o que afrontaria a atual e correta política de responsabilidade fiscal dos entes públicos, trazida pela Lei Complementar n. 101/2000 e pela Lei Federal n. 10.028/2000, tendo esta última inclusive criado os novos crimes contra as Finanças Públicas, hoje inseridos no Códi­go Penal, em seus arts. 359-A a 359-H.

Além disso, o rito ali previsto é especialmente destinado ao processo criminal, não havendo como "simplesmente" aplicá-lo ao processo civil sem ferir inúmeros princí­pios e garantias processuais.

É de se ver, outrossim, que o Código de Processo Penal brasileiro é de 1941, encon­trando-se, pois, em muitos casos, defasado e em desacordo com a Constituição Fede­ral. Por esta razão é que se encontra em andamento o Projeto de Lei n. 4.203/01, que altera todo o procedimento relativo aos processos da competência do Júri. Cabe fri­sar que este Projeto não faz menção alguma à inclusão do julgamento de questões cíveis na competência do Tribunal do Júri, que, ainda segundo o referido Projeto, continua competente apenas para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Pertenceu ainda ao estudo daquela comissão, da qual participamos, o exame dos aspectos cíveis do dano moral no contexto da atribuição de competência ao Tri­bunal Popular do Júri para julgar demandas daquela natureza, aqui em particular a possibilidade de cumulação com dano material sobre o que trataremos a seguir:

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0 Projeto de Lei ora analisado demonstra um divórcio do legislador das questões práticas concernentes ao instituto do dano moral.

Na forma do art. 292 do Código de Processo Civil, é permitida a cumulação de pedi­dos, num único processo, contra o mesmo réu, desde que os pedidos sejam compatí­veis entre si, seja competente para conhecer deles o mesmo juízo, seja adequado para todos os pedidos o tipo de procedimento. O projeto em questão transfere a competência (absoluta) ao Tribunal do Júri para conhecer as questões relativas ao dano moral (Art. 1.072-a). 0 Tribunal do Júri é com­petente para o processamento e julgamento das ações de indenização por dano mora?}. Por seu turno, o art. 1.072-e projetado prescreve: Havendo, em uma mesma ação,

pedidos referentes a indenização por dano moral e por dano patrimonial, o processo terá curso na Vara do Tribunal do júri. Parágrafo único. Nesse caso, após a decisão pelo conselho de sentença do referente ao dano moral, o juiz presidente decidirá no tocan­te à indenização por dano patrimonial.

Tal como proposto, o projeto importará em grave modificação do quanto hoje é aceito pela doutrina e jurisprudência no tocante à cumulação de pedidos, sendo um deles de ressarcimento de danos morais. É que, como já dito, o pedido de indeniza­ção por danos morais não se cumula única e exclusivamente com o pleito de ressar­cimento de lesões de ordem patrimonial.

H a v i a outros fundamentos para a rejeição da atr ibuição de competênc ia do Tr ibuna l Popu la r do J ú r i para conhecer e ju lgar ações que envolvessem dano m o ­ral e sua respectiva indenização. Todavia , estas fogem ao foco do nosso estudo. Apenas suas conclusões a inda me recem menção :

A implementação de Tribunais do Júri para julgamento de causas em que sejam dis­cutidas questões referentes a dano moral parece-nos inadequada ante à total falta de estrutura e disposição, física e humana, para processamento e distribuição das ações. Valemo-nos das palavras do professor Cândido Rangel Dinamarco "o Processo Civil

Moderno quer ser um processo de resultados, não um processo de conceitos ou de fili­granas". Portanto, processo é o meio para a consecução de um fim e não fim em si mesmo, não podendo alcançar maior importância que o direito nele pleiteado, sob pena de incorrer-se em negação da prestação jurisdicional e conseqüente injustiça, não vindo a Justiça a alcançar o fim social para a qual foi idealizada. A nosso ver, a Justiça se distanciará cada vez mais do jurisdicionado caso referido Projeto de Lei seja aprovado, uma vez que:

i) O Projeto se distancia dos fins que deseja ante à total inaplicabilidade em razão de uma "importação" advinda do direito estrangeiro, diga-se EUA e seu sistema

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Common Law, em detrimento do sistema adotado no Brasil, romano-germânico -Civil Law.

ii) Por questões estruturais concernentes aos espaços físicos e recursos humanos e econômicos. iii) 0 fato dos cidadãos julgarem seus pares não corresponde à máxima de que se estaria fazendo justiça, já que esta muitas vezes não se efetivaria diante dos olhos leigos da população, em razão dos inúmeros empecilhos e entraves que surgiriam para o julgamento de uma causa pelo Tribunal do Júri. Ao contrário da intenção manifestada, haveria sim um afastamento do jurisdicionado do Poder Judiciário. iv) A criação de instrumentos efetivos e atitudes concretas no sentido de transfor­mar e implementar novos conceitos para o processo seriam de maior valia e de satisfação dos jurisdicionados, pois estes querem que suas demandas sejam jul­gadas de forma rápida e segura, cumprindo a efetiva entrega da prestação juris­dicional, e não instrumentos viciosos e utópicos que se contradizem à moderna processualística.

4. CONDIÇÕES DA AÇÃO

4.1 Interesse de agir: dano moral e transação

4.7.7 Dano moral e transação O instituto da transação está disciplinado pelos arts. 840 a 850 do Código

Civil. Para os fins do presente estudo, interessa de perto a questão da transação preventiva ou terminativa de litígios (art. 840), esta em juízo ou fora dele (art. 842, parte final) e a abrangência do ato jurídico, isto é, se contempla porventu­ra indenização por dano moral no caso de não haver expressa menção a este direito.

Sabe-se que a transação, seja por definição e característica do instituto, seja por expressa disposição legal, "interpreta-se restritivamente, e por ela não se transmitem, apenas se declaram ou reconhecem direitos." (art. 843 do Código Civil, g.n.).

Questão ordinária em litígios, seja com o escopo preventivo, seja para ter­miná-los, em juízo ou não, é a abrangência de uma transação; visto interpretar-se restritivamente, é de se concluir que, em regra, a transação havida em relação a determinado direito apenas a ele se refere: se, porventura, houver um prejuízo moral indenizável e uma subseqüente transação entre as partes (ofensor e vítima),

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a transação apenas o abrangerá se expressamente a ele se dirigir. Silente, por­quanto a interpretação deva ser restritiva, presume-se que a transação não tenha incluído aquele prejuízo. Pode ser também que, no próprio instrumento transa­cional, 9 ' 1 0 as partes interessadas façam ressalva quanto aquele direito - hipótese que, por evidência, não será parte de seu objeto.

Tome-se, por exemplo, a situação em que a vítima de u m dano provocado por outrem com ele transacione; em regra, havendo prejuízos de ordens moral e material, dependerá do termo de transação (que deverá obedecer a regra do art. 842 do Código Civil) o alcance do ato jurídico, isto é, não fazendo menção expressa ao dano moral, entender-se-á que ele não foi contemplado por aquele ato.

No entanto, a questão é mais complexa. Caso exista uma ação judicial por meio da qual a vítima reclame prejuízos cíveis ao ofensor, sendo eles da nature­za dúplice mencionada — moral e patrimonial — a transação, a ser feita por escri­tura pública ou por termos nos autos a ser homologado pelo juízo, poderá con­templar o dano moral, mesmo sem menção expressa. Observe-se bem: a ação visava a dano moral e material. Uma transação genérica supõe acordo total entre as partes; aqui, a ressalva deve ser expressa para que o dano moral seja dado como não incluso, posto que, segundo entendemos, parece mais lógico que a parte transacione o todo, e não parte dele: se for esta a opção, que seja então declarada.

Hipótese distinta, a nosso ver, é aquela na qual a ação judicial apenas ver­sava sobre dano material e ocorria uma transação; aqui, exceto expressa menção de inclusão também de eventual dano moral antecedente, a interpretação res­tritiva recomenda que não se considere abrangido pelo ato. Nessa situação, não percebemos qualquer impedimento para que o juízo possa homologar este acordo.

Portanto, o exame das condições da ação, notadamente do interesse de agir, na hipótese de uma transação preventiva ou terminativa de litígios, deve obede­cer à verificação destas premissas.

Por força do art. 842 do Código Civil "a transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz". Não se perca de vista, ademais, a possibilidade de transação prevista na Lei n. 9.099/1995, especialmente à vista do art. 74.

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4.2 Legitimidade de parte: dano moral e pessoa jurídica e dano moral e transmissão pela herança

4.2.1 Dano moral e legitimidade ativa: considerações genéricas Para propor ação, na forma do art. 3 o do Código de Processo Civil, "é neces­

sário ter interesse e legitimidade". Interesse em agir e legitimidade, ao lado da possibilidade jurídica do pedido, são as condições da ação previstas em nosso ordenamento jurídico. A ausência de uma delas implica na extinção processual sem exame do mérito, na forma do inc. VI do art. 267 do Código de Processo Civil.

A vivência social do homem implica, não raro, na necessidade da interven­ção estatal a fim de que venha a resguardar sempre que possível ou, no mínimo, restabelecer a ordem das coisas.

As primeiras medidas, aquelas que tenham o escopo de resguardar direitos, podemos considerar como preventivas e, as segundas, que visem ao restabeleci­mento da ordem normal das relações, como sendo de caráter corretivo.

Em uma visão geral, o Judiciário irá intervir nas relações sociais ou para, pre­ventivamente, mantê-las em estabilidade ou, se for o caso, para corrigir desacer­tos porventura ocorridos.

Todavia, não pode o Judiciário agir de ofício, senão impulsionado pela ini­ciativa do autor e direcionado pela conduta das partes, já sob o processamento do litígio. É necessário dizer que, uma vez acionado, o Judiciário - Estado-juiz - , dará andamento oficial ao feito porque, embora as partes sejam desobrigadas de fazê-lo, o juiz deve sempre atuar após provocado.

O que se apresenta como fruto do entendimento mais moderno da política jurídico processual, deve, sempre que possível, atingir o mérito do litígio porque, ao assim operar, não apenas direitos privados estarão resguardados, mas também os direitos da própria sociedade.

Todavia, para chegar à sentença de mérito, o juiz deve transpor dois obstá­culos a tanto: os pressupostos processuais e as condições da ação.

A vigente codificação pátria, a propósito das condições da ação, as estabele­ce como matérias que impedem o exame de mérito, que devem ser apreciadas pre­liminarmente, e as enumera como: (i) a possibilidade jurídica do pedido; (ii) a legitimidade das partes; e (üi) o interesse processual.

De tal maneira, como u m requisito à análise do mérito da lide, é que devem ser entendidas as condições da ação, a legitimidade das partes, a possibilidade ju­rídica do pedido e o interesse processual. As condições da ação, sobretudo o inte-

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resse processual e principalmente a possibilidade jurídica do pedido, que são oriundas do direito processual italiano, deveriam aqui, como lá já o foram, ser abolidas de nosso sistema.

4.2.2 Dano moral e pessoa jurídica O Superior Tribunal de Justiça pacificou o cabimento de indenização de da­

no moral à pessoa jurídica por meio do verbete n. 227 de sua súmula de juris­prudência dominante. 1 1

De acordo com a definição de dano moral mencionada neste trabalho, ainda à luz da Constituição Federal e do Código Civil, não se revela mais possível dis­cutir, abstratamente, a possibilidade da ocorrência de um dano de natureza moral às pessoas jurídicas. Argumentos neste sentido podem implicar em liti-gância de má-fé.

Conforme artigo doutrinário de Juliana Norder Franceschini, 1 2 pode-se di­zer que "a defesa da imagem da pessoa jurídica, considerando os valores éticos e morais, não poderia ser negada por nossos Tribunais posto que é reconhecida no ordenamento jurídico".

No artigo, copiou-se oportunamente julgado do E. I o Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, Apelação n. 474.592-8, Juiz Relator Caio Graccho:

Quanto ao dano moral, o recurso comporta provimento parcial. Com efeito, o subs­trato do dano moral é a honra. Di-lo o próprio art. 5 o, inc. X, da Constituição Fede­ral, e o direito à honra é traduzido por uma série de expressões compreendidas como princípio da dignidade: o bom nome, a fama, o prestígio, a reputação, a esti­ma, o decoro, a consideração, o respeito. É inegável que a pessoa jurídica pode so­frer ofensa ao seu bom nome, fama, prestígio, e reputação, veja-se que ela pode ser sujeito passivo de crime, como prevê o Código Penal, no seu Capítulo III, artigo 192, no delito de violação do direito de marca de indústria ou comércio. Nesta senda, o protesto de título de crédito, por curial, atinge o bom nome, fama e prestígio da pes­soa jurídica, porque torna pública a inadimplência, com amplas possibilidades de restrição de crédito. Ademais, o citado dispositivo constitucional não distingue a pes­soa física da jurídica na proteção da inviolabilidade da imagem, mencionando gene­ricamente a expressão "pessoa".

Súmula 227. A pessoa jurídica pode sofrer dano moral. FRANCESCHINI, Juliana Norder. Dano moral - pessoa jurídica. Revista Justiça e Poder.

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Há também a declaração de voto vencedor do Juiz Nivaldo Balzano:

Desde logo comporta análise o tema alusivo à indenizabilidade do dano moral às pes­soas jurídicas em razão de sustentarem alguns dizer respeito ao atributo da persona­lidade, exclusivo das pessoas naturais. Yussef Sahid Cahali ("Dano e indenização, RT,

1980, p.92 e segs.) apresenta o abalo de crédito como agravo, apontando a evolução do pensamento jurídico a respeito desse tema frente aos comerciantes. Traz as lições de Demogue ("Traité des obligations") e de Aguiar Dias ("Da responsabilidade civil") mostrando a coexistência do abalo do crédito com reflexos puramente materiais e patrimoniais, ao lado da ofensa moral. Existem atributos imateriais e ideais comuns à pessoa do comerciante e à empresa dele, a saber: reputação, idoneidade, pontua­lidade, seriedade, clientela, etc. bens da vida esses protegidos pelo direito. De outro lado, não é preciso muito esforço para prever as conseqüências nefastas geradas a um comerciante pelo protesto de um título causai, aparentemente de responsabilidade dele, mas desprovido do negócio subjacente. No mínimo, sugere publicamente a impontualidade das obrigações. Isso repercute no estado psíquico do comerciante e no conceito da própria empresa perante os demais agentes econômicos. Instala-se instantaneamente e independente de outras circunstâncias, uma mácula na reputa­ção dela, portanto ressarcível de acordo com a previsão contida no artigo 5 o, incs. V e X, da Constituição Federal que não distingue as destinatárias da norma entre pes­soas naturais e jurídicas, protegendo ambas, (g.n.)

Também caminha neste sentido, a doutrina de Wilson Melo da Silva1 3:

Dessa forma, pois, o bem em sentido jurídico, melhor dito: o objeto de direito tem uma acepção ampla, compreensiva tanto das coisas materiais, como das imateriais, tanto das coisas suscetíveis de avaliação econômica, como das não suscetíveis dessa avaliação, de conformidade, aliás, com o que pensam Minozzi e Formica. O patrimô­nio, classicamente, sempre se concebeu como um acervo de direitos apreciáveis em dinheiro. O termo implica, juridicamente falando, uma idéia de haveres, de valores econômicos. Essa concepção que remonta aos tempos de Paulo é, ainda, a mesma que vem sendo sustentada, hodiernamente, por um sem número de doutores: Pla-niol, Fadda e Bensa, Dernburg, etc. Mas se assim é, bem é de ver-se, contudo, que não apenas esse patrimônio em sentido restrito merece a tutela do direito. O "jus", o nexo jurídico, a relação estaria, portanto, em função de um sujeito (pessoa natural

1 3 SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 315-7.

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ou jurídica) e de um objeto, ideal, ou não ideal, conversível, ou não, em dinheiro. Ora: toda lesão, toda contrariedade externa, originada de ato de terceiro e que venha a turbar essa ligação ou esse "jus" que prende ou liga determinado sujeito a determi­nado objeto, merece repulsa.

O posicionamento jurisprudencial acerca da matéria foi bem compilado por Juliana Franceschini no já mencionado artigo, "Dano moral - pessoa jurídica":

No Superior Tribunal de Justiça a matéria foi julgada deforma exemplar pelo Min. Ruy Rosado de Aguiar, nos autos do RESP. n. 60.033-2 MG de fundamentação preciosa: "No Brasil, está hoje assegurada constitucionalmente a indenização do dano moral à pes­soa (art. 5 o, X, da CF). Para dar efetiva aplicação do preceito pode ser utilizada a 'regra exposta pelo art. 1.553 do Código Civil, segundo o qual, nos casos não previs­tos neste capítulo, se fixará por arbitragem a indenização'. Esta disposição permite a indenização dos danos morais e constitui uma cláusula geral dessa matéria (Clóvis do Couto e Silva, O Conceito de Dano Moral no Direito Brasileiro e Comparado, Revis­ta dos Tribunais, p.667/7.) O mesmo dano moral, de que pode ser vítima também a pessoa jurídica, é reparável através de ação de indenização, avaliado o prejuízo por arbitramento, (g.n.)

Observe-se que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça está basea­do em nossa melhor doutrina, como a já citada pelo professor Rui Stoco, bem co­mo em expressiva doutrina alienígena, da qual fazem parte Duguit, André de Lau-badere, Lafayette Ponde, Tirard, Gendrel, Peirre Montané de la Roque, e defendida concretamente por Viney 1 4 na obra Trairé de droit civil — les obligations, la respon-sabilité, 1982, v.II/231, na qual

a proteção dos atributos morais da personalidade para a propositura da ação de res­ponsabilidade não está reservada somente às pessoas físicas. Aos grupos personali­zados tem sido admitido o uso dessa via para proteger seu direito ao nome ou para obter a condenação de autores de propostas escritas ou atos tendentes à ruína de sua reputação.

Bastante oportuna, do mesmo modo, a conclusão da articulista:

de tal forma o Superior Tribunal de Justiça, em seu entendimento sumulado no ver­bete 227, publicado no D] de 8 de outubro de 1999, fls. 126, encontra-se correto por­que também as pessoas jurídicas podem sofrer dano de natureza moral onde o direi-

GHESTIN, J.; VINEY, G. Traité de Droit Civil - Les obligations, La responstabilité. Paris, 1982.

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to não poderia se negar a responsabilizar civilmente o ofensor: o direito brasileiro, que durante décadas se recusava a aceitara responsabilidade civil por dano de natu­reza moral, hoje não mais pode negá-lo não apenas em relação à pessoa física como, agora, também quanto à pessoa jurídica.

É evidente, pois, que as pessoas jurídicas também podem ajuizar ações plei­teando indenização de dano moral.

4.2.3 Dano moral e transmissão pela herança Aspecto processual relevante nas ações de dano moral é a transmissibilida-

de do direito à indenização aos herdeiros. Enquanto o art. 1.526 do Código Civil de 1916 estabelecia que "o direito de exigir reparação, e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança, exceto nos casos que este Código excluir", o Códi­go Civil de 2002 preceitua, no art. 943, apenas que "o direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança".

Regina Beatriz Tavares da Silva1 5 anota que o art. 943 do Código Civil "cor­responde ao art. 1.526 do Código Civil anterior, sendo que no dispositivo em análise não foram excetuados os casos de exclusão da transmissibilidade por sucessão".

Maria Odete Duque Bertasi no artigo "O dano moral e sua transmissão pela herança", 1 6 após apanhado jurisprudencial acerca do tema, demonstrou que o Superior Tribunal de Justiça admite a chamada transmissibilidade jus heriditario naquelas hipóteses de falecimento do ofendido no curso da ação para que pros­seguisse em n o m e dos herdeiros, na forma da lei (REsp. n. 440.626, Rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 3/10/2002), mas não admite a propositura da ação por her­deiros se, quando a ofensa fosse em vida, não tivesse o titular do direito intenta­do a demanda (REsp. n. 302.029/RJ, Rei. Ministra Nancy Andrighi, maioria de votos, julgado em 29 de maio de 2001).

Há três situações distintas que merecem atenção do nosso estudo: o faleci­mento do ofendido no curso da ação, o falecimento do ofendido posterior à ofensa e o falecimento do ofendido anterior à ofensa. As duas primeiras hipóte­ses foram tratadas por Maria Odete Duque Bertasi que, reitere-se, trazendo posi­ção do Superior Tribunal de Justiça, deixou assente que, no primeiro caso, fale-

1 5 TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. In: FIÚZA, Ricardo (coord.). Novo Código Civil comentado. São Paulo, Saraiva, 2002.

1 6 BERTASI, Maria Odete Duque. O dano moral e sua transmissão pela herança. Infor­mativo do Instituto dos Advogados de São Paulo, ano XII, n. 64.

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cendo o autor no curso da demanda, dúvida não há em relação ao prossegui­mento do feito e, no segundo caso, que a não propositura da ação pela vítima, impede que, após seu falecimento, os herdeiros a ajuízem. Concordamos com a posição do Superior Tribunal de Justiça em relação ao prosseguimento da ação no caso de falecimento do autor da ação; todavia, abraçamos o entendimento da articulista, hoje Diretora Secretária do prestigioso Instituto dos Advogados de São Paulo, segundo a qual "com o advento da nova lei civil (...) parece razoável supor que novos contornos jurisprudenciais serão traçados sobre o tema da transmissibilidade jus heriditario".

Entendemos, para o caso da segunda hipótese, ser possível a propositura de ação de indenização por dano de natureza moral pelos herdeiros - na forma da lei - mesmo nos casos de falecimento da vítima sem tê-la ajuizado, embora cien­te do dano. Posição intermediária vê como possível a ação apenas se, antes do fa­lecimento, o ofendido houvesse contratado advogado, firmado procuração, e de­monstrado, por qualquer ato, a sua intenção em ajuizá-la.

Caso o dano vier a ocorrer após o falecimento do ofendido - em seu nome, por hipótese — é perfeitamente cabível que os herdeiros, na forma da lei, propo­nham a ação de indenização.

Por fim, os herdeiros podem exercer direito próprio ao se sentirem agredi­dos pela utilização da imagem do falecido, posto que a memória dos mortos tam­bém é bem jurídico e merece proteção. O parágrafo único do art. 12 do Código Civil estabelece que "em se tratando de morto , terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau".

4.3 Possibilidade jurídica do pedido: cumulação com dano material

Outra questão processual a respeito das ações de responsabilidade por dano de natureza moral refere-se à possibilidade de cumulação com dano material.

As duas espécies de dano - moral e patrimonial - encontram sustentação em diferentes diplomas legais; a primeira tem sua previsão na Constituição Federal de 1988, e a segunda, no Código Civil. Apesar disso, não se confundem.

Ora, se o legislador criou o ressarcimento por danos patrimoniais e a inde­nização por danos morais, e principalmente porque não foi sua vontade excluir um quando existente o outro, é perfeitamente possível a cumulação de ambos, desde que comprovados os danos ocasionados.

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Apenas não seria admi t ida a cumulação de danos m o r a l e pa t r imon ia l se, e somente se, o legislador que tivesse cr iado estas duas espécies de indenização as­s im o determinasse de fo rma expressa. A falta de pro ib ição, conc lu ímos , é a au to ­r ização de cumula t i v idade .

Este é o en tend imento t a m b é m do ilustre professor Car los A lbe r to B i t t a r : 1 7

A reparação pode, por f im, compreender a satisfação de danos morais e mate­riais, uma vez verificados reflexos nas esferas da moralidade e da patrimonialida-de do lesado. Tem-se, assim, a cumulação de pedidos, por danos morais e mate­riais, perfeitamente admissível em uma só ação, dada a compatibilidade entre eles existente.

A i n d a para este mestre, e m sua monogra f i a sobre responsabi l idade c iv i l , t i ­r amos a l ição de que:

Também são cumuláveis os pedidos de indenização por danos patrimoniais e morais, observadas as regras próprias para o respectivo cálculo em concreto, cumprindo-se fri­sar que os primeiros se revestem de caráter ressarcitório, e os segundos, reparatórios.

Este é o en tend imento do Egrégio Super io r T r ibuna l de Justiça, b e m expres­so na S ú m u l a n. 37 de sua jur i sprudênc ia dominan te : " S ão cumuláve is as i n d e ­nizações po r dano mater ia l e dano m o r a l o r iundos do m e s m o fato".

A referida S ú m u l a encontra fundamento nos Recursos Especiais n. 3.604/SP, 4.236/RJ, 3.229/RJ, 10.536/RJ, 11.177/SP e 1.604/SP. O voto do M in i s t ro C láud io Santos, profer ido nos autos do Recurso Especial n. 4.236/RJ (90.007250-6), empres­ta ao caso e m tela entendimento sobremaneira esclarecedor:

Vitoriosa, assim, na doutrina e no direito positivo, bem como na jurisprudência, é a tese do ressarcimento do dano moral. Persistem, porém, no âmago da questão, algu­mas controvérsias, tais como, na hipótese de homicídio, saber-se se o dano moral está afastado, assim como, a respeito da liquidação do dano, e finalmente, se a indeni­zação do dano moral é absorvida pela reparação do dano material. Tenho pra mim, concessa venia, não terem respaldo legal quaisquer restrições ou limitações ao res­sarcimento moral, seja qual for a espécie de dano, serem ou não cumulativas as indenizações. Se a vítima sofre dano de ordem moral e dano de natureza material, não vejo razão para a absorção daquele por este. O ressarcimento dos prejuízos deve ser o mais amplo e perfeito possível. Este é o princípio e se apenas parte dos danos é indenizável, a solução não terá sido justa.

1 7 B I T T A R , Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. São Paulo, RT, 1993 .

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Mesmo nas ações que tenham procedimento sob outro(s) rito(s), a petição inicial deve preencher, mutatis mutandi, os requisitos do art. 282 do Código de Processo Civil.

Por assim ocorrer, em especial ao disposto no verbete n. 37 da Súmula da ju­risprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça são perfeitamente cu-muláveis as indenizações por dano de natureza moral e material.

5. REQUISITOS DA PETIÇÃO INICIAL: PEDIDO E VALOR DA CAUSA

5.1 Impossibilidade de fixação da condenação com base no salário mínimo

5.7.7 Dano moral e pedido genérico O autor, ao propor demanda por meio de sua petição inicial, deve obedecer

aos requisitos do art. 282 do Código de Processo Civil. 1 8 No que interessa, deve indicar o pedido, com as suas especificações (inc. IV do art. 282 do Código de Processo Civil).

Em razão do princípio do dispositivo previsto nos arts. 2 o , 128 e 460 do Códi­go de Processo Civil, por intermédio do qual o juiz está vinculado à pretensão do autor, o pedido e, conseqüentemente, a petição inicial assumem papel de relevo nas ações judiciais.

Assim o é porque o réu tem o ônus de se defender na extensão do narrado, arrazoado pelo autor na petição inicial. O juiz e órgãos julgadores das demais instâncias encontram o limite de decidir também no quanto pretendido.

Sobre o pedido, requisito da petição inicial na forma do inc. IV do art. 282 do Código de Processo Civil, deve ser dito, com apoio em Nelson e Rosa Nery, que:

A Constituição da República Federativa do Brasil garante a indenização por ofensa à moral de todo cidadão brasileiro ou estrangeiro aqui residente (art. 5 o, caput), cujo valor regula-se no direito material, embora sem lei que o defina.

Daí porque o direito é da parte e o valor é do juízo, inclusive porque depen­de, nos termos da legislação civil, da natureza da conduta do ofensor (dolosa ou culposa) e de outros fatores, o que o autor, na petição inicial, não tem condições de delimitar ou apurar.

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A indenização por dano moral depende, pois, de critérios que se verificam em instrução processual e que dependem, assim, do exercício amplo e irrestrito do contraditório.

O autor não pode e não tem elementos para a determinação valorativa (nu­merária) do dano moral antes da apresentação da defesa e instrução processual, uma vez que a natureza da conduta do réu ditará, entre outros, o valor pecuniá­rio do sofrimento.

É necessário percorrer a instrução processual antes de se valorar a indenização, para que se caracterize, assim, a natureza da conduta do ofensor quanto à culpa (no sentido lato) com que se portou nos moldes dos arts. 186 e 927 do Código Civil.

Assim, o momento processual para a quantificação do dano moral é a apre­sentação dos memoriais, logo após o encerramento da instrução processual e não na inicial, à medida que, naquela fase — memoriais - , as partes terão elementos para arrazoar u m certo quantum mediante os critérios próprios à matéria (natu­reza da conduta, possibilidade das partes, grau da ofensa e outros). Isso em ter­mos de sugestão, porque o valor é objeto de arbitramento judicial, ou seja, a quantificação da lesão pertence ao juízo.

A petição inicial deve conter pedido certo e determinado, qual seja, o da condenação do réu em indenização por dano moral cujo valor deve ser arbitra­do pelo juízo.

O pedido atenderá, pois, a determinação do art. 286 do Código de Processo Civil sendo, necessariamente, certo e determinado. Theotonio Negrão, citando Moacyr Amaral Santos, ensina:

Admite-se o pedido genérico, segundo os termos do art. 286, II, do Código de Proces­so Civil, quando se sabe o an debeatur (o que é devido), mas não o quantum debea-

tur (o quanto é devido), (g.n.)19

Os fundamentos de fato da ação e os de direito permitem o exercício do con­traditório pelo réu, sendo conseqüente a afirmativa de que a ausência de valor do pedido não o limita em uma só circunstância, garantido, pois, o inegável e cons­titucional direito de ampla defesa.

Tema dos mais delicados hodiernamente, a valoração do dano de natureza moral, constitucional por excelência, provoca estudos doutrinários de refinadas produções.

NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 28.ed. São Paulo, Saraiva, fls. 271.

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Conforme elucida José Raffaelli Santini: 2 0

0 nosso ordenamento jurídico positivo ainda não definiu regras concretas para a fixação do valor a ser pago a título de indenização por danos morais, sendo tema dos mais árduos a sua quantificação.

Ainda n o j n e s m o sentido, para corroborar a tese ora expendida, apoiamo-nos nos ensinamentos de Humberto Theodoro Júnior, que nos coloca, com mui­ta propriedade, o seguinte:

SANTINI, José Raffaelli. Dano moral: doutrina, jurisprudência e prática. São Paulo, Editora de Direito, íls. 43. Santini realiza interessante trabalho de argumentos, citando vários autores, ao que pedimos vênia para transcrever as fls. 43, 44, 45, 46 de sua obra paradigma: "Hermenegildo de Barros, citado por Pontes de Miranda, já acentuara que: 'embora o dano moral seja um sentimento de pesar íntimo da pes­soa ofendida, para o qual se não encontra estimação perfeitamente adequada, não é isso razão para que se lhe recuse em absoluto uma compensação qualquer. Essa será estabelecida, como e quando possível, por meio de uma soma, que não importando uma exata reparação, todavia representará a única salvação cabível nos limites das for­ças humanas. O dinheiro não os extinguira de todo; não os atenuará mesmo por sua própria natureza; mas pelas vantagens que o seu valor permutativo poderá proporcio­nar, compensando indiretamente e parcialmente, embora, o suplício moral que os viti­mados experimentam' (RJT 57, p.789-90, voto de Ministro Thompson Flores)." Do mesmo modo, esta mesma advertência é formulada por Wilson Melo da Silva (O dano moral e sua reparação, 2.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1995, p.368), por Yussef Said Cahali (Dano e indenização, p.26) e pelo desembargador Amílcar de Castro (Revista Forense, v.XCIII, p.528). Portanto, a reparação é realizada por uma compensação, via indireta do dinheiro. É como muito bem salientou o consagrado Caio Mário da Silva Prado: "O problema de sua reparação deve ser posto em termos de que a reparação do dano moral, a par do caráter punitivo imposto ao agente, tem de assumir sentido com­pensatório." Maria Helena Diniz, por sua vez, fala, com propriedade, da importância do juiz na fixação do quantum reparatório, ao ensinar: "Grande é a importância do magistrado, na reparação do dano moral, competindo, a seu prudente arbítrio, exami­nar cada caso, ponderando os elementos probatórios e medindo as circunstâncias, pre­ferindo o desagravo direto ou compensação não econômica à pecuniária sempre que possível ou se não houver riscos de novos danos". (Curso de direito civil brasileiro, p.81) Porém, devemos sempre nos lembrar, acerca dos critérios de fixação da indenização por dano moral, do ensinamento proferido já há mais de 40 anos pelo eminente pro­fessor Wilson Melo da Silva, grande precursor do estudo da matéria em nosso país, do seguinte teor: "Para a fixação, em dinheiro, do quantum da indenização, o julgador haveria de atentar para o tipo médio do homem sensível da classe". (O dano moral e sua reparação, op. cit. p.423) Eis a posição de José Rafaelli Santini: "Ao contrário do

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Por se tratar de arbitramento fundado exclusivamente no bom senso e na eqüida­de, ninguém além do próprio juiz está credenciado a realizar a operação de fixação do quantum com que se reparará a dor moral. Está, portanto, solidariamente esta­belecido na doutrina que, não apenas o poder de decidir sobre a existência e confi­guração do dano moral e do nexo causai entre ele e a conduta do agente, mas, tam­bém e sobretudo, a sua quantificação, correspondem a temas que somente podem ser confiados às mãos do julgador e ao seu prudente arbítrio (AMARANTE, op. cit., CASTRO Y BRAVO, op. cit., loc. cit.). É inaceitável, nessa ordem de idéias, relegar a

que alegam os autores na inicial, o critério de fixação do dano moral não se faz me­diante um simples cálculo aritmético. O parecer a que se referem é que sustenta a re­ferida tese. Na verdade, inexistindo critérios previstos por lei a indenização deve ser entregue ao livre-arbítrio do julgador que, evidentemente, ao apreciar o caso concreto submetido a exame fará a entrega da prestação jurisdicional de forma livre e conscien­te, à luz das provas que forem produzidas. Verificará as condições das partes, o nível social, o grau de escolaridade, o prejuízo sofrido pela vítima, a intensidade da culpa e os demais fatores concorrentes para a fixação do dano, haja vista que costumeiramen-te a regra do direito pode se revestir de flexibilidade para dar a cada um o que é seu. Melhor fora, evidentemente, que existisse em nossa legislação um sistema que conce­desse ao juiz uma faixa de atuação, onde se pudesse graduar a reparação de acordo com cada caso concreto. Entretanto, não há. O que prepondera, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, é o entendimento de que a fixação do dano moral deve ficar ao pru­dente arbítrio do juiz". Para Aguiar Dias, "o arbitramento é o critério por excelência para indenizar o dano moral". (Da responsabilidade civil, v.II, p.354) Da mesma maneira, não se pode negar que, fixando o Código os parâmetros da indenização, é evi­dente que deixa explícito o valor integral das parcelas indicadas, com a amplitude con-sentânea de justiça dos dias atuais. O Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já teve oportunidade de se pronunciar no sentido de que: "A intensidade de culpa, a vio­lência, as circunstâncias em que ocorreu o evento danoso poderão informar o critério a ser adotado em tal arbitramento, árduo e delicado, porque estranhado de subjetivi­dade", conforme se vê de julgado inserto na Revista dos Tribunais, v.602, p.l80. Ade­mais, "a soma em dinheiro paga pelo agente é para que ele sinta de alguma maneira o mal que praticou", disse-o ripert, citado por Antônio L. Montenegro, Ressarcimento de danos, p.l29. (José Rafaelli Santini, A sentença cível na prática, Rio de Janeiro, Aide, 1993, p.160-1) Conclui-se, então, que o dano moral requer indenização autônoma, cujo critério será o arbitramento, ficando este a cargo do magistrado, que, usando de seu prudente arbítrio, fixará o valor do quantum indenizatório. Para isso, deverá levar em conta as condições das partes, o nível social, o grau de escolaridade, o prejuízo sofrido pela vítima, a intensidade da culpa e os demais fatores concorrentes para a fixa­ção do dano.

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determinação do valor da indenização do dano moral a uma atividade de árbitros em procedimento comum de liquidação por arbitramento. Isto eqüivaleria, in casu, a uma delegação de jurisdição, o que é inadmissível, segundo os princípios. 0 julga­mento por eqüidade apenas o juiz está credenciado a promover, em tais circunstân­cias.21

A 3 â Turma do Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade, exemplifi-cadamente, de analisar a questão nos seguintes julgados:

a) REsp. n. 108.155/RJ, D] de 30/3/1998, Relator Min. Waldemar Zveiter cuja ementa tem o seguinte teor:

PROCESSO CIVIL - DANOS MORAIS - ARBITRAMENTO DO QUANTUM DEBEATUR PELO MAGISTRADO - INTELIGÊNCIA DO ART. 286,1A III, DO CPC. I - 0 direito pretoriano aco­lhe entendimento no sentido de que o dano moral, não havendo outro critério de avaliação, deve ficar ao prudente critério do juiz sua quantificação.

Neste recurso especial, pretendia-se a reforma de acórdão que, mantendo a sentença, indeferiu a petição inicial e julgou extinto o processo na forma do inc. VI do art. 295 do Código de Processo Civil à ausência de pedido certo e deter­minado, como preconizam os incs. I a III do art. 286 do Código de Processo Civil. O recurso, fundado em violação dos arts. 286,1 a III, do CPC e 1.553 do CC, além de dissídio jurisprudencial, foi conhecido para que a petição inicial fosse deferida e a citação determinada quando o relator citou a doutr ina de Vi­cente Greco Filho, 2 2 segundo a qual "em qualquer caso, porém, a indetermina-ção ou generalidade não é absoluta, porque sempre o pedido é certo e determi­nado quanto ao gênero, faltando apenas a fixação do valor." Além desta doutrina, o relator também fundamentou sua decisão em Virgílio Machado Alvim: 2 3

O autor mineiro traz subsídios da jurisprudência. Diz, textualmente: "Por isso mes­mo, a jurisprudência tem sido enfática em proclamar que: 'O arbitramento do dano moral é apreciado ao inteiro arbítrio do juiz, que, não obstante, em cada caso, deve atender à repercussão econômica dele, à dor experimentada pela vítima e ao grau de dolo ou culpa do ofensor' (TJSP, Ap. 219.366-1/5, Rei. Des. Felipe Ferreira, ac. 28/12/1994, RT 717/126; TJSP, Ap. 6.303-4/1, Rei. Des. Guimarães e Souza, ac. 2/4/1996, RT 730/207. No mesmo sentido: 2 o TACivSP, Ap. 490.355/6, Rei. Juiz Rena­to Sartorelli; e Ap. 501.974-0/3, Rei. Juiz Milton Sanseverino)." GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro, São Paulo, Saraiva, v. 2,1984. ALVIM, Virgílio Machado. Petição inicial e seus requisitos.

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A lei, segundo o magistério de Calmon de Passos tolera o pedido relativamente in­determinado, que ela chama genérico. Essa indeterminação deve referir-se ao quan­tum debeatur não sendo tolerada em relação ao an debeatur. O que é devido não pode ser indeterminado, porque aí estaríamos em face da incerteza do pedido. 0 quanto pode ser determinado a qualquer tempo. Os pedidos genéricos tolerados por lei vêm arrolados no art. 286,1 a III do Código.

Finalmente, o relator fundamenta sua decisão em eficiente doutrina de Pontes de Miranda: 2 4 " . . . ao pedido genérico exige-se ser certo e preciso na sua generalidade."

bXREsp. n. 125.417/RJ, DJ de 18/8/1997, Relator Min. Eduardo Ribeiro cuja ementa é esclarecedora:

DANO MORAL. REPARAÇÃO. ADMISSIBILIDADE DE PEDIDO GENÉRICO. Por unanimi­dade, não conhecer do recurso especial. Admissibilidade, pedido genérico, indeni­zação, dano moral, inclusão, nome, serviço de proteção ao crédito, existência. O relator manifestou voto neste sentido: "tenho correto o acórdão ao assinalar que 'o dano moral por sua natureza não oferece precisão matemática de mensuração econômica'. Sendo a quantificação do valor da indenização algo que se sujeita a forte dose de subjetivismo, razoável admitir-se não se exija deva ser precisada pelo autor. Nem chega a haver prejuízo para o réu que poderá pugnar pela fixação em limites que considere aceitáveis.

Na esteira de precedentes, a 4 a Turma do Superior Tribunal de Justiça deci­diu que "em se t ratando de responsabilidade civil fundada em dano moral, admite-se que o pedido seja formulado sem se especificar o valor pretendido a título de indenização". Esta é a ementa do REsp n. 169.867/RJ {DJ de 19/3/2001, p.l 12) da qual foi Relator o Min. César Asfor Rocha para quem, no voto,

a inicial não é inepta, pois que, como consignado do r. aresto hostilizado, em se tra­tando de responsabilidade civil fundada em dano moral a fixação do quantum inde-nizatório fica submetida ao prudente arbítrio do juiz, tendo em conta as peculiari­dades presentes em caso examinado, por inexistirem critérios objetivos a nortear a parte no momento da formulação do pedido.

Também da 4 a Turma o REsp. n. 175.362/RJ, relatado pelo Min. Aldir Pas­sarinho Júnior, estabeleceu que

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro, Forense, 1974, t.IV.

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ASPECTOS PROCESSUAIS DA INDENIZAÇÃO DE DANO MORAL 177

não se pode imaginar possível o esgotamento de todas as situações em que pode ocor­rer o dano moral, pelas infindáveis variantes das relações humanas. Esse assim é, exi­gir-se que a parte autora auto-determine, antecipadamente, o valor da indenização, importa em exigir-lhe precisão em terreno de alta subjetividade, que somente o curso da ação, após o exame da defesa e da prova, pode revelar, e, ainda, como comumen-te se verifica, com certa dose de vagueza.

Na seqüência, o voto estabelece que

não é necessário que o pedido de ressarcimento formulado na exordial especifique o valor da indenização. Permite-se que seja indeterminado, e sua quantificação ocor­ra por decisão judicial. Em suma, dispensável é o pedido para que os danos morais sejam indenizados em montante já previsto na inicial, de sorte que ao entender de modo contrário, o acórdão a quo violou o art. 286, II, do CPC.

É comum e ordinário ocorrer, no seio forense, decisões judiciais de primei­ro grau de jurisdição que imponham ao autor da ação, sob pena de indeferi­mento da petição inicial, o ônus do seu aditamento para que valorem dano e conseqüentemente pedido. Estas decisões desafiam recurso de agravo, a se pro­cessar sob o regime de instrumento e com necessária comunicação de efeito sus-pensivo à eficácia da decisão recorrida, na medida em que, normalmente , não atendida a determinação da decisão objeto do recurso há o indeferimento da petição inicial. Se porventura houver prolação de sentença entremeios à conces­são do efeito suspensivo, é possível sustentar, sobretudo aos olhos da efetivida­de do processo e função meramente instrumental, que o agravo seja julgado e, se provido, haja a continuidade do processo - nada obstante, registre-se, o inde­ferimento da petição inicial por sentença. Foi nesse sentido a decisão do Primei­ro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, no Agravo de Instrumento n. 1.014.577-6, Relator Paulo Roberto de Santana:

[...] vinco aos autos notícia da extinção do processo principal (fls. 49), declara-se de ofício a nulidade de tal decisão porque subordinada ã eficácia da medida liminar concedida pelo Juiz Relator.

5.1.2 Dano moral e valor da causa Conforme posição defendida no tópico antecedente, a ação de indenização

por dano de natureza moral pode ser ajuizada mediante a formulação de pedido genérico, ficando o valor da condenação para o arbitramento judicial.

Nada impede, entretanto, que o autor precise, desde logo, o valor que enten­de correto para satisfazer seu direito violado pelo réu, em regime de indenização.

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O autor poderá, desde logo, indicar, na petição inicial, o dano e o valor que re­quer para sua indenização em juízo. 2 5

Assim procedendo, valorando desde logo seu pedido, o autor fica obrigado a dar à causa, se esta versar exclusivamente sobre dano de natureza moral, o valor pretendido na petição inicial: se na petição inicial na qual se pretende o arbitra­mento, o valor da causa é estimativo; já para o caso de pedido com valor deter­minado, este será, necessariamente, o valor da causa.

O Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua prestigiosa 4 a Turma, já de­cidiu em diversas oportunidades que, havendo pedido valorado de indenização por dano de natureza morta, será este o valor da causa. Na esteira de precedentes (REsp. n. 120.151, DJ 21/9/1998, Rei. Sálvio de Figueiredo Teixeira; REsp. n. 177.642/RS, D/9/11/1998, Rei. Barros Monteiro; REsp. n. 135.180/RJ, DJ 1/2/1999, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira; REsp. n. 142.245/RJ, DJ 15/3/1999, Rei. Sálvio de Figueiredo Teixeira; REsp. n. 192.128/RJ, DJ 15/3/1999, Rei. Sálvio de Figueire­do Teixeira; REsp. n. 98.020/RJ, DJ 3/5/1999, Rei. Barros Monteiro entre outros), decidiu a 4 a Turma, em arestos mais recentes, que "havendo o autor quantifica­do monetariamente o seu pedido, o valor da causa deve corresponder ao proveito econômico perseguido, ao benefício patrimonial almejado" conforme ementa do REsp. n. 193.260/RJ, de 26/4/1999, sendo Relator o Min. Sálvio de Figueiredo Tei­xeira. Em outra decisão, de 10 de maio de 1999, no REsp. n. 200.220/SP, extrai-se da ementa que "a orientação que prevaleceu na E. Seção é no sentido de que o va­lor da causa corresponde ao valor que o autor atribui ao seu pedido de indeni­zação pelo dano moral". Finalmente, o Agravo Regimental em Agravo de Instru­mento AGA 143.308/SP, DJ de 2/5/2000, relatado pelo Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira cuja ementa estabelece que

o valor da causa deve corresponder ao conteúdo econômico da pretensão do autor, que, pedindo um valor mínimo como indenização por danos morais, não pode atri­buir à causa um valor menor.

Há registro de u m acórdão da 3 a Turma julgando o REsp. n. 126.189/RJ, de 3 de maio de 1999, relatado pelo Min. Carlos Alberto Menezes de Direito cons­tando em sua ementa que,

Aliás, pequena parte de nossa doutrina e jurisprudência até adotam esta tese como regra, isto é, que não só possa como seja ônus do autor, sob pena de indeferimento da petição inicial, indicar, desde logo, o valor em que se pretende que seja condenado o réu pelo dano de natureza moral que tiver dado causa. Embora discordamos desta posição, seu registro deve ser feito.

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quando o autor indica pedido certo, não mera estimativa, assim quando estabele­ce um padrão para que seja fixada a indenização, incide o art. 259 do Código de Processo Civil, e não o art. 258 do mesmo Código, como decidiu o Tribunal de ori­gem.

O relator, a fundamentar seu voto, mencionou outro acórdão da 3 a Turma (DJ 25/2/1998) no qual manifestara-se da seguinte forma:

[...] em pedido de indenização por dano moral, se ele for certo, se o autor nele iden­tificar o valor específico que deseja obter, ou seja, o benefício patrimonial que pre­tende alcançar, este valor é que deve ser o valor da causa.

Por meio desta passagem, acabou concluindo o relator que "estando atribuí­do ao pedido u m valor certo, como neste caso, incide o art. 259 do Código de Processo Civil".

O Superior Tribunal de Justiça posicionou-se definitivamente sobre o tema, por meio de sua Segunda Seção, que, ao apreciar os Embargos de Divergência Eresp 80.501/RJ, dos quais foi Relator, o Min. Ruy Rosado de Aguiar, decidiu que "quan­do a parte pede importância determinada ou aponta critério preciso, de que re­sulta quantia certa, é esta que serve de base para a fixação do valor da causa". Em­bora decidido por maioria de votos, parece ser esta a posição que predominará, doravante, sobre o tema. Colhe-se do voto vencedor da lavra do Min. Carlos Al­berto Menezes de Direito, para quem

a parte tanto pode deixar ao Juiz a fixação do valor da indenização, mencionando um ou outro critério como pode especificar um determinado valor, que, em certos casos, decorre de um critério preciso apresentado pelo autor. Se há quantia certa é

esta que serve de base para a fixação do valor da causa.

Outro voto vencedor, do Min. Bueno de Souza, estabelece que:

A atribuição do valor da causa deve refletir, sempre que possível, a repercussão pa­trimonial da decisão pleiteada pelo autor. A praxe de se apontar o valor para mero efeito fiscal não é legalmente autorizada. No caso em estudo, cuida-se, é certo, de d i ­mensionar em dinheiro indenização devida para reparação de dano moral. Tanto ao propor a demanda incumbe ao autor estimar a expressão monetária a ser adotada pela sentença como ao juiz proceder do mesmo modo se a demanda prosperar. 0

que deve, no entanto, prevalecer há de ser o valor apontado na petição inicial, tal como preceitua o art. 259.

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Também foi vencedor o voto do Min. Barros Monteiro, para quem "se o autor mensurou o valor a título de dano moral, deixando clara a vantagem patr imo­nial pretendida, a este quantum deve corresponder o valor da causa".

O que se pode concluir é, em linha com o tópico antecedente, que seja líci­to ao autor propor demanda indenizatória para condenação de proponente de dano moral por meio de u m pedido genérico quanto ao valor, posto arbitrável; entretanto, se o autor desde logo fizer pedido certo quanto ao valor, este haverá de ser, enquanto benefício patrimonial por ele perseguido na demanda, o valor da causa.

5.7.3 Recorribilidade das sentenças de arbitramento Uma outra questão bastante usual é a recorribilidade das sentenças que arbi­

t ram valor de condenação nas ações de indenização por dano de natureza moral. Uma vez defendida a posição de que o valor é objeto de arbitramento, cabe

analisar se a sentença que julga a ação procedente e arbitra o valor de condena­ção sujeita-se, ou não, à revisão por meio de recurso - no caso, de apelação.

O autor pede o arbitramento e o juiz fixa a condenação, arbitrando o valor segundo sua convicção, de acordo com os elementos do processo e conforme os cri­térios preconizados pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. O autor, todavia, fica insatisfeito com a condenação e pretende recorrer. Embora haja quem sustente ser esta uma decisão irrecorrível, posto que o autor obteve o que pediu: o arbitramento. Caso pretendesse um valor diverso, deveria ter postulado na inicial por ele; como não o fez, deve conformar-se com o valor fixado pelo juízo.

As decisões judicias estão classificadas, embora equivocadamente, no art. 162 do Código de Processo Civil. Havendo prejuízo à parte — ou mesmo a terceiro, conforme o caso - a lei prevê para cada tipo de decisão uma espécie de recurso; isto, em decorrência do princípio da unirrecorribilidade recursal.

A sentença que fixa indenização por dano de natureza moral em regime de arbitramento desafia, nada obstante, recurso de apelação; e o acórdão, no que se refere ao quantum, desafia recurso especial. No particular, o Superior Tribunal de Justiça tem conhecido e julgado reiteradamente recursos especiais para tratar de valor de condenação, mantendo o propósito da aplicação unificada e do en­tendimento acerca da legislação federal infraconstitucional.

Algumas técnicas foram sugeridas ou implementadas para a quantificação do dano de natureza moral. Há registro de "tabelas" de quantificação de dano moral, nas quais o juiz verificará em que faixa se encontra aquela lesão e, sim­plesmente, a aplica. Consideramos absolutamente inadequado este procedimen-

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to, sobretudo à luz do parágrafo único do art. 944 do Código Civil e também de acordo com o espírito desta nova legislação que, entre outros atributos, concede ao juiz o poder-dever de uma atuação cada vez mais efetiva não apenas na con­dução, mas também nas decisões judiciais. Outra forma de tornar concreta a fi­xação de uma indenização por dano de natureza moral é o estabelecimento de piso e teto de valores. Consideramos, no entanto, inadequada esta sistemática, à medida que cada caso representa uma hipótese distinta, sendo necessário averi­guar, concretamente, a potencialidade econômica das partes, a natureza da lesão, o comportamento do ofendido em todas as fases (antes da lesão, no seu cometi-mento e depois), enfim, predicativos próprios a cada relação jurídico-processual que desaconselham u m tratamento tabelado ou tarifado.

Todavia, não é desconhecida a indústria do dano moral e as fixações despro­porcionais das indenizações pertencendo, entretanto, ao Superior Tribunal de Justiça o controle do quantum mediante conhecimento e julgamento de recurso especial; da mesma forma, entendemos resguardada a proporcionalidade neces­sária entre o dano causado e o valor de condenação.

5.7.4 Dano morai e salário mínimo Conforme estabelecido anteriormente, as ações de indenização por dano de

natureza moral devem ser ajuizadas com pedido genérico de condenação, posto arbitrável, à falta de regulamentação específica, pelo Poder Judiciário.

O arbitramento far-se-á sopesados os seguintes elementos de fato de cada causa: (i) potencialidade econômica do autor; (ii) do réu; (iii) efeitos do dano; (iv) bem como a verificação da extensão da culpa do ofensor; e (v) o comportamento da vítima.

Uma vez verificada positivamente a conduta culposa do ofensor ou, nos casos de responsabilidade objetiva, o ato ilícito, como deve ser feito o arbitramento? A per­gunta deve ser invertida e ir direto ao ponto: podem as decisões judiciais utilizar-se do salário mínimo como parâmetro para a fixação das indenizações de dano moral?

Embora seja até rotineiro em nossa jurisprudência, inclinamo-nos a respon­der negativamente a esta indagação. Segundo entendemos, o salário mínimo não pode ser utilizado como parâmetro para a fixação de condenações judiciais, muito menos como forma de atualização desta condenação.

O inc. IV do art. 7 o da Constituição Federal estabelece a vedação do salário mínimo como fonte de arbitramento de indenização de dano moral e, com maior razão, como parâmetro de atualização desta condenação. Na leitura completa, temos que:

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Art. 7° São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IV-salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdên­cia social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo ve­dada sua vinculação para qualquer fim. (g.n.)

Ora, no momen to em que o salário mínimo é utilizado como fonte de arbi­t ramento de indenização por dano de natureza moral, a regra do inc. IV do art. 7 o da Constituição Federal é violada sendo, conseqüentemente, inconstitucio­nais todas as decisões proferidas sob este critério. Com maior razão, a inconsti-tucionalidade existirá se a decisão estabelecer não apenas a condenação em salá­rios mínimos, mas a atualização dela por este: "Condeno o réu a pagar ao autor o equivalente a 500 salários mínimos vigentes à época do pagamento".

Eventuais ações rescisórias, entretanto, sob este fundamento, poderão apenas discutir o arbitramento da indenização e, obviamente, não a constituição do direi­to indenitário.

O Supremo Tribunal Federal, a quem compete a guarda da Constituição (art. 102 da Constituição Federal), analisou a abrangência do inc. IV do art. 7 o da Constituição Federal e precisou o sentido da expressão final que veda a vincula­ção do salário mínimo a qualquer finalidade.

Em todas as opor tunidades , o Supremo Tribunal Federal impediu a vin­culação do salário mín imo a qualquer fim, dando o alcance mais abrangente possível à vedação expressamente estabelecida po r dispositivo da Consti tui­ção.

Todas estas decisões têm respaldo na parte final do inc. IV do art. 7 o da Cons­tituição Federal e, aquelas que não tinham como foco a matéria em estudo - vincu­lação das indenizações, como parâmetro de arbitramento e/ou como forma de atua­lização, ao salário mínimo - serviram de base e como jurisprudência para o julgamento concreto quando, então, ficou decidido que nem mesmo para aquelas finalidades o uso do salário mínimo poderia ter sido desvirtuado.

Observe-se que a posição do Supremo Tribunal Federal foi categórica no sen­tido contrário ao costume jurisprudencial já consolidado, até como regra, em nos­so ordenamento: a condenação valorada em salário mínimo e este como forma de sua atualização.

Depois deste posicionamento do Supremo Tribunal Federal, entretanto, a adoção de tal conduta, para uma ou outra finalidade, é desaconselhável. A seguir, veremos que o Superior Tribunal de Justiça, na observação destes precedentes do

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Supremo Tribunal Federal, começa a deixar de adotar o critério da valoração do dano e de sua atualização com fundamento no salário mínimo.

No julgamento do RE n. 225.488/PR, do qual foi Relator o E. Min. Moreira Alves, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em votação unânime, que, em razão de precedentes,

[...] a indenização por dano moral foi fixada em 500 salários-mínimos para que, ine­quivocamente, o valor do salário-mínimo a que essa indenização está vinculada atue como fator de atualização desta, o que é vedado pelo citado dispositivo constitucional.

No voto, o Min. Moreira Alves fundamentou sua decisão, ao que parece a primeira em relação à matéria (dano moral arbitrado e corrigido por salário mí­nimo) em precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal, in verbis:

0 Plenário dessa Corte, ao julgar, em 1/10/1997, a ADIn 1.425, firmou entendimento de que, ao estabelecer o art. 7o, IV, da Constituição que é vedada a vinculação ao salário-mínimo para qualquer fim, "quis evitar que interesses estranhos aos versados na norma constitucional venham a ter influência na fixação do valor mínimo a ser observado".

Depois, citou outra decisão:

Por isso mesmo, recentemente, em 9 de novembro de 1999, esta Corte, ao julgar o RE 217.700, aplicou tal vedação à pensão especial cujo valor é estabelecido em núme­ro de salários mínimos. E, ainda mais recentemente, em 10 de fevereiro do corrente ano, ao julgar o RE 237.965, teve como inconstitucional a vinculação de multa admi­nistrativa a salário mínimo.

O que fez o acórdão do RE n. 225.488/PR, já comentado, foi reconhecer a vedação constitucional de vinculação da indenização do dano moral, no aspecto correção, ao salário mínimo, estabelecendo que, sendo possível o arbitramento em números de salários — no caso, 500 salário mínimos - , a correção deveria ser feita por índice oficial e não por ele:

em face do exposto, conheço do presente recurso e lhe dou provimento, para que se

considere que a condenação em 500 salários mínimos é relativa ao valor em dinhei­ro deles no momento da prolação do acórdão recorrido, devendo esse valor, a partir dessa prolação, ser corrigido monetariamente por índice oficial. 2 6

Nossa tese da não-vinculação do salário mínimo, entretanto, vai além dessa posição do Supremo Tribunal Federal porquanto, se o Excelso admitiu o arbitramento valora­do por salário mínimo, negando apenas a atualização por ele, entendemos que nem aquela poderia ocorrer sem violação à parte final do inc. IV do art. 7° da Constituição Federal.

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A matéria tornou a ser discutida no Supremo Tribunal Federal que, com base nos precedentes genéricos (ADIn n. 1.425, RE n. 217.700 e RE n. 237.965) sobre a vedação constitucional em comento, e no então precedente específico (RE n. 225.488), novamente adotou a tese da impossibilidade, no plano consti­tucional, da utilização do salário mín imo como parâmetro de atualização, refle-xamente, da indenização de dano de natureza moral.

O RE n. 216.538/MG, 2 7 também relatado pelo Min. Moreira Alves, adotou a tese da impossibilidade de uma condenação ser fixada em salário mín imo por­que, como conseqüência, a atualização por ele tornar-se-ia u m índice quando a Constituição expressamente o veda.

Recente decisão 2 8 da 3 a Turma do Superior Tribunal de Justiça, proferida no REsp. n. 252.760/RS (D/ 20/11/2000), da qual foi Relator o Min. Carlos Alberto Menezes Direito, estabeleceu, com base nestes precedentes do Supremo Tribunal Federal, a impossibilidade da fixação de indenização pecuniária de dano moral com base em salário mínimo. No voto, o relator, após ponderar que a discussão a respeito de tema constitucional (inc. VI do art. 7 da Constituição Federal) não pertencia ao recurso especial, estabeleceu que, não obstante decisões do Supe­rior Tribunal de Justiça terem fixado indenizações com base no salário mínimo, esta conduta não mais seria possível após decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a questão. Em suas palavras,

2 7 Novamente o recurso foi conhecido para, resguardando a parte final do inc. IV do art. 7 o da Constituição Federal, estabelecer que a correção monetária da indenização fixada pelo acórdão em salários mínimos deveria obedecer aos índices de atualização oficiais, e não à eventual majoração do salário. Registre-se, com os mesmos argumen­tos, nossa discordância em relação à admitida valoração do dano em salários mínimos, com sua relativização, quando da prolação do acórdão, ao valor em dinheiro. Não é esta a finalidade social do salário mínimo e a vedação constitucional objetiva não me­nos que a sua integral garantia. O uso indiscriminado do salário mínimo, a nosso ver, em um país que se encontra tão defasado, apenas contribui para o seu descrédito: a remuneração por um serviço prestado é tão nobre que a Constituição Federal quis garantir, a seu elemento mais representativo, o salário mínimo, a mais ampla e eficaz proteção jurídica possível - antes assim, porque a proteção econômica, referente ao seu poder aquisitivo, estamos bem longe de alcançar. Nossa posição é desprovida de qualquer conotação de cunho partidário, ou ideológica, e sabemos que o leitor enten­derá desta forma.

2 8 Esta decisão é de manifesta importância para a jurisprudência brasileira e do próprio Superior Tribunal de Justiça, à medida que grande parte das decisões judiciais de con­denação de indenização de dano de natureza moral adotam o salário mínimo como parâmetro. Várias iniciais, inclusive, assim o postulam.

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as Leis n. 6.205/1975 e 7.789/1989 vedam os valores fixados com base no salário mínimo e a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, salvo os benefícios de prestação continuada pela Previdência Social. Mais recentemente, o Supremo Tribu­nal Federal, com a relatoria do Senhor Ministro Sepúlveda Pertence, afirmou no plano constitucional, tratando do salário mínimo de referência, a proibição (RE n. 235.643/PA, sessão de 23/5/2000). Com isso, evidentemente, não é mais possível manter o entendimento de que seria possível determinar o pagamento de indeniza­ção em salários mínimos.

Desta maneira, conforme sempre entendemos, agora com este precedente do Supremo Tribunal Federal, já por uma vez seguido pelo Superior Tribunal de Justiça, o arbitramento da indenização de dano de natureza moral deverá ser feito utilizando-se qualquer outro critério, desde que razoável, que não o salário míni­mo. Diz o próprio arbitramento porque a sua conseqüência, na esteira das deci­sões do Supremo Tribunal Federal, outra não é senão a de atualizar-se a conde­nação pelo salário mínimo - a velha expressão, "vigente à época do pagamento".

Opinião em sentido contrário, ou seja, da possibilidade do arbitramento das indenizações adotando-se o salário mínimo como parâmetro sem que haja in-constitucionalidade, é defendida sob o argumento da destinação da norma cons­titucional, que seria a preservação do valor da remuneração de modo a impedir que seu aumento acarretasse, porque a ele vinculadas, aumento das obrigações pe­cuniárias do trabalhador como preços em geral e alugueres. 2 9

Outro argumento a favor da constitucionalidade do arbitramento da inde­nização com base no salário mínimo é a localização legislativa do inc. I V do art. 7 o

da Constituição Federal enquanto "direito social" e a ligação com o caput, que trata de "direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social".

Com a devida vênia, um e outro argumentos não nos convencem. Em primeiro lugar, a finalidade social da norma constitucional é, além de

garantir o poder aquisitivo do trabalhador - em última análise, o impedimento de que, aumentado o salário, fossem aumentadas outras obrigações, visa garan-

O professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em sua obra Comentários à Constitui­ção brasileira de 1988, São Paulo, Saraiva, 1995, v.I, ensina, a respeito da finalidade so­cial da norma do inc. IV do art. 7° da Constituição Federal, que sua razão "é impedir que o aumento (ainda que nominal) do salário mínimo acarrete, automaticamente, o aumento de outras prestações: preços, aluguéis, etc."

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tir a efetividade do aumento - também atrelar o salário mínimo à contraprestação de um determinado serviço, do qual é, pois, sua remuneração. Salário mínimo, en­quanto espécie do gênero salário, nada mais é do que o pagamento feito por um serviço prestado, em determinado período de apuração, marcado pela irreduti-bilidade, sempre em uma relação de emprego.

Em segundo lugar, embora a regra da não vinculação pertença ao Capítulo II (Dos Direitos Sociais) do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), nem por isso é correto dizer que seja voltada tão-somente para as relações sociais, em especial as de natureza trabalhista. Pelo contrário: se o fundamento necessário pa­ra afirmar que o princípio da não vinculação do salário mínimo não impede o arbitramento de indenização por dano de natureza moral, tomando-o como pa­râmetro, porque inserta a norma, por este mesmo motivo, no tópico referente aos direitos constitucionais de natureza social, já que o direito à percepção do salário mínimo é também estipulado dentro deste capítulo, deve-se limitar a sua utiliza­ção para finalidade diversa à estabelecida pela Constituição Federal como u m entre os "direitos dos trabalhadores urbanos e rurais". Se pudesse prevalecer o entendimento do qual discordamos, com a devida vênia, nem mesmo a norma de não vinculação seria necessária no sistema brasileiro, já que seria implícita.

Ademais, quando a condenação de indenização de dano de natureza moral é estabelecida, normalmente a decisão impõe um determinado número de salá­rios, dizendo, "vigentes à época do pagamento". É neste ponto fundamental, porém não exclusivamente, que reside a impossibilidade de vinculação do salário míni­mo.

O raciocínio interpretativo e valorativo do juiz fundado em salário mínimo, por si só, até que não constituiria violação ao disposto no inc. IV do art. 7 o da Constituição Federal, com o que discordamos, mas entendemos os argumentos. Entretanto, nada socorre a defesa da atualização da condenação pelo salário mí­nimo, ocorrente em grande parte das decisões, e que estabelece que a satisfação da obrigação imposta por ela seja voluntária ou forçada, que se dará com base no salário mínimo vigente.

Em resumo:

a) A ação de indenização de dano de natureza moral, quanto feita com pedido de arbitramento do valor pelo juiz, nas respectivas instâncias, não pode ter como parâmetro da fixação deste valor o salário mínimo, por vedação expressa de comando constitucional (inc. IV do art. 7 o da Constituição Federal).

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b) Uma parcela da doutrina considera possível, entretanto, a utilização do salário mínimo como parâmetro judicial para a fixação das indeniza­ções fundadas em violação a dano de natureza moral, posição da qual discordamos, mas entendemos os argumentos.

c) Em nossa opinião, entretanto, a atualização do valor da condenação nunca poderá ser feita adotando-se como base o salário mínimo. Por­tanto, as decisões que estabelecem que a condenação será paga com base no salário mínimo vigente à época de sua satisfação, conquanto o salá­rio mínimo sirva como forma de atualização do "débito" constituído em juízo, são inconstitucionais.

d) A defendida inconstitucionalidade impõe a admissão do cabimento de ação rescisória, a ser ajuizada com fundamento em violação ao inc. IV do art. 7 o da Constituição Federal. Esta, todavia, não poderá versar senão sobre o arbitramento, se aceita a tese de forma ampla, ou sobre a atualização, se restringida aquela; nunca, entretanto, poderá descons-tituir o direito de percepção da indenização por dano de natureza moral.

e) O Superior Tribunal de Justiça, que sempre utilizou o salário mínimo como critério de arbitramento de indenização e também como forma de sua atualização, à existência de precedentes diretos e indiretos do Su­premo Tribunal Federal, vem decidindo de forma a não utilizar-se do salário mínimo nem para um e nem para outro fins.

f) O Supremo Tribunal Federal, responsável pelo entendimento a respei­to da abrangência da vedação contida na parte final do inc. IV do art. 7° da Constituição Federal, já decidiu pela inconstitucionalidade da sua utilização, seja para fins de arbitramento, seja para atualização do valor arbitrado, conquanto este critério prepondere nas decisões judiciais que utilizam o salário mínimo como fonte de arbitramento.

5.2 Conclusões

O salário mínimo possui proteção constitucional que o impede, no inc. IV do art. 7° da Constituição Federal, de ser utilizado para finalidade diversa da sua natureza jurídica. Em nossa posição, nem como fonte de valoração do dano, nem muito menos como forma de sua atualização, que é rotineiro em nossas decisões, este pode ser utilizado e, quando for, encerra manifesta inconstitucionalidade.

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6. INSTRUÇÃO PROCESSUAL: A PROVA DO DANO MORAL E A CHAMADA "RECIPROCIDADE DA CONDUTA CULPOSA"

6.1 A prova do dano moral

A ação para a indenização de dano moral, como toda ação ajuizada peran­te o Poder Judiciário, fundamenta-se em matéria de fato e em matéria de direi­to, esta a incidir sobre aquela outra. 3 0

A própria lei impõe que a petição inicial seja elaborada com a indicação do fato e dos fundamentos jurídicos 3 1 do pedido, na forma do inc. III do art. 282 do Código de Processo Civil.

A indicação do fundamento de fato da ação é requisito da petição inicial e, na forma do art. 284 e de seu parágrafo único do Código de Processo Civil, caso não for atendido, poderá levar ao indeferimento da petição inicial. 3 2

Pois bem, uma vez indicados na petição inicial os fatos, os fundamentos jurídicos do pedido e o próprio pedido, por força do princípio dispositivo que re­ge o processo civil brasileiro, a sentença estará vinculada àquela pretensão, em que "é defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da

Em igual sentido, Moacyr Amaral Santos, no livro Comentários ao Código de Proces­so Civil. Rio de Janeiro, Forense, v.IV, ensina que "toda pretensão tem por funda­mento um ponto de fato. É com fundamento num fato, e dele extraindo as conse­qüências jurídicas, que o autor formula o pedido sobre o qual o juiz irá decidir na sentença". É bom registrar que o juiz conhece o direito (iura novit cúria ou da mihifactum, dabo tibi ius), o que significa dizer que, na petição inicial, a parte deve expor os fundamen­tos de fato e os respectivos fundamentos jurídicos, estando fora da abrangência do requisito a indicação do dispositivo legal que incida à espécie. Em seu Curso avança­do de processo civil (São Paulo, RT), Wambier, Correia de Almeida e Talamini esclare­cem que "os fundamentos jurídicos do pedido não se confundem com fundamentos legais." E continuam, dizendo que "o que o requisito impõe é que, expostos os fatos, passe o autor a demonstrar as conseqüências jurídicas que dos fatos entende resultan­tes. Ou seja, que a relação jurídica conflituosa emergiu dos fatos narrados. Portanto, o fundamento jurídico nada mais é do que o nexo de causalidade entre os fatos e o pedido. Ou, ainda, é a demonstração de que dos fatos apresentados surgiu para o autor o direito que busca obter no pedido". Em nossa opinião, o indeferimento da petição inicial, quando se tratar da hipótese do inc. I, art. 295, parágrafo único, do Código de Processo Civil (falta de pedido ou causa de pedir), somente pode ocorrer após determinação de emenda, pelo juiz, que o autor da ação não atenda. Esta diretriz deve ser seguida pelo magistrado que, em razão do

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pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diver­so do que lhe foi demandado" (art. 460, caput, do Código de Processo Civil). 3 3

A estrutura lógica do processo indica que, havendo petição inicial e sendo apta, o juiz determinará a citação do réu e este, em situação normal, apresentará a sua defesa, sendo-lhe obrigatória a alegação de toda a matéria de defesa, com ex­posição de razões de fato e de direito, impugnando o pedido do autor em sua con­testação, na qual haverá de especificar também as provas que pretenda produzir (inteligência do art. 300 do Código de Processo Civil). Em relação aos fatos ale­gados pelo autor, a lei ainda estabelece o ônus do réu "manifestar-se precisamen­te sobre os fatos narrados na petição inicial" de forma que

princípio do aproveitamento dos atos processuais, deve primeiro determinar a emen­da da petição inicial e, somente depois, extinguir o processo. Registre-se jurisprudên­cia que admite a determinação, por mais de uma oportunidade, de emenda como afirmam Wambier, Correia de Almeida e Talamini {Curso avançado de processo civil, São Paulo, RT): "É pacífico o entendimento, tanto doutrinário, quanto jurispruden-cial, no sentido de que o magistrado pode determinar a emenda mais de uma vez. Acresça-se que é salutar. Se, utilizado o disposto no art. 284, a emenda não satisfaz, pode e deve o juiz repetir o ato, ao invés de, simplesmente, utilizar-se da extinção do processo. Esta deve ser evitada sempre que possível e admissível". Haverá casos, entre­tanto, em que a inicial deverá ser indeferida de plano, sem a necessidade da ordem para emenda, quando nem mesmo objeto deste ato possa ter aptidão. Conforme pen­samos, o indeferimento por inépcia, vinculado, pois, ao pedido e causa de pedir, obe­dece à regra do art. 284 do Código de Processo Civil, como também o indeferimento por inadequação de procedimento, por ausência de indicação do endereço do advo­gado (art. 39 do Código de Processo Civil) e por ausência dos requisitos do art. 282 do Código de Processo Civil, em especial o valor da causa, o requerimento de provas e de citação do réu. Já as demais hipóteses de indeferimento da petição inicial (ilegi­timidade manifesta de parte, falta de interesse processual e decadência ou prescrição), quando ocorrentes, descartam, por si só, a emenda da inicial porquanto, ainda que emendada, a parte não passará a ser, por isso, legítima, nem terá interesse processual e nem mesmo, muito menos, afastará, com a emenda, prescrição ou decadência. Em conclusão, defendemos a tese de que sempre que possível a regra do art. 284 do Códi­go de Processo Civil deve ser utilizada pelo juiz, até repetida vez, aproveitando-se ao máximo o ato de propositura da ação. Apenas quando a emenda não se revelar, no campo da possibilidade, eficaz é que a inicial deve ser extinta de plano. Mesmo por­que, indeferida a petição inicial, o autor poderá repropor a ação, corrigindo seu ante­rior erro, como o faria na emenda, com retardo na prestação da tutela jurisdicional. Nelson e Rosa Nery, no indispensável Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor são incisivos: "o autor fixa os limites da lide e da causa de pedir na petição inicial (CPC 128), cabendo ao juiz decidir de acordo com esse limite".

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presumem-se verdadeiros os fatos não impugnados, salvo: I - se não for admissível, a seu respeito, a confissão; II - se a petição inicial não estiver acompanhada do ins­trumento público que a lei considerar da substância do ato; I I I -se estiverem em con­tradição com a defesa, considerada em seu conjunto.

Cria-se, portanto, uma controvérsia em relação aos fatos, porquanto, se é ônus do autor expô-los em sua petição inicial, sob pena de indeferimento, é igual­mente ônus do réu impugná-los sob pena de serem reputados como verdadeiros, ocorrendo, senão o instituto da revelia, 3 4 pelo menos seus efeitos previstos no art. 319 do Código de Processo Civil: a despeito de revelia ser, formalmente, a falta de contestação — e de não se confundir, do mesmo modo, com os seus efeitos - não é demasiado cogitar que uma defesa (contestação) que não impugne fatos pode ser tida como não apresentada.

Controvertida(s) pela impugnação específica a ser feita na contestação, a(s) questão(ões) de fato exposta(s) na petição inicial, incidem as regras do direito pro­batório, em especial às referentes ao ônus da demonstração da veracidade dos ar­gumentos de uma e de outra parte litigante.

O processo civil brasileiro, no que refere ao ônus da prova, estabelece que, como regra, prove o autor fato constitutivo de seu direito e o réu, fato modifica-tivo, impeditivo ou extintivo. 3 5 Esta distribuição do ônus da prova poderá ser invertida, em casos específicos, para que sejam regulados pelo Código de Defesa do Consumidor. 3 6

Uma das hipóteses que caracterizam a revelia, segundo doutrina de Nelson e Rosa Nery, em seu CPC comentado, ocorre "quando o réu contesta formalmente mas não impug­na os fatos narrados pelo autor na petição inicial". A distribuição do ônus da prova é opção legislativa e vem expressamente codificada no art. 333 do Código de Processo Civil: "O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto a fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impe­ditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor". O Código de Defesa do Consumidor, considerando a hipossuficiência do consumidor e a verossimilhança das alegações, prevê a hipótese de inversão do ônus da prova no inc. VIII do art. 6 o . Nesse particular, entendemos que a inversão do ônus da prova fun­dada no Código de Defesa do Consumidor é regra de julgamento, isto é, que terá lugar quando da prolação da sentença. Em sentido igual, a doutrina de Nelson Nery esta­belece que "o ônus da prova é regra de juízo, isto é, de julgamento, cabendo ao juiz, quando da prolação da sentença, proferir julgamento contrário àquele que tinha o ônus da prova e dele não se desincumbiu. O sistema não determina quem deve fazer a prova, mas sim quem assume o risco caso não se produza".

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A questão processual que se impõe é, nas ações de indenização por dano de natureza moral, estabelecer qual seja o fato a ser provado pelo autor, ou negado pelo réu, para que o juiz possa aplicar o direito à espécie. Concretamente: qual fato o autor deve provar nas ações de dano de natureza moral, considerado este um ônus seu, em regra? Ou, por sua vez, qual fato tem o réu o ônus de impug­nar em sua contestação?

Dano moral, dissemos, é a violação que se faz, seja à pessoa física, seja à pes­soa jurídica, de elementos subjetivos que lhes são valores fundamentais inerentes à personalidade de cada qual e que a sociedade reputa também como essenciais.

Em razão do caráter absolutamente subjetivo, a prova do dano moral é des­necessária de modo que não constitui ônus do autor provar que tenha suporta­do a dor moral narrada na inicial - a bem da verdade, mesmo a narrativa desta dor é dispensável.

A prova recairá, 3 7 nas ações de indenização por dano de natureza moral, sobre o fato que deu origem ao dano e não ao dano em si . 3 8 Em relação ao fato ense-jador do dano moral, ficam mantidas as observações feitas ao ônus da prova estabelecido pelo sistema processual brasileiro.

Isto quer significar que, na ação de indenização de dano de natureza moral, o autor tem o ônus de provar o fato que lhe foi cometido pelo réu, bem como se a ação for fundamentada em culpa, o nexo de causa e efeito entre o ato e o dano (dito) sofrido.

Conforme o REsp. n. 23.575/DF, relatado pelo Ministro César Asfor Rocha, "a con­cepção atual da doutrina orienta-se no sentido de que a responsabilização do agente causador do dano moral opera-se por força do simples fato da violação (danum in re ipsa). Verificado o evento danoso, surge a necessidade da reparação, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo, se presentes os pressupostos legais para que haja a res­ponsabilidade civil (nexo de causalidade e culpa)". Ementa que cita doutrina de Maria Cristina da Silva Carmignani. A evolução histórica do dano moral, Revista do Advo­gado, n.49 da Associação dos Advogados de São Paulo, p.32-46, dez./1996. O professor Yussef Cahali, na obra Dano moral, transcreveu um acórdão da Câmara Única do TJAP que confirma a necessidade da prova do fato e não da repercussão, para as ações fundadas em dano de natureza moral: "em sede indenizatória por danos patrimonial e moral, mesmo levando-se em conta a teoria da distribuição do ônus da prova, a cabência desta está ao encargo do autor provar o nexo causai cons-tituidor da obrigação ressarcitória, pois, inexistindo causalidade jurídica, ausente está a relação de causa e efeito, mesmo porque actore non probante, reus absolvitur". (ETJAP 2/46)

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192 HÉLIO RUBENS BATISTA RIBEIRO COSTA

O dano moral, enquanto violação a direito subjetivo reconhecido pela socie­dade como u m todo, pode ser considerado como um fato no tór io 3 9 e, como tal, dispensado da produção de prova, sem constituir ônus para o autor da ação. Será seu ônus provar o fato que deu ensejo ao dano suportado, apenas.

Por hipótese: no caso de ajuizamento de ação de dano de natureza moral por falecimento de pai, basta ao autor, u m filho, no caso, provar que o óbito ocorreu e que foi motivado por ato causado pelo réu. Não é preciso provar a "dor" pela perda paterna, porque tal fato é preciso considerado notório.

Caso esta argumentação, fundamentada no inc. I do art. 334 do Código de Processo Civil, seja rejeitada, ainda assim o dano moral não constitui fato a ser provado pelo autor, enquanto ônus seu, aplicando-se agora o art. 335 do mesmo código.

Com efeito, à ausência de norma positivada, "o juiz aplicará as regras de ex­periência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acon­tece [...]" conforme parte do art. 335 do Código de Processo Civil. No exemplo citado, é de fácil percepção que a perda do pai causada por ato de terceiro impli­ca em dever de indenizar, porquanto o filho terá necessariamente sentido o fato a cuja demonstração está dispensado.

No acórdão proferido no REsp. n. 282.757/RS, o Relator Ministro Aldir Pas­sarinho Júnior da 4 a Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, de forma unânime, conforme a ementa que:

o protesto indevido de título gera direito à indenização por dano moral, independente­mente da prova objetiva do abalo à honra e à reputação sofrida pela autora, que se per­mite, na hipótese, facilmente presumir, gerando direito a ressarcimento (DJ19/2/2001).

Nesta ação, pretendia a autora uma reparação de dano de natureza moral em razão da remessa de título pago a protesto, em tese que foi acolhida pela primei­ra instância, mas rejeitada em grau de apelação. Na ocasião, entendeu o TJRS que pessoa jurídica não poderia sofrer abalo em sua moral. É importante observar que a discussão deste acórdão, embora também envolva a possibilidade jurídica de percepção de dano de natureza moral por pessoa jurídica, também abrangeu a tese da desnecessidade da prova do dano moral em si.

Na forma do inc. I do art. 334 do Código de Processo Civil "não dependem de prova os fatos: I - notórios". Nelson e Rosa Nery (CPC comentado) definem como fato notório "o de conhecimento pleno pelo grupo social onde ele ocorreu ou desperta interesse, no tempo e lugar onde o processo tramita e para cujo deslinde sua existên­cia tem relevância".

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ASPECTOS PROCESSUAIS DA INDENIZAÇÃO DE DANO MORAL 193

Em seu voto, o E. Min. Aldir Passarinho Júnior estabeleceu que:

[...] parece até elementar que o protesto de um título na praça, independentemente da prova objetiva do prejuízo material, causa abalo negativo na situação comercial do estabelecimento do autor. A repercussão é evidente, e, ainda que nenhum fato con­creto tenha sido comprovado nos autos, sabe-se que, indiretamente, a situação gera comentários, desconfianças, restrições veladas, a causar preocupação e aflição ao injustiçado, que atempadamente vinha cumprindo com suas obrigações financeiras e é apanhado de inopino por fato a que não deu causa.

Ainda a 4 a Turma decidiu no Agravo Regimental em Agravo de Instrumen­to (AGA 203.613/SP, DJ 8/5/2000) que

nos termos da Jurisprudência da Turma, em se tratando de indenização decorrente da inscrição irregular no cadastro de inadimplentes, "a exigência de prova de dano moral (extrapatrimonial) se satisfaz com a demonstração da existência da inscrição irregular" nesse cadastro.

Sobreleva notar que a ocorrência de lançamentos indevidos de nomes de pessoas (físicas ou jurídicas) tem crescido ult imamente em nosso País. Os credo­res, sobremaneira preocupados com os respectivos recebimentos e a proteção da praça contra os mal pagadores, investem firmemente na aquisição de sofistica­dos programas de computação que permitem negativações on-line; todavia, não investem da mesma forma no controle destas informações, isto é, não possuem programas que possam porventura identificar homônimos, não fazem cruza­mento de dados para saber se determinada inadimplência realmente persiste e nem muito menos treinam seus funcionários adequadamente para sobreditos lançamentos. 4 0

Ainda sobre a tormentosa questão dos cadastros de inadimplentes, especificamente em relação às empresas que se dedicam a esta atividade - perfeitamente lícita, diga-se de passagem e hoje indispensável ao comércio brasileiro - anote-se que o parágrafo 2 o do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor estabelece a obrigatoriedade de prévia comunicação ao interessado para que este tome as providências cabíveis para evitar aquele lançamento (entre tantas, demonstração da inexistência da dívida, pagamento, negociação com o credor ou ajuizamento de ação para desconstituir aquele pretenso, não mais que isto, crédito). Nesse sentido, o REsp. n. 162.727, Rei. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira: "de acordo com o art. 43, parágrafo 2 o do Código de Defesa do Consumidor, e com a doutrina, obrigatória é a comunicação ao consumidor de sua inscrição no cadastro de proteção de crédito, sendo, na ausência dessa comunicação, reparável dano oriundo da inclusão indevida".

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194 HÉLIO RUBENS BATISTA RIBEIRO COSTA

Outro acórdão da 4 a Turma, proferido no REsp. n. 121.757/RJ, estabeleceu em sua ementa que

o dano moral, tido como lesão à personalidade, à honra da pessoa, mostra-se às vezes de difícil constatação, por atingir os seus reflexos parte muito íntima do indi­víduo - o seu interior. Foi visando, então, a uma ampla reparação que o sistema jurí­dico chegou â conclusão de não se cogitar da prova do prejuízo para demonstrar a violação do moral humano.

Conforme o voto do Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, apoiando-se em decisão do Supremo Tribunal Federal, 4 1 "descabe falar em prova do prejuízo para aferição de dano moral."

A decisão ainda foi fundamentada em eficiente doutrina. Primeiro, a do sau­doso Carlos Alberto Bittar 4 2 para quem

na concepção moderna da teoria da reparação de danos morais prevalece, de início, a orientação de que a responsabilização do agente se opera por força do simples fato da violação. Com isso, verificado o evento danoso, surge, ipso jacto, a necessidade da reparação, uma vez presentes os pressupostos de direito. Dessa ponderação, emer­gem duas conseqüências práticas de extraordinária repercussão em favor do lesado: uma é a dispensa da análise da subjetividade do agente; outra, a desnecessidade de prova do prejuízo em concreto.

Depois, a de Ruggiero, segundo quem, para o dano ser indenizável

basta a perturbação feita pelo ato ilícito nas relações psíquicas, na tranqüilidade, nos sentimentos, nos afetos de uma pessoa, para produzir uma diminuição no gozo do respectivo direito.

Em outro acórdão também relatado pelo Min. Sálvio de Figueiredo Teixei­ra, n o REsp. n. 171.084/MA, a 4 a Turma novamente adotou a tese da desnecessi­dade da prova do dano moral para a reparação em juízo, senão do ato ilícito que o causou. Desta feita, argumentou o relator que é "cabível [...] a indenização, in-

Em seu voto, o E. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira fez menção a acórdão do Supre­mo Tribunal Federal proferido no RE 109.233-MA {RTJ119/433), do qual foi Relator o Min. Octavio Galloti: "Dano moral puro. Restituição indevida de cheque, com a nota 'sem fundo', a despeito de haver provisão suficiente destes. Cabimento de inde­nização, a título de dano moral, não sendo exigível a comprovação do reflexo mate­rial do prejuízo". BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais, São Paulo, RT, 1993.

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ASPECTOS PROCESSUAIS DA INDENIZAÇÃO DE DANO MORAL 195

4 3 RE I S , Clayton. Dano moral. Rio de Janeiro, Forense, 1994.

dependentemente de existir o u não qua lquer prova a demonst ra r eventual p r e ­ju ízo concreto decorrente do indev ido protesto". Nesta opor tun idade , o voto c i tou dout r ina de C l a y ton Re i s , 4 3 para q u e m

[...] resta a idéia final de que a função satisfatória da indenização tem um sentido real de defesa do patrimônio moral da vítima e uma punição para o lesionador. A mens legis não pode assim excluir da conseqüente compensação qualquer dano decorrente de ato ilícito. Todos, portanto, devem ser objetos de reparação.

D e sua vez, a 3 a T u r m a do Super io r T r ibuna l de Just iça teve a opor tun idade de examinar a (des)necessidade de prova de dano m o r a l n o R E s p . n. 204.786/SP ( D / 12/2/2001) cuja ementa estabelece que:

Está assentado na jurisprudência da Corte que "não há que se falar em prova do dano moral, mas, sim, na prova do fato que gerou a dor, o sofrimento, sentimentos íntimos que o ensejam. Provado assim o fato impõe-se a condenação, sob pena de violação ao art. 334 do Código de Processo Civil.

N o voto , o M i n . E d u a r d o R ibe i ro ado tou pos i c ionamento vencedor e esta­

beleceu que

como assinalou o eminente Relator, tratando-se de dano moral, contenta-se a juris­prudência, em regra, com a prova da prática ilícita. É que, de um modo geral, segun­do o que comumente acontece, dela resulta o dano daquela natureza, não sendo mister demonstrá-lo. A sua existência presume-se porque decorre das máximas de experiência.

O u t r a decisão da 3 a T u r m a , profer ida n o R E s p . n. 233.61 O/RJ ( D / 26/2/2000; RSTJ 135/367), ju lgando acidente e m que a v í t ima perdera a mob i l idade do ante-braço esquerdo, adotou a tese da desnecessidade da prova do dano mora l , senão do fato que o ensejou, sob o seguinte a rgumento :

Não pode haver dúvida de que a perda da mobilidade do antebraço esquerdo, em virtude da limitação, em grau máximo dos movimentos do cotovelo, acarreta, além do dano material, sofrimento de natureza moral, pelas restrições resultantes para as atividades da vida em geral.

O Relator, E. M i n . Edua rdo R ibe i ro , cont inua dizendo que "essa Terceira T u r ­m a t e m re i teradamente dec id ido que , e m tais c i rcunstâncias, não há necessidade de demonst ração do dano m o r a l , p o r ser isso da natureza das coisas".

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196 HÉLIO RUBENS BATISTA RIBEIRO COSTA

Analisando a perda de marido e pai, reclamada pela viúva e filhos como fun­damento para reparação de dano de natureza moral em face do ofensor, segue, no mesmo sentido, o REsp. n. 136.277/SP (DJde 12/6/2000 eRSTJ 133/251),tam­bém da 3 a Turma, cuja ementa esclarece que "da morte de cônjuge ou de pai resulta normalmente o dano moral, não sendo mister sua prova, por corresponder ao que, em regra, acontece (CPC art. 335)". Nesta causa específica, o Primeiro Tri­bunal de Alçada Civil de São Paulo entendeu que, embora cumuláveis os danos material e moral, este também deveria ser provado e não poderia, pois, resultar como conseqüência do fato e, nem muito menos, no caso concreto, seria admiti­do apenas pela circunstância de serem os autores parentes da vítima. O Ministro Eduardo Ribeiro, entretanto, decidiu que a perda de pai e/ou marido implica em dano moral, sem necessidade de prova deste, porquanto seja caso de regra de ex­periência aplicando, pois, o art. 335 do Código de Processo Civil. Ademais, escla­receu que "seria [...] dificílimo alguém provar que sentiu dor moral".

Já em relação ao réu, este sim poderá demonstrar que, embora tenha come­tido o fato ensejador do dano de natureza moral descrito pelo autor na inicial -e que, como visto, não lhe constitui ônus de prova — o autor não tenha, naquele caso concreto, experimentado dano moral.

Com efeito, se para o autor não é nenhum ônus provar que tenha sofrido dano moral pelo protesto indevido de título, por exemplo, por ato do réu e res­tando este ato provado, que é ônus do requerente, ainda assim o réu poderá pro­var a inexistência do dano moral se se desincumbir deste ônus: deverá o réu pro­var fato impeditivo do direito do autor, vale dizer, que mesmo procedendo à remessa indevida do título ao protesto, com as conseqüências daí decorrentes, ainda assim a ação é improcedente porque o autor já não mais tinha o direito subjetivo de que todos são, de início, titulares. Caso o réu demonstre, por exem­plo, a existência de outros protestos e que a imagem do autor, perante a sociedade, já estava prejudicada — ou seja, que não há nexo de causa e efeito entre a sua con­

duta, provada, e o dano moral reclamado — a ação requer julgamento de improce-dência. Outra linha de raciocínio também admitida em doutrina sugere que, nes­tes casos, apenas haja a diminuição do valor da condenação, posto considerar ainda assim a ocorrência do dano moral.

O ônus do réu, entretanto, poderá limitar-se à prova de um fato que, embo­ra não desconstitua, de u m todo, o direito do autor de percepção de indenização de u m dano moral, o possa, quando menos, tornar diminuto. Exemplo: tendo o autor reclamado dano moral do réu pela morte do pai, e restando provado que o réu deu-lhe causa, voluntariamente ou não, ainda assim poderá a contestação

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ASPECTOS PROCESSUAIS DA INDENIZAÇÃO DE DANO MORAL 197

alegar, fazendo prova em regular instrução, que, embora a perda do pai seja u m direito subjetivo suscetível de indenização, no caso concreto pai e filho (autor), nem mesmo relacionamento mant inham a ponto de diminuir a condenação. Apenas em casos extremamente excepcionais é que a perda do pai poderia não abalar o filho, mas, em alguns casos, o abalo será maior ou menor conforme tives­sem se relacionado, em vida, um e outro. Esta hipótese, como visto, volta-se para a valoração do dano de natureza moral, em arbitramento judicial, e não para o ônus da prova da ocorrência do dano, propriamente dito.

Uma novidade legislativa 4 4 pertencente ao Código Civil de 2002 refere-se à chamada reciprocidade da conduta culposa, sobre a qual falaremos no próximo tópico. Esta guarda relação com a prova do dano de natureza moral.

Em resumo:

a) O dano moral, no que se refere ao nexo de causalidade e ônus da prova, requer apenas a demonstração (prova) do fato que lhe tenha dado causa porque, em regra, cometido o fato, por ato de responsabilidade do réu, passa aquele a ser conseqüência deste.

b) O direito subjetivo da pessoa física e da pessoa jurídica, referente à moral (sentido lato), constitui fato notório e, violado por u m fato pro­vado, não demanda produção de prova (inc. I do art. 334 do Código de Processo Civil).

c) O direito subjetivo da pessoa física e da pessoa jurídica, referente à moral (sentido lato), se não for considerado fato notório, quando vio­lado, ainda não reclama produção de prova por ser caso de aplicação de regras de experiência (art. 335 do Código de Processo Civil).

d) O Superior Tribunal de Justiça 4 5 tem posicionamento firmado no sen­tido da desnecessidade, em regra, da demonstração (prova) do dano de

Legislativa, apenas: doutrina e jurisprudência já a admitiam. Conforme o acórdão relatado pelo Ministro Aldir Passarinho Júnior (REsp n. 282. 757/RS) o Tribunal, à ocasião por sua prestigiosa 4 a Turma, " [...] já se definiu pela dispensabilidade da prova objetiva do prejuízo moral, bastando a demonstração da circunstância que revele a situação ofensiva à honra e reputação da pessoa física ou jurídica [...]" No mesmo sentido, a 3 a Turma, no REsp n. 204.786/SP, Relator Minis­tro Carlos Alberto Menezes Direito, decidiu que "está assentado na jurisprudência da Corte que 'não há que se falar em prova do dano moral, mas, sim, na prova do fato que gerou a dor, o sofrimento, sentimentos íntimos que o ensejam. Provado assim o fato impõe-se a condenação, sob pena de violação ao art. 334 do Código de Processo Civil".

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natureza moral dizendo suficiente, para a condenação do ofensor, a prova do ato que deu causa ao dano.

e) Igual posicionamento tem o Supremo Tribunal Federal que desvincula o dano moral da prova da ofensa patrimonial, esta própria e exclusiva ao dano material.

f) O réu, entretanto, tem o ônus de provar que, embora o ato tenha sido por ele cometido, não há nexo de causa entre ele e o dano reclamado, mesmo de natureza moral, quando atacar com eficiência a premissa do dano, isto é, mostrar que, embora sendo fato notório e sendo regra de experiência, naquele caso concreto o autor, por determinado motivo, em sua existência, deixou de ser titular do direito subjetivo de natureza mo­ral reclamado. Estas situações, embora possíveis, são do campo da pe­quena probabilidade, isto é, possuem caráter excepcional.

g) O réu, mesmo não provando a perda do direito subjetivo do autor, em relação à moral, poderá reduzir a condenação, provando a extensão do dano. Isto, entretanto, é questão de valoração do dano e não de neces­sidade de prova de sua ocorrência.

h) Ainda no que se refere à prova do dano de natureza moral, atente-se para a novidade legislativa do Código Civil de 2002, chamada de "reciprocida­de da conduta culposa" - objeto de nosso próximo tópico de discussão.

Concluindo: 4 6 diferentemente do dano material, de cunho objetivo, o m o ­ral, dada a natureza eminente e exclusivamente subjetiva de sua origem, não cons­titui ônus de prova em juízo, bastando a prova do fato que lhe deu causa para que

É importante registrar o pensamento exposto pelo professor Yussef Cahali no seu livro Dano moral, no qual estabeleceu, como regra, que "no plano do dano moral não basta o fato em si do acontecimento, mas, sim, a prova de sua repercussão, prejudi­cialmente moral" (conforme o julgamento da 7 a Câmara do TISP, 11/11/1992, JTJ — 143/89). Na seqüência, o professor Cahali esclarece, adversativamente, que, conforme o acórdão da 5 a Câmara do TJRS publicado na RJTJRS 170/386, "esta regra não tem sido aplicada em termos absolutos pela jurisprudência, pois 'há danos morais que se presu­mem, de modo que ao autor basta provar a alegação, ficando a cargo da outra parte a produção de provas em contrário; assim, os danos sofridos pelos pais por decorrência da perda dos filhos e vice-versa, por um cônjuge relativamente à perda do outro; tam­bém os danos sofridos pelo próprio ofendido, em certas circunstâncias especiais, reve­ladores da existência da dor para o comum dos homens. Há outros, porém, que devem ser provados, não bastando a mera alegação, como a que consta da petição inicial (sim­ples aborrecimento, naturalmente decorrente do insucesso do negócio)'". Arremata o

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seja cabível, em regra, a condenação. A exceção — bastante remota, diga-se de pas­sagem - fica para o réu, no sentido de provar que o autor, durante a sua existên­cia, deixou de ser titular do direito subjetivo referente à sua moral.

6.2 A chamada "reciprocidade da conduta culposa"

O Código Civil de 2002 positivou a chamada "reciprocidade da conduta cul­posa". Confira-se:

Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano. Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua in­denização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

Tratando do dano moral e ratificando posicionamento de que não deman­da instrução probatória, senão no que refere à sua existência - não em relação aos seus efeitos, como tratado no item anterior - sobreleva notar que o Código Civil de 2002 traz duas inovações: (i) poder para o juiz de "reduzir, eqüitativamente, a indenização" no caso de perceber "excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano" (art. 944) e (ii) a verificação, também pelo juiz, do comportamen­to da vítima para a fixação do valor de condenação (art. 945).

O art. 944 do Código Civil de 2002, para as ações de dano moral, não cons­titui, em termos absolutos, uma inovação: as indenizações fixadas a tal título já levavam em consideração, conforme os critérios preconizados pelo Superior Tri­bunal de Justiça, a natureza da conduta do causador do dano. Da mesma forma o fazia em relação à natureza da conduta da vítima. Todavia, tais considerações voltavam-se mais para a fixação do quantum, e não para a apuração da extensão da responsabilidade civil do caso concreto.

doutrinador que "em função da diversidade do dano moral pretendido, tem-se aceito um tratamento diferenciado no que se refere ao ônus probatório, conforme se viu ante­riormente, ao cuidar-se da reparação do dano causada pela perda de posse da família, do protesto indevido de título de crédito, se reclamada a indenização pela pessoa física ou pela pessoa jurídica; e, de alguma forma, nos casos de lesão deformante e de ofensa à honra da mulher".

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O que se percebe hoje é que a chamada "reciprocidade da conduta culposa" instituída pelos mencionados dispositivos do Código Civil de 2002, além de per­mitir a fixação do quantum, sugere que o juiz possa (e deva, aliás) verificar os com­portamentos das partes (vítima e ofensor) para estabelecer o limite da própria responsabilidade civil.

No contexto da chamada "indústria do dano moral", não foram poucos os casos em que a vítima permitiu a ocorrência de u m dano para depois reclamá-lo em juízo. Decerto porque, dada a natureza do dano, que não precisava ser pro­vado em sua extensão, senão em sua existência, mal intencionados logo percebe­ram que, às vezes, seria melhor ocorrer o dano que evitá-lo, pois poderiam receber indenização judicial.

Com a introdução legislativa em comento, não mais se revela possível (sob o ponto de vista jurídico, pois, sob o ponto de vista moral, jamais se revelou) que pessoas físicas ou jurídicas permaneçam inertes em relação a u m determinado dano para depois reclamarem sua indenização: se podiam evitar ou minimizar o dano e não o fizeram, o juiz avaliará suas respectivas condutas até mesmo para o fim de decretação da inexistência de responsabilidade civil e absolvição do autor da ofensa. É evidente que isto pertencerá à alçada judicial, que avaliará as condutas das partes com exame de fatos. No contexto desta observação, e dentro dos chamados "poderes do juiz" trazidos pelo Código Civil de 2002, ganha força a atuação judicial de primeiro grau de jurisdição, em que o contato com a prova é mais próximo que os demais; aliás, este exame pertencerá apenas ao segundo grau, por meio do recurso de devolução ampla e não à instância superior, cujo acesso se dá, na hipótese, por recurso de fundamentação vinculada e que encon­tra óbice sumular para enfrentar questões meramente de fato. Ressalve-se, toda­via, a hipótese da apreciação da "valoração jurídica da prova".

Assim, por hipótese, o devedor que seja avisado da inclusão de seu nome em cadastro de proteção ao crédito e nada faz, colabora para a existência de u m dano contra a sua pessoa; nessa situação, sujeitar-se-á à avaliação judicial de sua conduta, que até mesmo pode levar à absolvição do seu ofensor.

A boa-fé 4 7 é o princípio mais prestigiado pelo Código Civil de 2002, e tem aplicação bilateral: a vítima que se compraz do dano e nada faz para evitá-lo, com o propósito de ressarcimento ou indenização judicial, não atua de boa-fé.

Capítulos 4, 5, 13 fazem referência à posse.

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A L I Q U I D A Ç Ã O D A S P R E T E N S Õ E S I N D E N I Z A T Ó R J A S N O C Ó D I G O

C IV I L D E 2002

FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES*

Sumário 1. Intróito. 2. As espécies de pretensões indenizató-rias. 3. Indenizações de cunho estritamente material. 4. Indenizações de cunho estritamente moral. 5. In­denizações de cunho misto (material e moral) . 6. Di­reito intertemporal. 7. A liquidação. 8. As espécies de liquidação. 9. Contornos gerais. 10. A liquidação das pretensões no novo Código Civil. 11. Acessórios da indenização. 12. Proposições conclusivas. Referências bibliográficas.

Quando das discussões e da própria entrada em vigor do novo Código Civil muito se disse que havia a premência dessa norma, em face da falta de corres­pondência do Código Civil de 1916 com a realidade hodierna.

Embora a afirmação possua muito de verdade, mentira não é que o diploma revogado continuava e continua atual. E não poderia ser diferente, uma vez que, se a sociedade e o direito se desenvolvem, igualmente não se pode descartar os ins­titutos preexistentes e que continuam, não obstante o avançar dos anos, a fazer parte do cotidiano, tal como antes. Por isso que muitos dispositivos do novo Código Civil simplesmente repetem os correspondentes do anterior.

1. INTRÓITO

Juiz federal. Mestre e doutorando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Univer­sidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte (FESMP-RN).

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202 FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES

De toda forma, o Código Civil revogado esteve vigente por mais de três quar­tos de século e, neste período, muita coisa mudou no que tange à sempre presen­te problemática da reparação civil e da liquidação dos danos.

Esse ensaio tem por escopo, à luz dos dispositivos do Código Civil que atual­mente regem as liquidações, traçar u m perfil atualizado sobre o tema, levando em consideração o ponto de vista não só material, mas, na mesma importância, processual.

Imbuídos com tal espírito, traçaremos as linhas iniciais sobre o tema liqui­dação, sobre as indenizações materiais, morais e mistas, e então enfocaremos diretamente os preceitos pertinentes do novo Código Civil. Ao final, lançaremos nossas conclusões.

Por motivo de método, proposta e espaço, alinhamos aqui apenas o que esta­va contido no próprio Código Civil e o correspondente necessário do Código de Processo Civil - com referências sumárias a textos normativos esparsos. Mais do que isso, importaria na imperiosidade de muitas linhas, somente comportáveis em u m manual , o que não é a nossa modesta intenção.

2. AS ESPÉCIES DE PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS

A Constituição Federal conforta o princípio geral da responsabilização civil no inc. V do art. 5 o ("é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem"). O Código Civil de 1916 já o fazia em seu art. 159 ("Aquele que, por ação ou omissão voluntária, ne­gligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obri­gado a reparar o dano") e o novo não poderia mesmo ser diferente, como visto no seu art. 186 ("Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito").

Um dos elementos etiológicos essenciais da responsabilidade civil é o dano. Ao lado dele, têm-se os demais como regra: a ação/omissão, o nexo de causalida­de e a culpa, quando exigida (teoria subjetiva da culpa).

A noção de que o dano pressupõe um prejuízo material é insuficiente, já que, do contrário, os danos que acarretam efeitos não-patrimoniais (os morais) esta­riam carecidos de sustentação dogmática. Daí porque entende-se corretamente dano "como toda ofensa a um bem jurídico" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Res­ponsabilidade civil, p.309, grifos do original).

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A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 203

Existem muitas outras considerações acerca do dano que poderiam ser feitas à luz da doutrina civilista de citação obrigatória. O que ocorre é que elas dizem respeito essen­cialmente ao direito material e fugiriam muito da proposta dessa obra. Para um estu­do aprofundado, remetemos às obras clássicas já citadas de José de Aguiar Dias e Caio Mário da Silva Pereira.

Prega-se a unidade da noção de dano, distinguindo-se apenas seus efeitos (patrimoniais e não-patrimoniais). Eles são classificados em danos materiais ou morais, imateriais ou não-patrimoniais (DIAS, José de Aguiar. Da responsabili­dade civil, v.II, p.716), 1 além disso, o dano civil não é sinônimo de dano penal, uma vez que possuem circunstâncias de ocorrência diversas.

Daí porque, quanto aos efeitos, os danos ensejam basicamente três espécies de pretensões ressarcitórias: as materiais, as mistas e as morais.

Deve-se esclarecer que, não obstante a diversidade conceituai a respeito do dano, todos eles redundam, por qualquer consideração quanto à natureza do dano que se pregue e no que tange à obrigação de pagar, em responsabilização pecuniária do agente, sem prejuízo de outras indenizações. Diz-se isso porque, por vezes, ou­tras espécies de reparação são também utilizadas, como é o caso da publicação da resposta e/ou da sentença que reconhece o dano moral ou à imagem (art. 29 da Lei n. 5.250/1967 - Lei de Imprensa), sem prejuízo da indenização pecuniária.

Do mesmo modo, a responsabilidade extracontratual é dividida em (GON­ÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil, passim): pelo fato próprio, pelo ato ou fato de terceiro, pelo fato da coisa e pelo fato ou guarda de animais. Já a contratual é classificada em: dos transportadores, dos estabelecimentos bancários, dos médicos, cirurgiões plásticos e cirurgiões-dentistas, dos advogados, do forne­cedor na Lei n. 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), dos empreiteiros e construtores, dos depositários e encarregados da guarda e vigilância de veículos (estacionamentos, supermercados, shoppings centers e tc ) , dos locadores, dos res­ponsáveis por acidente do trabalho, dos tabeliães e dos magistrados.

Já adiantamos que, como regra, um dos elementos etiológicos da responsabili­dade civil é a culpa. Em algumas espécies de pretensões, porém, prescinde-se do ele­mento culpa, como no caso da responsabilidade pelo fato de terceiro ou da Admi­nistração Pública.

Neles, por dois motivos, é dispensada a prova de culpa. Primeiro, por conta do art. 932, III, c.c. 933 do Código Civil. Com efeito, já pacífico que: "É presumi­da a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto" (Súmula 341 do STF).

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Assim é que basta a comprovação: a) do dano; b) da relação de emprego (lato sensu); c) da culpa do empregado, serviçal ou preposto (cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. c i t , p . 9 5 ) . Evidentemente, há de existir (a) conduta comissiva ou omissiva do agente e (b) o nexo causai entre o dano e a ação ou omissão.

Igual hipótese se dá por conta da teoria do risco administrativo (teoria obje­tiva da responsabilidade civil). Sendo o violador prestador de serviço público, sua responsabilidade é objetiva, nos termos do art. 37, parágrafo 6 o , da Constituição Federal. Portanto, em tais casos, é necessária somente a prova da ação, do dano e do nexo causai, bem como a qualidade de agente público.

Alvitre-se que, na hipótese de falta ou irregular atuação do poder público (faute de service), prepondera a teoria subjetiva da responsabilidade 2 (ou da culpa administrativa no particular), e não a do risco administrativo, nos termos do art. 37, parágrafo 6°, da Constituição Federal.

A culpa presumida (que na verdade implica também uma responsabilidade objetiva do patrão, comitente ou preponente 3) e a responsabilidade objetiva do Estado por atos de seus agentes, bem assemelhados, não significam compulsoria-mente procedência de dever indenizatório, uma vez que é possível a existência de excludentes/atenuantes legais como a culpa exclusiva ou concorrente da vítima.

Com efeito, no tocante à culpa presumida, resta

[...] ao empregador somente a comprovação de que o causador do dano não é seu empregado ou preposto, ou que o dano não foi causado no exercício do trabalho que lhe competia, ou por ocasião dele. (cf. GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p.122)

Evidencie-se que, em sede de omissão, em alguns casos, é subjetiva a responsabilização civil da administração (cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito admi­nistrativo, p.600-4). De fato: "Quando o comportamento lesivo é omissivo, os danos não são causados pelo Estado, mas por evento alheio a ele. A omissão é condição do dano, porque propicia sua ocorrência. Condição é o evento cuja ausência enseja o sur­gimento do dano. No caso de dano por comportamento omissivo, a responsabilidade do Estado é subjetiva" (TJSP, 4 a C , Rei. Soares Lima, JTJ-LEX 183/76). "Esboça-se, em torno da responsabilidade do patrão, amo ou comitente, a tendência de aí fixar a responsabilidade objetiva, como propugna Aguiar Dias, acompanhado por Silvio Rodrigues (Direito civil, v.IV, n.291), e é também a observação de Pontes de Miranda; e a que Caio Mário mesmo enunciou (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v.III, n.281)" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, p.96, g.n.).

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Na teoria do risco administrativo, o Estado somente se livra da responsabi­lidade se "provar que o fato ocorreu em virtude de culpa exclusiva, ou concor­rente, da vítima, poderá livrar-se por inteiro, ou parcialmente, da obrigação de indenizar" (cf. GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. c i t , p.158).

3. INDENIZAÇÕES DE CUNHO ESTRITAMENTE MATERIAL

As pretensões de indenizações materiais derivam exclusivamente de um dano econômico, que não atinge a esfera da personalidade ou da integridade física do ser humano . Elas podem decorrer da inobservância da lei ou de um contrato.

Justamente por consistirem apenas em um conteúdo econômico, são as de percepção mais fácil, embora a liquidação em si não seja das mais tranqüilas, con­forme se verá a seguir.

Eles são compostos pelos danos emergentes e pelos lucros cessantes. O con­ceito, muito sedimentado na doutrina e na jurisprudência, está expresso no art. 402 do Código Civil ("Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar").

Essa redação, como a anterior (art. 1.059, caput), esvazia a discussão sobre a necessidade de ocorrência efetiva de um dano para que ele possa ser reparado. Muito a propósito:

Na maioria dos casos, o dano não se oferece com caráter não definitivo que estabe­leça a impossibilidade de alteração futura. Se, tendo isso em vista, se considera de­pois a irremediável limitação humana quanto ao conhecimento do futuro, então não se pode correr o risco de sustar a avaliação do dano até que se feche o ciclo em que ele se desenvolve, ao influxo dos caprichos do futuro. Pensar assim seria dilatar tão indefinidamente o momento de deferir a indenização que eqüivaleria a privá-lo de reparação. Mesmo porque, se, porventura, a indenização satisfeita se revela infunda­da, sempre restará a quem a prestou indevidamente o recurso da ação de locupleta-mento. De forma que a justa medida do dano se proporciona com a apreciação da cadeia da causalidade que se nos apresenta como definitiva no passado. (DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, v.ll, p.717)

Muitas das vezes, mormente na responsabilidade contratual, existem verbas que já se prestam a suprir o dano causado pela violação do pacto, a saber, a cláu­sula penal (art. 409 do CC) ou as arras (art. 417 do CC), de onde é necessário con-

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siderar em eventual indenização se o conteúdo do dano já não foi englobado naquelas cláusulas.

Exemplos são as indenizações por acidente de trânsito (inobservância da lei) e por não-pagamento de aluguéis (descumprimento contratual).

4. INDENIZAÇÕES DE CUNHO ESTRITAMENTE MORAL

O tema é recorrente e sempre vem à tona a indagação acerca do seu exato conteúdo. A primeira constatação, já adiantada, é que o dano moral é de índole não-material, ou seja, o que se vitima não é o patrimônio econômico do lesado. São outros os bens jurídicos atingidos, tais como, a personalidade, a intimidade, a honra e a própria moral do vitimado.

Muito se objetou a indenização por danos morais. Os argumentos foram rigorosamente combatidos pela doutr ina pátria, a que permitimos resumir na pena de José de Aguiar Dias (Op. cit., v.II, p.737-40): a) Gabba levantou a falta de efeito penoso durável, a que se opôs que a duração da sensação dolorosa importa à avaliação do dano e não na sua existência; b) Chironi aduziu acerca da incerteza do direito violado, a que se argumenta contrariamente que o dano moral é o efeito não-patr imonial da lesão de direito e não a própria lesão abs­tratamente considerada; c) invocaram-se ainda as dificuldades em descobrir a existência do dano moral , o que foi logo contraposto que este se prova de per se, como a dor de u m pai pela mor te de u m filho; d) t ambém por Gabba foi dito acerca da indeterminação do número das pessoas lesadas, a que se altercou que, no caso concreto, será verificado quem sofreu ou não o dano moral; e) argu­mentou-se sobre a impossibilidade de rigorosa avaliação em dinheiro, combati­do pela tese de que não é razão suficiente para não indenizar o fato de não ser possível estabelecer o equivalente exato; f) apontou-se a imoralidade da com­pensação da dor como o dinheiro, fragilizada pelo raciocínio de que se a inde­nização pecuniária não é a ideal, é a forma de reparação possível, até que outra seja inventada; g) bateu-se ainda pela extensão do arbítrio concedido ao juiz, o que não vingou, u m a vez que tal faculdade é concedida ao juiz em muitos outros casos no direito civil sem que isso seja utilizado como argumento válido em contrário.

De qualquer forma, essas considerações, sempre realizadas pelos civilistas, hoje possuem importância meramente histórica, porque há muito tempo está implementada, no direito brasileiro, a indenização por dano moral.

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Assim o era no Código Civil anterior (arts. 76, 4 1.5475 e 1.5506), o que foi confirmado pela jurisprudência, inclusive por meio de Súmulas. 7 Agora mais ainda em face da ineludível redação do art. 186 do novo Código Civil ("Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e cau­sar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito").

Seus exemplos são as imputações ofensivas à honra ou à moral de outrem, mas também se inserem aí a perda de um parente ou de u m ente querido.

Cumpre consignar que o dano moral é presumido, ou seja, independe de pro­va. Isso porque a afronta a um direito personalíssimo é algo inato, a prescindir de prova direta. Com efeito, quando

existe dano moral, principalmente quando o ataque é a um direito personalíssimo, honra, intimidade, vida privada e imagem, ou quando fica restrita ao pretium doloris, com muito maior razão não devem mediar razões que justifiquem a exigência da prova direta. 0 dano, em especial nestes casos, deve ter-se por comprovado in re ipsa. Pela comum experiência de vida, estes fatos são considerados como agravos morais, passí­veis de indenização. (SANTOS, Antônio Jeová. Dano moral indenizável, p.145)

A prova contrária, porém, não pode deixar de ser produzida quando solicita­da. Isso porque o suposto causador pode evidenciar que dano algum existiu para a vítima ou mesmo que ele se deu em níveis menores do que o alegado na exordial.

4 Art. 76. Para propor, ou contestar uma ação, é necessário ter legítimo interesse econô­mico, ou moral. Parágrafo único. O interesse moral só autoriza a ação quando toque diretamente ao autor, ou à sua família.

5 Art. 1.547. A indenização por injúria ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. Parágrafo único. Se este não puder provar prejuízo material, pagar-lhe-á o ofensor o dobro da multa no grau máximo da pena criminal respec­tiva (art. 1.550).

6 Art. 1.550. A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido, e no de uma soma calculada nos termos do parágrafo único do art. 1.547.

7 Do STF: 229 de 16/12/1963 (A indenização acidentaria não exclui a do direito co­mum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador), 490 de 3/10/1969 (A pensão correspondente a indenização oriunda de responsabilidade civil deve ser calculada com base no salário mínimo vigente ao tempo da sentença e ajustar-se-á às variações ulte-riores) e 491 de 3/10/1969 (É indenizável o acidente que cause a morte de filho me­nor, ainda que não exerça trabalho remunerado). Do STJ: 37 (São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral oriun­dos do mesmo fato) e 227 (A pessoa jurídica pode sofrer dano moral).

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Tema recorrente é o da indenizabilidade moral das pessoas jurídicas, que se chegou a entender como impossível. Isso porque as pessoas jurídicas não teriam direitos personalíssimos, próprios do ser humano. Da mesma maneira, por não terem espírito, não poderiam sofrer detrimento anímico.

Tais entendimentos restam, porém superados, seja pela doutrina, seja pela jurisprudência resumida na Súmula n. 227 do STJ ("A pessoa jurídica pode so­frer dano moral") .

Em doutrina, basicamente entendeu-se que entes ideais gozam de proteção assemelhada aos direitos personalíssimos (tutela ao nome, à marca, à liberdade de ação, à intimidade - proteção aos segredos empresariais) e, por isso, o primeiro dos óbices já se fragiliza. (SANTOS, Antônio Jeová. Op. cit., p.145)

E também têm direito à honra objetiva, consistente na percepção que os ou­tros tenham a seu respeito. A honra subjetiva permanece exclusiva das pessoas físicas, pois envolve o conceito íntimo de cada um sobre si. (SANTOS, Antônio Jeová. Op. c i t , p.145) Assim é que:

Em princípio, toda pessoa jurídica tem direito a que sejam consideradas dignas de res­peito, sem nenhum comportamento alheio que possa afetar sua reputação, bom nome e que venha a sofrer abalo no crédito. As pessoas jurídicas têm honra objetiva e os ter­ceiros estão obrigados a respeitar esse atributo. Sendo a honra um dos elementos mais importantes da esfera moral dos sujeitos, haverá também de ser assim com relação à pessoa jurídica. (SANTOS, Antônio Jeová. Op. cit., p.147)

Assim é que o bom nome da empresa é motivo de proteção legal, por si só e independente de prova, já que é presumido. Igualmente enseja dano moral o abalo de crédito, concomitantemente com a indenização por dano material.

5. INDENIZAÇÕES DE CUNHO MISTO (MATERIAL E MORAL)

As indenizações mistas, por sua vez, a par de repercutirem economicamente, findam também por atingir a personalidade, a intimidade, a honra e/ou a inte­gridade física do vitimado.

Em primeiro lugar, cumpre consignar que estas pretensões não são, na ver­dade, um tertium genus, mas tão-somente u m mix formado pela repercussão, ao mesmo tempo, no contexto material e moral do vitimado.

Com efeito, já se disse que "tanto é possível ocorrer dano patrimonial em con­seqüência de lesão a u m bem não patrimonial como dano moral em resultado da ofensa a bem material". (DIAS, José de Aguiar. Op. cit., v.II, p.729)

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Em evidência, a confusão de vincular a reparabilidade moral a um concomi­tante dano material, em certa medida adotada por uma jurisprudência hoje já ultra­passada, já foi apontada. (DIAS, José de Aguiar. Op. cit., v.II, p.742)

Para melhor compreensão, é imperioso trazer à baila as definições de dano patrimonial direto e indireto, assim como dano moral direto e indireto. A lição de Antônio Jeová Santos, calcado em Bustamante Alsina, é expressiva. Para o autor:

Se o dano recai sobre um bem jurídico material, destruindo ou deteriorando uma coisa que é objeto de um direito patrimonial e afeta, ao mesmo tempo, um interesse legítimo, de caráter econômico porque altera a integridade do patrimônio diminuí­do, estamos diante de um dano patrimonial direto. Se o mesmo dano repercute nos sentimentos pelo valor afetivo da coisa atacada, produzindo um desequilíbrio emo­cional ou a angústia de sua perda, o dano é moral indireto. Se o dano recai sobre um bem jurídico imaterial atacando a vida, o corpo, a saúde, a honra, a liberdade de uma pessoa e afeta, ao mesmo tempo, um interesse jurídi­co não patrimonial, o dano é moral direto. Se o mesmo dano repercute no patrimô­nio pela perda de um benefício econômico afetando assim um interesse jurídico patrimonial, o dano é patrimonial indireto. (Op. cit., p.115-6)

As noções de dano patrimonial indireto e dano moral indireto são muito pró­ximas e o diferencial parece ser a essencialidade do direito violado. Se atinge o pa­tr imônio material e, reflexamente, o patrimônio imaterial, teremos u m dano mo­ral indireto; reversamente, se se atinge em u m incipiente momento o patrimônio imaterial e, indiretamente, o material, teremos u m dano patrimonial indireto.

O exemplo mais expressivo dos danos patrimoniais indiretos é o dos cha­mados danos estéticos, espécie dos danos morais. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil, p.321) Com efeito, uma categoria "de dano que, por participar de aspectos do dano moral e do dano patr imonial , dá freqüen­temente causa a confusões, é a do dano estético". (DIAS, José de Aguiar. Op. cit., v.II, p.742)

É o caso do vitimado que, por culpa do responsável, a par da perda de u m membro ou de algo no seu físico que lhe garantia trabalho ou melhor remune­ração, tem direito à indenização pela dor moral pura e ainda pela repercussão patrimonial do dano sofrido (como os modelos).

Outro exemplo significativo é o do chamado dano à imagem. Cumpre con­signar que, por essência, ele é uma espécie do dano moral. No entanto, pode ter também repercussão patrimonial, de onde assume a feição mista.

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Exemplo de dano patrimonial direto é o da coisa turbada ou esbulhada, a que se admite a indenização pelo preço de aferição, no caso de perda definitiva (art. 952 do Código Civil), conforme será visto a seguir.

6. DIREITO INTERTEMPORAL

As leis podem ter efeito imediato, porém, deve-se respeitar o direito adqui­rido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5 o , XXXVI, da Constituição Fe­deral). Assim é que o

alcance, portanto, da regra do efeito imediato entre nós, é o de que a nova lei, em princípio, atinge as partes posteriores os jacta pendentia, com a condição de não ferir o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (FRANÇA, Rubens Limongi. A irretroatividade das leis e o direito adquirido, p.210, grifos do original)

Com efeito, "as leis não têm efeito retroativo em princípio, podendo entre­tanto tê-lo, por disposição expressa, se não ofenderem direito adquirido". (FRANÇA, Rubens Limongi. Op. cit., p.192)

O art. 2.028 do novo Código Civil estabelece que os prazos do código ante­rior serão observados se aquele houver reduzido os prazos e se já tiver transcor­rido mais da metade, observado o diploma revogado.

Ocorre que, conforme já dito, o Código Civil, no que tange às liquidações das obrigações, diferentemente do anterior, procurou tratar exclusivamente do direito material . Não pôde escapar, de todo, da matéria processual (arts. 946 e 947).

No que tange às normas de direito processual, temos que sua observância é imediata, ou seja, entram em vigor desde logo, conforme pacífico entendimento doutrinário. (COUTURE, Eduardo J. Interpretação das leis processuais, passim) Ainda que assim não fosse, o certo é que elas não trouxeram novidades em rela­ção ao direito anterior.

7. A LIQUIDAÇÃO

Sabe-se que o reconhecimento do direito à indenização, findo o processo de conhecimento, gera o direito à cobrança desse direito agasalhado a dar-se me­diante o processo de execução. A execução pode iniciar-se desde logo, indepen­dente de processo cognitivo prévio, em se tratando de documento ao qual a lei atribua a natureza executiva (art. 585 do Código de Processo Civil). E toda exe-

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cução tem por pressuposto um título, seja ele judicial, seja extrajudicial (art. 583 do Código de Processo Civil). O título executivo

é o ato ou fato jurídico legalmente dotado da eficácia de tornar adequada a tutela executiva para a possível satisfação de determinada pretensão. Ele torna adequadas as medidas de execução forçada para a atuação da vontade da lei. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil, p.453)

Toda execução pressupõe um título certo, exigível e líquido (art. 586 do Có­digo de Processo Civil). Cerro é aquele sobre o qual não paira controvérsia sobre sua existência (an), exigível é aquele no qual seu pagamento não está sujeito a termo, condição ou outras limitações e líquido é quando está determinada a im­portância da prestação (quantum).

A certeza de que se fala não é aquela tendente à aquiescência expressa ou tácita das partes com os termos do título, mas sim com o enquadramento formal do título em uma hipótese legal na qual se considera existente e preenchida a característica executiva. (THEODORO JÚNIOR, Humber to . Curso de direito processual civil, v.II, p.33)

O implemento do termo ou condição confere ao título a exigibilidade ne­cessária (arts. 572 e 614, III, do Código de Processo Civil).

Inexiste liquidez quando desconhecido o quanto se deve cobrar ou qual o objeto da prestação, demandando-se apuração (art. 603 do Código de Processo Civil). Assim é que se

o crédito de que se diz titular aquele que pretende promover a ação executória esti­ver representado por uma sentença que haja condenado o devedor em valor ainda não determinado quantitativamente - isto é, ilíquido -, deverá ele promover a prévia liquidação da sentença, antes de ajuizar a execução - art. 586, parágrafo 1 o. (SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil, v.2, p.57)

Quando se tratar de título judicial, proceder-se-á na forma dos arts. 604 e ss. do Código de Processo Civil. Se, inversamente, cuidar-se de título extrajudicial, a falta da liquidez retira desde logo a natureza de título executivo. (ASSIS, Ara-ken de. Manual do processo de execução, p.125)

É de se salientar que o Código Civil de 1916, em alguns dos seus dispositivos, adentrou na seara processual (arts. 1.533, 1.535, art. 1.536 e parágrafos, 1.542 e 1.553). Tanto que isso já foi lembrado por Caio Mário da Silva Pereira, quando ainda vigente o Código Civil de 1916, para quem, feitas

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observações atinentes a certas peculiaridades que o legislador casuisticamente des­tacou, a liquidação das obrigações constitui matéria subordinada a critérios relati­vamente próximos. É um terreno em que concorre matéria processual com matéria cível, ou seja: a normação das operações que visam a conseguir a liquidez do devido associa preceitos do Código Civil e do Código de Processo Civil. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p.309)

Realmente, o instrumento (processo) só existe em decorrência daquilo que viabiliza sua existência (direito material). Não há como separá-los. Isso é muito bem definido pela lição de José Roberto dos Santos Bedaque, para quem o

próprio conceito de direito processual está vinculado de forma inseparável ao fenô­meno verificado no plano do direito material, consistente na sua não realização espontânea. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo, p.l 1)

Ocorre que o novo Código Civil, com melhor técnica e já amparado pelo desenvolvimento do processo civil inexistente à época da edição do anterior, fugiu acertadamente desse prumo. A redação dos arts. 927 a 954, e a revogação dos dispositivos do Código Civil precitados, claramente indicam uma depura­ção, regrando o novel diploma quase que exclusivamente o aspecto material (à exceção dos arts. 946 e 947, de marcado conteúdo instrumental), deixando aos corpos normativos próprios a matéria processual.

8. AS ESPÉCIES DE LIQUIDAÇÃO

São três as espécies de liquidação: por cálculo (art. 604 do Código de Proces­so Civil), por arbitramento (arts. 606 e 607 do Código de Processo Civil) e por artigos (art. 608 do Código de Processo Civil).

A liquidação por cálculo pode ser instruída por conta do próprio credor ou de contador judicial. Anteriormente, era realizada tendo por base a conta do órgão judicial, citando-se o devedor. Ultimada a discussão, o juiz decidia por sentença, sujeita, obviamente, à apelação.

Com a Lei n. 8.898/1994, houve a alteração da sua redação, de modo que a memória, lavra do próprio credor, deve ser apresentada com a inicial da execu­ção. A discussão da conta deve dar-se por ocasião dos embargos à execução. Po­rém, considera-se que, em se cuidando de mera operação aritmética, o título já seria líquido e, portanto, seria descabido falar-se em liquidação. (DINAMARCO, Cândido Rangel. A reforma da reforma, p.260)

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Mesmo antes da inclusão do parágrafo 2 o 8 do art. 604 pela Lei n. 10.444/2002, já se entendia que permanecia a possibilidade de valia da contadoria do juízo no caso de hipossuficientes, 9 portanto, não se lhe exigindo a instrução da inicial com a memória de cálculos. 1 0

Seu exemplo é aquela execução na qual o valor estiver certo, ou seja, preci­sado nos autos, bastando apenas alguma operação aritmética para que se chegue ao quantum idôneo a ser executado, como cobranças de dívidas cujos documen­tos estejam nos autos ou onde na própria sentença consta o valor.

A liquidação por arbitramento tem lugar quando determinado pela sentença ou convencionado pelas partes (art. 606,1, do Código de Processo Civil) ou quan­do o exigir a natureza do objeto da liquidação, (art. 606, II, do Código de Proces­so Civil)

A nota característica da liquidação por arbitramento é a necessidade da no­meação de um perito ou arbitrador, que atribuirá o valor ao que está sendo apura­do. Com efeito, já se disse que arbitramento "é, em essência, u m meio de prova. Corresponde a avaliação e esta é expressamente indicada pela própria lei como espécie de prova pericial (CPC, art. 420)". (DINAMARCO, Cândido Rangel. Exe­cução civil, p.540)

São exemplos clássicos que demandam as pretensões de lucros cessantes por inatividade de pessoa ou serviço e perda parcial da capacidade laborativa.

Por fim, a liquidação por artigos tem lugar quando, para determinar o valor da condenação, houver necessidade de alegar e provar fato novo. Assim se enten­de aquele resultante da obrigação e que não foi objeto de pretérita condenação, porque o autor deixou-o de fora do âmbito cognitivo, ou porquanto surgiu du­rante a demanda condenatória, em que pese mostrar-se essencial à apuração do

8 "Parágrafo 2° Poderá o juiz, antes de determinar a citação, valer-se do contador do juízo quando a memória apresentada pelo credor aparentemente exceder os limites da decisão exeqüenda e, ainda, nos casos de assistência judiciária. Se o credor não con­cordar com esse demonstrativo, far-se-á a execução pelo valor originariamente pre­tendido, mas a penhora terá por base o valor encontrado pelo contador."

9 "Liquidação. Cálculo do contador. Nas hipóteses de assistência judicial gratuita, nos termos da atual Constituição, é assegurada à parte a utilização da contadoria judicial". (STJ, 6 a T., REsp n. 144.606-SP, Rei. Min. Fernando Gonçalves, DJU 2/2/1998, p.152)

1 0 Em outra obra nova, debruçamo-nos fundamente sobre o gênero assistência judiciá­ria gratuita e suas espécies assistência jurídica e gratuidade da justiça, levando em conta a Lei n. 1.060/1950. (ALVES, Francisco Glauber Pessoa. O princípio jurídico da igualdade e o processo civil brasileiro, p.47-61)

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quantum. (cf. ASSIS, Araken de. Op. cit., p.274) Seus exemplos são sobre a repa­ração de danos por um imóvel destruído, a partir das suas peculiaridades: área, material, altura.

Em todas há de se observar o princípio da fidelidade ao título encartado no art. 610 do Código de Processo Civil. Obtempere-se, porém, que efetivamente toda liquidação finda por acrescentar, não modificar, algo novo no título execu­tivo (cf. ASSIS, Araken de. Op. cit., p.274), de que exemplos clássicos são os juros moratórios (art. 293 do Código de Processo Civil e Súmula n. 254 do STF 1 1 ) e a correção monetária (Lei n. 6.899/1981).

9. CONTORNOS GERAIS

Sempre foi assente em doutrina que a reparação há de corresponder exata­mente ao desfalque sofrido pela vítima, seja sob o ponto de vista moral, seja pes­soal. Pertinente a transcrição da lição de Caio Mário da Silva Pereira:

Em qualquer hipótese, o montante da indenização não pode ser inferior ao prejuízo, em atenção ao princípio segundo o qual a reparação do dano há de ser integral. Há de atentar para a gravidade da falta e as suas conseqüências, bem como para a natu­reza do dano. Por outro lado, tendo a indenização por objeto reparar o dano, o mon­tante da indenização não pode ser superior ao prejuízo, porque, se o for, as perdas e

danos convertem-se em fonte de enriquecimento [de lucro capiendo), o que confronta o princípio da equivalência, rompendo o binômio dano-indenização. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p. 312, sendo do original os grifos)

Como não poderia deixar de ser, esse enfoque do direito material foi perfeita­mente refletido entre a processualística. Por todos, a frase clássica é de Giuseppe Chiovenda, para quem "o processo deve dar, a quem tenha um direito, tudo aqui­lo e exatamente aquilo que ele tenha o direito de conseguir". (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, p .67) 1 2

Trilhando o entendimento consolidado, estabeleceu-se uma regra geral inde-nizatória básica pelo art. 944 do Código Civil. A indenização mede-se pela extensão

1 1 254-STF. Incluem-se os juros moratórios na liquidação, embora omisso o pedido ini­cial ou a condenação.

1 2 Não se pode deixar de frisar, porque fomentadora do escopo de instrumentalidade do processo, a obra obrigatória em nosso direito sobre o assunto, de autoria de Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, passim.

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A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 215

do dano. Entretanto, pelo seu parágrafo único, se houver desproporção entre a gra­vidade da culpa e o dano, poderá o juiz, eqüitativamente, reduzir a indenização.

Em primeiro lugar, parece que o parágrafo único meramente redunda no que já diz o caput, ou seja, não se poderá conceder indenização maior do que o dano acarretado. Porém, cediço que, em sede de hermenêutica, há de se ter em mente que as normas constituem-se em um todo harmônico, de onde cabe ao intérpre­te conciliar seus termos.

Diante disso, afigura-se-nos que dita norma cai como uma luva no eterno problema do valor das indenizações por dano moral. Com efeito, pode mesmo dar-se que algum veículo de comunicação, imbuído de má-fé evidente, tenha o intento de acarretar danos a alguém. Ocorre que, por uma circunstância ou outra (por exemplo, o fato de já haver sido noticiado antes e ser de conhecimen­to geral), o dano não atinja patamares expressivos.

Daí a possibilidade da redução que parece acolher os ponderamentos juris-prudenciais que, sempre com muito cuidado, lidam com os valores das indeni­zações. Prova disso é a exegese firmada no seio do Superior Tribunal de Justiça, que, não obstante ser uma corte de uniformização do direito federal e, portan­to, não necessariamente ligada à idéia de correção das injustiças das causas que lhes são apresentadas em grau recursal, vem cada vez mais abrindo o leque de apreciação dos quantitativos indenízatóríos fixados em segunda instância. 1 3 Em doutrina, houve o elogio expresso ao novo artigo por Silvio Rodrigues. (Direi­to civil, p . l51)

1 3 "Ementa: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANO MORAL. ERRO MÉDICO. MORTE. QUANTUM. EXAGERO. REDUÇÃO NESTA CORTE. PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE. Quando exagerado o valor da indenização por dano moral, como no caso, mostra-se possível sua redução em sede de recurso especial" (STJ, 4 a T., REsp. 506.837-RJ, Rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, D} 15/9/2003, p.329). Origem: STJ - SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. "Ementa: CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. INSCRIÇÃO EM SERASA. DANO MORAL. VALOR. FIXAÇÃO EM PATAMAR RAZOÁVEL, COIN­CIDENTE COM PRECEDENTES DO STJ. REDUÇÃO INCABÍVEL. I. Fixado o valor da indenização pela indevida inscrição do nome da autora em cadas­tro negativo de crédito, em patamar razoável, sem provocar enriquecimento sem cau­sa da parte moralmente lesada, improcede a pretensão da ré de discutir o tema em sede especial, não se justificando a excepcional intervenção do STJ a respeito. II. Agravo improvido". (STJ, 4 a T., AGA 479632-SC, Rei. Min. Aldir Passarinho Júnior, D] 1/9/2003, p.296)

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216 FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES

Outro liame geral bem indicado no art. 945, também seguindo a esteira da doutr ina 1 4 e da jurisprudência, 1 5 foi o de que a concorrência de culpa afeta o valor indenizatório a que faz jus a vítima. Muito em evidência, verificando-se que, ainda que comprovados os elementos configuradores da responsabilidade civil, tendo a vítima contribuído para a ocorrência do evento, há de ver diminuída a indenização a que fará jus. Cumpre consignar que a culpa concorrente da vítima traz reflexos no valor da indenização, ao passo que a culpa exclusiva da vítima é fator que redunda na ausência de responsabilização civil no que tange ao supos­to agente causador.

Sendo a obrigação indeterminada e em não havendo na lei ou no contrato disposição fixando a indenização, apurar-se-á o valor da forma disposta na legis­lação processual (art. 946). A forma, in casu, como já foi dito, é a liquidação por arbitramento ou artigos.

Se houve impossibilidade de cumprimento da prestação na espécie ajustada, dar-se-á a substituição pelo equivalente em moeda corrente (art. 947). Também acompanha o entendimento clássico de Chiovenda:

Quando se busca uma obrigação de fazer (demolição, publicação etc.) é exatamente isso que o vitimado deseja. Por isso, fez o pedido em tal sentido. É muito pouco, em termos de qualidade da prestação jurisdicional, que somente se lhe aufira a presta­ção pecuniária, que, por uma via oblíqua, finda por tolerar o descumprimento ori­ginário do dever pelo agente, a compensar sua conduta indevida com dinheiro.

É certo que o credor pode optar pela compensação financeira. O que não é correto é lhe impor a conversão da prestação em dinheiro quando a obrigação

1 4 "Quando há culpa concorrente da vítima e do agente causador do dano, a responsa­bilidade e, conseqüentemente, a indenização são repartidas, como já apontado, po­dendo as frações de responsabilidades ser desiguais, de acordo com a intensidade da culpa. Desse modo, a partilha dos prejuízos pode ser desigual". (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, p.40)

1 5 "Havendo culpa concorrente em acidente ferroviário, deve a empresa arcar unica­mente com a metade do valor dos danos". ( I o TACSP, I a Câmara, Rei. José Osório, RT 567/104) "Quando há culpas concorrentes responde cada uma das partes pela metade dos danos suportados pela outra parte. Não tendo o réu promovido demanda de cobrança dos danos que sofreu, não podem eles ser considerados na ação movida pelo autor" (1° TACSP, I a Câmara, Rei. Rangel Dinamarco, RT 572/109), apud STOCCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial, p.69.

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A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 217

específica possa ser cumprida pelo devedor ou mesmo por terceiros, na forma da legislação processual (arts. 461 e 632 e ss.). Assim é que o

§ 1 o do art. 461 só autoriza que se imponha ao credor essa solução de meia-justiça quando não for possível obter o resultado final desejado sequer mediante atuação das providências referidas no caput. Autoriza, também, como não poderia deixar de ser, a conversão por opção pessoal do credor. (DINAMARCO, Cândido Rangel. A refor­

ma da reforma, p.233)

A redação do art. 461 e do 632 e ss. do Código de Processo Civil, com os aperfeiçoamentos dados pela Lei n. 10.444/2002, consolida u m anseio histórico do direito material e notadamente do processual.

Tanto quanto possível, foram estabelecidos critérios casuísticos para inde­nização, fórmula já presente no Código Civil de 1916. Houve quem dissesse que tal preceituamento detalhado findava por limitar demasiadamente a indeniza­ção (MONTENEGRO, Antônio Lindebergh C. Ressarcimento de danos pessoais e materiais, p.204), o que não nos parece possa ser repetido à luz do novo Código Civil justamente em face do princípio geral de reparação correspondente ao dano sofrido (art. 944).

Sobre isso é razoável dizer que se trata de uma opção legislativa de longa data, de apr imoramento dos preceitos legais regedores da liquidação das obriga­ções, apegada a uma tradição histórica. Diz-se isso porque, em verdade, a sim­ples dicção do art. 944, inexistente no Código Civil anterior, conjugada com a doutr ina que há muito tempo já se debruça sobre a matéria já trataria de resol­ver a problemática.

De toda forma, em país de cultura civil law como é o nosso, muitas vezes é recomendável o regramento via dispositivos próprios, sem olvidar-se que eles não esgotam o direito, notadamente em face da evolução que ele diuturnamente so­fre em sede de responsabilização civil.

10. A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES NO NOVO CÓDIGO CIVIL

Pelo art. 948, a indenização englobará o pagamento de despesas com o tra­tamento da vítima, seu funeral e o luto da família, bem como na prestação de ali­mentos a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima. É de consignar-se que não são excluídos outros motivos para re­paração. Encaixam-se aqui também os danos morais pela perda do ente querido.

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218 FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES

O Código Civil passa a levar em consideração a indenizabilidade pela dura­ção provável da vida; tal exegese já havia sido consolidada em jurisprudência. 1 6

Os critérios utilizados têm em mente, para o termo final, a maioridade (depen­dentes) e data provável da vida (cônjuges e inválidos).

O valor da pensão há de abranger tudo aquilo que o vitimado normalmen­te receberia, como é o caso do 13° salário. Mas, não é integral, uma vez que, parte da renda do falecido haveria de reverter em seu próprio benefício. Daí que se tem resguardado o valor da pensão ao vitimado em 2/3, sob a presunção de que 1/3 do que receberia o mor to reverteria em seu prol. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, p.212)

Em havendo lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido (art. 950). É o caso, por exemplo, de u m taxista que, vitimado por acidente de trânsito, tenha de ficar parado, quando a reparação há de abranger, necessariamente, tudo que envolva o t ratamento e a paralisação do seu trabalho.

Resultando da ofensa defeito pelo qual não possa o ofendido exercer seu ofí­cio ou que se lhe diminua a capacidade de trabalho, há de ser fixada também uma indenização pelo trabalho para o qual se inabilitou ou da depreciação sofrida (art. 950). Pode-se exigir que seja paga de uma vez a indenização (art. 950, pará­grafo único). Esse é o caso do dano patrimonial indireto, como o acidente do tra­balho regido pelo direito civil comum, bem como do dano estético.

O art. 602 do Código de Processo Civil comina que, no caso de prestações periódicas, seja constituído um capital que sirva de garantia, mediante imóveis ou títulos da dívida pública. Ele será impenhorável e inalienável enquanto durar a vida do vitimado ou a obrigação do ofensor (parágrafo I o do art. 602 do Códi­go de Processo Civil).

Embora com diferentes termos finais "Indenização - Beneficiários - Pensão alimentí­cia, durante o período de sobrevivência provável da vítima, calculado em 65 anos de idade - cessação à viúva, no caso de novas núpcias, e à filha, ao atingir 21 anos de idade, ou antes, até o seu casamento" (TJSP 44/140). "Caracterizado o comportamento culpo­so do empregador, cabível será o pagamento, aos beneficiários da vítima, de pensão que deverá perdurar até a data em que o acidentado falecido completaria 65 anos de idade, se vivo fosse" (TJSP, 2 a C , Rei. Cezar Peluso, RT 614/68), apud STOCCO, Rui. Op. cit., p.805-6. Cumpre registrar que são vários os julgados a respeito, com diferen­tes premissas (viúvas, filhos menores, inválidos) e termos finais, sendo a referência anterior meramente exemplificativa.

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A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 219

A jurisprudência contemporiza essa exigência quando o devedor seja noto­riamente solvente, como é o caso da Fazenda Pública. Porém, a doutrina não con­corda com a extensão disso a empresas privadas, mesmo que consolidadas. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.212)

No valor pago mensalmente a título de prestação, há de constar o acréscimo pelo que incidirá em imposto de renda, nos termos da Súmula n. 493 do STF:

O valor da indenização, se consistente em prestações periódicas e sucessivas, com­preenderá, para que se mantenha inalterável na sua fixação, parcelas compensató­rias do imposto de renda, incidente sobre os juros do capital gravado ou cauciona-do, nos termos dos artigos 911 e 912 do Código de Processo Civil.

Os regramentos anteriores aplicam-se ao profissional que, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte de paciente, agravar-lhe o mal, cau­sar-lhe lesão ou inabilitá-lo para o trabalho (art. 951).

Aqui restam englobados não só os médicos, mas todos os que fazem parte da área da saúde: farmacêuticos, parteiras e dentistas, como no art. 1.545 do Código Civil revogado.

Em caso de usurpação ou esbulho, além da restituição da coisa, a indenização consistirá em pagar o valor das suas deteriorações e o devido a título de lucros ces­santes (art. 952). Faltando a coisa, ela deverá ser reembolsada pelo equivalente, esti­mada pelo preço ordinário e pelo de afeição, se este não for maior que aquele (art. 952, parágrafo único). Firme a doutrina no sentido de que esta foi das raras vezes em que o legislador tratou da quantificação do dano moral. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.229; RODRIGUES, Silvio. Direito civil, p.247)

É cristalino, porém, que essa espécie indenizatória é subsidiária, ou seja, somente terá oportunidade se a coisa não puder ser devolvida.

A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido (art. 953). Se o ofendido não puder provar pre­juízo material, caberá ao juiz fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso (art. 953, parágrafo único).

Tal dispositivo dá a falsa idéia de que, se houve prejuízo material, não pode­rá existir o moral, o que, entretanto, há de ser lido com a Constituição Federal, que, em momento algum, afastou a cumulatividade dos dois.

Declinou-se o legislador da remissão do Código Civil pretérito ao tipo cri­minal. Parece-nos, no entanto, que ele continua valendo, pelo simples fato de que o art. 953 expressamente tratou de conceitos que permanecem na seara do direi­to penal e ainda pela auto-integração do ordenamento jurídico.

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220 FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES

Cabe enfrentar o problema da quantificação do dano moral, nos termos e na inteligência do art. 953 do Código Civil. As indenizações por danos morais, se não são modos de enriquecimento, podem ser tidas, no mínimo, como de cará­ter sancionatório e pedagógico, a fim de serem evitados novos comportamentos prejudiciais a terceiros por parte dos condenados.

Além do mais, a sustentação de que, por não se poder medir o sentimento, a vergonha e o constrangimento a que foi submetida a pessoa, e, por conseguinte também não se poderia indenizar ninguém, é frágil e destoante da justiça. Daí já ter dito o jurista alemão Josef Kohler que não é justo que nada se dê, somente por não se poder dar o exato?7

Dos critérios utilizados em jurisprudência para liquidação, 1 8 o que vem ga­nhando maior assento é o do arbitramento judicial, com respaldo no 1.5471 9 do Código Civil de 1916 (atual parágrafo único do art. 947), que se reporta à cir­cunstância do ilícito penal. 2 0 De fato, a Lei n. 4.117/1962 (Código Brasileiro de Telecomunicações), que estabelecia um critério em seu art. 84, foi revogada pelo Decreto-lei n. 236/1967. 2 1 Também se fala no uso do art. 51, III, da Lei n. 5.250/1967 (Lei de Imprensa), 2 2 ou mesmo da conjugação de ambos, 2 3 e ainda dos arts. 4 o e 5 o da Lei de Introdução ao Código Civil. 2 4

A referida Lei n. 5.250/1967 preceitua:

Art. 53. No arbitramento da indenização em reparação do dano moral, o juiz terá em conta, notadamente: I - a intensidade do sofrimento do ofendido, a gravidade, a natureza e repercussão da ofensa e a posição social e política do ofendido;

1 7 Apud LACERDA, Galeno. Indenização do dano moral, RT, n.728, citando Pontes de Miranda.

1 8 Cf. GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil, p.413-8. 1 9 Art. 1.547. A indenização por injúria ou calúnia consistirá na reparação do dano que

delas resulte ao ofendido. Parágrafo único. Se este não puder provar prejuízo material, pagar-lhe-á o ofensor o dobro da multa no grau máximo da pena criminal respectiva.

2 0 TJSP, 3 a C , Ap. 214.304-1/7, Rei. p. o acórdão Flávio Pinheiro; TJSP 2 a C , Ap. Rei. Vas-concellos Pereira, ]TJ 174/104. (STOCCO, Rui. Op. cit, p.753)

2 1 TJSP, C. Dir. Privado, Ap. Rei. Alexandre Germano, JTJ-LEX 184/64; TJSP, 2 a C , Dir. Pú­blico, Ap. Rei. Vanderci Álvares, JTJ-LEX 199/60. (STOCCO, Rui. Op. cit, p.754)

2 2 TJSP, 6 a C. Ap. Rei. Costa Manso, JTJ-LEX 146/118. (Ibidem) 2 3 TJS, 16 a. C , Ap. Rei. Nelson Schiesari, JTJ-LEX 162/68. (Ibidem) 2 4 A mesma decisão da nota anterior.

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A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 221

II - a intensidade do dolo ou o grau da culpa do responsável, sua situação econômi­ca e sua condenação anterior em ação criminal ou cível fundada em abuso no exer­cício da liberdade de manifestação do pensamento e informação; III - a retratação espontânea e cabal, antes da propositura da ação penal ou cível, a publicação ou transmissão da resposta ou pedido de retificação, nos prazos previstos na Lei e independentemente de intervenção judicial, e a extensão da reparação por esse meio obtida pelo ofendido.

E a Lei de Introdução ao Código Civil, por sua vez, diz:

[...] Art. 4 o. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Art. 5 o. Na aplicação da Lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exi­gências do bem comum.

Dessarte, recomendável é a utilização do art. 953 do Código Civil, com o ponderamento do art. 53, da Lei n. 5.250/1967, e, por fim, dos arts. 4 o e 5 o , da Lei de Introdução ao Código Civü.

Além disso, o quantum há de se encontrar dentro da sanção penalmente es­tabelecida (arts. 138,139 ou 140, do Código Penal, que trata de crimes contra a hon­ra), em que a multa rege-se pelos arts. 49 e 60 do Diploma Repressivo.

Não há, porém, uma homogeneidade das indenizações, uma vez que há de se atentar aos casos concretos. No entanto, busca-se como nunca, tanto que já se falou em projeto de lei tarifando o máximo da indenização, um referencial co­m u m , de modo a evitar contradições entre as decisões, a depender do senso de justiça de cada julgador.

As bases propostas por Jorge Mosset Iturraspe (Dano a lapersona, p.1-6, Apud SANTOS, Antônio Jeová. Dano moral, p.203-7) é que são bem razoáveis: rejeição à indenização simbólica, prevenção ao enriquecimento injusto, ausência de tarifação, cautela à porcentagem do dano patrimonial, não se recorrer excessivamente ao pru­dente arbítrio judicial, atenção à gravidade do caso, verificação das peculiaridades do caso (vítima versus ofensor), harmonização de indenizações em casos semelhan­tes, atendimento dos prazeres compensatórios e o contexto econômico do país.

Acrescentamos a necessidade de levar em consideração, quando da indeni­zação, a conduta do ofensor que procura desfazer o mal por si causado.

Deve-se salientar que o Supremo Tribunal Federal já decidiu ser possível a estipulação de cálculo de indenização em salários mínimos, quando a hipótese for de indenização por ato ilícito (RT 724/223).

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222 FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES

Um problema interessante na prática é o do valor da causa nos pedidos de indenização moral. Além disso é requisito da inicial o pedido (art. 282, IV, do CPC) 2 5 e ele deve ser certo e determinado (art. 286, I a parte). Só há exceção nas ações universais, quando não for possível determinar definitivamente as conseqüências do

ato ou do fato ilícito ou quando a determinação do valor da condenação depender do

ato que deva ser praticado pelo réu (incs. I, II e III do citado art. 286).

É bem simples. O suposto lesado pode dizer que merece ser indenizado em R$ 1.000,00, R$ 1.000.000,00, R$ 1.000.000.000,00 ou qualquer outro valor, uma vez que cada u m estima como quer sua moral, mas é preciso que, ao menos, o faça de onde caberá ao julgador reprimir o excesso.

Certo é que o art. 1.553 do Código Civil falava em arbitramento judicial (em parte repetido no parágrafo único do art. 953 do novo Código Civil), só que um mínimo valor há de ser apontado, nos termos do art. 282, IV, do Código de Pro­cesso Civil. O pedido escorreito é elemento da ação e constitui requisito de apti­dão da inicial (art. 295, VI do Código de Processo Civil).

Não se há de confundir impossibilidade de quantificação (no qual há justifi­cado valor estimativo) com dificuldade de cálculo (o que não justifica valor me­ramente indicativo). O valor há sempre de se aproximar, no que for possível, da indenização pleiteada na inicial. Daí porque se repudiar, concessa venia, pedido genérico. 2 6

Aliás, entendimentos recentes não destoam disso, verbis:

É de rigor que o pedido de indenização por danos morais seja certo e determinado, para que não fique somente ao arbítrio do juiz a fixação do quantum, como tam­bém para que seja dada ao réu possibilidade de contrariar a pretensão do autor de forma pontual, com objetividade e eficácia, de modo a garantir-lhe o direito à ampla defesa e ao contraditório. (RT761/242)

No mesmo sentido: JTJ208/203. Em tempos de responsabilidade fiscal (Lei Complementar n. 101/2000), não se

pode conceber ao Judiciário o luxo de fazer letra morta à correta fiscalização do res-

"Nenhuma ação poderá omitir em sua peça inicial o valor da causa: seja de procedi­mento ordinário, sumário ou especial, a petição deve sempre trazer o valor da causa atribuído pelo autor; seja na ação principal, cautelar ou incidental, o valor da causa deve sempre se fazer presente na peça inaugural". (SOUZA, Gelson Amaro de. Do valor da causa, p.87) Admitido por SANTINI, José Rafaelli. O valor da causa no dano moral, p.35.

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A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 223

sarcimento (ainda que parcial) do ônus financeiro do seu serviço (art. 35, VII, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional), já que tidas as custas judiciais como taxas (espécie tributária, pois), a argúcia processual de se promover uma demanda com valor ínfimo da causa relegando ao magistrado o arbitramento de um valor supe­rior para livrar-se do recolhimento das custas não pode encontrar agasalhamento.

A simples invocativa de possibilidade de complemento das custas por oca­sião da liquidação da sentença, como permite o art. 14, parágrafo 3 o da Lei n. 9.289/1996, não é argumento válido, porque não leva em conta uma hipótese importantíssima: a improcedência do pedido, pelo qual a parte terá se livrado de pagar o quanto seria normalmente devido.

Registre-se, ainda, que, havendo cumulação de pretensões material e moral, o valor da causa deverá ser a soma de ambos.

A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido e, se este não puder provar prejuí­zo, aplica-se a regra do art. 953 (art. 954). Consideram-se ofensivos à liberdade pessoal: o cárcere privado, a prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé e a prisão ilegal (art. 954, parágrafo único).

Aqui defere-se a tutela à liberdade, ainda que não provadas perdas e danos, à semelhança do direito à imagem. Parece que o legislador inovou substancialmen­te à medida em que conferiu uma proteção qualificada a um valor tão caro aos povos da humanidade, independente de prova do prejuízo.

11. ACESSÓRIOS DA INDENIZAÇÃO

Como é de entendimento comezinho que a correção monetária não é um acréscimo à condenação, mas simplesmente a recomposição do valor originaria-mente devido, 2 7 fica evidente que os prejuízos deverão sofrer sempre o devido rea­juste monetário.

A Súmula n. 562 do STF ("Na indenização de danos materiais decorrentes de ato ilícito cabe a atualização de seu valor, utilizando-se, para esse fim, dentre ou­tros critérios, os índices de correção monetária") consolidou isso em 1977, se-

"A correção monetária não constitui acréscimo, mas simples recomposição da moeda corroída pela espiral inflacionária" (RSTJ 71/367) e ainda: "A correção mone­tária não se constitui em um 'plus', senão em uma mera atualização da moeda, avil­tada pela inflação, impondo-se como um imperativo de ordem jurídica, econômica e ética. Jurídica, porque o credor tem o direito tanto de ser integralmente ressarcido

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224 FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES

guindo-se a Lei n. 6.899/1981, determinando a correção de todos os débitos oriundos de decisão judicial (art. 1 o). Hodiernamente, o entendimento está sufragado no verbete n. 43 do STJ ("Incide correção monetária sobre dívida por ato ilícito a partir da data do efetivo prejuízo").

A exegese da Súmula n. 562 do STF engloba igualmente a indenização por danos morais, conforme doutrina (STOCCO, Rui. Op. cit., p.770) e a melhor dicção da Súmula 43 do STJ. Isso porque a noção de ato ilícito expressada neste é ampla, envolvendo todos os ilícitos civis, a saber, os descumprimentos civis da lei ou do contrato. 2 8

O que é de se deixar claro é que a correção monetária é devida anteriormen­te à Lei n. 6.899/1981 por força das Súmulas n. 562 do STF e n. 43 do STJ. Já na sua vigência, a correção incide tanto em razão dos verbetes quanto da própria Lei n. 6.899/1981, que exceção alguma fez quanto à natureza da decisão judicial. Esse é o entendimento que há de ser lido em jurisprudência 2 9 na qual se discutia a aplicabilidade dos termos iniciais de correção a partir do vencimento ou do ajuizamento da ação (parágrafos I o e 2 o do art. I o da Lei n. 6.899/1981).

Se a inicial já traz conta atualizada, não poderá incidir nova correção sobre o valor judicialmente acatado, sob pena de bis in idem. Por óbvio, em tais casos, os índices de correção poderão ser alvo de discussão pelo agente causador do dano.

dos prejuízos da inadimplência, como o de ter por satisfeito, em toda a sua inteireza, o seu crédito pago com atraso. Econômica, porque a correção nada mais significa senão um mero instrumento de preservação do valor do crédito. Ética, porque o cré­dito pago sem correção importa em um verdadeiro enriquecimento sem causa do devedor, e a ninguém é lícito tirar proveito de sua própria inadimplência". [RSTJ 7A/387, apud NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, p.1.975) "Ato ilícito contratual. 1. Correção monetária. A correção monetária alcança período anterior ao ajuizamento da ação; no caso, desde o efetivo prejuízo. 2. Juros de mora. São contados a partir da citação. 3. Precedentes do STF. 4. Recurso especial conhecido pelo dissídio e provido". (STJ, REsp 5.159-SP, 3 a T, Rei. Min. Nilson Naves, DJU 12/11/1990, p. 12.870, apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p.432) "Correção monetária. Indenização por ato ilícito contratual. A correção deve, nesse caso, incidir, a partir do ato ilícito, que origina a rescisão contratual. Súmula 562. Precedentes do STF. Hipótese em que a correção monetária é devida, não em virtu­de de superveniência da Lei n. 6.899/81, que não se aplica ao caso. Recurso extraor­dinário conhecido e provido, para assegurar a correção monetária do valor da inde­nização, desde o ato ilícito e não somente a contar da vigência da Lei 6.899/81". (STF, I a T , RE 102.056, Rei. Néri da Silveira, RTJ 117/239, apud STOCCO, Rui. Op. cit., p.772)

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A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 225

Essa observação é válida também para os casos nos quais haja laudo pericial que já apresente o valor com a correção, assim como nas hipóteses de acidente de veículo em que se deu o orçamento ou o desembolso. O termo inicial passa a ser, então, a data do laudo, do orçamento ou do desembolso. A regra é, portanto, que a atualização incidirá a partir do último valor corrigido apresentado, seja em sede de inicial, de orçamento ou de prova pericial.

Havendo previsão contratual, pode ser cobrada a comissão de permanência, desde que não haja cumulatividade dos dois títulos, conforme Súmula n. 30 do STJ ("A comissão de permanência e a correção monetária são inacumuláveis").

Os juros podem ser: remuneratórios, correspondentes aos "frutos do capi­tal mutuado ou empregado", ou moratórios, que "representam indenização pelo atraso no cumprimento da obrigação" (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, p.337). Por força do art. 293, do Código de Processo Civil, incluem-se no pedido os juros moratórios. Por consectário lógico, eventuais juros remuneratórios devem constar explicitamente no pedido.

Os juros remuneratórios exigem previsão expressa, salvo quando levados em conta a título de lucros cessantes.

Ao lado deles, fala-se ainda em juros compensatórios, com capitalização as­segurada. Previsto no antigo art. 1.544 ("Além dos juros ordinários, contados proporcionalmente ao valor do dano, e desde o tempo do crime, a satisfação com­preende os juros compostos"), eram cobrados nas pretensões em que o ilícito ci­vil também se configurasse em u m ilícito penal e t inham a natureza de pena. A respeito:

A origem da cominação se encontra no art. 26 do Código Criminal de 1830, que não cogitava de delitos culposos, só definidos no art. 19 da Lei n. 2.033, de 1871. Seu caráter é de punição e só deve ser aplicado a criminosos, como tal reconhecidos em sentença criminal. (DIAS, José de Aguiar. Op. cit., v.ll, p.775)

No entanto, não foi repetido tal dispositivo no novo Código Civil. Tudo leva a crer que os juros compensatórios não mais serão devidos, havendo de ser inde­nizado o seu componente via lucros cessantes.

Se ilíquida a obrigação, os juros moratórios incidem desde a citação váli­da (art. 219 do Código de Processo Civil c.c. 960 do Código Civil) até o adven­to do novo Código Civil. O novo Código Civil seguiu a mesma regra de inci­dência dos juros a partir da constituição em mora , assim considerada a citação (art. 397).

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226 FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES

Mas, no caso de responsabilidade extracontratual, eles contam a partir do evento danoso, nos termos da Súmula n. 54 do STJ ("Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual").

O percentual é de 0 , 5 % (art. 1.062 do Código Civil) até o advento do novo Código Civil. A partir de então, será aquele utilizado para cobrança dos débitos fazendários (art. 406 do novo Código Civil c.c. parágrafo único do art. 161 do Có­digo Tributário Nacional), a saber, aquele válido para composição da taxa Selic; dito acréscimo foi criado pelo art. 39, parágrafo 4 o , da Lei n. 9.250/1995.

§ 4 o A partir de 1 o de janeiro de 1996, a compensação ou restituição será acrescida de juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Cus­tódia - Selic para títulos federais, acumulada mensalmente, calculados a partir da data do pagamento indevido ou a maior até o mês anterior ao da compensação ou restituição e de 1 % relativamente ao mês em que estiver sendo efetuada.

Cabe ao legislador, porém, estabelecer os juros que entender pertinentes, uma vez que, nos termos do parágrafo I o do art. 161 do CTN, é possível a fixação de índices diferentes ("Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de 1 % ao mês").

Ela é assim definida no site do Banco Central do Brasil (www.bacen. gov.br):

Do exposto podemos concluir que a Taxa Selic se origina de taxas de juros efetiva­mente observadas no mercado.

As taxas de juros relativas às operações em questão refletem, basicamente, as condi­ções instantâneas de liquidez no mercado monetário (oferta versus demanda de recur­sos). Estas taxas de juros não sofrem influência do risco do tomador de recursos finan­ceiros nas operações compromissadas, uma vez que o lastro oferecido é homogêneo. Como todas as taxas de juros nominais, por outro lado, a Taxa Selic pode ser decom­posta ex post, em duas parcelas: taxa de juros reais e taxa de inflação no período considerado.

A taxa Selic, acumulada para determinados períodos de tempo, correlacio­na-se positivamente com a taxa de inflação apurada expost (destaques nossos).

Assim, a taxa Selic é formada por u m mix, em que a taxa de juros é incluída e pode ser apartada do remanescente. Ela vem sendo acatada pelo STJ. Recente­mente, por todos, in verbis:

Ementa: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA - CDA. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SO­BRE 0 LUCRO E IMPOSTO DE RENDA. CORREÇÃO MONETÁRIA DAS DEMONSTRAÇÕES

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A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 227

FINANCEIRAS. APLICAÇÃO DO IPC COMO INDEXADOR DO BTNF. ENTENDIMENTO RE­CENTE DA 1 a SEÇÃO, DESTE SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DIFERIMENTO. PRONUN­CIAMENTO DO COLENDO STF. MATÉRIA CONSTITUCIONAL UTILIZAÇÃO DA TAXA SELIC SOBRE OS DÉBITOS TRIBUTÁRIOS EM MORA.

1. Em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o qual se efeti­va nos moldes do art. 150, do CTN, a inscrição do crédito em dívida ativa, em face da inadimplência no tempo devido, não compromete a liquidez e exigibilidade do títu­lo executivo, pois dispensável a homologação formal, sendo o tributo exigível inde­pendentemente de procedimento administrativo fiscal.

2. A partir do julgamento realizado pela Primeira Seção, deste Superior Tribunal de Justiça, do Recurso Especial n. 133.069/SC (DJU4/3/2002), da relataria do Ministro Fran-ciulli Neto, prevaleceu o entendimento de ser válida e legal a aplicação do IPC na atua­lização do BTNF Fiscal para a correção monetária das demonstrações financeiras do ano-base de 1990, exercício de 1991, por ter sido o índice que melhor refletiu a infla­ção do período e por não atentar contra os princípios constitucionais tributários, consoante pronunciamento da Máxima Corte na ADIn 712-2/-ML-DF, Rei. Min. Celso de Mello, DJU de 19/2/1993.

3. Em data de 02 de maio de 2002 o Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 201.465-6/MG, declarou a constitucionalidade do art. 3 o , inc. I, da Lei 8.200/1991, com a redação que lhe deu a Lei 8.682/1993, reco­nhecendo que este preceito legal prevê hipótese nova de dedução na determinação do lucro real, constituindo-se como favor fiscal ditado por opção legislativa, afastan­do-se, conseqüentemente, a idéia de empréstimo compulsório. Assim, diante de pro­nunciamento no sentido de que a correção monetária complementar e retificadora das demonstrações financeiras das pessoas jurídicas, correspondente ao exercício so­cial de 1990, não pode ser, de forma imediata, utilizada, esta Corte não mais emite juí­zo a respeito, posto referida matéria repousar, agora, no campo estritamente consti­tucional, privativa de exame pelo Colendo Supremo Tribunal Federal.

4. Entende-se aplicável a Taxa Selic, sem qualquer restrição, em caso de compensação tributária, a partir de 1 o de janeiro de 1996, conforme o disposto no art. 39, parágrafo 4 o , da Lei 9.250/1995. 5. Recurso especial parcialmente provido. (STJ, 1 a T., REsp. n. 436747-SC, Rei. Min. José Delgado, DJ 10/3/2003, p.103)

O que não pode se dar é a cobrança dupla de Selic, englobando juros e cor­reção mais juros e/ou correção, in verbis:

Ementa: PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO - AGRAVO CONTRA DECISÃO QUE ADMITE PARCIALMENTE O RECURSO ESPECIAL- DESCABIMENTO - IMPOSSIBILIDADE DE APRE-

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228 FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES

CIAÇÃO DE MATÉRIA NÃO PREQUESTIONADA - APLICAÇÃO DA SÚMULA 211/STJ -REPETIÇÃO DE INDÉBITO - FINSOCIAL-JUROS DE MORA - TAXA SELIC.

1. É incabível o agravo interposto contra a decisão que admite parcialmente o recur­so especial, porquanto, nessa hipótese, o juízo de admissibilidade é integralmente devolvido ao STJ. 2. Inviável o recurso especial em que se pretende a apreciação de matéria não pre-questionada, apesar de interpostos embargos de declaração (Súmula 211/STJ). 3. Na repetição de indébito ou na compensação, com o advento da Lei 9.250/95, a partir de 1/1/1996, os juros de mora passaram ser devidos pela taxa Selic a partir do recolhimento indevido, não mais tendo aplicação o art. 161 c.c. art. 167, parágrafo único do CTN. 4. Tese consagrada na Primeira Seção, com o julgamento dos EREsp's 291.257/SC, 399.497/SC e 425.709/SC em 14/5/2003. 5. É devida a taxa Selic na repetição de indébito, seja como restituição ou compen­sação tributária, desde o recolhimento indevido, independentemente de se tratar de contribuição sujeita à posterior homologação do pagamento antecipado (EREsp's 131.203/RS, 230.427, 242.029 e 244.443).

6. A taxa Selic é composta de taxa de juros e taxa de correção monetária, não poden­do ser cumulada com qualquer outro índice de correção. 7. Agravo retido não conhecido e recurso especial provido em parte (STJ, 2 a T., REsp 464539-SP, Rei. Min. Eliana Calmon, DJ 9/6/2003, p. 230, destaques nossos).

Os honorários advocatícios regem-se pelas disposições do Código de Processo Civil, especificamente o art. 20. Aquele diploma contém a responsabilização do sucumbente. Cumpre consignar que, a par da responsabilidade pela verba de sucumbência, nos termos do art. 20, parágrafo 2 o , do Código de Processo Civil, as despesas processuais podem incluir, a pedido da parte, os honorários contratuais.

12. PROPOSIÇÕES CONCLUSIVAS

1) As pretensões indenizatórias podem ser materiais, morais ou mistas. 2) As disposições do novo Código Civil, de cunho estritamente proces­

sual, entram em vigor imediatamente. 3) São três as espécies de liquidação (por cálculo, arbitramento e artigos). 4) O novo Código Civil estabeleceu contornos gerais para indenização (in­

denização medida pela extensão do dano e influência no valor da inde­nização da culpa concorrente da vítima).

Page 242: Questões processuais do novo CC - Mazei

A LIQUIDAÇÃO DAS PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 229

5) O novo Código Civil procurou fugir da orientação do anterior, que, por vezes, tratou do conteúdo processual, optando agora por somente tratar disso nos seus arts. 946 e 947.

6) O regramento das indenizações há de ser lido sob as nuances do Códi­go Civil, observado o Código de Processo Civil no que tange à opera-cionalização.

7) O detalhamento de determinadas indenizações no Código Civil têm em mente a importância no nosso direito, bem como uma tradição histórica.

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230 FRANCISCO GLAUBER PESSOA ALVES

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P R E S C R I Ç Ã O E D E C A D Ê N C I A

S É R G I O SHIMURA*

Sumário 1. Noções introdutórias. 2. Previsão legal. 3. Conceito de prescrição e de decadência. 4. Outras diferenças entre prescrição e decadência. 5. Inalterabilidade do prazo - renúncia da prescrição (art. 191). 6. Possibili­dade de reconhecimento de ofício (revogação do art. 194, Código Civil, pela Lei n. 11.280/2006). 7. Fluência da prescrição contra o sucessor (art. 196). 8. Causas de impedimento ou suspensão da prescrição (arts. 197 a 201). 9. Prejudicialidade - juízo criminal. 10. Solida­riedade. 11. Interrupção da prescrição (arts. 202 a 204). 12. Termo inicial do recomeço. 13. Fiador. 14. Prescrição intercorrente. 15. Vícios redibitórios. 16. Garantia contratual. 17. Direito intertemporal. 18. Prescrição contra a Fazenda Pública. 19. Prescrição da exceção (art. 190). 20. Prescrição e decadência nas relações de consumo.

1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Revolver questões antigas, reavivar litígios já sepultados pelo tempo e pela memória, não é salutar para a segurança jurídica, requisito indispensável para a estrutura do estado de direito. Daí ser um dos objetivos do direito a paz social, decorrente da estabilidade das relações jurídicas. O tempo, fator inevitável e irre-

Promotor de Justiça designado para a Procuradoria de Justiça do Estado de São Paulo. Mestre, Doutor e Livre-docente pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor nos programas de graduação e pós-graduação da PUC/SP. Profes­sor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Membro da Academia Pau­lista de Direito.

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232 SÉRGIO SHIMURA

freável pela própria natureza, exerce, para o direito, função pacificadora das rela­ções sociais. Este é o fundamento dos institutos da prescrição e da decadência.

Se o direito exige, de um lado, o cumprimento da obrigação pelo devedor em determinado lapso de tempo, de outro, também estabelece prazo para que o cre­dor manifeste o seu interesse na defesa de tal direito, sob pena de as incertezas e os litígios perpetuarem-se indefinidamente.

2. PREVISÃO LEGAL

O Código Civil de 1916 utilizava apenas a expressão prescrição (arts. 161 a 179). No entanto, doutr ina e jurisprudência já faziam a devida distinção, extraindo do própr io texto legal as respectivas hipóteses de decadência.

Já o Código Civil de 2002 trata dos dois institutos de modo diferenciado. A prescrição vem tratada nos arts. 189 a 206, trazendo este último u m elenco de prazos prescricionais específicos. A regra está no art. 205, que prevê a prescrição em dez anos, salvo previsão legal fixando prazo menor. Todavia, com isso, não se quer dizer que toda e qualquer ação seja prescritível, como veremos.

Pela evolução legal, percebe-se um encurtamento dos prazos: era de trinta anos (art. 177, CC de 1916); passou a ser de vinte anos (redação do art. 177, CC de 1916, dada pela Lei n. 2.437/1955); agora, é de dez anos (independentemente de a ação ser pessoal ou real).

As regras gerais sobre decadência vêm dispostas nos arts. 207 a 211; as especí­ficas estão espraiadas pelo Código Civil, seja na Parte Geral, seja na Especial (exem­plo: arts. 45,119,178,445,501,504,550,554,559,614,618,745,754,1.560 e 1.815). Além disso, há também regras de direito intertemporal (arts. 2.028 a 2.030).

3. CONCEITO DE PRESCRIÇÃO E DE DECADÊNCIA

Prescrição (extintiva): É a perda da ação atribuída a u m direito, de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não uso dela, durante u m determina­do espaço de tempo. Portanto, a prescrição é uma regra de ordem, de harmonia e de paz, imposta pela necessidade da certeza e estabilidade das relações jurídicas. 1

Em termos práticos, prescrita a ação, o direito material fica desprovido de de­fesa em juízo, perdendo sua realizabilidade, salvo quando a prescrição atinge ape-

BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Pdo de Janeiro, Francisco Alves, 1944, v.I, p.458.

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 233

nas determinada forma procedimental, como ocorre na prescrição da via execu­tiva para o cheque, deixando intacto o direito à ação de conhecimento. O direito subjetivo da parte não é afetado pela prescrição, restando intocado. Apenas a pre­tensão é que sofre os efeitos da prescrição. 2

É a pretensão que fica obstada pela prescrição e, caso não seja esta argüida pela parte, o juiz não pode considerá-la de ofício.

Malgrado esse conceito, há uma certa contradição com o regime previsto no CPC (art. 269, IV), que diz que é de mérito a sentença que extingue o processo com base na prescrição. 3 Por conseguinte, há quem sustente ser a prescrição ins­tituto de direito material.

Além disso, quanto à terminologia, há uma peculiaridade. Pelo Código Civil de 2002 (art. 189 4) e pelo CDC (art. 27 5 ) , seria mais correto falar-se em "perda do direito à pretensão''. Porém, a própria Constituição da República alude a "ação".6

Do mesmo modo, é importante lembrar que, ao lado da prescrição extinti-va, t ambém existe a aquisitiva, relativa à aquisição da propriedade por meio de usucapião (arts. 1.238 e ss, CC), cujo tratamento mereceria maiores digressões em outro momento . Interessa, neste espaço, apenas sublinhar que os bens públi­cos não podem ser adquiridos por usucapião. 7

2 Por exceção, em matéria tributária, a prescrição atinge tanto o direito material como o direito de ação (arts. 156 e 174, Código Tributário Nacional). Portanto, ocorrente a prescrição, a Fazenda Pública não pode se recusar a fornecer certidão negativa. (SIL­VA, Américo Luís Martins da. A execução da dívida ativa da Fazenda Pública. São Pau­lo, RT, 2001, p.365)

3 MARTINS, Alan; FIGUEIREDO, Antônio Borges. Prescrição e decadência no direito ci­vil. Porto Alegre, Síntese, p.38.

4 Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206. (g.n.)

5 Art. 27. Prescreve em 5 (cinco) anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a con­tagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria, (g.n.)

6 Art. 7 o, XXLX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho, (g.n.) Art. 37, parágrafo 5 o A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento, (g.n.)

7 Art. 102, Código Civil. Os bens públicos não estão sujeitos a usucapião (vide também arts. 183, parágrafo 3 o , e 191, Constituição da República).

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234 SÉRGIO SHIMURA

Objeto da prescrição: Em regra, envolve ação de cunho patrimonial e, por con­seguinte, passível de alienação 8 ou condenação. Nesse contexto, insta frisar que há ações imprescritíveis, por força do bem jurídico protegido ou da relação jurídica discutida, como sucede nas ações de estado (exemplo: investigação de paternida­de, separação judicial) ou nas relacionadas aos direitos de personalidade, como a vida, liberdade, nome e honra. Portanto, como regra, a ação condenatória fica sujeita à prescrição, diferentemente do que sucede nas ações de natureza prepon­derantemente âeclaratória.

Decadência: Consiste na perda do próprio direito subjetivo em razão da fluên-cia do tempo. Com a decadência, há o perecimento do direito da parte pelo seu não exercício em determinado lapso temporal, que pode ser definido em lei ou conven­cionado pelas partes. Este ponto implica outra diferença em relação à prescrição, já que esta só pode decorrer ex vi legis, não pela vontade das pessoas envolvidas.

Além disso, a decadência pode ser declarada de ofício pelo juiz (art. 210), pois seu prazo, em geral, não se interrompe nem se suspende. A passagem do tempo, por si só, leva à decadência. Ademais, há outros pontos que distanciam a prescrição da decadência como veremos a seguir.

4. OUTRAS DIFERENÇAS ENTRE PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA

O Código Civil de 1916 não previa o fenômeno da decadência, apesar de a doutrina, acompanhada da jurisprudência, já antevir a distinção. O Código Civil de 2002 não conceitua os institutos, mas tenta separá-los pelas características e efeitos. Alguns critérios podem ser utilizados.

Quanto à previsão legal: Os prazos prescricionais estão especificados expres­samente no art. 206, CC; não havendo previsão expressa, incide a regra geral de dez anos (art. 205, CC).

Os demais prazos são decadenciais, previstos tanto na parte geral, como na especial do Código Civil (exemplos: arts. 45, 119, 178, 445, 501, 504, 505, 554, 559,614,618,745,754,1.815). O Código se vale das seguintes terminologias: decai, caduca, decadência, o direito extingue-se em ... anos.

Quanto à origem da ação: Se o vício é de nascença, isto é, se a ação nasce com o próprio direito, é caso de decadência (exemplo: o direito de anular o negócio jurí­dico viciado pelo erro ou dolo, art. 178, II, CC; o direito de obter o abatimento do preço por vício redibitório já nasce com o negócio realizado, arts. 445, CC).

BEVILÁQUA, Clóvis. Op.cit, p.459.

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 235

No entanto, se o direito à ação surge posteriormente ao direito material, tra­ta-se de prescrição. Em outras palavras, quando a violação do direito sobrevém ao nascimento, surge, para o titular, a pretensão à reparação (art. 189, CC), ou seja, o direito preexiste à sua violação.

O direito ao crédito preexiste à data do cumprimento da obrigação. Uma vez não efetuado o pagamento, viola-se o direito (preexistente) ao crédito, exsurgin-do daí a pretensão de recebimento. Então, ilustrativamente, temos: prescreve em três anos a pretensão de reparação civil; prescreve em cinco anos a pretensão dos profissionais liberais e professores pelos seus honorários, contado o prazo da con­clusão dos serviços.

Quanto à natureza da ação: Em conseqüência do segundo critério, é possível utilizar o critério formulado por Agnelo Amorim Filho, 9 que se valeu do enfoque processual da classificação tradicional das ações (condenatória, constitutiva e declaratória).

A ação condenatória fica sujeita à prescrição. Não havendo prazo específico, aplica-se a regra de dez anos. Por exceção, a própria Constituição da República estabelece a imprescritibilidade da ação condenatória, como referente ao ressar­cimento ao erário, art. 37, parágrafo 5 o .

Alguns exemplos de prescrição:

Seguro - Prescreve em um ano a pretensão do segurado contra o segu­rador, ou a deste contra aquele, contado o prazo, para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador (art. 206, parágrafo I o , CC).

Alimentos - Prescreve em dois anos a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem (art. 206, parágrafo 2°, CC). Aluguéis - Prescreve em três anos a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos (art. 206, parágrafo 3 o , I, CC). Enriquecimento sem causa - Prescreve em três anos a pretensão de ressar­cimento de enriquecimento sem causa (art. 206, parágrafo 3 o , IV, CC). Reparação civil — Prescreve em três anos a pretensão de reparação civil (art. 206, parágrafo 3 o , V).

Cf. AMORIM FILHO, Agnelo. Critério cientifico para distinguir a prescrição da deca­dência. São Paulo, RT, p.300-8.

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Honorários de profissionais liberais - Prescreve em cinco anos a pre­tensão dos profissionais liberais em geral, procuradores judiciais, cura­dores e professores pelos seus honorários, contado o prazo da conclu­são dos serviços, da cessação dos respectivos contratos ou mandato (art. 206, parágrafo 5 o , II, CC).

A ação constitutiva está afeita à decadência. Exemplos de decadência:

Anulação de ato jurídico (art. 178, CC) - É de quatro anos o prazo de decadência para a anulação do negócio jurídico, contado:

I - no caso de coação, do dia em que ela cessar; II - no caso de erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão, do dia em que se realizou o negócio jurídico; III — no caso de atos de incapazes, do dia em que cessar a incapacidade.

Vício Redibitório — O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de u m ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já existia na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade (art. 445, CC). Cláusula de garantia - Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência (art. 446, CC).

Venda de imóvel (pela extensão) - Decai do direito de propor as ações (complemento da área, reclamar a resolução do contrato ou abatimen­to proporcional ao preço), no prazo de u m ano, contado do registro (art. 501, CC). Condômino preterido — Poderá, depositando o preço, haver para si a parte vendida a estranhos, se o requerer no prazo de 180 dias, sob pena de decadência (art. 504, CC). Contrato de empreitada - Nos contratos de empreitada de edifícios, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredu­tível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, tanto em razão dos materiais, como do solo (art. 618, CC). Anulação de casamento por erro essencial (art. 1.560, III, CC) — O prazo para ser intentada a ação de anulação do casamento, a contar da data da celebração, é de:

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I - 180 dias, no caso do inc. IV do art. 1.550; II - dois anos, se incompetente a autoridade celebrante; III - três anos, nos casos dos incs. I a IV do art. 1.557.

Não havendo prazo específico, não fica sujeita nem à decadência, nem à pres­crição (exemplos: investigação de paternidade e separação judicial). São ações per­pétuas e, por fim, no tocante às ações declaratórias, não ficam sujeitas nem à pres­crição nem à decadência.

Além disso, o prazo prescricional é legal, não podendo ser alterado por vontade das partes, como será detalhado a seguir (art. 192, CC); ao passo que o prazo decadencial pode ser legal ou convencional (art. 211). A prescrição per­mite a renúncia (tácita ou expressa) pela parte favorecida (art. 191), mas a parte pode alegar em qualquer grau de jurisdição (art. 193) - salvo recursos extraor­dinários. Já na decadência, sendo legal, não se admite a renúncia (art. 209).

Na hipótese de decadência legal, o juiz tem o dever de pronunciar de ofício (art. 210); sendo convencional, depende de alegação da parte, que pode invocá-la em qualquer grau de jurisdição (art. 211).

A prescrição fica sujeita a causas impeditivas, suspensivas e interruptivas. A decadência, em regra, não se suspende nem se interrompe; por exceção, no caso de vício redibitório, não fluem os prazos na constância de cláusula de garantia, mal­grado o adquirente tenha de denunciar o defeito ao alienante nos 30 dias seguin­tes ao seu descobrimento, sob pena de decadência (art. 446, CC).

5. INALTERABILIDADE DO PRAZO - RENÚNCIA DA PRESCRIÇÃO (ART.191)

A prescrição tem seus prazos fixados em lei, não podendo ser alterados por convenção das partes (art. 192, CC). Por exemplo: as partes não podem prolongar o prazo de seis meses para dez meses para a ação de execução do cheque; não podem convencionar que o prazo para cobrança de honorários advocatícios será de quatro anos.

Mas é possível renúncia (expressa ou tácita, art. 191); sujeitar-se a impedi­mento, suspensão e interrupção do prazo (arts. 197 a 199 e 202, VI); ser invocada em qualquer grau de jurisdição (art. 193).

Renúncia: É o ato de disposição da parte favorecida de invocar a prescrição. A vontade da parte (prescribente) é tão relevante que pode até mesmo abrir mão do benefício da prescrição. Neste caso, a pretensão se inicia novamente e novo

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prazo prescricional começa a correr. A renúncia, em regra, só pode ocorrer depois de consumada a prescrição. 1 0

A renúncia pode ser tácita ou expressa, desde que não prejudique terceiros. Exemplos de renúncia tácita: o devedor remete uma carta ao credor pedindo par­celamento da dívida (art. 202, VI, CC); a seguradora faz u m depósito na conta do beneficiário de determinado valor, por conta de veículo furtado (reconheci­mento do direito pelo devedor).

Ato unilateral: Trata-se de ato unilateral, de mera liberalidade, que não de­pende da aceitação do credor (não receptício). Porém, sendo ato jurídico, recla­ma plena capacidade do agente.

Ato pessoal: A renúncia só atinge o devedor renunciante. Exemplo: na dívi­da solidária entre devedor e avalista, se este renuncia ao direito de invocar a pres­crição de dívida já prescrita, só o renunciante passa a responder pelo cumpri­mento integral da obrigação. 1 1

A renúncia não atinge terceiros: Não vale a renúncia, se vier prejudicar a ter­ceiros. Exemplo: se a renúncia à prescrição é realizada por devedor insolvente, um outro credor (terceiro prejudicado) tem ação anulatória (pauliana) com base em fraude contra credores.

Alegação em qualquer grau de jurisdição (art. 193): A prescrição pode ser ale­

gada pela parte em qualquer grau de jurisdição. Quer dizer, pode ser invocada tanto em primeiro, como em segundo grau. Se a alegação dilatar o julgamento da lide, a parte, mesmo sagrando-se vencedora, perde o direito a honorários advo-catícios (art. 22, CPC).

Entretanto, não se permite tal alegação em sede de recursos extraordinários, ante à ausência de prequestionamento. Também não cabe argüir a prescrição após o trânsito em julgado da decisão condenatória. Não alegada em fase de conheci­mento, presume-se renúncia tácita ao direito à prescrição.

A invocação da prescrição é da parte, e não de terceiros (art. 193). Além dis­so, t ambém compete à parte interromper a prescrição, pelo reconhecimento do direito do credor (art. 202, VII). Todavia, as outras hipóteses para interromper a prescrição (arts. 202, incs. II, III, IV e V) podem ocorrer por qualquer interessa­do (art. 203).

Contra: Câmara Leal entende que é válida a renúncia, depois de iniciado o prazo pres­cricional, mas antes de seu término. (Apud VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, parte geral. 3.ed. São Paulo, Atlas, p.623) VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit, p.624.

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6. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE OFÍCIO (REVOGAÇÃO DO ART. 194, CÓDIGO CIVIL, PELA LEI N.11.280/2006)

Pelo antigo Código Civil, a prescrição de direitos patrimoniais não podia ser pronunciada de ofício (art. 166), regra também seguida pelo CPC (art. 219, parágrafo 5 o , conforme redação anterior à Lei n. 11.280/2006). A contrário senso, o juiz estava autorizado a reconhecer a prescrição de direitos não-patri-moniais; no entanto, a doutr ina sempre considerou tais hipóteses como sendo de decadência.

No atual Código Civil, a redação originária do art. 194 não aludia a direitos patrimoniais. Permitia apenas que o juiz decretasse a prescrição para favorecer absolutamente incapaz. Assim, quando envolvesse, ou não, direitos patrimoniais, o juiz podia reconhecer a prescrição, de ofício, se o prescribente (favorecido pela prescrição) fosse absolutamente incapaz. Portanto, quando este figurasse como réu, malgrado estivesse representado nos autos e fosse omisso quanto à argüição da prescrição, o juiz podia se pronunciar a respeito; nesse ponto, pronuncia­mento de ofício pelo juiz constituía-se faculdade, não de dever, como sucedia no caso da decadência (art. 2IO). 1 2

Todavia pela Lei n. 11.280/2006, revogou-se o art. 194, Código Civil e o parágrafo 5 o do art. 219, CPC, passou a autorizar expressamente ao juiz conhecer de ofício da prescrição, envolvendo ou não direitos patrimoniais, dizendo ou não respeito a incapaz. Logo, tanto a prescrição como a decadência passaram a se constituir em objeção em favor do demandado.

7. FLUÊNCIA DA PRESCRIÇÃO CONTRA O SUCESSOR (ART. 196)

Sucessão do prazo prescricional: A prescrição iniciada contra uma pessoa con­tinua a correr contra o seu sucessor. A sucessão pode ser a título universal, sin­gular, por morte ou por ato entre vivos, a título oneroso ou gratuito. De conse­guinte, por ilustração, o filho do credor (que faleceu) pode promover a ação condenatória pelo prazo prescricional restante. Exemplo: o médico tem o prazo de cinco anos para receber seus honorários; se vier a falecer, seu respectivo her­deiro tem o prazo remanescente.

Contra: Sílvio de Salvo Venosa entende ser poder-dever do juiz no conhecimento da prescrição em favor de incapaz. (Op. cit., p.627)

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Causa de impedimento ou suspensão: Só não haverá fluência do prazo pres-cricional se o herdeiro for absolutamente incapaz (art. 198,1). Havendo u m su­cessor absolutamente incapaz e outro capaz, cada prazo flui autonomamente (salvo se envolver obrigação indivisível). O contrário também é válido. O prazo flui em favor do herdeiro do devedor falecido (exemplo: o filho do locatário pode invocar o prazo restante, considerando o que já transcorreu a favor de seu fale­cido pai).

8. CAUSAS DE IMPEDIMENTO OU SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO (ARTS. 197 A 201)

Quanto às causas impeditivas ou suspensivas da prescrição, não houve gran­de mudança do Código Civil de 1916 para o atual. A alteração se deu no tocan­te à interrupção da prescrição. Como regra, no impedimento, o prazo nem se ini­cia; na suspensão, computa-se o lapso de tempo já decorrido, recomeçando o prazo a fluir pelo restante; e, na interrupção, desconsidera-se o período anterior e reco­meça-se a contagem por inteiro.

Impedimento: O art. 197 leva em conta as relações afetivas (exemplo: casa­mento, relação de parentesco, tutela). O prazo prescricional nem começa a fluir. O termo inicial fica obstado. Durante a sociedade conjugai, a prescrição não corre; no entanto, a lei não se refere à união estável (art. 1.723, CC).

Situações que dificultam o credor de agir (não dependem da vontade da inércia

do credor): O art. 198 refere-se a certos credores. Se o credor for absolutamente incapaz, estiver ausente do país a serviço da União, Estados ou Municípios, ou se achar a serviço das Forças Armadas, em tempo de guerra, não corre a prescrição. Portanto, o art. 198 visa a proteger o credor, não o devedor.

Há outras hipóteses de impedimento: no âmbito trabalhista, contra os me­nores de 18 anos não corre nenhum prazo de prescrição (art. 440, CLT); duran­te o processo de falência, fica suspenso o curso da prescrição relativa a obrigações de responsabilidade do falido (art. 47, DL n. 7.661/1945).

Pendência de condição suspensiva, prazo ainda não vencido, evicção (art.

199): Se o direito é condicional, então não é ainda direito adquirido, não haven­do, por enquanto, ação para assegurá-lo. 1 3 Se o prazo não venceu, ainda não há ação para proteger o direito (exemplo: durante o prazo de garantia, não flui o

VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.632.

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prazo prescricional, art. 4 4 6 , CC). Por fim, na pendência da ação de evicção, não flui a prescrição, pois a parte não sabe ainda se vai perder ou não a demanda.

9. PREJUDICIALIDADE- JUÍZO CRIMINAL

Estabelece o art. 2 0 0 , CC: "Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva senten­ça definitiva". Este dispositivo deve ser interpretado em conformidade com as regras processuais (arts. 1 1 0 , 2 6 5 , IV, a, e parágrafo 5 O , CPC). Vale dizer que, a ação civil ex delido pode ser proposta antes ou durante o processo criminal, podendo o juízo cível suspender o processo, prazo este que não pode ultrapas­sar o prazo de u m ano.

O problema que pode surgir é saber se, interrompendo a prescrição (exem­plo: protesto judicial ao devedor, que praticou o crime), esta recomeça a fluir, ou estaria com o prazo suspenso durante o processo criminal.

10. SOLIDARIEDADE

Os credores solidários são beneficiados com o impedimento/suspensão (art. 2 0 1 ) ou com a interrupção da prescrição (art. 2 0 4 ) .

Suspensa a prescrição em favor de um dos credores solidários, só aprovei­tam os outros se a obrigação for indivisível. Exemplo: o credor vem a falecer, dei­xando dois herdeiros (credores solidários de obrigação indivisível). Sendo um dos herdeiros absolutamente incapaz, não corre a prescrição. Porém, esta causa de impedimento aproveita ao herdeiro capaz, se a obrigação for indivisível, como à relativa a um imóvel.

De igual modo, a interrupção por um dos credores solidários aproveita aos outros, assim como a interrupção efetuada contra o devedor solidário envolve os demais e seus herdeiros.

No entanto, tratando-se de dívida não solidária, divisível, a interrupção da prescrição por u m credor não aproveita aos outros; semelhantemente, a inter­rupção operada contra o co-devedor, ou seu herdeiro, não prejudica aos demais co-obrigados (art. 2 0 4 , caput, CC).

Como dito, na solidariedade ativa, se apenas um dos credores praticar ato interruptivo da prescrição, o outro credor também é beneficiado.

Na solidariedade passiva, interrompida a prescrição contra um dos co-deve-dores, o outro também é afetado (art. 2 0 4 , parágrafo I O ) . Todavia, a interrupção

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operada contra u m dos herdeiros do co-devedor solidário não prejudica os outros herdeiros, salvo se se tratar de obrigações indivisíveis (art. 204, parágrafo 2 o ) .

11. INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO (ARTS. 202 A 204)

Os arts. 202 a 204, CC, regulam as hipóteses de interrupção da prescrição. E o art. 202 preconiza:

A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á: I - por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interes­sado a promover no prazo e na forma da lei processual; II - por protesto, nas condições do inciso antecedente; III - por protesto cambial; IV - pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores; V - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor; VI - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconheci­mento do direito pelo devedor. Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper.

11.1 Despacho do juiz

O Código Civil trouxe algumas novidades relacionadas com as hipóteses de interromper a prescrição: 1) a interrupção ocorre uma única vez; 2) o despacho do juiz interrompe a prescrição; 3) o protesto cambial interrompe a prescrição.

Pelo regime do Código de Processo Civil antes de 1994, estabelecia o art. 219, parágrafo I o , que: "A prescrição considerar-se-á interrompida na data do despacho que ordenar a citação". A Lei n. 8.952/1994 deu nova roupagem ao dis­positivo, passando a regrar que: "A interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação".

Com o advento do Código Civil de 2002, retorna-se ao pronunciamento ju­dicial como fator interruptivo da prescrição, bem provavelmente porque, quan­do do anteprojeto, ainda vigia a antiga redação do parágrafo I o do art. 219, CPC. Portanto, pelo atual Código Civil, a interrupção se dá pelo despacho, e não mais pela citação (voltando à redação antiga do art. 219, parágrafo I o , CPC).

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Todavia, apesar de o art. 202, CC, falar em "despacho", cremos que a inter­rupção retroage à data da propositura da ação, pois o autor não pode ser prejudi­cado pela morosidade da justiça. 1 4

Ademais, não se pode olvidar de que o "despacho que ordenar a citação" po­de se protrair no tempo, bastando imaginar a hipótese de indeferimento liminar da inicial, seguida de recurso de apelação, que vem a ser provida depois de lon­go tempo. O exemplo confirma a idéia de que o credor diligente não pode ser pe­nalizado pelo emperramento da máquina judiciária.

Processo extinto sem julgamento do mérito: A citação válida interrompe a pres­crição, mesmo que a sentença seja meramente processual (ou terminativa), por revelar interesse do autor em cessar a inércia. 1 5

Em realidade, o efeito interruptivo da prescrição não fica condicionado ao bom êxito da ação, pois demonstra solércia e manifestação do interessado. Além disso, se até a prática de ato extrajudicial tem o condão de interromper a prescri­ção (exemplo: protesto cambiai), o despacho do juiz, com maior razão, está apto a tanto, mesmo que, ao final, o mérito não reste apreciado.

Por exceção, se o processo for extinto sem julgamento do mérito, por ilegi­timidade de parte, aí sim, parece-nos que, sem citação do verdadeiro legitimado passivo, sequer haveria processo e, pois, efeito interruptivo da prescrição. 1 6

Interrupção por uma vez: O art. 202, CC, preceitua que a interrupção se dá apenas uma vez. Neste sentido, também reza o Decreto n. 20.910/1932, ainda em

1 4 Neste sentido, diz a Súmula 106-STJ: "Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência".

15 RSTJ 51/140 (Theotonio Negrão, CPC comentado, nota 2 ao art. 219). No mesmo sen­tido: RTFR 134/3, RT] 98/213; JSTF 171/187, RTJ 108/1.105, RT 475/78, JTACivSP 32/18 (NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 7.ed. São Paulo, RT, 2003, nota 6 ao art. 219). Contra: Arruda Alvim já se pronunciou no sentido de a não-propositura da ação principal levar ao desapareci­mento dos efeitos da medida liminar e também o da interrupção da prescrição (Ação principal - não propositura da ação principal em 30 dias - cessação dos efeitos produzi­dos, Repro 75/220). Também já se entendeu que, na ação de usucapião, a citação só tem efeito interruptivo se a ação (possessória ou reivindicatória) for julgada proce­dente; se improcedente ou houver carência da ação, então não haveria de se falar em interrupção (R]TJESP-Lex 116/254, 132/258). Sílvio de Salvo Venosa diz que, nas hi­póteses dos incs. II e III, não há interrupção da prescrição, uma vez que caracterizam inércia das partes. (Op. cit, p.636)

1 6 Cf. "CITAÇÃO. INTERRUPÇÃO. PRESCRIÇÃO. INÉPCIA. - A citação válida inter­rompe todos os prazos extintivos previstos em lei (art. 220 do CPC) e somente em

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vigor, no sentido de a prescrição em favor da Fazenda Pública ser qüinqüenal, po­dendo ser interrompida apenas uma vez, recomeçando a correr pela metade do prazo, da data do ato que a interrompeu 1 7 (vide, a seguir, Prescrição contra a Fazen­da Pública).

No entanto, é preciso observar que o legislador, ao elaborar a regra do art. 202, CC, ao que parece, pretendeu evitar sucessivos atos interruptivos, mas se esquecendo de que a sistemática processual vigente alberga três tipos de proces­so (conhecimento, execução e cautelar).

Vale dizer que é possível que o processo de execução seja autônomo em rela­ção ao de conhecimento ou ao cautelar e vice-versa. Nessa medida, entendemos que, quando a lei alude a "uma vez", devemos interpretar como "uma vez no res­pectivo processo". Do mesmo modo, uma outra alternativa é analisar a demanda judicial como u m único processo, com fases de conhecimento, de execução ou cautelar, como se estivessem amalgamados em u m sincretismo processual.

A não ser assim, pode-se ter, por exemplo, a interrupção da prescrição, pelo despacho realizado no procedimento de protesto judicial (medida prevista como cautelar, nos termos do art. 867, CPC) pela primeira e única vez. Todavia, se a ação de cobrança, ajuizada logo depois, perdurar por mais de u m ano, terá ocor­rido a prescrição, apesar do empenho do credor em promover a ação principal, o que não nos parece muito lógico. Entretanto, o que não se pode conceber é, a des­peito da diligência do interessado, a parte credora da pretensão sair prejudicada pela não-interrupção.

Um outro exemplo: o credor apresenta uma nota promissória nos autos do inventário do devedor falecido, obtendo a interrupção da prescrição (art. 202, IV, CC). É possível que o juízo do inventário remeta o credor às vias ordinárias, dian­te da discordância dos herdeiros do devedor - de cujus - (art. 1.018, CPC). Neste caso, o despacho na ação de execução não interromperia a prescrição, pois esta já teria ocorrido nos autos do inventário {primeira e única vez). Como se vê, o cre­dor estaria sendo prejudicado, apesar de sua diligência.

raros casos, como o da perempção (art. 267, III, c.c. art. 268, parágrafo I o , ambos do CPC), isso não é possível. Desta forma, mesmo se o processo vier a ser extinto por inépcia da inicial, a citação válida interrompe a prescrição". (REsp. 238.222-SP, Rei. Min. Castro Filho, j . 15/5/2001) Súmula 383-STF: "A prescrição em favor da Fazenda Pública recomeça a correr, por dois anos e meio, a partir do ato interruptivo, mas não fica reduzida aquém de cinco anos, embora o titular do direito a interrompa durante a primeira metade do prazo".

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11.2 Protesto judicial

O inc. II pode ser conjugado com o inc. V, para se firmar a idéia de que o protesto, notificação ou interpelação judicial, procedimentos previstos nos arts. 867 e ss., CPC, podem servir de ato interruptivo da prescrição. Insta ressaltar, todavia, que o ato interruptivo se dará pelo despacho judicial que determina a intimação do requerido.

11.3 Protesto cambial

A Súmula 153-STF dizia que "Simples protesto cambiário não interrompe a prescrição", enunciado que se encontra agora superado pelo art. 202, III, Código Civil de 2002. Com efeito, este ato demonstra diligência da parte e prova a im-pontualidade do devedor. A propósito, destaque-se que não compete ao Tabelião de Protesto investigar a ocorrência de prescrição ou caducidade (art. 9 o , da Lei n. 9.492/1997, que dispõe sobre o protesto de títulos).

11.4 Apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores

A apresentação do título de crédito em juízo, nos autos de inventário ou de concurso de credores, demonstra que o credor está sendo diligente na defesa de sua pretensão, encerrando vontade de receber seu crédito.

No caso de concurso de credores aberto pela quebra de empresa, o art. 47, do Decreto-lei n. 7.661/1945, reza que, durante o processo de falência, fica sus­penso o curso da prescrição relativa a obrigações de responsabilidade do falido (arts. 47 e 134, Decreto-lei n. 7.661/1945). Porém, o Código Civil alude à "inter­rupção" da prescrição (art. 202, IV). Nessa medida, cremos que, decretada a que­bra, a execução individual fica suspensa (art. 24, LF; art. 6 o , Lei n. 11.101/2005 — "Lei de Falências de 2005"). E, durante todo o processo da falência, o curso da prescrição também fica suspenso, aplicando a regra específica do art. 47, LF. 1 8

Todavia, cuidando-se de liquidação extrajudicial, a sua decretação interrompe a prescrição relativa a obrigações de responsabilidade da instituição financeira

Art. 2.037, Código Civil. Salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e sociedades empresárias as disposições de lei não revogadas por este Código, referen­tes a comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis.

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(art. 18, Lei n. 6.024/1974). Se for insolvência civil, a decretação também inter­rompe a prescrição, recomeçando a correr a partir do trânsito em julgado da sen­tença que encerrar o processo de insolvência (art. 777, CPC).

Interessa registrar que, no caso de falência ou de concurso de credores, o cre­dor pode cobrar a dívida antes de vencido o prazo previsto no contrato, anteci­pando-se, pois, o momento da exigibilidade. No entanto, apesar dessa antecipação do vencimento da dívida, o prazo prescricional começa a fluir a partir do venci­mento previsto originariamente entre as partes.

Exemplo: se o credor for detentor de nota promissória, com vencimento para a data "x", a falência ou o concurso de credores autoriza a cobrança anteci­pada do crédito (art. 333,1, CC). Entretanto, se o credor não se antecipar à co­brança, preferindo aguardar o dia do vencimento, é neste momento que se inicia o prazo prescricional (art. 205, parágrafo 3 o , VIII, CC).

11.5 Qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor ou qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor

O próprio devedor pode praticar ato que importe reconhecimento do direito do credor (exemplo: u m a carta endereçada ao credor, admitindo a dívida, mas pedindo prazo para pagamento). Aqui, portanto, não incide a regra do art. 203, CC, que diz que: "A prescrição pode ser interrompida por qualquer interessado", uma vez que tal dispositivo existe para favorecer o credor.

12. TERMO INICIAL DO RECOMEÇO

Quando o ato interruptivo é realizado em u m momento único, o recomeço da prescrição se dá a partir desse instante (protesto cambial, apresentação do tí­tulo, notificação do devedor). Todavia, em se tratando de procedimento judicial, a prescrição recomeça a fluir a partir do último ato do processo.

13. FIADOR

A interrupção produzida contra o principal devedor prejudica o fiador, mer­cê da regra de que o acessório segue o principal (art. 204, parágrafo 3 o ) . No entanto, a recíproca não é verdadeira. Se interrompida a prescrição somente em

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 247

relação ao fiador, a relação principal fica intacta. O principal não é afetado pelo destino do acessório. 1 9

14. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE

Sendo o autor desidioso, é possível a prescrição intercorrente. E o art. 475-L, VI, CPC, prevê a prescrição após a sentença. Porém, não sendo negligente, o cre­dor não pode ser punido pela prescrição, por ato ou fato do devedor (exemplo: não possui bens penhoráveis).

Na execução fiscal, o art. 40, parágrafo 4 o , Lei n. 6.830/1980, autoriza o reco­nhecimento da prescrição intercorrente, de ofício. Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato (redação dada pela Lei n. 11.051/2004).

Portanto, da decisão de arquivamento, conta-se o prazo de cinco anos, após o que, diante da omissão da Fazenda Pública, permite-se ao juiz, ouvindo a cre­dora, decretar de ofício da prescrição, na esteira do disposto no parágrafo 5 o do art. 219, CPC (conforme Lei n. 11.280/2006).

"A jurisprudência do STJ, no período anterior à Lei n. 11.051/2004, sempre foi no sentido de que a prescrição intercorrente em matéria tributária não podia ser declarada de ofício. O atual parágrafo 4 o d o art. 40 da LEF (Lei n. 6.830/1980), acrescentado pela Lei n. 11.051, de 30/12/2004 (art. 6 o ) , viabiliza a decretação da prescrição intercorrente por iniciativa judicial, com a única condição de ser pre­viamente ouvida a Fazenda Pública, permitindo-lhe argüir eventuais causas sus-pensivas ou interruptivas do prazo prescricional. Tratando-se de norma de natureza processual, tem aplicação imediata, alcançando inclusive os processos em curso. Recurso especial a que se dá provimento, sem prejuízo da aplicação da legislação superveniente, quando cumprida a condição nela prevista" (REsp. 735220-RS, Rei. Min. Teori Albino Zavascki, j . 3/5/2005).

15. VÍCIOS REDIBITÓRIOS

Os vícios redibitórios dos contratos e a evicção são institutos ligados à fase pós-contratual. Nesta fase, podem surgir obrigações que não existiam na fase con­tratual ou pré-contratual, como o direito de todo empregado exigir referências do

VENOSA, Sílvio d e Salvo. Op. cit., p.640.

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248 SÉRGIO SHIMURA

seu ex-empregador. Estas obrigações somente surgem porque existiu antes um contrato entre as partes.

Os vícios redibitórios (arts. 441 a 446, CC) são problemas ou vícios ocultos, não identificáveis quando da celebração do contrato, que tornam a coisa recebi­da imprópria para o uso ou que lhe diminuam o valor. A responsabilidade por tais vícios existe apenas nos contratos bilaterais comutativos. Rompida a paridade ini­cial entre os contratantes, pode surgir o direito à redibição do negócio (anulação do contrato pela existência de vício redibitório), conversão em perdas e danos ou a manutenção do negócio com redução no preço. Exemplos: compra de animal reprodutor com problemas genéticos, aquisição de veículo com problema de vazamento de óleo etc.

Pelo Código Civil de 1916, a dificuldade no uso da garantia pelos vícios re­dibitórios estava na exigüidade (15 dias para móveis; seis meses para imóveis) (art. 178). O Código de 2002 aumentou o prazo das ações redibitórias: 30 dias para bens móveis e um ano para imóveis (art. 445).

Além disso, pelo novo Código Civil, para os vícios que só aparecem com o pas­sar do tempo, o prazo só se inicia com a ciência do vício, a partir do qual começa a fluir o prazo de 180 dias, em se tratando de bens móveis, e de um ano, para os imóveis (art. 445, parágrafo I o ) .

16. GARANTIA CONTRATUAL

Se o produto tiver u m prazo de garantia maior ofertado pelo próprio fabri­cante ou pelo vendedor, durante esta garantia não corre o prazo prescricional. Nesse caso, cuida-se de causa impeditiva da prescrição. Exemplo: a parte adqui­re u m aparelho eletrônico, cujo prazo de garantia (contratual) é de 335 dias, que, somados aos trinta dias previstos legalmente, pode perfazer u m ano (365 dias). 2 0

"O prazo de noventa dias é contado do termo final da garantia dada pelo fabricante do produto. Havendo reclamação formulada pelo consumidor fica obstada a decadência até a inequívoca resposta negativa do fornecedor" (TJ-RJ - Ac. unân. da 5 a Câm. Cív. reg. em 3/4/1996 - Agr. 2.335/95-Capital - Rei. Des. Marden Gomes; ADCOAS 8151425). Ainda: "Defeitos de Fabricação — Na compra e venda de veículo automotor, a abertura da contagem do prazo decadencial para que o consumidor reclame de eventuais defeitos de fabricação só pode ser feita a partir do vencimento do período de garan­tia contratual de um ano dado pelo fabricante, nos termos do art. 50 da Lei 8.078/90. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Ap. 774.309-9, da Comarca de São Paulo, sendo apelante Gláucio de Faria Barreto Rodrigues e apelada Volkswagen do Brasil Ltda., acordam, em 3 a Câm. do I o TA Civ.SP, por v.u. dar provimento ao recurso. A r.

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 249

17. DIREITO INTERTEMPORAL

O art. 2.028, C C , reza que:

Serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada.

Por tanto , aplica-se o Cód igo C i v i l de 1916 se: 1) o n o v o Cód igo C i v i l r e d u ­z iu o respectivo prazo prescr ic ional ; 2) e m 11/1/2003, já t iver t ranscorr ido mais da metade do prazo antigo.

Vejamos o seguinte quadro exemplificativo, de redução do prazo prescricional:

CC de 1916 CC de 2002 (11/1/2003)

1) Ação pessoal 20 anos (art. 177) 10 anos (art. 205)

2) Reparação civil 20 anos (art. 177) 3 anos (art. 206) 3) Confissão de dívida 20 anos (art. 177) 5 anos (art. 206)

4) Pensão alimentícia 5 anos (art. 23, LA) 2 anos (art. 206)

5) Usucapião 20 anos (art. 550) 15 anos (art. 1.238)

sentença, cujo relatório se adota, julgou extinto o processo da ação voltada ao cum­primento de obrigação de fazer e condenatória por perdas e danos, por reconhecer operada e decadência, nos termos do art. 269, IV, do CPC. Inconformado, apela o autor alegando a ocorrência de nulidade da sentença, porque não fundamentada. Além disso, sustenta que o prazo decadencial nem começou a fluir, pois de sua parte houve reiteradas reclamações, sem que os problemas de freio apresentados pelo veí­culo fossem resolvidos. A garantia contratual, que ainda pendia, é complementar à legal, e ainda que não fosse, o prazo somente passaria a correr do efetivo conserto de todos os problemas apresentados, o que não aconteceu. Por outro lado, a prescrição para pleitear os danos morais e materiais é de cinco anos, e esse aspecto não foi obser­vado pela sentença. Recurso tempestivo e bem processado, com resposta da apelada e preparo. É o relatório. Rejeita-se, inicialmente, a alegação de nulidade da sentença, uma vez que se mostra fundamentada. Realizou o Juízo suficiente abordagem para justificar o seu convencimento quanto à decadência do direito do autor, e é o que basta para afastar qualquer possibilidade de vício. Quanto ao mais, verifica-se que o autor efetuou a aquisição de um veículo Gol 1.6 CLi, ano 1996, na data de 23/2/1996. Em virtude de defeitos apresentados no sistema de freio, houve reclamação por parte do apelante junto à concessionária, mas sem obter resultado. Houve reclamação junto a órgão de proteção ao consumidor, mas a concessionária informou que, após os testes realizados, o veículo se encontrava em perfeitas condições de uso (fls.). A seguir, em 16/9/1996 (fls.), a ré dirigiu correspondência ao autor, informando-o de que, após uma

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Assim, no exemplo de ação pessoal, se em 11/1/2003 já tiver doze anos, aplica-se o Código Civil revogado, pois mais da metade do prazo já transcorreu; se tiver fluí­do nove anos, incide a regra do Código Civil de 2002, porque ainda não transcorreu mais da metade do prazo antigo. Todavia, o novo prazo (dez anos) começa a correr a partir de 11/1/2003, data da entrada em vigor do novo Código Civil.

18. PRESCRIÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA

A expressão "Fazenda Pública" inclui as pessoas jurídicas de direito público interno - União, estados, municípios, territórios, Distrito Federal, autarquias e demais entidades de caráter público criadas por lei - (art. 41, Código Civil).

As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qual­quer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em 5 (cinco) anos, contados da data do ato ou fato do qual se originarem (art. 1 o, Decreto n. 20.910/1932).

Única interrupção: A prescrição somente poderá ser interrompida uma vez (art. 8 o , Decreto 20.910/1932). Uma vez interrompida, recomeça a correr pela me­tade do prazo (art. 9 o , Decreto n. 20.910/1932).

nova análise do comportamento de frenagem do veículo, foi realizada a substituição completa do sistema de freios e da coluna de suspensão com os braços transversais, constatando, após novos testes, a perfeita normalidade das condições do veículo. Obte­ve o autor, então, um laudo técnico informando que o veículo, ao ser acionado o freio, provocava desvio de sua trajetória para o lado direito de forma proporcional ao aumento da velocidade, inclusive com travamento das rodas do flanco direito quando acionado bruscamente o pedal. Esse documento é datado de 8/10/1996. Em 18 de novembro seguinte, o autor comunicou o acontecido à autoridade policial, deixando registrado em boletim de ocorrência o seu inconformismo com a situação, pois o veí­culo ainda apresentava os mesmos problemas. Consta de fls. cópia de carta emitida pelo autor e endereçada à concessionária Interlagos 1200, dando conta de que os defeitos ainda persistiam. Porém, não há qualquer prova de que tal correspondência tenha realmente sido entregue à destinatária. Tendo a presente ação sido proposta ape­nas em 20/2/1997, houve por bem o Juízo a quo extinguir o processo, por reconhecer operada a decadência. Esse relato dos fatos está a evidenciar a clara atitude de insa­tisfação demonstrada pelo consumidor em relação ao produto. Apesar das providên­cias tomadas pela fornecedora, o mesmo estado de coisas persistiu, mas a ação foi proposta somente após o prazo de 90 dias da constatação de que o vício estaria a per­durar. No entanto, aqui está presente a particularidade de que, por se tratar de um automóvel o produto objeto da relação do consumo, conta ele com a garantia contra­tual de um ano, que, nos termos do art. 50 do CDC, é complementar à legal. Tal garan-

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 251

A esse propósi to, a S ú m u l a 383-STF edita:

A prescrição em favor da Fazenda Pública recomeça a correr, por 2 anos e meio, a

partir do ato interruptivo, mas não fica reduzida aquém de 5 anos, embora o titular

do direito a interrompa durante a primeira metade do prazo.

Po r exemplo: o venc imento da dív ida contra a Fazenda Públ ica se dá e m 15 de janeiro de 1995, cuja prescrição ocorreria e m 15 de janeiro de 2000; po rém, e m 20 de março de 1999, sobrevém ato interruptivo da prescrição. Neste caso, o prazo prescricional recomeça a correr, por dois anos e meio (20/3/1999 acrescido de dois anos e me io ) .

Todavia , se a in ter rupção se desse e m 5 de fevereiro de 1996 (p r ime i ra me ta ­de do prazo qü inqüena l ) , o prazo recomeçar ia a correr, obedecendo ao per íodo tempora l de, pelo menos , c inco anos; po r conseguinte, a prescr ição se dar ia e m 15 de jane i ro de 2000 ( janeiro de 95 até jane i ro de 2000 = 5 anos, pelo menos ) . D e certo m o d o , o credor di l igente, que in te r rompe a prescr ição na p r ime i ra m e ­

tia, assim, constituiu uma ampliação daquelas previstas na lei. E, desse modo, encon­tra pleno sentido a afirmativa do autor de que o prazo decadencial só pode ser conta­do a partir do vencimento do período contratual. Pensar de modo diverso importaria num contra-senso, pois acabaria redundando na própria limitação da cláusula, em detrimento do consumidor, e na violação da norma do mencionado art. 50, como se verifica na hipótese em exame. Tal foi a contradição verificada nos autos, a ponto de permanecer pendente o período de garantia de bom funcionamento do veículo e, ao mesmo tempo, negar-se proteção ao consumidor que veio a Juízo questionar a qua­lidade do produto antes do termo final dessa garantia. A interpretação coerente dos arts. 50 e 26, portanto, de modo a tornar compatíveis os dispositivos, deve necessa­riamente ser aquela sustentada pelo autor, estabelecendo que a abertura da contagem do prazo decadencial só pode ser feita a partir do vencimento do período de garan­tia do contrato. Apreciando o tema à luz de legislação anterior, no mesmo sentido já se pronunciara esta Corte no julgamento da Ap. 409.431-0, Rei. Juiz Paulo Bonito: 'Prazo. Decadência. Compra e Venda. Vício Redibitório. Venda com garantia de um ano. Inaplicabilidade do Código Civil ou do Código Comercial. Fluência depois de esgotado o prazo de garantia. Preliminar afastada. Regular instrução determinada. Recurso provido para esse fim'. Assim também no julgamento da Ap. 436.302-0, Rei.: Juiz Evaldo Veríssimo. Dessa interpretação decorre, naturalmente, a impossibilidade de falar em decurso do prazo decadencial para a propositura da ação, deixando de subsistir o reconhecimento assim efetuado pela r. sentença. Com o afastamento da extinção do processo, que ora se estabelece, e com a impossibilidade de se realizar o julgamento do pedido, dada a necessidade de dilação probatória, só resta determinar o retorno dos autos à origem, para o devido prosseguimento. Ante o exposto, dá-se provimento ao recurso" - I o TA Civ SP, Ap. 774.309-9, Rei. Antônio Rigolin, j . 11/8/1998, RT 761/259 - (g.n.).

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tade, tem, em tese, um prazo menor do que aquele que deixa para interromper na segunda metade do qüinqüênio.

19. PRESCRIÇÃO DA EXCEÇÃO (ART. 190)

O art. 190, CC, dispõe que: "A exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão". O termo "exceção" pode contemplar vários sentidos, podendo se re­ferir a qualquer meio de defesa ou defesa processual indireta (exceção de incom­petência, suspeição e impedimento, art. 304, CPC).

Entretanto, o art. 190, CC se refere às defesas que podem ser objeto de pre­tensão própria do réu. Exemplos: compensação (art. 368, CC) e indenização por benfeitorias (art. 1.219, CC). Nesta linha, se estiver prescrita a pretensão de pedi­do de indenização por benfeitorias, com maior razão, não se lhe é permitido invo­car como matéria de defesa.

20. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

20.1 Relação de consumo

Antes de mais nada, é preciso verificar se a situação fática envolve ou não relação de consumo. Sendo de consumo, aplicam-se os arts. 26 e 27, CDC, bem como as regras do Código Civil que não conflitem ou que sejam mais favoráveis ao consumidor (em razão do sistema de proteção ao consumidor, decorrente de sua vulnerabilidade, proteção contra publicidade enganosa, prevenção e efetiva reparação dos danos - art. 6 o , CDC). Ilustrativamente, a venda de u m veículo po­de encerrar u m contrato de consumo ou mero contrato de direito civil.

20.2 Vícios aparentes ou de fácil constatação. Prazo decadencial (art. 26, CDC)

Preconiza o art. 26, CDC, que:

0 direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I) 30 (trinta) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II) 90 (noventa) dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.

Portanto, o prazo previsto no art. 26 é de decadência, uma vez que, além da dicção legal, cuida-se de prazo constitutivo do direito do consumidor. E flui a partir da entrega do produto ou do término da execução do serviço.

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 253

O que é vício? É o problema relacionado com a qualidade/quantidade que torna o produto/serviço impróprio ou inadequado ao consumo ou que lhe dimi­nua o valor (exemplo: carro que apresenta vazamento de óleo). Também pode decorrer da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embala­gem etc. (exemplo: remédio que não apresenta os componentes do rótulo). A res­ponsabilidade pelo vício é do comerciante e do fabricante.

O que é defeito? É o problema que afeta o patrimônio do consumidor (e equi­parados, arts. 17 e 29, CDC), causando danos (morais ou patrimoniais). Portanto, o defeito traz conseqüências externas ao produto ou serviço (exemplo: intoxicação alimentar, danos morais pelo serviço de hotelaria não prestado). A responsabilida­de pelo defeito é do fornecedor, hipótese em que o comerciante pode ser excluído (art. 13, CDC).

Produto/serviço durável e não-durável: É aquele que se exaure no primeiro uso ou logo após a sua aquisição, ou aquele que se exerce uma só vez. Alguns exem­plos: transporte, hospedagem, alimentos etc. O prazo para reclamação é de trinta dias, para sanar o problema.

Serviço ou produto durável: São os que têm vida útil não efêmera, que não se exaure instantaneamente ou que se prolongam no tempo. Exemplos: convênios de saúde, serviços educacionais, imóveis, veículos, eletrodomésticos etc. O prazo para reclamar é noventa dias, para sanação do vício.

20.3 Peculiaridades do prazo decadencial

Uma vez adquirido o produto, o consumidor tem o prazo de noventa dias (para produto durável) para proceder à reclamação (ato que obsta a decadência), pleiteando: 1) conserto; 2) troca; 3) devolução da quantia paga; 4) abatimento do preço.

Feita a reclamação, o fornecedor tem o prazo de trinta dias para sanar o vício (parágrafo I o , art. 18, CDC), prazo este que pode ser alterado (entre 7 e 180 dias, conforme parágrafo 2 o , art. 18). O fornecedor pode atender ou não à recla­mação. Não atendida a reclamação, o consumidor pode ingressar em juízo, rei­terando aquelas providências (art. 18, parágrafo I o , CDC).

Vício de produto e vício de serviço: O prazo de 30 dias para o fornecedor sanar o problema existe somente para o caso de vício do produto. Tratando-se de vício de serviço, o art. 20, CDC, não fixa prazo.

Pelo art. 207, CC, a decadência não se suspende, nem se interrompe (art. 207, CC). Mas, pelo CDC, cabem as seguintes ressalvas: 1) Pode ser obstado (o que

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eqüivale, em termos práticos, à interrupção do prazo), pela reclamação ou pela instauração de inquérito civil; 2) não flui contra incapaz (exemplo: criança con­sumidora) , configurando causa impeditiva (art. 208 c.c. 198,1, Código Civil); e 3) não flui durante o prazo de garantia contratual. Findo o prazo de garantia, passa a correr o prazo de trinta ou noventa dias (exemplo: aparelho de televisão, cujo prazo de garantia é de 275 dias, que, somados ao prazo legal de noventa dias, perfaz-se o lapso de u m ano).

20.3.7 Reclamação Prazo para o consumidor ajuizar a ação: Como dito, o consumidor tem o pra­

zo de 30 ou 90 dias para reclamar perante o fornecedor, buscando as providências previstas no art. 18, parágrafos I o e 4 o , CDC, podendo formular pedidos subsidiá­rios, em ordem sucessiva (art. 289, Código de Processo Civil). Pode pedir também a sanação do vício; não sendo acolhido, que seja analisado o pedido subsidiário de substituição do produto, restituição do dinheiro ou, por fim, abatimento do preço.

Reclamação extrajudicial: Se o consumidor reclamar perante o fornecedor, obsta a decadência. O fornecedor tem o prazo de trinta dias para sanar o vício (art. 18, parágrafo I o ) ou dar resposta negativa (art. 26, parágrafo 2 o , I). Porém, nada impede que o consumidor ingresse, desde logo, com uma ação judicial (no prazo de 30 ou 90 dias), caso em que a decadência se interrompe (com o despacho do juiz) (art. 202,1, Código Civil, c.c. arts. 219 e 220, Código de Processo Civil).

Embora o parágrafo I o do art. 18, CDC, não preveja nenhum prazo para o consumidor promover a ação judicial, acreditamos que o prazo é o mesmo para reclamar (extrajudicialmente) dos vícios, pedindo substituição do produto, resti­tuição ou abatimento do preço (30 ou 90 dias). Não ocorrendo a reclamação ou não ajuizada a ação no prazo, ocorre a decadência, perdendo o direito de postu­lar as referidas providências. 2 1 Exemplo: se o consumidor não reclamar da ope­radora de turismo em 30 dias, pelo serviço não prestado ou prestado fora do combinado, perde o direito de reclamar (RJE n. 1/193).

Resta-lhe, apenas, requerer indenização por eventuais danos, gerados por defeitos do produto ou serviço, caso em que o prazo passa a ser prescricional de cinco anos (art. 27, CDC).

Formas de reclamação: O consumidor pode reclamar verbalmente, por telefo­ne, por e-mail, por escrito. O importante é que a reclamação seja inequívoca e com­provada.

Cf. Revista dos Juizados Especiais, v.5/184, 5/440, 8/125, 9/354.

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 255

A expressão obstar: O termo "obstar" tem gerado polêmicas, quanto ao seu significado. Há os que entendem seu significado como "impedimento da deca­dência", não se confundindo nem com suspensão, nem com a interrupção. Uma vez praticado o ato (reclamação), o direito foi exercido, não havendo mais que se falar em transcurso do prazo decadencial. Feita a reclamação, tempestivamente, o prazo para propositura da ação correrá da data do recebimento da resposta negativa e o prazo iniciar-se-á, por inteiro (30 ou 90 dias), independentemente do lapso de tempo decorrido antes da reclamação. 2 2

Outros sustentam que obstar indica interrupção, cujo prazo se reiniciaria por inteiro (cf. Revista dos Juizados Especiais 9/71,16/210). E, ainda, há os que pug­

nam pela suspensão do prazo; após o ato obstativo, o prazo retomaria o seu curso pelo restante.23

Serviço de Atendimento ao Consumidor. Se existe serviço oferecido pelo for­necedor, em atendimento ao consumidor, tal facilidade integra a oferta e vincu­la o ofertante (art. 30, CDC). Nesta hipótese, é possível inverter o ônus da prova, carreando ao fornecedor o encargo de provar que não recebeu a reclamação. 2 4 Na prática, é conveniente que o consumidor pegue um comprovante junto ao Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC), como prova de que efetivamente realizou a reclamação.

Reclamação feita a entidades de defesa do consumidor: Esta hipótese foi vetada,

de modo que, pelo texto legal, a reclamação feita a órgãos de defesa do consumidor não tem o efeito de obstar a decadência. Além disso, quanto ao termo final da sus­pensão, não se teria uma resposta negativa (parágrafo 2 o , art. 26). 2 5 Exemplos: recla­mação perante o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Procon, Ser­viço de Vigilância Sanitária, Ipem (Instituto de Pesos e Medidas), Susep (Superintendência de Seguros Privados), Banco Central, Ministério Público.

Todavia, malgrado o veto, a reclamação é causa obstativa da decadência, à medida que, como lembra Rizzatto Nunes, não tem cabimento o Estado colocar

SILVA, Edgard Moreira da. A decadência no CDC. São Paulo, 1999. Dissertação (Mes­trado). PUC/SP, p.134 e ss., com alusão a Paulo Luiz Neto Lobo e Willians Santos Fer­reira. No mesmo sentido: SANTANA, Hector Valverde. Prescrição e decadência nas relações de consumo. São Paulo, RT, 2002, p.139. NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil, RT, nota ao art. 26, CDC no mesmo sentido: RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor - direito material. São Paulo, Saraiva, 2000, p.336-41. LISBOA, Roberto Senise. Contratos difusos e coletivos. São Paulo, RT, 1997, p.328. RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Op. cit., p.343. Neste sentido: SANTANA, Hector Valverde. Op. cit., p.139.

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à disposição do consumidor u m órgão para defendê-lo e depois vir a dizer que, mesmo com a reclamação, seu direito caducou. Ademais, a norma diz "perante o fornecedor", e não "apenas diretamente ao fornecedor". 2 6 Por fim, como é possí­vel reclamar se o consumidor não encontra o fornecedor, pelo fato de o estabe­lecimento ter fechado suas portas?

Recebimento da reclamação: A reclamação pode ser feita a qualquer pessoa ligada ao fornecedor, seja seu representante, presentante, funcionário ou prepos-to. Trata-se de mera questão de equilíbrio das posições contratuais. Quando o con­sumidor compra u m produto não é sempre atendido pelo sócio ou representan­te legal do fornecedor. O reverso também deve valer na hora da reclamação. 2 7

Termo final da suspensão: A decadência fica obstada até a resposta negativa do fornecedor.

20.3.2 Inquérito civil Procedimentos administrativos (gênero): A locução "procedimentos admi­

nistrativos" constitui gênero das espécies inquérito civil, sindicância, protocola­do e procedimento preparatório. Cuidando-se de inquérito civil, obsta a decadên­cia, ficando sujeito ao controle do Conselho Superior do Ministério Público, além de conferir maior rigor às investigações.

Inquérito civil: Trata-se de procedimento, instaurado e presidido pelo Minis­tério Público, que tem por objeto a investigação administrativa prévia destinada a embasar eventual ação civil pública (art. 8 o , LACP). Pelo Código de Defesa do Consumidor, o inquérito civil obsta a decadência (art. 26, CDC).

Legitimidade: Somente o Ministério Público tem a prerrogativa (constitu­cional) de instaurar o inquérito civil. Além disso, o art. 26, CDC, ao preconizar que a instauração deste inquérito obsta a decadência, está outorgando legitimidade ao Ministério Público para ação coletiva na defesa de direitos individuais h o m o ­gêneos do consumidor.

Uma questão que nos parece importante: instaurado o inquérito civil, a de­cadência fica obstada para todos os consumidores (inclusive para aqueles que não fizeram reclamação no prazo de 30 ou 90 dias)? Os que já decaíram do direi­to serão favorecidos? Em nosso modo de ver, depende de algumas circunstâncias. Se, apesar da instauração do inquérito civil, este resultar em simples arquivamen-

RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Op. cit, p.345. No mesmo sentido: RJE 1/165. Contra: RJE 3/75. RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Op. cit, p.346.

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 257

to, cremos que os consumidores individuais, que não reclamaram no respectivo prazo individual, decaem do direito. No entanto, se houver compromisso de ajusta­mento, e o fornecedor se dispuser a sanar o vício para determinados consumidores, é possível que até aqueles já atingidos pela decadência sejam beneficiados (por exemplo: o recall para os adquirentes dos veículos, lote x, ano y). O mesmo pode ser dito se houver procedência de ação civil pública, cuja eficácia é erga omnes.

Reclamação do consumidor perante o Ministério Público: Se o consumidor re­

clamar junto ao Ministério Público, tal reclamação obsta a decadência? Sim, con­siderando que a própria lei outorga um meio oficial de proteção ao consumidor, que não pode ficar desamparado se, por exemplo, o Ministério Público ultrapas­sa o prazo de 30 ou 90 dias para instaurar o inquérito civil. Vale o mesmo racio­cínio para a reclamação perante os demais órgãos de defesa do consumidor (exemplo: Procon).

Controle pelo Conselho Superior do Ministério Público (art. 9 o , LACP): O in­

quérito civil é instaurado, por meio de portaria baixada pelo representante do Ministério Público, que fica sob a sua presidência. Se houver representação (ou reclamação) do particular perante o Ministério Público, que venha indeferi-la ou arquivá-la, cabe recurso ao Conselho Superior, no prazo de dez dias (art. 107, LC Estadual Paulista n. 734/1993). Contra a instauração do inquérito civil, o inves­tigado tem recurso ao Conselho Superior, no prazo de cinco dias (art. 108, LC Estadual Paulista n. 734/1993).

A promoção de arquivamento do inquérito civil submete-se ao reexame e homologação pelo CSMP. Portanto, não fica sujeito ao controle pelo Poder Judi­ciário, salvo a hipótese de ilegalidade, caso em que cabe, por exemplo, mandado de segurança.

Portanto, o Conselho Superior do Ministério Público (CSPM) tem as se­guintes alternativas: 1) homologar a promoção de arquivamento; ou 2) determi­nar que seja proposta ação civil pública, com designação de outro representante do Ministério Público, por meio de ato formal do Procurador-Geral de Justiça; neste caso, o novo promotor de Justiça age como delegado do CSMP, e não como Procurador Geral da Justiça; 2 8 3) determinar sejam feitas outras diligências.

Encerramento do inquérito: Apesar de a LACP não fixar prazo para o término do inquérito civil, no âmbito do Estado de São Paulo, por exemplo, o prazo é de noventa dias (art. 207, RICSMPSP). Não se convencendo da necessidade do ajui-

NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comenta­do, nota 14 ao art. 9 o , LACP.

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258 SÉRGIO SHIMURA

zamento da ação coletiva (lato sensu), o promotor de Justiça deve proceder à pro­moção do arquivamento, remetendo, no prazo de três dias (art. 3 o , LACP) os autos à homologação pelo Conselho Superior do Ministério Público.

Ação civil pública. Interrupção da decadência: Apesar de o art. 26, CDC, não aludir à ação civil pública, o despacho determinante da citação gera a interrup­ção da decadência (art. 202,1, Código Civil, c.c. art. 220, CPC).

Consumidor já atingido pela decadência: A questão que se coloca é como fica a situação do particular (já afetado pela decadência) se houver propositura de ação civil pública?

Dissemos anteriormente que, no caso do inquérito civil, se este resultar em arqui­vamento, os consumidores já afetados pela decadência nada podem fazer, no sentido de reclamar pelos vícios. Havendo compromisso de ajustamento, que inclua tais con­sumidores, pela homogeneidade de situações, os mesmos serão favorecidos pelo ajus­te. Da mesma forma serão favorecidos se houver procedência da ação coletiva.

Entretanto, se determinado consumidor, já tendo decaído de seu direito, não estiver contemplado pelo compromisso de ajustamento ou pelo dispositivo da sen­tença de procedência (pelo fato de o objeto não coincidir com o direito do consu­midor particular), cremos que a solução é transferir a apuração de cada caso para a liquidação individual. Isto é, se houver sentença de procedência (com eficácia erga omnes, art. 103, III, CDC), cada lesado poderá liquidar seu direito, ocasião em que o fornecedor poderá invocar tal objeção, ao fundamento de que aquele determina­do consumidor não se enquadra na situação fixada na sentença, e que já não faz mais jus à sanação do vício, troca do produto, restituição da quantia paga ou abati­mento do preço. 2 9

20.3.3 Consumidor absolutamente incapaz (causa impeditiva) (art. 198, I, c.c. 208, Código Civil)

As mesmas causas de impedimento da prescrição e da decadência, relacio­nadas com a incapacidade absoluta, também são aplicadas nas relações de con­sumo, de modo que, sendo o consumidor menor de 16 anos, os prazos previstos no art. 26, CDC, não incidem.

20.3.4 Garantia contratual Se o produto ou serviço tiver garantia contratual, durante tal período, o pra­

zo da garantia legal (30 ou 90 dias) não flui. Exemplo: o consumidor adquire um

Cf. SILVA, Edgard Moreira da. Op. cit., p.150.

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 259

produto eletrônico, ao qual lhe é conferida a garantia de um ano (garantia contra­tual). O prazo legal só começa a correr a partir do término deste prazo contratual.

20.4 Vício oculto (art. 26, parágrafo 3 o , CDC)

Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito (art. 26, parágrafo 3 o , CDC). Este dispositivo, entre­tanto, confunde vício com defeito. De qualquer modo, quer indicar que o prazo começa a fluir a partir da demonstração do problema (prazo de 30 ou 90 dias).

Cabe aqui um confronto. Pelo Código Civil, o art. 445 reza:

0 adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; seja estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade.

Já o parágrafo I o diz:

Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo con-tar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oiten­ta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis.

Comentando o art. 445, CC, Nelson Nery Jr. e Rosa Nery dizem que a preten­são redibitória submete ao prazo decadencial, mas a pretensão quanti minoris fica sujeita à prescrição. Portanto, somente quanto à decadência, o art. 445, CC, esta­ria tecnicamente correto. 3 0

O Código Civil se reporta ao prazo decadencial, para pedir a redibição ou aba­timento do preço (não é para sanar o vício, como dispõe o art. 18, CDC). De qual­quer forma, o art. 445, CC, se aplica às relações de consumo, pois implica dispo­sitivo mais benéfico ao consumidor (considerando a sua vulnerabilidade e o sistema protetivo).

Aliás, o STJ já vinha entendendo ser aplicável o Código Civil em algumas hi­póteses (exemplo: prazo de vinte anos para ação indenizatória por acidente de veí­culo, como o pai que move ação por dano moral pela morte do filho, passageiro em ônibus - art. 177, CC de 1916). 3 1 Neste sentido: Súmula 194-STJ: "Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos da obra".

NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil, RT, nota ao art. 445. Cf. REsp. n. 464.193/RJ, Rei. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j . 11/11/2002. No mesmo sentido: AGA 168.414/SP, Rei. Min. Barros Monteiro, j . 14/11/2000.

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260 SÉRGIO SHIMURA

O prazo decadencial se renova a cada descoberta: À medida que os vícios forem surgindo com o tempo, o prazo decadencial se renova em relação a cada um (exemplo: veículo que apresenta vários problemas sucessivos, como freio, depois com vazamento de óleo, seguido da parte elétrica). O mesmo se diga quando o produto vai para conserto e volta com o mesmo problema, é o "vai-e-vem" sem solução definitiva; neste caso, o prazo decadencial irá sempre se renovar.

20.4.1 Vida útil do produto. Durabilidade do produto Muitas vezes é difícil constatar se o problema decorre de vício oculto do

produto/serviço ou se provém de seu uso prolongado, relacionado com a sua vida útil. Quer dizer, pode haver dúvida se o vício é preexistente ou or iundo da utilização do produto . Exemplos: problemas de amortecedor de veículo podem configurar vício oculto ou ser conseqüência de seu uso diuturno; u m calçado pode apresentar problemas de fabricação ou decorrente do uso prolongado do mesmo.

Sendo assim, para avaliar a existência de vício redibitório, a vida útil do p rodu to ou serviço deve ser considerada em cada caso concreto, conforme as circunstâncias do fato, peculiaridades do usuário, informações etc. E a questão ingressa no campo probatório. Havendo dúvida, prevalece a interpretação mais favorável ao consumidor . 3 2 Caberá, pois, ao Judiciário verificar se o for­necedor cumpr iu com seu dever de preservar a durabilidade e adequação do produto .

No entanto, apesar de o art. 26, CDC, aludir ao prazo de 90 dias para pro­dutos duráveis, vem surgindo a idéia de que é possível a desconsideração deste dispositivo, se a vida útil normal do produto for superior a tal prazo. A hipótese seguinte pode materializar melhor esta idéia: a pintura de u m carro não é feita para durar apenas noventa dias; logo, mesmo que ultrapassado o prazo de noventa dias, o consumidor poderia reclamar perante o fornecedor do vício. 3 3

SILVA, Edgard Moreira da. Op. Cit, p.128. Cf. LEX-193 - JTJ - TJ/SP. 9 a Câmara, vu, apelação, Des. Rei. Ruiter Oliva, fevereiro de 1997. (TJSP - 9 a Câm. de Direito Privado; Ag. de Instr. n. 33.876-4-São Paulo; Rei. Des. Ruiter Oliva; j . 25/2/1997; v.u.; ementa) BAASP, 2042/102-e, de 16/2/1998, LEX JTJ 193/265. "I - Impõe-se, de início, o exame do tema da decadência, posto que preju­dicial às demais questões, caso acolhida a tese da agravante. A ação funda-se em de­feito de fabricação de um veículo marca Volkswagem, tipo Voyage, ano de fabricação e modelo 1992, adquirido pelo agravado em 22/1/1992. Esse defeito, segundo a ini­cial, reside na pintura do veículo, que sofre um processo de decapagem. Reconhece o autor da ação que a ré vem tentando sanar o defeito, promovendo reparos perma-

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 261

20.5 Prazo prescricional para ação reparatória. Acidente de consumo (art. 27, CDC)

Estatui o art. 27, CDC:

Prescreve em 5 (cinco) anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a conta­gem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.

Direitos individuais: Caso se trate de lesão a direito individual do consumidor, o prazo para pretensão à reparação de danos é de cinco anos a partir do conheci­mento do dano e de sua autoria, requisitos estes cumulativos, e não alternativos. Por exemplo: se o consumidor consome produtos no restaurante A, depois no restau-

nentes (fls. 17). De fato, está comprovado que por duas vezes a agravante efetuou reparos na pintura do teto do veículo, uma em abril de 1993 e outra em agosto de 1995 (fls. 20). Foram serviços prestados gratuitamente como cortesia ao cliente, já que o prazo de garantia de um ano já se escoara, segundo alegado pela agravante na contestação (fls. 23-24). É inegável, então, que alguma anomalia a pintura do teto do veículo apresentava. O autor assevera que o problema decorre de defeito de fabrica­ção. A verificação do fato, portanto, demanda conhecimentos especializados, sendo necessária a realização de prova técnica. Com isso se quer dizer que o defeito de pin­tura de automóvel zero quilômetro, como a que o agravado alega existir, não se enquadra na categoria dos vícios aparentes, ou de fácil constatação, mas sim na cate­goria dos vícios ocultos, de modo que o direito de reclamar caduca no prazo de noventa dias, contado do momento em que ficar evidenciado o defeito (art. 26, inc. II e parágrafo 3 o , do Código de Proteção ao Consumidor, aprovado pela Lei n. 8.078, de 1/9/1990). O término do prazo de garantia contratual, para a hipótese, não inibe a garantia legal prevista para os vícios de qualidade por inadequação, pois o Código de Proteção do Consumidor estabelece a durabilidade como um requisito essencial de produtos e serviços (art. 19). Como escreve Antônio Herman de Vasconcellos e Ben-jamin, a categoria dos vícios de qualidade por inadequação tem que ver "por um lado, com o desempenho dos produtos e serviços, ou seja, com o cumprimento de sua fina­lidade em acordo com a expectativa legítima do consumidor. De outro, manifesta-se com um caráter de durabilidade, isto é, a garantia de que o produto ou serviço não per­derá, total ou parcialmente, de forma prematura, sua utilidade, também em sintonia com a expectativa legítima do consumidor" (BENJAMIN, Antônio Herman de Vascon­cellos e. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. São Paulo, Saraiva, 1991, p.39)."[...] Está muito claramente fixado, em todos nós, a concepção de que a pintura de um veículo novo não pode ter a durabilidade, ou vida útil, de um pouco mais de um ano. Nem a fabricante se arvoraria a defender que a pintura de seus veículos pudessem, em condições normais de uso e conservação, ter duração tão efêmera. Está muito clara­mente fixado, em todos nós, a concepção de que a pintura de um veículo novo não pode

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262 SÉRGIO SHIMURA

rante B, e vem a sofrer intoxicação alimentar, somente depois de descoberta a auto­ria é que o prazo prescricional começa a fluir.

No entanto, também é possível que haja vários responsáveis, caso em que a prescrição começa a fluir a partir do conhecimento da autoria de um deles; quan­to aos desconhecidos, a prescrição não terá início. 3 4

A indenização inclui a reparação tanto pelos danos materiais como morais, como já se decidiu:

CONSUMIDOR. VEÍCULO. INÚMEROS DEFEITOS. Prosseguindo o julgamento, a Turma, por maioria, entendeu que, no caso, ficou demonstrado de modo incontroverso que o recorrido adquiriu automóvel zero-quilômetro, o qual, em seus primeiros meses de uso, apresentou mais de dez defeitos, em distintos componentes, sendo possível afirmar que o número de defeitos apresentados pelo veículo (dois dos quais no sistema de freios, o qual falhou com o veículo em pleno movimento) ultrapassou, em muito, a expectativa nutrida pelo recorrido ao adquirir seu automóvel novo. A excessiva quantidade de defeitos causou ao adquirente do veículo frustração, constrangimento e angústia, ele­mentos configuradores do dano moral. Ressaltou-se que o regime previsto no art. 18 do CDC não afasta o direito do consumidor à reparação por danos morais nas hipóteses em que o vício do produto ocasionar ao adquirente dor, vexame, sofrimento ou humilha­ção, capazes de ultrapassar a esfera do mero dissabor ou aborrecimento. (REsp 324.629-

MG, Rei. Min. Nancy Andrighi, j . 10/12/2002)

ter a durabilidade, ou vida útil, de pouco mais de um ano. Se o defeito era de fábrica, ou não era, não se sabe, apenas se sabendo que a agravante efetuou o serviço de pintura do teto do veículo sem nada cobrar do agravado (fls. 20). Então, a decadência de reclamar somente se verificaria se tivesse decorrido prazo de noventa dias, a contar do momento em que o defei­to ficou evidenciado, e, neste particular, nada demonstrou a agravante para justificar a cadu­cidade do direito do agravado. Tem-se, então, que o agravado não ficou inerte, e de imedia­to, assim que evidenciado o defeito, reclamou providências da agravante. E da mesma forma, novas providências reclamou quando, um pouco mais de dois anos, os mesmos pro­blemas novamente ficaram evidenciados. Atente-se para a circunstância de que, mesmo depois de passados mais de três anos e meio da aquisição do veículo, o defeito da pintura apenas apareceu no teto do veículo, significando dizer que a pintura das outras partes do veículo não estavam sofrendo o processo de decapagem, ou seja, não apresentavam qual­quer defeito, a confirmar que a durabilidade da pintura, em condições normais, de uso e conservação, pode muito bem superar a marca de quatro anos. Aliás, nada produziu a agra­vante para mostrar uma vida útil interior a essa. Desse modo, tendo em vista a garantia legal, a durabilidade normal da pintura, do vício oculto, e de não ter o consumidor permanecido iner­te, assim que evidenciado o defeito que apregoa, manifestando a reclamação no prazo legal, não ocorreu a decadência, ficando, em conseqüência, desacolhida a argüição". (g.n.) SANTANA, Hector Valverde. Op. cit., p.101-38.

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 263

Na mesma linha do Código Civil, o juiz não pode conhecer de ofício a pres­crição, seja porque se trata de direitos patrimoniais (reparação dos danos), seja porque o art. 194, CC, é expresso a esse respeito. 3 5

Direitos coletivos ou difusos: A prescrição é a perda do direito de ação pela inér­cia, pelo prazo previsto em lei para seu exercício, pelo titular do direito. Cabe in­dagar: como aplicar o prazo prescricional de cinco anos para a reparação de danos decorrentes de propaganda enganosa? Como dizer que ocorre a prescrição para a pretensão de indenização pelos danos causados por matadouro irregular, que, sobre ofender direitos do consumidor, contraria normas de direito ambiental? E a questão de medicamentos oferecidos ao mercado, sem poder ativo ou, pior, con­tendo componentes letais?

Portanto, quando se está diante de direitos coletivos ou difusos, na qual pre-pondera a legitimidade de certos entes na sua defesa em juízo, não há prazo pres­cricional, sendo dezarrazoado invocar as regras privatísticas da prescrição para penalizar toda a sociedade. 3 6

20.5.1 Contrato de seguro Se a ação for para o recebimento do valor do seguro (execução do contrato),

o prazo é de um ano (art. 206, parágrafo I o , CC) . 3 7 Portanto, a relação jurídica envolve o segurado e a seguradora, e não terceiros ou o beneficiário. Porém, se a ação for indenizatória, pelo dano causado em razão do serviço não prestado, o prazo é de cinco anos (art. 27, CDC) (exemplo: a seguradora não autoriza o con­serto do veículo, pertencente a taxista, que fica três meses sem poder trabalhar).

A propósito, cumpre observar que o art. 763, CC, proclama que: "Não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes da sua purgação". No entanto, como sublinha Josué Rios, é preciso que haja prévia notificação do devedor para fins de constituição em mora.

Quer dizer, estando em atraso no pagamento das prestações do prêmio, o devedor-segurado deve ser notificado para ser constituído em mora, uma vez

Contra: Héctor Valverde Santana entende ser possível ao juiz conhecer, de ofício, da prescrição, pelo fato de o CDC envolver normas de ordem pública. (Op. cit, p.138) NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo Código Civil, nota ao art. 27, CDC. No mesmo sentido: SANTANA, Hector Valverde. Op. cit, p.l38. REsp. n. 402.953/RJ, Rei. Min. Barros Monteiro, j . 16/4/2002. No mesmo sentido: REsp. n. 401.369/SC, Rei. Min. Aldir Passarinho Jr., j . 16/4/2002.

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264 SÉRGIO SHIMURA

que o próprio art. 763, CC, outorga ao segurado a oportunidade para a respectiva purgação. Então, havendo sinistro antes da purgação da mora, o segurado precisa ser notificado para quitar o débito em atraso. Não o fazendo, aí sim, está constituí­do em mora, para fins de recusa, pela seguradora, no pagamento do seguro. 3 8

20.6 Bancos de dados e cadastros

O art. 43, CDC, preconiza que:

0 consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações exis­tentes em cadastro, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.

O parágrafo I o diz:

Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas refe­rentes a período superior a 5 (cinco) anos.

E o parágrafo 5 o :

Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão for­necidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.

Neste contexto, o devedor inadimplente pode ter o seu n o m e negativado no sistema de proteção ao crédito (exemplo: Serasa, SPC). O nome do devedor pode figurar nos cadastros pelos prazo máximo de cinco anos (parágrafo I o , art. 43). Porém, prescrita a ação de cobrança, o sistema de proteção de crédito não pode mais dar informações negativas do consumidor (exemplo: pode constar por dois, três, quatro, até cinco anos) (parágrafo 5 o , art. 43).

O Código Civil prevê o prazo prescricional de três anos, para a pretensão de haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as dis­posições de lei especial (art. 206, parágrafo 3 o , VIII). No entanto, a negativação pressupõe: existência de dívida líquida e certa; data para pagamento.

Assim, surge a dúvida: o Serasa pode manter negativado o nome do devedor por cinco anos, se a ação de cobrança prescreve em três anos? A nossa resposta é positiva. O prazo de prescrição não se confunde com o prazo de duração do cadastro.

3 8 Cf. REsp. n. 316.449-SP, Rei. Min. Aldir Passarinho Júnior, j . 9/10/2002 (Precedentes citados: REsp. n. 323.251-SP, DJ 8/4/2002, e REsp. n. 76.362-MT, DJ 1/4/1996).

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA 265

Além disso, o art. 206, parágrafo 3 o , VIII, CC, alude a pagamento de título de crédito (exemplo: cheque e nota promissória). Prescrita a ação executiva, cabe ainda ação ordinária de cobrança, em que serão discutidas todos os aspectos da relação negociai subjacente ao título de crédito (exemplo: dívida fundada em con­trato de mútuo, art. 206, parágrafo 5 o , I, CC) . 3 9

E o parágrafo 5 o , art. 43, CDC, vale-se da locução: "Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor", hipótese que não se confunde, necessariamente, com aquela prevista no inc. VIII, parágrafo 3 o , art. 206, CC.

Silvânio Covas, comentando o REsp. n. 473.873 (Rei. Min. Nancy Andrigui, DJ de 15/6/2003), escreve que a decisão proferida pelo STJ admitiu a existência de dois limites temporais para a permanência de informações nos bancos de da­dos. Assim, independentemente da prescrição do direito da ação executiva (ação cambial) do título de crédito, que representa o débito inscrito no banco de dados em prazo inferior a cinco anos, a anotação de inadimplência permanecerá pelo prazo máximo de cinco anos, ou enquanto não se consumar a prescrição relati­va à cobrança do débito {ação causai).40

Neste sentido: decisão liminar proferida nos autos n. 000.03.015185-6, juiz Guilher­me Santini Teodoro (Tribuna do direito-, maio/2003). COVAS, Silvânio. Ainda sobre o prazo de permanência de informações nos bancos de dados (Tribuna do direito, jun./2003), com alusão a Leonardo Roscoe Bessa e Fábio Ulhoa Coelho. Tribuna do direito, mar.-abr./2003.

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A P R E S C R I Ç Ã O D A P R E T E N S Ã O E D A E X C E Ç Ã O N O N O V O C Ó D I G O C IV I L

RAPHAEL A U G U S T O SOFIATI DE Q U E I R O Z 1 *

Sumário 1. Introdução. 2. Sobre a pretensão. 3. Sobre a exce­ção. 4. Das conclusões: o objeto da prescrição nos arts. 189 e 190 do Código Civil.

1 . INTRODUÇÃO

O novo Código Civil em vigor, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, preten­deu, além de modernizar o direito privado pátrio, corrigir algumas improprieda-des técnicas existentes no Código anterior. No entanto, no afã de corrigir estes men­cionados equívocos, seguindo as críticas e sugestões de mais de oitenta anos de doutrina, acabou por cometer outros, que, de certa forma, são quase inescusáveis.

O antigo texto começa a deixar saudades. 2

Uma dessas correções, por exemplo, diz respeito ao instituto da prescrição. Compare-se o texto atual e o anterior:

Art. 177 do Código Civil de 1916. As ações pessoais prescrevem, ordinariamente, em 20 (vinte) anos, as reais em 10 (dez), entre presentes, e entre ausentes em 15 (quin-

Professor de Direito Processual Civil e Direito Administrativo na Escola da Magistra­tura do Estado do Pdo de Janeiro (Emerj) e na Fundação Escola Superior da Defenso-ria Pública do Estado do Rio de Janeiro (Fesudeperj). Pós-graduado pela Emerj. Pro­curador do Estado do Rio de Janeiro. Advogado no Rio de Janeiro e em São Paulo. Sócio Efetivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.

1 Críticas e comentários serão muito bem-vindos: [email protected]. 2 DOLIGER, Jacob. Saudades de D. Pedro II. Artigo publicado no jornal O Globo,

maio/2003.

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A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO E DA EXCEÇÃO NO NOVO CÓDIGO CIVIL 267

ze), contados da data em que poderiam ter sido propostas. (0 art. 178 também faz menção à prescrição da ação), (g.n.) Art. 189 (do Código Civil de 2002). Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206. (g.n.) Art. 190 (do Código Civil de 2002). A exceção prescreve no mesmo prazo em que a pre­tensão, (g.n.)

Percebe-se que o novo texto teve a nítida preocupação de rever o conceito de prescrição, optando por eleger, como alvo desta, não mais a ação, mas a pre­tensão. Além disso, inovou, trazendo norma expressa acerca da prescrição da "exceção".

O objetivo destas breves notas é buscar um entendimento para os conceitos de pretensão e de exceção no novo Código Civil. Não se tratará de forma apro­fundada o instituto da prescrição, mas tão-somente alguns dos seus aspectos pro­cessuais, remetendo o leitor para outro estudo, também na presente obra coletiva, que cuida do tema com maior abrangência. 3

2. SOBRE A PRETENSÃO4

Há muito se discute acerca do objeto do processo. Em um passado recente, era comum a manifestação da doutrina no sentido de ser a lide o objeto do pro­cesso, mesmo sabendo-se que

O processo não é a lide, mas a reproduz, ou a representa perante o juiz. A lide não é o processo, mas está no processo. Deve estar no processo, se este serve para compô-la. Sem a lide, o processo é como uma tela sem o quadro. A lide é certamente um pres­suposto do processo, como a natureza é um pressuposto da pintura que a retrata. Mas é também o objeto dos atos, em que consiste o processo, onde não se poderia conhe­cer a composição do processo, se não se conhecesse, antes de tudo, o que seja a lide. Por isso entre lide e processo há uma relação de continente e conteúdo. Ação, processo e lide são, pois, três categorias autônomas. (BUZAID, Alfredo. Do agravo de petição no sistema do Código de Processo Civil. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 1956, p.94) (g.n.)

Tal entendimento foi albergado pelo Código de Processo Civil vigente, por conta da influência da doutrina de Liebman 5 no pensamento de Buzaid, Minis-

3 SHIMURA, Sérgio. Prescrição e decadência. 4 Cf. sobre o tema BUZA1 D, Alfredo. Estudos e pareceres de direito processual civil. Da lide:

estudo sobre o objeto litigioso. São Paulo, RT, 2002, p.72 e ss. 5 LIEBMAN, Enrico Túlio. Processo de execução. São Paulo, Bestbook, 2001, p.83.

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268 RAPHAEL AUGUSTO SOFIATI DE QUEIROZ

tro da Justiça na época da elaboração do Código de 1973. Como pode-se verificar pela leitura do item 6, do título II - da Exposição de Motivos do Código de Proces­so Civil —, os elaboradores do texto seguiram a doutrina de Carnelutti e afirma­ram, in verbis, que: "A lide é, portanto, o objeto principal do processo e nela se exprimem as aspirações em conflito de ambos os litigantes", (g.n.)

Ocorre que, com a evolução da doutrina, sobretudo no que tange ao estudo da jurisdição voluntária, 6 percebeu-se que, embora tenha utilidade o conceito de lide para o entendimento do objeto do processo, ela não é fundamental para a existência deste.

Mais correto, portanto, é o entendimento moderno de que o objeto do pro­cesso é a pretensão, entendimento este que melhor se adapta aos conflitos que envolvam interesses indisponíveis e as lides no chamado "direito processual pú­blico".7 Confira-se:

Todo processo tem seu objeto, que é a pretensão trazida pelo demandante ao juiz, em busca de satisfação. [...] Conhecidíssima doutrina, que o Código de Processo Civil endossa, sustenta que o objeto do processo seria representado pela lide - sendo esta o conflito de interesses qualifi­cado por uma pretensão resistida (Carnelutti). Tal conceito, conquanto preciso e inega­velmente útil, não merece receber todo o destaque que em passado recente lhe dava a doutrina brasileira, porque nem sempre o processo e o exercício da jurisdição dependem da existência de uma lide; toda a teoria desta gira em torno dos confli­tos relacionados com os bens e direitos indisponíveis, especialmente no campo do direito das obrigações, não sendo de fácil aplicação aos conflitos regidos pelo direi­to público ou referentes a direitos indisponíveis. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Ins­tituições de direito processual civil. São Paulo, Malheiros, 2001, v.I, p.296) (g.n.)

Tomando-se por premissa, então, que o objeto do processo é a pretensão, resta saber se o novo Código Civil utiliza o termo com a mesma conotação do processo civil.

A seqüência não é original nem inovadora: com o direito autônomo e abs­trato de ação se provoca a jurisdição, por meio do ato de demandar, instrumen-

6 Cf., por todos, GRECO, Leonardo. Jurisdição voluntária moderna. São Paulo, Dialéti­ca, 2003, p.25.

7 Influência do direito material público - constitucional, administrativo e tributário, principalmente - , no processo civil brasileiro. Para um melhor esclarecimento sobre o tema, remete-se o leitor a seguinte obra coletiva: SALLES, Carlos Alberto de (org.). Processo civil e interesse público. São Paulo, RT, 2003; em especial o artigo de Cassio Scarpinetla Bueno, p.23 e ss.

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talizado por uma petição inicial que materializa e resume a pretensão. A preten­são, ou seja, a intenção de sujeitar alguém a uma vontade própria, quando encon­tra resistência, passa a ser qualificada por esta. Tal equação ganha autonomia, t ransmudando-se em lide.

Note-se que o processo, como instrumento para a prestação da jurisdição, não necessita da lide como elemento fundamental, ou melhor, como seu objeto, já que existem, conforme já mencionado, processos sem lide. O processo neces­sita é da pretensão.

Essa é a inserção do tema no direito processual civil. Contudo, assim como se fala em ação de direito material, também se fala em pretensão de direito material.

Para o correto entendimento do que é "ação de direito material", busca-se o auxílio do direito constitucional, no que tange à distinção entre direito, garantia e remédio constitucional. 8 Explica-se.

Existe um núcleo de direitos que uma nova Consti tuição simplesmente os reconhece e declara. 9 Tais direitos não passaram a existir por conta da nova ordem constitucional. Fazem eles parte de u m núcleo essencial, inegociável, fruto da própria evolução democrática das civilizações ocidentais modernas , desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, até os dias de hoje.

Sabedor de que não basta reconhecer o direito, o constituinte originário cons­titui garantias no intuito de proteger os direitos declarados. Tais garantias envol­vem os direitos, criando uma espécie de escudo contra violações.

Mas não é suficiente garantir, já que, mesmo garantindo, pode o direito ser lesionado, violando-se a garantia. Portanto, o direito necessita de u m remédio que restabeleça a sua garantia originária.

Exemplifica-se: todos têm o direito de ir e vir, protegido pela Constituição, como direito genérico de liberdade. Tal direito só pode ser suprimido mediante o devido processo legal. Ou seja, a Constituição declarou o direito de liberdade e o garantiu, mediante a cláusula do devido processo. Uma vez violada tal garan-

Cf., a este propósito, MORAES, Guilherme Pena de. Direitos fundamentais - Conflitos e soluções. São Paulo, Labor Júris, 2000, p.38 e ss. Não se está aqui defendendo a tese da existência de direitos supraconstitucionais, mas simplesmente reconhecendo a proibição do retrocesso. Não cabe, no âmbito deste es­tudo, aprofundar tal discussão, entretanto, pode o leitor remeter à seguinte obra: MI­RANDA, Jorge. Manual de direito constitucional - Direitos fundamentais. 2.ed. Coim­bra, Coimbra Editora, 1998, t.IV, p.12 e ss., em especial p.29.

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tia, o direito, de liberdade é lesionado. Para restabelecer a garantia e restaurar o direito, vem em socorro do sujeito de direito u m remédio, que é o habeas corpus.

A síntese necessária é: para o exercício do direito de liberdade há a garantia do devido processo legal e o remédio do habeas corpus.

Ocorre que a Constituição previu a possibilidade de o próprio habeas cor­pus ser objeto de violação, e o elencou no rol dos direitos fundamentais, passan­do a ser, ele próprio, u m remédio e um direito. Ou seja, a ação de habeas corpus t ambém é u m direito, e não pode ser suprimido (art. 60, parágrafo 4 o , IV, CF).

Dessa forma, o habeas corpus pode ser analisado sob duas perspectivas: a do direito processual, como remédio ou ação constitucional, ou, ainda, como u m di­reito, qual seja, o direito constitucional fundamental de se lançar mão do habeas corpus. No primeiro caso, analisa-se o instituto como ação processual, no segun­do caso, como ação material.

Transferindo-se o raciocínio para o genérico direito de ação, tem-se a se­guinte noção: há a ação, sob a perspectiva do processo, e há também o direito ma­terial de ação, consistente na busca da tutela efetiva de u m dado direito.

[...] como garantia da eficácia concreta do direito material, a ação ê ela própria um direito fundamental sem o qual nenhum valor teriam todos os demais, que restariam meras proclamações vazias e sem conseqüências práticas nas declarações dos direi­tos. (GRECO, Leonardo. A teoria da ação no processo civil. São Paulo, Dialética, 2003, p.11)(g.n.)

Até que ponto se distinguem ação e pretensão? Pode-se aplicar, para a preten­são, o mesmo critério diferenciador de ação de direito material e ação processual? Como premissa, há que se saber o que é a pretensão de direito material.

As lições a seguir são esclarecedoras:

Coube a Adolf Wach forjar a distinção entre a pretensão e a pretensão processual. Tal fato ocorreu pela necessidade de se considerar que também se tinha contra o Esta­do uma exigência de tutela dos direitos, distinta daquela exigência que se faria valer contra o devedor. [...] A linha da teoria da pretensão como um ato jurídico muito se valeu das conclusões de Wach, ao ponto de se identificarem pretensão e pretensão processual, mas com um conceito determinado pela última: por isso, esta poderia ainda ser definida como a vontade declarada de um sujeito parcial de obter um dado provimento jurisdiáonal. (FONTES, André. A pretensão como situação jurídica subjetiva. Belo Horizonte, Del Rey, 2002, p. 40-1) (g.n.)

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A pretensão é um ato não um poder; algo que alguém faz, não que alguém tem; uma

manifestação, não uma superioridade de tal vontade. Não somente a pretensão é um ato e, portanto, uma manifestação de vontade, como também um daqueles atos que se denominam declarações de vontade [...]. (CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. Campinas, Servanda, 1999, v.I, p.80) (g.n.)

Note-se que, enquanto o direito processual de ação é o direito de provocar a jurisdição, a pretensão processual é a "vontade declarada" de obter u m dado p r o ­v imen to jur i sd ic iona l , j á que independe , para a m o d e r n a teoria da ação, o d i r e i ­to de ação do direito mater ia l que a fundamenta ( e m oposição à teor ia concreta do direito de ação ) .

Se a pretensão processual é a vontade declarada, independentemente dela ser legít ima o u não , a pretensão mater ia l é o ato de exigir de out ro u m a ação o u omissão, essa, verdade i ramente legít ima. O u seja, a pretensão de direito mater ia l é o ato de exigir, enquanto a pretensão processual é toda a exigência cont ida na demanda , podendo , inc lusive, conter diversas pretensões mater ia i s . 1 0

Resta saber, então, se o novo Cód igo C i v i l ut i l izou, e m seu art. 189, o vocá ­bu lo pretensão c o m o o ato de exigir o u c o m o a me ra declaração de u m a i n t e n ­ção de exigir de a lguém u m dado compor t amen to .

Pede-se vên ia para discordar dos que sustentam que o novo texto ut i l izou o vocábu lo pretensão c o m o s i nôn imo de direito de ação (processual ) , tal c o m o na transcr ição abaixo, comen tando a redação do art. 189 antes m e s m o da pub l i ca ­ção d o Cód igo :

[...] só poderá ocorrer a prescrição da pretensão, permitindo inferir que ainda que extinta esta (no sentido de exigibilidade ou ação judicial) o direito permanece, justi­ficado destarte a regra do art. 970 do Código Civil, a qual, acatando a melhor doutri­na, diz que aquele que pagou a dívida prescrita não tem direito a repetição. Direito de ação e pretensão no sentido dinâmico, pelos idealizadores do Projeto, são pois termos unívocos. (VALÉRIO, J . N. Vargas. A decadência própria e imprópria no direito civil e no direito do trabalho. São Paulo, LTr, 1999)

1 0 Tal distinção é de suma importância, já que há entendimentos, por exemplo, no sen­tido de ser cabível o recurso de apelação contra a decisão que indefere liminarmente a petição da reconvenção. Trata-se de uma questão de premissas: entender-se como objeto do processo a pretensão processual, que engloba todas as pretensões materiais; ou, então, a pretensão material, que desencadearia o raciocínio de que para cada pe­dido há uma pretensão, para cada pretensão há uma ação, para cada ação há um pro­cesso, e, portanto, a mencionada decisão de indeferimento extinguiu um dos proces­sos, cabendo, portanto, o recurso de apelação.

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Caso o legislador se utilizasse do vocábulo "pretensão" n o sentido da preten­são de direito processual, estaria fazendo a prescrição inc id i r sobre toda a vontade declarada na demanda , o u , a inda, toda a exigência cont ida nesta. Para tanto, esta­r ia incor rendo e m erro, pois a vontade declarada é au tônoma, e depende do p r o ­v i m e n t o jur i sd ic iona l para se tornar concreta. Sendo assim, o Cód igo estaria subs­t i tu indo u m equívoco po r outro , já que estaria a f i rmando que, u m a vez prescrita a pretensão, o sujeito de direito estaria imped ido de declarar a sua vontade , i m p e ­d ido de ter a intenção de sujeitar a lguém à sua vontade. E isto não ocorre.

A i n d a que tenha ocor r ido a prescrição, o sujeito do direito pode usar o seu direi to de ação para f o rmu la r a sua pretensão - processual - de desejar de a lguém de te rminado compor t amen to . Es ta pretensão é au tônoma , ta l c o m o o direito de ação é a u t ô n o m o e m relação ao direito mater ia l que o fundamenta .

S ó resta conc lu i r , então, que a pretensão refer ida n o art . 189 é a pretensão de direi to mater ia l , o u seja, o ato de exigir de a lguém dado compo r t amen to (e não o di re i to de dec larar a von tade de exigir de a lguém o m e n c i o n a d o c o m p o r ­t a m e n t o ) .

P a r a cor roborar o rac ioc ín io :

A pretensão, para o art. 189 tem um sentido que se aproxima não da ação moderna, mas

da antiga adio do direito romano. Para evitar dificuldades teóricas, o Código teve o cuidado de dizer o que era a pretensão atingível pela força extintiva da prescrição, servindo-se, para tanto, do conceito de SAVIGNY a respeito da ação em sentido mate­

rial, que se contrapõe a de ação em sentido processual [...]. (THEODORO JÚNIOR, Hum­berto. Comentários ao novo Código Civil. 2.ed. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). Rio de Janeiro, Forense, 2003, v.III, t.ll, p.152-3) (g.n.)

Sabendo-se que é a idéia de pretensão de direito mater ia l que está expressa n o art . 189 d o C C , tecer-se-á a seguir a lguns comentár ios acerca do art . 190, no que tange às exceções, para , então, e m out ro tóp ico , enfrentar-se o tema "p resc r i ­ç ã o " e definir-se po r u m a posição e m relação ao seu objeto.

3. SOBRE A EXCEÇÃO

Va le no ta r que a redação do art. 190 do n o v o Cód igo C i v i l guarda u m a incr í ve l semelhança c o m a redação dada ao verbete na S ú m u l a n. 150 do S u p r e ­m o T r ibuna l Federa l . Poder i a se dizer que as redações de ambos os inst i tutos são quase idênt icas, não fosse pela referência equivocada ao te rmo " a ção " e pela refe ­rência à palavra "execução", e m lugar de "exceção". N o mais , o sentido do texto é o m e s m o . In verbis:

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Súmula n. 150 do STF - Prescreve a execução no mesmo prazo da prescrição da ação. Art. 190, do CC- A exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão.

Por conta de tal semelhança, há quem sustente que houve um erro de grafia e que o artigo 190 do CC, na verdade, inspirou-se na orientação do Pretório Ex-celso. Tal tese não merece acolhimento.

O novo Código, como já mencionado, entendeu por bem corrigir um equí­voco técnico da legislação anterior e afastar a tese de que a ação é que se subme­te à prescrição, conforme o art. 189, que expressamente vincula a pretensão à prescrição. Desta forma, não seria lógico sustentar que, logo no dispositivo se­guinte, o Código insistiria no erro que entendeu corrigir: se a ação não prescreve, não prescreve nem para as pretensões resistidas nem para as pretensões insatis­feitas. Explica-se.

No processo de conhecimento, tem-se delimitada uma lide que se qualifica por uma pretensão resistida, no qual se espera do juiz uma atividade intelectiva. Assim, por meio de uma sucessão de atos (dialética), com a garantia do binômio informação/oportunidade (contraditório), e formado seu convencimento, o juiz julgará o mérito da causa. No processo de execução, tem-se uma pretensão insa­tisfeita, não mais resistida, uma vez que já se encontra perfeitamente definida e delimitada, no qual não se espera do juiz nada mais que atos que culminem na satisfação do direito (já definido) do credor.

A distinção fundamental entre o processo de conhecimento e o executivo reside, pois, no endereçamento teleológico de cada um deles: enquanto no primeiro toda a ativi­dade converge a um ato final de acertamento (sentença), no segundo os atos todos, mate­riais ou eventualmente decisórios, visam a preparar o ato material final satisfativo de direito. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 7.ed. São Paulo, Malheiros, 2000, p.114) (g.n.)

Desta forma, se o direito de ação é independente do direito material para o processo de conhecimento, também o é para o processo de execução. 1 1 A fim de corroborar a tese aqui exposta, confira-se:

É que não é exato falar de prescrição da execução ou da ação executaria: os direitos é que prescrevem. A prescrição atinge a situação jurídica material, consolidando pelo decurso do tempo a situação de fato existente e extinguindo os direitos que não fo­ram exercitados no prazo fixado por lei. (LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execu­ção. São Paulo, Bestbook, 2001, p.109) (g.n.)

1 1 Cf., por todos, DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil, p.363.

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U m a vez def in ido o pon to de part ida acerca da análise do art . 190 do C C , resta saber se a segunda opção para a redação deste dispositivo, qua l seja, a de que o legislador rea lmente quis v incu la r a exceção à prescrição, está correta.

O processo, c o m o referência dialética, traduz-se na posição do demandante , o qual deseja que a lguém se sujeite à sua vontade, e na posição do demandado , o u seja, aquele a q u e m se dir ige a sujeição. Note-se que se de u m lado a pretensão r e ­flete a exigência de declaração de vontade , do out ro lado há a resistência à p r e ­tensão, consubstanc iada na exceção (defesa ) . 1 2

C o n t u d o , não se está aqu i sustentando que a bi lateral idade do processo, c o ­m o reflexo da bi lateral idade da ação, signif ique que a defesa é a "ação do réu". I n s ­taurado o processo, o con junto de poderes de impu lso é igua lmente garant ido às partes. A di ferença entre ação e defesa é ver i f icável antes m e s m o de instaurada a relação processual : falta a esta o poder de inic iat iva processual da p r ime i r a . 1 3

Q u a n d o se a f i rma que " ao direito de ação corresponde o direi to de exce­ção" , 1 4 c o m o v isto, não se está igua lando as duas figuras se não para demonst ra r que elas são equivalentes exclusivamente na dialética processual, a part i r do m o ­m e n t o e m que o processo se instaura.

E m síntese: p o r v ia da ação, assim c o m o pela v ia da exceção, o que se busca é u m p r o v i m e n t o jur i sd ic iona l , que var ia n o caso da ação, mas que, n o caso da exceção, consubstancia-se e m u m p rov imen to declaratór io negativo.

Desta maneira, a ação, como atividade dirigida a apresentar ao juiz uma proposta de

providência, não é somente própria do autor; também o demandado, mesmo quando se limite a pedira rejeição da demanda contrária, vem, em substância, solicitarão juiz

que pronuncie uma sentença de declaração negativa de mera certeza, isto é, uma pro­vidência diferente da pedida pelo autor, e favorável a ele como demandado. (CALA-MANDREI, Piero. Direito processual civil, p.193) (g.n)

Se a exceção é, e m equiparação ao direito de provocar a jur isdição para se ped i r que a lguém se sujeite à sua vontade, o direito de resistir, então perante a a u ­tor idade jur isd ic iona l , ao pedido de ou t r em e, a inda, se o pr ime i ro não é prescri-t ível , o segundo, por conseqüência lógica, t a m b é m não se submete à prescrição.

1 2 Confira-se, a este respeito, CALAMANDREI, Piero. Direito processual civil. São Paulo, Bookseller, 1999, v.I, p.192.

1 3 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p.356. 1 4 CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Elementos de teoria geral do processo. 7.ed. Rio de

Janeiro, Forense, 2000, p.159.

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E n f i m , se não é a exceção que prescreve, tal c o m o o rac ioc ín io que se expôs até o f inal do i tem 2 do presente texto, passa-se então ao p róx imo i tem, no qual se pretende ind icar o específico objeto da prescr ição para os efeitos dos arts. 189 e 190 do novo Cód igo C i v i l .

4. DAS CONCLUSÕES: O OBJETO DA PRESCRIÇÃO15

NOS ARTS. 189 E 190 DO CÓDIGO CIVIL

H á autores que sustentam, c o m o já di to, a "prescr ição da ação", 1 6 tese esta superada, con fo rme v isto anter iormente . Ou t ros autores, po r sua vez, sustentam que é o p rópr io direito mater ia l que prescreve. 1 7 Todav ia , há autores que ado tam a tese acolhida pelo novo texto c iv i l , cujo objeto da prescr ição é a pretensão. 1 8

Frise-se, con tudo , que há u m a inovadora posição contrár ia a todas as demais . 1 9

Afastada a opção pela p r ime i ra , restam a segunda e a terceira correntes. C o m a dev ida vênia aos defensores da p r ime i ra e da segunda corrente, a c i ­

tação abaixo objet ivamente encerra a questão:

Bem pesadas as coisas, pois, a prescrição, por si só, na realidade não subtrai ao cre­dor o que quer que seja. Decerto não lhe subtrai a ação, que pode ser até eficazmen­te exercitada. Tampouco lhe subtrai o direito: basta ver que o pagamento de dívida prescrita não comporta repetição (Código de 1916, art. 970; de 2002, art. 882), o que significa que não foi indevido. Nem mesmo de pretensão - a despeito do que se lê no art. 189 do novo Código - fica desprovido o credor, é perfeitamente concebível que, reclamando a prestação em juízo, ele venha a ser atendido. 0 que a prescrição faz é dar ao devedor um escudo com que paralisar, caso queira, a arma usada pelo cre-

1 5 É sempre merecedor de referência o brilhante estudo de AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e identificar as ações im­prescritíveis. São Paulo, RT, p.300-7.

1 6 GOMES, Orlando. Contratos. 20.ed. Rio de Janeiro, Forense, 2000, p.80; DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 6.ed. São Paulo, Saraiva, 2000, p.190.

1 7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 18.ed. Rio de Janeiro, Foren­se, 1997, v.I, p.435; CÂMARA, Alexandre Freitas. Da natureza prescricional do prazo para o exercício do direito à renovação da locação empresarial. Revista da Associação dos Advogados do Rio de Janeiro - AARJ, Rio de Janeiro, Lumen Júris, v.III, p.9,2003.

1 8 THEODORO JÚNIOR, Humberto. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). Co­mentários ao novo Código Civil. 2.ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003, v.III, t.II, p.154.

1 9 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre a pretensão e prescrição no sistema do novo Código Civil brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil - RTDC, v.ll, p.74, 2003.

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dor. Ela se enquadra dogmaticamente entre as exceções materiais ou substanciais-em linguagem processual, defesas de mérito de que o juiz não pode conhecer de ofí­cio, mas somente quando alegadas pelo réu. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre a pretensão e prescrição no sistema do Novo Código Civil brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil - RDTC, v.11, p.75) (g.n.)

Resguardadas as conclusões próprias, realmente a prescrição não atinge a ação, nem mesmo o direito. Com relação à pretensão, faz-se necessária uma ponderação.

Como já defendido no item 2 deste artigo, a pretensão referida no art. 189 do Código Civil é a pretensão de direito material, ou seja, o direito de exigir de al­guém dado comportamento (e não o direito de declarar a vontade de exigir de alguém o mencionado comportamento). Assim sendo, sustenta-se aqui uma tese intermediária, entre os que sustentam a prescrição do direito material e aqueles que sustentam a prescrição da pretensão processual propriamente dita.

Pode-se, então, para os efeitos do art. 189, apresenta-se u m esquema dividi­do em duas colunas: de um lado estão: ação, pretensão e exigência; de outro es­tão: exceção, resistência e sujeição. Ação e exceção estão no campo do direito processual; exigência e sujeição estão no campo do direito material; já a preten­são e a resistência estarão no campo do direito processual se forem vistas sob a perspectiva da vontade declarada (pretensão processual) e, no campo do direito material, se estudadas sob a perspectiva do direito de exigir (pretensão material).

Daí poder sconcluir que, se é a pretensão de direito material que prescreve, ou seja, a pretensão vista sob a ótica da vontade declarada (diferente do direito de exigir), o que prescreve, na coluna das atitudes do réu, é a resistência, e nunca a exceção. A exceção corresponde, com as ressalvas já feitas, ao direito de ação, que não prescreve. A sujeição corresponde à exigência, que está no campo do direito material e, por conta disto, também não prescreve. Já a pretensão, se analisada sob a ótica, não da vontade declarada (a qual a levaria ao direito processual), mas do direito de exigir (que se vincula ao direito material), corresponde à resistência, que, tal qual a sua equivalente (pretensão de direito material), pode prescrever.

Continuando na mesma linha de raciocínio, se ambos os institutos se eqüi­valem — pretensão de direito material e de resistência — e ambos são atingidos pela prescrição, é porque a mencionada equivalência importa em reconhecer que a prescrição que atinge a resistência a atinge porque o direito que ela representa poderia ser utilizado na via de ação. Em outros termos:

A regra, portanto, do art. 190, de que a exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão aplica-se tão-somente aos casos em que, pela via da exceção, o demandado

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A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO E DA EXCEÇÃO NO NOVO CÓDIGO CIVIL 277

oponha ao demandante o mesmo direito que antes poderia ter manejado, como pre­tensão, em via de ação. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p.186) (g.n)

A conclusão necessária é: somente quando for possível alegar a prescrição da pretensão de direito material e somente quando for possível alegar a pres­crição para a pretensão é que, por equivalência (ou por dependência), pode-se cogitar prescrição para a resistência do réu.

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O P E D I D O G E N É R I C O N A A Ç Ã O D E REV ISÃO C O N T R A T U A L

I LTON C A R M O N A DE SOUZA*

Sumário 1. Introdução. 2. Premissas conceituais dos contratos. 3. Teoria da imprevisão e onerosidade excessiva. 4. Da ação de revisão dos contratos. 5. O pedido genérico e a sentença determinativa. 6. O pedido genérico e a ação de revisão contratual. 7. Matéria de ordem pú­blica. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

Com a vigência do novo Código Civil brasileiro, em 11 de janeiro de 2003, constata-se em seu espírito a perseguição da "socialidade" ou "justiça social", co­mo decantado pelo ilustre professor Miguel Reale, em sua Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil. Nesse sentido, houve a positivação do tema, há mui­to estudado e relevado, referente à função social do contrato, prevista nos arts. 421 e 2.035, parágrafo único, deste Código, como cláusula geral de aplicação judicial desta modalidade de ato jurídico.

Por se tratar de cláusula geral, que se entende como regra, com conteúdo mó­vel, "cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz no caso concreto, autorizado para assim agir em decorrência da formulação legal da própria cláusula geral, que tem natureza de diretriz" 1 desponta com fundamental importância no desenvolvimento das relações jurídicas e da intervenção judicial, na medida em

Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Membro da Comissão dos Novos Advogados do Instituto dos Advogados de São Paulo. Advogado em São Paulo. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado e legis­lação extravagante, p.142.

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O PEDIDO GENÉRICO NA AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL 279

que "il processo deve dare per quanto possibilepraticamente a chi ha un diritto tutto quelo e próprio quelo ch'egli ha diritto di conseguire".2

De acordo com essa noção, tem-se, cada vez mais, a presença da jurisdição por eqüidade permeando os flancos de nosso ordenamento jurídico, nos termos do art. 127 do Código de Processo Civil. Disto decorre a necessidade do debate envol­vendo os limites dessa permissão, especialmente quanto à revisão judicial dos contratos, com destaque para necessidade de correlação entre o pedido das par­tes e a sentença.

2. PREMISSAS CONCEITUAIS DOS CONTRATOS

Os contratos, como atos jurídicos bilaterais, apresentarão determinada con­figuração, de acordo com a espécie de acerto que houver entre os contratantes, sendo classificados como fonte geradora de obrigações. Assim, não pretendendo esgotar o tema, o contrato será realizado segundo as circunstâncias que as partes dispuserem, como corolário, quer da liberdade de contratar, quer da liberdade contratual. 3

Forma-se, então, o contrato, que disporá sobre o número de sujeitos, o nú­mero de prestações, o tempo e a forma de execução, a onerosidade, o consenso, a comutatividade, entre outros. Para o presente estudo, importa a discussão acer­ca do tempo da execução do contrato e da sua comutatividade.

Quanto ao tempo da execução do contrato, conhece o direito das obriga­ções duas espécies: a execução imediata e a execução diferida. Não há maiores dificuldades em se compreender essas espécies de execução, sendo que as obriga-

2 CHIOVENDA, Giuseppe. DelFazione nascente dal contrato preliminare. In: Saggi di diritto processuale civile, p.l 10. Nesse texto há a desmistificação da idéia de que a ação a ser proposta em caso de inadimplemento de um contrato de promessa seria a ação de danos. Os limites da tutela jurisdicional seriam tão-somente os legais e os de fato. Àquele que assiste razão numa demanda, deve-se propiciar precisamente aquilo que tem direito de conseguir.

3 Não se deve olvidar a diferença entre os termos, posto que, como previsto no art. 421 do Código Civil sem qualquer rigor técnico, uma vez que liberdade contratual refe­re-se à liberdade de discutir o conteúdo contratual, liberdade de contratar é conseqüên­cia da liberdade constitucional assegurada a todos, que seria a "liberdade de contratar que todos têm, desde que tenham capacidade jurídica e então o negócio jurídico seja válido". (Cf. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Segurança jurídica nos negócios imobiliários. In: O empreendimento imobiliário e os princípios constitucionais — Anais do Seminário 2002, p.86)

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ções com execução diferida sujeitam-se a um interregno de tempo entre a sua formação e a sua execução. Essa execução diferida pode se dar de forma única, com a estipulação de prazo futuro ou de termo, ou parceladamente, com mais de um prazo fixo, ou em execuções continuadas e execuções periódicas. 4

A comutatividade contratual refere-se ao conhecimento que os contratantes têm quanto à situação em que se obrigam; tal comutatividade tem utilidade no caso de contratos onerosos. A classificação das obrigações distingue as comutati-vas das aleatórias, sendo certo que, nas primeiras, conhece-se a situação em que foi realizado o contrato, sendo estabelecidas prestações e contraprestações, ganhos e perdas, proporcionais para cada contratante, não envolvendo risco de alteração dessa situação. Já nas obrigações aleatórias, o risco faz parte do objeto do contra­to, ou seja, os contratantes reconhecem que a situação do contrato está sujeita a al­terações, decorrendo daí que as prestações e contraprestações não importarão, ne­cessariamente, em equilíbrio contratual. O risco será suportado por uma parte ou por ambas, conforme seu ajuste. Um contrato que não envolve álea, e no qual não há comutatividade entre as partes, implica na sua gratuidade ou sua realização sem o atendimento da boa-fé contratual, exigida pelo art. 422 do Código Civil.

Silvio Rodrigues afirma que:

o que a rigor caracteriza o contrato comutativo não é a equivalência das prestações, mas o fato de a respectiva vantagem ou sacrifício de qualquer das partes poder ser ava­liado no próprio ato em que o contrato se aperfeiçoa.5

A teoria contratual fundamenta-se no cumprimento espontâneo das obri­gações assumidas. Ainda assim, os aplicadores do direito, desde tempos remotos, impunham a sua obrigatoriedade, na medida em que o cumprimento das aven-ças é premissa da vida em sociedade.

Mas não sem razão, a obrigatoriedade do cumprimento do contrato passará pela análise da boa-fé das partes envolvidas, bem como da função social que este deve apresentar.

A boa-fé exigida no art. 422 do Código Civil apresenta-se, também, como cláusula geral de integração do direito positivo. 6 Portanto, sua aplicação resol­ve-se com a determinação do seu valor pela exegese judicial.

4 Para um quadro completo das possibilidades, v. BORGES, Nelson. A teoria da impre-visão no direito civil e no processo civil, p.298-303.

5 RODRIGUES, Silvio. Direito civil 3, p.36. 6 A boa-fé, no Código Civil de 1916, era tratada como princípio geral de direito, uma

vez que não incorporada expressamente ao texto dessa legislação.

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O PEDIDO GENÉRICO NA AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL 281

Deve-se, contudo, distinguir a análise da boa-fé como regra para interpreta­ção da vontade dos contratantes, da regra dirigida ao julgador de uma ação, ao valorar o que se entender como "boa-fé" na nossa sociedade. Assim, no primei­ro caso, temos a boa-fé subjetiva, que é "uma regra de interpretação do negócio jurídico" 7 conforme a disposição do art. 113 do Código Civil. Ou seja, realizado um contrato entre as partes, gera-se uma justificada expectativa de que o pactua­do será espontaneamente cumprido, em decorrência da crença recíproca da boa-fé entre os contratantes.

Quanto ao art. 422 do Código Civil, como já mencionado, trata-se da boa-fé objetiva, que é cláusula geral de direito. Disto decorre que o seu conteúdo é inde­terminado, ou seja, o valor a que se refere a "boa-fé" deve ser preenchido pelo juiz quando da aplicação do direito ao caso concreto. Cabe ao juiz determinar o que seja a boa-fé antes de fazê-la respeitada na lide.

A função social do contrato também se apresenta como cláusula geral, sen­do que caberá ao juiz preencher os espaços do sentido dessa expressão, com valo­res econômicos, sociais, morais que são percebidos na sociedade na época de sua aplicação, como se verá neste estudo.

A cláusula geral tanto permite maior mobilidade ao ordenamento jurídico, já que coloca o aplicador do direito como "criador" da norma pela determinação do seu conceito, atualizando-a, como retira do sistema parte de sua certeza, na medida em que confere a cada juiz tal poder criativo. 8

3. TEORIA DA IMPREVISÃO E ONEROSIDADE EXCESSIVA

Partindo-se das premissas teóricas a respeito dos contratos, encontrou a prag­mática percalços em sua atuação, devido ao radicalismo derivado da inteligência do pacta sunt servanda.

Tem-se a notícia nos escritos antigos da exceção a esta regra, em decorrên­cia de circunstâncias alheias à vontade dos contratantes, por exemplo, casos de­correntes de força maior. 9 Foi no período da Idade Média, na qual trabalharam

7 NERY JÜNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.205. 8 Ibidem, p. 142-3. 9 Assim, segundo as lições de Álvaro Villaça de Azevedo, já estava previsto no Código

de Hamurabi, há 3.700 anos, que "'se alguém se obrigou por uma obrigação que pro­duz interesses' (juros) 'e uma tormenta' (o Deus Hadad) 'inundou seu campo e des­truiu sua colheita, ou se, por falta de água, o trigo não nasceu no campo, nesse ano ele não dará trigo a seu credor, modificará sua tábua de contrato e não dará o interesse'

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os glosadores de textos do direito r o m a n o antigo, que se registrou a máx ima : "contractus qui habent tractum sucessivum et depentian de futuro, rebus sic stanti-bus intelliguntur". A frase excepciona os contratos de trato sucessivo o u que d e p e n d a m do futuro , ao a f i rmar que estes devem conservar o estado e m que se o r i g ina ram. Esta é a o r i gem da cláusula rebus sic stantibus, decantada na praxe forense. 1 0

A apl icação desse instituto fo i se f i rmando jun to aos apl icadores do direi to med ievo , tendo encontrado forte resistência j un to à sociedade l iberalista nos sé ­culos X V I I I e seguintes, c o m a publ icação dos códigos de direito modernos , i m ­bu ídos do ideal l ibera l , e m que prevalecia a au tonomia da vontade . Retornava , incontestável , o reg ime do pacta sunt servanda.

O c o r r e , f ina lmente , n o século X X , a re tomada da socialização das leis c o m a promu lgação das const i tuições ocidentais na tentativa de se p roporc iona r a d is ­t r ibu ição de opor tun idades e o acesso ao direito para todas as classes. A s grandes guerras resu l taram e m u m incr íve l desajuste econômico n o ve lho cont inente, de tonando, a l ém do flagelo h u m a n o , crises de descumpr imento contratual , decorrentes da escassez da produção e conseqüente alta dos preços. Resgatava-se a intel igência da cláusula rebus sic stantibus para m i n o r a r os efeitos da imposs ib i ­l idade de c u m p r i m e n t o dos contratos nos moldes pactuados. A s s i m ,

para se reimplantar a cláusula rebus sic stantibus, a Lei Faillot, na França, modificou o Código Civil; na Inglaterra criou-se a frustration of the adventure; na Alemanha re­correu-se ao princípio geral da boa-fé e na Itália aplicou-se exatamente a velha cláu­sula do direito medieval."

A uti l ização da cláusula rebus sic stantibus dependerá da concorrência dos fa­tores expostos n o tópico anterior, qua l seja, a comutat iv idade e a execução d i fe r i ­da do contrato. Isto porque não se irá perquir i r a respeito da alteração na situação e m contratos de execução imediata , os quais se exaurem na mesma situação e m que f o r a m conc lu ídos .

(juros) 'desse ano'". (Teoria da imprevisão e revisão judicial dos contratos. Revista dos Tribunais, n.733, p.110) A concepção de tal fórmula é atribuída ao jurista Neratius, no Digesto romano, sendo que se reconhece como sua outra expressão similar: "Omnis pacto intelligittur rebus sic stantibus et in eodem statu manentibus", pela qual se impõe o cumprimento do con­trato estando assim as coisas e mantendo-se a situação. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Locações em shopping centers e teoria da impre­visão. Revista Forense, n.319, p.58.

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O PEDIDO GENÉRICO NA AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL 283

1 2 Termo utilizado em muitos ordenamentos jurídicos segundo o professor Nelson Bor­ges. (Op. cit., p. 111)

Na hipótese de a contratação dar-se em determinada situação e houver a ocorrência de um acontecimento imprevisto pelas partes, com tal magnitude que afete a execução das obrigações assumidas, importando em um desequilíbrio entre os ganhos e os sacrifícios incorridos, e que estes sejam maiores que o espe­rado, de modo que o contrato exigido encontrar-se-ia em situação diferente da original, essa doutrina afirma que este contrato deverá ser revisto com o intuito de se restabelecer o equilíbrio original. Essa dependência de um acontecimento imprevisto pelos contratantes justifica a utilização doutrinária da teoria da impre-visão para sintetizar essa regra de exceção. 1 2

Com a entrada em vigor do novo Código Civil, ficou expressamente con­vencionada em nosso ordenamento jurídico a previsão da seção "Da Resolução por Onerosidade Excessiva", no art. 478 e seguintes deste diploma, dentre as for­mas de extinção dos contratos.

Esta seção traz, além da disposição acerca do direito material, normas de caráter processual e regras direcionadas à forma de integração do direito que o juiz deverá aplicar nas hipóteses de sua incidência.

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.

Esta é a idéia contida na teoria da imprevisão, sendo certo que há, nessa hipótese, a execução diferida do contrato, com desequilíbrio na comutatividade, em decorrência de fato superveniente imprevisto pelos contratantes.

Perceba-se, ademais, que não se refere a toda e qualquer cláusula que demons­tre um aparente desequilíbrio, mas tão-somente àquelas que tornem inexeqüível o contrato.

Há que se revelar, à guisa de conclusão, a diferença entre a teoria da impre­visão e a onerosidade excessiva, a despeito da redação do art. 478 do Código Civil. Isto porque, como visto, a teoria da imprevisão exige o acontecimento de um fato imprevisto, uma circunstância que altere a situação em que o contrato será executado, circunstância essa não esperada pelos contratantes. Essa altera­ção do estado das coisas, frustrando as expectativas diuturnas das partes, deverá gerar um desequilíbrio na prestação de uma das partes, com ganho inesperado

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para a outra, permit indo que o Poder Judiciário interceda para restabelecer o equilíbrio original. 1 3

A doutr ina aponta que a onerosidade excessiva, por sua vez, não necessita da interferência de u m fato inesperado, imprevisto. Esta regra iria além da teoria da imprevisão, ao exigir, como requisito de sua aplicação, a prova de que há desequi­líbrio contratual, prescindindo da prova de que u m evento imprevisto justificou esse desequilíbrio. Neste caso, mesmo a ocorrência de eventos previstos pelas par­tes, no desenvolvimento normal da execução do contrato, poderá ser argüida como prova do desequilíbrio contratual . 1 4 , 1 5

1 3 Cf. jurisprudência "Compromisso de Compra e Venda - Inadimplemento - Pretendi­da aplicação pelo devedor da teoria da imprevisão fundada em dificuldades decorrentes da economia - Inadmissibilidade, se não houver enriquecimento indevido do credor. É inadmissível a incidência da teoria da imprevisão, nas hipóteses de inadimplemen­to de compromisso de compra e venda, fundada nas dificuldades decorrentes dos constantes choques aplicados à economia, pois para aplicação dessa teoria não basta a onerosidade excessiva para o devedor, é necessário, também, um indevido enrique­cimento para o credor". (RT 751/360, Ap 53.852-1, TJMS, 2 a T., rei. Des. José Augus­to de Souza, j . 9/9/1997)

1 4 O professor Álvaro Villaça de Azevedo externou tal diferença ao palestrar no Parla­mento italiano, no qual integrava a Comissão da Dívida Externa. Defendia o ilustre professor que o Estado italiano fizesse algumas concessões com vistas a perdoar cer­tas dívidas de países subdesenvolvidos, também a pedido do Vaticano. Afirmava que a teoria da imprevisão não era suficiente para dar cabo dessa empreitada, sugerindo que se utilizasse a cláusula da onerosidade excessiva, desvinculada de um evento imprevisível. Dizia o jurista: "Se alguém for pedir ao Juiz pela onerosidade excessiva conseguirá, certamente, o seu intento, mas, se for pela Teoria da Imprevisão vai ter que provar que o fato não era previsível. E, assim, todos os países latino-americanos que tenham o grande problema da dívida externa ficariam inibidos de fazer qualquer defesa", uma vez que a cobrança de juros era totalmente previsível no momento da con­tratação histórica. (Segurança jurídica nos negócios imobiliários, cit., p.88)

1 5 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.339-40, lecionam que formou-se, como desenvolvimento da teoria da imprevisão, a doutrina da base do negócio jurídico, formulada por Paul Oertmann, pela qual transparecem em um con­trato uma base objetiva e uma subjetiva, nas quais se funda a conclusão do contrato. A base subjetiva refere-se à expectativa de resultado que as partes prevêem quando assentam um acordo. Já a base objetiva diz respeito às condições implícitas, por vezes explícitas, externas ao negócio e independente da vontade dos contratantes, tais como manutenção da legislação e do sistema econômico. Assim, afirmam os professores que "haverá quebra da base objetiva do negócio, por exemplo, quando houver [...] onero­sidade excessiva impossibilitando o devedor de cumprir a prestação" explicando que "nada tem a ver com 'imprevisão' (situação psicológica, subjetiva das partes contratan­tes), porquanto onerosidade excessiva é aferível de modo objetivo". Concluem que

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Destaca-se, contudo, que o Código Civil pátrio albergou a teoria da imprevisão, posto que se utiliza da nomenclatura "Da Resolução por Onerosidade Excessiva", ao exigir que o devedor comprove os "acontecimentos extraordinários e imprevisíveis".

A onerosidade excessiva não justifica a revisão ou resolução do contrato, mas é requisito para que estes sejam possibilitados ao contratante, bem como a ocor­rência de um fato imprevisto pelas partes que tenha como conseqüência tal au­mento de encargos. São, ambos, requisitos para aplicação do art. 478 do Código Civil. Não se há de olvidar, também, que, paralelamente à necessidade da onero­sidade excessiva para u m contratante, deverá o demandante comprovar a extre­ma vantagem auferida pelo outro contratante. Isto quer dizer que o desequilíbrio a que se refere a teoria da imprevisão em nosso ordenamento exige que a balan­ça altere proporcionalmente os ganhos de um em relação às perdas do outro. Não basta que haja um aumento excessivo da prestação, é necessária a prova de que o demandado recebeu os ganhos decorrentes do fato imprevisto.

No entanto, analisando a atuação jurisprudencial, percebe-se que a resolução e revisão por onerosidade excessiva, apenas já são encontradas nas lides nacionais, prescindindo-se do fato imprevisto. Nessa esteira, conclui-se que a prática judicial caminhará nesse entendimento, não obstante as críticas e ressalvas levantadas pela doutrina, como se verá, com relação à crescente politização das decisões judiciais.

4. DA AÇÃO DE REVISÃO DOS CONTRATOS

Estando já desenvolvidas e estabelecidas as teorias que reputam como impres­cindível a manutenção da comutatividade nos contratos, disporá a parte de meios para que, entendendo-se prejudicada, promova a correção dessas distorções.

A hipótese menos dispendiosa é a negociação extrajudicial com o outro con­tratante, com o escopo de, caso não obstada pela vontade deste, serem pactuadas novas cláusulas que substituirão as existentes, importando em uma novação con­tratual, perpetrada por meio de instrumentos hábeis a comprová-la.

A discussão do contrato na esfera judicial vem de longa data, é u m modo de atender aos anseios sociais, quer impondo sua execução, quer impondo sua res­cisão. As alterações contratuais, contudo, estão int imamente ligadas à evolução da teoria da imprevisão. Comprova tal assertiva o fato de que o art. 1.058 do

"a revisão do contrato pode ocorrer não apenas por situações aferíveis objetiva­mente (quebra da base objetiva do negócio), como também por imprevisão (CC, art. 478)".

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Código Civil de 1916 (atual art. 393) previa apenas a extinção das obrigações, sem responsabilizar o devedor nas hipóteses de caso fortuito ou força maior. 1 6

4.1 As evoluções jurisprudencial e legislativa da aplicação da teoria da imprevisão no Brasil

Como já mencionado, a aplicação da teoria da imprevisão em nossa socieda­de se deu por força da prática jurisprudencial, que a entendeu como melhor opção para atender aos anseios da sociedade. Cite-se, originalmente, o julgado da lavra do renomado jurista Nelson Hungria - quando este era juiz de primeiro grau, no ano de 1930 - em razão de inesperada alta dos preços, cuja decisão assentava que:

Desde o momento em que um fato inesperado e fora da previsão comum destrói por completo a equação entre a prestação e a contraprestação ajustadas, deixa de sub­sistir o que Oertmann chama a base do contrato {Gescháftsgrundlagé), isto é, o pen­samento das partes, manifestado no momento de celebrar-se o contrato, acerca da existência das circunstâncias determinantes.

Tal decisão seria reformada, na época, pelo Egrégio Tribunal de Apelação do Distrito Federal (Rio de Janeiro), em 5 de abril de 1932, em consonância com a orientação da jurisprudência. 1 7

Campo fecundo à aplicação da teoria da imprevisão foi o Direito Adminis­trativo, no que tange aos contratos realizados entre particulares e a administração,

1 6 As alterações contratuais não devem ser confundidas em absoluto com a imprevisão, tendo em vista que os requisitos apontados pela doutrina para estas são a inevitabi-lidade, a irresistibilidade e a imprevisibilidade, enquanto na doutrina assentada na rebus sic stantibus necessita-se apenas deste último requisito: a imprevisão. Distinguia J. M. Othon Sidou (A revisão judicial dos contratos e outras figuras jurídicas, p.119): "exige-se para a caracterização do fortuito o concurso de dois elementos: a) ausência de participação do obrigado; b) diligência frustrada de sua parte na execução obriga-cional", sendo que, no caso de um contrato excessivamente oneroso, este foi, fatal­mente, pactuado pelo próprio contratante, que se obrigou em determinadas cláusulas e condições. O fortuito independe de sua vontade.

1 7 Tudo conforme colação trazida por Nelson Borges (Op. cit, p.785-801). O autor trans­creve, em parte, as decisões mencionadas anteriormente, como também a decisão pioneira de um colegiado de segundo grau, aceitando a teoria da imprevisão, em 1934, e o julgado pioneiro do Supremo Tribunal Federal, nesse sentido, em 1938, com a seguinte ementa: "Cláusula rebus sic stantibus - sua conceituação. O Tribunal que a acolhe não viola expressa disposição de lei", publicada, outrossim, na Revista Foren­se, 77/79-85.

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desde que esta apresentasse prerrogativas que lhe permi t i ssem alterar o cont ra ­to, o u mesmo extingui-lo, uni lateralmente, o que era denominado fato do príncipe. Discutia-se se essa prerrogat iva dava possibi l idade à revisão contratua l . Todavia , f i rmou-se o entend imento de que haver ia , c o m o conseqüência do fato do prínci­pe, a indenização integral ao par t i cu lar pelos prejuízos causados. Esta regra está agora expressa na Le i n. 8.666/1993. 1 8

Adema i s , a l ém desta def in ição, pacificou-se na dout r ina e jur i sprudênc ia a possibi l idade de apl icação da teoria da imprev isão, diferente da indenização po r fato do príncipe, t a m b é m aos contratos adminis t rat ivos , na mesma med ida e m que as condições reais da proposta l ic i tatória deve r i am se mante r inalteradas durante a execução do contrato, revisando-o caso prejudicado seu equil íbrio eco-nômico-f inanceiro, permit ida a revisão tanto para o part icular quanto para a p r ó ­pr ia Admin i s t r ação , se restasse pre jud icada. 1 9

A evolução jur isprudenc ia l trouxe consigo u m a lenta e gradual evolução l e ­gislativa n o enfoque revisionista do contrato, sob o pr i sma da teoria da i m p r e v i ­são. É certo, todavia, que a ação revisional de contrato encontra sua guarida desde longa data e m nosso o rdenamento jur íd ico , c o m a Le i de Luvas (Decreto n. 24.150/1934), re tomada pela L e i d o Inqu i l ina to ( Le i n. 8.245/1991), p o r é m , af i r ­m a parte da dout r ina que não é exigida nesta a apl icação da teoria da i m p r e v i ­são c o m o requisito da ação, mas , exige-se, tão-somente, a adequação do a luguel ao va lor do mercado, sendo o seu reajuste fato do cot id iano, nada imprevis íve l . A s s i m , Ne l son Borges a f i rma que:

havendo reconhecimento prévio de que fatores do cotidiano, oscilações inerentes à

própria natureza do mercado locatício, possam alterar a realidade contratada, bus­cando preveni-los é que a lei autoriza a revisão trienal [...].

O autor conc lu i que "este entendimento, aprior ist icamente, desaconselha que se fale e m teoria da imprev isão" . 2 0 N ã o quer dizer que seja descabida a ação ba-

O artigo 58 da lei permite a "[...] prerrogativa de: I - modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado; II - rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inc. I do art. 79 desta lei", que seriam atraso, cumprimento irregular, insolvência do contrata­do, motivo de interesse público, casos fortuitos ou de força maior, entre outros. Vale lembrar que o contratado goza do direito de se utilizar da exceptio non adimpleti con-tractus, caso a Administração atrasar por mais de 90 dias os pagamentos, como se in­fere do art. 78, XV, da referida Lei. BORGES, Nelson. Op. cit., p.344-7. Ibidem, p.367.

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seada na teoria da imprevisão, que poderá ser proposta mesmo antes da permissão legal, em razão de alteração da base contratual imprevista pelas partes. 2 1 Impor­ta salientar, naquele decreto, a utilização pioneira da ação revisional pelo contra­tante como ação positivada em nosso ordenamento jurídico.

O Código do Consumidor (Lei n. 8.078/1990) vem ao encontro dessa orien­tação, possibilitando ao consumidor exigir a revisão de cláusulas contratuais em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas, conforme seu art. 6 o , V. Deve-se ter em mente que tal regra destoa da teoria da imprevisão, ao permitir a revisão somente a um dos contratantes, qual seja, o consumidor, e que por "fatos supervenientes" devem ser entendidos tanto fatos previsíveis como imprevisíveis. 2 2 Ressalte-se, novamente, que, fora desta revisão prevista no art. 6 o , V, está permitida a revisão nos termos do art. 478 do Código Civil a ambos os con­tratantes, desde que provada a alteração da base contratual e a imprevisibilidade do fato que a originou.

O Código Civil em vigor, finalmente, coloca expressamente no ordenamen­to positivado a teoria da imprevisão, como norma de conduta para a contratação de boa-fé, uma vez que impera como fiel da balança na consciência dos contra­tantes, os quais devem reconhecer a comutatividade como requisito efetivamen­te imprescindível na vida em sociedade.

4.2 0 regime jurídico da aplicação da teoria da imprevisão

Estando a teoria da imprevisão estabelecida definitivamente em nosso ordena­mento, cumpre dissertar acerca do regime jurídico previsto para se tratar os contra­tos sujeitos a esta teoria. Sendo assim, surgem, historicamente, e uma vez descartada pelo juízo a execução pura e simples do mesmo, dois extremos para a participação judicial nessa solução: a resolução e a revisão do contrato. Há, além destas, a posição intermediária, por meio do regime misto, que também apresenta mais de uma face­ta, como se mostrará.

Despiciendas são as razões que criticam a aplicação de modo exclusivo des­tes extremos. Tanto a previsão somente da resolução quanto somente da revisão levariam a situações teratológicas, não desejadas pela sociedade. 2 3

Nesse sentido, REsp. n. 177.018-MG, Rei. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j . 21/9/1998. BORGES, Nelson. Op. cit., p.398-408, esp. 406. A revisão dos contratos apresenta-se como uma solução prudente, na maioria dos casos, tendo em vista o seu incentivo à realização de contratos e como mecanismo de propiciar o desenvolvimento de ambos os contratantes, restabelecendo o seu equilíbrio. Nessa esteira, o regime misto é aplicado pela quase totalidade das legislações modernas.

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O PEDIDO GENÉRICO NA AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL 289

Obviamente, os aplicadores do direito devem priorizar a revisão do contra­to, antes mesmo de analisar a sua resolução, como medida responsável de atua­ção junto às relações particulares, protegendo-as e buscando realizá-las na medi­da do que for praticamente possível. Conforme Othon Sidou, deve o juízo buscar "preferencialmente, portanto, a tentativa de reconciliar, e só depois, por ineficá­cia deste esforço, deve pensar-se na desvinculação". 2 4

O Código Civil pátrio, por sua vez, traz uma fórmula baseada no regime mis­to, mas que, ao mesmo tempo, remete os contratantes, primeiramente, à resolu­ção do contrato, conforme disposto no seu art. 478. No decurso da demanda, caberia ao demandado, a seu critério, oferecer a revisão, mediante proposta de mu­dança eqüitativa das condições do contrato. Neste sentido, o certo seria a propo-situra de uma ação de resolução do contrato.

A discussão teórica partiria da previsão da revisão contratual como sendo exceção à regra da resolução. Defende-se, ao contrário, que a revisão seja eleita preferencialmente como a via a ser seguida, cabendo a resolução apenas se a mesma revisão não obtiver êxito. À par desse debate, o certo é que a prática judi­cial fatalmente encaminhará as demandas neste sentido, na medida em que, pela cláusula geral da função social do contrato, é dever dos juizes buscar a sua adap­tação no sentido da comutatividade.

Assim, caberá também ao demandante propor alternativamente os pedidos de revisão e resolução, tanto como poderá o réu oferecer a revisão do contrato diante de uma ação resolutiva. Ainda restará ao juiz tentar conciliar as partes para que aceitem novos termos e condições contratuais, evitando, sempre, a extinção da relação jurídica. 2 5

Os fundamentos para a ação de resolução contratual serão a onerosidade excessiva e a vantagem extrema decorrentes de acontecimento imprevisto, conforme o art. 478 do Código Civil. Já a ação de revisão contratual fundamenta-se "na incidência concomitante das cláusulas gerais da função social do contrato

SIDOU, J. M. Othon. Op. cit., p.134. Cita o autor passagem importante da doutrina alemã, pregando a revisão judicial, sendo considerado princípio jurídico: "a justiça tem de esforçar-se por manter o contrato, modificando-o". NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.359. Os autores reconhecem o poder do juiz mesmo inconciliadas as partes, concluindo que "haven­do dissenso entre elas sobre a revisão, ainda assim é possível que seja feita judicial­mente, mediante sentença determinativa do juiz". Completa BORGES, Nelson. Op. cit., p.581: "a parte que se tiver oposto à revisão sofrerá os efeitos da sentença, que, estabelecendo as novas bases para a contratação, deverá responsabilizá-la também pelas verbas acessórias".

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(CC 421), da boa-fé objetiva (CC 422) e da base objetiva do negócio (CC 422)", como lecionam Nery & Nery 2 6 . Os arts. 421 e 422 do Código Civil permitem in­clusive a revisão do contrato ope judieis, sendo do interesse da parte onerada - e mesmo sem a concordância do réu, mediante correção ex ojjicio pelo juízo do fei­to - por se tratar de matéria de ordem pública, nos estritos termos do parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil.

Finalmente, não se há de negar que é cabível a indenização do réu em hipó­tese de resolução contratual, decorrente de fato imprevisto, na exata medida do enriquecimento sem causa em que incorrer o devedor, uma vez que a jurisdição não deve servir apenas para transferir os prejuízos de uma parte para a outra. Para tanto, é imprescindível o pedido de indenização a ser feito pelo réu em sua res­posta, em caso de impossibilidade de revisão, ampliando o objeto de julgamento do juiz, que deve atentar para os princípios de eqüidade e boa-fé. 2 7

4.3 Outros requisitos para a ação revisional

Já foram mencionadas algumas das condições necessárias à aplicação da teo­ria da imprevisão em sede judicial, quais sejam: a ocorrência de fato imprevisto, a excessiva onerosidade e a extrema vantagem decorrentes daquele, e a inexeqüi-bilidade da prestação. A doutrina aponta outros requisitos igualmente indispen­sáveis, os quais serão explicitados neste contexto.

Primeiramente, há que estar presente o nexo entre o fato imprevisto e a onerosidade da prestação, ou seja, deve estar provado que a prestação exigida é inexeqüível em decorrência de u m fato imprevisto que alterou profundamente a base contratual. A essa profunda alteração se dá o nome de essencialidade, que destrói o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, sendo u m "fato real­mente incomum que atinge o âmago de u m pacto, e não apenas seu aspecto periférico". 2 8

Obviamente, este fato imprevisto não pode ser imputado ao contratante que alega excessiva onerosidade de sua prestação, como de bom senso e já assentado em nossa jurisprudência. É certo que a parte não extrairá benefícios, alegando a própria torpeza (turpitudinem suam allegans nos est audiendus).29

Além deste, é requisito da revisão judicial a ausência de mora do demandante na época da ocorrência do fato imprevisto. A incidência do devedor em mora, de

2 6 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.359. 2 7 BORGES, Nelson, Op. cit., p.590-600. 2 8 Ibidem, p.319. 2 9 Ibidem, p.321.

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O PEDIDO GENÉRICO NA AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL 291

acordo c o m o art. 397, parágrafo ún ico , após u m imprev is to e e m decorrência deste, que o onere excessivamente, é atenuação ao r igor dos efeitos do estado m o ­r a t ó r i a F ina lmente , a lesão iminente apresenta-se c o m o out ra condição da r e v i ­são contratua l , na med ida e m que a imprev isão localiza-se entre o cumpr imen to da obr igação, m e s m o que onerosa e danosa, e a ocorrênc ia da mora , com seus efeitos legais. 3 0

4.4 A crescente politização das decisões judiciais

O u t r o pon to de relevância fundamenta l na apl icação da teoria da i m p r e v i ­são refere-se a: qua l a med ida da polit ização das decisões judic ia is e qua l a m e d i ­da da interferência do Poder Jud ic iá r io na pol í t ica desempenhada pelos Poderes Execut ivo e Legislativo.

N ã o impor ta ao presente estudo a análise do contro le realizado pelo Poder Judic iár io c o m relação às polít icas econômicas e sociais do Estado, n o entanto faz-se imper iosa a discussão acerca da inf luênc ia da visão pessoal dos magistrados sobre temas pontua is e m demandas , mas que apresentam sensíveis conseqüên ­cias à sociedade, na med ida e m que integrados ao nosso direito e m decorrência de jur i sprudênc ia massiva.

D e acordo c o m estudo coordenado pelo professor A r m a n d o Castelar P inheiro, a politização das decisões é fato, não se há de negar, mas as discussões a seu respeito e sobre as suas conseqüências ainda são incipientes. Con fo rme af irma e m seu artigo:

[...] o resultado disso tem sido termos, de um lado, juizes pouco atentos às repercus­sões macroeconômicas de suas decisões, e, de outro lado, economistas que freqüen­temente desconhecem os micro-fundamentos institucionais que alicerçam, ou não, suas iniciativas e políticas. E empresas que, tanto quanto possível, evitam qualquer contato com o judiciário, mesmo que para isso tenham de mudar sua forma de ope­rar ou mesmo deixar de realizar certas atividades. 3 1 3 2

Ibidem, p.318, "cumprida a obrigação, mesmo com efetivos danos, descabe a invoca­ção do benefício" da teoria da imprevisão. O judiciário e a economia na visão dos magistrados, artigo apresentado no seminário Reforma do Judiciário: problemas, desafios e perspectivas, promovido pelo Idesp, São Paulo, em 24 de abril de 2001. Podemos citar, por exemplo, o que se sucedeu no financiamento de imóveis por empre­sas incorporadoras, pois no começo da década passada ainda era comum o financia­mento da compra de imóvel realizado pela própria construtora, com a aplicação dos juros permitidos pela Constituição Federal e correção monetária pelos índices oficiais.

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Em pesquisa apresentada ainda neste artigo, com a participação de 741 juizes estaduais, federais, trabalhistas e de todos os demais graus, inclusive de Tribunais superiores, colocam-se dados relevantes para a discussão do tema, sendo que a vi­são política dos juizes apresentava-se tão politizada quanto mais politizada fosse a questão envolvida. 3 3

É imperiosa a conscientização a respeito da politização das decisões judiciais e de suas conseqüências macroeconômicas, sendo necessário maior diálogo entre a sociedade civil e o Judiciário, mediante reforma do Judiciário, para evitar dis­torções na disciplina das relações jurídicas, campo de aplicação dos contratos.

5. 0 PEDIDO GENÉRICO E A SENTENÇA DETERMINATIVA

O pedido no processo civil tem acepções distintas, ora referindo-se à deman­da em si, ora ao objeto da pretensão do demandante. Assim, é comum utilizar-se do termo julgamento do pedido como sinônimo de julgamento da demanda. Conforme leciona Cândido Rangel Dinamarco,

o ato de demandar é o responsável pela colocação da pretensão diante do juiz, para que a seu respeito ele se manifeste-julgando-a no processo de conhecimento, satis-fazendo-a no executivo.34

Cresceu, gradualmente, o número de processos de rescisão contratual em decorrên­cia da impossibilidade pura e simples de pagamento do financiamento, julgados pro­cedentes pelo Poder Judiciário. Como conseqüência, houve a gradual transição do financiamento das incorporadoras - que não queriam assumir o risco de rescisões em larga escala, o que as levaria à ruína - para os Bancos, que possuem um regime espe­cial de financiamento, com possibilidade de cobrança de juros acima do permitido na Constituição, e regime especial de cobrança e execução de seus créditos. Percebe-se que as decisões sociais, que buscavam proteger o adquirente do imóvel, acabaram por empurrá-lo para situação pior do que a anterior. Essa gradual alteração levou, inclu­sive, à publicação da Lei n. 9.514/1997, que disciplina a alienação fiduciária de bem imóvel, permitido para as incorporadoras e, nesta, há a previsão de leilão do imóvel não quitado a tempo pelo próprio Cartório de Registro de Imóveis, sem qualquer participação da jurisdição civil.

3 3 Assim, quando perguntado aos magistrados se suas decisões baseavam-se mais na pró­pria visão política ou na leitura rigorosa da lei, estes diziam utilizar sua visão políti­ca com mais freqüência, do total, 45,1% em questões trabalhistas, 17,68% em ques­tões comerciais, 41,6% em questões do consumidor, 39,4% em questões do mercado de crédito (juros etc.) e 56,4% em questões de privatizações. Sendo que, em média, em todas as questões ficavam sem reposta ou sem opinião algo em torno de 16% a 20% dos magistrados, em virtude da matéria não lhes dizer respeito.

3 4 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil II, p.l07.

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O autor da demanda coloca sua pretensão à análise do ju iz , que , após o c o n ­t rad i tór io , decidirá a q u e m assiste a razão sobre o ped ido . 3 5 O pedido, e m sínte­se, é o objeto do processo, 3 6 e este se caracteriza c o m o a matér ia sobre a qual o juiz, estando regular o processo, é obr igado a se manifestar, colocada diante deste por in te rmédio da atuação das partes, vedado o processo inquis i tór io . É o mér i to da causa.

N o s termos do art. 286 do Cód igo de Processo C i v i l , consta a regra de que " o ped ido deve ser certo o u determinado" , devendo-se entender certo e de t e rm i ­nado , c o m o já paci f icado na dout r ina . A certeza exigida refere-se à individual iza-ção do b e m da v ida sobre o qual se pede a manifestação do ju iz , como , e m nosso caso, referido contrato de execução diferida o u determinadas cláusulas deste. Diz-se determinado, o u l íqu ido, o pedido que, de u m lado, indica o montan te pre ten ­d ido, fazendo-se necessária a indicação precisa da quant idade de bens o u do va lor da parcela do b e m . Nesses termos, determinar-se-ia quais efeitos almejados pela parte recairão sobre o b e m da v ida , caso o pedido seja procedente.

O pedido genérico, po r outro lado, atine a esta ú l t ima qual idade, u m a vez que a certeza é requisito impresc indíve l . A segunda parte do art. 286 indica as h ipó te ­ses permi t idas para a fo rmulação de ped ido genérico, o u i l íqu ido, e m cuja de ­manda não seja possível precisar a quantif icação pretendida dos bens, devendo-se, contudo , nas hipóteses do ro l taxativo do Cód igo , atenuar a interpretação l i teral , c o m o indica D i n a m a r c o :

[...] como na prática é às vezes muito difícil o encontro de um valor preciso desde logo - sendo arriscado pedir a mais e sucumbir parcialmente por não ter razão a tudo quanto pede, ou pedir a menos e não poder depois obter tudo a que se tem

Em decorrência da relação angular entre as partes e o juiz que impera em nosso ordenamento processual, junta-se à pretensão de obter o bem da vida, a pretensão de obter uma resposta estatal, uma vez proibida a autotutela, para que, se o demandante tiver razão, seja satisfeita a sua primeira pretensão. O demandante, ao interpor sua ação, baseando-se em uma causa de pedir, formula sua pretensão por intermédio dos pedidos: obtenção do provimento jurisdicional, tais como a decla­ração ou a condenação a respeito do bem, e a própria obtenção do bem da vida. Para que a ação seja conhecida para julgamento, deve-se perquirir se a parte tem direito a esta resposta estatal, para tanto, apresentam-se pressupostos, supostos e condições da ação que devem ser atendidos para que o direito ao bem da vida possa ser analisado. São os chamados pressupostos de admissibilidade de julgamento do mérito processual. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno I, p.276.

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294 ILTON CARMONA DE SOUZA

direito - tal exigência não pode ser rígida e os próprios tribunais não são radicais a esse respeito.37

5.1 Caráter constitutivo da sentença revisional

A ação de revisão contratual tem como objeto a modificação de uma situa­ção jurídica, decorrente da insatisfação com o estado do bem da vida. Julgada pro­cedente a demanda, ter-se-á uma situação nova, que gerará, a partir da sentença que a constitui, novos efeitos legítimos em relação aos contratantes.

Isto quer dizer que a decisão judicial definitiva reconhece a constituição, a modificação ou a extinção em determinada relação jurídica, e opera, concomitan-temente, essa alteração no plano fático, sem a necessidade de outros atos comple-mentares. Trata-se da sentença constitutiva, que possui eficácia própria. Há que se salientar a existência, outrossim, de uma declaração, comum às sentenças de conhecimento, na sentença constitutiva, que é o reconhecimento do direito à alte­ração do contrato.

A eventualidade de não ocorrer a revisão não muda o caráter da sentença re­visional, mas, ao invés, a resolução do contrato, realizada mediante uma senten­ça constitutiva negativa, sendo que a extinção do contrato alterará, tanto quanto, a situação jurídica existente, desconstituindo esse vínculo.

Esta sentença constitutiva negativa se distingue, contudo, da sentença que jul­gar improcedente o pedido do autor, negando-lhe o direito à revisão ou à resolução do contrato, possibilitando ao réu exigir o cumprimento do contrato nos moldes pactuados originalmente. Essa sentença será declaratória negativa, na medida em que reconhece a inexistência do direito do demandante de alterar a relação jurídica.

5.2 Sentença determinativa em ação de revisão contratual

A sentença constitutiva nos moldes previstos no art. 478 e seguintes possui outro atributo especial, que se refere ao fundamento no qual se baseará, ou seja, qual a fonte formal de direito de conteúdo abstrato à qual o juiz subsumirá o caso concreto.

Isto porque, nestes casos, o juiz está autorizado a realizar o julgamento por eqüidade, no teor do art. 127 do Código de Processo Civil: "O juiz só decidirá por

Ibidem, p.120-1.

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eqüidade nos casos previstos e m lei". A permissão legal para tanto decorre da intel igência dos arts. 421,479 e 2.035, parágrafo ún ico , do Cód igo C i v i l .

P o r se tratar de cláusula geral , tendo c o m o dest inatár io o ju iz , o teor da fun­ção social do contrato deverá ser preench ido po r este, c o m valores buscados na eqüidade, permi t indo- lhe dar a solução que lhe pareça a mais correta e m cada caso. 3 8

N a ação rev is ional , poderá o ju iz , e m pro l da função social do contrato, u t i ­lizar-se do ju lgamento po r eqüidade, entendendo-se tal c o m o a permissão para o ju iz remeter-se "ao va lo r do justo e à real idade econômica , pol í t ica, social o u fami l iar e m que se insere o confl i to para ret irar daí os critér ios c o m base nos quais ju lgará" . 3 9

A sentença que se fundamenta na eqüidade é conhec ida c o m o sentença de-

terminativa, e esta característica soma-se, na sentença rev is ional , c o m o u m aspecto pecul iar ao ato const i tut ivo nela previsto, isto é, a sentença revis ional j u l ­gada po r eqüidade é u m a sentença const i tut iva/determinat iva, dist inguindo-se apenas pe lo fato de que se fundamenta e m fonte f o rma l diversa da lei editada pelo Es tado , 4 0 não se const i tu indo, por tanto , e m " u m quartum genus que se possa acrescentar, c o m coerência sistemática, às outras categorias de sentença classica-men te estabelecidas", 4 1 declaratór ia, condenatór ia e const i tut iva.

C o n c l u e m N e r y & N e r y que " a at iv idade jur isd ic ional deixa o seu caráter t ra ­d ic iona l e geral de função substitutiva da vontade das partes pela do Estado-juiz, e passa a fazer parte do contrato", passando a integrar o negócio ju r íd ico cont ra ­tua l , med ian te a "concret ização da cláusula geral da função social do contrato" . 4 2

5.3 Sentença genérica e sentença determinativa

H á que se diferenciar a sentença genérica da determinat iva , tendo e m vista que eventual confusão pode restar do conceito de sentença genérica, que seria a que não "de te rmina " o quantum debeatur, o u seja, não especifica a quant idade de

3 8 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p. 142-3, notas 18 e 23. Afirmam, ainda, que "o magistrado irá integrar o contrato, criando novas circunstân­cias contratuais. Para tanto, deverá pesquisar e observar a vontade das partes quando da celebração do contrato", (p.913, nota 5)

3 9 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p.325-6. 4 0 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil III, cit., p.215. 4 1 TOMASETTI JÚNIOR, Alcides. Exeaição do contrato preliminar, p.269. 4 2 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit, p.337, nota 12.

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bens, ou efeitos sobre o bem, que será concedida àquele que tem razão. Senten­ça determinativa, no entanto, é a que se fundamenta na eqüidade, fonte formal di­versa da lei editada pelo Estado. Assim, ambas são características que podem estar presentes em determinadas decisões judiciais, e que não se excluem, já que independentes.

O Código de Processo Civil limita a três as possibilidades de pedido genéri­co, a saber: (a) o pedido de coisas coletivas, em ações universais, nas quais seja pos­sível ao autor individualizar os bens que são objeto do pedido, tanto podendo se referir à universalidade de direito - como o espólio ou a massa falida - quanto à universalidade de fato - como o direito a uma pinacoteca ou a u m rebanho; (b) o pedido genérico de indenização, em decorrência de ato ou fato ilícito, nos casos em que não for possível precisar as conseqüências, sejam materiais ou morais, impingidas à vítima — caso os danos possam ser calculados no momento da apre­sentação da demanda deverá fazê-lo o autor, obrigatoriamente; 4 3 e (c) o pedido dependente de ato a ser praticado pelo réu, uma vez que não é possibilitado ao autor saber o quantum na propositura da ação, como em uma ação de prestação de contas.

Fora dessas hipóteses, a legislação extravagante prevê mais outras duas de ca­bimento de pedido genérico: em razão da especificidade da situação material e da qualidade das partes litigantes. Trata-se do Código de Defesa do Consumidor, que permite o pedido genérico em ações que tutelem direitos individuais homogê­neos, com previsão nos arts. 91 e seguintes da Lei n. 8.078/1990. E, posteriormen­te, em 1995, com o advento da Lei dos Juizados Especiais - Lei n. 9.099/1995 - , em

NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado, p.674. Os autores extremam o entendimento ao afirmar que "nas ações de indenização por dano moral ou à imagem (v.g., CF 5 o V e X), o pedido deve ser certo e determinado". Nesse sentido, e baseando-se nesta doutrina, já decidiu o TJSP: "É de rigor que o pedido de indenização por danos morais seja certo e determinado para que não fique somente ao arbítrio do juiz a fixação do 'quantum', como também para que seja dada ao réu a possibilidade de contrariar a pretensão do autor de forma pon­tual, com objetividade e eficácia, de forma a garantir-lhe o direito à ampla defesa e ao contraditório". (Ag. In. 091.263-4/5-00, Rei. Des. Leite Cintra, j . 11/11/1998) Em sentido francamente contrário, com argumentos lógicos e razoáveis, o jurista André Gustavo C. Andrade (Dano moral e pedido genérico de indenização. Revista da Emerj, v.3, n.10, p.45-67) rebate as críticas pontualmente, aplicando a teoria da interpreta­ção para concluir pelo cabimento de pedido genérico de danos morais, afirmando, entre outros pontos, que esta "não configura violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório, porque autor e réu se encontram em situação de absoluta igual­dade quanto à imprevisibilidade do valor de dano moral".

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decorrência de seu caráter informal, abriu-se nova possibilidade, como expressa­mente previsto no art. 14, parágrafo 2 o , nesses termos: "É lícito formular pedido genérico quando não for possível determinar, desde logo, a extensão da obrigação".

Em virtude do art. 128 do Código de Processo Civil, "o juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta", assim, é imprescindível a correlação entre o pe­dido e a sentença. Outrossim, o art. 459, parágrafo único, indica que a sentença deve ser líquida, caso o pedido seja determinado, o que leva parte da doutrina a in­terpretar o artigo a contrario sensu, afirmando que, deduzido o pedido genérico, deveria ser proferida sentença ilíquida. Mas tal tese iria de encontro ao princípio da efetividade processual, na medida em que se espera da jurisdição a segurança jurídica, alcançada com a determinação precisa da sentença, devendo, se possível, ser proferida uma sentença líquida, ainda que diante de u m pedido genérico.

Além disso, pode-se afirmar que o processo de liquidação de sentença, afinal, é complemento da cognição realizada anteriormente. Calmon de Passos leciona que "tudo recomenda que a indeterminação no tocante ao quantum debeatur seja eliminada no próprio procedimento da ação de cognição, salvo se foi impossível fazê-lo".4 4 Esta é a previsão no Juizado Especial, no qual as sentenças devem ser lí­quidas, ainda que genérico o pedido, a teor do art. 30, parágrafo único, da Lei n. 9.099/1995.

Nada obstante, em casos de prolatação de sentença genérica, passar-se-á à fase de liquidação da mesma, cujo objetivo é determinar a quantidade de bens ou direitos sobre os quais recairão os efeitos da sentença. Em uma condenação, ficaria impossibilitada a sua execução sem a liquidação da sentença genérica, uma vez que não se conheceria a dimensão do valor dos bens a penhorar para a futura sa­tisfação do crédito. Tal sentença de liquidação tem natureza declaratória, produ-

CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil III, p. 173. É importante salientar que a jurisprudência admite a ausência de quantificação exata do bem da vida se o pedido formulado permitir a correta compreensão de seu alcance e a ampla defesa da parte adversa, não se configurando em pedido genérico: "Não sendo certo ou determinado, o pedido é genérico, não se incluindo neste o que permite a correta compreensão do seu alcance e a ampla defesa da parte adversa". (REsp. 200.684 - RJ, rei. Min. Gilson Dipp, j . 28/3/2000) Nesse sentido, REsp. 285.630 - SP, rei. Min. Rui Rosado Aguiar, j . 16/10/2001. Em sentido contrário, REsp. 399.179 - SP, rei. Min. José Arnaldo da Fonseca, j . 25/6/2002, com precedente em Resp. 51.550 - PR, rei. Min. Eduardo Ribeiro, j . 8/8/1994: "Pedido Genérico - Sentença - Formulado pedido genérico, expressamente afirmado que o valor da condenação haveria de apurar-se em liquidação, não é possível proferir sentença líquida, o que importaria violação das regras do contraditório."

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zida em processo novo, destinado unicamente a apurar o quantum, completan­do a parte declaratória das sentenças genéricas. 4 5

Conclui-se, repisando, que a liquidação da sentença genérica, posto que de­termina a quantidade afetada do bem ou bens da vida, em nada se confunde com a sentença determinativa, a qual se refere à jurisdição por eqüidade, permitida em nosso sistema processual somente em casos previstos na lei.

6. 0 PEDIDO GENÉRICO E A AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL

Tendo em mente os conceitos expostos nos tópicos anteriores, passa-se à con­clusão acerca da possibilidade da utilização de pedido genérico em ação de revi­são contratual, e, para tanto, cumpre-nos analisar abstratamente se este pedido -alteração do contrato - subsume-se a alguma das hipóteses mencionadas.

Em primeiro lugar, por se tratar de uma aplicação abstrata, podemos chegar aprioristicamente a algumas conclusões, pois é evidente que se o demandante, em ação revisional de contrato, optar, se lhe for lícito, por utilizar-se do Juizado Es­pecial Cível, estará permitido o pedido genérico, caso a alteração que busca seja de difícil quantificação.

O mesmo se pode dizer quanto à revisão contratual em face de direitos uni­versais, nos termos do art. 286,1 , do CPC, cuja quantificação seja difícil de ser realizada. Neste caso, busca-se a revisão contratual que desonere a responsabili­dade do demandante sobre determinada prestação referente àqueles bens.

Quanto aos demais casos previstos na legislação, deve ser realizada uma análise mais detida, no tocante à interpretação do art. 286 do Código de Proces­so Civil, na medida em que cercada de discussões e entendimentos jurispruden-ciais divergentes.

Como já afirmado, a sentença revisional apresenta nítido caráter constituti­vo, o que implica na produção de efeitos por sua própria força vinculante. Isto quer dizer que tem eficácia própria, prescindindo de atos posteriores que operem a mudança determinada em sua parte dispositiva.

Isto implica que, pela natureza da ação revisional, o demandante não busca­rá a condenação do credor, o qual cumpriu suas obrigações, para lhe devolver uma parcela imprevista e excessivamente onerosa de sua prestação. Busca, isso sim, a revisão que restaure o equilíbrio econômico-financeiro dos contratantes, com efei­tos ex nunc, quiçá mediante a antecipação dos efeitos da tutela. Ressalte-se, nova-

DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p.236.

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O PEDIDO GENÉRICO NA AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL 299

mente, que é requisito para a aplicação da teoria da imprevisão, a ausência de es­tado moratório por parte do demandante.

Nesse sentido, são descartadas as hipóteses de ação revisional que redunda­riam em condenação para o réu-credor da prestação. Diante desta afirmação, não poderá o autor, para tutelar direitos individuais homogêneos, pleitear uma tutela condenatória com pedido genérico contra o credor que cumpriu regularmente o contrato e, por circunstâncias imprevisíveis, incorreu em extrema vantagem.

É o mesmo ponto envolvendo o inc. III do art. 2 8 6 , no qual o pedido é a condenação do réu, cujo valor depende de ato que deva ser praticado pelo réu. Assim, em razão de interpretação literal, que se coaduna com a intenção do legis­lador, conclui-se que não se há de falar em revisão contratual para possibilitar uma condenação do credor.

Passa-se, finalmente, à análise do inc. II do art. 2 8 6 do CPC, que permite o pedido genérico em ações em que a causa de pedir seja a ocorrência de um ato ou fato ilícito pelo demandado. Decorrerão destes, conseqüências indenizáveis à víti­ma, mas cujo montante não é possível ser quantificado no momento da proposi-tura da demanda.

Pela interpretação literal, vê-se que a causa de pedir da ação revisional é dis­tinta daquela, pois decorre de ato imprevisto pelas partes, ao qual nenhuma delas deu causa, que gerou onerosidade excessiva para uma e extrema vantagem para a outra. Assim, pela leitura do art. 2 8 6 do Código de Processo Civil, o pedido, na ação de revisão contratual, deve ser certo ou determinado. De acordo com inter­pretação sistemática, entende-se que a alteração contratual almejada deve ser certa e determinada. Além disso, vale ponderar que a intenção do legislador foi a de exigir a certeza e liquidez na petição inicial, possibilitando ao demandado to­tal compreensão da demanda proposta, sendo elemento identificador da ação. Por­tanto, as exceções devem ser interpretadas restritivamente, relevando a formali­dade e a segurança jurídica no processo civil pátr io. 4 6

Esta é a conclusão de FONSECA PASSOS, Carlos Eduardo da Rosa da. (Lide e pedido na ação revisional. Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janei­ro, n.14, p.36-40), o qual entende que não é possível subsumir a ação revisional em uma dessas três hipóteses, pois "não é passível de compatibilidade o entendimento pré-universal e os ditames legais, já que a ação revisional não é universal. Por outro lado, não se cogita de ato ilícito, nem existe pedido de condenação, que dependa de ato a ser praticado pelo réu", concluindo, nesses termos, "vê-se, pois, com clareza ofuscan-te, que a construção inspirada à sombra de numerosos acórdãos deste Colendo Tribu­nal (Rio de Janeiro) encerra um equívoco, que trama contra o sistema vigente acerca da determinação do pedido".

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300 ILTON CARMONA DE SOUZA

Conclui-se, assim, que o demandante, na propositura da ação de revisão con­tratual, deve demonstrar os requisitos exigidos para a aplicação da teoria da im­previsão, apresentando as mudanças que julgar pertinentes para a restauração do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, requerendo especificadamente, ou seja, quanto à qualidade e quantidade, a alteração pretendida, não lhe sendo líci­to deduzir pedido genérico.

Nestes termos, a ação revisional com pedido genérico, como o pedido de alte­ração de índice de atualização monetária a critério do juiz, deverá ser emendada, para que o pedido seja certo e determinado, nos termos da lei, sendo quantifica­da a alteração pretendida ou sendo fornecidos elementos suficientes para que o pedido seja determinado, sob pena de ser indeferida a petição inicial.

7. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA

Após tal conclusão, faz-se mister abordar outra mudança de grande relevân­cia, prevista no parágrafo único do art. 2.035 do Código Civil, uma vez que a fun­ção social do contrato foi elevada à norma de ordem pública, o que implica a obri­gatoriedade de sua cognição e atuação pelo juiz em qualquer demanda envolvendo contratos.

Os professores Nelson Nery e Rosa Maria Nery, lecionam que a função so­cial do contrato, juntamente com a boa-fé objetiva, os bons costumes e a função social da propriedade

são de ordem pública, o que implica seu conhecimento e aplicação ex officio pelo juiz, independentemente de pedido da parte ou do interessado (basta que haja processo em curso), a qualquer tempo e em qualquer grau ordinário de jurisdição [v.g., CPC 303 III), não estando sujeitas a preclusão.47

4 7 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.851. Em sentido contrário, colacionado em parecer de 1995, o professor AZEVEDO, Álvaro Villaça afir­ma que "o juiz não pode, a meu ver, criar regras contratuais à revelia dos contratantes, sob pena de tornar-se um deles". (Teoria da imprevisão e revisão judicial dos contra­tos, cit., p.119) É também o entendimento do professor José Carlos Barbosa Moreira, convencido de que "o juiz civil, no direito brasileiro, repito, não está autorizado [...] a, na sua sentença, pronunciar-se sobre algo que não foi objeto do pedido, só porque lhe pareça que se trata de um direito indisponível. Direito não exercitado, ainda que indis­ponível, é para o juiz direito não contemplável na sentença. Nenhum juiz pode acres­centar na sua sentença uma disposição, uma determinação que não tenha sido incluí­da no pedido, a pretexto de que essa prestação, à qual se refere o mandamento sentenciai, se fundava num direito indisponível. Se o autor não pediu, o juiz não

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O PEDIDO GENÉRICO NA AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL 301

Em julgados referentes à revisional de locação, o Superior Tribunal de Justi­ça tem afirmado que não se configura julgamento ultra petita a fixação de valor locativo em montante superior ao requerido na inicial, como se depreende da decisão de lavra do ministro Hamilton Carvalhido:

[...] tem prevalecido no Superior Tribunal de Justiça entendimento no sentido de que, em tempos de inflação, pode o magistrado, a título de revisão de aluguel, e ins­pirado no princípio da eqüidade, fixar o valor locativo em quantia superior à reque­rida pelo autor na petição inicial, ajustando-o ao chamado "preço de mercado", não se configurando tal decisão julgamento ultra petita (grifo nosso).48

Ademais, esse mesmo artigo afirma que "nenhuma convenção" prevalecerá se contrariar a função social do contrato, implicando sua aplicação, inclusive, em contratos concluídos antes da vigência do novo Código Civil, ainda pendentes de execução, excepcionando o próprio caput do art. 2.035, que afirmava que seriam regidos pela nova lei somente os efeitos deste contrato, produzidos sob a sua égide. De acordo com este entendimento, caberá a revisão inclusive da validade daqueles contratos, com fundamento na necessidade de estarem preenchidas a boa-fé e a função social.

A inteligência do parágrafo único do art. 2.035 amplia o poder do juiz nas relações contratuais, permitindo-lhe alterar os contratos além da teoria da im­previsão prevista nos arts. 478 e seguintes, a fim de adequá-los à sua visão da fun­ção social, cabendo, necessariamente, relembrar as considerações feitas a respei­to da politização das decisões judiciais e suas conseqüências. 4 9

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pode conceder, e tampouco negar". (Correlação entre o pedido e a sentença. Revista de Direito, n.26, p.53) REsp. n. 95.707 - SP, j . 7/2/2002. Nesse sentido, REsp. n. 34.192 - SP, Rei. Min. Cid Flaquer Scartezzini, j . 24/11/1997, com precedente em REsp. n. 32.328, Rei. Min. Edson Vidigal,;. 15/12/1993. Não se há de negar a insegurança que tal assertiva poderá causar às relações jurídicas, devendo os excessos ser corrigidos pelos Tribunais hierarquicamente superiores, vi­sando, sempre, à pacificação da sociedade, e não à transferência de prejuízos.

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302 ILTON CARMONA DE SOUZA

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versidade de São Paulo.

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A D E N U N C I A Ç A O D A L I D E N O N O V O C Ó D I G O C IV I L

RODRIGO BARIONI*

Sumário 1. Introdução. 2. Generalidades sobre a denunciação da lide. 3. A "obrigatoriedade" da denunciação da lide -direito anterior (CC/1916). 4. A "obrigatoriedade" da denunciação da lide - direito vigente (CC/2002). 5. A hipótese do parágrafo único do art. 456 do novo Có­digo Civil. 6. Denunciações sucessivas. 7. Notas de cu­nho conclusivo. Referências bibliográficas.

A partir de 1868, com a edição da Teoria das exceções dilatórias e dos pressu­postos processuais, de Oskar Von Büllow, e com os estudos que se seguiram, con­cebeu-se que o processo estava desvinculado do direito material, sendo mero instrumento de técnica jurídica, com a finalidade de obter a aplicação da lei a determinado caso concreto. 1

Caracteriza-se o processo como instrumento do direito material, não ha­vendo um fim em si próprio. Sua razão de ser é propiciar a prevalência do direi­to substancial de uma das partes, muito embora a existência do processo não esteja atrelada à existência desse direito material pretendido em juízo.

Apesar de há tempos ser reconhecida a autonomia do processo, não raras vezes verifica-se intensa ligação entre o processo e o direito material. Uma dessas

Advogado em São Paulo. Mestre e doutorando em direito processual civil na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor da Escola Superior de Advoca­cia da OAB/SP. ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Manual de direito processual civil, v.I, p.103.

1. INTRODUÇÃO

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304 RODRIGO BARIONI

hipóteses é, justamente, a denunciação da lide, cuja obrigatoriedade foi estabele­cida no novo Código Civil (Lei n. 10.406/2001), para que o adquirente possa exer­citar o direito que da evicção lhe resulta (art. 456).

O presente ensaio, inserido no escopo da obra coletiva, objetiva apresentar as repercussões do Código Civil recém-editado na denunciação da lide.

2. GENERALIDADES SOBRE A DENUNCIAÇÃO DA LIDE

A denunciação da lide vigora no Brasil desde as Ordenações, sob a denomina­ção "chamamento à autoria". O instituto foi conservado nos ordenamentos posterio­res, preservando-se, inclusive, a nomenclatura. Apenas com a edição do Código de Processo Civil de 1973, o instituto passou a ser denominado "denunciação da lide".

A denunciação da lide é prevista no ordenamento processual como forma de intervenção de terceiros. Por meio da denunciação, instaura-se uma lide secun­dária, na qual uma das partes (denunciante) formula pretensão indenizatória, geralmente contra terceiro, 2 para o caso de ele, denunciante, sucumbir na de­manda principal . 3 , 4

2 Com grande acuidade, afirma SANCHES, Sydney (Denunciação da lide no direito pro­cessual civil brasileiro, p.171-2) que, apesar de, em regra, a denunciação da lide ser ação incidental de uma das partes dirigida contra terceiro, há hipóteses em que a denunciação poderá ser dirigida contra quem é parte no processo. O ilustre autor apresenta como exemplo a hipótese de ação reivindicatória proposta por A contra B e C, dizendo-se A vero proprietário e que os títulos de B e C são nulos. Se o título de B tem origem no título de C, que lhe transmitiu o domínio, B teria pretensão regres­siva contra C, muito embora C não seja terceiro, mas réu da demanda principal. Como se vê, merece ressalva a afirmação genérica no sentido de que a denunciação da lide só pode ser deduzida em face de terceiro. Em igual sentido: CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros, p.93.

3 Na mesma linha, é autorizada lição de Athos Gusmão Carneiro, ao afirmar que a de­nunciação da lide é prevista no ordenamento processual "como uma ação regressiva, 'in simultâneas processus', proponível tanto pelo autor como pelo réu, sendo citada como denunciada aquela pessoa contra quem o denunciante terá uma pretensão in­denizatória, pretensão 'de reembolso', caso ele, denunciante, venha a sucumbir na ação principal". (Op. cit., p.71)

4 Veja-se que a denunciação da lide não se presta para a correção do pólo passivo da demanda. Nesse sentido, é correto o julgado do TJ-MG: "Somente cabe denunciação da lide em caso de futura ação regressiva e nunca para substituição de parte, que se pretende não devedora e funda sua defesa em culpa de outrem". (PAULA, Alexandre de, Código de Processo Civil anotado, v.I, p.625)

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A DENUNCIAÇÃO DA LIDE NO NOVO CÓDIGO CIVIL 305

O caráter eventual é marcante na denunc iação da l ide. 5 Se vencedor o d e n u n ­ciante na l ide pr inc ipa l , pre jud icada estará a demanda secundária.

Realizada a denunciação, e aceita pelo denunc iado, formam-se duas lides pa ­ralelas: a pr imeira ( l ide pr incipal ) tem, de u m lado, o denunciante e o denunciado e, de outro, o adversário do denunciante (arts. 74 e 75,1, C P C ) ; na segunda (l ide se­cundár ia o u eventual ) , o denunciante figura c o m o autor e o denunciado, como réu.

N a l ide pr inc ipa l , há fo rmação de verdadei ro litisconsórcio entre d e n u n c i a n ­te e denunc iado contra o adversár io do denunc iante . 6

Caso o denunc iado seja revel , o u compareça apenas para negar a qual idade a ele at r ibuída pe lo denunc iante , t a m b é m haverá fo rmação de l i t isconsórcio pas ­sivo entre denunc iante e denunc iado na l ide pr inc ipa l . O denunc iado não pode furtar-se à condição de parte em que a lei o coloca. C o m o b e m destaca C â n d i d o Range l D i n a m a r c o ,

Não tem o litisdenunciado a faculdade de recusar a litisdenunciação, porque ele é réu na demanda de garantia proposta pelo denunciante e nenhum réu tem o poder de afastar por vontade e ato próprios a autoridade que o juiz exerce sobre ele no pro­cesso. Tal é uma projeção da inafastabilidade da jurisdição, como expressão do poder estatal.7

A sentença deve julgar as duas lides (pr inc ipa l e denunc iação) , no mesmo ato, mas e m capítulos dist intos. Caso não seja apreciada a l ide secundár ia , nu la será

5 Cf. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade, Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 6. ed. pA97.

6 Nesse sentido: CARNEIRO, Athos Gusmão. Op. cit., p. 103; ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. cit., p.322; MOREIRA BARBOSA, José Carlos. Substituição das partes, litisconsórcio, assistência e intervenção de terceiros. In: Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, p.86; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil, t.II, p. 154-6; MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil, v.I, p.364; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, v.II, p.32; FLAKS, Milton, Denunciação da lide, p. 121; GRECO FILHO, Vicente, Da intervenção de terceiros, p.83. Esse entendimento, contudo, não é pacífico. Parte da dou­trina considera o denunciado assistente simples do denunciante, pois não possui relação de direito material com o adversário do denunciado, apesar de ter interesse na vitória do denunciante (cf. SANCHES, Sydney, Op. cit., p.206; NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.383; ALVIM, Thereza, O direito processual de estar em juízo, p.200; MESQUITA, José Ignácio Botelho de, Da ação de evicção, A/uris, p. 100). Há, ainda, uma terceira posição, no sentido de que o denunciado é assistente litisconsorcial do denunciante, (cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Intervenção de terceiros, p. 145-6)

7 DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de direito processual civil, v.II, p.407-8.

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306 RODRIGO BARIONI

a decisão. 8 É defeso ao ju iz , por tanto , l imitar-se a apreciar a l ide pr inc ipa l , d e i ­

xando de ju lgar a denunc iação.

T a m b é m é causa de nu l idade da sentença declarar a i legit imidade de parte do denunc iante , condenando apenas o denunc iado a c o m p o r os prejuízos rec lama­dos pelo adversár io do denunc iante . 9

3. A "OBRIGATORIEDADE" DA DENUNCIAÇÃO DA LIDE -DIREITO ANTERIOR (CC/1916)

0 Cód igo de Processo C i v i l estabelece três hipóteses de cab imento da de ­nunc i ação da l ide, todas elas relacionadas no art. 70:

Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória: 1 - ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi trans­ferido ã parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta; II - ao proprietário ou possuidor indireto quando, por força de obrigação ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pignoratício, do locatário, o réu, citado em nome próprio, exerça a posse direta da coisa demandada;

III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação re­gressiva, o prejuízo do que perder a demanda.

A interpretação puramente l i teral do caput do art. 70 conduz o intérprete a conc lu i r que a denunc iação de l ide é sempre obr igatór ia. A questão, p o r é m , não se c inge ao exame da l i teral idade da n o r m a e, po r isso, está longe de apresentar solução tão s imples.

N o p lano da va l idade do processo, não há dúv ida que a falta de denunciação da l ide não acarreta nu l idade processual o u inef icácia da sentença. A af i rmação é al icerçada e m dois argumentos : p r ime i ro , na ausência de cominação expressa no estatuto processual (arts. 70 a 76) ; segundo, no teor do art. 72, parágrafo 2 o , n o qua l se lê que " n ã o se procedendo à citação n o prazo marcado , a ação prosse­guirá un i camente e m relação ao denunc iante" . 1 0

8 Nesse sentido: NERY JÜNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade, Op. cit., p.385. Na jurisprudência: RSTJ 5/363; RT 679/122,629/216, 591/237; TRF-5aR., Ap. n. 3.897-PE, Rei. Juiz José Delgado, j . 6/3/1990. In: PAULA, Alexandre de. Op. cit., p.688; TJ-SC, Ap. n. 35.632, Rei. Des. Newton Trisotto. In: PAULA, Alexandre de. Op. cit., p.691.

9 RT 612/96. 1 0 Nesse sentido: SANCHES, Sydney. Op. cit., p.46; ALVIM NETTO, José Manoel de

Arruda. Op. cit., p.272.

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A DENUNCIAÇÃO DA LIDE NO NOVO CÓDIGO CIVIL 307

Se a obrigatoriedade da denunciação da lide não diz respeito à validade do processo, deve-se procurar outro sentido para dar rendimento à norma estabele­cida no caput do art. 70.

O estudo da matéria do enfoque do direito substantivo levava a concluir que a denunciação da lide era "obrigatória" somente nos casos de evicção, por força do disposto no art. 1.116 do CC revogado, in verbis: "Para poder exercitar o di­reito, que da evicção lhe resulta, o adquirente notificará do litígio o alienante, quando e como lhe determinarem as leis do processo".

Clóvis Beviláqua conceitua evicção como "a perda total ou parcial de uma coisa, em virtude de sentença, que a atribui a outrem, por direito anterior ao con­trato, de onde nascera a pretensão do evicto". 1 1

A evicção pode decorrer da perda da posse ou da propriedade de determi­nado objeto, mas sempre em virtude de sentença judicial. 1 2 Nos casos de bens mó­veis, contudo, a jurisprudência tem considerado não ser indispensável a existência de prévia sentença judicial que decrete o desapossamento. Basta que o adquiren­te fique privado por ato inequívoco de qualquer autoridade. 1 3

Ocorrendo a evicção, o adquirente deve "notificar" o alienante do litígio, pa­ra poder exercer o direito que da evicção lhe resulta. Para evitar incompreensões quanto ao texto, a expressão "notificará do litígio" deve ser entendida em seu sig­nificado histórico. Vicente Greco Filho ensina que o sentido da expressão é "o de dar conhecimento da lide, fazer a denunciação da lide, não alterando a forma de se fazer essa denunciação, que é a citação do denunciado". 1 4

O confronto entre o disposto no ordenamento civil anterior e a norma inserta no caput do art. 70 do CPC guiava o posicionamento doutrinário na trilha de ser ônus do adquirente realizar a denunciação da lide nos casos de evicção. 1 5 O descum­primento desse ônus implicava a perda do direito de regresso contra o alienante. 1 6

1 1 BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, v.IV, p.271. 1 2 Cf. WALD, Amoldo, Curso de direito civil brasileiro, v.II, p.239. 13 RT 444/80. 1 4 ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. cit., p.84. Daí a correta afirmação de

José Manoel de Arruda Alvim Netto: "Essa 'notificação' a que se alude na lei civil apa­rece na lei processual sob a denominação de denunciação da lide". (Manual de direi­to processual civil, v.I, p.171)

1 5 Sobre as diversas posições doutrinárias sobre o tema ver, por todos, SANCHES, Syd-ney. Op. cit., p.53 e ss.

1 6 No direito estrangeiro, a denunciação da lide não apresenta tratamento uniforme. Ano­ta MESQUITA, José Ignácio Botelho de, que: "É facultativa a denunciação da lide nos CC da França (art. 1.640), da Itália (art. 1.485), da Argentina (art. 2.111), e no CPC de Por­tugal (art. 325)". Informa o autor que também é facultativa na ZPO alemã (parágrafo 72).

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308 RODRIGO BARIONI

Forte corrente doutrinária sustentava que a ausência de denunciação da lide do alienante acarretava ao adquirente não apenas a perda do direito que da evic-ção lhe resultava, como também do direito à restituição do preço. 1 7

Antes mesmo da vigência do novo Código Civil, a posição dominante co­meça a ceder espaço a uma interpretação sistemática dos dispositivos civis. Cons­tatava-se que essa interpretação rígida - que acarretava ao adquirente, além da perda do bem em virtude da evicção, a perda do preço da coisa - resultava no enriquecimento sem causa do alienante, decorrente da simples inércia do adqui­rente em denunciá-lo da lide. A vedação ao enriquecimento sem causa represen­tava inconveniente intransponível ao reconhecimento da completa perda do direito à indenização pela evicção e ao preço.

Passou-se a interpretar a norma civil, assim como a processual, de maneira mais branda. Admitia-se a perda do direito que da evicção resultava ao adquiren­te, mas não da restituição integral do preço. O adquirente perdia os benefícios que a lei concedia ao evicto: (i) a indenização dos frutos que tivesse sido obrigado a restituir; (ii) aos contratos e os prejuízos que diretamente resultassem da evicção; (iii) as custas judiciais.

O descumprimento ao ônus processual de denunciar o alienante da lide acar­retava ao adquirente, portanto, a perda dos direitos procedentes da evicção (esta­belecidos no art. 1.108 do CC revogado). Não significava, porém, a perda do direito substancial ao recebimento do preço integral do bem, mas representava ao adquirente a desvantagem de ficar privado de demandar pelo recebimento dos valores que, pela evicção, poderia receber. 1 8

Em relação às demais hipóteses previstas no art. 70 do CPC, em que não se verificava t ra tamento da matéria pelo ordenamento substancial, o posiciona-

Porém, afirma o autor que há obrigatoriedade da denunciação da lide "nos CC da União Soviética (art. 250), da Espanha (art. 1.482), do México (art. 2.124), da Colôm­bia (art. 1.899), do Peru (art. 1.375), do Chile (art. 1.843), do Uruguai (art. 1.705) e da Bolívia (art. 1.056)". (Da ação de evicção, Ajuris, p.86)

1 7 Nesse sentido, BARBI, Celso Agrícola, Comentários ao Código de Processo Civil, p.253; DINAMARCO, Cândido Rangel. Intervenção de terceiros, p.139.

1 8 Nesse sentido, são os seguintes julgados: "O direito que o evicto tem de recobrar o preço que pagou pela coisa evicta independe, para ser exercitado, de ter ele denuncia­do a lide ao alienante, na ação em que terceiro reivindicara a coisa, ex vi do CC, art. 1.108" (ST], 3 a T, REsp. 9.552-SP, Rei. Min. Nilson Naves, D] 3/8/1992); "A não de­nunciação da lide ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domí­nio foi transferido à parte, não implica a perda do direito material, mas apenas do direito que da evicção lhe resulta em razão da formação do título executivo judicial referido no art. 76 do CPC". (TJ-PR, Ap. 23.718-5, Rei. Des. Nunes do Nascimento. In: PAULA, Alexandre de, Op. cit., p.631-2)

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A DENUNCIAÇÃO DA LIDE NO NOVO CÓDIGO CIVIL 309

m e n t o dou t r iná r io e ju r i sprudenc ia l j á era f i rme n o sent ido de não ser cons ide ­rada obr igatór ia a denunc iação, u m a vez que a lei c iv i l não hav ia estabelecido tal ônus para o exercício do dire i to de indenização o u de regresso. 1 9

4. A "OBRIGATORIEDADE" DA DENUNCIAÇÃO DA LIDE -DIREITO VIGENTE (CC/2002)

0 novo Código C iv i l , no art. 456, manteve disposição semelhante ao direito

anter ior :

Para poder exercitar o direito que da evicção lhe resulta, o adquirente notificará do li­

tígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores, quando e como lhe determi­

narem as leis do processo.

N ã o se obse rva ram grandes alterações no disposit ivo, salvo n o que se refere à possibi l idade de denunc iação dos al ienantes anter iores, o que será tratado a seguir.

D e acordo c o m a lei mater ia l , o adquirente t e m de not i f icar do l it ígio o a l ie ­nante imediato . Prossegue, assim, a dúv ida sobre a sanção acarretada pela ausên ­cia da denunc iação da l ide do al ienante.

Temos que , ante a ausência de sanção expressa n o ordenamento processual para o caso de não-denunc iação, não é l ícito ao intérprete cr iar tal sanção. P o ­r é m , poder-se-ia argumentar , e c o m razão, que a lei c iv i l prevê ser indispensável para o exercício d o direito decorrente da evicção, a denunc iação da l ide do a l ie ­nante imediato .

A prev isão legal restringe-se a expor a necessidade de denunc iação da l ide para fazer valer o direito que da ev icção resulta. Esse direito, n o atual estatuto c i ­v i l , está previsto n o art . 450:

Salvo estipulação em contrário, tem direito o evicto, além da restituição integral do preço e das quantias que pagou: 1 - à indenização dos frutos que tiver sido obrigado a restituir; II - à indenização pelas despesas dos contratos e pelos prejuízos que diretamente resultarem da evicção; III - às custas judiciais e aos honorários de advogado por ele constituído.

Nesse sentido, dentre outros: CARNEIRO, Athos Gusmão. Op. cit., p.74; ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. cit., v.III, p.259-60; SANCHES, Sydney. Op. cit., p.49; FORNACIARI JR., Clito. Reconhecimento jurídico do pedido, p.38-9; FLAKS, Milton. Op. cit., p.l84; BARBI, Celso Agrícola, Op. cit., p.253-4.

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310 RODRIGO BARIONI

Descumpr ido o ônus de denunciar da lide o alienante, o adquirente supor tará as desvantagens advindas dessa postura. Não se pode tolerar, porém, o locupletamento do alienante como decorrência da falta de denun­ciação da lide. O adquirente tem, a nosso ver, direito de receber o preço que pagou pelo bem, corrigido monetar iamente; não será lícito ao adquirente, no entanto , pleitear o recebimento da ampla indenização prevista no art. 450 do CC/2002.

Em relação às demais hipóteses do art. 70 do CPC, mantém-se o entendi­mento já consagrado na vigência do Código Civil anterior, uma vez que não hou­ve qualquer referência à sanção por falta de denunciação da lide.

5. A HIPÓTESE DO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 456 DO NOVO CÓDIGO CIVIL

A norma do art. 456 do novo Código Civil é complementada pelo parágra­fo único: "Não atendendo o alienante à denunciação da lide, e sendo manifesta a procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer contestação, ou usar de recursos".

No Código Civil revogado, não havia disposição semelhante à transcrita an­teriormente. Tal parágrafo apresenta-se como novidade legislativa, que deve ser lida em confronto com o preceito contido no art. 75, II, do CPC: "se o denuncia­do for revel, ou comparecer apenas para negar a qualidade que lhe foi atribuída, cumprirá ao denunciante prosseguir na defesa até final".

Antes da edição do novo Código Civil, entendia-se que, não comparecendo o denunciado, cumpria ao denunciante realizar a defesa, utilizando todos os meios lícitos possíveis, inclusive com a interposição de recursos. A revelia do denunciado, como bem anotava Athos Gusmão Carneiro, obrigava o réu ao uso de todos os meios conducentes à sua defesa, sob pena da perda do direito de regresso. 2 0

Com a inovação trazida pelo parágrafo único do art. 456 do novo Código Civil, o denunciante, nos casos de "manifesta procedência da evicção", pode dei­xar de oferecer defesa ou de recorrer.

Aspecto sem dúvida importantíssimo é o de desvendar quando é manifesta a procedência da evicção, para a liberação do denunciante do ônus de apresen­tar defesa ou de recorrer ordinariamente.

CARNEIRO, Athos Gusmão. Op. cit., p.105.

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A DENUNCIAÇÃO DA LIDE NO NOVO CÓDIGO CIVIL 311

O adjetivo manifesta significa "patente, claro, evidente, notório, flagrante".2 1

Ao empregar o termo "manifesta procedência da evicção", o legislador diferenciou a procedência da manifesta procedência.

Convém prevenir que em outros textos legais, em que é utilizado o termo manifesto, houve dificuldades hermenêuticas de aplicação. É o que se verifica na interpretação do art. 557 do CPC. 2 2 O problema ganha maior relevo na hipótese do parágrafo único do art. 456 do CC, uma vez que compete à própria parte ava­liar se a procedência do pedido formulado na inicial é manifesta ou não. As con­seqüências do não-oferecimento de defesa pelo denunciante, na hipótese de não se considerar o pedido manifestamente procedente, ensejará ao denunciante omis­so a perda do direito à indenização pela evicção. A solução dessa questão, por­tanto, exige especial atenção do denunciante.

É certo que apenas a análise do caso concreto possibilitará verificar a mani­festa procedência ou não do pedido, sendo inviável conjecturas abstratas. Con­tudo, é de bom alvitre que o denunciante informe ao juiz que deixará de contestar ou de oferecer recurso em petição fundamentada. Isso poderá evitar que, poste­riormente, seja o denunciante responsabilizado pela derrota na ação que culmi­nou com a perda do domínio.

Em caso de incerteza do denunciante em relação à manifesta procedência do pedido, este deverá apresentar defesa e/ou recursos. Apenas quando estiver total­mente fora de dúvida a procedência do pedido é que estará autorizado a não ofe­recer defesa e/ou recurso.

A partir da argumentação desenvolvida por Barbosa Moreira para o termo "manifestamente" inserido no art. 557 do CPC 2 3 - que ora nos serve de norte para a interpretação a ser adotada para o adjetivo "manifesta" constante no parágrafo único do art. 456 do CC - , conclui-se que a expressão é recomendada para que a atribuição conferida pela lei ao adquirente seja exercida com comedimento. Deve

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, Novo dicionário da língua portuguesa, p. 1.081. Dispõe referido artigo: "O relator negará seguimento a recurso manifestamente inad­missível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurispru­dência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tri­bunal Superior" (g.n.). O parágrafo I o-A do art. 557, por sua vez, estabelece: "Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso" (g.n.). Sobre a dificuldade de interpretação do referido dispositivo, em relação ao emprego dos termos manifestamente e manifesto, ver CAR­VALHO, Fabiano, Os poderes decisórios do relator nos recursos cíveis (inédito). MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil, v.V, p.661.

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312 RODRIGO BARIONI

o adquirente, portanto, apresentar defesa sempre que as questões de fato e/ou de direito discutidas no feito forem passíveis de dúv ida o u controvérsia.

Pa ra que o adquirente esteja desobrigado de apresentar defesa o u , n o caso de oferecê-la, não uti l izar os recursos a que teria direito, a procedência da ação deve ser manifesta. C u m p r e ao adquirente ver i f icar se os fatos nar rados n a pet ição i n i ­c ia l , e pelas respectivas provas que a a c o m p a n h a m , são de ta l o r d e m que não há c o m o ev i tar a evicção.

É impresc indíve l , p o r é m , realizar a denunciação da l ide. Apesar de a lei c iv i l l iberar o adquirente de apresentar contestação, a denunciação da l ide ao alienante é ônus do denunciante . Isso significa que, n o prazo da contestação, deverá o adqu i ­rente requerer a citação do alienante, mui to embora possa, desde logo, in formar que não oferecerá defesa, e m vista de considerar manifesta a procedência do pedido.

N ã o se p o d e m desconsiderar as conseqüências da apl icação do nove l legis­lat ivo. N o caso de ser contestada a demanda pelo denunc iante , não se v i s l umbram nov idades n o c a m p o processual. P o r é m , tendo sido requer ida a denunc iação da l ide, mas não apresentada contestação pe lo denunc iante , po r entender man i fes ­ta a procedência do pedido, não se sabe, de antemão, se o denunciado oferecerá o u não contestação. A i n d a que o denunc iante considere manifesta a procedência do ped ido , é l íc i to ao denunc iado apresentar contestação.

N o caso de procedência do pedido, o denunc iado será responsável pelo paga­m e n t o de indenização pela evicção ao denunciante. Po r isso, assiste ao denunciado o acesso à amp la defesa, c o m apresentação de contestação e interposição de todos os recursos assegurados na legislação, para demonst ra r seu direito.

É interessante notar que, adotada essa postura pelo denunc iado, se vencedor, benef ic iará o denunc iante , que suportará a ev icção; se venc ido , o denunc iante te ­rá dire i to a receber indenização pela evicção.

6. DENUNCIAÇÕES SUCESSIVAS

N o o rdenamento c iv i l anterior, não hav ia regulamentação expressa acerca da possibi l idade o u não de serem realizadas denunc iações sucessivas. O art . 73

do C P C , estabelecia:

Para os fins do disposto no art. 70, o denunciado, por sua vez, intimará do litígio o alienante, o proprietário, o possuidor indireto ou o responsável pela indenização e, assim, sucessivamente, observando-se, quanto aos prazos, o disposto no artigo antecedente.

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A DENUNCIAÇÃO DA LIDE NO NOVO CÓDIGO CIVIL 313

Com base nesse dispositivo, a doutrina absolutamente majoritária aceitava a ocorrência de denunciações sucessivas.2*

Exemplificando: em ação reivindicatória proposta por A em face de B, este poderia denunciar da lide C, alienante imediato. De acordo com o dispositivo le­gal, C, por sua vez, poderia denunciar D, que lhe vendeu o imóvel (alienante an­terior). Mas também assistiria a D o direito de denunciar da lide E, de quem adquiriu o imóvel. E assim sucessivamente.

O princípio da economia processual motivava a admissão das denunciações sucessivas, de modo a integrar, no mesmo processo, diversos ou todos os alienan-tes anteriores.

Convém notar que a admissão irrestrita das denunciações sucessivas poderia implicar demasiada demora no processo, com risco à efetividade. Dentro desse espectro, a melhor doutrina admitia o indeferimento da denunciação sucessiva, quando colocasse em risco a prestação jurisdicional. 2 5 Era nesse sentido a lição de Athos Gusmão Carneiro, sob a vigência do ordenamento civil anterior:

Daí a necessidade de resguardar ao magistrado a possibilidade de indeferir sucessi­vas denunciações da lide (com evidente ressalva de posterior ação "direta"), naque­les casos em que venha a ocorrer demasiada demora no andamento do feito, com evidente prejuízo à parte adversa ao denunciante originário.26

Não é difícil perceber que, ainda quando não emperre o procedimento, a denunciação da lide sucessiva acaba por retardar o regular andamento do feito. A partir dessa constatação, E. D. Moniz de Aragão, em brilhante estudo, passou a sustentar a admissão da lide não apenas ao alienante imediato, como também,

Nesse sentido, dentre outros: AD7IM NETTO, José Manoel de Arruda. Manual de direi­to processual civil, v.II, p.168 (com vasta referência doutrinária e jurisprudencial); PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários ao Código de Processo Civil, v.II, p.152-3; CARNEIRO, Athos Gusmão. Intervenção de terceiros, p.97-8. A esse respeito pronunciou-se o STJ, em acórdão relatado pelo Min. Athos Gusmão Carneiro: "Denunciação da lide. Artigo 70, III, do Código de Processo Civil. Denun­ciações sucessivas, possibilidade de indeferi-las. Ação indenizatória, promovida por paciente contra estabelecimento hospitalar, com posterior intervenção do banco de sangue, que denunciou a lide aos laboratórios encarregados da análise do sangue uti­lizado em transfusões. Embora admitida exegese ampla ao disposto no art. 70, III, do CPC, não está obrigado o magistrado a admitir sucessivas denunciações da lide, de­vendo indeferi-las (certamente que com resguardo de posterior 'ação direta'), naqueles casos em que possa ocorrer demasiada demora no andamento do feito, com manifes­to prejuízo à parte autora. Recurso especial não conhecido" (RSTJ 24/466). ALVIM NETTO, José Manoel de Arruda. Op. cit., p.99. Na jurisprudência: RSTJ 24/466.

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314 RODRIGO BARIONI

na mesma ocasião, a todos os antecessores na cadeia dominial. 2 7 É o que se deno­minou "chamamento coletivo" (chamamento à autoria) de todos os anteriores pro­prietários, a fim de evitar que cada u m dos denunciados viesse a denunciar da lide o antecessor.

Esse entendimento foi prestigiado pelo STJ, que considerou lícita a realiza­ção da denunciação da lide, não apenas do alienante imediato, mas, igualmente, de todos os alienantes anteriores. 2 8

A possibilidade da denunciação coletiva foi expressamente encampada pelo art. 456, do novo Código Civil, ao estabelecer que o alienante "notificará do litígio o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores". Referendou-se, de lege lata, a posição já adotada pela jurisprudência, ao possibilitar a denunciação da lide, pelo adquirente, do alienante imediato ou dos alienantes anteriores.

É opor tuno registrar que, diferentemente do que ocorre em relação ao alie­nante imediato, inexiste ônus de proceder-se a denunciação da lide aos demais proprietários da cadeia. Tal afirmação decorre do fato de o adquirente ter relação direta apenas com o alienante imediato. Este é, para o adquirente, o único e exclu­sivo responsável pelo pagamento da indenização procedente da evicção. Com isso, a rigor, a denunciação da lide do alienante imediato é suficiente para garantir ao adquirente a indenização preconizada pelo art. 450 do CC/2002.

Como o adquirente não tem legitimidade para pleitear indenização dos alie­nantes anteriores, por absoluta falta de relação jurídica, parece-nos correto supor que não há "obrigatoriedade" de proceder-se à denunciação contra qualquer u m deles. O uso desse meio, porém, está à disposição do adquirente, caso pretenda ace­lerar o procedimento e evitar denunciações sucessivas. Trata-se de norma permis­siva e não de imposição de ônus ao denunciante.

A falta de relação jurídica entre o adquirente e os alienantes anteriores con­duz a outra afirmação: não é lícito ao adquirente denunciar da lide algum dos alie-

De acordo com o renomado autor, "se a finalidade da lei é proporcionar integral res­sarcimento à vítima da evicção, mesmo que para isso tenham de ser trazidos ao pro­cesso, chamados à autoria, todos os antecessores do litigante, parece inegável que a interpretação teleológica assegura ao jurista a base de apoio de que necessita para de­fender a licitude do chamamento conjunto à autoria, sempre que for o único meio efi­caz de realizar adequadamente o intuito da lei (prestação da garantia e ressarcimento dos danos, repete-se), sem prejuízo, como ficou explicado antes, do direito que assis­te a cada um dos litisdenunciados de, em defesa oposta ao chamamento, procurar exi­mir-se da responsabilidade pela garantia e pela evicção". (MONIZ DE ARAGÃO, Egas Dirceu, Sobre o chamamento à autoria, Ajuris 25, p.42) RT 679/195.

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A DENUNCIAÇÃO DA LIDE NO NOVO CÓDIGO CIVIL 315

nantes anteriores, sem que tenha denunc iado o al ienante imediato . C o m o a denunciação da l ide t e m f inal idade de ação regressiva, aquele que t e m o dever de indenizar, no caso de derrota do denunc iante na l ide pr inc ipa l , deve c o m p o r o pó lo passivo da l ide secundár ia . Nessa l inha, não há c o m o permi t i r ao adqu i r en ­te denunc iar per saltum os alienantes anteriores, para deduzir pretensão e m face de sujeitos da cadeia de propr ietár ios que não figuram c o m o garantes do negó ­cio, ao menos e m relação ao denunc iante .

N a v igência do Cód igo C i v i l anter ior, lec ionava M i l t o n F laks :

Vale sublinhar que nunca se admitiu, entre nós, a denunciação per saltum, mesmo

porque a relação de direito material é sempre entre quem denuncia e o seu garante

ou responsável imediato. 2 9

Essa or ientação era adotada, inclusive, pelo STF, que , e m diversas o p o r t u n i ­dades, rejeitou o cab imento da denunc iação da l ide per saltum.30

N ã o realizada a denunc iação dos adquirentes anter iores, passa-se ao d e n u n ­c iado o direi to de requerer a denunc iação sucessiva. O art. 73 do C P C - a inda e m v igor - autoriza essa conclusão.

Nessa ordem de idéias, consideramos que a interpretação a ser conferida ao art. 456 do novo Código C i v i l é n o sentido de que o adquirente tem o ônus de d e n u n ­ciar da l ide o alienante imediato o u , se assim pretender, denunciar da lide os al ie­nantes anteriores. Autoriza-se a denunciação da lide "coletiva", mas sua falta não e n ­seja prejuízo ao denunciante. Nesse caso, cabe ao denunciado pleitear a denunciação sucessiva do alienante anterior, caso pretenda ser ressarcido no mesmo processo.

7. NOTAS DE CUNHO CONCLUSIVO

Pe lo que se expôs, apresentamos as seguintes conclusões quanto à denunc i a ­ção da l ide e m face do novo Cód igo C i v i l :

a) Apesar da redação do caput do art. 70 do C P C , não há "obr igator ieda­d e " de promover-se a denunc iação da l ide. Apenas na hipótese do inc.

SANCHES, Sydney. Op. cit., p.177. "A denunciação da lide, com base no inc. I do art. 70 do CPC, só é possível ao alie­nante imediato, não per saltum, como já decidiu o STF em vários precedentes. Se, com o descabimento da denunciação, cessa o litígio esboçado entre o Estado e a União, cessa também a competência originária da Corte. (Ac. un. do STF em sessão plenária de 1/2/1989, nas ACO 301-MG e ACO 375-MT, Rei. Min. Sydeny Sanches; RT] 128/973-992, PAULA, Alexandre de, Op. cit., p.631)

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I do art. 70 do CPC, por força do art. 456 do novo CC, há ônus ao adquirente de efetivar a denunciação da lide do alienante imediato, sob pena de não lhe ser lícito pleitear o recebimento da indenização previs­ta no art. 450 do CC. De qualquer forma, ainda que não realizada a de­nunciação do alienante, o adquirente poderá demandar o recebimento do preço pago, corrigido monetariamente.

b) O parágrafo único do art. 456 do CC estabelece que, realizada a denun­ciação e sendo manifesta a procedência da evicção, pode o adquirente deixar de oferecer contestação ou interpor recursos, sem que seja pre­judicado em relação ao seu direito à indenização, nos moldes do que estabelece o art. 450 do CC.

c) É admissível a denunciação da lide sucessiva, assim como a denuncia­ção, pelo adquirente, do alienante imediato e dos alienantes anteriores (denunciação coletiva). Entendemos, porém, que o adquirente não po­de realizar a denunciação per sàltum: é obrigatória a denunciação do alie­nante imediato para denunciar os alienantes anteriores.

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A DENUNCIAÇÃO DA LIDE NO NOVO CÓDIGO CIVIL 317

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Moacyr Amaral Santos. São Paulo, Saraiva, 1995, v.II. WALD, Amoldo. Curso de direito civil brasileiro. 12.ed. São Paulo, RT, 1995, v.II.

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1 A F U N Ç Ã O PARA A C A I C A U S A

S O C I A L E A L E G I T I M A Ç Ã O

L U C I A N O RODRIGUES MACHADO*

Sumário 1. Introdução. 2. A historicidade da função social do contrato. 3. Das bases conceituais da função social. 4. A função social do contrato e a função social da pro­priedade. 5. A função social, a relatividade dos con­tratos e a legitimação para a causa. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.

O novo Código Civil, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2002, me­nos formalista que o Código Civil de 1916, rompe definitivamente com a estru­tura liberal e individualista que prevaleceu no século XIX mediante a incorporação de valores éticos e sociais em seu conjunto de normas.

No campo do direito contratual, o legislador infraconstitucional incluiu no texto do novo Código Civil, de forma expressa, o princípio da função social do contrato. 1 Embora não possa ser considerado o princípio supremo da teoria geral do contrato, é inegável a sua influência sobre os princípios clássicos da autono­mia da vontade, da relatividade dos efeitos do contrato e da força obrigatória dos pactos.

Professor de Direito Civil da Faculdade Novo Milênio, do Instituto Capixaba de Ensi­no. Advogado em Vitória. Diretor do Instituto dos Advogados do Espírito Santo. Di­retor Jurídico do Instituto Brasileiro dos Executivos de Finanças - IBEF-ES. Mestre pela Universidade Gama Filho - RJ. Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função so­cial do contrato.

1 . INTRODUÇÃO

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A FUNÇÃO SOCIAL E A LEGITIMAÇÃO PARA A CAUSA 319

A liberdade contratual, que antes era limitada apenas pela ordem pública e pelos bons costumes, fica, agora, limitada pela função social do contrato. Com isso, o contrato não pode mais ser visto como instrumento que serve apenas para sa­tisfazer aos interesses exclusivos das partes contratantes, sem qualquer preocupa­ção com o meio social em que está inserido.

O princípio da força obrigatória dos contratos, consubstanciado na máxima pacta sunt servanda, que impede a retratação e a modificação unilateral do contra­to, fica, nesse novo contexto, mitigado para permitir a alteração do conteúdo do contrato ou a sua resolução, em determinadas situações, com vistas a atender a almejada justiça contratual.

Em sua formatação clássica, o princípio da relatividade contratual impede que o contrato produza efeitos jurídicos em relação aos terceiros. Por esse princí­pio, com exceção dos casos expressamente previstos em lei, o contrato só produz efeitos jurídicos em relação aos contratantes. No entanto, não se pode negar que o contrato, dotado de função econômica — promover a circulação de riquezas na sociedade - produz efeitos em relação a terceiros. No que diz respeito aos efeitos do contrato, o princípio da função social tem por objetivo proteger a sociedade, de forma indeterminada, das conseqüências prejudiciais que a relação negociai possa causar. Para tanto, é necessário reconhecer, em determinados casos, a legi­timidade ad causam do terceiro prejudicado por uma relação contratual.

Assim sendo, o contrato está comprometido com a sua funcionalização, ou seja, deverá cumprir o seu objetivo próprio de circulação de riquezas (função), ten­do em vista a coletividade e a promoção do bem comum (social).

Nessa nova concepção, a vontade, que sempre foi o principal elemento na for­mação do contrato, perde a importância que lhe era atribuída nos séculos passa­dos 2 para satisfazer as exigências do novo contrato, or iundo da moderna econo­mia de massa, em que as transações comerciais são caracterizadas, na sua grande parte, por contratos padronizados, com capacidade de atender, de forma rápida, um número indeterminado de pessoas. Essa mudança é defendida por Enzo Roppo, sob a justificativa da "necessidade de acelerar, simplificar, uniformizar" as relações de trocas derivadas da produção, da distribuição e do consumo de massa. O autor aler­ta ainda que não se deve atribuir grande relevo à vontade, porque isso implicaria,

O reconhecimento da vontade como fonte criadora das obrigações tem sua origem nos séculos XVII, XVIII e XIX, baseado nos postulados jusnaturalista da individualização da vontade humana. Pela teoria da vontade o contrato deve seguir fielmente a vonta­de dos contratantes, prevalecendo mais o elemento psíquico do indivíduo do que a própria declaração da vontade.

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320 LUCIANO RODRIGUES MACHADO

na verdade, em personalizar a troca, indivualizá-la e, portanto, acabaria por atrapa­lhar o tráfego, cujas dimensões, agora de massa, impõem que se desenvolva de mo­do mais estandartizado e impessoal.

Nessa nova quadra, a vontade deve ser interpretada de m o d o a valor izar mais o c o m p o r t a m e n t o externo dos contratantes ( teor ia da declaração) do que o e le ­m e n t o ps íqu ico que m o t i v o u a parte a contratar ( teor ia da von tade ) . 3

A von tade ind i v idua l não só perde a sua impor tânc ia n a fo rmação do negó ­c io ju r íd i co , m a s t a m b é m passa a sofrer l imi tação e m razão da função social . N o entanto, pode-se dizer que tal l imi tação é, po r ma is paradoxal que possa parecer, u m " l im i t e flexível", j á que não existe u m a def in ição precisa do que seja a função social do contrato, estando à mercê dos operadores do direito a construção de u m a base teórica sólida, a qua l deverá ser fundada na doutr ina e, pr inc ipa lmente , na j u ­r isprudência , med ian te a solução que será dada nos casos concretos.

A n o v a real idade jur íd ica , i nco rporada ao direito obr igac iona l , deverá ex i ­gir d o operador do direi to u m a postura mais aberta, c o m a uti l ização de regras de interpretação baseada nos pr inc íp ios gerais de direito e valores estabelecidos na Const i tu ição .

2. A HISTORICIDADE DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

O s pr inc íp ios da au tonomia da vontade contratua l , da obr igator iedade d o contra to e da re lat iv idade dos seus efeitos f o r a m valor izados e m u m a época na qua l o direi to p r i vado estava inf luenc iado pelos pr inc íp ios l iberais, onde a b a n ­de i ra da l iberdade , do i nd i v idua l i smo e da propr iedade p r i vada d a v a m suporte à crença de que o progresso e o desenvolv imento só p o d e r i a m ser a lcançados e m u m ambien te pr iv i leg iado pela l iberdade e pela segurança jur íd ica . 4

ROPPO, Enzo. O contrato, p.39. A liberdade de contratar era vista como elemento indispensável do processo de pro­dução capitalista, em decorrência da necessidade de se assegurar a livre e rápida cir­culação e produção de riquezas, como observa José Carlos Moreira da Silva Filho. "No plano econômico, a prevalência da autonomia da vontade individual será a pedra basilar do modo de produção capitalista, em contraposição à atitude servil dos indi­víduos sob o domínio do senhor feudal no modo de produção anterior. A idéia de mercado exigia autonomia e liberdade dos sujeitos, para que estes, mediante sua pró­pria vontade, ingressassem no mecanismo de compra, venda, produção de mercadorias e capital e aquisição e transferência ou perda de propriedade. Somente esta liberdade po­deria assegurar a livre produção e circulação de riquezas. A partir deste contexto, não é difícil compreender o porquê da idéia de Estado mínimo. O Estado não deve inter-

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A FUNÇÃO SOCIAL E A LEGITIMAÇÃO PARA A CAUSA 321

Na sociedade liberal do século XIX, 5 o contrato firmado com base no consen­so das vontades individuais e fruto da manifestação livre e espontânea da vontade das partes era considerado justo, independentemente do seu conteúdo. Nesse mo­do de pensar, evidentemente, pressupunha-se a igualdade formal dos contratantes. De fato, a justiça do contrato estava assentada na liberdade contratual e igualdade formal dos contratantes. Se a parte manifestava livremente o seu querer, ninguém melhor do que ela para julgar a conveniência e a própria justiça do contrato. 6 , 7

A igualdade formal entre os indivíduos, que já era concebida, mesmo antes do século XIX, pelo direito natural por intermédio do pensamento filosófico de Hu­go Grócio, 8 passou a ser questionada em conseqüência das modificações sociais

ferir na dinâmica econômica da sociedade, devendo apenas garantir o cumpri­mento das regras do jogo". (SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Hermenêutica filosófica e direito: o exemplo privilegiado da boa-fé objetiva no direito contratual, p.242)

5 As sociedades nascidas das revoluções burguesas tinham como primado a igualdade de todos os cidadãos perante a lei.

6 A respeito da visão do contrato no período liberal destacou Enzo Roppo: "Nesse sis­tema, fundado na mais ampla liberdade de contratar, não havia lugar para a questão da intrínseca igualdade da justiça substancial das operações econômicas de vez em quando realizadas sob a forma contratual. Considerava-se e afirmava-se, de facto, que a justiça da relação era automaticamente assegurada pelo facto de o conteúdo deste corresponder à vontade livre, que, espontânea e conscientemente, o determinavam em conformidade com os seus interesses, e, sobretudo, o determinavam num plano de recíproca igualdade jurídica (dado que as revoluções burguesas, e as sociedades libe­rais nascidas destas, tinham abolido os privilégios e as discriminações legais que ca­racterizavam os ordenamentos em muitos aspectos semifeudais do "antigo regime", afirmando a paridade de todos os cidadãos perante a lei): justamente nesta igualda­de de posições jurídico-formais entre os contraentes consistia a garantia de que as tro­cas, não viciadas na origem pela presença de disparidades nos poderes, nas prerroga­tivas, nas capacidades legais atribuídas a cada um deles, respeitavam plenamente os cânones da justiça comutativa. Liberdade de contratar e igualdade formal das partes eram portanto os pilares - que se completavam reciprocamente - sobre os quais se for­mava a asserção peremptória, sendo que dizer "contratual" eqüivale a dizer "justo" (qui dit contractual dit juste)". (ROPPO, Enzo. Op. cit., p.35)

7 A respeito da justiça contratual, sustenta SILVA FILHO, José Carlos Moreira da, que: "... se a autovinculação é uma capacidade humana, a liberdade contratual é um prin­cípio justo na sua essência". (Op. cit. p.251)

8 Para Paulo Nalin, o direito natural exerceu grande influência na estrutura clássica do contrato, sobretudo nos estudos de Grotius que, em uma concepção divina, defendia o direito de contratar e dispor das coisas sob o pressuposto de que os homens nascem livres e iguais, portanto, sujeitos a "algum direito subjetivo, desprendido de um direi-

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ocorridas a partir do final do século XIX e início do XX. Essas transformações, originadas principalmente do processo de industrialização e de concentração de riquezas, resultaram na despersonalização dos meios de produção e das relações negociais. A figura do contrato paritário, marcado pela igualdade das partes e pe­las negociações preliminares, perdeu espaço para os contratos de massa que, com economia e agilidade, facilitavam o escoamento da produção industrial. As rela­ções contratuais passaram, cada vez mais, a ser realizadas por meio de contratos padronizados para servir a u m número indeterminado de pessoas (impessoais e padronizados), dada a igualdade dessas relações jurídicas. Tais contratos eram ela­borados pelos detentores dos meios de produção e serviços, sem que a outra par­te pudesse discutir o conteúdo do contrato.

Com a modificação substancial do modo de contratar e sua crescente apli­cação na sociedade industrial, constatou-se que a grande parte dos novos contra­tos não mantinha a igualdade material, embora lhes fosse assegurada a igualdade jurídico-formal. Essa desigualdade foi observada mais precisamente no contrato de trabalho. Muito raramente o trabalhador se encontra em condições de igual­dade econômica e intelectual com o empregador. Para o trabalhador, o contrato representa a sua própria subsistência, enquanto para o empregador, o lucro. É difícil imaginar que, nessas circunstâncias, possa existir igualdade plena entre os contratantes, principalmente quando a oferta de emprego é menor do que a pro­cura. Essa diferença dificulta a discussão ou a negociação do conteúdo do con­trato. Na prática, o empregador impõe unilateralmente o conteúdo do contrato, o que compromete seriamente a liberdade de contratar.

Neste caso, o legislador viu-se forçado a editar normas de ordem pública para garantir ao trabalhador uma série de direitos que, independentemente de previ­são expressa de tais direitos no contrato de trabalho, serão reconhecidos e apli­cados automaticamente à relação contratual. E qualquer estipulação contrária à no rma editada pelo legislador não produzirá efeito jurídico. É o reconhecimen­to de que, nesse tipo de contrato, as partes não se encontram, na maioria das ve­zes, em condições de igualdade.

Em face da constatação de que em alguns contratos a igualdade jurídica dos homens perante a lei - igualdade formal — não corresponde à igualdade real (eco­nômica, social e intelectual), surgiu a necessidade de o Estado intervir na economia de alguns contratos para estabelecer limites à liberdade contratual. A lei passou a

to objetivo primordial". (NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional, p.106)

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delimitar o conteúdo de alguns contratos com a finalidade de proteger a parte mais fraca da relação contratual. Para tanto, eram editadas, pelo legislador, regras jurídicas estabelecendo direitos básicos, os quais deveriam ser observados, obriga­toriamente, pelos contratantes (salário mínimo, tabelamento de gêneros alimentí­cios, índice de atualização monetária, periodicidade de correção das prestações, fixação de juros).

Sempre que verificado que uma dada relação contratual não preserva a igualdade de fato das partes, o Estado procura intervir na vida do contrato, cr iando um ambiente que venha conciliar a liberdade contratual e a igualda­de das partes. 9 Assim ocorreu nas relações de compra e venda de imóveis lotea­dos (Decreto-lei n. 58/1937 e Lei n. 6.766/1979), de compra e venda de imóveis em construção (Lei n. 4.591/1964), de locação de imóveis urbanos (Decreto n. 24.150/1934, Lei n. 6.649/1979 e Lei n. 8.245/1991) e nas relações de consu­mo (Lei n. 8.078/1990).

O direito do contrato passou a seguir uma tendência de humanização e so­cialização derivada do pensamento político do início do século XX. No Brasil, o rompimento com o modelo liberal da Constituição de 1891 deu-se por meio da Constituição promulgada em 16 de julho de 1934, que instituiu o modelo demo-crático-social, tomando por inspiração a Constituição Weimer.10

Nessa nova dimensão do direito, reconhece-se que as necessidades humanas, atendidas pelo contrato, devem ser satisfeitas no plano coletivo, sem o compro­metimento dos interesses sociais, e no plano individual, sem a afronta à dignida­de da pessoa humana. Nesse contexto, a liberdade contratual deve ser exercida sem se desviar "dos fins econômicos, dos fins éticos e dos fins sociais que o orde­namento legal tem em conta", conforme expressa Antônio Jeová Santos."

9 De um lado, encontra-se a autonomia privada que corresponde à liberdade de atua­ção humana e, de outro, a lei que impõe limites a essa liberdade de atuação, gerando um conflito pela ocupação pelos dois valores em um mesmo espaço. "Daí que exista certa relação de tensão entre a liberdade originária do homem e a ordem jurídica que a delimita quando remete ações humanas para dentro de um quadro jurídico [...]". (HORSTER, Heirich Ewald. A parte geral do Código Civil Português. Teoria geral do di­reito civil, p.54)

1 0 Comentando sobre a Constituição brasileira de 1934, Paulino Jacques afirmou que: "Essa Constituição procurou conciliar a democracia liberal com a democracia social, o individualismo com o socialismo, no domínio econômico-social; o federalismo com o unitarismo, no setor político; e o presidencialismo com o parlamentarismo, na esfera governamental". (JACQUES, Paulino. Curso de direito constitucional, p.59)

1 1 SANTOS, Antônio Jeová. Função social: lesão e onerosidade excessiva nos contratos, p.117.

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Acompanhando a evolução teórica do direito contratual, o novo Código Ci­vil, que foi elaborado sem as influências do modelo político-liberal do século XIX, ou, pelo menos, não apegado exclusivamente ao dogma liberal, incluiu dois no­vos princípios - função social do contrato e boa-fé objetiva - , modificando a con­cepção dos três princípios clássicos da teoria geral do contrato.

Por esses novos princípios, "a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato" — função social - e "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé" - boa-fé objetiva. 1 2

São normas jurídicas de textura aberta (cláusulas gerais) que objetivam con­ciliar a segurança jurídica extraída do princípio da força obrigatória do contrato com a justiça social, que é proclamada como u m dos objetivos da República. Essa técnica legislativa possibilita a incorporação de valores constitucionalmente esta­belecidos nas normas infraconstitucionais.

3. DAS BASES CONCEITUAIS DA FUNÇÃO SOCIAL

Pelo princípio da função social, incorporado ao texto do novo Código Civil, o contrato, que era visto apenas como instrumento para atender as necessidades das partes contratantes, passou a ser reconhecido como u m instituto jurídico de caráter eminentemente social, de interesse não só das partes, mas também da co­letividade. Agora, o contrato está voltado para a realização do bem-estar comum e deverá ser usado como instrumento de justiça social.

Pela doutr ina da função social do contrato, o direito subjetivo do contratan­te, fundado na autonomia privada e, conseqüentemente, na liberdade contratual, passa a ser limitado pelo interesse maior da sociedade. Nessa nova dimensão do contrato, o interesse coletivo sobrepõe-se aos interesses individuais das partes con­tratantes. O papel desempenhado pelo contrato - circulação de bens e serviços, transferência de propriedade e produção de riquezas — deverá ser instruído com vistas ao desenvolvimento social, respeito à dignidade da pessoa humana e aos valores sociais do trabalho, da livre-iniciativa e da solidariedade.

Essa nova visão funcional do contrato só é possível mediante a integração do direito privado com a ordem Constitucional. Nesse ponto, pode-se afirmar que já se encontra superada, pela doutrina, a concepção, oriunda da Escola da Exegese, de que o direito público e o direito privado são ramos totalmente distintos e incomu-

Conforme redação dos arts. 421 e 422 do Código Civil brasileiro.

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nicáveis, e que, para o direito civil, os princípios constitucionais servem apenas como normas destinadas ao legislador e, excepcionalmente, como instrumento auxiliar de interpretação do direito civil. 1 3

Atualmente, não se concebe a aplicação do direito civil desassociado do con­teúdo social-programático da Constituição Federal. As normas programáticas estabelecidas na Constituição não são endereçadas somente ao Estado, como se fossem apenas um dever a ser perseguido pelo Estado. A finalidade dessas nor­mas é mais ampla, na medida em que servem também como "norte interpretati-vo de todo o sistema jurídico, constitucional ou infraconstitucional". 1 4

Nesse sentido, Gustavo Tepedino defende "uma nova postura metodológica", com o reconhecimento do "caráter normativo de princípios constitucionais como o da solidariedade social, da dignidade da pessoa humana, da função social da pro­priedade". Por essa nova metodologia interpretativa, já acolhida pela doutrina e jurisprudência, os princípios constitucionais passam a ter eficácia imediata nas relações de direito civil. 1 5

A função social do contrato, instituída pelo novo Código Civil como nor­ma infraconstitucional, tem o seu laço normativo ligado aos valores e princípios estabelecidos na Constituição. A função social do contrato só poderá ser corre­tamente entendida se interpretada em consonância com os princípios fundamen­tais estabelecidos na Constituição. 1 6

1 3 Sobre a separação do direito privado do direito público, Gustavo Tepedino faz a se­guinte crítica: "Em outra sede, já tivemos a oportunidade de ressaltar o equívoco de tal concepção, ainda hoje difusamente adotada, que acaba por relegar a norma cons­titucional, situada no vértice do sistema, a elemento de integração subsidiário, aplicá­vel apenas na ausência de norma ordinária específica e após terem sido frustradas as tentativas, pelo intérprete, de fazer uso da analogia e de regra consuetudinária". (TE­PEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: pre­missas para uma reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil constitucional, p.3)

1 4 A respeito dos efeitos da norma programática que defende a dignidade da pessoa hu­mana como valor constitucional supremo, Carlyle Popp afirmou: "Dignidade da pessoa humana não indica somente um dever do Estado, um conteúdo social-programático, mas sim um norte interpretativo de todo o sistema jurídico, constitucional ou infra­constitucional". (POPP, Carlyle. Princípio constitucional da dignidade da pessoa huma­na e a liberdade negociai - A proteção contratual no direito brasileiro. In: LOTUFO, Renan (coord.). Direito civil constitucional, p.168)

1 5 TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p.12. 1 6 A justiça social e o bem-estar coletivo estão inseridos como valores a serem observa­

dos pela sociedade, conforme se depreende do artigo 3 o da Constituição Federal, a se-

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Para Paulo Nalin, a cláusula geral da função social deve ser compreendida de forma sistêmica, baseada, sempre, na Carta Constitucional, pois somente ela con­templa os valores sociais que preencherão a moldura da regra de conceito aber­to ou "em branco". Todavia, adverte Nalin que a função social não está fundada unicamente na Constituição Federal, mas também em "outros saberes, os quais nem sempre pertencem ao próprio sistema jurídico". 1 7

Contudo, a base valorativa necessária à aplicação da cláusula geral da fun­ção social do contrato continua sendo a Constituição Federal, já que

a cláusula geral não se satisfaz com o conceito jurídico em si, devendo ser preenchi­da com fatos e valores de julgamento. Os valores, por sua vez, estão precipuamente anotados na Constituição da República [...]18

Para atender a função social, o contrato deve estar vinculado à ideologia do­minante na Constituição vigente. Não existe espaço no nosso ordenamento cons­titucional para o liberalismo clássico. O princípio prevalente é o da solidariedade, que comporta a idéia de justiça social e de bem-estar comum.

Isso não significa que a liberdade de contratar - u m dos pilares do liberalis­mo — não esteja presente na estrutura contratual ou que, muito menos, tenha perdido a importância na formação do vínculo contratual. Ao contrário, a Cons­tituição Federal vigente alia princípios sociais e liberais. Como exemplo podemos citar os princípios constitucionais da livre-iniciativa e da propriedade privada que fundamentam a ideologia liberal.

A liberdade de iniciativa, prevista no art. 1° da Constituição Federal 1 9 como u m dos fundamentos da República, engloba todas as liberdades humanas, i.e., a liberdade de locomoção, de expressão, de iniciativa econômica, de imprensa, de

guir transcrito: "Art. 3 o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II — garantir o desenvol­vimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigual­dades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

1 7 NALIN, Paulo. A função social do contrato no futuro Código Civil brasileiro. Revista de Direito Privado, v.12, p.52.

1 8 Ibidem, p.52. 1 9 Art. I o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados

e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV— os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo polí­tico, (g. n.)

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profissão. À toda evidência, que nesse sentido maior de liberdade de iniciativa está compreendida a liberdade contratual dirigida pela vontade humana.

A liberdade contratual e a autonomia privada decorrem do princípio da "au­todeterminação do homem", que, segundo Horster, é "um postulado a favor e em função da liberdade", de validade geral, que representa u m "valor fundamental para a ordem jurídica". 2 0

Como se vê, a ordem jurídica tutela a liberdade individual, e por intermé­dio dela confere ao homem a faculdade de estabelecer relações jurídicas de acordo com a sua vontade, assumindo obrigações e adquirindo direitos. Evidentemente, essa liberdade deve ser exercida em conformidade com a ordem jurídica. Horster afirma que:

[...] a lei que estabelece o quadro (ou marca as balizas) para delimitara autonomia privada é norteada e orientada por uma idéia de justiça, a vontade do indivíduo não pode colocar-se à margem da mesma.21

Se, de um lado, não se pode negar que a autodeterminação humana, deriva­da da autonomia privada, não pode ser afastada do conteúdo do contrato, de ou­tro lado, não se pode deixar de reconhecer a vocação do contrato de cumprir a função social fundada no princípio constitucional da solidariedade.

O princípio constitucional da solidariedade serve como um norte para o legislador infraconstitucional. Dessa forma, as normas editadas pelo legislador de­verão ter como primado os objetivos estabelecidos na Constituição, notadamente a construção de uma sociedade mais justa e menos desigual economicamente. 2 2

Aliás, Paulo Nalin lembra que na Itália o princípio da solidariedade está li­gado diretamente à limitação do "exercício da autonomia privada", por meio do art. 41 da Constituição daquele país, na medida em que "inibe o exercício da livre iniciativa quando em contraste com a utilidade social, ou quando possa levar à produção de dano à segurança, à liberdade e à dignidade humanas." 2 3

No direito brasileiro, a recepção do princípio constitucional da solidarieda­de no instituto do contrato surge como imperativo do dever moral de colabora-

2 0 HORSTER, Heirich Ewald. Op. cit. p.52. 2 1 Ibidem, p.52. 2 2 Para Paulo Nalin, sob a ótica Constitucional a solidariedade "deve estar voltada à ver-

ticalização dos interesses do homem, eficaz o suficiente para aniquilar as desigualda­des subjetivas e regionais, configurando-se, como indissociáveis, a solidariedade e a igualdade". (NALIN, Paulo. Op. cit., p. 177-8)

2 3 Ibidem, p.181.

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ção, o qual deve presidir a relação jurídica contratual, seja entre os contratantes entre si, seja entre esses e a sociedade como u m todo. Assim, cumpre a cada parte o dever de não prejudicar a outra, como também evitar que as pessoas que não participaram do contrato sejam por ele prejudicadas.

A imposição do dever de colaboração entre os contratantes, que tem por ba­se o valor constitucional da solidariedade, é extraída do princípio da boa-fé, pre­visto no art. 422 do Código Civil brasileiro. 2 4 Por esse princípio, cumpre às par­tes agir com lealdade e honestidade em todas as fases do contrato, ou seja, durante as tratativas iniciais, na conclusão do contrato, na execução e após a sua extinção. Trata-se de obrigação acessória, posto que não precisa estar prevista ex­pressamente no contrato, de cunho ético, que exige u m comportamento baseado nos padrões usuais (tempo e espaço) para o tipo do negócio jurídico realizado. As­sim, os deveres de colaboração, informação, sigilo, segurança, confiança, etc. estão implícitos em todos os contratos.

O princípio da boa-fé objetiva funciona como elemento de integração do contrato, permit indo que o intérprete preencha as lacunas do acordo de vonta­de, tomando por base o padrão ético de conduta mediana no meio social em que o contrato foi firmado ou executado. Além da função integrativa, serve a boa-fé como meio de interpretação do contrato, conforme expressamente previsto no art. 113 do Código Civil. 2 5

Não obstante a vinculação da boa-fé com o princípio constitucional da soli­dariedade, sustenta Humber to Theodoro Júnior que a boa-fé objetiva não se confunde com a função social do contrato por atuarem em campos distintos. Segundo o autor,

a função social do contrato consiste em abordara liberdade contratual em seus refle­xos sobre a sociedade (terceiros) e não apenas no campo das relações entre as partes que o estipulam (contratantes). Já o princípio da boa-fé fica restrito ao relaciona­mento travado entre os próprios sujeitos do negócio jurídico. 2 6

Parte-se da premissa de que a boa-fé cuida dos efeitos internos do contrato, enquanto a função social está relacionada aos efeitos externos. Nesse sentido, Theodoro Júnior afirma que o próprio nome da função social serve para susten-

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato e a sua função social, p.29.

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tar que o princípio não está voltado para o relacionamento das partes, mas para os reflexos do contrato perante o meio social:

Com efeito, função quer dizer "papel a desempenhar", "obrigação a cumprir, pelo in­divíduo ou por uma instituição". E social qualifica o que é "concernente à sociedade", "relativo à comunidade, ao conjunto dos cidadãos de um país". Logo só se pode pen­sar em função social do contrato quando este instituto jurídico interfere no domínio exterior aos contratantes, isto é, no meio social em que estes realizam o negócio de seu interesse privado.27

Para Theodoro Júnior, o contrato não tem a função de promover a igualda­de entre os contratantes nem tem o objetivo de fazer com que as partes sejam iguais, chegando a afirmar que "o contrato jamais terá semelhante objetivo por­que não se trata de instrumento de assistência ou de amparo a hipossuficientes ou desvalidos..." e que "o único e essencial objetivo do contrato é o de promover a circulação da riqueza, de modo que pressupõe sempre partes diferentes com in­teresses diversos e opostos". 2 8

Segundo o autor, o campo de aplicação da função social situa-se "apenas no relacionamento externo dos contratantes com terceiros, ou seja, no meio social". E quanto aos "problemas do comportamento ético entre os próprios contratan­tes", remete a sua solução para o princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 422 do novo Código Civil. Conclui dizendo que "se o legislador cuidou de discipli­nar separadamente os dois princípios foi porque lhes reconheceu individuali­dade". 2 9

Por sua vez, reconhecendo a dificuldade de estabelecer as bases conceituais da função social do contrato, Paulo Nalin adota posição diferente, sustentando que a base teórica da função social está na "solidariedade (valor) e [n]a boa-fé objetiva (princípio), o segundo fundado no primeiro", destacando que "a função social se apresenta em dois níveis: no intrínseco e no extrínseco". 3 0

Do ponto de vista extrínseco, a função social rompe com o princípio clássi­co da relatividade dos efeitos do contrato com a finalidade de proteger as pessoas (no sentido da coletividade) que não participaram do negócio jurídico bilateral.

Ibidem, p.13. Ibidem, p.44. Ibidem, p.45-6. Para chegar à conclusão de que a base teórica da função social está assentada na soli­dariedade e na boa-fé objetiva, Paulo Nalin desenvolve o seguinte raciocínio: "São am­plas, e logo imprecisas, as bases conceituais da função social do contrato, ora amarradas

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Desse ponto de vista, passa a interessar à sociedade as repercussões do contrato no meio social. 3 1

No plano intrínseco, a função social está baseada na

observância de princípios novos ou redescritos (igualdade material, eqüidade e boa-fé objetiva) pelos titulares contratantes, todos decorrentes da grande cláusula constitu­cional da solidariedade, sem que haja um imediato questionamento acerca do prin­cípio da relatividade dos contratos. 3 2

Luiz Guilherme Loureiro acolhe a posição doutrinária que reconhece os efei­tos internos da função social do contrato. Para ele, essa função pode ser compreen­dida quando o contrato pr ima pela eqüitativa distribuição de riquezas, manten­do o equilíbrio patrimonial das partes no início da contração, de forma que não seja afetado o cumprimento desproporcional do contrato por uma das partes. 3 3

Os dois últimos autores não estão sozinhos. Grande parte dos juristas brasi­leiros reconhece a aplicação da função social no plano interno do contrato, mais precisamente como meio de assegurar a justiça entre as partes contratantes. De maneira geral, os efeitos internos do contrato estão ligados à necessidade de se ga­rantir às partes contratantes o equilíbrio contratual. Eduardo Sens dos Santos sus­tenta que a função social tem "o objetivo de garantir o equilíbrio dos pactos [...]".

Vale dizer, não pode haver vício de consentimento ou onerosidade excessiva-as pres­tações das partes devem ser, em termos objetivos, equivalentes. E isso há de ser rea­lizado com vistas a um princípio maior, que é o da justiça geral. 3 4

A necessidade de o contrato ser socialmente justo e benéfico é defendido por Sens dos Santos, sob o argumento de que a função social não tem apenas a preo­cupação de garantir a eqüidade das relações negociais. Indubitavelmente, seu ob­jetivo é muito maior e está relacionado ao cumprimento das exigências do bem co­mum, ou seja, uma função para a sociedade. Quando o autor se preocupa em

à quebra do individualismo, ora à cláusula geral de solidariedade, tendo em vista a igual­dade substancial, a tutela da confiança dos interesses envolvidos e do equilíbrio das par­celas do contrato". (NALIN, Paulo. Op., cit., p.55-6). Conclui Paulo Nalin que "o contrato em tal desenho passa a interessar a titulares ou­tros que não só aqueles imediatamente envolvidos na relação de crédito". (Ibidem, p.56) NALIN, Paulo. Op. cit., p.56. Cf. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria geral dos contratos no novo Código Civil, p.52. SANTOS, Eduardo Sens dos. O novo Código e as cláusulas gerais: exame da função so­cial do contrato. Revista Forense, v.364, p.97.

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funcionalizar o contrato como meio de realização do bem comum, está, na verdade, reconhecendo a incidência da função social sobre os efeitos externos do contrato. 3 5

Portanto, para Sens dos Santos, o contrato cumpre a função social quando preserva o equilíbrio do contrato (efeito interno) e quando é utilizado para a rea­lização do bem comum (efeito externo).

Partindo do princípio de que o contrato não deve atentar contra o conceito de justiça comutativa, e de que a liberdade de contratar, assim como o direito de propriedade, devem ser exercidos nos limites do desempenho dos deveres com­patíveis com sua função social, o legislador inseriu no Código Civil, na parte rela­tiva ao direito das obrigações, normas jurídicas prevendo a rescisão do contrato firmado com prejuízo para uma das partes, como é o caso da anulação do con­trato celebrado em estado de perigo e do contrato que se torna oneroso para uma das partes por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. Ainda no direito das obrigações, podem ser destacadas a regra que combate o enriquecimento sem causa e a que prevê a redução de cláusula penal excessiva, incorporadas ao texto do Código Civil como forma de atender a nova concepção do contrato, segundo doutrina de Caio Mário da Silva Pereira. 3 6

No entanto, Caio Mário sustenta que nesse novo sentido do contrato a sua função não está mais limitada ao atendimento do interesse exclusivo das partes contratantes, ao afirmar que:

Hoje o contrato é visto como parte de uma realidade maior e como um dos fatores de alteração da realidade social. Essa constatação tem como conseqüência, por exem­plo, possibilitar que terceiros que não são propriamente partes do contrato possam nele influir, em razão de serem direta ou indiretamente por ele atingidos.37

Pela ótica de Caio Mário sobre a nova roupagem do contrato, a função so­cial do contrato manifesta-se no plano interno (relação entre as partes), quando ele se refere à necessidade de o contrato preservar a justiça comutativa entre os con-

A respeito da ligação da função social aos efeitos externos do contrato, pode-se des­tacar a seguinte passagem: "O contrato somente terá uma função social - uma fun­ção pela sociedade - quando for dever dos contratantes atentar para as exigências do bem comum, para o bem geral. Acima do interesse em que o contrato seja respeita­do, acima do interesse em que a declaração seja cumprida fielmente e acima da noção de equilíbrio meramente contratual, há o interesse de que o contrato seja socialmen­te benéfico, ou, pelo menos, que não traga prejuízos à sociedade - em suma que o con­trato seja socialmente justo". (Ibidem, p.97) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v.3, p.13. Ibidem.

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tratantes, mediante a aplicação de regras do Código C i v i l que t ra tam do equil íbrio e conômico d o contrato. N o n íve l externo (o contrato e m relação a terceiros), a função social manifesta-se pelo reconhec imento da inserção do contrato n o me io social e pela possibi l idade de terceiros at ingidos pelo contrato in ter fer i rem na r e ­lação cont ra tua l . M e s m o não fazendo menção expressa a respeito dos seus efe i ­tos quanto ao p lano de inc idênc ia ( in terno e externo) , não se pode negar que o autor não rejeita n e n h u m dos dois níveis de manifestação.

Para Sérgio Be rmudes , a função social está enquadrada na perspectiva da u t i ­l ização do contrato n o interesse coletivo. E l e a f i rma que:

A função constitui atividade natural ou dirigida de um ser qualquer, pessoa, coisa, ór­gão, cargo, instrumento. Quando o direito, como sistema de normas disciplinadoras da vida na sociedade, manda observar a função social de certas instituições, como a propriedade, ele determina o seu uso no proveito geral. A concepção individualista dos direitos, existentes para a satisfação dos interesses exclusivos dos seus titulares, vai dando lugar à idéia do uso dos bens em benefício de todos, para a constituição da sociedade ideal, assentada naqueles princípios, chamados iuris praecepta por Ulpia­no, o jurisconsulto de Roma, que os enunciou: viver honestamente, não prejudicar o outro, dar a cada um o que é seu. 3 8

Segundo Sérgio Bermudes , o contrato cumpre a função social quando ele aten­de às necessidades que , po r me io dele, p o d e r i a m ser satisfeitas sem causar pre ju í ­zo para o g rupo social. F ica evidente que a preocupação ma io r do autor é c o m os efeitos externos do contrato.

N ã o obstante a divergência dout r inár ia a respeito do c a m p o de apl icação da função socia l , uns reconhecendo apenas os efeitos externos e outros os efeitos i n ­ternos e externos, não h á discordância quanto à manifestação da função social no p l ano externo do contrato.

S e m embargo das vozes discordantes, não se pode negar que a função social d o contra to afeta t a m b é m a parte interna do acordo de vontades, na med ida e m que a sua base teór ica está f undamen tada nos pr inc íp ios const i tuc ionais da s o ­l idar iedade e da igualdade. É inegável que o contrato serve c o m o ins t rumento pa ra satisfação dos interesses exclusivos das partes contratantes. N o entanto, de acordo c o m o novo perf i l do contrato - const i tucional izado - a sua func i ona l i ­dade n ã o está restrita ao exclusivo interesse das partes, e não se admi te ma is que ,

BERMUDES, Sérgio. Artigo publicado na revista eletrônica No Mínimo. Disponível em http://nominimo.ibest.com.br/servlets/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDe-Secao?codigoDaSecao=24&dataDoJornal=atual.

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e m n o m e desse interesse, possam os contratantes prejudicar a terceiros (efeito ex­te rno ) , o u m e s m o as própr ias partes, na busca da realização de suas necessidades (efeito in te rno ) . Nesse sent ido, c o m relação aos efeitos internos do contrato, a função social está re lac ionada d i retamente aos pr inc íp ios da boa-fé objetiva e do equi l íbr io contratua l .

Isso não significa que o ju iz , d iante de u m caso concreto, constatando s i m ­plesmente o desequi l íbr io das prestações de u m contrato, possa determinar a sua revisão o u decretar a sua anulação, invocando a cláusula geral da função social deste. Tratando-se dos efeitos internos do contrato, é preciso que o ju iz ver i f ique se, no caso concreto, estão presentes todos os requisitos legais de admiss ib i l ida­de da alteração da declaração de vontade po r determinação jud ic ia l , sob pena de v io lar o pr inc íp io da au tonomia da vontade, reconhecido expressamente por n o r ­m a infraconst i tuc ional (ar t . 421) , que t e m o seu fundamen to n o p r inc íp io cons ­t i tuc iona l da l ivre-iniciat iva.

N ã o se deve descurar da necessidade de preservação do contrato conc lu ído segundo a manifestação l ivre e consciente da vontade das partes contratantes. Interessa à sociedade que os contratos se jam cumpr idos na fo rma e m que f o r a m pactuados. A quebra desse p r inc íp io é u m a exceção, que só pode ser admi t ida nas hipóteses previstas e m lei . A r r u d a A l v i m revela grande preocupação c o m a u t i l i ­zação do pr inc íp io da função social para revisão de toda e qua lquer situação que impor te e m quebra do equi l íbr io contra tua l , ao expressar que :

[...] Quer dizer, um contrato, no fundo, apesar dessas exceções que foram apostas ao princípio do pacta sunt servanda, é uma manifestação da vontade que deve levar a determinados resultados práticos, resultados práticos esses que são repre­sentativos da vontade de ambos os contratantes, tais como declaradas e que se conjugam e se expressam na parte dispositiva do contrato. Nunca se poderia inter­pretar o valor da função social como valor destrutivo do instituto do contrato. Por isto é que tenho a impressão de que o grande espaço da função social, de certa maneira e em escala apreciável, já se encontra no próprio Código Civil, através exa­tamente desses institutos que amenizam, vamos dizer, a dureza da visão liberal do contrato [...]3 9

A questão aqu i tratada está re lac ionada aos efeitos internos do contrato, c ampo do qua l a au tonomia pr ivada deve sofrer o m í n i m o de restrição, sob pena de aniqui lar o e lemento essencial na fo rmação do contrato, que é a vontade . Po r

ARRUDA ALVIM, José Manoel de. A função social dos contratos no novo Código Civil. Revista dos Tribunais, v.815, p.30.

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isso, cuidou o legislador, de forma objetiva, de regular as hipóteses e as formas em que o Estado poderia intervir no relacionamento interno dos contratantes.

Com relação aos efeitos internos, o princípio da função social do contrato po­de ser identificado no estado de perigo, na lesão, na sua resolução por onerosida­de excessiva, previstos no novo Código Civil.

No estado de perigo, é conferido, à parte contratante, o direito de pedir a anulação 4 0 do contrato quando, premido da necessidade de salvar a si, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume compromisso excessivamente oneroso. 4 1 No entanto, para a anulação do acordo de vontades, o contratante prejudicado deve provar: 1) que celebrou o contrato premido da necessidade de salvar a si ou a pessoa da sua família de grave dano; 2) que o grave dano que o motivou à contratação era conhecido da outra parte; e 3) que o compromisso era excessivamente oneroso. A falta de qualquer u m desses re­quisitos inviabiliza a pretensão de anulação do contrato. Caracterizada a situa­ção de estado de perigo, o juiz não pode alterar o conteúdo do contrato, apenas anulá-lo.

Out ro dispositivo vinculado ao princípio da função social é o que trata do instituto da lesão. Na lesão, o contratante assume uma prestação desproporcio­nal ao valor da contraprestação, motivado por premente necessidade ou por inexperiência. 4 2 A anulação do contrato fundado na lesão somente será cabível se presente todos os requisitos previstos no art. 157 do Código Civil. Na lesão, também, o juiz não pode ingressar na esfera interna do contrato para impor u m conteúdo diverso do que foi acertado pelo acordo de vontades. Entretanto, o juiz pode deixar de anulá-lo se for oferecido pela parte beneficiada o suplemen­to suficiente e a parte prejudicada concordar. Destarte, por intermédio do ins­tituto da lesão é possível anular o contrato que nasceu viciado ou garantir a sua comutatividade e, conseqüentemente, permitir que este cumpra sua função social.

4 0 O art. 171 do Código Civil está redigido nos seguintes termos: "Além dos casos ex­pressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I — por incapacidade re­lativa do agente; II — por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores", (grifo nosso)

4 1 Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assu­me obrigação excessivamente onerosa.

4 2 Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexpe­riência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.

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Nesses dois casos específicos (estado de perigo e lesão) o negócio jurídico já nasce viciado, 4 3 sujeito à anulação pela parte prejudicada. É uma garantia de que o contrato não pode ser u m instrumento de injustiça ou de promoção das desi­gualdades, e que, nessas condições, a declaração de vontade manifestada pode não vincular as partes contratantes.

No contrato de execução diferida ou continuada, a parte que é surpreendi­da pela onerosidade excessiva da sua prestação por fato extraordinário e super­veniente à contratação, o qual traz extrema vantagem para outra parte, pode requerer a resolução do contrato. 4 4 A diferença desse caso para os dois primeiros é que o negócio jurídico aqui não nasce viciado. O que justifica a resolução do contrato é a perda superveniente da sua comutatividade inicial. Conclui-se, com isso, que a possibilidade de resolução do contrato nessas circunstâncias faz com que este cumpra a sua função social, referente à circulação de bens e riquezas sem prejudicar os contratantes. 4 5

Seguramente, pode-se afirmar que o contrato cumpre a função social, com relação aos efeitos internos, quando é assegurada a funcionalidade dos dispositi­vos legais que tutelam a igualdade e a eqüidade no contrato.

4 3 Arruda Alvim, comentando sobre os institutos em questão, afirmou: "Vê-se, então, que o estado de perigo e a lesão são dois institutos de grande envergadura que se colocam para reformular a comutatividade do contrato, porque nasce gravemente viciado. (ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Op. cit., p.29)

4 4 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em vir­tude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a re­solução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

4 5 Não basta que a prestação se torne excessivamente onerosa para uma das partes, é preciso, também, que o fato superveniente traga grande vantagem para a outra parte, sob pena de não ser possível o pedido de resolução do contrato, conforme afirma Ar­ruda Alvim: "Agora, a onerosidade excessiva que alguns se referem como teoria da imprevisão e, na verdade, aqui conquanto seja onerosidade excessiva, há elemento normativo que se refere à imprevisão, na verdade ela diz o seguinte: suponha-se que em contrato de execução continuada ou execução diferida no tempo, que a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa, com extrema vantagem para outra. Aqui há também uma onerosidade excessiva, um desequilíbrio que se projeta em ambos os contratantes, porque se fala em excessivamente onerosa para o devedor, circunstância essa que, correlata ou correspondentemente, deverá, essa prestação, re­presentar extrema vantagem para outra. Não se trata — frise-se — de ser apenas excessiva a onerosidade, de um lado, do devedor; mas aqui se estabeleceu uma con­gruência ou uma correspondência entre a onerosidade excessiva e a extrema vanta­gem que essa onerosidade excessiva representa". (Ibidem.)

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Nesse ponto, Arruda Alvim declara que "o mais expressivo significado da fun­ção social do contrato é o de que ele se encontra permeado, através de outros tex­tos próprios do Código Civil". É o reconhecimento de que a descrição da função social está contida na própria lei, e que não

pode ser entendida como destrutiva da figura do contrato, dado que, então, aquilo que seria um valor, um objetivo de grande significação (função social), destruiria o pró­prio instituto do contrato. 4 6

Ainda com relação aos efeitos internos do contrato, a função social pode ser utilizada, no aspecto prático, como instrumento de interpretação deste. Na inter­pretação de u m contrato no qual haja conflito de interesses, sendo ambos váli­dos, o julgador deverá, em prestígio ao princípio da sociabilidade, decidir em favor do interesse mais próximo do bem comum, ou seja, daquele que esteja cum­prindo a função social. O princípio da função social, baseado nas regras de soli­dariedade, deve "levar o intérprete-aplicador a, quando da ponderação de situações singulares, ter em conta os efeitos dos exercícios individuais, nas suas projecções sociais e econômicas". 4 7

4. A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

A Constituição Federal de 1988, além de qualificar a propriedade privada e a função social da propriedade como princípios informadores da ordem econô­mica (art. 170, II e III), de forma inovadora, 4 8 incluiu a função social da proprie­dade entre os direitos e garantias fundamentais do indivíduo (art. 5 o , XXIII). Com isso, o legislador constitucional vinculou a função social não apenas à ordem eco­nômica, mas também aos princípios e objetivos estabelecidos nos arts. I o e 3 o da Constituição Federal.

Ibidem, p.30. MENEZES CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha. A boa-fé no direito civil, p.1.232. Na Constituição de 1967, a função social da propriedade era prevista apenas no capí­tulo da Ordem Econômica e Social. A Constituição de 1934, a exemplo da atual Cons­tituição, incluiu no capítulo dos Direitos Individuais a regra limitando o exercício do direito de propriedade. "Art 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangei­ros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à sub­sistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 1) [...] 17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou

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E m con fo rmidade c o m o texto da Const i tu ição de 1988, o novo Cód igo C i ­

v i l traça os contornos da função social da propr iedade , estabelecendo que:

Art. 1.228. [...]

§ 1 o 0 direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalida­des econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológi­co e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Este m e s m o texto estabelece que "são defesos os atos que não t razem ao p r o ­pr ietár io qua lquer comod idade , o u ut i l idade, e se jam an imados pela intenção de pre judicar o u t r e m " (ar t . 1.228, parágrafo 2 o ) .

Ho j e , a propr iedade é u m a instituição jur íd ica , concebida para satisfazer u m a necessidade econômica (p rodução ) o u pessoal (morad i a e c o n s u m o ) , cujo exer­cício está condic ionado ao cumpr imento da função social, que se manifesta na p r ó ­pr ia conf iguração estrutural do direito de propr iedade , na med ida e m que ela p rópr i a é dotada, po r força de le i , de função social .

Nesse sentido, não seria correto af i rmar, s implesmente, que o direito de p r o ­pr iedade é u m direito absoluto, sujeito a restrições. O direito de propr iedade não é d im inu ído pelas l imitações impostas pelo o rdenamento jur íd ico . Q u a n d o se v e ­da o exercício do direito de propr iedade contrár io às suas finalidades econômicas e sociais, na verdade, está se t raçando o perf i l do p rópr io direito de propr iedade, que é, necessariamente, atrelado à função social .

O d i re i to de p rop r i edade é v is to , na a tua l idade , c o m o u m "poder-dever" , po is seu exercício é feito não apenas n o interesse exclusivo do seu t i tular , mas t a m b é m n o de out ras pessoas, devendo , necessar iamente , estar inser ido e m u m contexto soc ia l e m que o seu uso, a l ém de estar cond i c i onado ao c u m p r i m e n ­to das f ina l idades econômicas e sociais, n ã o pode pre jud ica r os direitos de ter ­ceiros.

O p r inc íp io da função social a tua lmente não t em apenas u m a feição nega­tiva, consistente n a impos ição de obrigações de não fazer impostas pelo o rdena ­men to jur íd ico ao propr ie tár io , mas t a m b é m u m a feição posit iva, no sentido de que , mui tas vezes, o exercício do direito de propr iedade exige ações voltadas à sa­tisfação de exigências do b e m c o m u m .

utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalva­do o direito à indenização ulterior."

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Assim como a propriedade, o novo contrato não é mais visto como u m ins­t rumento para satisfazer os interesses exclusivos do contratante, sem qualquer preocupação com a coletividade. Dentro desse prisma, Arruda Alvim afirma que:

A propriedade passou a ser vista, também, como devendo respeitar, além do interes­se do proprietário, os interesses da sociedade. Vale dizer, tanto o contrato quanto o direito de propriedade, passaram a ser legitimados também em face da sociedade, e, deixaram de gravitar, exclusivamente, em torno do indivíduo.49

A visão individualista e absolutista do contrato e da propriedade ficou supera­da pelas transformações sociais e pelo reconhecimento da necessidade de conciliar o interesse individual do proprietário e dos contratantes com o interesse coletivo.

A função social impõe que o exercício do direito de propriedade, bem como o da liberdade contratual, não sejam submetidos ao arbítrio do proprietário nem do contratante mais forte economicamente. Esses institutos têm u m papel im­portante a desempenhar, diferente da época do liberalismo clássico em que o con­trato e a propriedade t inham por finalidade o atendimento exclusivo aos interes­ses do proprietário e dos contratantes. Agora, o direito subjetivo das partes -proprietário e contratante - deverá ser exercido tendo em vista não só os interes­ses individuais, mas também devem estar voltados para a satisfação dos interesses da sociedade. 5 0

Parece haver uma diferença marcante entre os dois institutos. Na proprieda­de é fácil identificar o interesse coletivo sobre uma propriedade privada, à medi­da que no direito de propriedade é estabelecida uma relação intersubjetiva entre o proprietário da coisa, de u m lado, e u m número indeterminado de pessoas, de outro lado. O efeito erga omnes, produzido por essa relação, consistente no dever geral de abstenção da sociedade perante o direito do proprietário, justifica a re­gulamentação desse direito, tomando por base as pessoas envolvidas na relação jurídica (proprietário e sociedade em geral).

O mesmo não se pode afirmar sobre o contrato, no qual a relação contratual se manifesta entre pessoas conhecidas - de um lado, o credor, e, do outro lado, o devedor. Trata-se, em princípio, de uma relação jurídica obrigacional, que só diz respeito às partes envolvidas no contrato, o qual não deveria produzir efeitos em relação a terceiros.

ARRUDA AD/IM, José Manoel de. Op. cit. Texto da palestra enviado gentilmente pelo autor por meio de correio eletrônico. A parte aqui citada não encontra correspondên­cia no artigo publicado na Revista dos Tribunais, mencionado anteriormente. Cf. SANTOS, Antônio Jeová. Op. cit., p.l20-1.

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No entanto, não é isso que se verifica na prática. O contrato, na sua função econômica de promover a circulação de riquezas, produz efeitos diretamente na sociedade, uma vez que movimenta a economia, ora impulsionando os fatores de produção, ora reprimindo tais fatores. Os reflexos dos efeitos econômicos gera­dos pelo contrato podem alcançar pessoas que dele não participaram, atingindo, inclusive, a esfera patrimonial dessas pessoas.

Assim, o contrato, em maior ou menor proporção, interessa não só as par­tes que dele participam, mas também a toda a sociedade. O interesse coletivo pelo contrato, assim como pela propriedade, justifica a necessidade de o Estado intervir na relação privada dos contratantes para regulamentar o exercício do di­reito de liberdade de contratar, estabelecendo como marco dessa liberdade o aten­dimento da função social do contrato.

5. A FUNÇÃO SOCIAL, A RELATIVIDADE DOS CONTRATOS E A LEGITIMAÇÃO PARA A CAUSA

De acordo com o princípio da relatividade, o contrato só produz efeitos entre as partes, e por isso não pode prejudicar ou favorecer terceiros 5 1 que não tenham participado do negócio jurídico, com exceção da estipulação em favor de terceiro, da promessa de fato de terceiro e do contrato com pessoa a declarar, sendo que no primeiro caso a indicação do beneficiário (terceiro) é estabelecida previamente com a concordância dos contratantes principais. No segundo e ter­ceiro casos, para que o compromisso possa ser exigido é imprescindível a concor­dância posterior do terceiro, sob pena de o contrato ficar valendo apenas para as partes iniciais.

Essa era a visão do princípio da relatividade na vigência do Código Civil de 1916. A partir da vigência do novo Código Civil, esse princípio passa a ser acolhi­do com entendimento diferente, adaptando-se às novas diretrizes teóricas do direi­to civil.5 2

Nesse sentido, o terceiro não é apenas a pessoa que não participa do negócio jurídi­co, mas que também é absolutamente alheio ao negócio, conforme afirma Sílvio de Salvo Venosa. (Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, v.2, p.487) O novo Código Civil tem como base os princípios da operabilidade, eticidade e socia­lidade, sendo que este último tem como fundamento a solidariedade social, prevista na Constituição Federal como um dos objetivos da República (art. 3 o , III).

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A regra era de que o contrato só poderia produzir efeitos entre as partes, con­forme previa o revogado art. 928 do Código Civil de 1916. 5 3 Prevalecia a máxima de que ninguém pode ser credor ou devedor contra a sua vontade.

Entretanto, sob a nova ótica do direito contratual, não se pode negar que os reflexos do contrato não ficam limitados às partes contratantes, produzindo, mui­tas vezes, efeitos em relação a terceiros.

Pelo princípio res inter alios acta, allis neque nocet nequepotest, o terceiro pre­

judicado, em princípio, não teria legitimidade para, com base na responsabilida­de contratual, pleitear indenização em razão de prejuízo causado pelos efeitos de u m contrato do qual não participou.

No nosso direito há uma tendência à reformulação do conceito de "parte" e de "terceiro" para efeito de aplicação do princípio da relatividade. Teresa Negrei-ros, referindo-se à ousada tese de Mireilli Bacache-Gibeili, La Relativité des Con-ventions et les Groupes, diz que a citada autora defende que a extensão dos efei­tos dos contratos a quem não é parte contratante se legitima pela nova conceituação de "parte", decorrente da função do contrato de realizar justiça comutativa e de dar segurança jurídica às relações econômicas, enfim, da função social do contrato. Nessa nova conceituação, entende-se como "parte" não ape­nas as pessoas que participaram da formação do contrato, mas também todas as pessoas que são afetadas por ele. 5 4

Toda vez que o contrato produzir efeitos alcançando direito de terceiros não contratantes, o princípio da relatividade dos efeitos do contrato deve ser flexibi­lizado para, em razão da função social do contrato, permitir que o terceiro formu­le sua pretensão, interferindo nessa relação contratual, pedindo a sua anulação ou indenização.

Pelo princípio da função social, a sociedade deve ser protegida dos efeitos decorrentes do contrato celebrado entre os indivíduos, ainda que em prejuízo da liberdade de contratar. Não se pode admitir que o contrato, ao atender os inte­resses das partes contratantes, prejudique terceiros que não participaram do ne­gócio jurídico.

No Código de Defesa do Consumidor, percebe-se, claramente, a quebra do princípio clássico da relatividade contratual. No contrato baseado na relação de consumo, o fabricante, o produtor, o construtor e o importador respondem soli-

O referido dispositivo estava regido nos seguintes termos: "A obrigação, não sendo per­sonalíssima, opera assim entre as partes, como entre os seus herdeiros". NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas, p.230-1.

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dar iamente po r danos sofridos pelo consumidor e m razão de defeitos apresenta­dos nos produtos colocados à venda . 5 5

Nesse caso, o contrato não produz efeitos apenas e m relação ao fornecedor e consumidor . A s pessoas referidas n o art. 12 do Cód igo de Defesa do C o n s u m i ­dor poderão ser at ingidas pelos efeitos do contrato, m e s m o não tendo par t i c ipa ­do do negócio ju r íd i co . 5 6

Cláud ia L i m a Ma rques , ao discorrer sobre a necessidade de se proteger os sujeitos da relação de consumo, compreendidos estes, não apenas os envolv idos diretamente, defende a relativização do preceito de que o contrato só produz efei ­tos entre as partes, tendo assentado que:

Relativiza-se, assim, o postulado que contrato só tem efeito entre as partes [res

inter alios acta). As novas tendências sociais da concepção de contrato postulam que, em alguns casos, o raio de ação do contrato deva transcender a órbita das partes. 5 7

A autora explica que, n o sistema do Código de Defesa do Consumidor , o c o n ­trato p roduz direitos e m relação a terceiros, exempl i f icando a equiparação legal da empresa que contrata u m p lano coletivo de saúde para seus empregados, des­t inatár ios finais dos serviços de p lano de saúde. A empresa, neste caso, fica e q u i ­parada aos consumidores finais na relação jur íd ica c o m a empresa prestadora dos serviços de saúde. 5 8

M e s m o não sendo a destinatária f inal dos serviços, a empresa empregadora terá leg i t imidade para p ropo r ação e m face da seguradora, f undamentando o seu direi to cont ra tua l c o m base nas regras do Cód igo de Defesa do Consumido r , e m

O art. 12 do Código de Defesa do Consumidor estabelece que: "O fabricante, o pro­dutor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independen­temente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, ma­nipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por in­formações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos". Mesmo não tendo participado do contrato, as pessoas identificados no art. 12 do CDC estarão legitimadas para responder a pretensão formulada pelo consumidor. Es­sa legitimação passiva ad causam decorre da própria lei, que coloca esses terceiros co­mo coobrigados pelos danos causados ao consumidor. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regi­me das relações contratuais, p.228-9. Ibidem, p.231.

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razão da sua equiparação ao consumidor po r determinação do art. 29 do C ó d i ­go de Defesa do C o n s u m i d o r . 5 9 , 6 0

N a relação de consumo , os sujeitos do contrato não são apenas as partes que pa r t i c ipa ram in ic ia lmente do contrato. Pode haver, nessa relação, u m n ú m e r o de sujeitos indeterminados (terceiros), que , u m a vez qualif icados ju r id icamente , p o ­d e m ser considerados c o m o parte (p lano da existência) , tornando-se, c o m isso, sujeitos do direi to contra tua l (p l ano da ef icácia) .

O f e n ô m e n o da superação do conceito de sujeito i nd i v idua l n o Cód igo de Defesa do C o n s u m i d o r serv iu para quebrar o dogma t rad ic iona l da relat iv idade absoluta dos efeitos do contrato e m relação a terceiros. É o que revela C l áud ia L i m a M a r q u e s :

Em outras palavras, a superação do conceito de sujeito individual de direitos nas re­lações de serviços de consumo possui o condão de quebrar também alguns dogmas da teoria geral dos contratos. É, justamente, no plano da eficácia, que se localiza outra modificação importante trazida para o Direito Civil pelo CDC: os efeitos con­tratuais expandidos ou qualificados pela definição ampla de sujeito de direito da relação de consumo. Ora, se o terceiro é parte e é definido como consumidor, é sujei­to de direitos mesmo em relações contratuais que não participa diretamente, mas as quais pode estar "exposto" ou estar "intervindo" sem vontade declarada". 6 1

É o caso da v í t ima dos acidentes de consumo, que m e s m o não sendo o c o n ­s u m i d o r contratante fica protegida pelas no rmas de defesa do consumidor , c o m o se tivesse sido o p róp r i o contra tante . 6 2 O s efeitos do contrato vão a l ém dos c o n ­tratantes. Aque le que não pa r t i c ipou da fo rmação do v í n cu lo ju r íd i co poderá v i r a ser sujeito de direi to desse v íncu lo se, de a lgum m o d o , for at ingido pelo con-

5 9 O art. 29 do CDC dispõe que: "Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas". O capítulo a que se refere o dispositivo é o capítulo V "Das práticas comer­ciais", e o seguinte é o capítulo VI "Da proteção contratual".

6 0 É preciso que se esclareça que a legitimidade da empregadora para formular preten­são em face da seguradora, neste caso, não decorre apenas do fato de ser esta a esti-pulante, mas também pela sua equiparação legal ao consumidor, ou seja, como a própria parte prejudicada, tanto que a relação jurídica material e processual será regi­da pelas regras do Código de Defesa do Consumidor.

6 1 Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Op. cit., p.232. 6 2 Na seção que trata da responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, as pessoas re­

feridas nos arts. 12 e 13 do CDC respondem por danos causados a terceiros, ainda que não vinculados diretamente ao contrato de consumo, consoante estabelece o art. 17 do

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trato. Isso decorre da nova concepção do conceito de "parte" e de "terceiro", ins­tituída pelo Código de Defesa do Consumidor.

Aliás, essa nova concepção não é mais exclusiva do Código de Defesa do Con­sumidor. Com a entrada em vigor do novo Código Civil, notadamente pela in­corporação de norma que determina que a autonomia da vontade da parte será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, todos aqueles que forem atingidos pelo contrato de forma negativa, pelo abuso da liberdade de con­tratar, estarão legitimados para formular pretensão em face dos contratantes.

Mesmo antes de entrar em vigor o Código Civil de 2002, a jurisprudência re­conhecia o direito do promitente comprador de imóvel, sem contrato registrado, opor-se à penhora ou venda judicial do bem objeto da promessa nas execuções movidas em face do promitente vendedor. 6 3 Nessa hipótese, o contrato de pro­messa de compra e venda, ainda que não registrado, produz efeitos erga omnes. Com isso, os terceiros, estranhos ao negócio, não poderão se comportar como se o contrato não existisse.

O Tribunal Regional Federal da I a Região decidiu que não é válida a hipote­ca constituída pelo incorporador em garantia de empréstimo para construção de prédio sem a anuência do promitente comprador. Nesse caso, o promitente com­prador tem legitimidade ativa para propor ação pleiteando a desconstituição da hipoteca em face do credor hipotecário. 6 4

O negócio realizado entre incorporador e instituição financeira não pode atingir o contrato realizado entre a promitente vendedora e o promissário com-

CDC. "Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento". Essa matéria já está pacificada na jurisprudência, tendo o Superior Tribunal de Justiça editado a Súmula n. 84, nos seguintes termos "É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro." As ementas dos julgamentos citados foram publicadas nos seguintes termos: "Proces­sual Civil e Civil - Preliminares de Ilegitimidade Ativa e Passiva ad causam Rejeitadas - Contrato de Concessão de Crédito com Garantia Hipotecária Firmado entre Incorpo-radora de Edifício em Condomínio e a CEF - Bem Objeto de Promessa de Compra e Venda - Adquirentes de Unidade Autônoma - Libertação de Hipoteca - Possibilidade - 1. Ainda que não seja parte no contrato de concessão de crédito com garantia hipote­cária firmado entre o agente financeiro e a incorporadora do empreendimento, o pro­missário comprador de unidade autônoma detém legitimidade para pleitear o cancela­mento de hipoteca sobre ela constituída em favor do agente financeiro, por ser o único prejudicado com o gravame. 2. Constituída a hipoteca em favor da CEF, somente ela tem legitimidade para vir a juízo defender a subsistência integral do gravame. 3. O

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prador. Esse, ao adquirir sua unidade condominial, pautado na boa-fé, por meio de ins t rumento particular de promessa de compra e venda, em caráter irrevogá­vel e irretratável, sem cláusula de arrependimento, não pode ter o seu direito à aquisição do imóvel obstado pela constituição de um direito real sobre o imóvel por parte do promitente vendedor. Nessa circunstância, a hipoteca regularmente constituída não tem eficácia em relação ao adquirente da unidade. 6 5

Também merece lembrança o julgamento do Recurso Especial n. 257.880-RJ, da 4 a Turma do Superior Tribunal de Justiça, em que ficou assentado que:

financiamento de empreendimento imobiliário objeto de incorporação levada a efei­to na forma da Lei n. 4.591/1964 é negócio suigeneris, que não se coaduna com as ve­lhas disposições do Código Civil, de 1916, reguladoras do efeito erga omnes da hipo­teca. 4. Os efeitos da hipoteca resultante de tal financiamento são ineficazes em relação ao adquirente de unidade autônoma, que pagou pelo imóvel e não participou da avença firmada entre a instituição financeira e a incorporadora, ainda mais tendo presente a circunstância de que a CEF parece ter negligenciado a preservação de seu crédito perante sua devedora, ao deixar de exercer as faculdades que lhe foram con­feridas no contrato de financiamento, para garantia do recebimento de seu crédito. 5. Apelo da CEF improvido. (TRF I a R., AC 33000033700 - BA, 5 a T., Rei. Des. Fed. An­tônio Ezequiel da Silva, DJU 2/12/2002 - p.62); "Civil e Processual Civil - Legitimi­dade Ativa e Passiva ad causam - Preliminares Rejeitadas - Edifício Residencial - Con­trato Particular de Promessa de Compra e Venda de Unidades - Quitação - Liberação da Hipoteca pela Instituição Financeira - Adquirentes com Características de boa-fé - 1. O promissário comprador de unidade residencial, mediante Promessa de Com­pra e Venda, adimplida regularmente em todas as suas cláusulas e condições, tem legi­timidade para propor ação que vise ao cancelamento de hipoteca que grava o imóvel. 2. A CEF, à sua vez, ostenta legitimidade passiva ad causam, dado que participou do empreendimento na qualidade de agente financeiro, de acordo com o contrato de Escri­tura Pública de Mútuo de Dinheiro com Obrigações, Hipoteca e Fiança firmado com a Construtora do edifício. 3. Os efeitos da hipoteca resultante de financiamento imo­biliário são ineficazes em relação ao terceiro, adquirente com característica de boa-fé, que pagou pelo imóvel e não participou da avença firmada entre a instituição finan­ceira e a construtora, ainda mais tendo presente a circunstância de que a CEF agiu com manifesta negligência na preservação de seu crédito perante sua devedora, dei­xando de fiscalizar a alienação das unidades imobiliárias, na forma prevista no con­trato de mútuo. 4. Preliminares rejeitadas. 5. Apelação improvida." (TRF I a R., AC 33000034551 - BA, 5 a T, Rei. Des. Fed. Fagundes de Deus, DJU 19/12/2002, p.167) O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 239557-SC, da 4 a Turma, tendo como relator o ministro Ruy Rosado de Aguiar, decidiu que "a garan­tia hipotecária do financiamento concedido pelo SFH para a construção de imóveis não atinge o terceiro adquirente da unidade". Esse acórdão foi publicado no Diário Oficial da União de 7/8/2000, p.l 13.

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0 terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do contrato, tem legitimida­de para ajuizar ação direta contra a seguradora, para cobrar a indenização contra­tual prevista em seu favor.6 6

No referido caso, o terceiro, sucessor da vítima do acidente de trânsito, ajuizou ação de indenização diretamente contra a companhia que, por força de contrato de seguro, havia assumido os riscos de acidentes pessoais a terceiros perante a empre­sa que provocou o acidente. O ministro Sávio de Figueiredo Teixeira, relator do pro­cesso, sustentou que a relação jurídica derivada dos contratos de seguro não fica restrita às partes contratantes, podendo atingir terceiros beneficiários, ainda que não determinados na época da contratação. Na prática, isso significa que um tercei­ro pode vir a ser credor de um dos contratantes sem ter participado do contrato, tornando-se titular de um direito derivado da relação jurídica contratual.

Essa decisão merece destaque porque flexibiliza o princípio clássico da rela­tividade dos efeitos do contrato, ao permitir que o terceiro (que não participou do contrato de seguro), titular de um direito subjetivo absoluto violado (responsa­bilidade civil extracontratual), possa exigir da companhia seguradora a indeni­zação prevista no contrato de seguro (responsabilidade civil contratual), sem ter que ajuizar ação em face do segurado causador do dano.

Em casos como esses, o princípio da função social do contrato abranda os efeitos do princípio da relatividade, de modo a permitir que o terceiro beneficiário de u m contrato possa exigir o cumprimento das obrigações previstas no contrato, ou, ainda, que o terceiro prejudicado por uma outra relação contratual tenha legi­timidade para impedir os efeitos negativos dessa relação ou, caso já tenham sido verificados, formular pretensão de reparação de danos.

5.1 A função social e a tutela externa do crédito

Em regra, as obrigações derivadas do contrato só podem ser exigidas de quem participou do negócio jurídico. Outrossim, quando um terceiro impede a execu­ção do contrato de forma consciente, por ato individual ou em conluio com o devedor, sujeitar-se-á às conseqüências do inadimplemento contratual como se fora o próprio devedor.

Trata-se de um dever geral de conduta, derivado do princípio de solidarie­dade, o qual proíbe ao terceiro agir com o propósito de inviabilizar a execução de

Acórdão publicado na Revista de Direito Privado, São Paulo, RT, n.16, p.340-49, out.-dez./2003.

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um contrato do qual não participou. A pessoa que violar esse dever jurídico res­ponderá por perdas e danos.

É o caso, por exemplo, de um empresário que, interessado em comprar de­terminada indústria, descobre que essa indústria assumiu o compromisso peran­te seu cliente de fornecer equipamentos em u m prazo de trinta dias, sob pena de ter que pagar uma multa elevadíssima. Esse empresário antecipa-se e adquire no mercado todos os insumos necessários à industrialização do produto encomen­dado, inviabilizando a execução do contrato assumido pela indústria.

Poder-se-ia dizer que, não tendo o terceiro participado do contrato não tem qualquer dever jurídico com as partes, estando livre para agir no mercado visando à obtenção de lucro ou bons negócios. Afinal, o lucro não é proibido e a livre-ini-ciativa constitui fundamento da República e do Estado Democrático de Direito (art. I o , IV, da Constituição Federal) e princípio geral da ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal).

Por esses princípios constitucionais, o terceiro que contrata com o devedor de um outro credor, prejudicando o cumprimento do contrato por parte desse deve­dor, não estaria sujeito a qualquer limitação, e nenhuma obrigação seria devida ao credor originário pelo princípio clássico da relatividade dos efeitos do contrato.

Entretanto, esses princípios não podem ser aplicados isoladamente. É neces­sário que sejam ponderados com outras normas jurídicas, notadamente com o princípio constitucional da solidariedade e os novos princípios do direito con­tratual (boa-fé objetiva e função social do contrato).

No sistema jurídico contemporâneo não se pode mais admitir que o tercei­ro possa contratar livremente com a finalidade de impedir o cumprimento de uma obrigação contratual pelo devedor comum. Se isso ocorrer, o contratante prejudicado (credor) terá legitimidade para propor ação de indenização em face do terceiro.

O crédito é u m bem juridicamente protegido, e como tal deve ser respeitado por todos, é o que sustenta Perlingieri. O descumprimento desse dever jurídico não configura u m descumprimento contratual, mas sim u m ato ilícito. 6 7

A necessidade de proteção do crédito já era reconhecida pela legislação in-fraconstitucional, embora agora tenha adquirido uma dimensão maior com a função social do contrato. O contrato não pode servir de instrumento para frus­trar o crédito de terceiros.

Pietro Perlingieri: "[...] é verdade que a obrigação é relação que interessa ao devedor e ao credor, mas é verdade que essa relação tem relevância externa. Mesmo o crédito é, de um certo ponto de vista, um bem [...], um interesse jurídico juridicamente relevante, e

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Um exemplo disso é que a lei confere ao terceiro - credor do devedor - , a legi­timidade para pleitear a anulação do negócio jurídico levado a efeito por este, quan­do realizado em fraude a credores, conforme estabelece o art. 158, do Código Civil.6 8

Nesse caso, mesmo não tendo participado do contrato de transmissão de bens, pode o terceiro, credor do contratante, interferir na esfera interna do contrato para pleitear sua anulação, inclusive em face do adquirente. Essa legitimação, que constitui exceção ao princípio da relatividade contratual, justifica-se para prote­ger a garantia de crédito de terceiros em face do devedor alienante.

Na Lei de Locação de Imóveis Urbanos, o locatário (credor), preterido no seu direito de preferência à aquisição do imóvel, tem legitimidade para pleitear per­das e danos em face do alienante ou a anulação da alienação do imóvel, deposi­tando o preço pago. 6 9

Na primeira opção, o credor prejudicado pode requerer perdas e danos ape­nas em face do locador alienante, sendo vedado fazer tal pedido contra o adqui­rente, por se tratar de direito pessoal. 7 0

No segundo caso, a lei atribuiu ao credor preterido, no seu direito de prefe­rência, legitimidade para propor ação de anulação em face do terceiro adquiren­te. Trata-se de um direito real (adjudicação compulsória), conferido ao locatário, com contrato averbado no Cartório de Registro Geral de Imóveis com trinta dias de antecedência à alienação.

enquanto tal deve ser respeitado por todos. Tome-se, como exemplo, o fato ilícito do terceiro que provoque a morte do devedor impedindo assim ao credor de satisfazer o próprio interesse; o dano do terceiro não configura um inadimplemento (o terceiro não era devedor), mas um fato ilícito relevante [...]". (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Introdução ao direito civil constitucional, p.142) Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os pra­ticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o igno­re, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos. Se o contrato de locação estiver registrado, pode o locatário, preterido no seu direito de preferência, depositando o preço, requerer a adjudicação compulsória do bem. É o que estabelece o artigo 33 da Lei n. 8.245/1991, in verbis: "Art. 33. O locatário prete­rido no seu direito de preferência poderá reclamar do alienante as perdas e danos ou, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, haver para si o imó­vel locado, se o requerer no prazo de seis meses, a contar do registro do ato no Car­tório de Imóveis, desde que o contrato de locação esteja averbado pelo menos trinta dias antes da alienação junto à matrícula do imóvel". O Superior Tribunal de lustiça decidiu que a ação de indenização por perdas e danos decorrentes da não-observância do direito de preferência na venda de imóvel locado é de natureza pessoal, portanto, não está submetida ao prazo decadencial previsto no

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Nas relações jurídicas regidas pela Lei do Inquilinato (Lei n. 8.245/1991), a averbação do contrato de locação no Cartório de Registro Geral de Imóveis cons­titui pressuposto para o exercício da ação de adjudicação compulsória em face do terceiro, que adquire o imóvel locado, pelo credor preterido no seu direito de preferência.

Nesse caso específico, não há dúvida da necessidade da averbação do con­trato no Cartório de Registro Geral de Imóveis. O legislador optou pela seguran­ça do tráfego negociai. A dúvida surge nos contratos atípicos, em que as partes estabelecem direito de preferência para u m dos contratantes. Nesse caso, o exer­cício do direito de ação em face do terceiro adquirente está condicionado ao re­gistro do contrato em cartório competente?

Se o terceiro conhecia, ao contratar, o pacto de preferência estabelecido no contrato anterior, e estava ciente de que o seu procedimento iria prejudicar o exer­cício do direito de preferência atribuído ao credor originário, é irrecusável, ante o princípio constitucional da solidariedade, o reconhecimento do direito do credor preterido de invocar a tutela jurisdicional em face do terceiro contratante, inde­pendentemente de averbação do contrato no cartório competente.

Quando a lei estabelece que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, o legislador está prevenindo que as par­tes contratantes não poderão praticar atos que venham a prejudicar o interesse social, estando aí compreendido a tutela externa do crédito.

Não se pode admitir que, a pretexto da liberdade de contratar, possa o ter­ceiro ignorar o direito de crédito de u m contrato anterior, celebrando outro in­compatível com o antecedente. Teresa Negreiros defende a responsabilização do

art. 33 da Lei n. 8.245/91, conforme ementa abaixo transcrita: "Civil — Processual Civil - Locação - art. 33 da Lei n. 8.245/91 - Direito de Preferência - Inobservância - Ação de Perdas e Danos - Inaplicabilidade do Prazo Decadencial de seis (6) meses - Decor­rência - Existência de Direito Pessoal - Ausência de Previsão Legal — 1 - Conforme exe­gese extraída do art. 33, da Lei n. 8.245/91, o exercício da ação de perdas e danos nele prevista não se submete ao prazo de decadência semestral, uma vez que o atendimen­to a este interregno temporal é requisito, tão-somente, para o ajuizamento de pleito adjudicatório, em relação ao imóvel alienado. 2 - A ação de perdas e danos, ajuizada pelo locatário contra o alienante do imóvel, é de caráter pessoal, não se confundindo com a ação adjudicatória, que é de caráter real, manejada contra o alienante e o com­prador daquele bem. Conquanto previstos no mesmo dispositivo legal, os institutos jurídicos são de natureza diversa, possuindo finalidade e requisitos próprios, sendo certo que a limitação temporal de seis (6) meses é condição que a Lei Inquilinária im­põe, apenas, àquela ação de índole real. 3 - Recurso especial conhecido e provido". (STJ, REsp. n. 247245 - SP, 5 a T, Rei. Min. Gilson Dipp, DJU 11/9/2000, p.278)

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terceiro, que contrata v i o l ando direito de crédito alheio, po r contrar iar a função social do contra to :

Parece-nos, porém, que, sendo a liberdade de contratar dotada de uma função so­cial, não pode ser tal liberdade exercida de forma contrária a esta função. Assim, o abuso de direito deve, a nosso ver, ser invocada para responsabilizar o terceiro que exerceu a liberdade de contratar em desacordo com sua função social, na medida em que tal liberdade resultou na violação a um direito de crédito alheio, de cuja exis­tência o terceiro tivera conhecimento prévio. Assim, mesmo se o intuito de prejudicar não fosse o único e específico propósito do contrato firmado entre o terceiro e o deve­dor, o fato é que, uma vez que se conhecia previamente a incompatibilidade entre os sucessivos ajustes, o segundo destes contratos estará em desacordo com a função social da liberdade de contratar. Pode-se então concluir que, à luz da nova principio-logia contratual, a função social e o abuso de direito constituem fundamento para a responsabilização do terceiro que, ciente da existência de relação anterior, não obs­tante contrata com o devedor obrigação incompatível com o cumprimento da pri­meira obrigação assumida por este.7 1

O crédito é u m b e m impor tan te para as relações negociais, e conseqüente ­mente para a sociedade, tanto que e m nosso o rdenamento ju r íd i co o legislador preocupou-se e m posi t ivar a proteção ao crédito, podendo ser c i tado, no c ampo do direito mater ia l , a t í tulo de exemplo, o inst i tuto da f raude contra credores, e, n o direito processual, as regras estabelecidas para satisfação do crédito, previstas n o l i v ro II do Cód igo de Processo C i v i l (processo de execução) . Se , de u m lado, a le i a t r ibu i ao crédito - b e m jur íd ico - u m va lor que merece proteção especial, é razoável que a v io lação a esse b e m jur íd ico deva ser sanc ionado, reca indo a s an ­ção não só ao devedor, mas t a m b é m sobre o terceiro que , consciente, frustra c o m o seu ato o c u m p r i m e n t o do contrato anterior, tornando-se cúmpl ice do inad im-plemento dessa obrigação.

A n t ô n i o Junque i ra de Azevedo já defendia, a inda na v igência do Cód igo C i v i l de 1916, a responsabil ização do terceiro que con t r ibu i para o inad imple-m e n t o contratua l . E m parecer sobre o direi to de exclusividade de fornec imento de combust íve l para postos de gasolina de u m a determinada "bandeira" , J u n q u e i ­ra de Azevedo, invocando o pr inc íp io da função social - na época não previsto no Cód igo C i v i l - , responde a indagação: Terceiros i n f r i ngem a le i quando v e n d e m combust íve l a u m posto compromet ido , cont ra tua lmente po r cláusula de exclu-

7 1 N E G R E I R O S , Teresa. Op. cit., p. 248-9.

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s iv idade, a adqu i r i r combust íve l de determinada distr ibuidora? E m seu parecer, a f i rma que:

Entretanto, dos três novos princípios,7 2 é o último, o da função social, que mais de perto diz respeito ao caso da consulta. Este princípio difere do da ordem pública, tanto quanto a sociedade difere do Estado; trata-se de preceito destinado a integrar os contratos numa ordem social e harmônica, visando impedir tanto aqueles que pre­judiquem a coletividade (por exemplo, contratos contra o consumidor) quanto os que prejudiquem ilicitamente pessoas determinadas (sobre esse ponto, estender-nos-emos adiante, porque é o caso das vendas das distribuidoras "atravessadoras", obje­to da consulta). A idéia de função social do contrato está claramente determinada na Constituição, ao fixar, como um dos fundamentos da República, o valor social da livre

iniciativa (art. 1 o . , inc. IV); essa disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver o con­trato como um átomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais. 0 contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa asserção, por força da Constituição faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro [...] Aceita a idéia de função social do contrato, dela evidentemente não se vai tirar a ilação de que, agora, os terceiros são partes no contrato, mas, por outro lado, torna-se evidente que os terceiros não podem se comportar como se o contrato não existisse.™

A n t ô n i o J unque i r a de Azevedo conc lu i seu parecer a f i rmando que a d i s t r i ­bu ido ra , que teve o seu direi to de exclusiv idade v io l ado , t e m leg i t imidade para p r o p o r ação cont ra os postos revendedores da d is t r ibu idora - v incu l ados c o n ­t r a tua lmente c o m a obr igação de exclusiv idade - que a d q u i r i r a m combust í ve l de out ras d is t r ibu idoras , b e m c o m o p ropor ação direta cont ra essas mesmas d is t r ibu idoras , para imped i r o i l íc i to o u obter indenização, caso já tenha sido p ra t i cado . 7 4

O Cód igo C i v i l de 2002, estruturado c o m base nos pr inc íp ios da et ic idade, operabi l idade e social idade, reconheceu o direito do vendedor , preter ido n o seu dire i to de preferência de compra da coisa vendida , de acionar, so l idar iamente, o c o m p r a d o r e o adquirente se este t iver agido de má-fé, con fo rme expressamente

7 2 O autor se refere aos princípios da boa-fé objetiva, ao equilíbrio econômico do con­trato e à função social do contrato.

7 3 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Princípios do novo direito contratual e desregula-mentação do mercado - Direito de exclusividade nas relações contratuais de forneci­mento - Função social do contrato e responsabilidade aquiliana do terceiro que con­tribui para o inadimplemento contratual. Revista dos Tribunais, n.750, p.l 16-7.

7 4 Ibidem, p.l20.

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previsto no art. 518. 7 5 No Código Civil de 1916, o artigo correspondente (1.156), que cuidava da obrigação de dar ciência ao credor (vendedor da coisa com pacto de preferência), não previa a responsabilidade do terceiro adquirente.

Para efeito desse dispositivo, caracteriza-se a má-fé com a aquisição do bem por terceiro, estando este ciente da violação de cláusula de preferência estabele­cida em favor do vendedor. Nesse caso, o credor (vendedor com a cláusula de pre­ferência) poderá exigir perdas e danos de qualquer um dos devedores (comprador que não cumpriu o pacto de preferência e o terceiro adquirente que, consciente­mente, colaborou com o inadimplemento).

6. CONCLUSÃO

Muito ainda há que se refletir acerca da nova concepção do contrato, princi­palmente com a incorporação do princípio da função social, cujo grande desafio da comunidade jurídica é traçar os seus contornos, precisar o seu objeto e o cam­po de atuação para que essa nova cláusula geral possa tornar mais justas as relações contratuais, sem perder de vista a necessária e imprescindível segurança jurídica.

Mas já é possível afirmar que os princípios clássicos do direito contratual -princípio da força obrigatória, princípio da autonomia da vontade e princípio da relatividade dos efeitos contratuais - foram mitigados pelos novos princípios da teoria geral do contrato - boa-fé objetiva e função social do contrato.

Essa modificação operada no direito contratual acabará refletindo no direi­to processual, na medida em que passa-se a reconhecer, cada vez mais, a legitimi­dade de terceiros não contratantes para formular pretensão baseada na relação jurídico-contratual, cujos efeitos extrapolaram o plano interno do contrato.

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Art. 518. Responderá por perdas e danos o comprador, se alienar a coisa sem ter dado ao vendedor ciência do preço e das vantagens que por ela lhe oferecem. Responderá solidariamente o adquirente, se tiver procedido de má-fé.

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352 LUCIANO RODRIGUES MACHADO

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E M B A R G O S D E R E T E N Ç Ã O P O R B E N F E I T O R I A S E A C E S S Õ E S C O M

O N O V O C Ó D I G O C IV I L

F E R N A N D O RISTER DE SOUSA LIMA*

Sumário 1. Considerações introdutórias. 2. Os embargos de retenção e o direito de retenção. 3. Requisitos à oposi­ção dos embargos de retenção. 4. Distinção entre benfeitorias, acessões e pertenças. 5. A construção como forma de aquisição da propriedade. 6. Síntese conclusiva. Referências bibliográficas.

1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Ao possuidor, quando turbado ou esbulhado de sua posse, o ordenamento jurídico lhe possibilita o ingresso das ações possessórias, justamente para manter a posse em caso de turbação, bem como a sua reintegração em caso de esbulho. Tais ações são comuns no foro, e, muitas vezes, os magistrados se vêem a frente dos denominados embargos de retenção interpostos incidentemente nas ações possessórias.

Uma vez visualizado um direito a ser amparado, representado pelo possui­dor, defronta-se com outra prerrogativa; todavia, apta a bloqueá-lo, o qual é jus­tamente o direito de retenção, invocado, em regra, pelos embargos de retenção.

Nosso Código de Processo Civil adota como regra os embargos do executa­do para ser instrumento de sua defesa, em eventual lide fundada em título exe-

Advogado. Consultor Jurídico Empresarial. Mestrando em Direito pela Pontifícia Uni­versidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor da Escola Superior de Advocacia (ESA) - OAB/SP.

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354 FERNANDO RISTER DE SOUSA LIMA

cutivo judicial ou extrajudicial, isto nos moldes dos arts. 736 a 745 do CPC. 1 Mas a referida defesa pode tomar a forma dos embargos de retenção, 2 que são, justa­mente, o objeto central deste estudo.

Convém, antes, tratar do direito de retenção por benfeitorias, conceituando ambos os institutos e fazendo u m paralelo com os embargos de retenção, para, em seguida, abordar os seus requisitos de admissibilidade e algumas peculiaridades de cunho processual, por exemplo, ser possuidor de boa-fé. Ao final, levantare­mos algumas primeiras impressões relativas ao novo Código Civil brasileiro.

Os limites metodológicos escolhidos na elaboração deste estudo proporcio­narão ao leitor u m panorama geral dos embargos e, principalmente, enfocarão algumas das atuais discussões com o advento de nova ordem cível. Dessa forma, não se tem o condão de esgotar o assunto, mas de fornecer material para novas discussões.

2. OS EMBARGOS DE RETENÇÃO E 0 DIREITO DE RETENÇÃO

2.1 0 direito de retenção por benfeitorias

O direito de retenção consiste no poder, concedido por lei, ao credor, de reter bem de propriedade do devedor até o seu efetivo pagamento. 3 Tal direito é or iundo da norma legal, não sendo necessária convenção entre as partes. 4 Me-

' CASTRO, Amílcar de. "Trata-se de nova lide, incidente, pois o executado pretende do Estado tutela jurídica para direito dele executado, que se encontra ameaçado pelo exeqüente; e nesse incidente aparecem as partes em qualidade inteiramente diversa da que conservam no processo da execução". Comentários do Código de Processo Civil, p.407.

2 Ibidem. "Pelos embargos de retenção por benfeitorias, portanto, o executado, como credor, pretende seja o exeqüente, como seu devedor, forçado a indenizá-lo do valor de benfeitorias necessárias ou úteis, reclamando, assim, o cumprimento de uma obriga­ção a que a própria coisa reclamada pelo exeqüente deu nascimento. Sem opor-se ao julgado, o embargante pretende apenas dilatar a execução até conseguir a indeniza­ção a que tenha direito".

3 FONSECA, Amoldo Medeiros de. Direito de retenção, p.107, assim ensina: "É a facul­dade, concedida pela lei ao credor, de conservar em seu poder a coisa alheia, que já detenha legitimidade, além do momento em que a deveria restituir se o seu crédito não existisse, e normalmente até a extinção deste".

4 Sobre o conceito e caracteres do direito de retenção, ver LOPES Y LOPES, Angel M. Re-tención y mandato. Código Civil espanol, Op. cit., p.8-55; ALVINO LIMA, Ferreira. O direito de retenção e o possuidor de má-fé, p.3-7; Bolonia, Real Colégio de Espana, 1976,

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EMBARGOS DE RETENÇÃO POR BENFEITORIAS E ACESSÕES COM O NOVO CÓDIGO CIVIL 355

lhor dizendo, o direito de retenção seria a permissão legal da conservação de bem de propriedade do devedor, até que este pague o seu débito. 5

Entender-se-á por benfeitorias todas as modificações promovidas em bens móveis ou imóveis, com escopo de melhorá-lo, conservá-lo ou embelezá-lo. 6 Elas são, de acordo com a sua natureza, necessárias, úteis ou voluptuárias. São as pri­meiras de ordem imediata, isto é, afetam diretamente a estrutura do bem; já as segundas, aumentam sua utilidade; e, por fim, as terceiras são aquelas apenas destinadas a torná-lo mais bonito. 7

Tal senso de apreensão do bem tem amparo no ordenamento jurídico, que adota a manutenção da coisa em virtude do direito a recebimento como condição sine qua non da sua liberação. 8 Sendo justificável o referido instru­mento para coibir o enriquecimento ilícito, que poderia ocorrer se não fosse garantida a retenção, tendo em vista que a propositura de uma demanda até os atos expropriatórios propr iamente dito, pode levar anos, facilitando, assim, o inadimplemento. 9

n. 1 a 4; HEREDIA ONIS, Pablo Beltran de. El derecho de retención; LOPES, Miguel Maria Serpa. Curso de direito civil, v.IV, p.139 e v.III, especialmente n.101 e 102.

5 Cf. BOURGUIGNON, Álvaro Manoel Rosindo. Embargos de retenção por benfeitorias. "O sentido léxico-gramatica da expressão direito de retenção caracteriza a possibilida­de de conservação da posse duma coisa alheia para a garantia de um direito próprio, tal como reembolso de créditos pagamentos de despesas etc". CASTRO, Amílcar. Op. cit., p.407. "Os embargos do executado, de retenção por benfeitorias, não na forma, mas no fundo, são verdadeiros embargos de terceiro".

6 CASTRO, Amílcar. Op. cit., p.406. "Benfeitoria é o que se faz em móvel, ou imóvel, para conservá-lo, melhorá-lo, ou simplesmente embelezá-lo."

7 "Diz-se necessária, a que tem por fim conservar a coisa, ou evitar deterioração; útil, a que aumenta, ou facilita, o uso da coisa; voluptuária, a de mero deleite, ou recreio, que não aumenta o uso habitual, ainda que torne a coisa mais agradável, ou seja de elevado valor". Ibidem, p.406. Continua o professor Amílcar Castro. "As plantações e edificações, conquanto em esmerada, técnica jurídica, sejam acessões industriais, e não benfeitorias propriamente ditas, equiparam-se às benfeitorias úteis, e obedecem às mesmas regras a que estas se sujeitam (arts. 547 e 548 do CC)". Ibidem, p.407.

8 Cf. BOURGUIGNON, Álvaro Manoel Rosindo. Op. cit. "Este senso comum da apreensão significativa do direito de retenção encontra ressonância no ordenamen­to jurídico que, ao especializá-lo sob feições diversas, não foge basicamente aos seus elementos conceituais: a manutenção de uma coisa sob nosso poder em virtude de direito que temos, a ser satisfeito, como condição à sua liberação".

9 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil, "O mesmo princípio que rege a responsabili­dade dos frutos na posse determina o regime das benfeitorias. Trata-se de mais uma situação legal a impedir o enriquecimento injusto".

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356 FERNANDO RISTER DE SOUSA LIMA

As obras realizadas pelo h o m e m 1 0 na coisa com intuito de melhorá-la, con­servá-la ou mesmo embelezá-la são denominadas pelo direito positivo pátrio de benfeitorias. Ficando, então, os acréscimos naturais fora de tal conceituação." Sendo classificadas de acordo com a sua necessidade, utilidade ou mesmo a sua futilidade, respectivamente são denominadas de necessárias, úteis ou voluptuá-rias. É imortal a definição de Clóvis Beviláqua: "benfeitorias são obras ou despe­sas, que se fazem n u m móvel ou imóvel de outrem, para conservá-lo, melhorá-lo ou, simplesmente, embelezá-lo". 1 2

A classificação anteriormente mencionada, 1 3 além de ser metodologicamen-te necessária, tem u m papel de muita relevância, pragmaticamente falando, mor-

Cf. BOURGUIGNON, Álvaro Manoel Rosindo. Op. cit. "Importante ressaltar que ape­nas são consideradas benfeitorias, para os efeitos legais, inclusive, o direito de retenção, os melhoramentos que derivem da intervenção do proprietário possuidor ou detentor (art. 64 do CC). As denominadas acessões naturais não entram na classe das benfeito­rias, pois estas representam, sempre, um valor criado pela atividade humana". VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., "Benfeitorias são obras ou despesas feitas na coisa, para o fim de conservá-la, melhorá-la ou embelezá-la. Decorrem, portanto, da ativida­de humana. Não são benfeitorias os acréscimos naturais à coisa. O art. 63 (novo, art. 96) do Código fornece a divisão tripartida das benfeitorias: são necessárias as que têm por finalidade conservar a coisa ou evitar que se deteriore. Nesse sentido, serão benfeitorias necessárias o reparo nas vigas de sustentação de uma ponte, a substituição de peça de motor que impede ou prejudica seu funcionamento; a cobertura de material colocado ao relento, sujeito a intempéries; são úteis as que aumentam ou facilitam o uso da coisa. Serão benfeitorias úteis, por exemplo, a pavimentação do acesso a um edifício; o aumento de sua área de estacionamento e manobras; a pintura para evitar a oxidação de veículo; são voluptuárias as benfeitorias que redundam em acréscimos de mero deleite ou recreio, que não aumentam o uso habitual da coisa, ainda que a tornem mais agradável, ou de elevado valor. Serão benfeitorias voluptuárias, por exemplo, a coloca­ção de piso de mármore importado; a pintura de um painel no imóvel por artista pre­miado; a substituição dos metais de banheiro por peças de ouro ou prata etc. As situa­ções concretas permitirão classificar as benfeitorias numa ou noutra categoria. As conseqüências dessa classificação surgem quando da restituição da coisa." Código Civil comentado, p.309. Ainda sobre benfeitorias, seu conceito e tipos, consul­te-se PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, p.296-300; RODRI­GUES, Silvio. Direito civil brasileiro interpretado, p.88-92; GOMES, Orlando. Introdu­ção ao direito civil, p. 204-207; MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das coisas, v.I. p.150-3; DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil bra­sileiro. Direito das coisas, v.I, p.l64-6.

BEVILÁQUA, Clóvis. Op. cit., p.311; LOPES, Miguel Maria Serpa. Op. cit., v.I. p.346-7. Estas acessões (naturais), por não serem resultado de ação ou intervenção do homem, não propiciam indenização nem retenção. V. JTACSP (LEX) 135/339 e 138/336.

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EMBARGOS DE RETENÇÃO POR BENFEITORIAS E ACESSÕES COM O NOVO CÓDIGO CIVIL 357

mente porque, a cada espécie do gênero benfeitoria, a norma prevê uma conse­qüência: sendo estas, necessárias ou úteis, acrescida a posse de boa-fé, tem-se di­reito a indenização e a retenção da coisa até o seu pagamento; se, de má-fé, ape­nas cabe-lhe direito à indenização; caso sejam as benfeitorias voluptuárias, cabe ao possuidor de boa-fé o seu levantamento, sem, é claro, o detrimento da coisa, não cabendo indenização nem a retenção do bem. 1 4 Isto é previsto em nosso Có­digo Civil da seguinte maneira:

Art. 1.219. 0 possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessá­rias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.

O Código Civil espanhol regula o direito de retenção em seu art. 453 que assim dispõe:

Art. 453. Los gastos necesaríos se abonam a todo poseedor; pero sólo el de buena fe podrá retener la cosa hasta que se le satisfagan.

Na Alemanha, por seu turno, dá-se os contornos básicos e gerais do direito de retenção no parágrafo 273 do seu Código Civil, o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), assim traduzido:

Se o devedor tiver, contra o credor, uma pretensão vencida, originária da mesma relação jurídica sobre a qual a sua obrigação repousa, poderá, sempre que outra coisa não resultar da obrigação, recusar a prestação devida, até que seja realizada a prestação que a ele cabe (direito de retenção). Quem estiver obrigado à entrega de um objeto, terá o mesmo direito, quando lhe cou­ber uma prestação vencida por despesas com o objeto ou por causa de um dano a ele, por este, causado, a não ser que tenha ele obtido o objeto por um ato ilícito co­metido dolosamente.1 5

1 4 Cf. BOURGUIGNON, Álvaro Manoel Rosindo. Op. cit. "Conforme se trate de uma ou outra de suas espécies, as conseqüências jurídicas variarão. Havendo benfeitorias necessárias e sendo o possuidor de boa-fé, há direito à indenização e direito de reten­ção por benfeitorias. Se de má-fé a posse, somente direito de indenização. As benfei­torias voluptuárias, por último, possibilitam ao possuidor de boa-fé levantá-las quan­do o puder, sem detrimento da coisa. Não propiciam direito de indenização nem, conseqüentemente, de retenção."

1 5 Código Civil alemão, traduzido por Souza Diniz.

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358 FERNANDO RISTER DE SOUSA LIMA

O direito de retenção, conforme comentado rapidamente, é conhecido por várias legislações estrangeiras, encontrando amparo em diversos sistemas, tanto em países latinos quanto europeus. 1 6

Direito comparado: Código Civil suíço, art. 939, primeira parte ("Se o titular exigir a entrega da coisa, poderá o possuidor de boa-fé pretender indenização pelas despesas necessárias e úteis e recusar a entrega da coisa até a prestação da indenização. Por ou­tras despesas, não pode ele exigir indenização, pode, porém, quando não lhe seja ela oferecida, antes da entrega da coisa, retirar o que ele aplicou sempre que isto possa acontecer sem dano da própria coisa"); Código Civil italiano, art. 1.150 ("O possuidor, mesmo de má-fé, tem direito ao reembolso das despesas feitas com as reparações ex­traordinárias. Tem ele também direito à indenização pelos melhoramentos trazidos à coisa desde que subsistam ao tempo da restituição... Quanto aos acréscimos feitos pelo possuidor à coisa, aplica-se o disposto no art. 936. Se os acréscimos, contudo, constituírem melhoramentos e o possuidor estiver de boa-fé, será devida uma inde­nização no nível do aumento de valor conseguido pela coisa") e art. 1.152, sobre a retenção a favor do possuidor de boa-fé; Código Civil alemão, arts. 994 e 995 (inde­nização por despesas necessárias), art. 996 (indenização por despesas úteis), art. 997 (direito de retirada) e art. 1.000, primeira parte, sobre o direito de retenção ("O pos­suidor pode recusar a restituição da coisa até que seja ele satisfeito das despesas que lhe devem ser indenizadas"); Código Civil espanhol, art. 453 ("Losgastos necesarios se abonan a todo poseedor; pero sólo el de buena fe podrá retener la cosa hasta que se le satisfagan. Los gastos útiles se abonan al poseedor de buena fe con el mismo derecho de retención, pudiendo optar el que le hubiese vencido en su posesión por satisfacer el importe de los gastos, o por abonar el aumento de valor que por ellos haya adquirido la cosa"), art. 454 ("Los gastos depuro lujo o mero recreo no son abonables al poseedor de buena fe; pero podrá llevarse los adornos con que hubiese embellecido la cosa principal si no sufriere deterioro, y si el sucesor en la posesión no prefiere abonar el importe de lo gastado"), art. 456 ("Las mejorasprovenientes de la naturaleza o dei tiempo ceden siem-pre en beneficio dei que haya vencido en la posesión"), art. 458 ("El que obtenga la pose­sión no está obligado a abonar mejoras que hayan dejado de existir al adquirir la cosa"); Código Civil peruano, art. 917 ("Elposeedor tiene derecho a valor actual de las mejoras necesarias y útiles que existan al tiempo de la restitución y a retirar las de recreo que pudean separarse sin dano, salvo que el dueno opte por pagar por su valor actual. La regia delpárrafo anterior no es aplicable a las mejoras hechas después de la citación judi­cial sino cuando se trata de las necesarias") e art. 918 ("En los casos en que el poseedor debe ser reembolsado de mejoras, tiene el derecho de retención"), Código Civil portu­guês, art. 1.273 ("1. Tanto o possuidor de boa-fé como o de má-fé têm direito a ser indenizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. 2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das ben­feitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa."); Código Civil mexicano, art. 810, III ("El poseedor de buena fe que haya adquirido la posesión por título traslativo de domínio,

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EMBARGOS DE RETENÇÃO POR BENFEITORIAS E ACESSÕES COM O NOVO CÓDIGO CIVIL 359

2.2 A relação do direito de retenção com os embargos de retenção

Os embargos de retenção, ins t rumento do direito processual, estão intr insecamente ligados ao direito material, isto significa dizer: o direito de

tiene los derechos siguientes: [...] III. El de retirar las mejoras voluntárias, si no se causa dano en la cosa mejorada o reparando el que se cause al retirarlas"), art. 815 ("Las mejo­ras voluntárias no son abonables a ningún poseedor pero el de buena fepuede retirar esas mejoras conforme a lo dispuesto en el artículo 810, fracción III") e art. 822 ("Las mejo­ras provenientes de la naturaleza o dei tiempo, ceden siempre en beneficio dei que haya vencido en la posesión."); Código Civil chileno, art. 908 ("art. 908. El poseedor vencido tiene derecho a que se le abonen las expensas necesarias invertidas en la conservación de la cosa, según las regias siguientes: Si estas expensas se invirtieron en obras permanentes, como una cerca para impedir las depredaciones, o un dique para atajar las avenidas, o las reparaciones de un edifício arruinado por un terremoto, se abonarán al poseedor dichas expensas, en cuanto hubieren sido realmente necesarias; pero reducidas a lo que valgan las obras al tiempo de la restitución. Y si las expensas se invirtieron en cosas que por su naturaleza no dejan un resultado material permanente, como la defensa judicial de la finca, serân abonadas al poseedor en cuanto aprovecharen al reivinàicaàor, y se hubieren ejecutado con mediana inteligência y economia"), art. 909 ("El poseedor de buena fe, vencido, tiene asimismo derecho a que se le abonen las mejoras útiles, hechas antes de contestarse la demanda. Sólo se entenderãn por mejoras útiles las que hayan aumentado el valor venal de la cosa. El reivindicador elegirá entre elpago de lo que val­gan al tiempo de la restitución las obras en que consisten las mejoras o el pago de lo que en virtud de dichas mejoras valiere más la cosa en dicho tiempo. En cuanto a las obras hechas después de contestada la demanda, el poseedor de buena fe tendrá solamente los derechos que por el artículo siguiente se conceden al poseedor de malafe"), art. 911 ("En cuanto a las mejoras voluptuarias, el propietario no será obligado a pagarlas al poseedor de mala ni de buena fe, que sólo tendrán con respecto a ellas el derecho que por el artícu­lo precedente se concede al poseedor de malafe respecto de las mejoras útiles. Se entien-den por mejoras voluptuarias las que sólo consisten en objetos de lujo y recreo, como jar-dines, miradores, fuentes, cascadas artificiales, y generalmente aquellas que no aumentan el valor venal de la cosa, en el mercado general, o sólo lo aumentan en una proporción insignificante"), art. 913 ("La buena o malafe dei poseedor se refere, relativamente a los frutos, al tiempo de la percepción, y relativamente a las expensas y mejoras, al tiempo en quefueron hechas") e art. 914 ("Cuando el poseedor vencido tuviere un saldo que recla­mar en razón de expensas y mejoras, podrá retener la cosa hasta que se verifique el pago, o se le asegure a su satisfacción"); Código Civil argentino, art. 2.427 ("Los gastos nece-sarios o útiles serán pagados al poseedor de buena fe. Son gastos necesarias o útiles, los impuestos extraordinários al inmueble, las hipotecas que lo gravaban cuando entro en la posesión, los dineros y materiales invertidos en mejoras necesarias o útiles que existiesen al tiempo de la restitución de la cosa") e art. 2.428 ("El poseedor de buena fe puede

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360 FERNANDO RISTER DE SOUSA LIMA

retenção é condição sine qua non para serem admitidos os embargos de re tenção. 1 7

Com o surgimento do direito de retenção, cria-se a possibilidade do direito a oposição dos embargos de retenção. A garantia de que a oposição dos embar­gos deterá a ação movida pelo proprietário ou por qualquer outra pessoa está no direito de retenção. 1 8 Todavia, a defesa do direito de retenção não se esgota no re­ferido instrumento processual civil, pois, cabe ao detentor do direito material em questão, outras espécies de ações para resguardar o seu direito. 1 9

Isto porque os embargos limitam-se a serem aplicados quando da execução das sentenças que possuem execução específica à entrega de coisa certa e, do ou­tro lado, o direito material envolvido, ou seja, o direito de retenção, que, como tal, pode ser defendido via ação própria. 2 0

retener la cosa hasta ser pagado de los gastos necesarios o útiles; pero aunque no usare de este derecho, y entregase la cosa, dichos gastos le son debidos").

1 7 Cf. BOURGUIGNON, Álvaro Manoel Rosindo. Op. cit. "A leitura do dispositivo pro­cessual em referência induz à conclusão de que a pretensão processual daquele, apon­tada no título como obrigado à entrega de coisa certa, está condicionada, para ser tida como fundada, i.e., procedente, à existência de um direito de retenção por benfeitorias, cuja configuração aferir-se-á em face das prescrições de direito material", p.7. Cf. CPC: "Art. 744 — Na execução de sentença, proferida em ação fundada em direito real, ou em direito pessoal sobre a coisa, é lícito ao devedor deduzir também embargos de retenção por benfeitorias."

1 8 ALVINO LIMA, Ferreira. Op. cit., p.8. "A segurança deste direito repousa no de reten­ção, direito originário, detendo a ação do proprietário e opondo-se a terceiros.

1 9 Cf. BOURGUIGNON, Álvaro Manoel Rosindo. Op. cit. p.7. "Havendo direito de reten­ção por benfeitorias haverá também, em tese, possibilidade e de oposição dos corres­pondentes embargos. Dizemos em tese porque a argüição do direito de retenção por benfeitorias não se esgota, ou melhor, não se limita aos embargos previstos no artigo 744 do Código de Processo Civil. Ações existem correspondendo a sentenças que, por não comportarem uma fase executiva para entrega da coisa propriamente dita, ao menos nos moldes estabelecidos para esse tipo de execução nos artigos 621 e seguin­tes do Código de Processo Civil, impõe seja o jus retentionis exercido em momento processual distinto da fase executiva."

2 0 Ibidem. "É enfim o direito de retenção por benfeitorias (direito material), no âmbi­to do processo, mais amplo que os limites consignados para o exercício dos embar­gos de retenção por benfeitoria previsto no art. 744 do Código de Processo Civil, pois a aplicação deste é restrita às sentenças que possuem execução específica para entrega da coisa certa, enquanto o direito material veicula-se não só por aquele pro­cedimento, mas ainda nas fases cognitivas de ações que não se executam naqueles moldes".

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EMBARGOS DE RETENÇÃO POR BENFEITORIAS E ACESSÕES COM O NOVO CÓDIGO CIVIL 361

A natureza jurídica do instituto é muito discutida, a doutrina diverge total­mente. Para uns, é u m direito pessoal, nesse sentido temos Laurent e Mazzoni, já para outros, é um direito pessoal diferenciado, tendo em vista poder ser oposto a terceiros, exemplo: Aubry et Rau. Ainda, há aqueles como Hommel e Pinot, de­fensores de que a retenção é u m direito real. 2 1

Na lição de Arnoldo Medeiros da Fonseca, 2 2 a retenção tem como marca funda­mental o fato de convolar-se em novo título, pois o credor já tem a detenção da coisa por qualquer título e passa depois a retê-la, sob os contornos legais, a título de garan­tia. Dessa forma, o referido jurista faz menção na formação de um novo título.

Profere entendimento sobre o direito de retenção Tito Fulgêncio, 2 3 em visão comparativa com o penhor legal:

é, pois, uma espécie de penhor puramente legal; é um direito excepcional concedi­do por lei, que assegura ao réu o reembolso de suas benfeitorias sobre a coisa, exercen­do o ofício idêntico à exceptio doli dos romanos.

É curioso notar que, no direito de retenção, vale erga omnes, ou seja, é opo-nível a terceiros, inclusive a credores do próprio proprietário.

3. REQUISITOS À OPOSIÇÃO DOS EMBARGOS DE RETENÇÃO

A autorizada doutrina, em resumo, faz menção como requisitos à oposição dos embargos de retenção: a posse da coisa; a existência de um crédito do reten-tor; e a relação de causalidade entre o crédito e a coisa retida. Washington de Bar­ros Monteiro 2 4 segue nessa mesma linha.

A matéria é regulada nos arts. 1.217 a 1.222 do novo Código Civil, cujos dis­positivos são praticamente transcrições de seus antecessores arts. 516 a 519 do CC/1916. Não houve, salvo o art. 1.222, qualquer alteração; vejamos:

2 1 CASTRO, Amílcar. Op. cit., p.407-8. "A legitimação ativa e passiva é inteiramente outra: o executado apresenta-se como credor, com direito de reter a coisa, a pedir seja o exeqüente condenado, como devedor, a lhe pagar uma indenização. Em direito, pode muito bem uma pessoa fazer as vezes de duas a diversos respeitos, e, assim, ope­ram-se, na relação processual, transformações, subjetiva e objetiva, contemporâneas. A natureza do incidente é, pois, a de embargos de terceiro, e se o processo destes não é observado é por motivo de fácil compreensão".

2 2 Autor referido na obra da nota anterior, p.36. 2 3 FULGÊNCIO, Tito. Da posse e das ações possessórias, v.I, p.184. 2 4 MONTEIRO, Washington de Barros. Op. cit., v.I, p.64.

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362 FERNANDO RISTER DE SOUSA LIMA

Art. 1.219/516.0 possuidor de boa-fé tem direitoà indenização das benfeitorias neces­

sárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se lhe não forem pagas, a levantá-

las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de reten­

ção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.

Art. 1.220/517. Ao possuidor de má-fé serão ressarcidas somente as benfeitorias ne­cessárias; não lhe assiste o direito de retenção pela importância destas, nem o de le­vantar as voluptuárias.

Art. 1.221/518. As benfeitorias compensam-se com os danos, e só obrigam ao ressar­cimento, se ao tempo da evicção ainda existirem.

H o u v e , con fo rme menc ionado , modif icação no art. 1.222 c o m relação ao seu

antecessor. Inseriu-se: " ao possuidor de boa-fé se indenizará pelo va lo r a tua l " ;

v i sando , então, a pr iv i legiar aquele que age de boa-fé, po r s inal , coerente c o m

toda a sistemática do novo Cód igo .

Art. 1.222 CC/2002.0 reivindicante, obrigado a indenizar as benfeitorias ao possuidor de má-fé, tem o direito de optar entre o seu valor atual e o seu custo; ao possuidor

de boa-fé indenizará pelo valor atual, (g.n.)

Art. 519 CC/1916. O reivindicante obrigado a indenizar as benfeitorias tem direito de

optar entre o seu valor atual e o seu custo.

A o passo que , ao analisar o art. 1.222 C C , S i l v io Rod r igues 2 5 comenta que:

Como ao determinar que a indenização pelas benfeitorias o objetivo do legislador visa evitar o enriquecimento sem causa, ao reivindicante cabe optar entre o valor atual das benfeitorias ou ao seu custo. Isso por que, se pagar o valor atual, ou seja, aquilo que aproveitou, terá cessado seu enriquecimento, embora o custo das benfeitorias haja sido maior. Ora, já foi visto que, quando houver diferença entre o montante do enriquecimento e do empobrecimento, a indenização devida pelo enriquecido ao empobrecido fixar-se-á pela cifra menor. Nesse princípio se fundamenta a regra do art. 1.221 do Código Civil. É evidente, por conseguinte, que as benfeitorias se devem in­

denizar se ainda existirem ao tempo da evicção. E se compensam com os danos devidos

pelo evicto ao reivindicante (CC, art. 1.221). (g.n.)

F ica, ao re iv indicante, a obrigação de indenizar as benfeitorias ao possuidor

de má-fé, tendo a faculdade de optar entre o seu va lor atual e o seu custo; o mes-

Ibidem,v.V,p.70-l.

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EMBARGOS DE RETENÇÃO POR BENFEITORIAS E ACESSÕES COM O NOVO CÓDIGO CIVIL 363

m o não se pode dizer do possuidor de boa-fé, porquanto será indenizado sempre

pelo va lor a tua l . 2 6

a) Ser possuidor

A posse ao longo dos anos nasceu do fato de se exercê-la pela ocupação, o u

por meio da concessão estatal, f icando latente, dessa forma, a situação precária e m

que se v i s lumbrava a situação dos possuidores. O s interditos v i e r am justamente

para lhes amparar , mas, n o começo, entendia-se que tal tutela só caberia se se

infringisse o m a n d a m e n t o do pretor. 2 7

Aos poucos fo i se percebendo o equívoco, porquanto tal pensamento tratava de regular os papéis na propr iedade; e m seguida, começou-se a compreender o instituto da posse. Após cuidar dos denominados precaristas, procurou-se regu ­lar q u e m possuía a ager privatus.26 Pontes de M i r a n d a faz comentár io opor tuno sobre essa época:

Somente concebida a posse como poder de fato, podem ser-lhe explicadas, conve­nientemente, a transferibilidade entre vivos e a hereditariedade. 0 fato é que se trans­fere. 0 fato, e não o conceito, cria o direito. Por isso mesmo lhe falta a definitivida-de, que o direito empresta à propriedade. Se o direito procedesse com o mesmo

Cf. artigo 1.217 do Código Civil. Cf. MOMMSEN, TH. Abriss des rõmischen Staatsrechts, I, 2.ed. 163, e 11, 446; Hein-rich Dernburg, Entwicklung und Begriff des juristischen Besitzes des rõmischen Rechts, que assim se pronuncia: "A tutela possessória nascia, assim, do fato da posse, ou por ocupação, ou pela concessão, tácita ou não, do Estado (PAULO, Sententiae, V, 6, pará­grafo 11), - o que mostra que a relação do precarista, fáctica, foi que se veio a chamar posse. O interdictum uti possidetis serviu à restituição da posse do precarista. A rela­ção do precarista com o precário dans não era tutelada com actio; daí o interdictum de precário. Com a posterior introdução da actio praescriptis verbis e sua aplicação ao precário, tornou-se supérfluo o interdictum de precário. Pensou-se que o interdito uti possidetis somente cabia se se infringia o mandamento do Pretor". Também, nesse sentido, SAVIGNY, F. C. VCN. Das Recht des Besitzes, p.396. DERNBURG, Heinrich. Entwicklung und Begriff, p.13. "Mostrou o erro: tratava-se de regular os papéis no processo da propriedade, e daí começou a evolução para se aten­der a posse. Depois de se cuidar dos precaristas do ager publicus foi que se cuidou de quem possuía agerprivatus. Para se proteger a posse, que tinha o precarista, foi que se criou o interdito uti possidetis!'

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desembaraço em relação à posse, estaria a falsear o provisório da vida mesma, dos fatos de posse; e a posse seria "conceito", como a propriedade, e não "fato".29

Tal linha de pensamento resultou na provisoriedade da posse, que se man­tém até os dias de hoje, tanto é verdade que ela não consta transcrita em regis­tros públicos e a sua transferência não paga impostos. 3 0

A posse, 3 1 adotada pelo Código de 1916 e agora pelo de 2002, é aquela resul­tante da fusão do pensamento romano germânico, indo contra certas posições as quais permitem ao mero detentor ser considerado como possuidor. 3 2

Comentários ao Código de Processo Civil, p.142. Sobre essa diferença, STAMMLER, Rudolf. Die Lehre von dem richtigen Recht, p.332. Cf. TEIL, Allgemeine, p. 455: "Daí resulta que a posse só se protege provisoriamente. É transitória, como o homem e o poder do homem. Não figura em registros públicos, nem o que transfere a posse "dispõe" do objeto, - dispõe da posse." A sua transferên­cia não paga imposto, mas apanha tanto a coisa, a respeito da evolução da posse, ver PONTES DE MIRANDA: "A evolução jurídica traduz condições econômicas e psíqui­cas. O conceito hodierno de posse é a síntese, a que se existe de fato, que gera ações semelhantes às de reivindicação". Ainda Josef Kohler, chegou a chamar "ordem da paz" àquela em que acontecem as posses, em contraposição à ordem definitiva, despótica, em que se escalonam os blocos conceptuais da propriedade. Código Civil italiano, em seu art. 1.140, dispõe: "A posse é o poder sobre a coisa que se manifesta em uma atividade correspondente ao exercício da propriedade ou de outro direito real"; o Código Civil português, em seu art. 1.251, reza: "Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real"; O professor José Manoel de Arruda Alvim Netto, em parecer não publicado, preleciona que: "no direito alemão, em que não há uma conceituação de posse, com referência explícita a uma figura externa à posse, senão que é a posse conceituada como uma situação de fato, de senhoria sobre uma coisa, e, a fortiori, não está explicitado no texto da lei que a posse diz com a situação daquele que exteriorizaria uma posição aparente de dono, na doutrina essa realidade é reconhecida, através de obra em que se fazem presentes as posições assentes no direi­to alemão (ver ENCINAS, Emilio Eiranova. Código Civil alemán comentado, p.271, em que se lê: "Posesión (Besitz): concepto no transcrito al BGB. La posesión es el domínio de hecho, reconocido en el trânsito de las cosas de una persona a otra [mediante posesión jurídica (RechtBesitz)]". Esta situação de fato é reconhecida, inclusive, na França, cujo Code Civil carecia de uma teoria geral da posse. Na doutrina francesa contemporânea, explica-se o fenômeno possessório como um poder de fato. ("Le pouvoir de fait sur Ia chose et il y a la possession" - ver TERRE, François; SIMPLER, Philippe. Droit civil. P-46) PONTES DE MIRANDA. Op. cit., p.147. "O conceito de posse, que entrou no Código Civil brasileiro de 1916, é o conceito contemporâneo europeu, combinação do pensa­mento romano com o germânico (com abstração do animus dominantis). A novidade do direito brasileiro foi abstrair do corpus, o que lhe deu certa espiritualidade, quan-

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A propriedade e a posse são diversas, vistas sob a ótica jurídica.Todavia, às vezes, em linguagem cotidiana transparecem como se fossem a mesma coisa. 3 3 Por­tanto, a primeira é situação de direito a segunda é de fato, que se manifesta por uma atividade correspondente ao do exercício do proprietário enquanto a anterior ad-vém do próprio proprietário. 3 4

Tem-se, então, como diferença primordial, a titularidade do exercício do di­reito, pois u m é o dono e o outro apenas se comporta como tal. 3 5

Os embargos de retenção têm origem na proteção possessória, que veio jus­tamente para amparar aquele que, no momento , parece estar com a razão. Mor­mente porque os limites da propriedade podem ser incertos e não é incomum se

do o espírito do país podia reagir eficazmente contra a distinção entre possessio e detentio e contra a intromissão de 'conceito' no plano fáctico das posses. Isto é, con­tra a filosofia decadente, que pretendia platonizar a posse, e contra o orientalismo de tapeçaria, com que se pretendia reduzir a detentores os que colhiam frutos sem ser dono (o arrendatário, o que plantou com permissão, e outros) e com que se repeliam a transferibilidade e a hereditariedade da posse". Ver a respeito MESSINEO, Francesco. Manuale di diritto civile e com?nerciale, p.248. "Vius Possessionis — il diritto dipossedere — comepotere autônomo dei possessore, è, rispetto alfatto dei possesso, un posterius e un che di acquisito: possideo (ossia, ho il diritto di continuare a possedere), quia possideo (perchè ho posseduto sinora). GALGANO, Francesco. Diritto privado, p.133. "Proprietà e possesso sono, giuridica-mente, situazioni fra loro diverse, anche se il línguaggio corrente attribuisce spesso aí due termini un significato equivalente". MESSINEO, Francesco. Op. cit., p.249. "A a) La ragione (di política legislativa), per la quale 1'ordinamento giuridico dá rilevanza e (come dirò) protegge il possesso, cosi dafare di esso un potere autônomo, sara chiara súbito, non appena si ricordi (v. supra, n. I) che, se il possesso non. è sempre, nè necessariamente, eser-cizio dei diritto soggettivo da parte dei. titolare, esso può anche essere tale, in. quanto, di regola, il diritto soggettivo è esercitato soltanto da chi ne è il titolare (presunzione di titola-rità). Ora, poichè non sarebbe possibile discernere prima facie se chi esercita un diritto ne sia, o non ne sia, il titolare e poichè, nel. dubbio, sarebbe socialmente dannoso e improvvi-do (esigenza di ordine pubblico) lasciare senza difesa chi esercita un diritto, sol perchè ques-to esercizio può provenire dal. non-titolare, 1'ordinamento giuridico riconosce eprotegge il possesso come tale: anche, quindi, neWipotesi che il possesso ponga in essere l 'esercizio di un diritto, da parte di chi non è titolare di siffatto diritto, e che, a questo modo, sia tutelato, anzichè un. diritto soggettivo, ilfatto compiutó". "La prima è uma situazione di diritto: è il diritto sulla cosa definito dali' art. 832 secon-do è uma situazione difatto: 1'art. 1140 lo, definisce come il potere sulla cosa che si mani­festa in un' attività corrispondente ali esercizio dei diritto dipropietà". GALGANO, Fran­cesco. Op. cit, p.133. "È la differenza fra titolaritá ed esercizio dei diritto: fra Vessere proprietari di una cosa e il comportarsicome proprietari di essa". GALGANO, Francesco. Op. cit, p.133.

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confundir onde ela começa e termina, por isso, o ordenamento fez a opção de pro­teger inicialmente o possuidor. 3 6

O jurista alemão Savigny 3 7 trouxe grande contribuição científica na definição de posse e antes dele há registros de mais de setenta teorias tentando explicá-la. A sua teoria foi denominada subjetiva, a qual, em breves palavras, consiste na pre­sença de vontade do possuidor possuir para si a coisa. 3 8

Em contraposição à sua teoria, outro alemão, Jhering, defendia ser a condi­ção do possuidor uma questão objetiva, independente da sua vontade, porque considerava que a vontade subjetiva já estava inserida no ato de possuir. Isto sig­nifica dizer que todo aquele que tiver o controle sobre a coisa em seu nome e como se sua fosse, será tido como possuidor. 3 9

b) Ser possuidor de boa-fé para a interposição dos embargos

Ponto-chave dos embargos 4 0 e de qualquer situação ligada ao direito de re­tenção é a questão da boa-fé, 4 1 que a lei não faz menção expressa, deixando ao

PONTES DE MIRANDA. Op. cit., p. 161. "Os limites da propriedade podem ser incer­tos, sem que o seja a posse. Por isso mesmo, em caso de confusão de limites (em caso de incerteza invencível), atende-se, primeiro, à posse. A posse pode ser certa, sem que os limites o sejam. Por isso, são absurdos os acórdãos - e violam letra da lei - que preexcluem, a priori, a proteção possessória, se os limites são incertos: a posse pode ser certa. Quem tem posse tem ação possessória, em caso de ofensa, ainda que, no terre­no da propriedade, haja confusão ou incerteza de limites (sem razão: a 2 a Turma do Supremo Tribunal Federal, a 2 de junho de 1950; a Câmara Cível do Tribunal de Jus­tiça do Ceará, a 12 de abril de 1943, J. e D., VII, 18; a I a Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Bahia, a 17 de junho de 1952; R. de D. L, 15,291). Posse e domínio (ou direi­to real limitado) têm tutelas jurídicas distintas e ações distintas (cf. 6 a Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, 8 de março de 1951, R. dos T, 192,169; 2° Grupo de Câmaras Civis, 29 de janeiro de 1953, 210,131)." Frederico Carlos de Savigny foi um jurisconsulto alemão. Cf. ARZUA, Guido. Posse, o direito e o processo, p. 14. Rodolfo Von Jhering foi um eminente jurisconsulto alemão do século XIX. Nasceu em Aurichem (1818) e morreu em Gotinga (1892). CASTRO, Amílcar. Op. cit., p.407. "O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias necessárias e úteis, por cujo valor poderá exercer direito de retenção. Quanto às voluptuárias, se não forem pagas, o possuidor de boa-fé terá direito de levantá-las, quando o puder, não danificando a coisa (art. 516 do CC), sem direito de indenização". Código de 1916. Art. 516.0 possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfei­torias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhe forem pagas,

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ju lgador tal missão, segundo o caso concreto, se existe a presença de boa-fé o u não . 4 2

A boa-fé t em fundamenta l papel na atual idade jur íd ica e exige u m a pesqu i ­sa aprofundada, p o r parte da ciência jur íd ica , capaz de def in ir c o m certa clareza o seu alcance e as suas conseqüênc ias . 4 3

São importantes , nesse m o m e n t o , os ens inamentos de Menezes Corde i ro :

A boa-fé surge, com freqüência, no espaço civil. Desde as fontes do Direito à suces­são testamentária, com incidência decisiva no negócio jurídico, nas obrigações, na posse e na constituição de direito reais, a boa-fé informa previsões normativas e nomina vectores importantes da ordem privada. 4 4

A boa-fé no n o v o Cód igo C i v i l t em u m a presença constante e propic ia a sua efet iv idade, pois , e m mais de u m ponto , faz-se menção a ela c o m o alicerce de diversos institutos. Da í a necessidade de se levantar e m u m estudo específico as menções existentes e sua ordenação terminológica .

Destaca-se, n o d i re i to e u r o p e u , c o m o fontes da boa-fé, cada qua l c o m suas conseqüênc ias d i ferentes, o d i re i to r o m a n o , o d i re i to c a n ô n i m o e o d i r e i ­to g e r m â n i c o . 4 5

O direito r o m a n o inser iu , na história do direito europeu , a pa lavra boa-fé, que t inha diversos sentidos. E r a perceptível na busca de u m a just iça mater ia l quando se falava e m contratos . 4 0

levantá-las quando o puder sem detrimento da coisa. Pelo valor das benfeitorias ne­cessárias e úteis, poderá exercer o direito de retenção. Código de 2002. Art. 1.219. O possuidor de boa-fé tem direito à indenização das ben­feitorias necessárias e úteis, bem como, quanto às voluptuárias, se não lhes forem pagas, a levantá-las, quando o puder sem detrimento da coisa, e poderá exercer o direito de retenção pelo valor das benfeitorias necessárias e úteis.

4 2 Código Civil de 1916. Art. 490. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa, ou do direito possuído. Parágrafo úni­co. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção. Código Civil de 2002. Art. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. Parágrafo único. O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção.

4 3 O Código Civil suíço, vigente desde 1912, estabelece, no art. 2 o, que cada um deve exer­cer os seus direitos e cumprir as suas obrigações segundo as regras de boa-fé.

4 4 CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil, p.l7. 4 5 CALASO, Storia. E sistema dellefonti dei diritto comune, p.26. 4 6 CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Op. cit., p.202.

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O direito canônico, sofrendo influência do romano, daria à boa-fé uma vi­são axiológica de pecado, porque a considera presente quando não há pecado. 4 7

Por fim, o direito germânico insere a boa-fé no mundo jurídico, a tutela da for­ma, a publicidade e a proteção da confiança, com base em sinais exteriores. 4 8

O Código de Napoleão, de 1804, foi u m dos acontecimentos mais importan­tes da história do direito, tendo u m papel importantíssimo em formar novos parâmetros no direito europeu. Inseriu, no código em questão, inúmeras cita­ções sobre a boa-fé, por exemplo, arts. 201 e 202 - casamento putativo; 549 e 550 - possuidor de boa-fé; 555 - acessões; 2.009 - terceiro de boa-fé; 2.265, 2.268 e 2.269 — boa-fé na prescrição. 4 9

Tal codificação, puro ato de Estado, não seguiu a evolução da ciência do direi­to, resultou - então - em um positivismo prematuro de tipo exegético. O contrá­rio aconteceu na Alemanha, onde surgiram construções jurídicas inovadoras.

O BGB, em vigor desde o ano de 1900, em seu parágrafo 242 dispõe: "O devedor está obrigado a executar a prestação como exige a boa-fé."

A boa-fé em Savigny teve a influência da sua teoria subjetivista, entendendo que somente está presente a boa-fé quando o possuidor da coisa esteja conven­cido de estar amparado pelo ordenamento para praticar tais atos. 5 0 As suas formu­lações refletiram na opinião de outros doutrinadores, como Westphals, que afirma estar presente a boa-fé nas relações possessórias quando o possuidor acredita ser efetivamente o proprietário. 5 1

A doutr ina alemã t ambém se manifesta por Von Keller, que afirma ser pos­suidor de boa-fé o convicto de ser o proprietár io. 5 2 De uma maneira geral, o possuidor de boa-fé é todo aquele que possua algo acreditando ter direito para tanto.

Fica bem evidente, pela exposição da doutrina anteriormente mencionada, que a manifestação da boa-fé é fruto da confiança, segundo o qual, o possuidor de­ve ter em ser o legítimo detentor do direito. Porém, a locução "aparência" vem

Ibidem, p.202. Ibidem. Ibidem, p.246. Op. cit., p.104. Eine civilistishe Abhandlung, Giessen (1837). WESTPHALS, Ernst Christian. System dês romischen rechts uber die arten der sachem, § 597. KELLER, Von. Pandekten, p.209.

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sendo utilizada constantemente na Itália e e m Portugal c o m o justificativa para ser protegido determinado direito por entender-se presente a boa-fé. 5 3

É evidente que o va lor jur íd ico da intenção manifesta-se quando o ato terá efeitos jur íd icos favoráveis ao agente, porquanto que a boa-fé seria a vontade c o n ­f o rme o direito, t razendo, c o m o pr inc ipa l efeito, o sup r imen to de certas de f i ­c iências dentro de u m l imi te , da fo rma dos atos jur íd icos e, conseqüentemente, gerando direi tos. 5 4

Para tentarmos sair u m pouco da abstração, comentaremos u m a decisão na qua l fo i dada u m a conotação prát ica à boa-fé. N o aspecto:

Direito civil. Recurso especial. Ação Demolitória. Imóvel construído em logradouro público. Indenização. Direito de retenção. Benfeitorias. Precedentes. 1. Recurso espe­cial interposto contra v. Acórdão segundo o qual "a construção procedida de forma ile­gal e clandestina não pode beneficiar o infrator, possibilitando ser ele indenizado", em Ação de Demolição ajuizada pelo Município recorrido, para fins de condenar a ora recorrente a demolir imóvel destinado à residência e à exploração comercial cons­truído em logradouro público. 2. De acordo com os arts. 63, 66, 490, 515 a 519, 535 V, 536 e 545, do Código Civil Brasileiro, a construção realizada não pode ser consi­derada benfeitoria, e sim como acessão (art. 536, V, CC), não cabendo, por tal razão, indenização pela construção irregularmente erguida. O direito à indenização só se admite nos casos em que há boa-fé do possuidor e seu fundamento sustenta-se na proibição do Ordenamento Jurídico ao enriquecimento sem causa do proprietário, em prejuízo do possuidor de boa-fé. 3. No presente caso, tem-se como clandestina a construção, a qual está em logradouro público, além do fato de que a sua demolição não vai trazer nenhum benefício direto ou indireto para o Município que caracteri­ze eventual enriquecimento. 4. Não se pode interpretar como de boa-fé uma ativida­de ilícita. A construção foi erguida sem qualquer aprovação de projeto arquitetônico e iniciada sem a prévia licença de construção, fato bastante para caracterizar a má-fé da recorrente. 5. "A construção clandestina, assim considerada a obra realizada sem licença, é uma atividade ilícita, por contrária à norma edilícia que condiciona a edificação à licença prévia da Prefeitura. Quem a executa sem projeto'regularmente aprovado, ou dele se afasta na execução dos trabalhos, sujeita-se ã sanção adminis-

5 3 JORGE, Fernando S. L. Pessoa. A proteção jurídica da aparência no direito civil português. A respeito do direito italiano ver: MOSCHELLA, Raffaele. Contributo allá teoria deli 'aparenza giuridica.

5 4 Cf. CARNELUTTI, Francesco. Teoria geral do direito, p.432.

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trativa correspondente. (Hely Lopes Meirelles, em sua clássica obra Direito de cons­

truir. 7.ed. Malheiros, p.251)55

É razoável a f i rmar que o construtor de u m a obra deve saber da existência de no rmas editadas pelo mun i c íp io e da sua obrigatoriedade e, pr inc ipa lmente , que levantar obra e m terreno alheio não é correto e mu i to menos prudente . P o r isso, e m nosso sentir, ag iu corretamente a nobre corte super ior ; do contrár io se p r i v i ­legiaria o desrespeito ao ordenamento jur íd ico , sendo u m incent ivo àqueles c ida­dãos despreocupados e m agir dentro da legalidade e não e m sua m a r g e m c o m o ocorre constantemente.

A boa-fé, segundo o angolano Fe rnando N o r o n h a , é:

0 dever imposto às partes de agirem de acordo com determinados padrões de cor­reção e lealdade, sobretudo depois que os dois principais códigos civis germânicos, o alemão e o suíço, lhe consagraram preceitos específicos, em época oportuna. 5 6

A dou t r i na da época e m que fo i p romulgado o Cód igo de 1916, 5 7 represen­tada pelo seu ideal izador C lóv i s Bev i l áqua , af i rmava a var iabi l idade das situações que p o d e r i a m ser aptas a demonstrar a má-fé do possuidor: as mais c o m u n s e ram a confissão, a nu l idade gritante do t í tulo e a existência, de ins t rumento que d e ­monstrasse c la ramente q u e m era o legí t imo possuidor . 5 8

N o entanto , a grande ma io r i a das decisões considerava cessada a boa-fé n o m o m e n t o da citação do processo, cu jo objeto é jus tamente discutir-se a ques ­tão. Dessa f o rma : "P resume-se cessada a boa-fé do possuidor, a par t i r de sua c i t ação " ; 5 9 " D e i x a de ser boa-fé a posse desde o m o m e n t o e m que os réus são c i tados" . 6 0

5 5 REsp.n.401287/PE. 5 6 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais, p.125.

Lyon-Caen preleciona: "A boa-fé subjetiva, ou boa-fé crença, é um estado de ignorân­cia sobre características da situação jurídica que se apresenta, suscetíveis de conduzir a lesão de direitos de outrem; é a boa-fé crença errada."

5 7 Código Civil de 1916. Art. 491: "A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente."

5 8 BEVILÁQUA, Clóvis: Op. cit., p. 14. "As circunstâncias capazes de presumir a má-fé do possuidor podem variar, mas os autores costumam reduzi-las às seguintes: confissão do próprio possuidor de que não tem, nem nunca teve título; nulidade manifesta deste; o fato de existir em poder do possuidor instrumento repugnante à legitimida­de da sua posse".

59 RT 214-263 - ap. 6 CCTJSP, 16/6/1953. 60 R T i77_722 - ap. 6 - CCTJSP, 8/10/1948.

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Ex i s t i am, todavia , aqueles dout r inadores que a le r tavam do erro e m se c o n ­siderar cegamente a citação c o m o ins t rumento à demonst ra r a má-fé do possu i ­dor, dentre eles Lafayette:

É falsa a opinião dos que pensam que a citação induz sempre o possuidor em má-fé. Bem pode o possuidor, sem embargo dos fundamentos da citação, continuar, por jul­gá-los improcedentes, na crença de que a coisa lhe pertence. E é essa razão por que o possuidor pode recomeçar a prescrição, depois da interpelação.

A tua lmente , é questão pacif icada na jur i sprudênc ia e m que se aceita c o m o cessada a boa-fé no m o m e n t o da citação. D o pon to de vista pragmát ico , deve-se reconhecer a sua apl icabi l idade. Acontece , no entanto, que , c ient i f icamente fa ­l ando , deixa mu i t o a desejar.

Isto po rque existem situações fáticas pra t i camente impossíveis de se ava ­l iar, c o m certeza, q u e m é o detentor do direito. Nessas hipóteses, o ju lgador acaba u t i l i zando a exclusão d o que p r o p r i a m e n t e a certeza e m seu j u l g a m e n ­to , o que se inv iab i l iza a d e n o m i n a ç ã o de possu idor de má-fé o u não a par t i r da c i tação.

Ado t a r a regra de que a citação cessa a boa-fé é u m a solução razoável, desde que , e m casos c o m certas part icu lar idades, tal l i nha seja abrandada para atender a sua casuística, sendo u m a saída ma is justa e condizente c o m os anseios do p r o ­cesso c iv i l mode rno .

N o s embargos devem constar, obr igator iamente , sob pena de i nde fe r imen ­to: o estado e m que se encontrava a coisa e o seu estado a tua l . 6 1 A fo rma d e l i m i ­tada n o art. 744 t em sido observada na jur i sprudênc ia r igorosamente.

O Cód igo de 1916 seguiu a l inha do Cód igo francês, vedando ao possuidor de má-fé o direito à retenção, que é a l inha seguida pelo Cód igo C i v i l de 2002, o que se pode conc lu i r dos artigos.

"Embargos - Retenção - Ausência de especificação das benfeitorias, do estado da coisa ou do custo - Inadmissibilidade - Prescrição taxativa do art. 744 do Código de Pro­cesso Civil - Recurso provido. O art. 744 do Código de Processo Civil prescreve, taxa­tivamente, que o devedor deverá especificar as benfeitorias, o estado da coisa e custo, valor e valorização das benfeitorias. Os agravantes indicaram uma construção com seus acessórios (sem os respectivos preços e valor), lançando valor atual aleatório, o que não pode ser considerado como embargos de retenção". (TJSP - Agravo de Ins­trumento 194.846-1 - Rei. Des. Walter Moraes - j . 25/5/1993)

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3.1 Momento processual adequado à alegação do direito de retenção

A questão central do item ora comentado diz respeito à possibilidade ou não da oposição dos embargos de retenção na execução de sentença possessória, sem ter sido levantado o direito de retenção na contestação da ação possessória. Esta é u m a questão tortuosa na jurisprudência, em que há posição firme em não admitir a oposição dos embargos sem a anterior alegação do direito de retenção na contestação, sob o argumento de que haveria uma preclusão ocasionada pela não alegação no momento opor tuno. 6 2

O cerne da questão diz respeito à obrigatoriedade da alegação do direito de retenção, no processo de conhecimento, para a possibilidade da oposição nos embargos. Poderia, então, a sua oposição ser diretamente na execução da senten­ça, sem prévia alegação na fase de conhecimento, em razão da não ocorrência de preclusão. 6 3

Argumentos defendendo as duas posições não faltam, mas um dos que defendem a sua impossibilidade é fundamentado no fato de tal alegação ser pos­sível apenas na fase de conhecimento, permitindo, com isso, u m contraditório pleno. Nesse aspecto, ainda se afirma que, levando em conta a natureza executi­va da ação possessória, deve ser discutido o direito de retenção anterior. 6 4

"Reintegração de posse. Embargos de retenção por benfeitorias. Tais embargos não cabem na ação possessória (em razão de sua natureza), se o direito de retenção não foi anteriormente reconhecido. Esse direito há de ser pleiteado na resposta ao pedido possessório, pena de preclusão. Precedente do STJ: REsp. n. 14.138. Hipótese em que não houve nem ofensa ao art. 744 do Cód. de Pr. REsp. n. 46.218/GO; Recurso espe­cial - 1994/0008883-3 - Min. Nilson Naves (361)." "Processual Civil - Recurso em mandado de segurança - Execução de título judicial -Trânsito em julgado - Caução — Desnecessidade - Precedentes do STJ. Cuidando-se de execução definitiva, desnecessária a prestação de caução, irrelevante esteja pendente de julgamento apelação de sentença de improcedência dos embargos de retenção, uma vez que o recurso não possui efeito suspensivo. Recurso ordinário improvido". Roms 2315/SP; Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 1992/0029299-2 - Min. Cas­tro Filho (1.119). "Embargos de retenção por benfeitorias. Ação de reintegração de posse. Questão não discutida na demanda principal. Liminar cumprida. Desocupação do imóvel. Tratan­do-se de ação possessória, dada a sua natureza executiva, o direito à indenização e re­tenção por benfeitorias deve ser discutido previamente na fase de conhecimento. Pro­vidência não tomada pelo interessado. Embargos de retenção prejudicados, em face da desocupação do imóvel por força de cumprimento,de liminar. Recurso especial

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Todavia, os argumentos favoráveis à tese da possibilidade de oposição di­zem respeito à economia processual, não à ofensa à coisa julgada e, conseqüen­temente, na desconsideração da necessidade da discussão da retenção na fase de conhecimento. 6 5

Entretanto, os contrários ainda alegam preclusão or iunda da não alegação do direito de retenção no processo de conhecimento. 6 6 Parte-se da premissa, se­gundo a qual as interpretações restritivas do direito devem ser tomadas à luz do direito positivo, in casu, não há previsão positivada da obrigatoriedade da alegação na contestação ou mesmo em qualquer outra fase do processo de conhecimento. Ao contrário, o art. 744 do CPC dispõe que poderão ser opos­tos os embargos de retenção na execução da sentença. Isso parece ser mui to mais razoável se for entendido pela sua possibilidade de alegação apenas nos embargos.

Isso sem levar em conta as aspirações do processo civil moderno, que pro­cura ser efetivo, rápido e célere. Valores do amparado que são antagônicos por parte da jurisprudência que talha tal possibilidade. 6 7

conhecido e provido. REsp. n. 232.859/MS; Recurso Especial 1999/0088049-8 - Rei. Min. Barros Monteiro." "Processual civil. Execução de ação reivindicatória. Embargos de retenção por ben­feitorias. Hipótese de cabimento. Na ação reivindicatória, quando, como na hipóte­se, o direito de retenção não foi discutido na fase de conhecimento, os embargos de retenção por benfeitorias podem ser opostos na execução da sentença que a julgou procedente. Tal aceitação não importa em ofensa à autoridade da coisa julgada e se afeiçoa ao princípio da economia processual. REsp. n. 111.968/SC; Recurso especial 1996/0068345-0; Min. César Rocha." "Recurso especial. Ação de rescisão de termo de recebimento do imóvel cumulada com pedido de reintegração de posse. Embargos de retenção. Cerceamento do direito de defesa. Revelia. 1. Em se tratando de ação também possessória, cuja executividade de­pende apenas da expedição do respectivo mandado de reintegração, o direito à inde­nização e retenção por benfeitorias deve ser discutido na fase de conhecimento, sob pena de preclusão, e não nos embargos de retenção. 2. O julgamento antecipado da lide se faz necessário quando a solução da causa decorrer de questão meramente de direito, hipótese dos autos, não se podendo falar em cerceamento do direito de defesa. 3. Discussão a respeito da existência, ou não, de revelia prejudicada, eis que em nada alterara o resultado da demanda. 4. Recurso especial não conhecido. Min. Carlos Al­berto Menezes Direito - REsp. n. 54.780/DF; Recurso Especial 1994/0029630-4." RAWLS, John. Uma teoria da justiça, p. 27. Explana nos seguintes termos: "A justi­ça é a virtude primeira das instituições sociais, tal como a verdade o é para os sis­temas de pensamento. Uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja, deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma forma, as leis e as

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Ademais, a justiça social é a estrutura básica da sociedade e só será alcança­da com o pleno funcionamento das instituições em u m sistema único de coope­ração, tendo-se como instituição u m conjunto de regras que determina funções e posições. 6 8 Nessa visão, percebe-se a importância da jurisdição para a realização da justiça social; conseqüentemente, o processo destaca-se como instrumento de sua realização. A doutrina tradicional classificava o processo como u m instrumen­to de realização da jurisdição, porém o enfoque deve ser mais intenso, pois nada vale essa classificação se não se destacar a sua função, porque o meio deve estar em sintonia com os fins a que se destina. 6 9

Assim, o raciocínio que se faz há de incluir necessariamente os escopos do processo; isto é, a sua utilidade, pois só desse modo é que se dará u m conteúdo substancial a essa usual observação da doutrina. Essa busca da consciência teleo-lógica, demonstrando todos os fins visados e do modo como se interagem, cons­titui peça importantíssima no quadro processual. 7 0

Esses pensamentos, que vêm modificando a postura do processo, têm ori­gem nos pensamentos de Chiovenda, o qual expressou que o processo deve "dar a quem tem u m direito, na medida do que for possível na prática, tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter"; 7 1 e também nos de Mauro Cappelletti, que acredita na necessidade de se observar o sistema processual, na óptica do consumidor dos serviços judiciários, e não mais pensando exclusiva­mente nos seus operadores. 7 2 Estas idéias já deveriam estar incorporadas à roti­na forense, mas, devido a óbices culturais e econômicos, não estão. É errônea a postura daqueles que afirmam ocorrer óbice legal, pois a norma legitima essa no­va visão, em que o julgador deve conduzir o processo para ser u m real instru­mento de jurisdição.

Presume-se que a sociedade precise das normas criadas para viver em paz, visto que nada mais as justificam. Portanto, sua obediência interessa ao Estado,

instituições, não obstante o serem eficazes e bem concebidas, devem ser reformadas ou abolidas". Ibidem, p.63. A instrumentalidade do processo, p.149. HABSCHEID, Walter J. As bases do direito processual civil, Revista de Processo, v.I 1-3. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituzione di diritto processuale civile, n.12, p.42; essa afir­mação foi feita pela primeira vez em 1911 pelo próprio Chiovenda (cf: Dell 'azione nascente dal contrattoprelimminare, n.3, p.l 10). CAPPELLETTI, Mauro. "Access to justice: the worldwide movement to make rights effective. A general report, in acess to justice a world survey", t.l, apud DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, 1.1, p.592.

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uma vez que a verdadeira paz social somente se alcança com sua correta aplica­ção. 7 3 Então, deve o Estado tomar todas as precauções para que a norma seja apli­cada ao caso concreto em sua essência.

Por isso, não surpreende que assuma prioridade ostensiva nas preocupações do mundo jurídico, a questão a respeito do efetivo exercício de franquias previs­tas no ordenamento. Já não bastam os princípios, leis e demais protetores, faz-se necessária a transformação disso em realidades concretas. Contudo, mencionar novos rumos significa, obrigatoriamente, reconhecer que algo mudou, ou que está mudando, em uma trajetória. Mas a questão é identificar quais mudanças está percorrendo o processo civil brasileiro.

Necessário se faz realçar que, recentemente, passou a ocupar maior espaço pelos juristas uma categoria diversa de relações, com linhas convergentes para um objeto comum. Citemos, como exemplo, Barbosa Moreira, em sua obra, Temas de direito processual, sexta série, 7 4 ensina o interesse em prevenir calamidades decorrentes do rompimento injustificado do equilíbrio ecológico, ou em prote­ger da deterioração os bens de valor histórico e artístico, ou em impedir que uma propaganda enganosa envenene as mentes dos consumidores potenciais.

Nesse diapasão, finalmente, repensa-se o processo civil, isto é, deve-se ater-se não mais a regras e formalismos exacerbados, mais sim a um só pensamento, o de que o processo deve ter um resultado efetivo realmente, ou seja, a justiça não pode ficar apenas no m u n d o jurídico, deve atingir o m u n d o fático. Ao contrário, o acesso à justiça, isto é, o acesso, às sentenças, decisões e comandos decididos por juizes e tribunais, não passaria de perda de tempo, se não fosse o resultado trazi­do por eles.

O pensador moderno não analisa mais o processo pelas questões internas, mas pela sua utilização, buscando constatar o que realmente traz de útil à coleti­vidade. Utilizando esse paradigma, Mauro Cappelletti sugere que o processo de­va ser estudado pela ótica do consumidor dos serviços forenses, e não mais por seus operadores. 7 5

A questão não é negar tudo o que a ciência processual conseguiu até agora, mas proceder a um melhor estudo, prestigiando institutos fundamentais, sempre com a preocupação de fazer com que o processo seja u m instrumento efetivo da realização dos direitos. 7 6 Em outras palavras, busca-se não mais a cruel verdade

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz, p.10. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual, p.310. DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p.592. WATANABE, Kazuo. Da cognição do processo civil, p.21.

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formal, mas a verdade real, senão, ao menos, chegarmos o mais perto possível dela.

O processo deve ser u m instrumento de tutela efetiva de direitos. E essa ins­trumentalização do processo deve coordená-lo à árdua, porém gratificante, mis­são de oferecer todos os meios necessários ao amparo pleno dos direitos, contra qualquer forma de ameaça ou lesão. 7 7 Independentemente da posição doutriná­ria defendida pelo cientista do direito, a visão do processo como instrumento de justiça o levará à coordenação entre o processo e o direito material.

Ambos devem estar atentos à realidade, de sorte que as normas jurídico-materiais, que regem essas relações, devem propiciar uma disciplina que responda, de imediato, ao r i tmo de vida da sociedade atual. Criando-se instrumentos de proteção, e com extrema agilidade, que possam responder aos apelos sociais, assim buscou-se por meio do aprimoramento legislativo, a possibilidade da reso­lução de litígios, de u m a maneira mais ampla, isto é, que enfoque u m número maior de pessoas lesadas, evitando um número de ações que se discutam o mesmo direito. Buscando nos mecanismos de relação do direito de massa uma nova sin­tonia para as necessidades do mundo moderno.

Sobre isso, Bobbio chamou a atenção:

uma coisa é falar dos direitos do homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva. [...] à medida que as pretensões aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil.

Ante aos anseios de um processo efetivo, mas, principalmente, pela inexis­tência de óbice legal para tanto, é possível a oposição dos embargos na execução de sentença, mesmo sem anterior alegação. 7 8 O que é totalmente diferente da hipó-

Ibidem, p.90. "Benfeitorias. Embargos de retenção. Ação de imissão na posse. O possuidor pode opor embargos de retenção por benfeitorias, na execução de sentença proferida em ação de imissão na posse (que tem caráter petitório), ainda que não tenha sido reco­nhecido o direito de retenção no processo de conhecimento. Peculiaridade do caso. Recurso conhecido e provido. REsp. n. 111.919/BA; Recurso Especial 1996/0068249-6 — Min. Ruy Rosado de Aguiar." Também: "Benfeitoria. Embargos de retenção. Ação de imissão de posse. O possuidor pode opor embargos de retenção por benfeitorias, na execução de sentença proferida em ação de imissão na posse (tem caráter petitó­rio), ainda que não tenha sido reconhecido o direito de retenção no processo de co­nhecimento. Peculiaridade do caso. Recurso conhecido e provido. (STJ - REsp. n. 96.682.496 - Rei. Min. Ruy Rosado Aguiar - 4 a Turma)."

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EMBARGOS DE RETENÇÃO POR BENFEITORIAS E ACESSÕES COM O NOVO CÓDIGO CIVIL 377

tese de, e m eventual ação reiv indicatór ia, ter sido enfrentada a questão e negada a sua existência. Restando, nessa hipótese, ao réu , p romove r ação au tônoma v i ­sando à cobrança de benfe i tor ias . 7 9

4. DISTINÇÃO ENTRE BENFEITORIAS, ACESSÕES E PERTENÇAS

A legislação pátr ia , por me io do art. 794 do C P C , dispõe que os possuidores de benfeitorias serão legi t imados para exercer os embargos de retenção, sendo que , parte da dout r ina e da jur i sprudênc ia v ê m entendendo que, e m razão disso, o referido direito não é cabível n o caso de acessões e pertenças.

Wash ing ton de Ba r ros M o n t e i r o alerta para o equívoco de u m a eventual confusão : 8 0

Cumpre não confundir benfeitorias, cuja importância é capital na teoria da posse, con­soante se pode verificar dos arts. 516 a 519 do CC, com plantações e construções, que constituem acessão regida pelos arts. 545 a 549 do mesmo código.

A s pertenças são acessórias e p o d e m conservar, facil itar e embelezar a coisa, mas não fazem parte da coisa f is icamente. Isso porque , d i ferentemente dos m e n ­c ionados inst itutos, não se in tegram ao pr inc ipa l , conservando a sua ident idade indiv idual izada.

A relação entre a pertença e a coisa é de submissão econômica , f icando ela a mercê da destinação dada pelo titular da coisa. Cita-se, c o m o exemplo, as m á q u i ­nas e m u m a fábrica e os aparelhos de ar-condic ionado. Tal l inha de pensamento não é condizente c o m a do subscritor, que acredita estar as construções e p lanta ­ções submet idas ao m e s m o regime das benfeitor ias, sendo cabível , então, a o p o ­sição dos referidos embargos. Nesse sentido, o professor A r r u d a A l v i m explica: "aplica-se às acessões o reg ime jur íd ico apl icável às benfeitor ias" . 8 1 N o entanto, ocorre que não se pode a f i rmar quanto as pertenças, v isto não perderem a sua ind iv idua l idade , não leg i t imando tais embargos.

"Embargos de retenção por benfeitorias. Ação reivindicatória. Negada a existência de benfeitorias, na ação de reivindicação, descabem os embargos de retenção opostos à execução daquela sentença, referentes às mesmas benfeitorias. Recurso não conheci­do. REsp. n. 57.730/SC; Recurso especial n. 1994/0037581-6 - Min. Ruy Rosado de Aguiar (1.102)". MONTEIRO, Washington de Barros. Op. cit., p.102-3. Direito de retenção (Parecer). Revista do Processo, n.11-12, p.239.

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5. A CONSTRUÇÃO COMO FORMA DE AQUISIÇÃO DA PROPRIEDADE

O n o v o Cód igo C i v i l inova e m várias vertentes, destacando, pr inc ipa lmente , a sua preocupação c o m a função social , seja do contrato, da propr iedade e m e s ­m o da posse. P o r isso, diversos disposit ivos t en tam protegê-la e m razão das ma is var iadas situações jur íd icas .

A o t ema ora desenvolv ido, interessa a inovação inserida pe lo parágrafo ún i co do art. 1.255:

Se a construção ou a plantação exceder consideravelmente o valor do terreno, aque­le que, de boa-fé, plantou ou edificou, adquirirá a propriedade do solo, mediante pagamento da indenização fixada judicialmente, se não houver acordo.

Nota-se c o m a le i tura da n o r m a a exaltação da função social da posse, oca ­s ionando efeitos diretos na aquisição da propr iedade. O legislador p rev iu u m a nova f o r m a de aquis ição da propr iedade; todavia, agora pela construção p r o m o ­v ida pe lo possu idor de boa-fé.

A professora M a r i a He l ena D i n i z faz menção na ocorrênc ia de u m a acessão inver t ida , na qua l se t em u m a desconf iguração da regra e m que o acessório segue o p r i n c i pa l . 8 2

O referido instituto causará diversas polêmicas, destacando a situação do loca­tár io que tenha p romov ido nova construção mais valorosa do que o prédio; n o sis­tema antigo, a jur isprudência v inha entendendo pela desnecessidade de indenizar, na hipótese do contrato já estar convencionado a integração do b e m de eventuais construções. 8 3 Parece que a esse ponto nada m u d o u ; por isso, quando existir, u m a relação jur íd ica - tal qual u m a locação - deve-se entender que tal n o r m a não seria aplicável, pois existe u m a regulamentação específica para a relação entre as partes.

O p rob lema é que serão geradas posições defendendo o contrár io , o que p o ­de ocasionar diversos problemas, pr inc ipa lmente nas relações locatícias, trazendo insegurança.

DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado, p.765. "Ter-se-á, nesta hipótese, uma aces­são invertida, em que a construção, ou a plantação, passará a ser considerada como principal, descaracterizando a regra de que o acessório segue o principal." "Se as partes avençaram no contrato que as construções passariam a fazer parte in­tegrante do imóvel locado descabe qualquer indenização 2 o TACivSP, 2 a Câm. Ap. 59.952.600, Rei. Juiz Viana Cotrim. No mesmo sentido: 2° TACivSP, 6 a Câm. Ap. 308.993, Rei. Soares Lima".

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Convém mencionar o direito português, no qual o referido instituto é previs­to no caput do art. 1.340, nos mesmos termos do ordenamento pátrio. Porém, o dispositivo lusitano vai mais longe, prevendo, em seus incisos, soluções para di­versos problemas que a sua aplicação possa causar.

Entre elas, fica estipulado que, na hipótese do valor da construção ser o mes­mo do imóvel, haverá licitação entre ambos. Ainda, entender-se-á presente a boa-fé se o autor da obra desconhecia que o terreno era de propriedade alheia ou fora autorizado a promover a incorporação. 8 4

Da interpretação dos dispositivos do Código lusitano, a jurisprudência vem se posicionando para somente possibilitar a referida aquisição quando for auto­rizada pelo proprietário para a construção da obra ou plantação, nos termos da verbete:

A implantação de uma construção em terreno alheio sem qualquer prévia autoriza­ção dos donos constitui mera usurpação e não é susceptível de integrar os requisitos da acessão industrial imobiliária.85

Ademais, o ônus de se provar a boa-fé cabe ao futuro adquirente e não ao dono do prédio provar a má-fé do construtor. 8 6

A ciência do direito deve ser sempre praticada para a resolução dos proble­mas, com ênfase na aplicação e na interpretação das normas. Dessa forma, voltan-do-se ao texto legal brasileiro, tem-se como ponto-chave do artigo ora comentado a boa-fé.

A boa-fé tem fundamental papel na atualidade jurídica e exige uma pesqui­sa aprofundada, por parte da ciência jurídica, capaz de definir com certa clareza o seu alcance e as suas conseqüências. O que interessa, ao objeto deste trabalho, é

8 4 Código Civil português. Art. 1.340. Obras, sêmenteiras ou plantações feitas de boa-fé em terreno alheio - 1. Se alguém, de boa-fé, construir em obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor das obras, sementeiras ou plantações. 2. Se o valor for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação, pela forma estabelecida no n. 2 do art. 1.333. 3. Se o valor acrescentado for menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do terreno, com obrigação de indenizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação.

8 5 STJ, 7/11/1969: BMJ, 191° - p.272; idem, STJ, 7/11/1967: BMJ, 191° - p.262. 8 6 "Aquele que pretende fazer valer a acessão industrial imobiliária cumpre alegar e pro­

var os factos suscetíveis de integrarem a sua boa-fé" (RC, 14/7/1978: BMJ, 280° - p.393).

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perquirir se as construções aptas a utilizar o benefício do art. 1.255 do novo Có­digo Civil geram direito de retenção. Parece-nos que tal utilização é totalmente possível porque as construções são acessões, e nos filiamos à parte da doutrina que concede o referido direito, sendo, então, incoerente entender de outra maneira.

6. SÍNTESE CONCLUSIVA

Os embargos de retenção são instrumentos do direito processual e estão in-trinsecamente ligados ao direito material, isto significa dizer: o direito de reten­ção é condição sitie qua non para serem admitidos os embargos de retenção. Estes, por sua vez, consistem no poder, concedido por lei ao credor, de reter bem de pro­priedade do devedor até o seu efetivo pagamento. Tal direito é oriundo da norma legal, não sendo necessária convenção entre as partes. O instrumento limita-se a ser aplicado quando da execução das sentenças que possuem execução específica à entrega de coisa certa, no entanto, o direito material envolvido, ou seja, o direito de retenção, pode ser defendido via ação própria, ressalvando-se que tal ação deve ter cognição ordinária capaz de provar a existência e os valores das benfeitorias.

A retenção tem como marca fundamental o fato de convolar-se em novo título, pois o credor já tem a detenção da coisa por qualquer título e passa depois a retê-la, sob outros contornos legais, a título de garantia. Dessa forma, há for­mação de u m novo título.

Tem-se como requisitos à oposição dos embargos de retenção: a posse da coisa, a existência de u m crédito do retentor e a relação de causalidade entre o crédito e a coisa retida. A matéria é regulada nos arts. 1.217 a 1.222 do novo Código Civil, cujos dispositivos são praticamente transcrições de seus anteces­sores arts. 516 a 519 do CC/1916. Não houve, salvo o art. 1.222, qualquer alte­ração.

O art. 1.222 do novo Código Civil trouxe modificação, concedendo agora ao possuidor de boa-fé o direito a ser indenizado pelo valor atual das benfeitorias e não mais a critério do proprietário.

Foi prevista, pelo Código Civil, uma nova forma de aquisição da proprieda­de pela construção promovida pelo possuidor de boa-fé, tendo ele direito de indenizar o proprietário pelo valor do seu imóvel e, com isso, adquirir a proprie­dade. Em nosso sentir, tal possuidor tem o direito de opor embargos de retenção para garantir o seu direito.

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DA (l)LEGITIMIDADE PASSIVA DO DETENTOR PARA A DEMANDA

RE IVIN DI CATO RIA ALEXANDRE FREITAS CÂMARA*

Sumário 1. Introdução. 2. Dos conceitos substanciais necessá­rios para a análise do tema: propriedade, posse e de­tenção. 3. Da legitimidade ad causam (especialmente a legitimidade passiva). 4. A demanda reivindicatória (especialmente quanto à legitimidade das partes). 5. A legitimidade passiva para a demanda reivindicató­ria e o detentor. 6. Das conseqüências processuais da adoção da tese contrária àquela aqui sustentada (ou "da aplicação do princípio da eventualidade em um tra­balho doutrinário"). 7. Conclusão.

Um ponto que me chamou a atenção desde a primeira leitura, apressada ain­da, do Código Civil de 2002 foi o fato de que a parte final do art. 1.228 atribuía legitimidade passiva ad causam ao detentor para a demanda de reivindicação (tradicionalmente chamada de ação reivindicatória). Essa legitimidade, que o Código Civil de 1916 não atribuía, pareceu-me, desde o primeiro momento, ina-

* Advogado. Professor de Direito Processual Civil da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), da Escola Superior de Advocacia Pública da Procurado­ria Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP) e dos cursos de Pós-graduação das Uni­versidades Estácio de Sá, Cândido Mendes e Católica de Petrópolis, e das Faculdades de Direito de Vitória/ES e de Campos/RJ. Presidente da Comissão Permanente de Di­reito Processual Civil do Instituto dos Advogados Brasileiros.

1 . INTRODUÇÃO

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384 ALEXANDRE FREITAS CÂMARA

ceitável. Convencido disto, apresento, aqui, considerações sobre o ponto, o qual tratei - perfunctoriamente - alhures, 1 buscando apresentar os motivos pelos quais considero (e fujo, aqui, ao sistema tradicional, apresentando, ainda na introdu­ção, a conclusão) inconstitucional a expressão "ou detenha", contida na parte final do já citado art. 1.228 do Código Civil de 2002.

Para chegar à conclusão previamente anunciada, será preciso falar antes de direito material e de direito processual. Por isso é que se tratará aqui dos conceitos de propriedade, de posse e de detenção, bem como do conceito de legitimidade (especialmente da legitimidade passiva), para que se possa depois demonstrar por­que a atribuição de legitimidade passiva ao detentor na demanda reivindicatória viola o princípio constitucional do devido processo legal (e viola duplamente, pois o faz tanto quando visto sob a perspectiva do demandante quanto pelo ângu­lo de observação do possuidor).

Além disso, tratar-se-á aqui das conseqüências processuais da admissão da tese oposta à que sustento. Dito de outro modo, buscar-se-á estabelecer quais as conseqüências da atribuição de admissibüidade passiva ao detentor para a de­manda reivindicatória, se considerarmos que tal não afronta a Constituição da República. Este item do estudo, porém, será apresentado em razão do princípio da eventualidade, já que os argumentos apresentados em defesa da tese da in-constitucionalidade podem não convencer a algum leitor (e seria muita ousadia considerar que todos se convenceriam da mesma tese e que sobre o ponto não haveria qualquer divergência).

Passemos, pois, a tratar do tema.

2. DOS CONCEITOS SUBSTANCIAIS NECESSÁRIOS PARA A ANÁLISE DO TEMA: PROPRIEDADE, POSSE E DETENÇÃO

O exame de temas processuais exige, muitas vezes, a análise de temas de direi­to substancial. O direito processual é, como notório, uma ciência instrumental, já que o processo é mero meio de realização da vontade do direito material. Entre os pontos do direito processual que não podem ser estudados, senão à luz do direito substancial, estão as "condições da ação". Assim sendo, este estudo começará pelo direito material, buscando-se, sem a intenção de esgotar o tema, apresentar os con­ceitos de propriedade de posse e de detenção (ou, até mais especificamente, de pro-

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 9.ed. Rio de Janeiro, Lu-men Júris, 2003, v.I, p.194-6.

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DA (l)LEGITIMIDADE PASSIVA DO DETENTOR PARA A DEMANDA REIVINDICATÓRIA 385

prietário, de possuidor e de detentor) para que se possa conhecer os sujeitos que poderão ser chamados a participar de uma demanda reivindicatória.

2.1 Da propriedade e do proprietário

A propriedade é, por excelência, o mais amplo direito que alguém pode exer­cer sobre alguma coisa. Ainda que não seja absoluta, ela é a mais ampla posição ju­rídica de vantagem capaz de permitir a alguém exercer poder sobre uma coisa, já que todas as outras posições jurídicas análogas são mais restritas, apresentan­do-se como direitos reais sobre coisa alheia, os quais pressupõem a propriedade. 2

Não há, porém, no direito romano, uma definição de propriedade. O conceito co­nhecido - e que sobreviveu, com algumas alterações, até o presente - é o medie­val (ius utendi fruendi et abutendi).3

A doutrina moderna tem revelado alguma dificuldade para definir a pro­priedade. Diz-se, por exemplo, que esta é "o direito em virtude do qual uma coisa se encontra submetida de maneira absoluta e exclusiva à ação e à vontade de uma pessoa".4 Outros preferem defini-la como "o direito de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha". 5 Todos são unânimes, porém, em reconhecer a dificuldade de se estabelecer uma definição precisa para esse conceito. 6

Sem querer aqui superar as definições apresentadas pelos especialistas na ma­téria, parece-me que se pode, pragmaticamente, definir a propriedade como o direito subjetivo que permite ao seu titular usar, fruir e dispor de um bem, assim como reivindicá-lo de quem injustamente o possua, dando-lhe função social. 7

2 BONFANTE, Pietro. Istituzioni di diritto romano. Milão, Vallardi, s.d., p.216. 3 CORRÊA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. 6.ed. São

Paulo, RT, 1988, p.124. 4 PLANIOL, Mareei; RIPERT, Georges. Derecho civil - Parte A. Trad. esp. Leonel Perez-

nieto Castro do original francês Traité Élémentaire de Droit Civil. México, Harla, 1998, p.402.

5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 8.ed. Rio de Janeiro, Foren­se, 1990, v.IV, p.72.

6 Sobre essa dificuldade são expressos RUGGIERO, Roberto de; MAROI, Fulvio. Istitu­zioni di diritto privato. 8.ed. Milão, G. Principato, 1950, v.I, p.521.

7 Não me parece adequado, diante do comando constitucional insculpido no art. 5 o , XXIII, da Lei Maior, definir a propriedade sem incluir entre seus elementos a sua fun­ção social. No meu sentir, aquele que tem a coisa mas não lhe dá função social não po­de ser considerado legitimamente um proprietário, já que a exerce em descompasso com a Constituição.

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386 ALEXANDRE FREITAS CÂMARA

Sendo assim, o proprietário é aquele que, buscando a função social do bem, o usa, extrai frutos e pode dele dispor, e, no caso de não estar com a posse do bem, pode reivindicá-la de quem a tenha injustamente (já que, no caso de ser a posse do terceiro justa, o proprietário deverá respeitá-la, como se dá no caso de ter sido a coisa alugada ou emprestada).

Tem, pois, o proprietário da coisa quatro poderes que, reunidos, formam a propriedade plena (já que é possível atribuir-se a outrem alguns desses pode­res, criando-se direitos reais limitados sobre a coisa alheia, e limitando-se, tam­bém, o direito do proprietário): usar, fruir, dispor e reivindicar. 8 É do exercício deste úl t imo por meio de demanda judicial que se tratará, precipuamente, neste ensaio.

2.2 Da posse e do possuidor

Tão difícil quanto definir a propriedade é definir a posse. Sendo certo que o direito brasileiro segue, a respeito da posse, a teoria desenvolvida por R. von Jhe-ring. Assim, vale começar pela definição apresentada por este notável jurista alemão do século XIX: "a posse é a exterioridade, a visibilidade da propriedade". 9

Trata-se, porém, de conceito simplificado, razão pela qual não pode ser aceito como suficiente para explicar o difícil tema da posse.

Houve quem definisse posse como:

Conjunto dos atos, não defesos em lei (posse justa), exercidos sobre a coisa pelo su­jeito, ou por terceiro em seu nome (fâmulos da posse), tal como se dela fosse o pro­prietário, ou titular de algum respectivo direito real (quasi-posse)?0

Mais modernamente, já se definiu a posse como "o fato que consiste no exer­cício, total ou parcial, com autonomia, de algum dos poderes inerentes ao domí-

8 Em debate realizado em meu escritório de advocacia, ouvi de meu sócio, o ilustre ad­vogado e professor de direito civil Luís Fernando Marin, observação interessantís­sima, que não posso deixar de registrar aqui: no caso da propriedade condominial, segundo Marin, haveria uma quinta faculdade inerente ao domínio: participar das deliberações das assembléias condominiais, o que não se enquadraria nos conceitos das quatro faculdades referidas no texto. Manifesto, aqui, desde já, minha adesão a essa idéia.

9 JHERING, Rudolf von. Teoria simplificada da posse. Trad. bras. Pinto de Aguiar. Sal­vador, Progresso, 1957, p.42.

1 0 FRANÇA, Rubens Limongi. A posse no Código Civil. São Paulo, José Bushatsky, 1964, p.13.

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n io o u propr iedade" . 1 1 N ã o se pode pensar, p o r é m , que po r ser a posse u m fato, não seja ela t a m b é m u m di re i to . 1 2

H á dois aspectos dist intos a se considerar : e m p r ime i ro lugar, existe a posse c o m o fato, o u seja, é preciso reconhecer a posse c o m o o fato de a lguém ter c o n ­sigo u m a coisa, exercendo e m relação a ela, n o todo o u e m par te , a l g u m dos p o ­deres inerentes à propr iedade . E m segundo lugar, há de se cons iderar a posse c o m o direito, isto é, a posse c o m o interesse j u r i d i camen te protegido. Todo d i r e i ­to, é preciso registrar, decorre de a l g u m fato const i tut ivo ( que pode ser u m fato s imples o u u m con jun to de fatos) .

N a ma ior i a dos casos, p o r é m , o fato const i tut ivo do direi to ocorre e se exau ­re, pe rmanecendo o direito, que sobrevive ao fato. É o que se dá, por exemplo, c o m o direito de crédito, que nasce de u m contrato de m ú t u o . O contrato é cele­b rado e o direito de crédito que dele decorre cont inua a existir m e s m o depois de já se ter consumado o fato que lhe deu o r igem. N o caso da posse, p o r é m , as c o i ­sas se passam de m o d o diferente. O fato const i tut ivo do direi to existe enquanto o direito existir (e vice-versa). Isto porque o fato da posse é u m fato que t em duração pro longada, podendo durar mu i t o tempo. E durante todo o t empo e m que o fato subsista existirá o interesse ju r id i camente protegido da posse ( o u seja, enquanto existir a posse c o m o fato, existirá t a m b é m a posse c o m o dire i to) .

O que interessa ao presente estudo é a posse c o m o direito, isto é, a posse c o ­m o interesse ju r id i camente protegido. N ã o se pode , p o r é m , n o caso da posse, falar do direito sem falar t a m b é m do fato, já que os dois p lanos estão indissolu-ve lmente l igados.

Tem-se, pois, que posse é o exercício, p leno o u não, de a lgum dos poderes i ne ­rentes ao domín io . É possuidor, assim, todo aquele que usa, goza o u dispõe de u m b e m , pouco i m p o r t a n d o se tal b e m lhe pertence o u não . A s s i m , tanto t em posse o propr ie tár io c o m o o locatár io. Tanto tem posse o usuf ru tuár io c o m o o esbu-lhador ( s im , porque este t a m b é m tem posse, a inda que injusta, e a exerce, me re ­cendo proteção jur íd ica perante todos, ressalvado apenas aquele de q u e m a posse fo i in justamente ret i rada) .

1 1 AQUINO, Álvaro Antônio Sagulo Borges de. A posse e seus efeitos. São Paulo, Atlas, 2000, p.39.

1 2 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado. 2.ed. Rio de Janeiro, Lu-men Júris, 2003, v.V, p.2.

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2.3 Da detenção e do detentor

J á a detenção distingue-se da posse. Esta é, c o m o se extrai de val iosa d o u t r i ­na , u m a posse degradada.13 Sobre a detenção é, c o m o sempre, l í m p i d o o ens ina­m e n t o de O r l a n d o G o m e s :

Embora se conceda a posse àqueles que, por força de obrigação do direito, detêm temporariamente a coisa, alguns há que se encontram nessa situação e, sem embar­go disso, não são considerados possuidores. Tais os que estão em situação de depen­dência para com outrem. Entende-se que, nesses casos, os que detêm a coisa con­servam a posse em nome dos que a entregaram. São, portanto, detentores, razão por que lhes não assiste o direito de invocar a proteção possessória. Contudo, a existên­cia do vínculo jurídico em razão do qual a coisa fica sob o poder temporário e even­tual das pessoas dependentes, assegura-lhes certas prerrogativas que são próprias dos possuidores. A elas se reconhece, por exemplo, o direito ao desforço incontinen-

ti, na hipótese de turbação da posse, o qual, embora em caráter de exceção, é um meio de defesa da posse. Isso importa admitir que a posse possa ser defendida por aquele que não é possuidor, o que constitui, sem dúvida, uma anomalia. Se não fora o receio da confusão de conceitos, poder-se-ia dizer que essas pessoas têm meia-posse.™

Vê-se, da l ição do saudoso mestre ba iano , que a detenção é m e s m o u m a posse degradada ( o u , c o m o disse ele, u m a "me ia-posse" ) . O detentor, c o m o se v i u , t e m a coisa consigo e m razão de u m a relação de dependênc ia que m a n t é m c o m o u t r e m . É o caso, p o r exemplo , do caseiro, que f ica c o m a posse da casa e m n o m e de seu pa t rão , o p ropr i e tá r io do imóve l . A s s i m sendo, o detentor não t e m dire i to à tute la j u r i sd i c iona l possessória ( a f ina l , n ão é ele o t i tu lar do d i r e i ­to à posse e, não tendo o dire i to substancia l , n ão pode fazer jus à tutela j u r i s ­d i c i ona l re lat iva a ta l d i re i to ) . T e m , p o r é m , o pode r de pra t i ca r - e m caráter excepc iona l — certos atos de proteção possessória (os atos de desforço i m e d i a ­t o ) , p ro tegendo, ass im, a posse daquele c o m q u e m o detentor m a n t é m a relação de dependênc ia .

F i ca c laro, ass im, que o detentor não t e m a coisa consigo e m n o m e p róp r io , m a s e m n o m e alheio.

1 3 A L V E S , José Carlos Moreira. Posse. 2.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1997, v . I I , t . I , p.64. 1 4 G O M E S , Orlando. Direitos reais. 9.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1985, p.33.

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3. DA LEGITIMIDADE AD CAUSAM (ESPECIALMENTE A LEGITIMIDADE PASSIVA)

C o m o é sabido, para que u m processo jur i sd ic iona l at inja seu f i m n o r m a l é

preciso que estejam presentes certos requisitos (que p o d e m ser reunidos, e m u m a af i rmação s impl i f icada, mas suficiente para os propósi tos deste t rabalho, e m dois grupos: pressupostos processuais e "condições da a ção " ) . 1 5 E entre as "condições da a ção " encontra-se a leg i t imidade das partes.

A leg i t imidade das partes é conceito dos mais complexos de toda a ciência processual. Para demonst ra r o acerto dessa a f i rmação basta ler o subtítulo do l i ­v r o de u m notáve l processualista espanhol que se ded i cou ao tema . 1 6

É de nobre l i nhagem dout r inár ia a def inição da leg i t imidade das partes c o ­m o a titularidade (ativa epassiva) da ação." C o m o já se a f i rmou e m obra que cons ­t i tui u m verdadeiro marco da l i teratura jur íd ica brasileira, " a legi t imidade é a pe r ­t inência subjetiva da ação" . 1 8 Me re ce ser citada, a inda, a def in ição de leg i t imidade cont ida naquela que é, sem sombra de dúv idas , a mais impor t an te obra escrita especif icamente sobre o tema na dout r ina brasi leira:

a legitimidade para agir é de ser conceituada como uma qualidade jurídica que se agrega à parte no processo, emergente de uma situação processual legitimante e ensejadora do exercício regular do direito de ação, se presentes as demais condições

1 5 Continuo a escrever "condições da ação" assim, entre aspas, como faço desde o primei­ro trabalho que publiquei [Condições da ação? In: TUBENCHLAK, James; BUSTA-MANTE, Ricardo Silva de (coord.). Livro de estudos jurídicos. Rio de laneiro, IEJ, 1993, v.7, p.57-62, também publicado em CÂMARA, Alexandre Freitas. Escritos de direito processual. Rio de Janeiro, Lumen Júris, 2001, p.63-8, por continuar convencido de que este não é o nome mais adequado para o fenômeno. Continuo a insistir na denomi­nação que desde 1993 venho propondo: requisitos do provimento final. Uso, porém, para facilitar a compreensão dos que me dão a honra de ler este trabalho, o nome tra­dicionalmente empregado, mas o ponho entre aspas, para demonstrar que não é este, a meu ver, o melhor modo de nomear esses requisitos.

1 6 Refiro-me à obra de AROCA, Juan Montero. La legitimación en el proceso civil (inten­to de aclarar un concepto que resulta más confuso cuanto más se escribe sobre el). Madri, Civitas, 1994.

1 7 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manuale di diritto processuale civile. 5.ed. Milão, Giuffrè, 1992, v.I, p. 147.

1 8 BUZAID, Alfredo. Do agravo de petição no sistema do Código de Processo Civil. 2.ed. São Paulo, Saraiva, 1986, p.89.

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da ação e pressupostos processuais, com o pronunciamento judicial sobre o mérito do processo.19

A legitimidade das partes pode ser definida como a aptidão para ocupar, em u m certo caso concreto, a posição de demandante ou de demandado. É exatamen­te isto o que se pretende dizer com "pertinência subjetiva da ação" ou com "titu­laridade (ativa e passiva) da ação".

Toda pessoa (natural, jurídica ou formal) tem uma genérica aptidão para ser demandante ou demandado no processo civil. A esta aptidão genérica dá-se o no­me de capacidade (mais especificamente tem-se aqui a capacidade de ser parte, um dos três aspectos da capacidade processual). O fato de se ter capacidade para ser demandante ou demandado não significa, porém, que se possa ser sujeito (ativo ou passivo) de qualquer demanda. Em cada caso concreto é preciso verificar se essas posições processuais estão sendo ocupadas por pessoas que possuam aptidão pa­ra ocupá-las. Não se trata mais, pois, de uma aptidão abstrata, mas concreta, à qual se dá o nome de legitimidade. Conceito que não pertence com exclusividade à seara do direito processual, mas à teoria geral do direito. A legitimidade — e sua distinção em relação à capacidade - foi superiormente explicada por Humberto de Mendonça Manes, para quem "enquanto a capacidade depende de um modo de ser do sujeito em si, a legitimação resulta de u m m o d o de ser para com os ou­tros, exprimindo uma posição". 2 0 Merece referência, também, o ensinamento do mestre Emilio Betti, que lecionava:

Se ha notado ya que la legitimaáón, a diferencia de la capacidad, depende de una par­ticular relación dei sujeto con el objeto dei negocio. Aqui conviene dar una definición más precisa de ella. La legitimación de la parte puede definirse como su competência para alcanzar o soportar los efectos jurídicos de la reglamentación de intereses a que se ha aspirado, la cual resulta de una específica posición dei sujeto respecto a los inte­reses que se trata de regular. Problema de legitimación es el de considerar quién, y frente a quién, puede correctamente concluir el negocio para que este pueda desplegar los efectos jurídicos conforme a sufunción y congruentes con la intención práctica nor­mal de las partes. 2^

1 9 ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo, RT, 1979, p.85.

2 0 MANES, Humberto de Mendonça. A legitimação negociai. Rio de Janeiro, Liber Júris, 1982, p.56.

2 1 BETTI, Emilio. Teoria general dei negocio jurídico. Trad. esp., Granada, Comares, 2000, p.203.

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Reproduzo, aqui, em linhas gerais, as idéias a respeito da legitimidade ordinária que manifestei em Lições de direito processual civil, p.123-4.

O conceito de legit imidade é r igorosamente o mesmo para o direito substan­cial e para o direito processual. O problema da legit imidade (do ponto de vista p r o ­cessual), c o m o se v i u n a l ição de Be t t i , consiste em saber quem, e e m face de quem,

pode-se corretamente resolver o meritum causce. Ord ina r i amen te , a leg i t imidade é a t r ibu ída aos sujeitos da res in iudicium

deducta. D i t o de out ro m o d o : sempre que u m a demanda é ajuizada, o d e m a n ­dante descreve u m a relação ju r íd i ca de direi to mater ia l (a res in iudicium deduc­

ta). Basta pensar, para que se visual ize o que aqu i se pretende dizer, n o ajuiza-m e n t o de u m a demanda de despejo: o demandan te , na pet ição in ic ia l , descreve u m a relação locat íc ia, d izendo qua l o imóve l a lugado, se a locação fo i res iden­c ia l o u empresar ia l , se o contra to fo i ce lebrado po r escrito o u verba lmente etc. A o se descrever u m a relação jur íd ica , inev i tave lmente será preciso apontar os s u ­jeitos de ta l relação (a f ina l , c o m o é no tó r io , toda relação ju r íd i ca é u m a relação intersubjet iva) . Po is b e m , os sujeitos da relação jur íd ica descrita pelo d e m a n ­dante t êm leg i t imidade ord inár ia , p o d e n d o f igurar c o m o demandantes o u demandados .

A s s i m sendo, e para mante r o exemplo anter io rmente f igurado, e m u m a d e ­m a n d a de despejo terão legi t imidade, de u m lado, aquele que a f i rma ser o loca-dor e, de outro , aquele que é apontado c o m o sendo o locatár io . 2 2

H á , n o entanto, u m a legit imidade excepcional, chamada legitimidade extraor­dinária. Trata-se da legi t imidade atr ibuída por lei a q u e m não é sujeito da res in

iudicium deducta. E m outros te rmos , há casos e m que a lei (e só a lei — art. 6 o do Cód igo de Processo C i v i l ) pe rmi te que a lguém ajuíze u m a demanda na qual se descreve u m a relação jur íd ica de que u m a das partes na demanda não é sujeito da relação jur íd ica ali descrita. Nesse caso, pois, a legit imidade não decorre da c o n ­dição de sujeito da relação jur ídica descrita na petição in ic ia l , mas da lei. Exemplo de legi t imidade extraordinár ia é a que se a t r ibu i ao M in i s t é r i o Púb l i co para d e ­m a n d a r investigação de patern idade, b e m assim a legi t imidade para demanda r m a n d a d o de segurança coletivo.

N ã o basta, p o r é m , reconhecer a existência da legi t imidade extraordinár ia. É preciso buscar determinar as razões que l e vam à sua previsão. Sobre a questão, manifesta-se e m obra de exposição sistemática do direito processual c iv i l o pre-claro C â n d i d o D i n a m a r c o :

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Diz-se extraordinária essa legitimidade, em oposição à legitimidade ordinária, porque ela é outorgada em caráter excepcional e não comporta ampliações. Compete ao le­gislador e não ao juiz a determinação dos casos em que se concede essa legitimida­de (CPC, art. 6o) e ele o faz sempre em virtude de alguma espécie de relação entre o sujeito e o conflito. Sempre, o substituto processual é o destinatário de algum bene­fício indireto associado à iniciativa que tomar - porque, sem esse benefício e por­tanto sem poder esperar qualquer utilidade do provimento que pede, não haveria por que instituir sua legitimidade ad causam. É expressivo, a esse propósito, o em­prego do vocábulo interessado pelo Código Civil e pelo de Processo Civil, com a inten­ção de outorgar legitimidade a certos sujeitos que não são titulares da própria relação jurídica controvertida.23

Vale observar que tudo o que se disse até aqui é aplicável não só à legitimi­dade ativa, mas também à passiva. A legitimidade passiva ordinária pertence àque­le que o demandante aponta, na petição inicial, como sendo um dos sujeitos da relação jurídica de direito material. Já a legitimidade passiva extraordinária é atri­buída, por lei, a alguém que poderá, em nome próprio, figurar no pólo passivo da demanda, defendendo interesse que não lhe pertence.

Pensar em exemplos de legitimidade passiva ordinária não é difícil. Imagi­nem-se as hipóteses do indigitado pai, legitimado passivo ordinário na demanda de investigação de paternidade, ou daquele que é apontado como sendo o deve­dor de determinada obrigação, que tem legitimidade passiva ordinária para a de­manda em que se exige o cumprimento da mesma. Não é fácil encontrar, porém, em sede doutrinária, exemplos de legitimidade passiva extraordinária. Bom exem­plo, contudo, é dado por Ephraim de Campos Jr., que em obra monográfica so­bre o tema leciona:

Igualmente no caso de solidariedade passiva, pois como o credor tem direito a exi­gir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum, o devedor que agir em defesa do direito comum estará substituindo os demais.2 4

É preciso observar, porém, que no caso de ser a demanda aquela por intermé­dio da qual se pretende cobrar total ou parcialmente a dívida comum de apenas um ou de alguns dos co-devedores solidários, aquele que estiver em juízo estará, simul-

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. São Paulo, Malheiros, 2001, v.II, p.309. CAMPOS JÚNIOR, Ephraim de. Substituição processual. São Paulo, RT, 1985, p.47.

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taneamente, exercendo duas distintas legitimidades: ordinária (quanto à defesa de sua parcela do interesse) e extraordinária (quanto à defesa dos interesses dos seus co-devedores).

4. A DEMANDA REIVINDICATÓRIA (ESPECIALMENTE QUANTO À LEGITIMIDADE DAS PARTES)

É conhecida a definição da demanda reivindicatória (que na praxe forense é conhecida como "ação reivindicatória", nome cientificamente inadequado, uma vez que a prática consistente em nomear a ação, decorrente de uma concepção imanentista, hoje absolutamente inaceitável) como aquela que o proprietário não-possuidor ajuíza em face do possuidor não-proprietário. Dela tratou Silvio Ro­drigues, dizendo que:

A ação de reivindicação, ação real que é, tem como pressuposto o domínio. É confe­rida ao dono da coisa para recuperar ou obter a coisa de que foi privado, ou que lhe não foi entregue. Constitui o instrumento adequado pelo qual o proprietário exerce seu direito de seqüela.25

A demanda reivindicatória trata-se, no rigor dos conceitos do direito pro­cessual, de uma demanda de natureza condenatório-executiva (já que, por força do estatuto da tutela específica — arts. 461 e 461-A do CPC - cognição e execução são atividades que se desenvolverão no mesmo processo, dispensando-se, assim, a instauração de processo executivo autônomo). Mediante essa demanda, aque­le que deduz em juízo sua condição de proprietário de u m bem que esteja, segun­do as alegações do próprio demandante, na posse injusta do demandado pede que este seja condenado a entregar-lhe a coisa e, no caso de não haver cumprimento voluntário da decisão no prazo fixado pelo juízo, pede sua efetivação (por meio da expedição de mandado de busca e apreensão ou de imissão na posse, confor­me se tratar de coisa móvel ou imóvel).

Uma vez ajuizada a demanda, seguirá ela o procedimento comum, ordiná­rio ou sumário, conforme o valor atribuído pelo demandante à causa. Julgado procedente o pedido formulado pelo demandante, ter-se-á uma sentença con-denatória que, a partir do momento em que passar a produzir efeitos, tornará possível a instauração de execução sine intervallo, a ser iniciada de ofício, inti-mando-se o demandado a entregar a coisa ao demandante no prazo assinado na

RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 13.ed. São Paulo, Saraiva, 1984, v.V, p.77..

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sentença, sob pena de mu l t a d iár ia pelo atraso. N ã o sendo entregue a coisa no prazo, de te rminará o ju ízo a expedição de m a n d a d o de busca e apreensão o u de imissão na posse, con fo rme a coisa v ind icada seja móve l o u imóve l .

Estabelecidas essas idéias, pode-se passar ao exame da leg i t imidade ad cau­sam para a demanda re iv indicatór ia .

Inicia-se o exame do pon to pela leg i t imidade ativa. E m dout r ina especial i ­zada, encontra-se a a f i rmação de que sendo

ação real, a reivindicatória só pode ser exercida por quem seja senhor da coisa, isto é, o titular do domínio. Indispensável, também, a outorga uxória, para o ajuizamen-to da ação visando a restituição de imóvel, nos termos do art. 10 do Código de Pro­cesso Civil. 2 6

É preciso observar, po r ém , e c o m todas as vênias aos eminentes monografistas H a e n d c h e n e Letteriello, que a legit imidade ativa para a demanda reivindicatória não é exatamente do proprietár io, mas daquele que alega ser o titular da proprieda­de. Isto porque , como se v i u e m passagem anterior deste estudo, a legit imidade a t i ­v a é daquele que afirma ser o t i tular do direito para o qua l se busca proteção. E m outros termos, para que se tenha legitimidade ativa ad causam não é preciso que o demandante seja o titular do direito, bastando-se afirmar ter tal posição.

Sendo assim, verif icado o juízo de que o demandante, embora tenha af i rmado ser o propr ietár io do b e m v ind icado, não produz iu prova de tal condição (desde que seja ev idente que tenha o demandado impugnado a alegação do d e m a n d a n ­te, pois alegações incontroversas não const i tuem objeto da at iv idade probatór ia ) , deverá ser ju lgado improcedente o ped ido fo rmulado .

Superada a questão da leg i t imidade ativa para a demanda de re iv indicação, deve-se passar ao exame da leg i t imidade passiva, objeto p r inc ipa l deste estudo.

A o tempo do Cód igo C i v i l de 1916, era expresso o art. 524 ao afirmar que a demanda de re iv indicação poder ia ser ajuizada e m face de q u e m quer que in jus ­tamente possuísse a coisa demandada. A rigor, p o r é m , a legi t imidade passiva era, àquele t empo, atr ibuída a q u e m o demandante apontasse, na petição in ic ia l , c o m o sendo o injusto possuidor da coisa. Bastava, insista-se, que o demandante ind icas ­se o demandado c o m o sendo o injusto possuidor do b e m para que ele fosse parte legít ima ad causam. Verificando-se, ao longo do processo, que o demandado não era possuidor injusto (porque, por exemplo, sua posse era justa, o u porque sequer tivesse posse) e que out ra saída não havia senão a improcedênc ia do pedido.

2 6 HAENDCHEN, Paulo Tadeu; LETTERIELLO, Rêmolo. Ação reivindicatória. 5.ed. São Paulo, Saraiva, 1997, p.24.

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DA (^LEGITIMIDADE PASSIVA DO DETENTOR PARA A DEMANDA REIVINDICATÓRIA 395

5. A LEGITIMIDADE PASSIVA PARA A DEMANDA REIVINDICATÓRIA E 0 DETENTOR

Alguns doutr inadores , escrevendo a inda sob a égide do Cód igo C i v i l de 1916, a d m i t i a m que a demanda de re iv indicação fosse proposta e m face de meros d e ­tentores. C o s t u m a v a m , p o r é m , ser contradi tór ios e m suas af i rmações a respeito do ponto , fazendo crer, por certas passagens de suas obras, que apenas os possu i ­dores pode r i am f igurar no pó lo passivo da demanda .

Ass im fazia, por exemplo, Ca io M á r i o da Si lva Pereira, que ensinava:

De nada valeria ao dominus, em verdade, ser sujeito da relação jurídica dominial e reu­nir na sua titularidade o ius utendi, fruendi abutendi, se não lhe fosse dado reavê-la de alguém que a possuísse injustamente, ou a detivesse sem título. Pela vindicatio o proprietário vai buscara coisa nas mãos alheias, vai retomá-la do possuidor, vai recu­

perá-la do detentor, (g.n.)

E, logo em seguida, sem qualquer separação entre as frases que c o m p õ e m o parágrafo transcr i to, a f i rma o mestre : " N ã o de qualquer possuidor o u detentor, po r ém , daquele que a conserva sem causa jur ídica, o u a possui injustamente".27 O ra , sendo certo, c o m o já se v i u , que posse e detenção não se c o n f u n d e m , c o m o se poder ia dizer que a demanda pode ser ajuizada e m face de u m "detentor que pos ­sui"? Trata-se, c o m o fac i lmente se nota , de u m paradoxo.

O u t r o autor que se contradiz ia era O r l a n d o G o m e s , para q u e m

a ação reivindicatória dirige-se contra o detentor da coisa, ou seu possuidor, de boa

ou má-fé. Numa palavra, contra quem quer que injustamente a possua. Será esse o

réu da ação.

E prosseguia o saudoso jur ista ba iano :

A legitimação passiva configura-se desde que o proprietário reivindicante proponha a ação, conforme o caso, contra uma das seguintes pessoas: a) o mero detentor da coisa; b) o possuidor de má-fé; c) o possuidor de boa-fé; d) o compossuidor; e) o possuidor indireto; f) o possuidor direto.

E, imed ia tamente a seguir, a f i rmava G o m e s : "Necessár io que seja possuidor atual".28 E mais u m a vez aparece a causa da perplexidade: c o m o ser possuidor atual quando se é mero detentor? M a i s u m a vez, u m paradoxo!

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p.75. GOMES, Orlando. Op. cit., p.254.

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396 ALEXANDRE FREITAS CÂMARA

2 9 HAENDCHEN, Paulo Tadeu; LETTERIELLO, Rêmolo. Op. cit., p.31. 3 0 Ibidem, p.32. 3! Idem.

H o u v e q u e m tentasse a t r ibu i r leg i t imidade ao indig i tado detentor, superan ­do esse paradoxo. F o i o que f izeram H a e n d c h e n e Letteriel lo, ao a f i rmar que:

Em princípio, a ação reivindicatória deve ser dirigida contra aquele que está na posse ou detém a coisa vindicanda, pouco importando se de boa ou má-fé. É claro que as conseqüências são diferentes se o possuidor ou detentor tiver boa ou má-fé, como veremos, mas, em princípio, a ação se dirige contra eles. Evidente que, em se tratan­do de posse indireta, pressupondo a existência de posse direta, como no caso da lo­cação, cumpre ao locatário, uma vez acionado, levar a demanda ao conhecimento do possuidor indireto, no exemplo, o locador. Não importa, pois, que possua ou dete­nha por conta própria ou por conta de outrem. Como diz Carvalho Santos, com a cla­reza que o caracteriza, não seria justo exigir do proprietário, para exercitar o seu di­reito, que fosse pesquisar por qual título o objeto encontra-se nas mãos do detentor ou do possuidor.29

Passam, então, os monograf istas citados, a tratar de casos e m que se poder ia , segundo eles, demanda r a re iv indicação e m face de q u e m não t e m a posse. E

d izem eles:

admite-se, também, a reivindicatória contra o que, sem ter posse, responde à ação co­mo se realmente possuísse a coisa, ou seja, o que, sem ter posse da coisa, intitula-se possuidor na contestação, respondendo à ação como se realmente fosse o possuidor. Claro que o autor deve desconhecer essa circunstância porque, ao contrário, estaria ele, também, litigando de má-fé.3 0

E prosseguem os autores mato-grossenses:

Mas, indaga-se, qual a eficácia da sentença que julga procedente a ação, condenan­do o réu a devolver a coisa, se ele não a possui? É evidente que se o réu não possui não poderá devolver a coisa. Nesse caso, explica Lafayette, o possuidor ficto, não po­dendo restituir, deve ser condenado a pagar o valor da coisa. Ao comportamento do­loso do fictus possessor é que se impõe a sanção, que consiste no pagamento de uma indenização pelos prejuízos causados, que não deve ultrapassar o valor corrigido da coisa vindicanda, acrescida das despesas da causa e demais acessórios.31

É preciso, aqu i , fazer u m a análise adequada da hipótese nar rada pelos a u t o ­

res citados. Tendo sido a demanda ajuizada e m face de q u e m o demandante não

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DA (^LEGITIMIDADE PASSIVA DO DETENTOR PARA A DEMANDA REIVINDICATÓRIA 397

sabia ser me ro possuidor (e não detentor ) , este demandado certamente terá l eg i ­t imidade passiva, u m a vez que terá sido apontado na petição inic ial c o m o sendo o atual e injusto possuidor da coisa.

C o m o se sabe - e t em sido aqu i exaust ivamente repet ido - a legi t imidade passiva decorre da pu ra e s imples alegação feita pelo demandan te de que o d e ­m a n d a d o ocupa a posição jur íd ica passiva correspondente à posição ativa que o p rópr io demandante alega ocupar. Pode acontecer, pois , de se ajuizar a demanda e m face de q u e m é apontado c o m o sendo possuidor e que se revele, af inal , me ro detentor. Nesse caso, estará presente a leg i t imidade passiva ad causam. Caberá , p o r é m , ao detentor, nomear à autoria o possuidor, na f o rma do art. 62 do C ó d i ­go de Processo C i v i l , de m o d o a tornar possível a sua substituição pelo ve rdade i ­ro possuidor na relação processual.

Feita a nomeação à autoria e não a aceitando o demandante ( o u , sendo a n o ­meação aceita pelo demandante , não a aceitando o n o m e a d o ) , seguirá o processo contra o detentor, que não poderá ser condenado a entregar a coisa n e m a i n d e ­nizar o demandante , já que não lhe causou qua lquer dano. F o i o demandante , r e ­lembre-se, que escolheu demandar e m face do detentor, não podendo este ser c o n ­denado a reparar danos causados po r sua presença e m u m a relação processual de que sequer queria participar. Ent retanto , se o demandado , mero possuidor da c o i ­sa, não n o m e a r à autor ia o possuidor atual , responderá po r perdas e danos, na f o rma do art. 69 do C P C . A obr igação de indenizar, nesse caso, não v i rá de sua condição de possuidor, mas do fato de ter descumpr ido o dever de nomea r à a u ­tor ia, na fo rma da le i processual.

N o entanto, tendo a demanda sido dir igida e m face de a lguém que o d e m a n ­dante, e m sua petição in ic ia l , a f i rma ser mero detentor, tendo consigo a coisa e m n o m e de ou t r em , será o demandante carecedor de ação, por faltar na hipótese u m a das "condições da ação", a legi t imidade passiva ad causam, devendo o processo ser extinto, sem resolução do mér i to , na fo rma do art. 267, V I , do C P C .

C o m a entrada e m v igor do Cód igo C i v i l de 2002, p o r é m , surg iu u m dado novo a ser cons iderado: o texto do art. 1.228 deste d ip loma não é exatamente igual ao do art . 524 do Cód igo C i v i l de 1916. Estabelece o Cód igo C i v i l e m v igor que o propr ie tár io , a l ém de poder usar, f ru i r e d ispor da coisa que lhe pertence, poderá reivindicá-la "de q u e m quer que in justamente a possua ou detenha". Surge, então, a questão fundamenta l para este ensaio: será que agora o indigita-do possuidor passa a ter leg i t imidade passiva para a demanda de re iv indicação? E m outras palavras, será que agora o demandan te pode colocar n o pó lo passivo

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de sua demanda aquele que é apontado como sendo o detentor da coisa, tendo-a em n o m e alheio e, ainda assim, ver julgado o meritum causce7.

Há, diga-se desde logo, de u m lado, quem não tenha sequer notado a dife­rença entre o texto do Código atual e o do Código anterior. Veja-se, por exem­plo, o que afirma sobre a questão Carlos Alberto Dabus Maluf, comentando o citado dispositivo legal: "O caput do artigo em comento é praticamente idêntico ao art. 524 do Código Civil de 1916, devendo a ele ser dado o mesmo tratamen­to doutrinário". 3 2

De outro lado, há quem tenha se dado conta da diferença entre as duas reda­ções, aceitando a legitimidade passiva do detentor (e, inclusive, afirmando que o detentor demandado deverá denunciar a lide ao possuidor, na forma do art. 70, II, do CPC, que passaria a ser interpretado extensivamente). 3 3

Quando escrevi sobre o tema pela primeira vez, ao atualizar livro em que apresento uma exposição sistemática do direito processual civil brasileiro, afirmei que o Código Civil de 2002 atribuía legitimidade passiva ao indigitado detentor para a demanda de reivindicação, mas que tal atribuição seria inconstitucional. 3 4

A esta minha opinião aderiu, na segunda edição de seu livro de anotações ao Có­digo Civil de 2002, o ilustre civilista Marco Aurélio Bezerra de Melo. 3 5 Volto, pois, agora, ao ponto, reafirmando minha opinião.

Atribuir legitimidade passiva ao indigitado detentor para a demanda reivin­dicatória é duplamente inconstitucional. Viola-se, com tal atribuição, a garantia do devido processo legal. E essa violação é dupla, como dito, pois se dá tanto sob o ângulo do possuidor como sob o do proprietário.

Registre-se, porém, e antes de tudo - para clareza da exposição que a partir de agora se faz - , que a hipótese a ser aqui considerada é a de demanda reivindi­catória em face de alguém que é apontado, na petição inicial, como sendo mero detentor da coisa. Isto porque pode acontecer de o demandante ajuizar sua peti­ção inicial tendo nela afirmado que o demandado é o atual possuidor (injusto) do bem vindicando. Neste caso, o demandado é, indubitavelmente, legitimado pas-

MALUF, Carlos Alberto Dabus. In: FIÚZA, Ricardo (coord.). Novo Código Civil comen­tado. São Paulo, Saraiva, 2002, p. 1.098. ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Algumas notas sobre a distinção entre posse e detenção. In: ARRUDA ALVIM; CERQUEIRA CÉSAR, Joaquim Portes de; ROSAS, Roberto (coords.). Aspectos controvertidos do novo Código Civil - Escritos em homena­gem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo, RT, 2003, p.78. CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., v.I, p. 194-6. MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Op. cit., p.43.

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DA (l)LEGITIMIDADE PASSIVA DO DETENTOR PARA A DEMANDA REIVINDICATÓRIA 399

sivo. Tal a f i rmação decorre do fato de que as "condições da ação " devem ser afe-ridas in statu assertionis, o u seja, no estado das alegações. 3 6

E m outros termos, devem as "condições da ação " ser aferidas c o m base nas alegações feitas pe lo demandan te e m sua pet ição in ic ia l . Recebida tal pet ição p e ­lo ju ízo, deverá o magistrado estabelecer u m juízo hipotét ico de verac idade das af i rmações contidas na petição. Estabelecido este ju ízo ( o u seja, considerando o ju lgador que tudo o que o demandante af i rma e m sua pet ição in ic ia l é ve rdade i ­r o ) , deve ele perguntar-se se concederá o u não o que o demandante ple i teou. U m a vez a f i rmat iva a resposta, estarão presentes todas as "condições da ação". P o r t a n ­to, po r exemplo, se ajuízo demanda alegando ser o propr ie tár io de de te rminado b e m , a f i rmando a inda que o m e s m o está in justamente na posse do demandado , e peço que este seja condenado a entregar-me a coisa, estarão presentes todas as "condições da a ção " (a f ina l , se todas as m inhas alegações f o r em verdadeiras, será inev i tave lmente procedente m e u ped ido ) . A s s i m sendo, toda a questão que aqu i se põe , parte do pressuposto de que o demandante , e m sua pet ição in ic ia l , alega ser o demandado mero detentor da coisa, tendo-a e m n o m e de ou t rem. Neste caso, deve-se admi t i r que o demandado é parte legí t ima para a causa? E i s a questão.

E m pr ime i ro lugar, observe-se o f enômeno pelo ângulo do possuidor. I m a ­gine-se que a demanda de re iv indicação é ajuizada por u m Fu l ano e m face de u m Be l t rano , alegando o demandante e m sua in ic ia l que o demandado de tém a coisa e m n o m e de S icrano, possuidor injusto. A o se admit i r a legit imidade passiva do in-digitado possuidor, nada imped i rá que o ped ido do Fu l ano seja ju lgado p roce ­dente, condenando-se o demandado , Be l t rano , a entregar a coisa ao demandante . Surge, então, o p rob lema de saber c o m o poderá o detentor, que não t em a posse da coisa, entregá-la. Ev iden temente , não poderá fazê-lo. 3 7 Será, então, expedido o m a n d a d o de busca e apreensão o u de imissão de posse ( con fo rme se tratar de c o i ­sa móve l o u imóve l ) , o que levará o possuidor, que não pa r t i c ipou do processo, a ajuizar embargos de terceiro, postu lando tutela ju r i sd ic iona l contra o iminente risco de ser p r i vado da posse de u m b e m sem ter par t i c ipado do processo n o qual

Sobre o tema, com mais profundidade, CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., p. 129-31. Imagine-se o caseiro comunicando ao seu patrão que foi condenado a entregar a ou­trem a sua casa. Como seria o diálogo entre eles? Talvez algo como: "Patrão, o senhor, por favor, me entregue todas as chaves da sua casa, pois fui condenado a entregá-la ao legítimo proprietário!"; ao que responderia o patrão, possuidor do bem: "Como as­sim? Entregar minha casa ao proprietário? E você não me avisou nada sobre esse pro­cesso? Pois está demitido!" O detentor, coitado, não perderia só a coisa... perderia também - e principalmente - seu emprego.

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se determinou o desapossamento do mesmo. E certamente o possuidor teria êxi­to no processo dos embargos de terceiro, já que, nos termos do art. 5 o , LJV, da Constituição da República, ninguém pode ser privado de seus bens sem o devi­do processo legal.

A garantia constitucional do dueprocess oflaw impede, assim, que o possui­dor de um bem seja dele privado sem ter tido a oportunidade de participar do pro­cesso em que se decidiu pelo desapossamento do mesmo. Sendo assim, não poderá ser outro o resultado do processo dos embargos de terceiro senão a vitória do embargante, possuidor da coisa. Conseqüência disso é que de nada terá servi­do a procedência do pedido formulado na demanda reivindicatória, pois o demandante vencedor não conseguirá haver para si a coisa vindicada.

É neste ponto que se manifesta o segundo aspecto da inconstitucionalidade. A garantia do devido processo legal tem sido vista pela doutrina mais moderna como a garantia de u m processo justo, ou seja, a garantia de u m processo capaz de produzir resultados justos. Como se afirma em notável obra sobre o tema:

de esta forma, nosotros entendemos que la garantia constitucional dei debido proceso

es "una institución instrumental en virtud de la cual debe asegurarse a Ias partes en

todo proceso - legalmente establecido y que se desarrolle sin dilaciones injustificadas

- oportunidad razonable de ser oídas por un tribunal competente, predeterminado por

la ley, independiente e imparcial, de pronunciam respecto de Ias pretensiones y mani-

festaciones de la parte contraria, de aportar pruebas lícitas relacionadas con el objeto

dei proceso y de contradecir Ias aportadas por la contraparte, de hacer uso de los mé­

dios de impugnación consagrados por ley contra resoluciones judiciales motivadas y

conformes a derecho, de tal manera que Ias personas puedan defender efectivamente

sus derechos"?"

Vê-se, pois, que a cláusula due process of law é destinada a garantir que o processo seja ordenado à obtenção de resultados efetivos. E não terá havido qual­quer efetividade em um processo cujo resultado prático é nenhum! Julgar-se pro­cedente uma demanda de reivindicação para, em seguida, dar-se pela procedên­cia do pedido formulado em embargos de terceiro, ajuizados por quem não participou do processo condenatório-executivo instaurado pelo ajuizamento da demanda de reivindicação, é fazer com que o resultado prático deste processo seja nenhum. E processo que não gera efeitos práticos na vida das pessoas é pro-

O trecho citado é da lavra de notável jurista panamenho, que escreveu sobre o tema obra pequena em tamanho, mas imensa em importância. HOYOS, Arturo. El debido proceso, Bogotá, Temis, 1998, p.54.

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cesso inefetivo. Ora, sendo a garantia do devido processo a própria garantia da sua efetividade, nos casos em que já se sabe de antemão que o processo não será capaz de produzir resultados úteis estar-se-á diante de processo que viola a ga­rantia constitucional.

É, pois, duplamente inconstitucional a atribuição de legitimidade passiva ad causam ao indigitado detentor do bem para a demanda reivindicatória. Incons­titucional por ser capaz de fazer com que o possuidor seja privado de seus bens sem o devido processo legal e, ainda, por gerar um sistema processual incapaz de produzir resultados úteis e justos.

Vale ressaltar que a legitimidade do indigitado detentor seria extraordiná­ria, permit indo o Código Civil de 2002 que ele atue como substituto processual do possuidor. Como foi visto anteriormente, a legitimidade extraordinária de­corre sempre de algum benefício indireto que o legitimado extraordinário pode obter em razão do resultado do processo, havendo entre ele e a causa alguma re­lação. Acontece que o detentor não é juridicamente beneficiado pelo resultado do processo no caso ora em análise, uma vez que não possui sobre a coisa que de­tém qualquer direito, atuando, sempre, em nome de outrem.

Não havendo interesse do legitimado extraordinário, não se justifica a atri­buição de legitimidade, razão pela qual não se pode assim interpretar a cláusula legal. Registre-se, aliás, que não seria razoável atribuir legitimidade extraordiná­ria a alguém que não tem condições de ampliar as chances de êxito no processo do titular da posição jurídica de direito material. A legitimidade extraordinária deve ser encarada como u m mecanismo de ampliação do acesso à justiça, por meio da qual se permite que alguém mais preparado que o legitimado ordinário (como uma associação civil, u m sindicato ou o Ministério Público) esteja apto a ir a juízo, em nome próprio, na defesa dos interesses deste último. Não sendo isso o que acontece na relação entre possuidor e detentor (sendo razoável supor que, ao menos como regra, o possuidor será mais forte jurídica e economicamente do que o detentor), não se justifica a atribuição de legitimidade extraordinária a este, o que faz com que se rejeite qualquer tentativa de assim interpretar o texto da lei civil.

Deve-se, pois, considerar não escrita a cláusula "ou detenha" contida na parte final do art. 1.228 do Código Civil de 2002, mantendo-se o sistema segundo o qual a legitimidade passiva para a demanda reivindicatória é do indigitado pos­suidor da coisa vindicada.

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6. DAS CONSEQÜÊNCIAS PROCESSUAIS DA ADOÇÃO DA TESE CONTRÁRIA ÀQUELA AQUI SUSTENTADA (OU "DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA EVENTUALIDADE EM UM TRABALHO DOUTRINÁRIO")

Escrevo este item do ensaio do mesmo modo como nos casos em que, na minha atuação profissional como advogado, sou chamado a redigir uma contes­tação. O art. 300 do Código de Processo Civil estabelece que incumbe ao réu, na contestação, apresentar toda a sua matéria de defesa. Isto faz com que incida no direito processual civil brasileiro, em toda a sua plenitude, o princípio da even­tualidade, segundo o qual cabe à parte apresentar, de uma só vez, todas as alega­ções que tenha em seu favor, ainda que contraditórias entre si. Portanto, atuo, aqui, como no exercício da advocacia, e busco enfrentar o tema objeto deste estudo sob todas as suas vertentes, ainda que contraditórias entre si.

Admita-se, pois, ad argumentandum tantum, que não há qualquer inconstitu-cionalidade na atribuição de legitimidade passiva ao indigitado detentor para as demandas reivindicatórias. Assim sendo, ajuizada em face dele a demanda de rei­vindicação, terá sido legitimamente exercido o poder de ação e, por conseguinte, nada impedirá - ressalvada a possibilidade de haver algum outro obstáculo, como a falta de um pressuposto processual, por exemplo - a apreciação do meritum causai. Devem ser, pois, examinadas as conseqüências processuais da atribuição de legitimidade passiva ao detentor para a demanda reivindicatória.

A primeira conseqüência será a inadmissibilidade de nomeação à autoria. Esta é cabível, como sabido, na hipótese prevista no art. 62 do CPC, segundo o qual sendo o detentor demandado como se possuísse a coisa pretendida deverá ele nomear à autoria o possuidor. A nomeação à autoria presta-se a tornar possí­vel a modificação do pólo passivo da demanda, dali se retirando o detentor e, em seu lugar, pondo-se o possuidor. Isto se faz, porém, segundo entendimento dou­trinário tranqüilo, com o fim de se resolver um problema decorrente da ilegiti­midade passiva do detentor. 3 9

Sendo assim, a nomeação à autoria é mecanismo destinado a corrigir u m ví­cio da demanda (a ilegitimidade passiva), que, se subsistisse, levaria à extinção do

Entre outros, BUENO, Cássio Scarpinella. Partes e terceiros no processo civil brasileiro. São Paulo, Saraiva, 2003, p.189; FACHIN, Luiz Edson. Intervenção de terceiros no pro­cesso civil. São Paulo, RT, 1989, p. 19-20; GRECO FILHO, Vicente. Da intervenção de terceiros. 3.ed. São Paulo, Saraiva, 1991, p.80; CARNEIRO, Athos Gusmão. Interven­ção de terceiros. 8.ed. São Paulo, Saraiva, 1996, p.65.

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processo sem resolução do mér i t o . 4 0 O r a , sendo o indig i tado detentor parte legí­t ima para a demanda , não poderá ma is ser admi t ida a nomeação à autor ia , pois não haver ia mais qua lquer v í c io a corrigir .

O u t r a conseqüência processual da atr ibuição de leg i t imidade passiva ao d e ­tentor para a demanda re iv indicatór ia , observada po r A r r u d a A l v i m , 4 1 seria a necessidade de se mod i f i ca r a interpretação do art. 70, I I , do C P C , o qual faz a l u ­são ao possuidor direto, passando a ser apl icável t a m b é m ao detentor. Estabele ­ce esse disposit ivo da lei processual que se o demandado exercer a posse direta do b e m postu lado será cabível a denunc iação da l ide ao possuidor indireto. C o m o lec iona, c o m percuciênc ia , S ydney Sanches,

em todos esses casos, em que a posse se desdobra em direta e indireta, mas desde que o possuidor indireto, por força de lei ou de contrato oneroso, esteja obrigado a garantir a posse direta de outra pessoa, ou a indenizá-la em caso de perda dessa posse em Juízo (art. 1.107 do CC), o possuidor direto tem o ônus de denunciar a lide àquele (ao possuidor indireto), nos termos do inc. II do art. 70 do CPC. 4 2

Vê-se, pois , que a denunc iação da l ide só é cabível se o possuidor direto a le ­gar ter, perante o possuidor indireto, direito de regresso e m razão de eventual perda da posse do b e m po r força do processo. Isto decorre , ev identemente, do fa­to de ser a denunc iação da l ide u m a demanda regressiva ajuizada por u m a das partes de u m a demanda (a chamada demanda principal) e m face de terceiro. 4 3

Sendo , c o m o é, a denunc iação da l ide por tadora de u m a demanda regressi­va , não pode ela ser estendida ao detentor na hipótese do art. 70, I I , do C P C por u m a razão mu i t o s imples: a sucumbênc ia do detentor não geraria para ele, n e m e m tese, qua lquer direito de regresso contra o possuidor . 4 4 N ã o havendo direito de regresso, não há c o m o se admit i r a denunc iação da l ide, razão pela qual não se

FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p.20: "O erro, portanto, consistiu em fazer citar o mero detentor, quando se deveria ter feito citar o possuidor ou o proprietário. A conseqüên­cia deste equívoco poderia ser a extinção do processo, caso a lei não permitisse esse expediente, que consiste na indicação do verdadeiro legitimado passivo. Tem o insti­tuto, por conseguinte, a finalidade de promover a correção da legitimatio ad causam, pois a demanda foi dirigida contra parte ilegítima." ARRUDA ALVIM, José Manoel de. Op. cit., p.78. SANCHES, Sydney. Denunciação da lide no direito processual civil brasileiro. São Paulo, RT, 1984, p.84. DINAMARCO, Cândido Rangel. Intervenção de terceiros. São Paulo, Malheiros, 1997, p.147. Sobre a questão é categórico FUX, Luiz. Intervenção de terceiros (aspectos do instituto). São Paulo, Saraiva, 1990, p.23.

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pode, data venia, concordar com a respeitabilíssima opinião do mestre Arruda Al­vim anteriormente referida.

7. CONCLUSÃO

A principal conclusão deste trabalho foi exposta logo na introdução, contra-riando-se o sistema tradicionalmente empregado: é inconstitucional a atribuição de legitimidade passiva aã causam ao indigitado detentor para as demandas rei-vindicatórias. A adoção desse método, o qual consiste em anunciar a conclusão logo de início, se por u m lado tira todo o mistério que poderia haver para o leitor, por outro lado, tem a vantagem de abrir espaço para outro tipo de conclusão, mais geral do que aquela decorrente diretamente do trabalho aqui apresentado.

Essa conclusão é apresentada de forma muito simples: não se pode aceitar que u m Código Civil seja elaborado sem que juristas de outras áreas do Direito sejam ouvidos. A influência do Código Civil sobre todos os ramos da ciência jurídica é notável. Mas, além dessa influência natural, não se pode deixar de regis­trar a existência, no Código Civil, de normas heterotópicas que, embora localiza­das na lei civil, t ratam de matéria pertinente a outros ramos do Direito. É o que se dá, por exemplo, com as normas estritamente processuais que no Código Civil podem ser encontradas (por exemplo, as normas sobre provas, constantes da Parte Geral do Código). Essas normas não passam a ser de direito civil pelo sim­ples fato de estarem em u m Código Civil. A natureza da norma jurídica é estabe­lecida por seu conteúdo, e não por sua localização. Assim sendo, é absolutamen­te inaceitável que normas processuais sejam elaboradas sem que processualistas sejam chamados a examiná-las (como seria inaceitável elaborar normas de direi­to civil sem ouvir os civilistas, ou normas de direito tributário sem que os tr ibu-taristas se manifestassem). A aprovação de dispositivos legais de natureza proces­sual sem que se examinem previamente as conseqüências que os mesmos terão sobre o sistema processual só poderia, mesmo, gerar tantas controvérsias quanto o tema aqui abordado, sendo certo que as dificuldades hermenêuticas existentes em relação ao tema da (i)legitimidade passiva do detentor para a demanda rei­vindicatória não são uma exclusividade desse tema. Não há aspecto processual do Código Civil que não seja capaz de gerar controvérsias doutrinárias, as quais, refletindo (como certamente refletirão) na jurisprudência, acabarão por se tor­nar mais u m obstáculo a ser superado na eterna luta pelo amplo acesso a u m a ordem jurídica mais justa.

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POSSESSÓRIO E JUÍZO PETITÓRIO

MARIANA RIBEIRO SANTIAGO"

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Sumário 1. Introdução. 2. Proteção possessória. 3. Juízo pos-sessório e juízo petitório. 4. Conclusão. Referências bibliográficas.

1. INTRODUÇÃO

Tanto a posse como a propriedade sempre foram institutos que mereceram a maior atenção do nosso legislador devido a sua influência direta no plano eco­nômico. É inegável a importância de u m procedimento rápido e eficaz para a defesa da posse, que pode, inclusive, ser usado pelo próprio proprietário, como ocorre nas ações possessórias.

O meio processual, que visa à defesa da propriedade, é a ação petitória. Muito se discutiu, historicamente, se, apesar de prevalecer a propriedade sobre a posse, a ação petitória prejudicaria a ação possessória, havendo toda uma evo­lução legislativa no nosso País com tendência a separar juízo possessório e juízo petitório.

Vale ainda ressaltar que os fundanrentos da tendência de proibir concomi­tância de possessório e petitório repousam também em fortes razões de ordem social, não sendo questão puramente legislativa, como pretendemos demonstrar no presente estudo.

Mestre em direito civil comparado pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). Advogada.

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406 MARIANA RIBEIRO SANTIAGO

2. PROTEÇÃO POSSESSÓRIA

Para uma análise mais abrangente do tema, fazem-se necessários breves es­clarecimentos sobre as ações possessórias, que instauram o juízo possessório, vi­sando a alcançar a proteção possessória.

Os interditos possessórios estão regulados no CC/2002, arts. 1.210 a 1.213, que disciplinam a fundamentação do direito aos interditos, considerados expres­samente pelo Código como efeito da posse e, no CPC, arts. 920 a 933, que disci­plinam a tramitação das ações possessórias. 1

As ações consideradas tecnicamente como possessórias são: a manutenção, a reintegração de posse e o interdito proibitório, exatamente porque visam dire­tamente à defesa da situação possessória. Outras ações, como imissão na posse, em­bargos de terceiro e nunciação de obra nova, podem ser utilizadas na defesa da posse, mas não são exclusivamente voltados para a tutela possessória, não po­dendo, por isso, ser tecnicamente consideradas ações possessórias. 2

A causa de pedir mediata nas ações possessórias refere-se à posse (jus pes-sessionis, posse como fato, que não se confunde com o jus possidendi, que é o di­reito de ter a posse); mas a pretensão possessória não é a mesma como se pode ver:

a) Manutenção de posse: a pretensão possessória é ser mantido na posse da coisa, em caso de turbação.

b) Reintegração de posse: a pretensão é ser restituído na posse da coisa, em caso de esbulho.

c) Interdito proibitório: a pretensão é a abstenção de prática de turbação ou esbulho iminente da posse por parte de outrem e pena pecuniária ao réu para o caso de transgredir a ordem judicial (pretensão possessória negativa).

O procedimento nas ações possessórias é diverso, caso se trate de ação de força nova ou ação de força velha. A ação de força nova é a intentada dentro do prazo de u m ano e dia da turbação ou esbulho, neste caso, o procedimento é especial, segundo o art. 924, CPC; ação de força velha é a intentada após esse prazo de um

FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Posse e ações possessórias, v.I, p.275. No mesmo senti­do, GOMES, Orlando. Direitos reais, p.85. WAMBIER, Luiz Rodrigues et al. Curso avançado de processo civil: processo cautelar e procedimentos especiais, v.III, p.189-90. No mesmo sentido, FIGUEIRA JÜNIOR, Joel Dias. Op. cit., p.279-81; NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, p.1.283.

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ano e d ia da turbação o u esbulho, neste caso, o p roced imento é ord inár io , e m ­bora a ação não perca seu caráter possessório, segundo o m e s m o art. 924.

O caráter possessório das ações possessórias, que independe do p roced imen ­to que siga, está l igado à sua natureza executiva, pois a sentença na possessória t em força executiva, altera a situação fática ordenando a expedição de mandado de manu tenção o u reintegração, sem necessidade de processo de execução. 3 A p r ó ­pr ia sentença da possessória enseja proteção possessória imediata, o que traz enor ­mes benef íc ios na prát ica. N o caso de pedido de indenização cumu l ado há, obv iamente , processo de execução, de acordo c o m as regras do proced imento de execução po r quant ia certa. 4

A diferença entre o proced imento especial e o ord inár io nas ações possessó­rias era restrita à possibilidade de se obter o u não a l iminar de manutenção ou re in ­tegração e m favor do autor (que pode ser concedida sem prév ia citação do réu , n o caso raro de forte p rova documenta l , o u após audiênc ia de just if icação c o m c i ta ­ção do réu - art . 928, C P C ) . Depo i s da contestação, a ação de força nova t a m b é m segue o p roced imento ord inár io .

C o m o advento do art . 273, do C P C , e m 1994, ins t i tu indo a antecipação da tutela, a diferença ficou m e n o r a inda, sendo possível t a m b é m a concessão de l i ­m i n a r nas ações de força velha, desde que preenchidos os requisitos desse art igo, que , segundo D i n a m a r c o , 5 é a regra antecipatór ia e m contraposição ao art . 928, C P C , que é u m dos casos de antecipação de tutela t ípica do C P C , pe rm i t i ndo a concessão de l im ina r nas ações possessórias. Essa posição de D i n a m a r c o , ressal­te-se, é cr i t icada, sob o f undamen to de que a l im ina r do possessório não é tu te ­la antecipada.

P roced imento sumar íss imo t a m b é m é cabível nas ações possessórias. O art. 3 o , IV , da Le i n. 9.099/1995, é expresso e m determinar que às ações possessórias sobre bens imóve is c o m va lor não super ior a quarenta salários m í n i m o s pode ser apl icado tal p roced imento . Theo ton io Negrão , 6 e m u m a interpretação c o m b i ­nando o art. 3 o , I I , da Le i n. 9.099/1995, e o art. 275, I I , a, do C P C , admi te que , nas ações possessórias sobre móve is e semoventes, a competênc ia é dos Ju izados Especia is , independentemente do va lor da causa.

3 MENEZES CORDEIRO, Antônio. A posse: perspectivas dogmáticas atuais, p. 143. 4 WAMBIER, Luiz Rodrigues et al. Op. cit. p.192. 5 DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno, t.II,

p. 1.342. 6 NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, p.867.

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Sobre a legitimação ativa, a têm o possuidor direto ou indireto e não o deten­tor. A polêmica ocorre quando se trata de proprietário que nunca esteve na posse da coisa. Segundo a corrente a qual pertence Nelson Nery, 7 quem nunca teve a pos­se não pode utilizar os interditos; o adquirente que não recebe a posse do vende­dor deverá se utilizar da imissão na posse. Já para a corrente da qual faz parte Or­lando Gomes, o adquirente já é possuidor indireto por força da tradição ficta, cabendo ação de reintegração (no modo de aquisição derivado não é necessária a entrega real e efetiva do bem) .

Quanto à legitimidade passiva, a regra é que qualquer pessoa que pratique ou esteja na iminência de praticar turbação ou esbulho da posse pode ser réu na ação possessória. O art. 1.212, CC/2002 alarga o campo da legitimidade passiva ao permitir que o terceiro, recebedor da coisa, sabendo que é proveniente de esbulho (má-fé), também possa ser atingido pela possessória.

O problema a respeito do art. 1.212 é que, a contrario sensu, dele se conclui que o terceiro de boa-fé não pode ser réu na possessória, e, nesse caso, o possui­dor esbulhado, que não seja proprietário, não poderia utilizar-se nem da pos­sessória nem da petitória, ficando sem ação direta para defender a posse, depen­dendo do proprietár io da coisa (obviamente, no caso de dano, sempre cabendo a indenizatória).

Outra polêmica sobre as possessórias diz respeito à natureza dessas ações. Aqueles que defendem a natureza real, como Humberto Theodoro, argumentam com o art. 95, CPC, que inclui as ações possessórias entre as ações reais imobi­liárias. Aqueles que defendem a natureza pessoal das possessórias, como o pro­fessor Arruda Alvim, argumentam com o parágrafo 2 o , do art. 10, do CPC, que dis­põe que a outorga uxória ou o litisconsórcio passivo nas ações possessórias só é indispensável no caso de composse ou ato por ambos praticados.

3. JUÍZO POSSESSÓRIO E JUÍZO PETITÓRIO

No juízo possessório, a causa de pedir é a posse e o objetivo da ação é a pro­teção da posse. Diferente do que ocorre nas ações petitórias, que instauram o juí­zo petitório.

No juízo petitório, os litigantes reivindicam a coisa com base na alegação de propriedade. A prova do domínio, que é essencial, nem sempre é fácil, mesmo no caso dos imóveis, pois a presunção de propriedade que o registro estabelece é jú­ris tantum. Por essa razão, o procedimento nas petitórias, em regra, é o ordinário.

NEGRÃO, Theotonio. Op. cit, p.l.284.

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DA IMPOSSIBILIDADE DE CONCOMITÂNCIA ENTRE JUÍZO POSSESSÓRIO E JUÍZO PETITÓRIO 409

H á autores, c o m o H u m b e r t o T h e o d o r o 8 e os Mazeaud , 9 que cons ideram a possibi l idade da possessória defender e se fundamenta r e m out ro direito real que não a propr iedade. Isso seria possível, segundo essa corrente, po rque a causa pe-

tendi é o jus possidendi, do qua l a propr iedade é o pr inc ipa l fundamento , mas não o ún ico .

N o ju ízo possessório, o proced imento é especial, ma is célere do que o p roce ­d imen to ord inár io , e se dispensa a prova do d o m í n i o , bastando a prova da posse pacíf ica por ano e dia para que se consiga a proteção (a causa petenãi é a p rópr i a posse) .

O intu i to da lei , inst i tu indo u m proced imento di ferenciado para as posses-sórias, fo i facil itar a defesa do propr ie tár io , tendo e m vista que o nosso Cód igo ado tou a teoria de Jhe r ing , segundo a qua l a posse é u m a exteriorização da p r o ­pr iedade, e m que, na ma io r i a das vezes, é o propr ie tár io q u e m desfruta da posse.

É verdade que, na tentativa do legislador de proteger o propr ietár io , mui tas vezes, aquele que se encontra indev idamente de posse de coisa alheia é que é p r o ­tegido. Inc lus ive o p rópr io art. 1.297, CC/2002, permi te a defesa da posse contra o possuidor ind i reto . M a s isso não desmerece a cr iação dos interditos possessó-r ios, pois , de out ra fo rma , não teria o propr ie tár io u m ins t rumento ráp ido e e f i ­caz para provar o seu direito, tendo sempre que recorrer ao ju ízo pet i tór io e p r o ­va r a propr iedade . 1 0

M e s m o venc ido na ação possessória, o propr ietár io poderá re iv indicar a c o i ­sa e m ação pet i tór ia , u m a vez que não se pode falar e m coisa ju lgada, 1 1 entre as duas ações, pela diversidade de fundamentos entre elas. O u seja, se o propr ie tá ­r io deixar t ranscorrer ano e dia da turbação o u esbulho, perde a posse, mas não perde o d o m í n i o , 1 2 que poderá reaver a posse poster iormente c o m base nisso.

Essa a f i rmação não significa, entretanto, que a ação possessória é prov isór ia . Segundo Figueira Jún io r , 1 3 significa apenas que, confrontadas posse e propr ieda ­de, esta prevalecerá ao f i m , j á que a posse é prov isór ia e m relação à propr iedade , mas a ação possessória é def init iva, pois a cognição nelas é completa e sua sen ­tença faz coisa ju lgada mater ia l e fo rma l .

8 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, v.III, p.127. 9 MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, León; MAZEAUD, Jean. Lecciones de derecho civil, parte

segunda, v.IV, p. 172. 1 0 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito das coisas, v.V, p.55. 1 1 GOMES, Orlando. Op. cit., p.87. No mesmo sentido, THEODORO JÚNIOR, Hum­

berto. Op. cit., v.III, p.127. 1 2 Ibidem, p.55-56. 1 3 FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Op. cit., p.274.

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Em resumo, não adianta alegar a propriedade no juízo possessório e não faz diferença alegar a posse no petitório. Isso está claro no art. 1.210, parágrafo 2 o , do CC/2002: "Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa". O art. 923, do CPC, estabele­ce ainda que "Na pendência do processo possessório, é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar ação de reconhecimento do domínio".

De acordo com o art. 923, CPC, uma vez intentada a possessória não cabe a petitória, porque há uma determinação de separação dos dois juízos. Segundo Nelson Nery, 1 4 enquanto pendente a possessória, existe condição suspensiva do exercício do direito de ação fundada na propriedade. Mas não há impedimento legal, na opinião de Tito Fulgêncio 1 5 , para a interposição da possessória na pen­dência da petitória por aquele que é réu na petitória, visto que o autor do esbu­lho não pode tolher com o petitório o direito do possuidor.

A respeito da possibilidade de coexistência dos juízos possessório e petitó­rio, os Mazeaud, 1 6 ao comentar a inexistência dessa possibilidade no direito fran­cês, a f i r m a m que:

Está prohibido acumular el juicio posesorio y el petitório, Io cual significa: 1° Que el

juez dei juicio posesorio no puede fundar su resoluáón sobre elfondo de derecho, sino

tan solo sobre el hecho de la posesión; 2° Que, desde el instante en que el pleito se haya

trabado sobre el juicio posesorio, el juez dei juicio petitório no puede conocer ya hasta

que se haya convertido en firme la resolución sobre el juicio posesorio; 3 o Que el de­

mandante que haya seguido el juicio petitório no puede intentar ya una acción pose­

sorio, pero el demandado puede dirigirse al juez dei juicio posesorio, con Io cual com­

pele al juez dei juicio petitório a diferir su fallo.

Theotonio Negrão, 1 7 entretanto, tem posição divergente sobre o assunto. Se­gundo esse autor, o art. 923, do CPC, só se aplica aos casos em que, na ação pos­sessória, se disputa a posse com base na alegação de domínio, sendo cabível a pro­posição da reivindicatória nos demais casos. Não há, entretanto, qualquer tipo de restrição a esse respeito na letra da lei.

Houve quem defendesse a inconstitucionalidade desses artigos, pois restrin­giriam a proteção constitucional à propriedade, visto que o proprietário estaria

1 4 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.1.287. 1 5 FULGÊNCIO, Tito. Da posse e das ações possessórias, v.I, p.282. 1 6 MAZEAUD, Henri; MAZEAUD, Léon; MAZEAUD, Jean. Op. cit., p.167. No mesmo

sentido, RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil, v.II, p.812-3. 1 7 NEGRÃO, Theotonio. Op. cit., p.870.

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DA IMPOSSIBILIDADE DE CONCOMITÂNCIA ENTRE JUÍZO POSSESSÓRIO E JUÍZO PETITÓRIO 411

1 8 RODRIGUES, Silvio. Op. cit., p.57-8.

imped ido de intentar a ação re iv indicatór ia na pendênc ia da possessória, n o e n ­tanto, a propr iedade defendida pela Const i tu ição Federa l é a propr iedade exerc i ­da sem abusos, e m que o espoliador deve estituir o b e m , dev ido à proibição da justiça pr ivada. O S T F já se p r o n u n c i o u pela const i tuc ional idade (RTJ 91/594).

Esse art. 1.210, parágrafo 2 o , do CC/2002, repete a p r ime i ra parte do ant igo art. 505, do CC/1916, e exclui a segunda parte, que permi t ia a exceção do d o m í ­n io nas ações possessórias ao d ispor que: " N ã o se deve, entretanto, ju lgar a posse e m favor daquele a q u e m ev identemente não pertencer o domín io " .

Este art igo, n a sua segunda par te , p r o v o c o u m u i t a po l êm ica pela con t r a ­d ição de pe rm i t i r a anál ise da p ropr i edade n o ju ízo possessório, o que desca­racter izar ia esse ju ízo, tornando-o inút i l quando se confronta c o m o direito de propr iedade. A jur i sprudênc ia e a dou t r ina tenta ram m in im iza r a contradição, admi t i ndo a possibi l idade da exceção do d o m í n i o apenas e m duas situações: 1 8

1) Q u a n d o os litigantes d isputam a posse c o m fundamento e m prova de d o m í n i o (pos i c ionamento que o r ig inou a a tua lmente revogada s ú m u ­la 487 do S T F ) .

2) Q u a n d o o exame das provas do processo sobre a posse não é suficiente para soluc ionar a dúv ida sobre q u e m é o possuidor.

O Cód igo de Processo C i v i l de 1973, e m sua redação or ig ina l , mant inha , e m seu art. 923, a mesma contradição do art. 505 do CC/1916, aceitando a exceção do domín io . C o m a re forma da Le i n. 6.820/1980, a exceção do dom ín i o fo i abol ida e a segunda parte do art. 923, C P C , revogada. A segunda parte do art. 505, CC/1916 , não fo i restaurada, já que o nosso sistema não admi te a r ipr is t inação quando a lei revogadora é revogada ( L I C C , 2 o , parágrafo 3 o ) . A s s i m , pro ib i r a exceção do d o m í n i o no ju ízo possessório não fo i u m a inovação do CC/2002, v isto que já constava no p róp r io C P C .

A respeito do papel do apl icador do direito ante a u m caso de c o n c o m i t â n ­cia entre possessório e pet i tór io, o Enunc i ado n. 78 do Conse lho da Justiça Fede ­ra l , de val ioso caráter e lucidat ivo dispõe que:

Enunciado 78-Art . 1.210: Tendo em vista a não-recepção, pelo novo Código Civil, da exceptio proprietatis (art. 1.210, parágrafo 2o) em caso de ausência de prova suficien­te para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusivamente no ius

possessionis, deverá o pedido ser indeferido e julgado improcedente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre o bem litigioso.

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412 MARIANA RIBEIRO SANTIAGO

O refer ido E n u n c i a d o fo i just i f icado pelo Conse lho da Justiça Federa l da se ­guinte fo rma :

Os julgamentos em sede possessória haverão de pautar-se, tão-somente, com base na

pureza dos interditos, isto é, levando-se em conta, para a tomada de decisão, apenas

as questões pertencentes ao mundo dos fatos, mesmo se comprovada a proprieda­

de de qualquer das partes sobre o bem litigioso.

En t re tanto , dentro do texto de justif icativa ao citado E n u n c i a d o n. 78, o C o n ­selho da Just iça Federa l emite u m pos ic ionamento c o m o qua l data máxima venia não conco rdamos , in verbis:

Nada obstante não recepcionada expressamente no art. 1.210 do Novo Código Civil a chamada "ação vindicatória da posse", prevista no art. 521 do Código Civil de 1916, há de ser considerada implicitamente mantida no novo macrossistema por força de interpretação extensiva da norma insculpida no parágrafo 1 o do art. 1.210, tendo-se em vista que se trata de demanda recuperatória.

E n t e n d e m o s que não se pode interpretar o parágrafo I o , do art. 1.210, do Cód igo C i v i l de 2002, de mane i ra extensiva para abranger o caso da ação v i n d i ­catória. E m p r ime i ro lugar, o referido parágrafo I o não compor t a interpretação extensiva, p o r se tratar de n o r m a que admi te u m a hipótese excepcional de jus t i ­ça pr ivada , que é, e m regra, repugnada pelo nosso o rdenamento jur íd ico .

A l é m disso, trata-se de prov idênc ia admi t ida n o caso de ações possessórias, e a natureza da ação v ind ica tór ia é po lêmica , havendo autores que cons ideram se tratar de ação pet i tór ia (a exemplo de Pontes de M i r a n d a , Tratado de direito civil, t .X, p.388 e ss) e outros que cons ideram se tratar de natureza mista, a exemplo de F igue i ra Jún ior . N ã o há manifestações a respeito de se tratar de natureza posses­sória e, n ã o se t ra tando de ação pu ramen te possessória, não cabe a ut i l ização dos interdi tos.

O Conse lho da Just iça Federa l em i t i u , a inda, out ro E n u n c i a d o a respeito da imposs ib i l idade de concomi tânc ia dos juízos possessório e pet i tór io , a saber:

Enunciado 79 - Art. 1.210: A exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações pos­sessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a absoluta se­paração entre os juízos possessório e petitório.

P ro ib i r a exceção do domín io é, de fato, o entendimento mais acertado, pelas mesmas razões que se pro íbe a interposição de ação pet i tór ia na pendênc ia de possessória, po is , do contrár io , o ju ízo possessório estaria descaracterizado e i n ú ­t i l , convertendo-se e m pet i tór io , j á que permi t i r i a a discussão da propr iedade . A

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tão ac lamada van tagem da agi l idade do possessório deixaria de existir, e m vista da discussão sobre a propr iedade.

A l é m disso, seria u m incent ivo à justiça pr ivada, na med ida e m que o p ropr ie ­tário poder ia l ivremente esbulhar a coisa na certeza de que, ao ser acionado e m ação possessória, o título de domín io serviria para consolidar a apropriação (abuso do direito de propr iedade) . Vale ressaltar que a justiça pr ivada é coibida no nosso o r ­denamento, inclusive o Cód igo Penal tipifica c o m o cr ime, no art. 345, o exercício arbitrár io das própr ias razões. A proibição da coexistência de discussão judic ia l so ­bre petitório e possessório é o posic ionamento mais coerente c o m o nosso sistema.

A pr inc íp io , a pro ib ição da alegação de propr iedade n o ju ízo possessório p a ­rece ir ao encontro da teor ia de Jhe r ing , adotada pelo C C , mas isso não ocorre po rque tal pro ib ição não significa que a posse tenha u m status mais impor tan te que a propr iedade , tanto que a propr iedade prevalece no ju ízo pet i tór io. Trata-se apenas da uti l ização adequada das v ias processuais.

4. CONCLUSÃO

O entend imento que permi te a coexistência do ju ízo possessório c o m o j u í ­zo pet i tór io peca po r se fundar e m u m a interpretação que restringe o âmbi to de apl icação do art. 923, C P C , sem n e n h u m fundamen to legal, apenas c o m base na mesma idéia, hoje ultrapassada, que permi t ia a exceção de propr iedade no juízo possessório.

N ã o se trata de pr iv i legiar a posse e m det r imento da propr iedade , pois esta prevalecerá ao f ina l do ju ízo pet i tór io . O que ocorre é que , permit indo-se a c o n ­jugação das duas ações, conclui-se pela inut i l idade de o legislador estabelecer u m proced imento mais ágil para a defesa da posse, pois toda ação sobre posse aca ­bar ia , de imedia to , gerando discussão jud ic ia l sobre a propr iedade , que , c o m o dito anter iormente , é questão mu i to mais del icada e de dif íc i l comprovação .

A l é m de pro ib i r a exceção de d o m í n i o e, pelos mesmos mot i vos , fica claro, pela nova redação do art. 923 do C P C , que não há que se intentar ação pet i tór ia na pendênc ia de ação possessória. N ã o cabe a ressalva de que seria possível a interposição da pet i tór ia quando a discussão na possessória versar apenas sobre o poder de fato sobre a coisa, pois a le i não faz essa exceção.

Referências bibliográficas

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ALGUNS ASPECTOS RELEVANTES DA USUCAPIÃO E DA EXPROPRIAÇÃO

PRIVADA 7

MARCELO DA R O C H A ROSADO*

Sumário

1. A posse qual i f icada na usucapião e na expropr iação pr i vada e a sua demonstração. 2. P roced imen to rela­t ivo à expropr iação pr ivada e à usucapião : registro da propr iedade para efeitos erga omnes.

1 . A POSSE QUALIFICADA NA USUCAPIÃO E NA EXPROPRIAÇÃO PRIVADA E A SUA DEMONSTRAÇÃO

C o m o é consabido, u m dos sustentáculo do novo Cód igo C i v i l é o chamado pr inc íp io da social idade, o qua l pode ser encont rado n o âmago de vár ios d i spo ­sit ivos, i nd i cando o apreço depositado pelo legislador a esse valor .

U m a expressão veemente do pr inc íp io da social idade é encontrada n o â m ­bito do D i re i to das Coisas, e consiste no prestígio da posse socia lmente híg ida e engajada no contexto econômico c o m o mecan i smo para faci l i tação da aquisição da propr iedade.

Temos, então, a chamada posse qualificada, à qual , c o m fulcro n o menc ionado pr inc íp io , agrega-se elemento social para torná-la vetor à aquisição da propr ieda ­de. Ass im , a posse na qua l se incute u m a função social relevante consubstancia-se u m bônus ao possuidor, permit indo-lhe percorrer u m c a m i n h o faci l i tado e mais ráp ido para a aquis ição da propr iedade.

Procurador da Fazenda Nacional. Professor Assistente e Pesquisador no Instituto Ca­pixaba de Estudos - ICE.

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Nesse contexto, sobressai uma figura ímpar no ordenamento jurídico pátrio, presente no art. 1.228, parágrafo 4 o , 1 do Código Civil, que vem sendo designada de desapropriação judicial ou de expropriação privada. Tal figura permite que um número considerável de possuidores invoque sua posse a fim de obstar a preten­são do proprietário. Verificando o julgador a presença dos elementos apontados no dispositivo — os quais repousam no princípio da socialidade - , poderá privar o proprietário da coisa em prol daqueles possuidores, em virtude do engajamen­to social dado pelos mesmos à coisa. A posse tratada no regramento em foco, em vista da sua qualificação, tem força para opor-se ao direito real de propriedade.

Vemos, ainda, casos de posse socialmente qualificada pelo legislador, os quais têm o condão de reduzir os prazos para a consumação da usucapião. Com efei­to, constata-se que a usucapião foi um dos institutos mais afetados positivamente com o vetor social norteador da codificação, pois, a par de ter havido uma redu­ção genérica nos prazos da usucapião ordinária e extraordinária - o que represen­ta u m prestígio da posse —, houve, outrossim, previsão de reduções específicas naqueles prazos, com base no caráter social da posse. 2

Essas disposições que prevêem uma posse robustecida, qualificada pelo ele­mento social, veiculam, a fim de se constatar dita posse, conceitos jurídicos inde­terminados, 3 como "interesse social e econômico relevante", "considerável número

Art. 1.228, parágrafo 4 o . O proprietário também pode ser privado da coisa se o imó­vel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir co­mo seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis. Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o pos­suidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo. Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incon-testadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. No âmbito das normas que possuem, em seu bojo, categorias com alto grau de vague-za semântica, e que conduzem o aplicador à análise de instâncias valorativas metaju-rídicas ou referentes a realidades fáticas mutáveis, é possível distinguir dois fenômenos:

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de pessoas", "obras e serviços de caráter produtivo", "investimentos de interesse social e econômico". Tais conceitos carecem de u m conteúdo predeterminado,

Enfocando o conteúdo lógico da norma, temos que sua estrutura consiste em um an­tecedente (no qual se faz a descrição hipotética do fato sobre o qual deve a norma incidir) e em um conseqüente (no qual se estipula a conseqüência jurídica advinda da concretização do fato e de sua subsunção à norma). Assim, a imprecisão legal pode recair tanto no antecedente da norma quanto no seu conseqüente. São duas realida­des ou métodos para se conferir flexibilidade a normas, cujo reconhecimento mere­ce acurada abordagem pelo estudioso do Direito. Nessa ótica, a diferença entre conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais consiste na posição de cada um na estrutura da norma. Os conceitos jurídicos inde­terminados alocam-se no antecedente da norma, descrevendo hipóteses abertas para a incidência da norma. As cláusulas gerais, por sua vez, residem no conseqüente da nor­ma, pois a solução a ser dada para o caso concreto que se ajusta ao antecedente da norma não é rigidamente conferida pelo sistema, devendo ser moldada pelo magis­trado, conforme as exigências do caso concreto. Perfilhando raciocínio próximo e bastante minudente, razão pela qual se faz conve­niente a transcrição, Judith Martins-Costa explica o seguinte: "Ocorre que os concei­tos formados por termos indeterminados integram, sempre, a descrição do 'fato' em exame com vistas à aplicação do direito. Embora permitam, por sua vagueza semân­tica, abertura às mudanças de valorações (inclusive as valorações semânticas) - de­vendo, por isso, o aplicador do direito averiguar quais são as conotações adequadas e as concepções éticas efetivamente vigentes, de modo a determiná-los in concreto de forma apta - , a verdade é que, por se integrarem na descrição do fato, a liberdade do aplicador se exaure na fixação da premissa. Por essa razão, 'uma vez estabelecida, in concreto, a coincidência ou a não-coincidência entre o acontecimento real e o mode­lo normativo, a solução estará, por assim dizer, predeterminada'" [citando Barbosa Moreira]. O caso é, pois, de subsunção. Não haverá, aí, "criação do direito" por parte do juiz, mas apenas interpretação. Já por aí se percebe que, inobstante conter a cláu­sula geral, em regra, termos indeterminados, tais como os conceitos de que ora se trata (alguns destes conceitos indeterminados podendo indicar também princípios), a coincidência não é perfeita, pois a cláusula geral exige que o juiz concorra ativamen­te para a formulação da norma. Enquanto nos conceitos indeterminados o juiz se li­mita a reportar ao fato concreto o elemento (vago) indicado na fattispecie (devendo, pois, individuar os confins da hipótese abstratamente posta, cujos efeitos já foram predeterminados legislativamente), na cláusula geral a operação intelectiva do juiz é mais complexa. Este deverá, além de averiguar a possibilidade de subsunção de uma série de casos-limite na fattispecie, averiguar a exata individuação das mutáveis regras sociais às quais o envia a metanorma jurídica. Deverá, por fim, determinar também quais são os efeitos incidentes ao caso concreto, ou, se estes já vierem indicados, qual a graduação que lhes será conferida no caso concreto, à vista das possíveis soluções existentes no sistema". (A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obriga-cional. São Paulo, RT, 1999, p.326-7 - grifos no original)

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passível de ser delineado abstratamente, fazendo-se necessária a apreciação do ca­so concreto. É b o m que assim o seja, pois se contempla, em detrimento de uma regra fechada, u m a solução flexível, conferindo mobilidade ao sistema civil. Au­menta-se, assim, a eficácia de tais instrumentos para atingir seus fins específicos, na exata medida em que se lhes confere a possibilidade de incidência sobre diversas situações concretas, não previstas exaustiva e casuisticamente na lei, ab­sorvendo as peculiaridades que cada caso apresenta, conforme os reclames da finalidade social do dispositivo.

Essa tessitura aberta do Código Civil/2002, no que concerne, especificamen­te, à expropriação privada do art. 1.228, parágrafo 4 o , e às hipóteses especiais de usucapião dos arts. 1.238, parágrafo único, e 1.242, parágrafo único, que alber­gam posse qualificada, em razão de sua destinação social intensificada, conduz à ilação de que o papel do juiz de primeira instância e a fase probatória do proces­so possuem importância capital para a verificação da configuração de uma posse qualificada.

A posse dita qualificada, em razão da intensidade de sua destinação social e econômica, representa um interesse que diz respeito a toda coletividade, pois é cer­to que a esta interessa que se dêem às coisas uma utilização que as faça cumprir, da maneira mais ativa possível, sua função social. A consagração legal da posse quali­ficada, portanto, é u m estímulo à posse e ao uso das coisas, visando o progresso.

Nesse prisma, não é equivocado perceber que a propriedade, cotejada sob a ótica da função social, possui uma vertente institucional, na qual deve ser levada em consideração a sociedade como u m todo.

A demonstração da posse qualificada, entretanto, é matéria de fato comple­xa, uma vez que são diversos os pontos a serem apreciados a fim de se verificar a subsunção do caso concreto às hipóteses legais.

Destarte, não pode o papel do juiz restringir-se à verificação e valoração dos elementos carreados aos autos, em estrita vinculação ao princípio dispositivo.

Tradicionalmente, sempre houve u m apego exacerbado a tal princípio, sob a orientação de que não deve o juiz, como sujeito imparcial da relação processual, assumir a tarefa da investigação dos fatos, cabendo às partes a iniciativa para a demonstração dos fatos que dão sustentáculo a seus direitos.

Ocorre, todavia, que dois aspectos importantes podem ser declinados, a fim de demonstrar a nocividade do apego cego àquele princípio. Em primeiro lugar, constata-se u m interesse social ingente em torno da posse, a qual, por envolver as circunstâncias alçadas a patamar legal, é chamada de qualificada, tanto é que, em virtude de sua destinação social intensificada, constitui-se em vetor facilitado para

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a aquisição da propr iedade . Ass im , interessa à colet iv idade ( i nde te rminada ) , c o ­m o u m interesse di fuso, que a propr iedade esteja atrelada a u m a posse de desta­que , a f i m de que a sua função social seja sobrelevada.

E m segundo lugar, e m razão de a posse qual i f icada ve icular diversos e le ­mentos conceituais imprec isos, à guisa de conceitos jur íd icos indeterminados , o ju iz deve ter u m a part ic ipação mais ativa no processo. A alegação, po r certo, i n ­c u m b e apenas à parte , mas , cons iderando a inexistência de predeterminação dos conceitos, deve o ju iz dir ig ir mater ia lmente o processo, 4 c o m o intu i to de perqui-r i r se o quadro fático do l it ígio deduzido e m juízo amolda-se à previsão abstrata da posse qual i f icada. C o n v é m registrar que , c o m o são diversos os elementos que p o d e m servir para a prova de u m a posse qual i f icada, b e m c o m o c u m p r e ao ju iz preencher o espaço va lo ra t i vo da n o r m a , não p o d e o m e s m o f icar i m p e d i d o de de te rmina r as provas necessárias à fo rmação de sua conv icção ; ao contrár io , deve perseguir, e m pro l do interesse difuso que é envolto pela posse qualif icada, a cons ­t rução do escorço fático do caso concreto.

A determinação de diligências c o m vistas a robustecer o mater ia l probatór io , c o m o b e m adverte J o a n P i co I Junoy, " não significa tomar part ido e m favor de u m a das partes, u m a vez que, antes do resultado da at iv idade probatória, não se sabe, ainda, a q u e m ela beneficiará o u prejudicará". 5 Ta l assertiva t e m especial ap l i ­cação para os casos de posse qual if icada pela destinação social, porquanto , a f u n ­ção social da posse, assim c o m o a da propr iedade, exige, a l ém de condutas pos i t i ­vas, a abstenção de práticas tidas como nocivas pelo legislador. C o m efeito, decorre do parágrafo I o do art. 1.228 que as finalidades econômicas e sociais da p ropr ie ­dade estão atreladas à preservação da flora, da fauna, das belezas naturais, do equ i ­l íbr io ecológico e do pa t r imôn io histórico e artístico, b e m c o m o à abstenção da poluição do ar e das águas. A não-observância das diretrizes do disposit ivo e m

4 O sempre lembrado jurista italiano Mauro Cappelletti, conforme explicita LOPES, João Batista, ao tratar da direção material do processo, assevera o seguinte: "a) o prin­cípio dispositivo, em sua moderna configuração, significa apenas que a iniciativa das alegações e dos pedidos incumbe às partes, não ao juiz; b) a iniciativa das provas não é privativa das partes, podendo o juiz determinar as diligências necessárias à integral apuração dos fatos; c) o juiz, a par das funções próprias de diretor formal do proces­so, exerce um poder de intervenção, de solicitação, de estímulo no sentido de permi­tir que as partes esclareçam suas alegações e petições, a fim de ser assegurado um critério de igualdade substancial delas". (A prova no direito processual civil. São Paulo, RT, 2000, p.66)

5 Ibidem, p.68.

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foco infirma o reconhecimento da destinação social da propriedade, 6 a fim de con­figurar-se a posse qualificada, com todas as benesses dela decorrente.

2. PROCEDIMENTO RELATIVO À EXPROPRIAÇÃO PRIVADA E À USUCAPIÃO: REGISTRO DA PROPRIEDADE PARA EFEITOS ERGA OMNES

Pretendemos abordar, neste ponto, uma questão relevante a qual envolve o procedimento relativo à expropriação privada e à usucapião em suas diversas modalidades.

No caso da expropriação privada, prevista no art. 1.228, parágrafo 4 o , é inconteste que a não- observância do parágrafo I o do mesmo artigo impede a caracterização da hipóte­se de obras e serviços de interesse social e econômico relevante, necessária à concretiza­ção da situação de posse capaz de derribar a propriedade. Ora, verificando o juiz que os possuidores aos quais alude aquele parágrafo 4 o , apesar de haverem desenvolvido uma atividade econômica no imóvel, estão, com o seu trabalho, causando, por exemplo, ina­ceitável degradação ambiental, seria equivocado entender que a sua posse estaria aten­dendo a um interesse social relevante. É mister, portanto, haver a compatibilidade da situação concreta com os desígnios do parágrafo I o do art. 1.228. No entanto, nos casos de posse qualificada para fins de redução do prazo de usucapião, a solução é um pouco distinta. O art. 1.238, que trata da usucapião extraordinária, estipula, em seu parágrafo único, que o prazo será reduzido se houver a fixação de moradia habitual no imóvel ou a existência de obras ou serviços de caráter produtivo. Podemos, assim, dividir em duas as possibilidades de redução de prazo. Na primeira hipótese, o simples estabelecimento de moradia habitual no imóvel pelo possuidor já é o bastante para conduzir à diminui­ção do prazo para a concretização da usucapião, parecendo despiciendo perquirir acer­ca do cumprimento das diretrizes do parágrafo I o do art. 1.228. Na segunda hipótese, entretanto, que trata da existência de obras ou serviços de caráter produtivo, afigura-se-nos que esse tipo de caráter deve ser aferido sob a ótica coletiva, e não sob a individual. Vale dizer que cumpre aferir se há proveito para a sociedade com as obras ou serviços realizados, os quais, então, devem estar em consonância com os ditames do parágrafo I o

do art. 1.228. Ora, a causação de danos à coletividade, mercê de violação dos valores de cunho social consagrados no parágrafo I o do art. 1.228, não pode ser relevada, a fim de premiar o possuidor que realizou obras ou serviços no imóvel que tragam benefícios a si com a diminuição do prazo para a consecução da usucapião. Veja-se que, quanto à usucapião ordinária, o parágrafo único do art. 1.242 prevê, como segunda hipótese de diminuição do prazo, ao lado da hipótese de estabelecimento de moradia, a realização de investimentos (que podem ser obras ou serviços) de interesse social e econômico. É manifesta, neste caso, a necessidade de observância das diretrizes do parágrafo I o do art. 1.228. O fato de o legislador não ter sido explícito no parágrafo único do art. 1.238, como o foi no parágrafo único do art. 1.242, não significa que houve deliberada inten­ção em se prescindir do caráter social na hipótese daquele dispositivo, pois seria iníquo

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De início, quanto à expropriação privada, cumpre frisar que, apesar da reda­ção do art. 1.228, parágrafo 4 o ("se o imóvel reivindicando..."), a qual induz, em uma primeira leitura, a não-autorização da propositura de ação com o objetivo de privar o proprietário de bem imóvel em razão da configuração do escorço fático previsto abstratamente naquela norma, não se poderia restringir sua invo­cação apenas como matéria de defesa, admitindo-se, também, o oferecimento de ação tendente a fazer valer o direito subjetivo daqueles cuja situação fática se enquadre na hipótese normativa.

No que toca à usucapião, u m aspecto incontroverso que não pode ser olvi­dado é a possibilidade de a mesma ser alegada não apenas no âmbito do pedido principal de uma ação de natureza declaratória movida pelo interessado no seu reconhecimento, mas também, incidentalmente, como matéria de defesa em ação dominial, sendo certo que a usucapião consuma-se independente de sentença. 7 , 8

Assim procedendo-se, a existência ou não da usucapião, mediante a verificação, na ação dominial, dos requisitos de direito material para sua concretização, cons-tituir-se-á em questão prejudicial, com base na qual dependerá o mérito da lide dominial.

No primeiro caso, no qual a usucapião é alegada em ação própria, dúvidas não há quanto à força da sentença declaratória que a reconhece, revestindo-a

desprezar o cumprimento de diretrizes sociais no caso de usucapião extraordinária e exigi-las para a usucapião ordinária (para efeitos de redução de prazo).

7 Com efeito, dita a Súmula n. 237 do E. STF: "O usucapião pode ser argüido em defesa". 8 A usucapião opera-se tão logo estejam preenchidos os requisitos legais para tanto. É

por tal razão, como leciona a doutrina, que a sentença proferida em ações de usuca­pião tem natureza declaratória. A aferição da ocorrência empírica de tais requisitos, entretanto, depende de necessário processo judicial. Por essa razão, possível aduzir que o domínio constitui-se originariamente em favor do usucapiente por força dos ele­mentos de direito material que compõem a usucapião. A sentença de usucapião apenas declara o perfazimento da usucapião e do domínio, ocorrido em momento anterior. Nesse sentido, pontuam PINTO, Nelson Luiz e ARRUDA ALVIM, Teresa: "O usuca­piente, na ação de usucapião, não visa a tornar-se proprietário da coisa com a senten­ça; na realidade ele já terá adquirido a propriedade, desde que completou o lapso tem­poral exigido por lei, pleiteando, na ação de usucapião, sentença declaratória desse domínio, para fins de registro no Cartório de Registro de Imóveis competente. Prova disto é a possibilidade de alegação do usucapião em defesa, em relação à pretensão reivindicatória do antigo proprietário, mesmo sem sentença judicial que o tenha pre­viamente declarado, pois, de fato, o bem já pertencia ao usucapiente". (Repertório de jurisprudência e doutrina sobre usucapião. São Paulo, RT, 1992, p.38)

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com o manto da coisa julgada e propiciando, por conseguinte, o registro da pro­priedade no cartório de imóveis, o qual terá eficácia erga omnes.

Entretanto, no que concerne à usucapião alegada como matéria de defesa, a solução merece algumas ponderações (as quais serão consideradas, oportunamen­te, em relação à expropriação privada). Qual será a eficácia de uma sentença que, acolhendo a exceção de usucapião levantada pelo réu, julgar improcedente o pedido veiculado na ação reivindicatória do autor? Valerá a sentença como títu­lo para o devido registro imobiliário?

A questão exige a análise dos dispositivos legais pertinentes. O art. 13 da Lei n. 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) dispõe o seguinte:

Art. 13. A usucapião especial de imóvel urbano poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para registro no cartório de registro de imóveis.

No mesmo sentido, a Lei n. 6.969/1981, ao tratar da usucapião especial rural, estatui, em seu art. 7 o , que "a usucapião especial poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para trans­crição no registro de imóveis". De outra parte, anteriormente ao novo Código Ci­vil, não se vislumbravam, no que tange às usucapiões ordinária e extraordinária, disposições semelhantes àquelas apontadas para as modalidades de usucapião especial, estabelecendo expressamente que, decididas como matéria de defesa, poderia a respectiva sentença servir de título para a transcrição no RGI. Portan­to, a doutr ina, em face de tal constatação, era uníssona em afirmar que as usuca­piões ordinária e extraordinária, quando aduzidas em defesa, não eram revesti­das pela coisa julgada para fins de autorizar o registro da sentença favorável ao réu no Registro Geral, a fim de produzir os devidos efeitos erga omnes.

Ocorre, porém, que, se em um primeiro momento cingia-se a possibilidade de registrar a sentença que reconhece usucapião alegada como matéria de defesa às usucapiões especiais urbana e rural, atualmente, com o advento do novo Có­digo Civil, o cenário legal encontra-se t ransmudado, tendo aquela possibilidade sido estendida a todas as modalidades de usucapião. Nesse sentido, é cristalina a regra presente no art. 1.241 9 , 1 0 do mencionado Codex.

9 Art. 1.241. Poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel. Parágrafo único. A declaração obtida na forma deste artigo constituirá título hábil para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

1 0 Não se alegue que a previsão referente ao registro no Cartório de Registro de Imóveis restringe-se às usucapiões alegadas como matéria nodal de ação declaratória. O artigo,

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Dito isso, fixando a assertiva de que a usucapião alegada em matéria de de­fesa e declarada pelo juiz, qualquer que seja a modalidade, enseja a formação de título hábil para o registro no Cartório de Imóveis, cumpre examinar como deve ser o procedimento para se alcançar u m título que, pelo seu efeito erga omnes, seja passível de registro.

Nesse diapasão, convém atentar para as disposições veiculadas nos regramen-tos da ação de procedimento especial de usucapião de terras particulares - aplicá­veis às ações declaratórias de usucapião ordinária e extraordinária - pelas quais, conforme os arts. 942 e 943 do CPC, o autor da ação de usucapião deverá reque­rer "a citação daquele em cujo nome estiver registrado o imóvel usucapiendo, bem como dos confinantes 1 1 e, por edital, dos réus em lugar incerto e dos even­tuais interessados" e, ainda, a intimação, por via postal, para que manifestem in­teresse na causa, "os representantes da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios".

Cumpre notar, de outra forma, que a usucapião especial rural e a urbana devem observar, além das regras procedimentais específicas contidas nas respec­tivas legislações, o procedimento sumário, 1 2 e não aquele procedimento especial previsto no CPC, nos arts. 941 a 945. Nada obstante, aquele procedimento de necessária comunicação de todos os interessados para intervir na ação de usuca­pião de terras particulares está positivado, também, na Lei n. 6.969/1981, nos parágrafos de seu art. 5 o , devendo ser, portanto, observado na usucapião especial rural. Contudo, não há disposições semelhantes no Estatuto da Cidade quanto à usucapião especial urbana.

sem antecedente no Código Civil/1916, foi inserido justamente para propiciar tal possibilidade de registro às usucapiões ordinária e extraordinária, visto que não havia justificativa plausível para o tratamento legal diferenciado das usucapiões especiais, ra­zão pela qual é de se admitir ter andado bem o legislador com a previsão do art. 1.241 do Código Civil/2002. Por outro lado, se fosse o objetivo do legislador realizar a restrição mencionada acima, teria consignado limitação legal, tal como o fizera em relação à expropriação privada, no art. 1.228, parágrafo 4 o , restringindo-a, ainda que implicitamente, à alegação em sede de defesa ("o proprietário também pode ser pri­vado da coisa se o imóvel reivindicando!...]").

1 1 Com base em tal dispositivo, consolidou o Pretório Excelso a Súmula n. 391: "O con-finante certo deve ser citado, pessoalmente, para a ação de usucapião".

1 2 Estatuto da Cidade, art. 14. "Na ação judicial de usucapião especial de imóvel urba­no, o rito processual a ser observado é o sumário". Lei n. 6.969/1981, art. 5 o . "Adotar-se-á, na ação de usucapião especial, o procedimen­to sumaríssimo, assegurada a preferência à sua instrução e julgamento".

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Tais disposições, ao que nos parece, são de extrema importância, sendo ine­rentes ao processamento da usucapião, quando se quiser conferir à sentença de­corrente, a força necessária para valer como título para inscrição no registro de imóveis. Em outros termos, a concretização do direito real, por meio de seu regis­tro, para que possa valer contra todos, pressupõe o reconhecimento da usucapião através de u m processo no qual seja assegurada a participação de todos os inte­ressados.

Temos, entretanto, que esse procedimento de ampla convocação, pelo qual se impõe a citação dos confinantes do imóvel e dos terceiros interessados, bem como a intimação das pessoas políticas, está expressamente previsto apenas para as ações declaratórias de usucapião ordinário, extraordinário e especial rural. Não há pre­visão nem para a usucapião especial urbana nem tampouco para os casos de usu­capião alegada como matéria de defesa, qualquer que seja a modalidade, embora seu reconhecimento enseje a transcrição do título constituído com a sentença no Cartório de Registro de Imóveis, como visto (art. 1.241 do Código Civil/2002).

Em relação à ação declaratória que visa a reconhecer uma usucapião especial urbana, apesar de não estar adstrita à observância do procedimento especial pre­visto nos arts. 941 a 945 do CPC, nem tampouco haver no Estatuto da Cidade disposição acerca das pessoas que devem ser citadas/intimadas (com exceção do Ministério Público, cuja intervenção obrigatória é prevista para todas as moda­lidades de usucapião), fica fácil perceber que é necessário adaptar o seu procedi­mento para a ampla convocação, tal como ocorre com as outras modalidades de usucapião. Seria ilógico entender que a citação dos confinantes e dos interessados e a intimação daquelas pessoas jurídicas de direito público restringir-se-ia àque­les casos de usucapião em relação aos quais há expressa previsão legal nesse sen­tido, pois é certo que a ratio legis subjacente a tais previsões também está presente na usucapião especial urbana.

No que tange à usucapião alegada como matéria de defesa, a questão é mais delicada, não havendo, como já salientado, positivação de disposições específicas acerca do procedimento. 1 3

1 3 Assim, apesar da previsão do art. 1.241 do Código Civil, pelo qual, como salientado, pode o possuidor requerer ao juiz que seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel, para o devido registro em cartório, vislumbra-se, em flagran­te contramão ao vetor da operabilidade norteador do Código, certa dificuldade na aplicação do dispositivo, sobretudo nesses casos de usucapião alegada em matéria de defesa, como se irá explicitar.

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Ora, como é exposto pela doutrina, a usucapião é uma forma originária de aquisição, 1 4 de m o d o que eventuais vícios ou ônus que recaiam no título anterior não são transferidos ao novo título, o qual se forma sem vinculação alguma ao an­terior. De igual sorte, o direito real reconhecido pela sentença, uma vez registra­do no cartório pertinente, terá eficácia erga omnes, podendo ser oposto a todos, inclusive aos que não participaram do processo.

Decorre de tal constatação que se faz necessário, como contraposição lógica aos efeitos de uma sentença que reconhece a usucapião e que possibilite o regis­tro do direito real originário para valer contra todos, que sejam observadas certas regras a fim de preservar o direito de terceiros, os quais podem ser afetados pelo registro do direito real. A magnitude do efeito erga omnes e, principalmente, a au­sência de limitações ao direito real usucapido, por derivar de forma originária de aquisição, impõem que o processo de reconhecimento da usucapião seja molda­do de forma a se adequar a tais efeitos — em sincronia com o princípio da adap-tabilidade. Sem o devido oportunismo de participação dos potenciais interessa­dos na usucapião, sustentamos restar infirmada a possibilidade de registro da sentença, para valer contra todos.

O fato de não se observar essa exigência, abrir-se-ia ensejo não só aos mais diversos prejuízos a terceiros, com manifesta violação a direitos garantidos cons­titucionalmente, como também a inúmeras fraudes.

É fácil verificar a exatidão de tal asserção com simples exemplos: "A" move ação reivindicatória em face de "B" que, como defesa, alega a existência de usucapião especial. A sentença julga improcedente a pretensão de "A", por reconhecer a usu­capião de "B", que se vale da mesma para o registro de sua propriedade. Após o registro e o trânsito em julgado da sentença, um terceiro, "C", verifica que parte da área reconhecida pela decisão judicial como usucapida por "B" seria, na verdade, de sua propriedade, e não de "A". Nessa hipótese, temos que esse terceiro sairá prejudicado, pois o seu título de propriedade não poderá desconstituir o título

Essa característica da usucapião guarda sua importância no estudo do instituto, uma vez serem peculiares as conseqüências dela advindas. A forma originária de aquisição contrapõe-se à forma derivada de aquisição, por se constituir em causa autônoma com força suficiente para conduzir à titularidade do direito. A forma derivada de aquisição, por sua vez, é aquela na qual a causa que atribui o direito vincula-se a um título ante­rior. A origem da usucapião decorre da própria relação direta entre o sujeito e a coisa sujeita à usucapião, por isso que é uma forma originária de aquisição. Nesse sentido, explica consoante FERREIRA, Durval que "a aquisição por usucapião é originária. A sua fonte, a sua gênese é a posse. É esta que faz gerar o direito: com título, sem título ou, até, contra um título de terceiro". (Posse e usucapião. Coimbra, Almedina, 2002, p.446)

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de propriedade originariamente adquirida de "B". Sobressai, de forma evidente, a possibilidade de haver a privação da propriedade sem o devido processo legal, em frontal transgressão à Constituição Federal.

De igual sorte, não ficaria afastada a possibilidade de conluio entre as par­tes para, mediante a simulação de uma lide reivindicatória, com a argüição de usu­capião especial como defesa, obter-se uma sentença passível de registro, a qual reconhece a usucapião de uma área tal que abranja, em verdade, por malícia das partes, domínios de pessoas alheias ao processo, as quais apenas posteriormente - depois do trânsito em julgado e do registro da propriedade - terão conheci­mento da privação de sua propriedade.

É importante consignar que, não é só a norma constitucional que submete a privação dos bens ao devido processo legal que poderá ser maculada em tais ca­sos, mas também a que confere a não sujeição da propriedade pública à usuca­pião, porquanto é plenamente plausível que em uma ação reivindicatória, na qual se alegue usucapião como defesa, a sentença venha a reconhecer esse direito do réu sobre áreas que, na verdade, pertencem ao Poder Público, uma vez que este não teria a oportunidade de se manifestar no processo. 1 5

Direitos reais de garantia, como a hipoteca, também poderiam simplesmen­te desvanecer com o acolhimento de usucapião alegado como defesa em ação rei­vindicatória (que poderia ser movida tendo como finalidade oculta a fraude), na qual o desenlace da lide restringiu-se às partes, sem a possibilidade de conheci­mento de terceiros, malgrado a possibilidade de registro da declaração obtida na forma do art. 1.241 do Código Civil.

Diante dessas considerações, é forçoso convir que o procedimento no qual se alega usucapião como matéria de defesa precisa ser adaptado para se adequar aos efeitos erga omnes do reconhecimento daquela, sob pena de não se chegar a uma sentença que tenha força para servir de título para transcrição no registro de imóveis.

Em nosso entender, portanto, a usucapião alegada em matéria de defesa e acolhida pela sentença, nos termos do art. 1.241 do Código Civil/2002, do art. 7 o

da Lei n. 6.969/1981 e do art. 13 da Lei n. 10.257/2001, para que possa dar ense­jo ao registro do direito real, deve ser reconhecida com a observância do devido processo legal.

É por tal razão que "a falta de comunicação das Fazendas Públicas acarretará a nuli­dade do processo de usucapião, não podendo nunca ser dispensada". (PINTO, Nelson Luiz; ARRUDA ALVIM, Teresa. Op. cit., p.57)

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C o n v é m salientar, ainda, que há na doutr ina certa resistência quanto à dispo­sição expressa na Le i n. 6.969/1981, a qual prevê que a sentença que acolhe usuca­p ião alegada c o m o matér ia de defesa servirá de t í tulo para a transcr ição n o regis­tro de imóve is , resistência que, pelos seus fundamentos , pode ser estendida às disposições semelhantes n o Estatuto da C idade e n o Cód igo Civi l/2002. A a m p l i ­tude e os efeitos de tais disposições causaram essa resistência justamente pelo fato de que não há previsão de adaptação do proced imento n o qua l se alega u s u ­capião c o m o defesa. 1 6 A s s i m , c o m o a ação de usucapião é intentada contra a co le ­t iv idade, u m a vez que devem ser citados não só aqueles e m cujos nomes esteja transcr i to o imóve l usucap iendo, mas t a m b é m os conf inantes, e, po r edital , os réus ausentes, incertos e desconhecidos, b e m c o m o as Fazendas Públ icas ( F e d e ­ra l , Es tadua l e M u n i c i p a l ) , é quest ionável a extensão da coisa ju lgada mater ia l de u m a sentença que acolhe usucapião invocada c o m o matér ia de defesa para aque ­las pessoas anter io rmente referidas, as quais, por não terem sido citadas n e m cientif icadas, não pa r t i c ipa ram do feito. A o se pe rmi t i r essa ampl i tude , sem as devidas adaptações, macula-se o direito de propr iedade e a regra que põe a res ­guardo da usucapião os bens públ icos.

N o entanto, caso haja a adaptação do proced imento , c o m o defendemos, para que lhe seja confer ida a ampla convocação, tal c o m o ocorre quando se p r e ­tende o reconhec imento da usucapião v i a ação declaratór ia, não se v is lumbra-

1 6 Nesse sentido, contestando o alcance do art. 7 o da Lei n. 6.969/1981, que permite ex­pressamente o registro da sentença que acolhe usucapião especial rural argüido como matéria de defesa, SALLES, José Carlos de Moraes defende o seguinte: "Do ponto de vista processual, isto será absolutamente inadmissível e, tal sentença, ainda que regis­trada com apoio no art. 7° da Lei 6.969/81, não poderá ferir direitos que os não cita­dos ou não cientificados possam ter com relação ao imóvel objeto da ação reivindi­catória, em que o usucapião especial for invocado em defesa e acolhido. Em resumo, portanto, entendemos: I o ) que a sentença a que se refere o art. 7 o da Lei 6.969/81 só tem eficácia de coisa julgada material no tocante aos que foram partes no processo; 2°) que tal sentença não é oponível aos confinantes nem a terceiros que não tenham sido citados nem cientificados, porque, quanto a estas pessoas, não se opera a coisa julgada material, tendo elas o acesso à via judicial adequada para a defesa de seus direitos, porventura feridos pelo registro levado a efeito nos termos do art. 7.° da Lei 6.969/81; 3 o) o registro realizado de acordo com o disposto no art. 7.° da Lei 6.969/81 só terá eficácia contra o titular do registro anterior, se este tiver sido o autor da ação em que foi acolhido o usucapião especial alegado em defesa". (Usucapião de bens imó­veis e móveis. 2.ed. rev., São Paulo, RT, 1992, p.295)

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riam maiores óbices ao registro do direito real adquirido via usucapião, invocado como matéria de defesa. 1 7 , 1 8

Voltando, neste ponto, após as considerações anteriormentes citadas acerca da usucapião, ao cotejo da expropriação privada prevista no art. 1.228, parágrafo 4 o , do Código Civil/2002, temos que a mesma constitui-se, também, em uma forma de aquisição originária. Com efeito, a origem do título de propriedade advindo da apli­cação da figura do art. 1.228, parágrafo 4 o , advém da própria relação direta entre os sujeitos e a coisa, não guardando nenhuma vinculação com o título anterior.

Assim sendo, de igual forma, caso seja argüida a expropriação privada em uma ação reivindicatória, ou, mesmo que seja proposta uma ação com o fito de se albergar o direito subjetivo dos possuidores na situação descrita no dispositivo legal próprio, urge resguardar os interesses de terceiros contra o título originário que poderá ser constituído com a sentença, realizando-se a citação dos confinan­tes, dos réus incertos e a intimação das Fazendas Públicas. O parágrafo 5 o do art. 1.228 prevê que a sentença que reconhece a expropriação privada vale como títu­lo para o registro do imóvel em nome dos possuidores. Portanto, as considera-

Em consonância com tal raciocínio, afirma PINTO, Nelson Luiz: "Alegado o usucapião constitucional em defesa, parece-nos que necessariamente deverão aplicar-se ao pro­cesso os §§ 1°, 2 o , 3 o e 5 o do art. 5 o da Lei 6.969/81, a fim de que a sentença que de­clarar o domínio da usucapiente possa ser registrada no Registro de Imóveis". (Ação de usucapião. 2.ed. São Paulo, RT, 1991) Os dispositivos apontados pelo autor referem-se ao dito procedimento de ampla convocação. O mesmo autor, em obra em co-autoria com ARRUDA ALVIM, Teresa, no mesmo sentido aduz: "Devemos, ainda, salientar que, tratando-se de usucapião constitucional alegado em defesa, dada a possibilidade de reconhecimento do domínio para fins de registro nessa mesma ação, art. 7 o da Lei 6.969/81, deverá o usucapiente, no caso do réu, em sua contestação, proceder como se fora uma petição inicial, atendendo todas as exigências legais para esta, inclusive o requerimento das citações e das intimações pela lei. No caso, a única citação dispen­sável é a do proprietário, autor da ação reivindicatória, que já está fazendo parte do processo." (Op. cit., p.49). Com a nova disciplina legal carreada pelo Código Civil, como todas as modalidades de usucapião ensejam o registro, caso reconhecidas em alegação da defesa, essa exigência não mais se restringe à usucapião constitucional. O C. Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 233.067-SP, reformou o acórdão recorrido para deferir o pedido de registro da sentença que aco­lhera a usucapião especial rural alegada em defesa, dando por violado o art. 7 o da Lei n. 6.969/1981, que atribui à sentença a qualidade de título hábil para o registro no car­tório próprio. Nada obstante, não se tratou de adaptar o procedimento, a fim de que se fizesse da mesma forma quando a usucapião é matéria de ação declaratória própria para o seu reconhecimento. Ora, sendo assim, é mais fácil reconhecer a usucapião quando alegada como matéria de defesa do que quando veiculada como pedido prin­cipal de ação declaratória, caso em que urge observar a citação/intimação dos interes-

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ções tecidas acerca da usucapião t ê m plena apl icação aqu i , impondo-se a ampla

convocação a f i m de que se constitua u m t í tulo opon íve l erga omnes. Vale lembrar que na hipótese abstrata tratada no art. 1.228, parágrafo 4 o , que

veicula conceitos indeterminados como: extensa área e considerável número de pes­soas, é b e m possível que na maior ia dos casos a posse estenda-se por mais de u m a propriedade, sendo, por tal razão, de b o m alvitre possibilitar o conhecimento da ação a terceiros eventuais interessados, a f im de que resguardem seus interesses.

Po r sensatez, não se pode desconsiderar a possibi l idade de argüição de u s u ­capião e de expropriação pr ivada e m defesa apenas de, procedendo-se ao ajusta­men to do procedimento, pro longar mal ic iosamente o desenlace do feito. Para casos desse jaez, no entanto, constatada a má-fé da parte , o p róp r io sistema prevê a dev ida pun i ç ão . 1 9

É necessário lembrar , po r opo r tuno , que , a l ém dos terceiros interessados e das Fazendas Públ icas, é obrigatória a intervenção do Min is té r io Púb l i co como fis­cal da lei quando se invoca a usucapião, e m razão do interesse públ i co e da f ina ­l idade social do inst ituto.

Nesse prisma, dispõe de forma expressa o art. 944 do C P C , que na ação de usu ­capião " intervirá obrigatoriamente e m todos os atos do processo o Ministér io P ú b l i ­co", regra que é repetida pelo parágrafo 5 o do art. 5 o da Le i n. 6.969/1981. Tal obriga­toriedade deve estender-se à usucapião alegada em defesa, quando se pretende constituir título hábil ao registro da propriedade no Cartór io de Registro de Imóveis . 2 0

Conclui-se, assim, que, tanto e m relação à usucapião quanto à expropriação privada, faz-se imprescindível que o procedimento seja adequado, c o m o intuito de que, realizando-se a citação dos interessados e a int imação das Fazendas Públ icas e do Min is tér io Públ ico - enf im, conferindo-se ampla part ic ipação ao processo - a sentença que acolha tais alegações produza efeitos erga omnes e constitua título hábi l ao registro do direito real no Car tór io de Registro de Imóveis , e m harmon ia c o m os arts. 1.228, parágrafo 5 o , e 1.241, parágrafo único, do Código C i v i l .

sados e das Fazendas Públicas. Não se olvidando, também, dos problemas passíveis de ocorrência, consoante apontados no texto. É por tais razões que a adequação do pro­cedimento é medida que se impõe.

1 9 Conforme tratamento dado pelo CPC à litigância de má-fé, em seus arts. 16 a 18. 2 0 Conforme lições de PINTO, Nelson Luiz e ARRUDA ALVIM, Teresa, em data anterior à

novel disciplina legal do instituto, "será, entretanto, desnecessária a intervenção do Ministério Público, nos casos de usucapião alegado em defesa, uma vez que a sentença não declarará o domínio, por se tratar de matéria que será discutida incidenter tantum, exceto, evidentemente, no caso de usucapião constitucional alegado em defesa, onde a inter­venção se torna obrigatória em razão do caráter dúplice da ação". (Op. cit., p.60, g. n.)

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E X E M P L O D E L I T I S C O N S O R X E NECESSÁR IO-S IMPLES : D E S A P R O P R I A Ç Ã O E O D I R E I T O D E S U P E R F Í C I E (ART. 1 .376)

R O D R I G O MAZZEI*

Sumário 1. Do direito de superfície. 2. Da ação de desapropriação e o direito de superfície (art. 1.376). 3. Fixação do mo­mento neutro. 4. A ação de desapropriação e a forma­ção do litisconsórcio passivo. 5. Conclusão. Referências bibliográficas.

1. DO DIREITO DE SUPERFÍCIE

A superfície é u m direito de fruição sobre coisa alheia, em que se excepcio­na o princípio de que o acessório acompanha o principal, já que a lei concede direito real em favor de quem constrói ou planta - mediante prévio acordo - em imóvel alheio. 1 Essa divisão de direitos de ordem real - que, para configurar-se en-

Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e do Instituto Capixaba de Estudos (ICE). Advogado. Vice-presidente do Instituto dos Advogados do Estado do Espí­rito Santo (IAEES). Mestrando na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Em resenha, consagrado como direito real sobre a coisa alheia, o direito de superfície representa atenuação do princípio romano superfície solo cedit, traduzido nas regras da acessão imobiliária, segundo a qual tudo que fosse edificado sobre o solo a ele se agregaria e passaria a pertencer exclusivamente ao seu proprietário. Em bom concei­to, Ricardo Pereira Lira define o instituto como "o direito real sobre coisa alheia, autô­nomo, temporário ou perpétuo, de fazer uma plantação ou construção sobre ou sob o solo alheio, ficando a construção ou plantação da propriedade de quem constrói ou planta, bem como o direito de manter essa propriedade sobre o solo alheio" (O direito

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EXEMPLO DE LITISCONSORTE NECESSÁRIO-SIMPLES 431

quanto tal, exige que a avença seja efetuada por instrumento público com regis­tro no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.369, infine2)3 - acaba por receber aplicação relevante no art. 1.376," objeto deste texto que, em céleres linhas, tencio-na analisar o litisconsórcio passivo que será formado em caso de desapropriação judicial que alcance o imóvel e a concessão superficiária.

2. DA AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO E 0 DIREITO DE SUPERFÍCIE (ART. 1.376)

O art. 1.376 do Código Civil prevê que, em caso de desapropriação, a inde­nização caberá a cada uma das partes da relação superficiária (proprietário/con-

de superfície e o novo Código Civil. In: ARRUDA ALVIM; CERQUEIRA CÉSAR, Joaquim Portes de; ROSAS, Roberto (orgs.), Aspectos controvertidos do novo Código Civil: escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves-, p.542). Vale fa­zer apenas uma ressalva na conceituação estampada, pois, apesar de o direito estran­geiro admitir a superfície perpétua - como ocorre em Portugal (Código Civil luso, art. 1.524) - , no Brasil as concessões não podem ser perpétuas, em vista do dispos­to no art. 1.369 do Código Civil, que somente admite avenças superficiárias por pra­zo determinado. O Estatuto da Cidade também não abriga o direito de superfície perpétuo, nada obstante o seu art. 21 tenha regulação um pouco diversa do art. 1.369 da codificação civil, com a admissão de concessão por prazo indeterminado. Contu­do, não se pode compreender perpetuidade e prazo indeterminado como idênticas situações, até mesmo diante dos comandos da função social da propriedade e do contrato. Art. 1.369. O proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. O simples instrumento público, sem o registro no Registro Geral de Imóveis, terá ape­nas eficácia relativa, e não absoluta, como direito real. Nesse sentido, colhe-se conclu­são do 3 o Seminário de Estudos sobre o Novo Código Civil, deflagrado pelo Tribunal de Alçada de Minas Gerais, em 2002, nos seguintes termos: "O contrato que der ori­gem ao direito de superfície somente gera efeitos pessoais entre as partes. A eficácia de direito real só é obtida com o registro imobiliário". (Seminário de estudos sobre o novo Código Civil. Disponível em: http://www.tjmg. gov.br/ ejef/seminario/novo_codi-go_civil.html; acesso em: 21/6/2005) Como não há dispositivo semelhante no Estatuto da Cidade, não há sequer como se cogitar em antinomia, devendo ser aplicado indistintamente o art. 1.376 do Código Civil, em caso de desapropriação que afete à concessão superficiária, pouco importan­do ser a superfície urbana.

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432 RODRIGO MAZZEI

cedente e superf ic iár io/concessionár io) , n o va lo r correspondente ao seu direito, c o n f o r m e redação codif icada:

Art. 1.376. No caso de extinção do direito de superfície em conseqüência de desapro­priação, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor corresponden­te ao direito real de cada um.

Note-se que a redação singela do art. 1.376 nos remete à falsa idéia de que a análise para a divisão estará v incu lada apenas ao va lor dos implantes e do solo, a f i m de se obter, p roporc iona lmente , o quantum do direi to real de cada u m . Dessa f o rma , antes de adentrar na questão do l i t isconsórcio passivo que terá de ser for ­m a d o , mister se faz observar que a s impl ic idade do artigo pode causar embaraço na sua apl icação concreta.

3. FIXAÇÃO DO MOMENTO NEUTRO

A leitura atenta demonstra que o art. 1.376 leva e m conta o momento neutro da concessão, o u seja, u m determinado pon to t empora l no qual as partes se e n c o n ­t r a m e m igualdade. En t re tanto , n e m sempre estarão as partes no posto de e q u i ­l íb r io cont ra tua l p resumido neste artigo. Explica-se:

Nada obsta que a desapropriação venha a ocorrer ao final do contrato, quando o proprietário estava prestes a incorporar no seu patrimônio os implantes (art. 1.375).5

No inverso, imagine-se situação inicial da concessão, em que o superficiário já tives­se resgatado integralmente o solarium ao proprietário, mas houvesse apenas par­cialmente iniciado o implante de uma obra. Nessas condições, a interpretação do art. 1.376 é mais complexa do que aparenta, devendo ser levado em conta também o fator temporal, 6 assim como circunstâncias peculiares de cada contrato (p. ex.: o

Art . 1.375. Extinta a concessão, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário. Daí porque concordamos com K E L E L M A K E R D E C A R L U C C I , Aída; P U E R T A D E C H A C Ó N , Alicia quando afirmam que o momento temporal em que é efetuada a desapropriação é fundamental para a fixação proporcional e distribuição da indeni­zação, valendo a citação: "La expropriación ponde la cosafuera dei comercio, por lo que es razonable la extinción de la propiedad privada. En este caso, el justiprecio que se pague deberá distribuirse entre el superficiário y el dominus soli en proporción al valor de uno y otro al tiempo de verificarse la expropriación". (Derecho real de superfície, p.60)

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EXEMPLO DE LITISCONSORTE NECESSÁRIO-SIMPLES 433

pagamento e o valor do solarium, previsão de indenização para o superficiário ao fim

da concessão) para se aferir o valor do direito real de cada um. 7

A breve consideração anter ior é suficiente para demonst ra r quão comp l i c a ­da será a apl icação concreta do art. 1.376. 8 ' 9

3.1 Autonomia da vontade. Cláusula (móvel) preventiva

C o m o fim de evitar que se caia - invo luntar iamente - e m enleio, po r me io da dif íc i l aferição para a par t i lha da indenização prevista n o art . 1.376, o m e l h o r c a m i n h o está, a nosso sentir, e m fixar-se e m prev isão na concessão - med ian te cláusula contra tua l —, desenhando c o m o se irá aferir em pecúnia o direi to de cada u m , caso a desapropr iação ocor ra e m m o m e n t o diferente da neutralidade, que é presumida n o art. 1.376.

7 Com visão próxima: ARONE, Ricardo, In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Códi­go Civil anotado, p.977; MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Novo Código Civil anotado, p.234.

8 Em termos: FIGUEIRA, Joel Dias, In: FIÚZA, Ricardo (coord.). Novo Código Civil comentado, p.l.216). A opinião de ALVES, Jones Figueiredo e DELGADO, Mário Luiz. resume a convicção da doutrina sobre o art. 1.376: "A valorização em separado da propriedade do solo e da superfície certamente trará problemas, a serem soluciona­dos pelo Judiciário". (Código Civil anotado: inovações comentadas artigo por artigo, p.698)

9 Em situações em que a incompletude do dispositivo ocasiona dúvida na sua aplicação, uma das formas de se buscar um melhor rumo está na observância da regulação da matéria no direito estrangeiro, a fim de se analisar as experiências já ocorridas em ca­sos reais. E, nessa missão, de forma intuitiva, o primeiro ordenamento que nos vem à mente é a codificação portuguesa, uma vez que o art. 1.542 do Código Civil luso tem redação muito próxima a do nosso art. 1.376 (confira-se: art. 1.542 "Extinção por expropriação. Extinguindo-se o direito de superfície em conseqüência da expropriação por utilidade pública, cabe a cada um dos titulares a parte da indemnização que corres­ponde ao valor do respectivo direito"). Ocorre que o embate sobre o art. 1.542 em Por­tugal acabou não sendo intenso, e, de um modo geral, a doutrina remete a questão para uma avaliação casuística, sem traçar parâmetros para tal. Confirmando nossa assertiva, a conhecida e popular obra de NETO, Abílio não traz qualquer anotação ao art. 1.542 (Código Civil anotado, p.l.046); LIMA, Pires de e VARELA, Antunes remetem a solução ao caso concreto, ao abordarem o art. 1.542 do Código Civil de Portugal: "Não se esta­belecem aqui nenhumas regras especiais para o problema do montante da indenização a conceder a cada um dos interessados. Tudo depende da avaliação que for feita dos dois direitos". (Código Civil anotado, v.3, p.613)

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A concessão superficiária está jungida à função social da propr iedade e do contrato. N o entanto, a sujeição a tais cláusulas gerais restritivas não impor ta abo ­l ição integral da autonomia da vontade n o âmbi to do direito de superfície. N a d a obstante existam l imitações de o rdem públ ica, os sujeitos da relação t êm trânsito e m grande parte da concessão, pois esta configura-se c o m o contrato e a autonomia da vontade estará estampada e m tópicos diversos, especialmente n o plano patri­

monial,10 naqui lo que não se afigure contrár io aos ditames indisponíve is . 1 1 ' 1 2

1 0 Tanto assim que, no que se refere à pactuação quanto aos encargos e tributos, ficou assentado no Enunciado n. 94 da I Jornada promovida pelo Centro de Estudos Judi­ciários do Conselho da Justiça Federal: "As partes têm plena liberdade para deliberar, no contrato respectivo, sobre o rateio dos encargos e tributos que incidirão sobre a área objeto da concessão do direito de superfície".

1 1 Neste sentido, GOMES, J. Miguel Lobato afirma: "[...] o novo Código Civil segue dando ao princípio da autonomia da vontade um papel central em matéria de con­tratos e de constituição de direitos reais em coisa alheia, como não podia ser menos. Além disso, seu artigo 421 reconhece expressamente a liberdade de contratar, ainda que seguidamente imponha seja exercida em razão e nos limites da função social do contrato e observando os contratantes os princípios da probidade e boa-fé. Por outra parte, o legislador chama expressamente à autonomia da vontade das partes para a delimitação do objeto de superfície, para determinação do caráter oneroso ou gratui­to do direito, para afixação da forma de pagamento da contraprestação, para a trans­missão do direito ou, enfim, para a previsão de indenização em favor do superficiário para compensar a reversão legal do construído ou plantado. Porém, não são estas as únicas possibilidades que se apresentam para que as partes possam estabelecer pac­tos e acordos, mas sim em virtude do princípio da autonomia da vontade podem esta­belecer as convenções que tenham por conveniente sempre que não sejam contrárias às normas imperativas ou à ordem pública e se respeitem a função social da proprie­dade e do contrato e os princípios de probidade e boa-fé". (A disciplina do direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Trimestral de Direito Civil, v.20, p.104-5.)

1 2 Sobre a questão, lapidar a lição de ARRUDA ALVIM, José Manuel, em precioso texto: "Os direitos reais são criados pelo direito positivo por meio da técnica denominada numerus clausus. A lei os enumera de forma taxativa, não ensejando, assim, aplicação analógica da lei. São definidos e numerados determinados tipos pela norma, e só a estes correspondem os direitos reais, sendo, pois, seus modelos. Somente os direitos constituí­dos e configurados à luz dos tipos rígidos (modelos) consagrados no texto positivo é que poderão ser tidos como reais. Estes tipos são previstos de forma taxativa. Isto não quer significar, entretanto, que inexista liberdade com relação à constituição dos direitos reais. Não há, isto sim, liberdade no que diz respeito à configuração dos direitos reais, dado que esta configuração se encontra cogente e imutavelmente, portanto, disposta pelo legislador". (Breves anotações para uma teoria geral dos direitos reais. In: CAHALI, Yus­sef Said (org.). Posse epropriedade: doutrina e jurisprudência, p.48-9)

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EXEMPLO DE LITISCONSORTE NECESSÁRIO-SIMPLES 435

Assim, não haverá vício algum se, no contrato de concessão, as partes - pre­viamente - estipularem cláusula contratual contendo os elementos necessários para fins de aplicação do art. 1.376, desde que, obviamente, sejam respeitados os limites da funcionalização do direito, aqui, em especial, da função social do con­trato, vedando-se situações de evidente enriquecimento sem causa ou de dese­quilíbrio injustificado. 1 3

Certo é que tal t ipo de cláusula se revestirá (ao menos em parte) de carac­terística móvel,14 uma vez que dificilmente será possível demarcarem-se todos os elementos, que deverão ser agrupados de m o d o a simular, tal como previsto no contrato, u m quadro de equilíbrio que remontaria ao momento neutro do art. 1.376.

Não havendo cláusula contratual estipulando a forma de se obter a perfeita delimitação dos direitos reais em qualquer estágio da concessão, a apuração de­verá se dar mediante ação judicial, por meio de perícia que deverá considerar ele­mentos múltiplos, tais como: (a) momento em que ocorreu a desapropriação, em proporção ao tempo contratual restante; (b) natureza e valor do implante e do terreno; (c) colheita ou não de frutos; (d) investimentos levados a cabo; (e) valor do canon já pago pelo superficiário. 1 5 ' 1 6

1 3 Nossa dicção recebe, em boa parte, apoio do baiano GAGLIANO, Pablo Stolze, que leciona: "Nada impede, em nosso sentir, que o próprio contrato de concessão de superfície já estabeleça, a priori, o percentual devido ao superficiário em caso de desa­propriação. Como se trata de regulação de aspectos meramente patrimoniais, adstri­to ao campo da autonomia privada, não reputamos inválida cláusula nesse sentido". (Da superfície. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (org.). Código Civil comentado, v.13, p.55).

1 4 Ainda que o enfoque seja bem diverso, aproveita-se a essência da cláusula móvel para o enquadramento do momento neutro. Confira-se WALD, Amoldo. A cláusula de escala móvel: um meio de defesa contra a depreciação monetária.

1 5 Em termos: MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Op. cit., p.234. 1 6 Mesmo nos trabalhos em curso para as novas codificações latinas, a regulação dos

direitos do proprietário e do superficiário na desapropriação tem sido feita de forma muito econômica. No sentido, colhe-se anotação do argentino ANDORNO, Luis O. referindo-se ao pátrio Projeto do Código Civil de 1998 e aos estudos para a reforma do Código Civil do Peru. (El derecho de supeficie en el proyecto. In: BREBBIA, Roberto H. (dir.), Estúdios sobre el Proyecto de Código Unificado de 1998, p.245-6)

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4. A AÇÃO DE DESAPROPRIAÇÃO E A FORMAÇÃO DO LITISCONSÓRCIO PASSIVO

A questão nuclear do presente estudo fixa-se na existência de litisconsórcio passivo, que une o proprietário (concedente) e o superficiário (concessionário), pa­ra fins de aplicação do art. 1.376.

Dessa forma, em caso de desapropriação judicial que venha a englobar o ter­reno e a acessão, 1 7 deverão ser citados na ação tanto o proprietário quanto o su­perficiário, em homenagem ao disposto no art. 1.369 do Código Civil, em litis­consórcio necessário, ainda que não unitário. Vejamos:

4.1 Do litisconsórcio em resenha

Como é curial, tem-se por litisconsórcio o fenômeno em que duas ou mais pessoas se encontram no mesmo pólo da relação jurídica processual.

Dentre as diversas possibilidades de classificação, detalhamos duas impor­tantes divisões:

a) Necessário ou facultativo: quando se toma por paradigma a obrigato­riedade ou não de sua formação. Será necessário quando houver indis-pensabilidade de integração plúrima (seja por reclame da natureza da relação jurídica, seja por comando legal), 1 8 gerando uma legitimação con­junta ou complexa; e, de outro giro, será litisconsórcio facultativo, quan­do houver a possibilidade de apenas um sujeito ocupar - isoladamente

1 7 É entendimento corrente que, na ação de desapropriação, cabe ao autor fazer a devi­da descrição não só do imóvel, mas também das acessões e benfeitorias nele introdu­zidas. No sentido: "Nas ações expropriatórias, é dever da entidade autora descrever na inicial, não só os imóveis, mas também as benfeitorias alcançadas pelo ato expropria-tório". (TFR - Ag. n. 56.844-RJ, 6 a T., Rei. Min. Euclydes Aguiar, j . 13/3/1989, D)U, de 13/6/1989, p.10.328). Com mais razão, o raciocínio dever ser mantido nas ações em que o alvo for imóvel com concessão superficiária.

1 8 Diante da formação do litisconsórcio necessário a partir de dois fenômenos distintos (exigência legal ou reclame pela natureza jurídica da relação), encontra-se na doutri­na - especialmente estrangeira - a seguinte distinção: (a) quando o litisconsórcio obri­gatório decorre da lei, deve ser visto como litisconsórcio propriamente necessário; (b) não havendo exigência legal, mas sendo imprescindível a sua formação, deve ser enca­rado como litisconsorte impropriamente necessário. No sentido: MARTINEZ, Hernán J. Procesos con sujetos múltiples, v.I, p.89-104.

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EXEMPLO DE LITISCONSORTE NECESSÁRIO-SIMPLES 437

— qualquer dos pólos da relação processual, e a integração p lú r ima surge e m razão do exercício dessa faculdade de fo rmar pólo conjunto,

b ) Simples ou unitário: quando se toma po r referência a sorte dos l i t iscon-sortes. Será unitário quando a demanda tiver de ser decidida de f o rma homogênea e m relação a todos os l it igantes que f igurem n o m e s m o p ó ­lo da relação processual ; e simples quando tal ident idade não ocorrer necessar iamente (a decisão poderá ter resultado diferente para partes do m e s m o pó lo da ação ) .

M e s m o que se faça l imi tação às classificações destacadas anter io rmente , o estudo do lit isconsórcio exige aprofundamento , 1 9 c o m análises de situações e fenô ­menos que extrapolarão as fronteiras do presente trabalho, razão pela qual opta ­m o s por realçar apenas duas premissas que entendemos ser capitais.

A p r ime i ra rápida leitura do caput do art. 4 7 do Cód igo de Processo C i v i l pode gerar a interpretação de que o l i t isconsórcio necessário se confunde c o m o l i t isconsórcio un i tár io . Essa premissa não é correta e, po r ta l passo, c o m acerto a boa dou t r i na t e m cr i t icado a redação desse disposit ivo, u m a vez que falseia, ao v incu la r a existência do l i t isconsórcio un i tá r io ao l i t isconsórcio necessário, o que não é ideal , pois excluiria a possibi l idade de fo rmação de l i t isconsórcio facultati-vo-uni tár io o u necessário-simples. Nesse sent ido, A r r u d a A l v i m : 2 0

Afigura-se-nos, no entanto, que a posição correta é a de se considerar o litisconsórcio unitário como figura autônoma (embora muito rara na ordem prática) e não embu­tida e necessariamente dependente do litisconsórcio necessário, embora isto usual­mente ocorra, é certo. Assim, poderemos ter um litisconsórcio facultativo unitário, como, por exemplo, quando um herdeiro reivindica a herança (art. 1.580, parágrafo único, CC).21 Não é necessário o litisconsórcio de todos os herdeiros, porque pode a demanda ser movida por um ou por alguns dos herdeiros e não obrigatoriamente

1 9 Com consulta obrigatória das lições de CHIOVENDA, Giuseppe, sugerindo-se como texto central: Princípios de derecho procesal civil, v.2, p.639-69; e, com foco no litiscon­sórcio necessário: Sul liticonsorcio necessário. In: Saggi di diritto processuale civile, v.II, p.427-55.

2 0 ARRUDA ALVIM, José Manuel. Manual de direito processual civil: processo de conhe­cimento, v.2, p. 102-3.

2 1 O jurista se refere ao Código Civil de 1916, em que o seu artigo 1.580 foi recodificado no atual art. 1.791 do Código Civil de 2002, com melhora - em nossa opinião - na sua redação: "Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio".

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por todos, mas a decisão há de ser uniforme para todos, pois a propriedade sobre­vive para todos ou não. 2 2 ' 2 3 2 4 2 5

Com linha simétrica, DINAMARCO, Cândido Rangel afirma: "Como já foi salientado e é sabido de todos, não é exclusivamente nos casos de unitariedade do litisconsórcio que este se considera necessário, perante o direito positivo brasileiro. Existe também litiscon­sórcio necessário, fora daí, sempre que uma disposição de lei imponha especificamente a presença de mais de uma pessoa em um dos lados da relação jurídica processual. Movi­do por conveniências de diversas ordens, às vezes o legislador exige que, estando posta em juízo uma relação jurídica material de determinada categoria, forme-se o litisconsór­cio entre certas pessoas, que ele cuida de indicar. Nesses casos, o litisconsórcio entre ditas pessoas será indispensável, não por imposição da incindibilidade do objeto do processo, mas porque a lei assim quer no caso específico". (Litisconsórcio, p. 195-6). Há registro, contudo, de textos em que a classificação de unitário e simples fica atrelada ao litiscon­sórcio necessário, afirmando-se existir as figuras do litisconsórcio necessário unitário ou especial e do litisconsórcio necessário simples ou comum. Nesse sentido, confira-se: ZIM-MERMANN, Dagma. Litisconsórcio e intervenção de terceiros, p.22-32. A confusão de nossa doutrina ao redor do litisconsórcio necessário e do litisconsórcio unitário parece ter raízes na recepção do parágrafo 62 da ZPO: "§ 62 Litisconsórcio neces­sário. I. Si la relación jurídica litigiosa se puede establecer unicamente de forma unitária frente a todos los litisconsortes o si el litisconsórcio es necesario por cualquier otro motivo, entonces, encaso de que solo unos litisconsortes no observen una fecha o un plazo, los litis­consortes negligentes se consideran representados por los dirigentes. II. Los litisconsortes negligentes deben ser llamados también en el procedimento posterior''. (Código Processual Civil alemán, p.29). A leitura do dispositivo alemão, a nosso sentir, indica que serão duas as hipóteses de litisconsórcio necessário: (i) quando se busca decisão unitária para todos os litisconsortes; (ii) ou por qualquer outro motivo e, sendo assim, a segunda situação abre válvula que permite a figura do litisconsórcio-simples. Todavia, a posição anterior não foi adotada de forma uníssona pela doutrina nacional e a interpretação do parágrafo 62 da ZPO apresentou disparidades, chegando-se a afirmar que todo litisconsórcio unitário é necessário e vice-versa, raciocínio esse que estaria escorado na doutrina alemã (ver, no sentido: SCHÕNCKE, Adolfo, Direito processual civil, p.128). Essa posição, para nós incorreta, foi combatida com argumentação robusta por BARBOSA MOREIRA, José Carlos. (Litisconsórcio unitário, p.123). Com boa pesquisa acerca das opiniões sobre o parágrafo 62 da ZPO e a figura do litisconsórcio necessário simples, confira-se, por todos, CRESCI SOBRINHO, Elício de. (Litisconsórcio: doutrina e jurisprudência, p. 135-54). A dicção de que o litisconsórcio necessário acaba por se confundir com o litisconsór­cio unitário - que, como vimos, não é correta - , acaba tomando forma pela leitura de textos da doutrina estrangeira. No sentido, KENNY, Héctor Eduardo, com base na lição de Palácio, leciona que há litisconsórcio necessário: "siempre que hallarse en tela dejuicio una relación o estado jurídico que es común e indivisible con respeito a una plu-ralidad de sujetos, su modificación, constitución o extención no tolera tratamento proce­sal por separado y sólo puede lograrse a través de un pronunciamiento judicial único para todos los litisconsortes". (La intervención obrigada de terceros, p.77) A diferença entre litisconsórcio necessário e unitário foi um ponto de debate intenso na

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Expl ic i tado o alcance do art. 47 do Cód igo de Processo C i v i l , o segundo por-m e n o r que merece ser destacado está e m afastar a existência da f igura do l i t i scon­sórcio necessário at ivo, pois ta l s ituação impor ta r i a e m cond ic ionar o direito de ação do autor ao de outra pessoa. Cria-se o imbrógl io, a prevalecer a exigência do litisconsórcio necessário ativo, de que somente haverá demanda vál ida se o pólo a t i ­vo conjunto fosse formado, o que poderia obrigar u m a parte a ser autora e litigar quando assim não deseja, na total contramão do pr inc íp io da disponibi l idade. 2 6

4.7.7 Do litisconsórcio necessário D a breve exposição anter ior, depreende-se que o l i t isconsórcio entre o pro-

prietário/concedente e o superficiário/concessionário será necessário, especia lmen­te se a desapropriação atingir os dois titulares de direito real - a inda que de facetas diferentes —,27 pois haverá c o m o efeitos pr inc ipa is :

nossa doutrina, atraindo os olhos do professor argentino RIVAS, Adolfo A. Tratado de Ias tercerías, v.2, p.264. Na mesma linha, fundamentado, DIDIER JR., Fredie justifica: "a) não se pode condi­cionar o direito do autor à participação dos demais co-legitimados como litisconsor-tes ativos e b) proposta a demanda sem a presença dos co-legitimados, não poderia o magistrado ordenar a integração do pólo ativo pelos co-legitimados, não faltantes, pos­to não ser admissível, no nosso sistema, que alguém seja obrigado a litigar, como au­tor, em demanda judicial" (Direito processual civil: tutela jurisdicional individual e cole­tiva, p.255). Seguindo, em termos, a posição que trilhamos: "Litisconsórcio necessário. Cônjuges co-contratantes. Localização no pólo ativo. Ação proposta por um deles iso­ladamente. Admissibilidade. Obrigação de pagamento em dinheiro, divisível por natureza. Interpretação do art. 10, inc. I do Código de Processo Civil. Autor, ademais, que não pode forçar o co-titular a demandar, em face do princípio da disponibilida­de da ação e do artigo 154, parágrafo 2° da Constituição da República. Prosseguimen­to do feito determinado. Recurso provido para esse fim". (RJTJESP 112/203) Fazemos a ressalva porque, em tese, seria possível a desapropriação de apenas um dos direitos reais, a partir da interpretação do art. 2° do Decreto-lei n. 3.385/1941 (art. 2 o -Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens, poderão ser desapropriados pela União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios). Na aplicação do dis­positivo, tem-se admitido a desapropriação de direito de posse, mesmo que sem a desa­propriação do domínio. No sentido, de forma didática: "A posse como os demais bens é indenizável, desde que é historicamente negociável e suscetível de valoração e avaliação. É injurídico, todavia, indenizar-se a posse mediante a quantificação integral do imó­vel, como se o ressarcimento (ao mesmo possuidor) recaia sobre a posse e o domínio" (STJ - REsp. n. 77.624/PR, I a T, Rei. Min. Demócrito Reinaldo, j . 20/6/1996, DjU, de 26/8/1996, p.29.643). No sentido, é relevante notar que o art. 1.376 do Código Civil tem redação que demonstra que apenas um dos direitos reais pode vir a ser objeto de desapropriação (ver, mais adiante, as notas de rodapé 35 e 52). Parecendo concordar

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(a) a perda do direito real de propriedade do imóvel pelo concedente e (b) a perda do direito real sobre coisa alheia em favor do superficiário/concessionário, inclusive no que tange ao(s) implante(s).28'29

Para a formação do litisconsórcio necessário, é importante salientar que o art. 16 do Decreto n. 3.365/1941 3 0 merece receber interpretação extensiva, de mo­do que a expressão proprietário dos bens contida no dispositivo deve ser absorvi­da de forma elástica, abrigando não só o efetivo proprietário, mas também todos os titulares de direitos reais vinculados ao bem expropriado. 3 1 Nesse sentido, em nossa opinião, é correta a lição de Pontes de Miranda:

com nosso raciocínio, colhe-se a opinião de KELELMAKER DE CARLUCCI, Aída e PUERTA DE CHACÓN, Alicia. Op. cit., p.25. Leia-se aqui benfeitorias e acessões introduzidas pelo superficiário, pois, apesar de a lei não cogitar, parece-nos que o direito de superfície também inclui a execução de benfeitorias. No sentido, entre vários: GAGLIANO, Pablo Stolze. Op. cit., v.I3, p.24-5; VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais, v.5, p.392; e, em termos: PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil. 18.ed., v.4, p.244. Con­tra: OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Comentários ao Estatuto da Cidade, p.70. Inclusive os implantes, mas não tão-somente, pois, se o direito de superfície é um direito real negociável e passível de valoração, esse direito isoladamente se constitui em um bem, com rubrica própria e separada do implante. Adotamos a posição de que, na leitura do art. 2° do Decreto-lei n. 3.365/1941, a expressão todos é bem ampla. Na mesma linha, VELLOSO, Mário Roberto Negreiros: "Cabe uma melhor elucidação da extensão do vocábulo todos, empregado no texto legal. São todos os bens móveis e imóveis, corpóreos ou incorpóreos (inclusive ações de sociedades e direitos autorais de livros), desde que sirvam a uma utilidade pública e social, e ainda que sejam alie-náveis e insub-rogáveis. Admite-se outrossim a desapropriação do espaço aéreo e do subsolo (art. 2 o , parágrafo I o do Dec.-lei n. 3.365/1941), possibilitando destarte a dita desapropriação parcial para a instalação de postes, torres de alta tensão, oleodutos e metrô". (Desapropriação: aspectos civis, p.6-7) Art. 16. A citação far-se-á por mandado na pessoa do proprietário dos bens; [...]. (g.n.) Sobre interpretação extensiva, leciona NINO, Jose Antônio: "Esta 'extiende el significa­do de las palavras de la ley cuando estas expresan menos de lo que racionalmente apare­ce que el legislador quiso dicer. Se considera por los autores más bien como una interpre-tación integrativa, porque al extender la norma a casos no contemplados, incluye estos en la misma norma queya los convenía virtualmente". (La interpretación de las leyes, p.56). Deve ser dito ainda que a interpretação extensiva se realiza sobre determinado precei­to normativo para nele compreender situações não constantes da sua dicção gramati­cal, mas que estão certamente incluídas no seu espectro. Não se trata de uma integra­ção da norma, mas da busca pelo significado que a palavra deve ter. A ampliação decorrente da interpretação extensiva, na verdade, desvenda o real significado de determinada palavra dentro da norma examinada. Com a interpretação extensiva, é possível eliminar expressões contidas na lei que são demasiadamente restritivas e que,

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Têm que ser citados todos os titulares de direito real que a desapropriação há de apa­nhar; portanto quem quer que, com a desapropriação, sofra a perda de direito. Na expressão proprietário, no art. 16 do Decreto-lei n. 3.365, está o titular de direito, como direito de propriedade, no art. 141, parágrafo 1 6 , 1 a parte, da Constituição de 1946, é qualquer direito desapropriável. Não se pode citar só o titular do domínio se há titulares de direito de usufruto, uso, ou habitação, credores hipotecários, pigno-ratícios, ou caucionários; nem se pode citar só o titular do título do sócio, ou de crédi­to, que está caucionado, sem se citar o credor caucionário. Quem não foi citado não sofre a eficácia da sentença do art. 24, nem a eficácia da sentença do art. 25 do Decre­to-lei n. 3.365, como, igualmente, não sofreria a eficácia do acordo do art. 10, ou do art. 22. Pela mesma razão, não se pode citar um só dos condôminos se não tem esse a representação dos outros; nem se dispensa a citação do enfiteuta, nem a do côn­juge meeiro; nem a dos outros herdeiros, e não há inventário. Onde há titular e direi­to dispensar-lhe a citação seria contrário à Constituição de 1946 e aos princípios gerais de dire i to. 3 2 3 3

O r a , m e s m o que o art. 1.375 preceitue que a propriedade plena retornará ao propr ie tár io tão logo f inda a concessão, o concessionár io — em razão de seu direi­to real sobre a coisa alheia, para fruição egozo — t e m leg í t imo interesse e m f igurar n o pó lo passivo da ação de desapropriação que englobe a concessão, jus tamente po r força do direito que lhe é salvaguardado pelos arts. 1.369 e 1.376.

Ass im, não nos parece possível afastar o superficiário na formação do pó lo passivo da ação expropriatória que alcance seu direito real, va lendo lembrar que ele teria, inclusive, se não alvejado pela expropriação, o direito de alienar (ceder) o referido direito a terceiro, nos termos do art. 1.372, caput, do Cód igo C i v i l . 3 4 ' 3 5

de forma nociva, afastam-na de regulação sobre a relação jurídica que está - na sua essência - sob sua égide.

3 2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de direito privado, v. 14, p.237. 3 3 Próximo, com síntese, confira-se ainda: VFLLOSO, Mário Roberto Negreiros. Op. cit., p.45. 3 4 Art. 1.372. O direito de superfície pode transferir-se a terceiros e, por morte do super­

ficiário, aos seus herdeiros. 3 5 Parece-nos que somente pode ser dispensada a citação do superficiário na incomum

hipótese em que a desapropriação for exclusiva quanto ao imóvel, mantendo-se incó­lume a concessão até o seu término, pois, assim, não ocorrerá, em princípio, situação que cause embaraço ao direito real do fundeiro, a justificar uma indenização. No que se refere ao concedente-proprietário, sempre existe em seu favor a presunção de que, ao final da concessão, seu patrimônio será fortalecido, pois, sendo as concessões tem­porárias, absorverá, ao final, os implantes respectivos (art. 1.375, CC/2002). Se a ex­propriação impedir tal bônus ao concedente-proprietário e/ou fizer cessar o recebi­mento do canon (caso se trate de contrato oneroso), a desapropriação não será apenas

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Utilizando-se de outro prisma de argumentação, a inteligência destacada do art. 1.409 do Código Civil atual, 3 6 no que se refere ao usufrutuário, pode ser de­vidamente adaptada para a interpretação do art. 1.376 do mesmo diploma, já que, em se tratando de usufruto, ocorrendo a desapropriação do imóvel, o usu­frutuário continuará a gozar do seu direito real, agora em forma de rendimentos provenientes da verba obtida pelo resultado da desapropriação. 3 7

Mesmo que no direito de superfície a sub-rogação não importe em permuta do bem sobre o qual recairá o ônus, não concebemos como possível a conversão do direito real do superficiário em pecúnia, 3 8 sem a prévia citação do superficiário na ação de desapropriação. 3 9 , 4 0

do direito real de superfície e, via de talante, haverá interesse do concedente-proprie-tário a justificar sua participação no pólo passivo, já que merecerá justa indenização. Ademais, nos parece claro que o direito de superfície, como direito real sobre coisa alheia, não se confunde com a chamada propriedade superficiária (direito sobre as aces­sões), havendo uma dualidade de situações, conforme bem definem KELELMAKER DE CARLUCCI, Aída e PUERTA DE CHACÓN, Alicia. Op. cit., p.l 1-2. De toda forma, o caso concreto há de ser sopesado, pois é possível que se crie embaraço tal a justificar a desapropriação indireta do imóvel. Código Civil de 2002: Art. 1.409. Também fica sub-rogada no ônus do usufruto, em lugar do prédio, a indenização paga, se ele for desapropriado, ou a importância do dano, res­sarcido pelo terceiro responsável no caso de danificação ou perda, (g.n.) Código Civil de 1916: Art. 738. Também fica sub-rogada no ônus do usufruto, em lugar do prédio, a indenização paga, se ele for desapropriado, ou a importância do dano, ressar­cido pelo terceiro responsável, no caso de danificação, ou perda, (g.n.) Interpretando a norma, DINIZ, Maria Helena anota: "Se a coisa frutuária for desa­propriada, a indenização paga pelo expropriante ficará sub-rogada no ônus do usu­fruto, em lugar do prédio gravado que saiu do domínio particular. Logo, o usufrutuá­rio passará a usufruir dos rendimentos oriundos daquela indenização, enquanto durar o usufruto". (Código Civil anotado, p.569) Utilizamos a expressão de caráter didático, pois, como bem atestou BEVILÁQUA, Clóvis na observação do fenômeno do art. 738 da codificação revogada: "A desapropriação extingue; juridicamente, o objeto do usufruto por uma espécie de mutatio rei, de mudança na forma substancial da coisa. Mas o Código providencia para que a soma da indenização fique sub-rogada no ônus usufrutuário". (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, v. I, p.1.201) Contra a nossa posição, GAGLIANO, Pablo Stolze: "[...] o fato de o superficiário ter direito à parte da indenização não significa que a ação expropriatória seja proposta contra ele, eis que a parte passiva, no caso, é o próprio fiandeiro. Caso o superficiário desconfie de que o fiandeiro irá desviar o pagamento, ocultando o valor para não repassar a parcela correspondente ao seu direito, poderá adotar medidas acautelató-rias, na forma da legislação processual civil". (Op. cit., v.13, p.55) Não se trata de uma situação isolada do direito de superfície. Em nosso entendimen­to, se o imóvel expropriado for objeto de direito real por terceiro que não o proprie-

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Adent ra r no pa t r imôn io de titular de direito rea l 4 1 - por me io de expropr ia ­ção jud ic ia l no pa t r imôn io jur íd ico do superf iciár io - sem lhe garantir a dev ida reação impor ta rá , na nossa visão, supr imi r não só as regras do l it isconsórcio, mas t a m b é m desrespeitar o direito const i tuc ional de ampla defesa, 4 2 sacrilégio não permi t ido no sistema. 4 3

Dessa fo rma , ocorrerá l it isconsórcio necessário na situação arquitetada no art. 1.376 do Cód igo C i v i l , notadamente se a desapropriação v ier a atingir o imóve l da

tário, será necessária também a citação do titular do direito real sobre a coisa alheia. Com esse raciocínio, a formação do litisconsórcio deverá ocorrer em outras situações, inclusive quando o imóvel for objeto de promessa de compra e venda capaz de gerar direito real. Em termos: VELLOSO, Mário Roberto Negreiros. Op. cit., p. 144-5. A construção ora desenvolvida, em parte, foi aplicada em caso judicial, confira-se: "O promitente comprador, mediante contrato irretratável, que se encontra devidamente registrado no Cartório de Registro Imobiliário, é titular de direito real oponível con­tra terceiros e legitimando para contestar a ação expropriatória e impugnar o valor da indenização". (RTRF 3" Região 21/37) Logo, oponível erga onmes, pois, como muito bem destacado pela capixaba CAR-VALHINHO, Diana Gomes: "Caracterizam-se os direitos reais, destarte, pela existên­cia de uma obrigação passiva universal, imposta a todos os membros da sociedade indistintamente, no sentido de que devem respeitar seu exercício por parte de seu titular ativo". (Direitos reais: noções gerais. Disponível em: www.juspodivm.com.br. Acessado em: 25/6/2005) Correta, para nós, a doutrina de MENDONÇA JÚNIOR, Deslosmar: "Contraditó­rio e ampla defesa são figuras conexas, sendo que ampla defesa qualifica o contra­ditório. Não há contraditório sem defesa. Igualmente é lícito dizer que não há defe­sa sem contraditório". (Princípios da ampla defesa e da efetividade no processo civil brasileiro, p.55) Com posição parelha, BUENO, Edgard Silveira define: "O entrela­çamento do exercício da ampla defesa com o do contraditório é tão gritante que não se pode imaginar a existência de um sem o outro". (Direito à defesa na Consti­tuição, p.47) Mesmo que o superficiário não tivesse sido citado - o que, nos termos de nosso racio­cínio, é passível de censura — o valor correspondente ao implante não pode ser rece­bido pelo proprietário, em razão do art. 31 do Decreto-lei n. 3.365/1941: "Art. 31. Ficam sub-rogados no preço quaisquer ônus ou direitos que recaiam sobre o bem expropriado". É possível a aplicação, por extensão, da inteligência decorrente de casos de desapropriação de bens hipotecados, casuística que possui precedentes do Superior Tribunal de Justiça: "Desapropriação. Servidão. Sub-rogação no preço indenizatório. Credor hipotecário. I - Se houver hipoteca sobre o bem desapropriado, o crédito ga­rantido fica sub-rogado no valor da indenização. II — No caso de desapropriação do imóvel hipotecado para fins de constituição de servidão, assiste ao credor hipotecário o direito de habilitar o seu crédito, devendo ser retido o depósito do valor da indeni­zação até a decisão da habilitação, se possível nos próprios autos da expropriatória.

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concessão (direito real do proprietário/concedente) e a sua superfície (direito real sobre coisa alheia em favor do superflciário/concessionário).

4.1.2 Do litisconsórcio simples Demonstrado que, no plano da obrigatoriedade, o litisconsórcio será neces­

sário, mudando o foco para o resultado (ou sorre dos litisconsortes), tem-se que a ação de desapropriação que enfrentar o art. 1.376 e incidir sobre os dois direitos reais não gerará litisconsórcio unitário, fugindo ao gabarito ordinário de litis-consorte necessário unitário. 4 4

Como vimos anteriormente litisconsórcio necessário não se confunde com unitário, seguindo regramento distinto. 4 5

III - Ofensa ao artigo 31 do Decreto-lei n. 3.365, de 21/6/1941, caracterizada. IV -Recurso especial conhecido e parcialmente provido". (STJ - REsp n. 37128/SP, 2 a T., Rei. Min. Antônio de Padua Ribeiro, j . 20/2/1995, DJU, de 13/3/1995, p. 5.274); no mesmo sentido: AgRg no Resp n. 287.848/SP, I a T., Rei. Min. Milton Luiz Pereira, j . 19/11/2002, DJU, de 16/12/2002, p. 249; e ainda: "Desapropriação. Hipoteca sobre o imóvel expropriado. Sub-rogação do ônus do preço da indenização. Se o imóvel ex-propriado está gravado por hipoteca, a indenização - no todo ou em parte - não pode ser recebida pelo expropriado, antes da quitação do crédito hipotecário, prefe­rência que deve ser respeitada. Recurso especial conhecido e provido". (STJ — REsp n. 37224/SP, 2 a T , Rei. Min. Ari Pargendler, j . 19/9/1996, DJU, de 14/10/1996, p.38.979)

4 4 Os exemplos não são muitos comuns, utilizando a doutrina com freqüência os seguin­tes casos: (i) usucapião (art. 942, CPC); (ii) demarcatória (art. 950, CPC); e (iii) opo­sição (art. 57, CPC). Nos dois primeiros casos (usucapião e demarcatória), a lei exige a citação de todos os confinantes, mas o juiz pode decidir de modo diferente para ca­da um deles. Logo, litisconsórcio necessário (a lei exige), no entanto, como o resulta­do pode ser diferente, tem-se que o fenômeno não será unitário, mas, sim, simples. Na oposição, o art. 57 exige a citação do autor e do réu, porém o julgamento pode ser diferente para os litigantes primitivos, podendo inclusive um deles reconhecer o pedi­do, prosseguindo a ação (ou seja, a oposição) contra aquele que resistiu. Com pesquisa mais cuidadosa na doutrina, é possível encontrar outras exemplificações nos estudos em torno da temática, sendo oportuno conferir GODOY, Mario Henrique Holanda. Doutrina e prática do litisconsórcio, p.162, que traz, entre os exemplos, a ação de remissão de hipoteca aforada pelo segundo credor (art. 1.478 do Código Civil). De toda sorte, é indispensável a leitura de DINAMARCO, Cândido Rangel, na aborda­gem panorâmica do litisconsórcio unitário (Op. cit., p.119-95).

4 5 Além da doutrina de escola citada, com texto muito atual sobre a diferença de regi­mes, vale conferir a lição de BUENO, Cássio Scarpinella. Partes e terceiros no processo civil brasileiro, p.88-110. Merece leitura também a síntese realizada por GONÇAL­VES, William Couto, na abertura do livro Intervenção de terceiros, p.82.

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EXEMPLO DE LITISCONSORTE NECESSÁRIO-SIMPLES 445

Com efeito, na hipótese do art. 1.376, o litisconsórcio será simples, pois, co­mo se trata de dois direitos reais distintos, a desapropriação não os atingirá uni­formemente, até mesmo porque a base de valoração das indenizações será dife­rente. 4 6

Saliente-se, no ponto específico, que a sentença proferida na ação de desa­propriação trabalha com cognição horizontal47 extremamente limitada, haja vista que, à luz dos arts. 9 o e 20 do Decreto-lei n. 3.365/1941, 4 8 a parte passiva da ação somente poderá: (1) argüir vícios processuais e (2) impugnar o valor ofertado pe-

Aqui nos parece de utilidade a advertência de ASSIS, Araken de: "Questão muito diversa, por óbvio, consiste em descobrir por que, afinal, várias pessoas se envolvem com semelhante situação. Esta pergunta transcende ao processo, embora fenômeno nele suceda. Impõe-se um desvio prolongado nos terrenos do direito material. Ele preside as hipóteses em que os laços das ações dos litisconsortes se revelam de tal índole que a demanda conjunta se torna conveniente, e mesmo rigorosamente indis­pensável. Nesta última hipótese, aliás, existe uma única ação. Disto resulta a singela e relevantíssima diferença entre o cúmulo subjetivo, ou cumulação de ações em conse­qüência da pluralidade de partes, e o litisconsórcio: simples e formal pluralidade de sujeitos não implica, tort court, cúmulo subjetivo, que só ocorre quando cada um deduz direitos subjetivos autônomos. Em alguns casos, os litisconsortes vêm conjun­tamente no processo, baseando-se no mesmo e único direito, e, assim, desaparece a cumulação de ações". (Cumulação de ações, p. 159-60) Nunca é demais relembrar a sistematização lançada por WATANABE, Kazuo: "Numa sistematização mais ampla, a cognição pode ser vista em dois planos distintos: horizon­tal (extensão e amplitude) e vertical (profundidade). No plano horizontal, a cognição tem por limite os elementos objetivos do processo estudados no capítulo precedente (trinômio: questões processuais, condições da ação e mérito, inclusive questões de mérito; para alguns: binômio, com exclusão das condições da ação; Celso Neves: qua-drinômio, distinguindo pressuposto dos supostos processuais). Nesse plano, a cognição pode ser plena ou limitada (parcial) segundo a extensão permitida. No plano vertical, a cognição pode ser classificada segundo o grau de sua profundidade, em exauriente (completa) e sumária (incompleta)". (Da cognição no processo civil, p.l 11-2). A cogni­ção na desapropriação judicial, na forma desenhada pelo Decreto-lei n. 3.365/1941, será exauriente (completa, portanto, no plano vertical) quando proferida sentença final, mas, em outro giro, como tem restrições quanto à extensão (tal qual, por exem­plo, ocorre nos embargos à execução de título judicial - art. 741 do CPC) será limita­da ao plano horizontal. Art. 9 o . Ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se verifi­cam ou não os casos de utilidade pública, (g.n.) Art. 20. A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugna-ção do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta.

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lo autor, não se admi t i ndo n o bo jo da desapropriação discussões desafetas à l i m i ­tação cogn i t i va . 4 9 ' 5 0

A par t i r desse quadro , c o m atenção ao caput dos arts. 24 e 27 do Decreto-lei n. 3.365/1941, afere-se conteúdo e natureza da sentença profer ida na ação de desapropriação que, c o m o é tr iv ia l , está l igada à consolidação de u m va lor a ser pago pelo despojamento compulsór io . Isso significa dizer que o objetivo da ação não é obter autor ização jud ic ia l para a desapropriação e m s i , 5 1 mas a f ixação de u m preço a ser pago pelo desapropriante.

Tem-se, po r conseguinte, que, se a desapropriação englobar o imóve l e os i m ­plantes, 5 2 de m o d o que o art. 1.376 do Cód igo C i v i l seja apl icado, a sentença

A interligação dos arts. 9 o e 20 do Decreto-lei n. 3.365/1941 é evidente, redundando, como dissemos anteriormente, em uma limitação horizontal da cognição, afastando-se o debate da legalidade do ato administrativo do corpo processual da ação de desa­propriação. Tanto assim que, ao comentar o art. 9 o , SEABRA FAGUNDES, Miguel pontificou: "A disposição desse artigo não está bem situada. Melhor estaria, sem cons­tituir um artigo autônomo, entre os preceitos do artigo 20, onde se delimita o alcan­ce da defesa do expropriado. Com efeito. A vedação do Judiciário de decidir dentro do procedimento expropriatório, se se verificam ou não casos de utilidade pública, importa, processualmente, em vedar a articulação de defesa baseada na inexistência desses casos. Sem a articulação de tal matéria pelo proprietário o Judiciário não pode­ria entrar no seu exame, sob pena de julgar além do pedido, isto é, invalidar um ato administrativo por defeito não argüido. Percebe-se que o intuito do legislador ao focalizar essa matéria num artigo especial foi, sobretudo, tornar bem explícita a impossibilidade de apreciação da utilidade pública durante o procedimento expro­priatório. No entanto, juridicamente, as conseqüências do dispositivo seriam as mes­mas se figurasse ele na parte relativa à contestação". (Desapropriação no direito brasi­leiro, p.151) É precisa a anotação de NEGRÃO, Theotonio: "Artigo 20: 3. A lei não impede 'a dis­cussão judiciária em torno do fundamento de desapropriação, no caso de eventual abuso por parte do Poder Público; também não impede que qualquer alegação de violação de direito individual seja examinado pelo Poder Judiciário. Só que tais dis­cussões deverão ocorrer em ação própria' (RFFR 1-2/94, maioria de votos)". (NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Ferreira. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, p. 1.212) A desapropriação, nos termos da conjugação dos arts. 2°, 6 o , 1° e 8 o do Decreto-lei n. 3.365/1941 é ato de índole administrativa, prévio à ação judicial. Parece-nos ser possível a desapropriação apenas do imóvel ou da propriedade superficiá-ria, especialmente se admitirmos que, no direito de superfície, haverá dois direitos de propriedade, como sustentado por doutrina de escol, como: ASCENSÃO, José de Olivei­ra Direito civil: reais, p.532; BENASSE, Paulo Roberto. O direito de superfície e o novo Código Civil brasileiro, p.75; ANDRADE, Marcos Vinícius dos Santos. Apontamentos

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EXEMPLO DE LITISCONSORTE NECESSÁRIO-SIMPLES 447

final terá dois capítulos distintos, u m deles referindo-se ao preço do imóve l ( c o m capítu lo vo l tado ao concedente/propr ietár io) e o out ro ao preço das acessões ( c o m capí tu lo at inente ao funde i ro/super f i c i á r io ) . 5 3 , 5 4

O r a , se na f ixação da verba inden iza tór ia (que é a resposta judicante ao

pleito principal da ação) o co r re resul tado d i ferenc iado pa ra cada detentor de dire i to rea l , não sendo, n o par t icu lar , a sentença u n i f o r m e para os réus , até

sobre direito das coisas no novo Código Civil. In: RULLI NETTO, Antônio; ALMEI­DA GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de (coords.). Estudos em homenagem ao aca­dêmico Ministro José Carlos Moreira Alves, p.424. Segundo essa corrente, o direito de superfície atribuiria ao superficiário a propriedade resolúvel de construções e planta­ções em terreno alheio, ou seja, do proprietário concedente. Ainda que ocorra tal situação invulgar, conforme já salientamos na nota de rodapé 35, haverá litisconsór­cio necessário, que será simples. Art. 27 do Decreto-lei n. 3.365/1941. O juiz indicará na sentença os fatos que motiva­ram o seu convencimento e deverá atender, especialmente, à estimação dos bens para efeitos fiscais; ao preço de aquisição e interesse que deles aufere o proprietário; à sua situação, estado de conservação e segurança; ao valor venal dos da mesma espécie, nos últimos cinco anos; e à valorização ou depreciação da área remanescente, pertencen­te ao réu. Em ensinamento ao redor dos capítulos da sentença e do litisconsórcio, e que pode ser trazido para nosso estudo, colhe-se de DINAMARCO, Cândido Rangel: "O litis­consórcio só pode ter efeito de dilargar o objeto do processo, quando comum, ou seja, não unitário. O conglomerado de autores ou réus em regime de litisconsórcio comum interfere no objeto do processo e prova a coexistência de capítulos na sen­tença de mérito a ser proferida, por que nesses casos ao cúmulo subjetivo associa-se sempre um cúmulo objetivo. Pedir a condenação de dois a pagar é pedir senten­ça que, em capítulos autônomos, condene um e condene outro; e o juiz poderá condenar ambos, ou condenar nenhum, ou condenar só um deles e outro não, sem­pre em capítulos de sentença perfeitamente identificáveis. Isso é oposto do que sucede quando o litisconsórcio é unitário, onde ou o contrato é anulado para todos ou para nenhum - havendo pois um só pedido e uma só decisão, embora endere­çada a dois, a três, a vários. A pluralidade das partes, no litisconsórcio unitário, não dá motivo à divisão da sentença em capítulos". (Capítulos de sentença, p.69) Ajusta-se a doutrina ao objeto do texto, pois, como vimos, o pedido do autor será a fixa­ção de dois preços, não se cogitando na ação de desapropriação em procedência do ato administrativo que redunda na expropriação. O que nos interessa, e demonstra a existência de capítulos distintos, está na decomposição em partes do pedido, pois, esclarece o professor paulista: "A decompobilidade do objeto do processo apresen­ta-se também quando o bem da vida postulado, embora único, for divisível". (Ibi­dem, p.72)

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m e s m o d ian te de sua c ind ib i l idade , h á de ser afastada a f igura d o l i t i sconsór ­c io u n i t á r i o . 5 5

5. CONCLUSÃO

N ã o se pode a f i rmar que o l i t isconsórcio f o rmado entre o propr ietár io/con-cedente e o superf ic iár io/concessionár io é un i tá r io , caracterizando-se, e m ve r ­dade, c o m o simples, diante da necessidade de t ratamento part icular para cada u m dos t itulares do direito real . Aplica-se, e m adaptação, a boa dout r ina de Fredie D i d i e r Jr. , que fixa os contornos do l i t isconsórcio s imples:

0 litisconsórcio comum (ou simples) é aquele em que a decisão judicial pode ser diferente-a simples possibilidade de a decisão ser diferente já torna simples o litis­consórcio. Ocorre quando há uma pluralidade de relações jurídicas sendo discuti­das no processo ou quando se discute uma relação jurídica cindível [...]. 0 litiscon­sórcio simples é o que parece ser, cada um dos litisconsortes é tratado como parte autônoma. 5 6

N o caso concreto, a falta de un i fo rmidade da decisão poderá chegar ao ponto de o superf ic iár io não ter direi to a qua lquer verba, c o m o pode ocorrer, p o r e x e m ­plo , se houve r prev isão cont ra tua l lícita nesse sentido, e m que o m e s m o já tenha se benef ic iado c o m os frutos da(s ) acessão(ões), estando o contrato e m fase ter ­m i n a l para a reversão do art. 1.375 sem ônus para o propr ie tár io . A s s i m , a i nde ­nização pelas acessões, n o caso específico, poder ia ser, p o r hipótese, destinada exclus ivamente ao concedente, e não ao superf ic iár io . 5 7

Por tan to , o art . 1.376 do Cód igo C i v i l cr ia n o v o exemplo de l i t isconsórcio necessário, de natureza simples.

Aplicam-se as palavras de RTVAS, Adolfo A. de que o litisconsórcio "debe se distinguido en simple o unitário, según no conlleve una decisión unitária para todos los litisconsortes, o por el contrario, provoque esa consecuencia". (Op. cit., p.265) DIDIER JR., Fredie. Op. cit., p.253. Situação que pode ocorrer, com os devidos ajustes, no compromisso de compra regis­trado, sem cláusula de arrependimento, e com a quitação total do preço. Nessa situa­ção, o direito à indenização estará voltado, a priori, ao promitente comprador, e não ao promitente vendedor. Analisando a situação da promessa quitada, vetor de direito real, VELLOSO, Mário Roberto Negreiros afirma: "Os direitos do promitente vendedor -que é proprietário perante a tábua predial - são meramente residuais, resumindo-se basicamente a receber o preço expropriado e pleitear a rescisão em caso de inadimple­mento, ocorrências já ultrapassadas pela preclusão temporal em caso de quitação.

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EXEMPLO DE LITISCONSORTE NECESSÁRIO-SIMPLES 453

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A PARTICIPAÇÃO DAS PESSOAS CASADAS NO PROCESSO

FREDIE DIDIERJR.*

Sumário 1. Consideração introdutória. 2. Distinção entre ca­pacidade e legitimidade. 3. Capacidade processual dos cônjuges nas ações reais imobiliárias. 4. Dívidas soli­dárias e litisconsórcio necessário entre os cônjuges (incs. II e III do parágrafo I o do art. 10 do CPC).

O casamento é fato jurídico que repercute de modo bastante significativo no processo civil, mais especificamente em relação à capacidade processual das pes­soas casadas. Esta capacidade possui regramento próprio: os arts. 10 e 11 do CPC, que serão objeto de estudo mais delongado. 1 Há relação, no particular, entre o Código Civil e o Código de Processo Civil. Os arts. 10 e 11 do CPC/1973 ape­nas repercutem o regramento já contido na legislação material nos arts. 1.643 a 1.648 examinados a seguir.

Advogado. Mestre pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor-adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (graduação, mestrado e doutorado).

1 O art. 350, parágrafo único, CPC, cuida da capacidade do cônjuge para confessar, nas causas em que se discutam imóveis: a confissão de um só é eficaz com o consen­timento do outro. Também aqui incide o art. 1.647 do CC/2002, adiante examinado, que dispensa essa autorização nos casos de casamento sob regime da separação abso­luta.

1. CONSIDERAÇÃO INTRODUTÓRIA

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A PARTICIPAÇÃO DAS PESSOAS CASADAS NO PROCESSO 455

2. DISTINÇÃO ENTRE CAPACIDADE E LEGITIMIDADE

A correta interpretação do tema impõe que se rememore a distinção entre capacidade e legi t imidade. A capacidade é a apt idão genérica para a prát ica dos atos da v ida c iv i l . J á a leg i t imidade é a apt idão específica para a prát ica de deter­m i n a d o ato.

O s cônjuges são c iv i lmente capazes, portanto, processualmente capazes. Essa é a regra. A le i , no entanto, retira a apt idão para a prát ica de determinados atos processuais. Nesses casos, embora capazes, faltar-lhes-ia leg i t imidade processual (ad processum).

3. CAPACIDADE PROCESSUAL DOS CÔNJUGES NAS AÇÕES REAIS IMOBILIÁRIAS

3.1 0 art. 1.647 do CC/2002

O art. 1.647 do C C / 2 0 0 2 2 cu ida dessas hipóteses de i legi t imidade: o c ô n j u ­ge não t e m legit imidade para, sem autorização do outro, praticar os atos al i arrolados. Interessa, neste momen to , o inciso I I desse artigo, que restringe a capa­cidade processual das pessoas casadas nas demandas reais imobi l iár ias: a part ic ipa­ção de ambos os cônjuges, nessas hipóteses, é exigida. Essa restrição da capacidade visa a proteger o p a t r i m ô n i o imob i l i á r io famil iar.

3.2 A restrição da capacidade processual e a ressalva prevista no Código Civil de 2002

O inc . I I do art. 1.647 do CC/2002 t em c u n h o eminen temente processual , cu idando da capac idade processual das pessoas casadas, n o pó lo at ivo, e da ex i ­gência de l i t isconsórcio passivo, nas causas re lac ionadas a direitos reais i m o b i ­l iár ios . 3 O inciso aplica-se t a m b é m às causas que d izem respeito a direitos reais

2 Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autori­zação do outro, exceto no regime da separação absoluta: I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; [...].

3 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comen­tado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6.ed. São Paulo, RT, 2002, p.286 lembram de norma do CPC português (art. 28-A), cujo texto é mais claro:" 1. Devem ser propostas por marido e mulher, ou por um deles com consentimento do outro, as ações

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456 FREDIE DIDIERJR.

imob i l i á r ios sobre a coisa alheia, por força do inciso I deste m e s m o art igo, que a eles faz referência ( "gravar de ônus r ea l " ) . 4

C o n f o r m e ressalvado n o caputào art. 1.647 do CC/2002, não se apl ica a ex i ­gência de part ic ipação do consorte quando o casamento se der e m reg ime de separação absoluta de bens (arts. 1687 a 1688 do CC/2002) . "As vedações são ap l i ­cáveis aos regimes de bens de c o m u n h ã o parc ia l , de c o m u n h ã o universal e de par t ic ipação f ina l de aqüestos" ; 5 n o ú l t imo caso, se não houver acordo pré-nup-cia l neste sent ido. Trata-se de u m a m u d a n ç a p r o m o v i d a pelo CC/2002, dev ido ao fato de que , de acordo c o m o CC/1916, hav ia exigência de consent imento p r é ­v i o d o côn juge para a prát ica dos atos enumerados n o art. 235 d o código revoga­do, qua lquer que fosse o reg ime de bens.

E m razão de a restrição de capacidade (exigência de consent imento prév io do ou t ro côn juge ) , de que cu ida este art igo, não ma is subsistir para as hipóteses de m a t r i m ô n i o sob o reg ime da separação absoluta, a lgumas regras processuais devem ser interpretadas à luz deste novo regramento.

A s exigências previstas no caput e n o parágrafo I o do art. 10 do C P C de ixam de inc id i r quando se estiver diante de partes casadas entre si sob o regime da sepa­ração absoluta de bens . 6 Existe dúv ida se essa ressalva aplica-se a qualquer regime de separação de bens, legal ou convenc ional . H u m b e r t o Theodo ro Jr. afirma não haver razão para a dist inção: se o regime for o da separação de bens, pouco impor t a se p o r força de lei o u manifestação de vontade, fica dispensada a vênia conjugai . 7 T a m b é m se dispensa o consent imento do consorte nos casos de casa-

de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alie­nados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objecto, directa ou indirectamente, a casa de morada de famí­lia. [...] 3. Devem ser propostas contra o marido e a mulher as acções emergentes de facto praticado por ambos os cônjuges, as acções emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão susceptível de ser executada sobre bens próprios do outro, e ainda as ações compreendidas no número 1".

4 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.286. 5 LOBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil comentado. São Paulo, Atias, 2003, v. 16, p.258. Em

sentido contrário, NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.285. 6 No mesmo sentido, CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Algumas regras do novo Có­

digo Civil e sua repercussão no Processo - prescrição, decadência etc. Revista Dialéti­ca de Direito Processual. São Paulo, Dialética, 2003, n.5, p.81; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. In: MARCATO, Antônio Carlos (coord.). Código de Processo Civil interpre­tado. São Paulo, Atlas, 2004, p. 69.

7 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O novo Código Civil e as regras heterotópicas de natureza processual. Disponível em: www.abdpc.org.br/artigos/artigo52.htm,

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A PARTICIPAÇÃO DAS PESSOAS CASADAS NO PROCESSO 457

m e n t o sob reg ime da part ic ipação f ina l dos aquestos, c o m cláusula n o pacto antenupc ia l e m que se permi ta a a l ienação/oneração de b e m imóve l sem a au to ­r ização do out ro cônjuge (art . 1.656 do CC/2002) . 8

O cônjuge somente pode demanda r e m juízo sobre u m direito real i m o b i ­l iár io se o ou t ro lhe der autor ização neste sentido (ar t . 10, caput, CPC/1973 ) . " A locução legal é amp la e abrange, a l ém das ações d i retamente relacionadas aos d i ­reitos reais cata logados" n o Cód igo C i v i l , "qua isquer outras , a inda que ind i reta ­mente re lacionadas c o m aqueles direitos", c o m o as ações envo lvendo hipoteca, a demol i tór ia , a d iv isór ia , a nunc iação de obra nova e tc . 9 ' 1 0

N ã o é o caso de l i t isconsórcio at ivo necessário, f igura, aliás, que não existe — n i n g u é m pode ser obr igado a demanda r e m juízo somente se o u t r e m t a m b é m assim o desejar. Trata-se de n o r m a que t em o objet ivo de integrar a capacidade processual ativa do cônjuge demandante . " D a d o o consent imento inequívoco, somente o cônjuge que ingressa c o m a ação é parte ativa; o que ou to rgou o c o n ­sent imento não é parte na causa". 1 1 N a d a impede , p o r é m , a fo rmação do l i t i scon­sórcio at ivo, que é facultat ivo.

consultado em 22/10/2004. Miguel Reale também entende que não se devem tra­tar distintamente os regimes da separação obrigatória e da separação convencio­nal [Estudospreliminares do Código Civil. São Paulo, RT, 2003, p.62-3). Retifica-se, assim, o entendimento defendido em DIDIER JR., Fredie. Regras processuais no novo Código Civil. São Paulo, Saraiva, 2004, p.117 - já na segunda edição desta obra não consta a posição que restringe a ressalva à separação convencional.

8 Art. 1.656 do CC/2002: No pacto antenupcial, que adotar o regime de participação fi­nal nos aquestos, poder-se-á convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares.

9 ASSIS, Araken de. Suprimento da incapacidade processual e da incapacidade postu-latória. Doutrina e prática do processo civil contemporâneo. São Paulo, RT, 2001, p.127.

1 0 "Há pelo menos uma situação em que a autorização do marido é desnecessária à pro-positura de ação real imobiliária pela mulher: reivindicação de imóvel comum trans­ferido por ele à concubina (CC, art. 1.632, V, que estende a possibilidade a ambos). Nesse caso, há manifesto conflito de interesses entre os cônjuges, sendo prescindível até o suprimento do consentimento". (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p.71)

1 1 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p.285. Também as­sim, ARRUDA ALVIM, Thereza. O direito processual de estar em juízo. São Paulo, RT, 1996, p.41; BUENO, Cássio Scarpinella. Partes e terceiros no processo civil brasileiro, p.39; ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo, RT, 1979, p.l 18; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p.70. Na

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458 FREDIE DIDIERJR.

Quando a causa versar sobre direito real imobiliário, na coisa própria ou em coisa alheia, ambos os cônjuges devem ser citados (art. 10, parágrafo I o , I e IV, CPC) . 1 2 , 1 3 Aqui, diversamente, trata-se de hipótese de litisconsórcio passivo necessário.

O Código Civil não cuidou do problema da participação dos cônjuges nas ações possessórias (que não são demandas reais, pois o direito à proteção posses­sória não é direito real, embora se relacione, muitas vezes, com os direitos reais). O CPC trata do assunto no parágrafo 2° do art. 10: a participação do cônjuge, nes­tes casos, restringe-se às situações de composse e às causas que disserem respei­to a ato por ambos praticado. 1 4 Há duas observações importantes a fazer em torno desse parágrafo 2 o : a) Ele se refere exclusivamente às ações possessórias imobiliárias, embora não haja menção a essa qualidade no texto legal, que foi introduzido pela reforma de 1994 exatamente para esclarecer a extensão do caput e do parágrafo I o do art. 10 às ações possessórias - e esses dispositivos, como visto, somente se referem às ações imobiliárias. 1 5 b) Fala o dispositivo em "parti­cipação do cônjuge", locução que deve ser interpretada à luz dos outros enuncia­dos do art. 10: no pólo ativo, a "participação do cônjuge" dar-se-á pelo consen­t imento; 1 6 no pólo passivo, será exigido o litisconsórcio necessário.

doutrina lusitana, NETO, Abílio. Código de Processo Civil anotado. 16.ed. Lisboa, Edi-forum, 2001, p. 107.

1 2 Incs. I e IV do parágrafo I o do art. 10 do CPC: "Ambos os cônjuges serão necessaria­mente citados para as ações: I - que versem sobre direitos reais imobiliários; [...] IV - que tenham por objeto o reconhecimento, a constituição ou a extinção de ônus sobre imóveis de um ou de ambos os cônjuges".

1 3 "A previsão abrange também as hipóteses de vínculos e restrições impostos pelo tes-tador ou pelo doador, como inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabili-dade... Aqui não se trata de ação fundada em direito real, pois a causa de pedir está restrita aos fatos que, no entender do autor, revelem a existência ou o direito à consti­tuição ou extinção de um desses ônus. A pretensão não tem fundamento em direito real". (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p.72)

1 4 Parágrafo 2° do art. 10 do CPC: "Nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente é indispensável nos casos de composse ou de ato por ambos praticados".

1 5 Assim, CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Ci­vil. 9.ed. Rio de Janeiro, Forense, 2002, v.3, p.509.

1 6 Em sentido diverso, para quem o dispositivo contempla "um dos poucos casos de li­tisconsórcio necessário ativo", BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p.73.

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A PARTICIPAÇÃO DAS PESSOAS CASADAS NO PROCESSO 459

N o s casos menc ionados, poderá o cônjuge que não foi ouv ido : a) ingressar no processo e pedir a anulação dos atos até então praticados; b ) ajuizar ação rescisória (art. 485, V, do CPC/1973) , se a demanda tiver sido ajuizada pelo outro cônjuge sem o seu consentimento e já houver trânsito e m julgado; c) ajuizar ação de nul idade transrescisória (por exemplo: art. 741,1 , CPC/1973) o u ação rescisória, se não tiver sido citado em ação real o u possessória imobi l iár ia proposta contra o seu cônjuge. 1 7

A l é m disso, o parágrafo ún i co do parágrafo ún i co do art . 669 do C P C 1 8

impõe a in t imação do cônjuge do devedor, quando houver penhora de b e m i m ó ­vel . Esta exigência impõe a fo rmação de u m l i t isconsórcio ul ter ior necessário n o processo de execução e a sua falta é v í c io que pode ser argü ido a qua lquer t empo e grau de jur isd ição (art . 47 do C P C ) . A in t imação, nesses casos, justificava-se na regra de direito mater ia l que condic ionava a alienação de imóve l ao consent imen­to do outro cônjuge. 1 9 C o m o esta exigência não mais se aplica aos casos de casa­mento sob o regime da separação absoluta, o u de part ic ipação f inal nos aqüestos, havendo pacto antenupc ia l neste sentido (art . 1.656 do C C ) , quando houver penhora de devedor casado sob u m desses regimes, é desnecessária a int imação a que alude o parágrafo ún i co já menc ionado . 2 0

A s restrições apl icam-se a ambos os cônjuges, sem qualquer dist inção entre ma r i do e mulher . Deve o art igo ser interpretado restr i t ivamente, porque se trata de n o r m a que l imi ta o exercício de dire i tos. 2 1

3.3 Forma e prova do consentimento

A lei não prevê forma para o consent imento — diversamente do que fez c o m a aprovação (art . 1.649, parágrafo ún ico , CC/2002) , que é u m consent imento c o n ­cedido poster iormente à prát ica do ato. O consent imento prév io é, a pr inc íp io ,

1 7 Sobre o cabimento, nestes casos de litisconsorte necessário não citado, de querela nulli-tatis e até mesmo ação rescisória, ver FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Réu revel não cita­do, querela nullitatis e ação rescisória. In: Ensaios de direito processual. Rio de Janeiro, Forense, 2003, p.243-68.

1 8 Parágrafo único do art. 669 do CPC: "Recaindo a penhora em bens imóveis, será inti­mado também o cônjuge do devedor".

1 9 "A regra se revela simétrica à que exige vênia conjugai nos atos voluntários de aliena­ção ou de oneração dessa espécie de bens". (ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 7.ed. São Paulo, RT, 2001, p.646)

2 0 Anteviu a questão ASSIS, Araken de. Ibidem, p.646. 2 1 LOBO, Paulo Luiz Netto. Op. cit., p.258.

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460 FREDIE DIDIERJR.

ato de f o rma l i v re (art . 107 do CC/2002) . N a d a impede , po r exemplo, que a au to ­r ização para a propos i tura de ação real imobi l i á r ia (ar t . 1.647, I I ) seja dada na própr ia petição in ic ia l , u m a vez que, e m relação à prova do consent imento, se ap l i ­ca a regra d o art . 220 do CC/2002, segundo a qua l " a anuênc ia o u a autor ização de o u t r e m , necessária à va l idade de u m ato, provar-se-á do m e s m o m o d o que este, e constará, sempre que se possa, do própr io instrumento". H á , po r ém , outros meios de prova , po r exemplo: a) assinatura da procuração para o advogado que atuará n a causa; b ) documen to cr iado c o m essa exclusiva f inal idade, que será anexado à pet ição in ic ia l .

3.4 Aplicação dos dispositivos relacionados aos companheiros em união estável

Questão das mais tormentosas é a da apl icação desses dispositivos (art . 1.647 do CC/2002; art. 10 do CPC/1973) à un ião estável. C o m o é possível intuir , há duas possibi l idades, antagônicas entre s i , de interpretação do texto legal.

E m b o r a só se ref ira aos cônjuges, há q u e m defenda a extensão das exigên­cias deste art igo à un i ão estável, sob o a rgumento de que a ela se ap l i cam as regras da c o m u n h ã o parc ia l de bens (ar t . 1.725 do CC/2002) , salvo se houver contrato escrito e m que se estabeleça a separação absoluta . 2 2 Se se trata de u m b e m pertencente à c o m u n h ã o , a sua al ienação não poder ia presc indir do consen ­t imento de ambos os companhe i ros .

C u m p r e advert i r o seguinte: o terceiro, neste caso, f icaria u m tanto despro ­tegido, e m razão da ausência de registro da un ião estável. C o n v é m que o terceiro observe esta c i rcunstância na hora de celebrar o contrato. D e todo m o d o , fica-lhe garant ido o direito de regresso contra o companhe i ro que cont ra tou sem consen ­t imento. N ã o se nega que, na situação, haverá u m confl i to de interesses entre duas pessoas de boa-fé: o terceiro e o companhe i ro enganado. U m dos dois haver ia de ser prestigiado. À luz do art. 226, caput, da CF/1988, que aponta para a c i r cuns ­tânc ia de que o Estado deve dar especial proteção à famí l ia ( n o caso, a un i ão está­ve l ) , fica-se c o m a interpretação que protege o pa t r imôn io fami l ia r . 2 3

N o entanto, há c o m o pensar e m sentido contrár io .

Ibidem, p.258. "Por fim, reputo imperioso reservar o mesmo regime do art. 10 do Código de Processo Civil para as situações em que há união estável, sob pena de violar o comando do art. 226, parágrafo 3 o , da Constituição Federal. Evidentemente que a existência deste regime pode demandar a necessidade de prova a cargo do interessado. O que releva, no entan-

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A PARTICIPAÇÃO DAS PESSOAS CASADAS NO PROCESSO 461

É que , c o m o não há registro da existência da un ião estável, e embora a p u ­bl ic idade da relação seja u m requisito para a conf iguração desta ent idade f a m i ­liar, rea lmente torna-se dif íc i l ao terceiro proteger-se de eventuais prejuízos, não p o d e n d o ser apl icado esse reg ime processual especial aos companhe i ros . 2 4

O prob lema aumenta de t amanho quando se percebem as dif iculdades de estabelecer, c o m precisão, os l imites tempora is da un ião estável - desde quando a relação pode ser considerada c o m o ju r id i camente tutelada, a exigir a par t i c ipa ­ção do companhe i ro n a prát ica dos menc ionados atos? A segurança jur íd ica fica sobremodo compromet ida . Nesse caso, assegura-se ao companhe i ro (a ) p r e jud i ­c a d o ^ ) o direito de regresso contra sua(seu) c o m p a n h e i r a ( o ) .

A l ição de Gustavo Tepedino resume b e m essa postura doutr inár ia :

em matéria de direito de família, faz-se necessário extremar as normas que se des­tinam a regular os efeitos do casamento, como ato jurídico solene, das normas que vi ­sam disciplinar o casamento como relação familiar. Aquelas, à evidência, não po­dem ser aplicadas às uniões estáveis, já que dependem essencialmente do ato solene, pressuposto fático para a sua incidência. Assim, por exemplo, a disciplina do regime de bens e o título sucessório decorrente da qualidade jurídica de pessoa casa­da, bem como a exigência de outorga do cônjuge para a concessão de fiança. Cuida-se de regras que devem incidir exclusivamente sobre relações constituídas pelo casa­mento, título indispensável à sua aplicação em razão da segurança jurídica. A publicidade inerente à qualidade de pessoa casada vincula-se à ratio de tais normas, sendo dado a qualquer interessado constatar, junto aos registros públicos, o regime jurídico do cônjuge, com quem se pretende negociar ou cuja consistência patrimo­nial se quer conhecer. 2 5

to, é que, naqueles casos em que se sabe da existência da união estável, deverão os companheiros ser citados como litisconsortes, observando as regras aqui estudadas". (BUENO, Cássio Scarpinella. Op. cit., p.42). Também neste sentido, reconhecendo as "consideráveis dificuldades para se apurar a existência deste tipo de relação informal", ASSIS, Araken de. Suprimento da incapacidade processual e da incapacidade postu-latória. Op. cit., p.126.

2 4 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p.71; TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro, Renovar, 2004, v.I, p.455-6.

2 3 TEPEDINO, Gustavo. A proteção constitucional do casamento e das novas formas de entidades familiares: critérios interpretativos. Temas de direito civil. 2.ed. Rio de Janei­ro, Renovar, 2001, p.359.

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462 FREDIE DIDIER JR.

A questão merece t ratamento expresso do legislador. D e cara, convém a i m e ­diata r e fo rma do inc . II do art. 282 do C P C , de m o d o a se tornar obr igatór ia , na qual i f icação das partes, a menção à existência de un i ão estável (al iás, c o m o já v ê m fazendo os bancos nos contratos de m ú t u o ) . A despeito da ausência de regra-m e n t o expresso, as partes t êm o dever de in formar , e m suas qualif icações, a re la ­ção de companhe i r i smo , sob pena de l i t igância de má-fé.

O s valores e m jogo t êm status const itucional e merecem a atenção redobrada do intérprete/aplicador. O pr inc íp io da proporcional idade, c o m o é cediço, deve ser observado c o m o cr i tér io de ha rmon ização de confl i tos deste por te . Propõe-se a seguinte interpretação: a ) se se trata de un ião estável notór ia , a part ic ipação do companhe i ro , ao que parece, deve ser exigida, impondo-se a sua in t imação ; b ) se, e m b o r a n ã o sendo notór ia , for alegada nos autos, convém que t a m b é m se p r o v i ­denc ie a integração do ato c o m a in t imação do companhe i ro faltante; c) se não houver notor iedade n e m menção nos autos, após o trânsito e m ju lgado caberá ao companhe i ro preter ido apenas a pretensão regressiva contra o seu companhe i ro , não sendo possível cogitar qualquer caso de rescindibi l idade da sentença. A so lu ­ção, p o r é m , não pode ser alcançada e m u m juízo abstrato ( e m tese); o magistrado, à luz d o caso concreto, d iante das suas part icu lar idades, valendo-se da técnica da proporc iona l idade , é que encontrará a solução adequada.

3.5 0 controle da ilegitimidade processual do cônjuge

H á u m a dif íc i l questão que merece análise especial: pode o magistrado c o n ­t ro lar ex officio, o u po r provocação do r éu , a i legi t imidade processual do c ô n j u ­ge, que d e m a n d o u sem o consent imento do outro, o u esse controle somente pode ser feito a part i r da provocação do cônjuge preterido? Pode o magistrado indefe ­r i r a pet ição in ic ia l po r falta de comprovação da outorga?

D ian te da regra segundo a qual cabe ao magistrado o controle dos "pressupos­tos processuais" (art. 267, parágrafo 3 o , C P C ) , não haveria maiores dúvidas quanto à possibil idade de o juiz controlar t ambém a capacidade processual dos cônjuges.

Sucede que , po r força do art . 1.649 do CC/2002, somente o cônjuge pre te r i ­do t em legit imidade para pleitear a inval idação do ato prat icado sem o seu consen­t imento . 2 6 É característica da legit imação (de que é exemplo o art. 1.647 do

Art. 1.649 do CC/2002: A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando neces­sária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugai.

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A PARTICIPAÇÃO DAS PESSOAS CASADAS NO PROCESSO 463

CC/2002) a tutela de interesses estranhos ao sujeito que sofre a restrição da capa ­c idade: ao i m p o r o consent imento uxór io/mar i ta l , o legislador v isa a proteger o cônjuge que não prat ica o ato ju r íd i co . 2 7 N ã o pode , assim, o magistrado inval idar o p roced imento sem que o cônjuge preter ido o p rovoque - e isso m e s m o se o réu apontar a falta de comprovação do consen t imen to . 2 8 , 2 9

Essa situação, contudo, deixaria o processo permanentemente instável, pois a qualquer t empo poder ia comparecer o cônjuge preter ido, sol ic i tando a inva l ida ­ção dos atos prat icados; o u , caso não comparecesse ao longo do processo, o que é a inda mais grave, poder ia ajuizar ação rescisória da sentença po r v io lação aos textos legais menc ionados . O réu f icaria submet ido a situação bastante desigual, pois a sua v i tór ia f icaria na dependência de o cônjuge preter ido ficar e m silêncio.

H á , pois , u m conflito a ser resolvido: de u m lado, a regra mater ia l que restr in­ge a leg i t imidade para argüir a inva l idade, de out ro , a ut i l idade do exercício da função jur i sd ic iona l , que sempre deve ser protegida (exist indo, para isso, o poder geral de cautela do art. 798 do C P C ) .

A solução que me lho r compat ib i l iza os disposit ivos é a seguinte: o magist ra ­do, de of íc io o u a requer imento , deve determinar ao autor que traga a c o m p r o ­vação do consent imento ; se não a trouxer, o magist rado, valendo-se do poder geral de cautela e observando o seu dever de velar pela igualdade processual (art. 125,1, C P C ) , deve determinar a in t imação do cônjuge preter ido, que poderá : (a ) se calar, quando se presumirá o consent imento ; (b ) aprovar expressamente os atos já prat icados, dando o consent imento para o prosseguimento do processo; (c ) negar o consent imento , quando então poderá o magis t rado não admi t i r o p roced imento , inva l idando a demanda por incapac idade processual .

MANES, Humberto. A legitimação negociai. Rio de Janeiro, Liber Júris, 1982, p.56. Dizendo tratar-se de caso de "nulidade relativa", que necessita argüição do interessa­do, embora sem fazer referência ao Código Civil, THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 41.ed. Rio de Janeiro, Forense, 2004, v.I, p.76. Reco­nhecendo apenas ao cônjuge preterido a legitimidade para argüir a ausência de con­sentimento, CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Op. cit., p.510. O inc. VIII do art. 301 do CPC permite ao réu apontar a "falta de autorização", como defeito processual. Esse texto aplica-se às pessoas jurídicas autoras, quando a propositura da demanda por seu presentante exigir autorização prévia de um órgão societário. Em sentido diverso, reconhecendo a possibilidade de controle ex ojficio da falta de autorização, embora reconheça que a questão é polêmica, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p.70-1.

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464 FREDIE DIDIERJR.

3.6 Suprimento judicial do consentimento (art. 11 do CPC e art. 1.648 do CC/2002)

O magistrado poderá supr ir o consent imento de u m dos cônjuges, se houver recusa sem justo mot ivo o u quando for impossível ao cônjuge concedê-la (art. 1.648 do C C / 2 0 0 2 3 0 e art. 11 do CPC/1973 ) .

N ã o há qualquer ut i l idade na conceituação, e m abstrato, do que seja justo mot i vo . Será n o caso concreto, diante das pecul iar idades da situação que se lhe for apresentada, que o magis t rado aver iguará a re levância do mo t i vo da recusa do consent imento . 3 1

A impossibi l idade de concessão do consentimento, no entanto, é situação o b ­jetiva: toda vez que u m dos cônjuges não puder dar o consent imento, e m razão de impossibi l idade física, permanente o u temporár ia , o magistrado poderá supr ir a outorga. É o que pode ocorrer quando u m dos cônjuges estiver gravemente enfer­m o o u desaparecido, o u quando u m deles estiver serv indo o país e m u m a guerra. O art . 11 do C P C traz n o r m a semelhante.

O pedido de supr imento judicial da outorga será processado de acordo c o m as regras da jur isdição voluntár ia. Adotar-se-á o procedimento regulado nos arts. 1.103 a 1.111 do C P C / 1 9 7 3 . 0 outro cônjuge deverá ser citado, sob pena de nu l ida ­de, pois é interessado (art. 1.105 do CPC/1973) . Q u a n d o não puder manifestar-se (caso de impossibi l idade de concessão da autorização, por exemplo) , deverá o m a ­gistrado nomear-lhe curador especial, a f im de resguardar os seus interesses (art . 9 o , I , do CPC/1973, aplicado por analogia). O Min is tér io Públ ico deverá ser ouv ido, necessariamente, t a m b é m sob pena de nul idade (arts. 84 e 1.105 do CPC/1973) . D a decisão que conceder o u negar o pedido, caberá apelação (art. 1.110 do CPC/1973) . E m situações de urgência, é possível a concessão de prov imento antecipatório, desde que preenchidos os requisitos genéricos previstos no art. 273 do CPC/1973.

C a b e ao magis t rado ( juízo s ingular ) c o m competênc ia mater ia l para as c a u ­sas de famí l ia o supr imento da autorização mari ta l/uxór ia prevista neste art igo.

3 0 Art. 1.648 do CC/2002: Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a ou­torga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la.

3 1 Também neste sentido, SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Novo Código Civil comenta­do. São Paulo, Saraiva, 2002, p. 1.461. Eis os exemplos de Paulo Lobo: a) quando se prova que o ato é vantajoso ou necessário para ambos os cônjuges ou para a família; b) quan­do o ato de liberalidade (fiança, aval e doação) não leva a riscos desarrazoados ao pa­trimônio familiar. (Op. cit., p.258)

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A PARTICIPAÇÃO DAS PESSOAS CASADAS NO PROCESSO 465

C u m p r e advertir, p o r é m , que a competência terr itorial será a do domic í l io do c ô n ­juge que se recusa o u está impossibi l i tado de fornecer o consent imento (aplicação analógica do disposto no art. 94 do CPC/1973 ) . 3 2 Esse pedido de supr imento deve ser feito antes do ajuizamento do processo, no rma lmen te ; e m caso de urgência, é possível o ajuizamento sem o supr imento, pedindo ao magistrado da causa prazo para comprová- lo . Se o magis t rado competente para a causa t a m b é m o for para supr ir o consent imento , nada impede que, já na pet ição in ic ia l , se peça o sup r i ­mento da outorga. Neste caso, é imprescindível a instauração de u m incidente p r o ­cessual, e m que seja ouv ido o outro cônjuge - quando isso for possível - b e m c o m o o Min is tér io Públ ico. Esse inc idente deve suspender o processo.

4. DÍVIDAS SOLIDÁRIAS E LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO ENTRE OS CÔNJUGES (INCS. II E III DO PARÁGRAFO 1 o DO ART. 10 DO CPC)

O s incs. I I e I I I do parágrafo I o do art. 10 do C P C 3 3 trazem duas regras que revelam u m a desarmonia entre o direito processual e o direito material : i m p õ e m o l i t isconsórcio necessário passivo entre os cônjuges, quando demandados po r dív idas sol idárias. A sol idar iedade passiva dos cônjuges, nos casos previstos naqueles incisos, possui u m regramento processual diverso daquele previsto para a general idade das obrigações solidárias: o credor não pode escolher u m dos devedores para demandar , sendo eles casados entre si - retira-se, aqu i , o benef í ­cio do art. 275 do CC/2002 . 3 4 O C P C i m p õ e o l i t isconsórcio necessário sem n o r m a de direito mater ia l que dê qua lquer ind icação nesse sentido.

E is as hipóteses:

E m pr imei ro lugar, o inc. I I impõe o l it isconsórcio quando se tratar de de ­m a n d a resultante de fatos que d igam respeito a ambos os cônjuges o u de atos pra-

Diante da igualdade dos cônjuges prevista constitucionalmente, não se deve mais apli­car a regra do art. 100,1, do CPC/1973, que poderia ser usada como parâmetro para a analogia, que prestigia o foro do domicílio da esposa para as causas que disserem respeito ao casamento. Art. 10 , incs. II e III, do CPC: II — resultantes de fatos que digam respeito a ambos os cônjuges ou de atos praticados por eles; III - fundadas em dívidas contraídas pelo marido a bem da família, mas cuja execução tenha de recair sobre o produto do tra­balho da mulher ou os seus bens reservados [...]. Art. 275 do CC/2002: O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.

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t icados po r eles. São hipóteses de causas de responsabi l idade c iv i l . O art . 942 do CC/2002 prevê a responsabi l idade sol idária de todos os co-autores da ofensa. 3 5

H á sol idariedade passiva por força de lei (art . 265 do CC/2002) , mas o fato de os co-autores serem casados entre si redefine o regime jur íd ico processual dessa o b r i ­gação solidária, ret i rando do credor o benefício do art. 274 do CC/2002, i m p o n d o o l i t isconsórcio necessár io. 3 6

Agora , o inc. I I I :

A o m e s m o tempo e m que submete o cônjuge à necessidade de consent imen­to p rév io do out ro , para a prát ica de certos atos (ar t . 1.647 do CC/2002; art. 10, caput, CPC/1973 ) , a legislação cu idou de especificar alguns atos que p o d e m ser prat icados sem a vênia conjugai (art . 1.643 do CC/2002 ) . 3 7 Trata-se de atos rela­c ionados à admin is t ração da economia domést ica.

Es ta permissão aplica-se a qua lquer reg ime de bens. Cria-se u m a presunção legal iure et de iure de que o cônjuge está, nesses casos, autor izado pelo out ro c ô n ­juge a cont ra i r d ív idas.

Assim, não pode o outro cônjuge alegar a falta de sua autorização, quando ficarem evidenciadas as despesas de economia doméstica, que ele e os demais membros da família foram destinatários. Não se incluem as despesas suntuárias ou supérfluas, ainda que tendo destino o lar conjugai, pois não se enquadram na economia doméstica cotidiana. 3 8

O art. 1.644 d o C C / 2 0 0 2 3 9 cr ia u m a regra de sol idar iedade legal (ar t . 265 do CC/2002) entre os cônjuges, c o m relação às dív idas contra ídas para os fins de admin is t ração da economia domést ica. N o s casos de cobrança de tais d ív idas, e m

Art. 942 do CC/2002: Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de ou­trem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932. "Não fossem os autores casados, a responsabilidade solidária tornaria desnecessária a formação do litisconsórcio (CC, art. 942). A existência da sociedade conjugai, toda­via, afasta a faculdade de escolha conferida ao credor pelo legislador material". (BE-DAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p.71) Art. 1.643 do CC/2002: Podem os cônjuges, independentemente de autorização um do outro: I - comprar, ainda a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica; II — obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir. LOBO, Paulo Luiz Netto. Op. cit., p.252. Art. 1.644. As dívidas contraídas para os fins do artigo antecedente obrigam solidaria­mente ambos os cônjuges.

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A PARTICIPAÇÃO DAS PESSOAS CASADAS NO PROCESSO 467

razão da sol idar iedade legal e da regra do art. 10, parágrafo I o , I I I , CPC/1973 , exige-se a formação de l it isconsórcio passivo necessário entre os cônjuges, para que se possam atingir os bens de ambos os cônjuges. C o m o observa Pau lo L o b o : "essa n o r m a , e m con junto c o m os arts. 1.659, I V , e 1.664, ence r r am as hipóteses nas quais o p a t r i m ô n i o c o m u m responde por d ív idas contra ídas por u m dos cônjuges" . 4 0 E m b o r a solidária a dív ida, nesses casos, os devedores-cônjuges devem ser demandados con jun tamente e não isoladamente.

A redação do inc . I I I do parágrafo I o do art. 10 do C P C precisa ser revista: não se restringe mais ao ma r i do a possibi l idade de contra i r d ív idas e m n o m e da famí l ia n e m se pode mais falar de b e m reservado da mulher . Viu-se que ambos são autor izados a contra i r as dív idas para a economia domést ica e r espondem por elas so l idar iamente . Justif icava-se o inc iso e m razão da possibi l idade de a mu lhe r responder, c o m seus bens, por d ív idas contra ídas e m benef íc io da f am í ­lia (art . 246, parágrafo ún ico , do CC/1916, e art. 3 o da L e i Federa l n. 4.121/1962). C o m o agora há sol idar iedade legal, é desta fo rma que deve ser l ido o m e n c i o n a ­do disposit ivo da legislação processual: a cobrança de d ív idas or iundas dos negó ­cios previstos n o art . 1.643 do CC/2002 deve ser d i r ig ida a ambos os cônjuges e m l i t isconsórcio necessário, se se quiser executar bens de ambos . 4 1 A falta de citação de u m deles impede que a sentença lhe possa produz i r qua lquer efeito, embora possa ser executada e m face do cônjuge já c i tado.

O caso é de l i t isconsórcio necessário s imples po r força de lei . A s s i m , se não houver a citação de u m dos cônjuges, o processo é va l ido e eficaz para aquele que foi citado, mas a execução não poderá recair sobre os bens que c o m p o n h a m a mea-ção o u os bens part iculares do cônjuge não c i tado. 4 2

LOBO, Paulo Luiz Netto. Op. cit., p.252. Em sentido diverso, para quem, nos casos de dívida contraída pela mulher, com base nos artigos 1.643 e 1.644 do CC/2002, tendo em vista a inexistência de previsão de litisconsórcio necessário, é desnecessária a citação do marido na demanda proposta contra a devedora, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Op. cit., p.72. THEODORO JÜNIOR, Humberto. Op. cit., p.77.

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A P R O C L A M A Ç Ã O D A L I B E R D A D E D E N Ã O P E R M A N E C E R C A S A D O ( O U U M R É Q U I E M PARA A C U L P A N A D I S S O L U Ç Ã O DAS R E L A Ç Õ E S AFETIVAS)

CRIST IANO CHAVES DE FARIAS*

Sumário 1 . A carta de alforr ia das relações afetivas. 2. Escorço histór ico da culpa c o m o elemento integrante da d is ­solução do v íncu lo afetivo. 3. A necessária perspectiva const i tuc ional do Di re i to C i v i l e a af i rmação do p r i n ­c íp io da d ignidade da pessoa h u m a n a c o m o funda ­men to da o rdem jur íd ica brasileira. 4. A famí l ia c o m o ins t rumento de p romoção da felicidade. 5. O direito de não permanecer casado c o m o material ização da d ign idade da pessoa h u m a n a . 6. A imposs ib i l idade de a f i rmar o cu lpado pelo f i m do sonho c o m u m . 7. D a inconst i tuc iona l idade na discussão da culpa. 8. O interesse ju r íd ico na discussão da culpa. 9. E s p a n c a n ­do a cu lpa para preservar a o r d e m const i tuc iona l : proposta de alteração d o Cód igo C i v i l . Referências bibl iográf icas.

Promotor de Justiça — Bahia. Mestre em Ciências da Família pela Universidade Cató­lica do Salvador (UCSal). Professor do Curso de Direito da Universidade Salvador (UNIFACS) (Graduação e Pós-graduação); do Curso de Direito das Faculdades Jorge Amado (Graduação e Pós-graduação); da Faculdade de Direito da Universidade Cató­lica do Salvador (UCSal); do JusPODIVM - Centro Preparatório para as carreiras jurí­dicas; e da FESMIP - Fundação Escola Superior do MP/BA. Membro do IBDFAM -Instituto Brasileiro de Direito de Família e do IBDP - Instituto Brasileiro de Direito Processual.

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A PROCLAMAÇÂO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 469

" O que gostaria de conservar na família no terceiro milênio são os seus aspectos mais positivos: a solidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, os laços de afeto e

o amor. Belo sonho." (Michelle Perrot)

1. A CARTA DE ALFORRIA DAS RELAÇÕES AFETIVAS

E m memoráve l passagem, consol idando entendimento esposado há mu i to pela m e l h o r dout r ina brasi leira, a 7 a C â m a r a C í ve l do vanguardista T r ibuna l de Justiça do R i o G r a n d e do Su l , po r unan im idade - no ju lgamento da Ape lação C í ­ve l n. 70005834916 - de Por to Alegre, relatado pelo eminente Desembargador José Car los Teixeira G iorg is -, afastou def in i t ivamente a discussão da cu lpa na sepa­ração jud ic ia l .

O acórdão, lavrado em 2 de abr i l de 2003, p roc l amando ideais de c idadania , é o sinal definit ivo e peremptór io de u m a nova or ientação jur isprudenc ia l , sepul ­tando a culpa c o m o e lemento de relevo ju r íd i co , apesar das referências do novo Cód igo C i v i l .

Enfim, é verdadeira carta de al forr ia das relações afetivas, pois impede que se discuta a cu lpa pela falta de amor , pela negativa de afeto.

Veja-se a ementa do br i lhante aresto:

Separação judicial litigiosa. Violação dos deveres conjugais. Culpa. Prova. Descabimen-to. Dano moral. Impossibilidade, embora admitido pelo sistema jurídico. É remansoso o entendimento de que descabe a discussão da culpa para a investiga­ção do responsável pela erosão da sociedade conjugai.

A vitimização de um dos cônjuges não produz qualquer seqüela prática, seja quanto à guarda dos filhos, partilha de bens ou alimentos, apenas objetivando a satisfação pessoal, mesmo por que difícil definir o verdadeiro responsável pela deterioração da arquitetura matrimonial, não sendo razoável que o Estado invada a privacidade do casal para apontar aquele que, muitas vezes, nem é autor da fragilização do afeto. A análise dos restos de um consórcio amoroso, pelo Judiciário, não deve levar à degradação pública de um dos parceiros, pois os fatos íntimos que caracterizam o casamento se abrigam na preservação da dignidade humana, princípio solar que sus­tenta o ordenamento nacional.

Embora o sistema jurídico não seja avesso à possibilidade de reparação por danos mo­rais na separação ou no divórcio, a pretensão encontra óbice quando se expurga a discussão da culpa pelo dissídio, e quando os acontecimentos apontados como desa-bonatórios aconteceram depois da separação fática, requisito que dissolve os deve­res do casamento, entre os quais o da fidelidade.

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470 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

Não há dor, aflição ou angústia para indenizar quando não se perquire a culpa ou se define o responsável pelo abalo do edifício conjugai. Apelação desprovida. (TJ/RS, Ac. 7 a Câm.Cív., Ap. Cív.70005834916 - Porto Alegre, Rei. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, v.u., j . 2/4/2003)

Cuidou-se, na oportunidade, de ação de separação judicial, na qual um dos separandos tentou impingir ao outro consorte a culpa pela separação judicial, alegando ter ocorrido grave violação de deveres do casamento.

A Egrégia Corte gaúcha, no entanto, em candentes palavras, afirmou ser "absolutamente inadequada a discussão sobre a culpa na erosão da arquitetura familiar, mesmo sob os augúrios da atual legislação civil". Assim, o insucesso das empreitadas amorosas não mais poderá servir como elemento produtor de efei­tos jurídicos.

2. ESCORÇO HISTÓRICO DA CULPA COMO ELEMENTO INTEGRANTE DA DISSOLUÇÃO DO VÍNCULO AFETIVO

Compreendida como a quebra intencional dos deveres matrimoniais bilate-ralmente impostos (art. 1.566, novo Código Civil), a culpa sempre atribuiu, àque­le que descumpre tais obrigações amorosas (se é que existem!), conseqüências como: a perda de determinados direitos e a imposição de determinadas sanções de índole civil e penal.

Sem olvidar a bíblica afirmação da culpa, 1 a história relata curiosas passa­gens, relacionadas ao elemento anímico, como necessário à ruptura do vínculo ma­trimonial. No Código de Manu, a mulher que se mostrasse estéril, depois de oito anos de casada, era repudiável, bem como aquelas que, durante onze anos, so­mente gerassem filhas. No direito mosaico, a dissolução submetia-se simplesmen­te à vontade do marido. Entretanto, provado o adultério da mulher, o repúdio tornava-se dever jurídico e religioso, sendo o marido constrangido a defender a sua dignidade. Já no Código de Justiniano, a mulher adúltera era açoitada e en­cerrada em u m mosteiro, aguardando o prazo de dois anos para que o marido a reclamasse. Não o fazendo, no referido lapso temporal, aplicava-se-lhe uma sur­ra pública, devolvendo-a à sociedade.

Conforme Gênesis 3:14 a 17, bem lembrada por TEPEDINO, Gustavo, asseverando, por isso, que na "nossa mais profunda tradição ética, o prazer não é facilmente absorvido desvinculado do elemento culpa", cf. Temas de direito civil, Rio de Janeiro, p.368.

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A PROCLAMAÇÃO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 471

A s Ordenações F i l ip inas ( L i v ro V, T í tu lo 28) , que tanto inf luenc iaram o n o s ­so direito, t raz iam passagem singular, pe rmi t indo ao h o m e m casado que e n c o n ­trasse sua mulher em adultério matá-la, b e m como matar ao adúltero, "salvo se o mar ido fo(sse)r peão e o adúltero fidalgo o u nosso Desembargador o u pessoa de ma io r qual idade". E ma i s , se o ma r i do enganado fosse leve, m o r n o , na execução da pena imputada à esposa adúltera, ser iam

ele (o marido) e ela açoutados com senhas, capelas de cornos e degradados para o Bra­sil e o adúltero ser(ia)á degradado para sempre para a África, sem embargo de o ma­rido lhes querer perdoar.

En t r e nós, p roc l amando o pr inc íp io da indissolubi l idade do m a t r i m ô n i o , o Código C iv i l de 1916 afastou-se da possibilidade de divórcio, considerando "a res­peitabil idade, c o m que é cercada a famí l ia brasi leira, a honest idade de nossas p a ­tr ícias, os costumes de nosso povo" , que , juntos , con t r i bu í r am não só para que fosse dispensado "o me io extremo do divórcio", c o m o o to rna ram "sobremodo n e ­fasto", con fo rme a l ição do p rópr io C lóv i s Bev i l áqua . 2

Permitia-se, tão-somente, o desquite (hoje rebatizado de separação judicial), submet ido, sempre, a causas graves e determinadas, 3 todas expressas e m lei. Ass im, na redação pr imi t i va do Cód igo C i v i l de 1916 (arts. 317 e 318), o desquite era per ­m i t ido apenas nas taxativas hipóteses de adultér io, tentativa de mor te , sevícias o u injúr ia grave e abandono vo luntár io do lar, por mais de dois anos cont ínuos, a l ém do m ú t u o consent imento dos consortes, quando casados por mais de dois anos.

Estava, ass im, a f i rmada a culpa c o m o e lemento propulsor da dissolução da sociedade conjugai . E ma is , audac iosamente, o legislador erigia as condutas c u l ­posas, c o m o se fosse possível u m prontuár io de compor tamentos atentatórios da estabil idade m a t r i m o n i a l .

C o m o advento da Le i n. 6.515/1977 - Le i do D i vó rc io - , todavia, foi possível "respirar aliviado", c o m o b e m anotou o preclaro R o l f Mada l eno , mentor de a v a n ­çadas teses jur ídicas, já que foi admit ida a separação sem culpa, fundada em ou-

2 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito da família, p.280. Não é demais relembrar trecho da lição do mestre cearense, pela qual não seria "inexato afirmar que há indivíduos predestinados ao divórcio, como os há para o crime; e que outros, passando por sucessivas dissoluções matrimoniais, adquirem a incorrigibilidade". Por isso, enten­dia que "para uns tais, permissão de novos casamentos seria lamentável imprevi-dência".

3 Era nítida a excepcionalidade da dissolução matrimonial, por isso ponderava Bevilá­qua, com inspiração na legislação muçulmana, que "se faltam boas razões", não se pode aprovar a dissolução, nem religiosa, nem juridicamente, BEVILÁQUA, Clóvis. Ibidem, p.280.

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472 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

tras causas, a l ém do p róp r io direito ao d ivórc io . 4 Q u e d o u , pois , o sistema taxat i ­

vo de causas culposas e admit iu-se a dissolução sem culpa. 5

Desembocando n o novo Cód igo C i v i l , conquanto se detectasse, há anos, t en ­dência para rechaçar a presença da culpa na legislação brasileira, fruto de inúmeras manifestações dout r iná r i as 6 e jur isprudencia is , fo i mant ida , a inda que res idua l ­men te , a possibi l idade de seu reconhec imento , consoante a regra estatuída nos arts. 1.572, 1.573, 1.578 e 1.704, parágrafo único.

V is lumbra-se , pelo fio do exposto, que a culpa sempre esteve arraigada na

legislação inf raconst i tuc iona l brasi leira, t razendo consigo " a idéia de pun ição , de

vingança" , c o m o percebeu a genial idade de Rodr igo da C u n h a Pere i ra . 7

3. A NECESSÁRIA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL DO DIREITO CIVIL E A AFIRMAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO DA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA

É f undamenta l ressaltar que o D i re i to de Famí l i a con temporâneo - e o D i ­reito C i v i l c o m o u m todo - não pode distanciar-se da legal idade const i tuc ional , impondo-se estrita obediência às premissas fundamenta is postas na Carta Magna,

pois consistentes nos valores mais relevantes da o r d e m jur íd ica brasi leira. É que a Lex Fundamentallis de 1988, p rop ic iamente apel idada de " cons t i tu i ­

ção cidadã", ve io a red imens ionar a c iência jur íd ica , f ra turando a h istór ica dico-tomia "púb l i co versus pr ivado" , quando estabeleceu pr inc íp ios e n o r m a s dir igi-

4 MADALENO, Rolf. Direito de família: aspectos polêmicos, p.175. 5 É clara a lição de OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de e MUNIZ, Francisco José Fer­

reira, explicitando a pluralidade de modelos separatórios da Lei do Divórcio, resul­tando em três modalidades: "por mútuo consentimento, também chamada 'separa­ção consensual' e as duas modalidades litigiosas, dominadas pelo princípio da culpa e pelo princípio da ruptura", respectivamente. Curso de direito de família, p.429.

6 Sobre o tema, consulte-se TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p.367 e ss.; MADALENO, Rolf. Op. cit., p.171 e ss.; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A culpa no desenlace conjugai. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; LEITE, Eduardo Oliveira (coords.). Repertório de doutrina sobre direito de família, p.322 e ss.; OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Francisco José Ferreira, Op. cit., p.421 e ss.; MIZRAHI, Maurício Luis. Famí­lia, matrimônio y divorcio, p.197 e ss., além de DIAS, Maria Berenice. Da separação e do divórcio. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords.). Direito de família e o novo código civil, p.70 e ss., afirmando esta última, com a experiência resul­tante da atuação em causas de família, ser "retrógrada a mantença da necessidade de identificação de um culpado para que seja concedida a separação".

7 Cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p.327.

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A PROCLAMAÇÃO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 473

dos ao D i re i to C i v i l , de te rm inando u m a nova le i tura, u m a revisita dos inst itutos fundamenta is do Dire i to C iv i l . E m outras palavras, a Const i tu ição da Repúbl ica, mais do que estabelecer l imites externos para as at iv idades pr ivadas, confer iu novo conteúdo aos inst itutos pr i vados .

A s s i m , "d iante da real idade const i tuc ional , tendo e m conta o cu idado do const i tuinte e m def in i r pr inc íp ios e valores bastante específicos no que concerne às relações de direito c iv i l " , é forçoso " redesenhar o tecido do direito c iv i l à luz da nova Const i tu ição" , na v isão aguçada de Gustavo Tepedino, pon to l uminoso da civi l íst ica brasi le ira. 8

Nesta tr i lha de rac ioc ín io , impor t a destacar que o ma is precioso va lor da o r d e m jur íd ica brasi leira, er igido c o m o fundamenta l pela Const i tu ição de 1988, fo i a dignidade da pessoa humana, que, como consectário, impõe a elevação do ser h u m a n o ao ápice de todo o sistema jur íd ico , sendo-lhe at r ibu ído o va lor supre ­m o de alicerce da o rdem jur ídica. A dignidade da pessoa humana, pois, serve como mo l a de propulsão da intangibi l idade da v ida do h o m e m , dela def lu indo

o respeito à integridade física e psíquica das pessoas, a admissão da existência de pres­supostos materiais (patrimoniais, inclusive) mínimos para que se possa viver e o res­peito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade. 9

C o m Ingo Wo l fgang Sarlet, a d ignidade h u m a n a é "qua l idade intrínseca e dist intiva de cada ser h u m a n o que o faz merecedor do m e s m o respeito e conside­ração po r parte do Estado e da comunidade" , obstando todo e qualquer "ato de cunho degradante e desumano" , a lém de propic iar e p romove r sua part ic ipação ativa e co-responsável nos destinos da própr ia existência e da v ida e m c o m u n h ã o c o m os demais seres h u m a n o s . 1 0

O r a , o reconhec imento da fundamenta l idade da d ign idade h u m a n a i m p õ e u m a nova postura aos civilistas modernos (especialmente aqueles que laboram c o m o Di re i to de F am í l i a ) , devendo, na interpretação e apl icação de no rmas e conce i ­tos jur íd icos , assegurar a v ida h u m a n a de fo rma integral e p r io r i t á r i a . "

8 Cf. TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 13. 9 Com este pensar, AZEVEDO, Antônio Junqueira de. A caracterização jurídica da dignidade

da pessoa humana, Revista trimestral de Direito Civil—RTDC, n.9, p.3-24. 1 0 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, p.60. 1 1 A jurisprudência vem procurando dar efetiva aplicação ao princípio da dignidade hu­

mana, buscando interpretar as normas à luz deste basilar preceito. Veja-se ilustrativa-mente: "A saúde, como bem intrinsecamente relevante à vida e à dignidade humana, foi elevada pela atual CF à condição de direito fundamental do homem. Assim, ela não po­de ser caracterizada como simples mercadoria, nem confundida com outras atividades econômicas. O particular que presta uma atividade econômica correlacionada com

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474 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

4. A FAMÍLIA COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DA FELICIDADE

Postas estas premissas, é possível enxergar a famí l ia sempre e m u m a pers ­pect iva const i tuc iona l , abandonando o caráter de instituição jurídica e passando a merecer tutela c o m o verdadei ro instrumento de a f i rmação da realização pessoal do ser h u m a n o , valorizados os seus aspectos espirituais e o desenvolv imento de sua persona l idade, e m combate à feição pa t r imon ia l , até então p redominan te .

A famí l ia de ixou de ser f i m e passou a ser m e i o ; u m ins t rumento . Des co ­briu-se que as pessoas não nascem c o m o f i m específico de constituir famíl ia , mas , ao revés, nascem voltadas para a busca de sua felicidade e realização pessoal, como conseqüência lógica da a f i rmação da dignidade do homem.

Da í a necessidade de u m a visão essencialmente funcionalizada da família, c o m o o locus pr iv i leg iado para o desenvolv imento da personal idade e a f i rmação da d ign idade de seus m e m b r o s . 1 2

A famí l ia , forjada na dignidade da pessoa humana," passa a atender u m a n e ­cessidade v i t a l : ser fel iz. 1 4

E é a par t i r deste impostergável direito de ser feliz que se edif ica, na sensível análise de A lexandre Rosa : 1 5

serviços médicos e de saúde possui os mesmos deveres do Estado, ou seja, prestar assis­tência médica integral aos consumidores dos seus serviços, entendimento esse que não se sustenta somente no Texto Constitucional ou no CDC, mas, principalmente, na lei de mercado de que quanto maior o lucro, maior também o risco. Em razão das peculiari­dades fáticas e jurídicas do caso, deve o plano de saúde ressarcir o consumidor das des­pesas médico-hospitalares decorrentes de transplante de fígado". (TA/MG, Ap. Cív. 264.003-9 - Belo Horizonte, Ac. unân. 4a Câm. Cív., Rei. Juíza Maria Elza, publ. D//MG 12/5/1999)

1 2 A lição, mais uma vez, é do emérito TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p.349-50, para quem a Lei Maior alterou o conceito de família, afirmando uma idéia "flexível e ins­trumental", voltado "para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalida­de de seus membros".

1 3 Pondera SOUSA, Otávio Augusto Reis de, ilustre civilista radicado em Sergipe, em inte­ressante trabalho, que os deveres familiares, quando discutidos em juízo, devem estar limitados "pelo respeito à individualidade e à dignidade humana". In: Débito conjugai e suas vicissitudes, Revista da APG—Associação dospós-graduandos da PUC/SP, n. 18, p. 127.

1 4 Comunga com este entendimento o insigne civilista português CAMPOS, Diogo Leite de, que também propugna ser a entidade familiar instituto "destinado a ser instrumen­to da felicidade" das pessoas envolvidas. Desta maneira, surge um direito de dissolver o vínculo quando um deles "entende que essa felicidade, pelo menos no que lhe diz respeito, já não pode ser obtida". Lições de direito da família e das sucessões, p.271.

1 5 ROSA, Alexandre. Amante virtual - (In)Conseqüências no direito de família e penal, p. 129.

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A PROCLAMAÇÃO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 475

uma nova concepção de família, informada por laços afetivos, de carinho, de amor. Constrói-se o paradigma do desamor, no qual ninguém é obrigado a viver com quem não esteja feliz, preponderando o respeito e a dignidade da pessoa humana.

Nesse passo, percebe-se que a valorização do afeto nas relações familiares não pode cingir-se apenas ao momento da celebração do casamento (formação da en­tidade familiar), devendo perdurar por toda a relação. Disso resulta que, cessado o afeto, está ruída a base segura de sustentação da família, exsurgindo a dissolu­ção do vínculo como modo de garantir a dignidade da pessoa. 1 6

Corolário do que se expôs é a necessidade de revisitar os institutos do Direito de Família (como a separação, o divórcio, a guarda, a tutela, a curate-la, os al imentos. . . ) , 1 7 adequando suas estruturas e conteúdo à legalidade cons­titucional, funcionalizando-os para que se prestem à afirmação dos valores mais significativos da ordem jurídica brasileira, proclamados na Lex Mater, como a dignidade da pessoa humana (art. 1°, III), a solidariedade social (art.

3 o ) , a igualdade substancial (arts. 3 o e 5°), a int imidade e a vida privada (art. 5°, X, XI e XII).

O Direito de Família acata, pois, as diversas modificações consolidadas na dinâmica familiar, buscando aplicar, no plano jurídico, a "democratização da in­timidade e dos sentimentos", vislumbrada pela percepção de Anthony Giddens, 1 8

reconstruindo o seu conteúdo com a valorização da pessoa humana e aproximan­do-se da realidade humana, levando em conta a renovação das práticas afetivas, emocionais e - por que não? - sexuais.

5. O DIREITO DE NÃO PERMANECER CASADO COMO MATERIALIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Admitida primitivamente em caráter excepcional, como visto alhures, a dis­solução do vínculo afetivo há de ser compreendida, hoje, como verdadeiro direi­to da pessoa humana.

No lúcido olhar de Fachin,

1 6 Assim, MIZRAHI, Maurício Luis. Op. cit., p.162. 1 7 Com idêntico pensar, anota FACHIN, Luiz Edson que para esse novo olhar da famí­

lia e do Direito de Família, "a releitura desses estatutos fundamentais é útil e necessá­ria para compreender a crise e a superação do sistema clássico". Elementos críticos do direito de família, p.5.

1 8 GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas, p.205 e ss.

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476 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

uma história construída a quatro mãos tende ao sentido de permanência. Todavia, a liberdade de casar convive com o espelho invertido da mesma liberdade, a de não permanecer casado. 1 9

Deste modo, findos os projetos e anseios comuns - que servem como base de sus­tentação do casamento - exsurge a dissolução do matr imônio como conseqüência natural, consubstanciando u m direito exercitável pela simples vontade do indivíduo.

Veja-se que a proteção dev ida à d ignidade h u m a n a (ar t . I o , III, C F ) 2 0 encer ­ra verdade i ro direi to fundamenta l , genérico, do h o m e m , consubstanc iando u m a cláusula geral de proteção da personalidade o u teoria geral de personalidade.21 N e s ­sa m e s m a esteira, a Declaração dos Direitos do Homem (art . 12) e a Convenção da

Europa (a r t . 8 o ) ou to rgam direitos fundamenta is ao h o m e m , confer indo p ro t e ­ção à v i da p r i vada e a famil iar.

O r a , c o m o a cláusula geral de proteção da personal idade h u m a n a p r o m o v e a dignidade do homem, não há dúv idas de que se é direito da pessoa h u m a n a cons ­t i tu i r núc leo famil iar , t a m b é m é direito seu não mante r a ent idade fo rmada , sob pena de comprometer- lhe a existência d igna.

C o n f o r m e R o l f M a d a l e n o , respeitando a dignif icação pessoal do h o m e m , a separação jud ic ia l é u m direito const i tuc iona lmente assegurado, pois " l i v r a os cônjuges o u conviventes da degradação de con t inua rem sendo infel izes". 2 2

M a i s incis ivo, A lexandre Rosa, fundado n o pr inc íp io da dignidade da pessoa

humana, percebe a valor ização do ind i v íduo , reconhecendo, a par t i r da man i f e s ­tação do desinteresse n a cont inu idade ma t r imon i a l , u m

direito constitucional de serem felizes e dar cabo àquilo que lhes aflige, sem inventar motivos. 0 casamento/união - como visto - é a confluência de interesses, inclusive erótico-afetivo. Não existindo esse elo o melhor é terminar. 2 3

E is o s inal dos tempos : afirma-se o direi to de não mante r o núc leo fami l iar const i tu ído c o m o conseqüência na tura l da proteção da d ign idade da pessoa h u m a n a .

FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p.169. No mesmo diapasão, a Constituição da Alemanha, em seu artigo I o , introduziu um direito geral de personalidade, salvaguardando a dignidade humana. Com esse pensar, TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p.23 e ss., e SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela, p.56 e ss., percebendo este último, profícuo civi-lista paranaense, que esta cláusula geral de proteção da personalidade possibilita "tu­tela ampla da personalidade humana contra os ataques à mesma dirigidos". Cf. MADALENO, Rolf. Op. cit., p.158. Cf. ROSA, Alexandre. Op. cit., p.88.

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A PROCLAMAÇÃO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 477

Trata-se, aliás, de direito potestativo extintivo,24 u m a vez que se atr ibui ao c ô n ­juge o poder de, mediante sua simples e exclusiva declaração de vontade, modif icar a situação jur ídica famil iar existente, projetando efeitos e m sua órbita jurídica, b e m como na de seu consorte. E n f i m , trata-se de direito (potestativo) que submete-se apenas à vontade do cônjuge, a ele reconhecido c o m exclusividade e marcado pela característica da indisponibilidade, como corolário da af irmação de sua dignidade.

B e m percebe Rod r i go da C u n h a Pereira que

no casamento, quando se depara com o cotidiano, e o véu da paixão já não encobre mais os defeitos do outro, constata-se uma realidade completamente diferente da­quela idealizada.25

Po r isso, fracassada a cumpl i c idade almejada, ao menos e m tese, c o m a v ida e m c o m u m , resta reconhecer o direito de ambos os cônjuges — m e s m o do eventual responsável ( e m todos os sentidos) pela rup tu ra - de p r o m o v e r a dissolução m a t r i m o n i a l . 2 6

Esta já é, inc lusive, a solução acolhida no avançado direito a lemão, consubs ­tanc iada n o Cód igo C i v i l (BGB, parágrafo 1.565, a l . 1), reconhecendo u m direito material ao divórcio,27 tendo c o m o única causa o fracasso da união conjugai.

A s s i m , é descabida qua lquer pesquisa sobre a culpa, u m a vez que a rup tu ra conjugai der iva, apenas, da vontade de exercitar o direito à dissolução, que aliás, já é a or ientação emanada da Co r t e do R i o G r a n d e do Su l :

há que emprestar-se valor jurídico à impossibilidade de manutenção do casamento, pela ausência da affectio que lhe é própria, não se podendo condenar "a convivên­cia dois seres que não mais se suportam, pela singela razão de que não restou devida­mente estampada nos autos a culpa sob qualquer de suas formas. Decretada a sepa­ração judicial sem culpa, face à evidente falência do matrimônio. (TJ/RS, Ap. Cív. 70.000.410.688, Ac. 7a Câm. Cív., Rei. Des. Luiz Felipe Brasil Santos)

Sobre a noção de direito potestativo, seja consentido remeter a RÂO, Vicente, que esclarece cuidar-se daqueles "direitos formados pela faculdade de constituir ou extin­guir uma relação jurídica, mediante declaração unilateral de vontade". O direito e a vida dos direitos, p.898. Cf. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p.326. Exatamente com este pensar, OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de; MUNIZ, Fran­cisco José Ferreira. Op. cit., p.423. Afirmando estas idéias, SCHLÜTER, Wilfried. Código Civil alemão - Direito de famí­lia (BGB - Familienrecht), p.241, chega mesmo a apregoar que "se uma união conju­gai - pelo motivo que seja - estiver fracassada, ela pode ser dissolvida por divórcio a pedido de qualquer cônjuge".

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0 entendimento atual é no sentido de se afastar a identificação do culpado pela rup­tura da sociedade conjugai. Mantém-se a separação do casal sem atribuição de culpa. (TJ/RS, Ap. Cív. 70.002.690.824, Ac. 7 a Câm. Cív., Rei. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j.19/12/2001)

Va le c i tar a inda recente decisão d o S u p e r i o r T r i b u n a l de Just iça , g a r a n t i n ­do o d i re i to à separação pe lo s imples desamor , vazado e m lóg ica e r azoab i l i ­dade :

Evidenciada a insuportabilidade da vida em comum, e manifestado por ambos os côn­juges, pela ação e reconvenção, o propósito de se separarem, o mais conveniente é re­conhecer esse fato e decretar a separação, sem imputação da causa a qualquer das partes. (STJ, REsp. 46.718-4/SP, Ac. 4 a T , Rei. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJU 17/2/2003, RBDFam 16:87)

6. A IMPOSSIBILIDADE DE AFIRMAR O CULPADO PELO FIM DO SONHO COMUM

Frustradas as expectativas de felicidade e realização c o m u m , o fracasso do r e ­lac ionamento v e m acompanhado de traições ( n o mais amp lo sentido da expres­são ) , i n jú r i a grave, sevícias, lesões, etc. Surge, então, u m a conclusão corr iqueira : o cônjuge "p reva r i c ado r " ( c o m o perdão pelo uso da infeliz expressão, a qua l che ­ga a ins inuar a idéia de prát ica de u m il ícito c r im ina l ) é o grande cu lpado pela rup tu ra do v í n cu lo e do fracasso do projeto de fel icidade.

N o entanto, é preciso u m a reflexão: existe u m cônjuge culpado-responsável (e ou t ro inocente ) pelo f i m do afeto que sustentava a relação?

D a l ição, sempre opor tuna , de Fach in , retira-se eloqüente resposta: " n ã o t em sent ido averiguar a culpa c o m mot ivação de o rdem ín t ima , psíquica", u m a vez que a conduta de u m dos consortes, v io l ando deveres conjugais, é apenas u m " s in to ­m a do f im" . 2 8

O u , c o m o prefere Tepedino, é impossíve l a identi f icação objetiva do cu lpa ­do pelo insucesso do casamento, c o m o se tivesse sido prat icado u m ato i l íc i to,

a menos que se pretendesse, por absurdo, fixar um standard médio de performance sexual, ou um padrão ideal de fidelidade, cujo não atendimento pudesse ser consi­derado como ilícito.2 9

Cf. F A C H I N , Luiz Edson. Op. cit., p.l79. Cf. T E P E D I N O , Gustavo. Op. cit., p.379.

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A PROCLAMAÇÃO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 479

N a visão s imból ica de F r ank P i t t m a n , l embrado por M a d a l e n o , é " imposs í ­ve l ter razão e ser casado". 3 0

E m outras palavras, aqui lo que se convenc ionou , h is tor icamente, chamar de culpa ( n o sentido de causa da dissolução) não passa, na real idade, de conseqüên ­cia. É a conseqüência do ún ico mo t i vo que gera a dissolução de u m a relação afe ­t iva: o f im do amor , da vontade de compar t i lha r projetos comuns . Esta é a ún ica e verdadeira causa da extinção do casamento! Tanto que , não raro, v i s l umbram-se casos e m que u m dos consortes, apesar de ciente do adultério (da quebra do dever de lea ldade) , perdoa e m a n t é m a relação afetiva, ac red i tando na r ecupe ­ração e prosseguimento de ideais de v i da comuns . Logo , a causa deflagradora da dissolução m a t r i m o n i a l é a*falta de vontade de compar t i lha r a v ida (voluntas divortiandi).

N ã o passa, pois , de u m a fantasia, de u m fetiche, achar que seria possível des ­cobr i r o responsável pe lo f i m do laço afetivo. A té po rque , n e m sempre o " t r a i ­d o r " é o culpado e o " t r a ído " a v í t ima. E m passagem memoráve l , Ch i co Buarque de Ho l anda dec lamava " te pe rdôo po r te trair". A i n d a que fossem obrigados os consortes a "assistir" ao f i lme do própr io casamento, não conseguir iam eles p r ó ­pr ios, após a "sessão", a f i rmar q u e m e r rou mais o u menos .

H á interessante precedente e m nossos Pretór ios , a tentando para a imposs i ­b i l idade de ind icar u m cu lpado pela ruptura do casamento:

É difícil, senão impossível, aferir a culpa real pelo desfazimento da união conjugai e, em regra, cuida-se apenas da causa imediata da ruptura, desconsiderando-se que o rompimento é resultado de uma sucessão de acontecimentos e desencontros pró­prios do convívio diuturno, em meio também às próprias dificuldades pessoais de cada um. (TJ/RS, Ap.Cív. 70.002.286.912, Ac. 7 a Câm. Cív., Rei. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, DOERS 2/8/2001, RBDFam 15:127)

E fe t i vamente , há grave equívoco na tese do " ún i co cu lpado pela dissolução", inexist indo u m a ún ica causa isolada que compromete a estabil idade afetiva. 3 1

O desgaste do re lac ionamento não admi te perquir ições históricas acerca dos fracassos e dramas. E le é resultado da soma de fatores que vão sedimentando c o m o tempo. Ass im , c o m o se disse e m sede ju r i sprudenc ia l , " c o m e ç o u e acabou. P a s ­sa ram 24 anos. O t empo é inflexível. Para ambos " . 3 2

Cf. MADALENO, Rolf. Op. cit, p.157. Nesse sentido, MIZRAHI, Maurício Luis. Op. cit, p.199. TJ/RS, Ac. 8 a Câm. Cív., Apel. Cív. 597.240.787, rei. Des. Breno Moreira Mussi, j . 5/3/1998, v.u., in RBDFam 1:112.

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480 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

É p o r isso que se t e m c o m o imperat i vo afastar a prova da cu lpa na ação de separação, para , e m verdadeiro flash de lucidez, reconhecer não ter cab imento

dar razão a este ou àquele, uma vez que a razão está em todos os lugares e ao mes­mo tempo não se encontra em lugar algum. Cabe-nos, sim, ajudá-los a abrir clarei­ras, ao invés das trincheiras, a buscar tréguas, ao invés de incentivar batalhas ou guerrilhas, para que os auxiliemos a serem capazes de cooperar individualmente para a realização do todo. 3 3

I m p õ e , p o r conseguinte, perceber que não há , seguramente, u m ún i co res ­ponsáve l pe lo fracasso do amor . N i n g u é m é cu lpado po r não ma is gostar. N ã o há responsabi l idade pela frustração do sonho c o m u m , pela frustração das expectat i ­vas próprias e do outro consorte, de felicidade eterna. Talvez, por isso, tenha o poeta sentenciado, c o m a sua sensível pena, que " n ã o seja imor ta l , posto que é chama, mas que seja inf in i to enquanto dure".

7. DA INCONSTITUCIONALIDADE NA DISCUSSÃO DA CULPA

Tr i lhando o c a m i n h o assinalado, fica fácil perceber que a discussão sobre a cu lpa é inadequada , insensata e atentatória aos direitos h u m a n o s .

A d m i t i r esta possibi l idade significa pe rmi t i r que os valores ma is f u n d a m e n ­tais da o r d e m const i tuc ional v igente, c o m o a d ignidade da pessoa h u m a n a , o d i ­reito à v i da p r i vada e à in t im idade , o direito à sol idar iedade social e à igualdade substancia l , pudessem ser v i l ipendiados po r força de n o r m a inf raconst i tuc ional .

Perqu i r i r a culpa, após a promulgação da Car ta M a g n a de 1988, tornou-se u m exercício i ndev ido e descabido, a inda que tenha ocor r ido v io lação de deve ­res ma t r imon i a i s po r u m dos cônjuges, por ferir f ronta lmente as garantias cons ­t i tuc iona is da pessoa h u m a n a .

M a r i a Beren ice D i a s ev idencia , c o m clareza solar, esse descabimento da discussão sobre a culpa,

seja porque é difícil atribuir a um só cônjuge a responsabilidade pelo fim do víncu­lo afetivo, seja porque é absolutamente indevida a intromissão na intimidade da vida

das pessoas?*

3 3 O brilhante raciocínio é de MOTTA, Maria Antonieta Pisano. Além dos fatos e rela­tos: uma visão psicanalítica do direito de família. In: A família na travessia do milênio - Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família, p.52.

3 4 Cf. DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p.71.

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A PROCLAMAÇÂO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 481

O s atores processuais ( juiz, p romoto r , defensores públ i cos e advogados) não p o d e m ser t r ans fo rmados e m verdadeiros " invest igadores do desamor" , c o m o se estivessem na frenética p rocu ra de u m per igoso c r im inoso que coloca e m risco a i n co lum idade de toda a sociedade. A l i ás , va le l embra r u m a passagem bíbl ica para afastar a aver iguação da cu lpa: "at i re a p r i m e i r a pedra q u e m não t iver pecado".

Inc is ivamente afirme-se: a intromissão da culpa nas dissoluções m a t r i m o ­niais contrar ia a d ign idade h u m a n a e a guerra jud ic ia l gera a perda da i n t im ida ­de , 3 5 sacr i f icando valores de o r d e m pessoal, os quais merecem preservação por força de imperat i vo const i tuc ional .

Nesse diapasão, é t ranqüi lo constatar a flagrante inconstitucionalidade dos d is ­positivos da legislação brasileira, que não só permi tem a discussão da culpa nas ações de dissolução da sociedade conjugai, como t ambém, ainda que residualmente, p re ­tendem atr ibuir conseqüências diferenciadas e m razão de sua declaração.

A l é m disso, é descabido proc lamar a inconst i tuc iona l idade dos dispositivos do novo Cód igo C i v i l , al icerçando-se, tão-somente, e m pr inc íp ios insculpidos na Car ta M a g n a .

A m o d e r n a teor ia const i tuc iona l , fincada n o pós-posi t iv ismo, v e m a t r i ­b u i n d o n í t ida força n o r m a t i v a aos valores axiológicos estabelecidos na C o n s t i ­tu ição.

C o m razão, M ô n i a Clar issa H e n n i n g Lea l , 3 6 para q u e m , " n o contexto de u m Es tado Democrá t i co de D i re i to [...], e m que impera u m a legal idade mater ia l , os pr inc íp ios não servem c o m o parâmet ro no rma t i vo apenas por ocasião da ocor ­rência de lacunas, devendo servir para aferição da va l idade de toda e qualquer n o r m a jur íd ica sempre e indist intamente" , ocas ionado a inconst i tuc ional idade de todos os disposit ivos legais que lhes são cont rá r ios . 3 7

N ã o se pode aceitar que , e m p leno século X X I , o direito de famí l ia se feche para a real idade da v ida m o d e r n a e, e m descompasso c o m a Const i tu ição , c o n ­sagre regras que , ev iden temente , não se compa t ib i l i z am c o m a necessidade de se garant i r a todos os brasi le i ros o efetivo exercíc io da c idadan ia . E não é exa­gero n e n h u m a f i rmar que aceitar a discussão da cu lpa na ação de separação const i tu i , s i m , obstáculo ao seu exercíc io, u m a vez que onde não h á d ign idade , n ã o há c idadan ia .

Assim, MIZRAHI, Maurício Luis. Op. cit., p.202. Cf. LEAL, Mônia Clarissa Henning. A Constituição como princípio: os limites da juris­dição constitucional brasileira, p.92. Ibidem, p.16.

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482 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

8. 0 INTERESSE JURÍDICO NA DISCUSSÃO DA CULPA

É relevante demonstrar , a inda, m e s m o para os que en tendem subsistir n o o rdenamento ju r íd i co brasi leiro a discussão sobre a cu lpa na separação jud ic ia l , o reduz ido interesse e m sua af i rmação, u m a vez que dela não decorrerão efeitos signif icativos n o m u n d o jur íd ico o u fático. Senão, ve jamos:

8.1 A dissolução do matrimônio e o regime de bens

O s bens adqu i r i dos pe lo casal n a constânc ia d o m a t r i m ô n i o serão p a r t i ­l hados e m consonânc ia c o m as regras do reg ime de bens adotado q u a n d o das núpc i as , s em que qua lquer sanção venha a ser impos ta e m razão da eventua l cu lpa .

A t é m e s m o porque alterar o regime de bens do casamento, f rust rando os d i ­reitos pa t r imon ia i s de u m dos consortes e m razão de culpa, impor ta r i a e m e n r i ­quec imento sem causa do out ro — o que é repel ido pela o r d e m jur íd ica .

A s s i m , o eventua l reconhec imento da cu lpa não produz efeitos re lac ionados à par t i lha dos bens, a qua l se submete ao regime pactuado.

8.2 0 uso do nome de casado

Seguramente , o direito ao uso do n o m e de casado é verdadeiro direito da per­

sonalidade,™ estando agregado à ident idade de cada cônjuge, representando seus aspectos intr ínsecos.

Nas palavras f i rmes de S i lmara J u n y de A b r e u Chine la to e A lme ida , e m opús-culo ded icado ao tema, se o cônjuge adota o n o m e pa t ron ímico do outro , " o n o ­m e adotado c o m o casamento passa a ser o n o m e de famíl ia e o seu própr io nome , in tegrando seu direi to à personal idade" . 3 9

Tome-se os direitos da personalidade como aqueles reconhecidos à pessoa, tomada em si mesma e em suas necessárias projeções sociais. Enfim, são os direitos em que se con­vertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe emprestar segura e avançada tutela jurídica. Nesse sentido, cf. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, p.149. Cf. ALMEIDA, Silmara Juny de A. Chinelato e. Do nome da mulher casada: direito de família e direitos da personalidade, p.138. E também assevera que "o ponto fundamental a ser discutido na questão do nome da mulher casada é reconhecer-lhe a natureza jurí­dica inequívoca de direito da personalidade".

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A PROCLAMAÇÃO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 483

Como corolário do reconhecimento da natureza personalíssima do direito ao nome de casado, 4 0 desvincula-se a culpa pela dissolução do matrimônio com a ma­nutenção do sobrenome adquirido em tal ocasião.

A jurisprudência, inclusive, já sacramentou a tese:

Conversão de separação. Direito ao uso do nome de casada. Admissibilidade. Nome que integra direito da personalidade, já incorporado ao patrimônio jurídico da mu­lher. (TJ/SP, Ap.Cív.104.801-1, Rei. Des. José Osório)

O nome, direito individual à pessoa, integra a personalidade, é fator de identifica­ção e individualização. Depois de usar o patronímico do marido por 36 anos, é dema­siado sacrifício exigir que volte ao nome de solteira. Ausência de alguma vantagem ou prejuízo para o ex-marido. Manutenção de liame com o nome das filhas. Recur­so improvido. (TJ/RS, Ac. 8 a Câm. Cív., Ap. Cív. 596.063.495, Rei. Des. Ivan Leomar Bruxel, j . 21/11/1996)

Embora não tenha acolhido integralmente este entendimento, reservando ainda a possibilidade de perda do nome de casado pelo cônjuge considerado cul­pado (mesmo em caráter excepcional e submetido a diversos e cumulativos re­quisitos), o Código Civil de 2002, no seu art. 1.578, avançou no tratamento da matéria, reconhecendo que a regra é a manutenção do nome, por tratar-se de direito da personalidade.

Aliás, vale observar que já passou da hora de desatrelar o amor existente entre os cônjuges da adoção do sobrenome do outro. Por evidente, não é o acréscimo do nome do consorte que conduz à felicidade ou à realização comum. Ao contrário, o nome tem se mostrado apenas, como fonte de conflito de interesses.

Talvez, por isso, a Codificação dispõe, expressamente, que, mesmo reconhe­cida a culpa de um dos cônjuges, a regra é permanecer com o nome de casado, tornando, portanto, na prática, inócuo o reconhecimento da culpa.

8.3 A guarda dos filhos

Também a fixação da guarda dos filhos, após a ruptura da relação entre os genitores, está apartada do reconhecimento da culpa.

Nesse mesmo diapasão, TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p.375, sustenta que "com o casamento, o nome de família integra-se à personalidade da mulher, não mais poden­do ser considerado como nome apenas do marido".

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484 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

Com efeito, em obediência aos princípios da proteção, integral e da prioridade absoluta estabelecidos pelo art. 227 da Lex Legum (e repetidos pelos arts. I o e 4 o do Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA]), a nova Lei Civil, no parágrafo único do art. 1.584, afirma o "melhor interesse da criança e do adolescente" (the best interest ofchild), estabelecendo que a guarda será atribuída a quem demonstrar ter melhores condições para exercê-la.

O eventual reconhecimento de que u m cônjuge teve péssima conduta ma­trimonial não implica negar suas qualidades paternais. Por isso, na fixação da guarda, deverá ser atendido o melhor interesse da criança ou adolescente, con­substanciado na garantia de seu pleno desenvolvimento físico e psíquico, a salvo de ingerências nocivas.

Nas palavras de Gustavo Tepedino, o princípio do melhor interesse da crian­ça "é digno de encômios, não sendo tolerável, à luz da Constituição da República, condicionar a convivência familiar dos filhos de pais separados à vida conjugai fracassada".4 1 Aliás, o Enunciado n. 102, aprovado na Jornada de Direito Civil, realizada pelo Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal, confirma a tese ora esposada, disparando:

A expressão "melhores condições" no exercício da guarda, na hipótese do art. 1.584, significa atender ao melhor interesse da criança.

Assim sendo, resta afastada a culpa da concessão da guarda, fixada, unica­mente, em consideração aos interesses menoristas.

8.4 Os alimentos devidos ao eventual culpado (parágrafo único, art. 1.704, CC)

Já se observou que o eventual reconhecimento da culpa não altera a parti­lha dos bens, o uso do nome de casado pelo cônjuge culpado nem lhe retira, necessariamente, a guarda dos filhos. É o momento, finalmente, de desatrelar da culpa, também, a possibilidade de concessão de alimentos.

Assim, como vem reconhecendo a melhor doutrina, consoante a lição de Bel-miro Pedro Welter, invocando passagem do eminente ministro Ruy Rosado de Aguiar, "o critério da aferição da culpa, para concessão ou não de alimentos, vai cedendo espaço para a não culpa ou, conforme dicção legal, necessidade de alimentos". 4 2

TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p.375. Cf. WELTER, Belmiro Pedro. Alimentos no Código Civil, p.155.

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A PROCLAMAÇÃO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 485

T a m b é m a jur i sprudênc ia já

vem dispensando a identificação do responsável pela ruptura da vida conjugai, para o fim de ensejar a decretação da separação do casal ou mesmo para arbitrar alimen­tos em favor da mulher que deles necessite. 4 3

D i t o de out ra fo rma , a prestação a l iment íc ia decorre da necessidade do ali­mentando, c o m o projeção da af i rmação const i tuc ional (ar t 3 o ) da solidariedade social.

N o direi to argent ino, nesse quesito, já se a f i rma que qua lquer dos consor ­tes, independente da declaração de culpa, t e m direito de obter do out ro o f o rne ­c imento dos a l imentos necessários à sua subsistência (ar t . 209, Cód igo C i v i l da A rgen t ina ) .

Evita-se, ass im, que se i m p o n h a crue l sanção a q u e m fo i reconhec ido c o m o "cu lpado pelo f im do amor" , pois terá v io lada a sua dignidade, por falta de cond i ­ções de subsistência.

Nega r a l imentos ao cônjuge que deles necessita, a inda que cu lpado, é c o n ­dená-lo a m o r r e r de fome . " A pena é perpétua. Q u i ç á i m p o n h a a realização de trabalhos forçados. A depender das condições do apenado, será crue l . Talvez lhe i m p o n h a a pena de ban imen to , n e m que seja para a ou t ra vida", c o m o percebe M a r i a Berenice D i a s . 4 4

P o r isso, na esteira do preceito ta lhado n o art. 1.704, parágrafo ún ico , do novo codex, é possível impor , objetivamente,45 m e s m o ao cônjuge inocente, a pres ­tação de a l imentos " e m va lor indispensável à sobrev ivênc ia " ao outro consorte, quando este deles necessitar para a sua manu tenção a inda que tenha sido ele o responsável pela ruptura .

E m síntese: a culpa de ixou de ser o e lemento decisivo, t a m b é m , para a c o n ­cessão de a l imentos , dando espaço a u m sent ido human i t á r i o na sua fixação, d e ­corrente do dever const i tuc ional de solidariedade.

A ementa do julgado reza: "Incabível a identificação do responsável pela ruptura da vida conjugai para o fim de arbitrar alimentos à mulher que deles necessite...". (TJ/RS, Ac. unân. 7 a Câm. Cív., Ap. Cív. 700.034.176.80, Rei. Des. José Carlos Teixeira Gior-gis,j. 19/12/2001) Cf. DIAS, Maria Berenice Op. cit., p.74. Anuindo a esta idéia, WELTER, Belmiro Pedro formula interessante raciocínio, afir­mando que haveria, neste caso, uma obrigação alimentar objetiva, independendo da culpa, conferindo ao cônjuge que deles necessitar os alimentos estritamente necessá­rios à sua sobrevivência. (Op. cit, p.157)

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486 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

8.5 0 interesse de agir (condição da ação) na imputação da culpa

O interesse de agir materializa-se na ut i l idade da prestação jur isd ic ional , pe r ­m i t i ndo gerar benefíc ios o u vantagens efetivas para o autor . 4 6 Des t r inchando esta idéia, va le dizer que o interesse de agir decorre da necessidade da tutela j u r i sd i ­c iona l , p o d e n d o produz i r conseqüências úteis, vantajosas, ao autor. Por tanto , já se dec id iu inexist ir interesse processual "se do sucesso da demanda não puder r e ­sultar n e n h u m a van tagem o u benef í c io " para o ac ionante (in RF 254:330) . 4 7

Transpor tando tais idéias para a matér ia sub occulis, tem-se que a ação de se ­paração jud ic ia l fundada na culpa, e m geral , não se apresentará ú t i l pa ra o autor, u m a vez que , na ma io r par te dos casos, não poderá gerar qua lquer benef íc io para si , fa l tando, p o r conseguinte, interesse de agir. 4 8

Veja-se que , de m o d o geral, os efeitos decorrentes da separação i ndependem da declaração da culpa — como part i lha de bens e guarda dos fi lhos - consoante já anal isado, já que se submetem a regras própr ias , desatreladas da noção de culpa.

M e s m o nos pontos e m que o novo (? ) Cód igo C i v i l pretendeu estabelecer d i ­ferenciações pelo reconhec imento da culpa (a l imentos e uso do n o m e de casa­d o ) , os efeitos daí decorrentes são ma is aparentes do que reais.

O art . 1.578 do C C já é na t imor to . A perda do direito ao uso do n o m e de casado pela decretação da culpa não é automática. M e s m o que o consorte " i n o c e n ­te " pretenda retirar tal direito do ou t ro , e m face dos i números requisitos que o art. 1.578 do texto codi f icado impõe , basta que o cônjuge cu lpado declare que a alteração i rá acarretar-lhe prejuízo just i f icado para que a m u d a n ç a não se ver i f i ­que. N a prática, portanto, será mu i to dif íci l , mesmo provada a culpa de u m dos

FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Condições da ação - Enfoque sobre o interesse de agir, p.177, em oportuna abordagem sobre o interesse de agir, assevera que na propositura de qualquer ação "deve ser a jurisdição indispensável ou necessária para que não se desenvolva uma atividade inútil". Com o mesmo entendimento: "O interesse de agir, como condição da ação, fulcra-se na premissa de que, embora o Estado tenha interesse no exercício da jurisdição, não lhe convém acionar o aparelho judiciário sem que com isso obtenha algum resultado útil". (TJ/MS, Ac. unân. 2 a T, Ap. Cív.38.337-3, Rei. Des. José Augusto de Souza, j . 7/6/1994, in RJTJMS 97:29) E mais: "O interesse de agir sobressai da necessidade de exigir-se prestação jurisdicional." (TRF-3a Região, Ac. unãn. 3 a T, RNMS 7.118, Rei. Juíza Annamaria Pimentel, j . 6/11/1991, Revista TRF-3" Região 9:249) Interessante texto escrito, com pena de mestre, por FREITAS CÂMARA, Alexandre, formula crítica à concepção tradicional das condições da ação, merecendo referência. (Condições da ação? In: Escritos de direito processual, p.63 e ss)

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A PROCLAMAÇÃO DA LIBERDADE DE NÃO PERMANECER CASADO 487

consortes, retirar-lhe o direi to ao uso do n o m e de casado, salvo se ele assim o quiser.

N o que concerne aos a l imentos, a diferença básica determinada pelo novo Cód igo é a de que o cônjuge cu lpado somente pode postular, e m caso de neces­sidade, os al imentos naturais, jamais os civis. N o entanto, q u e m mil i ta diar iamente n o foro sabe que a dist inção estabelecida pela teoria ju r íd ica não produz q u a l ­quer conseqüência prát ica. N o f inal das contas, o que v a i determinar o va lor dos a l imentos será sempre a pesquisa do b i n ô m i o necessidade-capacidade.

N o dizer preciso de R o l f M a d a l e n o ,

se tem mostrado débil e inútil o esforço processual que pesquisa a gênese culposa da falência conjugai, porquanto, de nada adianta e, disto se aperceberam os operado­res do complexo ramo familista do direito.

E sentencia sal ientando que procurar u m protagonista que possa ser respon­sabilizado pela rup tu ra do m a t r i m ô n i o "só t em serv ido para aumenta r tristezas e humi lhações" . 4 9

Pe lo fio condutor do que se expôs, é de se perceber que não há qua lquer j u s ­t if icativa - nas ordens const i tuc ional , c iv i l e processual c iv i l - para a pesquisa da culpa na ação de separação jud ic ia l , u m a vez que restou esvaziado o interesse p r o ­cessual de afirmá-la, pela falta de ut i l idade para o autor.

9. ESPANCANDO A CULPA PARA PRESERVAR A ORDEM CONSTITUCIONAL: PROPOSTA DE ALTERAÇÃO DO CÓDIGO CIVIL

O amor ( o u melhor , a perda do a m o r ) , jurado solenemente por ambos os consortes, não pode ser ju lgado pelo Estado-juiz. Apesar da crueldade da c o m ­paração, admi t i r u m a separação jud ic ia l d iscut indo a culpa de u m dos cônjuges assemelha-se à propositura de u m a ação para discutir o descumpr imento das o b r i ­gações pactuadas e m negócios jur íd icos . C o m o se o a m o r e o afeto pudessem ser igualados a meros deveres obr igac ionais , negociais.

E m página clássica já se disse: " O h o m e m ju ra a m o r eterno quando ama e a legislação o obr iga, quando f indo o amor , a c u m p r i r a sua palavra" . 5 0

E tudo isso para nada...

4 9 Cf. MADALENO, Rolf. Op. cit., p.157. 5 0 Cf. Legaz Y Lacambra, citados por MIZRAHI, Maurício Luis. Op. cit., p.202.

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488 CRISTIANO CHAVES DE FARIAS

O r a , car íss imo leitor, permi t i r a pesquisa das situações conjugais que leva ­r a m ao fracasso do a m o r - se não fosse impossíve l - impor ta r i a na subversão do e lemento ético das relações fami l iares, 5 1 patrimonializando relações afetivas, coi-sificando a pessoa h u m a n a !

N a feliz síntese de João Bat ista V i l le la :

Não há nada mais presunçoso que se achar capaz de descobrir quem é o culpado e quem é inocente. 0 casamento é relação íntima, personalíssima e interativa. Chega­ria a ser pedante, se não fosse ridículo, pois nem os envolvidos sabem dizer quem é o culpado.

N a d a é ma is impor tan te do que a proteção da d ignidade do ser h u m a n o e a preservação de sua fel ic idade. Da í que , atentando contra a d ignidade h u m a n a a discussão da culpa, sobreleva sua repulsa c o m fundamentos const i tuc ionais !

P o r isso, de lege ferenda, deve o o rdenamen to ju r íd i co , seguindo as l inhas avançadas propostas pela m e l h o r dou t r i na e ju r i sp rudênc ia , ext i rpar do d i r e i ­to pos i t i vo a cu lpa c o m o e lemento da dissolução d o casamento , adequando a n o r m a in f raconst i tuc iona l (arts . 1.572 e 1.573, CC) aos novos parad igmas pr in-c ip io lóg icos const i tuc iona is , a tendendo à preservação da dignidade humana, para submete r a ext inção m a t r i m o n i a l a u m ún i co f u n d a m e n t o : a von tade do côn juge .

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Já teve a jurisprudência a oportunidade de disparar: "O exame da culpa deve ser evi­tado sempre que possível consoante moderna tendência do Direito de Família. Quan­do termina o amor, é dramático o exame da relação havida..." (TJ/RS, Ac. T Câm. Cív., Apel. Cív. 70.003.893.534, Rei. Des. Sérgio Fernando Vasconcellos Chaves, j . 6/3/2002, RBDFam 14:122)

Page 502: Questões processuais do novo CC - Mazei

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Page 503: Questões processuais do novo CC - Mazei

PR IME IRAS I M P R E S S Õ E S S O B R E O R E G I M E D A P A R T I C I P A Ç Ã O F INAL N O S A Q U E S T O S E M FACE D A LEG IT IM IDADE D O C Ô N J U G E D O D E V E D O R PARA O P O S I Ç Ã O D E E M B A R G O S

ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR*

Sumário 1. I n t rodução . 2. A lguns esclarecimentos sobre o reg i ­m e da participação f inal nos aquestos. 3. Legit imidade do cônjuge para a oposição dos embargos à execução. Referências bibl iográf icas.

1. INTRODUÇÃO

C o m o é cediço, o novo Cód igo C i v i l brasi leiro a p r i m o r o u alguns inst itutos e i n t roduz iu outros novos n o direito pátr io .

A presente obra , c o m o u m todo, t em a f inal idade de abordar os reflexos das modi f icações introduzidas pelo novo Cód igo e m face do direito processual c iv i l . M u i t a s f o r a m as modi f icações e, por conseguinte, os reflexos.

P re tendemos n o presente artigo realçar as pr imeiras impressões sobre os reflexos d o n o v o regime de bens - da part ic ipação f inal nos aquestos - n o d i re i ­to processual c iv i l . Reso lvemos abordar tais reflexos na leg i t imidade do cônjuge para a oposição de embargos à execução.

* Mestre e doutorando em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católi­ca (PUC/SP). Professor de Direito Processual Civil da graduação e da pós-graduação na UniFMU, da pós-graduação da faculdade de Direito de Itu (FADITU) e do curso preparatório para carreiras jurídicas Anglo-triumphus/Sorocaba. Advogado em São Paulo.

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS 491

Desde logo, destacamos que não temos a pretensão de estabelecer premissas nem mesmo firmar posições definitivas, haja vista que se trata de instituto novo, 0 qual será estudado nos seus pormenores pelos cultores do direito civil e do di­reito processual e enfrentado, certamente, pelos tribunais brasileiros.

Nossa intenção, na verdade, é simplesmente traçar as "primeiras impres­sões" como forma de incitar a discussão, pois sendo esta estabelecida, será possí­vel extrair conclusões e adotar posições com base mais sólida.

2. ALGUNS ESCLARECIMENTOS SOBRE 0 REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS

O regime de bens, segundo ensina Paulo Luiz Netto Lobo,

tem por fito regulamentar as relações matrimoniais entre os cônjuges, nomeadamen­te quanto ao domínio e a administração de ambos ou de cada um sobre os bens tra­zidos ao casamento e os adquiridos durante a união conjugai.1

O direito brasileiro contempla os seguintes regimes de bens: a) comunhão universal de bens; b) comunhão parcial de bens; c) participação final nos aques-tos e separação de bens.

A escolha do regime pelos cônjuges é livre e deve ser feita anteriormente ao casamento, por meio de pacto antenupcial; somente em determinados casos é que a lei impõe o regime da separação obrigatória (CC, art. 1.641): a) quando os cônju­ges que contraíram o matrimônio o fizerem com inobservância das causas suspen-sivas; b) quando um dos cônjuges contar, na época do casamento, com mais de 65 anos; e c) quando um dos cônjuges depender de suprimento judicial para se casar.

O novo Código Civil rompeu com a tradição pátria da irrevogabilidade e inalterabilidade do regime escolhido ao inovar, possibilitando aos cônjuges a al­teração do regime de bens na constância da sociedade conjugai (CC, art. 1.639, parágrafo 2 o ) .

De outro modo, não sendo o caso de regime de separação obrigatória de bens e não tendo os nubentes celebrado pacto antenupcial, o regime de bens que rege­rá o casamento será o da comunhão parcial de bens.

Resta-nos agora fazer um breve esclarecimento sobre o regime da participa­ção final nos aquestos, antes de verificarmos seus reflexos no processo civil, mais especificamente em face da legitimidade do cônjuge para a oposição de embargos.

1 LOBO, Paulo Luiz Netto. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça (coord.). Código Civil comen­tado - artigos 1.591 a 1693, v.XVI, p.231.

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492 ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR

O regime da part ic ipação final nos aquestos é o h íbr ido , no qual há u m a mes ­cla das regras apl icáveis ao regime da c o m u n h ã o parc ia l e ao reg ime da separa­ção de bens . 2 E l e está previsto nos arts. 1.672 a 1.686 do Cód igo C i v i l .

S í l v io de Sa lvo Venosa tece críticas duríss imas a esse novo reg ime. Segundo ele,

é muito provável que esse regime não se adapte ao gosto de nossa sociedade. Por si só verifica-se que se trata de estrutura complexa, disciplinada por nada menos do que 15 artigos, com inúmeras peculiaridades. Não se destina, evidentemente, à grande maioria da população brasileira, de baixa renda e de pouca cultura.3

D e acordo c o m o referido regime, cada cônjuge possui seu pa t r imôn io p r ó ­pr io , cabendo-lhe à época da dissolução da sociedade conjugai metade dos bens adqu i r idos pelo casal durante o casamento. Po r pa t r imôn io p rópr io deve-se e n ­tender aqueles bens que o cônjuge já possuía ao se casar o u que lhe adv i e r am a qua lquer t í tu lo na constância do casamento.

A admin is t ração dos bens é exclusiva de cada cônjuge, que poderá aliená-los l i v remente caso se trate de b e m móve l ; caso o b e m seja imóve l , deverá existir o consent imento do outro cônjuge o u o supr imento jud ic ia l , se o contrár io não res­t o u estabelecido n o pacto antenupc ia l ( C C , art. 1.656).

Pe lo reg ime da part ic ipação f inal nos aquestos, enquanto não houver a d i s ­solução da sociedade conjuga i ( po r exemplo, separação jud ic ia l o u mor t e ) não há que se falar e m c o m u n h ã o , u m a vez que esse regime só p roduz seus efeitos q u a n d o de sua dissolução.

O s bens móve is presumem-se adqui r idos na constância da sociedade c o n j u ­gai , p o r é m trata-se de presunção júris tantum. E m face de terceiros, tais bens p r e ­sumem-se de d o m í n i o do cônjuge devedor, salvo se o b e m for de uso pessoal e exclusivo do out ro .

Q u a n t o aos bens imóve is , de acordo c o m a regra estatuída pelo art. 1.681, presume-se que a t i tu lar idade de tais bens seja daquele cônjuge cujo n o m e est i ­ve r l ançado n o registro imobi l i á r io . N o entanto, caso seja impugnada a t i tu la r i ­dade , é ônus do cônjuge que consta c o m o propr ie tár io comprova r a aquisição regular do b e m .

U m dos pontos que t e m reflexo no direito processual, entre outros, é o esta­belec ido n o art. 1.682, in verbis:

Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil - direito de família, v.VI, p.191. Ibidem.

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS 493

Art. 1.682. 0 direito à meação não é renunciável, cessível ou penhorável na vigência do regime matrimonial.

Ta l disposit ivo está exatamente e m consonânc ia c o m o espírito do regime, pois , c o m o dissemos alhures, o regime só produz efeitos depois de dissolvida a so ­ciedade conjugai . Po r isso, o cônjuge não t em sobre o p a t r i m ô n i o p rópr io do o u ­tro qualquer part ic ipação; o que existe, na verdade, é u m a expectativa de direito, v incu lada à futura dissolução.

C o m o b e m lembra Pau lo Lu iz Net to Lobo:

0 direito à meação, no regime de participação final nos aquestos, não é direito sub­jetivo integralmente constituído, mas constituível. Sua natureza é a de direito expecta-tivo, cujo aperfeiçoamento depende de evento futuro e incerto, a saber, a ocorrência de alguma das hipóteses legais de dissolução da sociedade conjugai. 4

N o que se refere às dív idas assumidas, e m razão da possibi l idade de os c ô n ­juges p o d e r e m assumir compromissos , cont ra indo , conseqüentemente, d ív idas sem a necessidade da outorga uxór ia o u mar i ta l - caso reste pactuado anter ior ­mente ao casamento, pois , do contrár io , deverão existir tais outorgas — a respon ­sabil idade pelo seu pagamento será do cônjuge que as con t ra iu , a não ser que se prove sua reversão e m benef íc io da famíl ia .

Para o que nos p ropusemos — pr ime i ras impressões — as in formações a l i ­nhadas anter iormente são suficientes, pois , do contrár io , nos afastaríamos do nosso objetivo.

Ana l i s a remos a seguir a questão da leg i t imidade d o côn juge para opos ição dos embargos à execução, cons iderando o reg ime de par t i c ipação f ina l nos aquestos.

3. LEGITIMIDADE DO CÔNJUGE PARA A OPOSIÇÃO DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO

Segundo D o n a l d o A r m e l i n 5 ,

a legitimidade é uma qualidade do sujeito aferida em função de ato jurídico, reali­zado ou a ser realizado. Qualidade outorgada exclusivamente pelo sistema jurídico e exigível, como é óbvio, em se tratando de negócios multilaterais, de todos os seus participantes, qualquer que seja o pólo da relação jurídica em que se encontrem.

4 LOBO, Paulo Luiz Netto. Op. cit., p.334. 5 Cf. ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro,

p. l l .

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494 ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR

A leg i t imidade desdobra-se e m ad causam e adprocessum. A leg i t imidade ad

causam, o u legi t imação para agir, diz respeito à identi f icação do t i tular do d i r e i ­to mater ia l c o m o sujeito do processo. 6 É aqui lo que A l f redo B u z a i d 7 chamava de pertinência subjetiva da ação; tal leg i t imidade situa-se n o c ampo das condições da ação. 8 J á a leg i t imidade adprocessum refere-se à capacidade de estar e m ju ízo, o u seja, é a apt idão que a parte deve possuir para part ic ipar va l idamente da rela­ção processual c o m o autor, r éu o u interveniente.

Ca rne lu t t i 9 resume a legit imidade adprocessum c o m o sendo a idoneidade de u m a pessoa para agir n o processo dev ido à sua posição, mais prec isamente ao seu interesse o u ao seu of íc io.

S intet izando, a leg i t imidade ad causam deve ser entendida c o m o a apt idão de a parte aproveitar o u sofrer os efeitos do processo, ao passo que a legi t imidade adprocessum é a apt idão para interv i r no processo c o m o parte o u interveniente. 1 0

E n q u a n t o a leg i t imidade ad causam situa-se n o c ampo das condições da ação, a leg i t imidade adprocessum situa-se entre os pressupostos processuais de va l idade do processo.

N o s embargos à execução ocorre aqui lo que José A l onso B e l t r a m e " d e n o ­m i n a cruzamento subjetivo, o u seja,

o legitimado passivo no processo de execução será o legitimado ativo no dos embar­gos, e o legitimado ativo lá será o passivo aqui. Há uma transmutação subjetiva nos pólos da relação processual, operando-se um cruzamento das partes, com inversão das posições processuais.

6 Cf. TUCCI, Rogério Lauria. Temas e problemas de direito processual civil, p.l 10. 7 Cf. BUZAID, Alfredo. Do agravo de petição no sistema do Código de Processo Civil,

p.110. 8 MARQUES, José Frederico cita os seguintes exemplos: "O presidente de uma socieda­

de não pode querer para si o pagamento de dívida em que a sociedade seja a credora. E tampouco pode alguém pretender da sociedade que pague dívida exclusivamente pessoal de um dos sócios. No primeiro caso, falta o que se denomina legitimação ativa para agir, e no segundo, a legitimação passiva". [Manual de direito processual civil, v.I, p.237)

9 Cf. CARNELUTTI, Francesco. Sistema de diritto processuale civile, v.I, p.366. No ori­ginal: "La legittimazione processuale esprime pertanto la idoneità di une persona ad agire nel processo dovuta alia sua posizione e piü precisamente al suo interesse o al suo ojficio". (destaque no original)

1 0 Cf. ALBERTO DOS REIS, José. Processo de execução, v.I, p.213. 1 1 Cf. BELTRAME, José Alonso. Dos embargos do devedor - teoria e jurisprudência,

p.46.

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS 495

D o n a l d o A r m e l i n 1 2 a f i rma que ,

se o título não é sempre a fonte reveladora imediata para ação executiva, segura­mente o é mediatamente, mesmo nas hipóteses de legitimação extraordinária, em que o substituto atua em nome de um substituído que figura como credor no título. 1 3

O s legi t imados passivos para o processo de execução, por tanto , legit imados ativos para a oposição dos embargos à execução, estão previstos n o art. 568 do Cód igo de Processo C i v i l .

Se o t í tulo executivo for jud ic ia l , o devedor será aquele que sofreu a conde ­nação judicia l , o qual deverá suportar os atos de execução. Vale lembrar que o opos ­to ( C P C , art. 56) , o denunciado ( C P C , art. 70) , o nomeado à autoria ( C P C , art. 62), b e m c o m o o chamado ao processo ( C P C , art. 77) , u m a vez integrados e, desde que, vencidos, tornar-se-ão partes legít imas para f igurar no pólo passivo da de ­m a n d a executiva, por tanto , legit imados para a oposição dos embargos à execução.

Todavia , se o t í tulo for extrajudicial , o devedor será aquele cuja inserção deu p o r vontade p róp r i a o u e m decorrência da le i , por exemplo, o art . 40, II, da L e i n. 6.830/1980. 1 4

N o que se refere à legit imidade do cônjuge, f igurando ele no título executivo, não restará dúv idas de que possui leg i t imidade para a oposição dos embargos.

A questão torna-se controvert ida quando o cônjuge do devedor não figura no t í tu lo executivo.

D ispõe o parágrafo ún ico do art. 669 do C P C que se a penhora recair sobre bens imóveis , o cônjuge do devedor deverá ser in t imado, sem fazer qualquer res­salva quanto ao regime de bens que segue o casamento. M a s devemos esclarecer aqu i que tal in t imação somente ocorrerá e m se t ratando de bens imóveis .

Para A r a k e n de Ass is , 1 5 a in t imação t em a função de cr iar o l i t isconsórcio entre os cônjuges, po is :

na demanda executiva, prescinde e ultrapassa o nítido caráter pessoal da obrigação constante do título executivo. A necessidade de demanda conjunta não se origina

1 2 ARMELIN, Donaldo. Op. cit., p. 161. 1 3 Cabe registrar aqui a crítica de DINAMARCO, Cândido Rangel, para quem a função

institucional do título executivo, conquanto indique as partes legítimas, é outra, qual seja - a de fornecer o requisito de adequação da tutela executiva. (Execução civil, p.434)

1 4 Cf. ASSIS, Araken de. Comentários ao Código de Processo Civil, v.VI, p.55; SHIMURA, Sérgio. Título executivo, p.36.

15 Manual do processo de execução, p.625.

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496 ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR

deste elemento. Decorre ela, simplesmente, da lei, que impõe a obrigatória parti­cipação do cônjuge na expropriação de bem imóvel. A regra se revela simétrica à que exige vênia conjugai nos atos voluntários de alienação ou oneração dessa espécie de bens. Trata-se, pois, de litisconsórcio obrigatório, por força de lei (art. 47 do CPC) e ulterior, porquanto se forma após a penhora e no curso da relação processual. 1 6

C â n d i d o Range l D i n a m a r c o 1 7 posiciona-se e m sentido contrár io . Pa ra ele,

a intimação da penhora à mulher do executado tem apenas a finalidade de permi­tir-lhe embargar ou, talvez, promovera remição de bens, não a tornando parte no fei­to executivo; trata-se de ação (executiva) fundada em direito pessoal (crédito) e a me­ra circunstância de ter sido empregado um bem imóvel como instrumento para a satisfação desse direito não transmuda ação em real, nem lhe dá a conotação de imo­biliária (o seu objeto continua sendo pecúnia). Pelos conceitos relacionados com par­te, qualidade de parte, modos de adquirir essa qualidade etc , mera intimação não torna o sujeito parte no processo, nem emana do dispositivo invocado alguma regra de litisconsórcio necessário.18

Pensamos que não se trata de l i t isconsórcio necessário encartável nas h i p ó ­teses do art. 10, parágrafo 1°, IV , u m a vez que a execução por quant ia certa c o n ­t ra devedor solvente não objetiva o reconhecimento, a constituição ou a extinção de ônus sobre imóveis de um ou de ambos os cônjuges, mas s im o pagamento, e, caso este não ocorra, dar-se-á a penhora (ato executivo) de bens, cuja t ransformação e m d inhe i ro seja ma is fáci l , para c o m isso satisfazer o crédito exeqüendo. Tanto é verdade, que , de acordo c o m a o r d e m estabelecida pelo art. 655 do C P C , a penhora sobre bens imóve is está prevista n o antepenú l t imo inciso da o r d e m l e ­gal de preferência, sendo por tanto , preter ida po r todas as outras (po r exemplo, d inhe i ro , pedra e metais preciosos, t í tulos da d ív ida públ i ca da U n i ã o o u dos Es tados , t í tu lo de créditos, que con tenham cotação na bolsa e t c ) .

C o m isso, queremos dizer que a penhora sobre bens imóve is é u m a conse ­qüênc ia da execução por quant ia certa contra devedor solvente, ante a inérc ia do devedor n o c u m p r i m e n t o da determinação jud ic ia l . D a í po rque não ser possível v i s l umbra r que da in t imação constante do parágrafo ún ico do art. 669 decorra a

1 6 Nesse sentido: T H E O D O R O J Ú N I O R , Humberto. Curso de direito processual civil, v . I , p.54.

1 7 D I N A M A R C O , Cândido Rangel. Litisconsórcio, p.206. 1 8 No mesmo sentido: S H I M U R A , Sérgio. Op. cit., p.58; L U C O N , Paulo Henrique dos

Santos. Embargos à execução, p.280.

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS 497

necessidade do litisconsórcio com fundamento no art. 10, parágrafo I o , IV, c/c. o art. 47, ambos do CPC.

Edson Ribas Malachini 1 9 sustenta que o referido parágrafo tem natureza protetiva,

visando a tutela do patrimônio familiar. Assim, pode o devedor, por negligência, deixar de apresentar embargos; ou pode estar ausente, sendo citado por edital, sem ter conhecimento efetivo da execução. E o seu cônjuge, tendo ciência da verdadei­ra situação do débito cobrado, ou de modo geral, de alguma das circunstâncias pre­vistas no art. 741 do Código de Processo Civil (e.g.: inexigibilidade do título, excesso de execução, pagamento, compensação, transação, prescrição), poderá, suprindo aquela negligência ou ausência, impedir que uma execução ilegítima ou excessiva seja levada a cabo.

Em nosso sentir, a intimação referenciada tem, ab initio, o objetivo de cien­tificar o cônjuge da existência da constrição judicial sobre o bem imóvel, contu­do, não o torna parte no processo de execução, pelo menos a princípio. 2 0

Ainda, no que se refere à legitimidade do cônjuge, insta analisarmos a legi­timidade decorrente da responsabilidade patrimonial para podermos repercutir com segurança acerca da legitimidade do cônjuge casado pelo regime de partici­pação final nos aquestos.

Ao contrário do que acontecia no direito romano, no qual a execução tinha caráter pessoal, incidindo sobre a própria pessoa do devedor, desde há muito a execução passou a ser real, recaindo somente sobre o seu patrimônio, devendo ser respeitado, inclusive, o princípio da tutela do patrimônio mínimo necessário à manutenção da dignidade do devedor e da sua família. 2 1

MALACHINI, Edson Ribas. Questões sobre a execução e os embargos do devedor, p.85-6. Cf. BELTRAME, José Alonso. Op. cit., p.52; LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Op. cit., P-281. Eduardo Cambi entende que a tutela do patrimônio mínimo trata de justa limitação política à execução forçada, para ele "a tutela jurídica do patrimônio mínimo tem respal­do na Constituição Federal, a qual assevera ser a dignidade da pessoa humana funda­mento da República Federativa do Brasil (art. I o , III), além de contemplar o direito à vida (art. 5 o , capui) e à existência digna (art. 170, caput). Tal percepção constitucional do valor da pessoa humana e dos limites do direito de propriedade irradia-se pelo sis­tema jurídico, conformando as leis infraconstitucionais, tendo como uma possível con­seqüência a retirada de certos bens da esfera de executoriedade, taxando-os de impenho-ráveis. Logo, nem todos os bens do devedor responderem (sic) patrimonialmente pela

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498 ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR

C o m o b e m conc lu i H u m b e r t o Theodo ro J r . , 2 2

não pode a execução ser utilizada como instrumento para causar ruína, a fome e o desabrigo do devedor e sua família, gerando situações incompatíveis com a dignida­de da pessoa humana.

C o m isso, c o n f o r m e m u i t o b e m observa A lc ides de M e n d o n ç a L i m a ,

quem se obriga, em última análise, oferece para o caso de inadimplemento, mesmo sem declaração explícita, entre as partes, e sem norma jurídica, todos os seus bens, salvo as restrições legais expressas, que constituem a exceção.23

P o r essa razão, a responsabi l idade pa t r imon i a l consiste n a sujeição dos bens do devedor à atuação da sanção, o u seja, o devedor não pode , leg i t imamente, ex­c lu i r seus bens , objeto med ia to do processo de execução, 2 4 da satisfação do d i re i ­to mater ia l do credor.

Nesse sentido, existem bens que, m e s m o estando fora do p a t r i m ô n i o do d e ­vedor , estão sujeitos à execução, pois , c o m o mu i t o b e m adverte A lc ides de M e n ­donça L i m a , 2 5

não bastaria a lei assegurarão credor o direito de acionar o devedor, por inadimplên­cia da obrigação, se, sobretudo no processo executivo, não concedesse meios efetivos e prontos para a reconstituição do patrimônio do sujeito passivo, ocorrendo a dila­pidação material ou jurídica, ou estendendo coativamente a responsabilidade pela solvência a terceiro, estranho às partes.

A responsabi l idade pa t r imon ia l está regulada nos arts. 591 a 597 do Cód igo

de Processo C i v i l v igente. A obr igação abrange dois e lementos: o débito (Schuld), que é de caráter pes ­

soal , o u seja, " o dever da pessoa obrigada de c u m p r i r a prestação, ao qua l corres­p o n d e d o lado at ivo o direito de exigir o c u m p r i m e n t o " 2 6 e a responsabi l idade,

obrigação, não podendo o processo de execução satisfazer um direito material de cré­dito a qualquer preço, sob pena de não tutelar adignidade do ser humano e de sua família, construindo-se uma justa limitação política à execução forçada". Tutela do patrimônio mínimo necessário à manutenção da dignidade do devedor e da sua famí­lia. In: ARRUDA ALVIM, Teresa (coord.). Processo de execução e assuntos afins, p.253. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução, p.56. LIMA, Alcides Mendonça. Comentários ao Código de Processo Civil, v.VI, t.I, p.463. Cf. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, v.3, p.249. LIMA, Alcides Mendonça. Op. cit., p.475. Cf. LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de execução, p.33.

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS 499

esta de caráter pa t r imon i a l {Haftung), que é "a destinação dos bens do devedor a garant ir a satisfação coativa daquele dire i to" . 2 7

Oco r r e que o débito e a responsabilidade recaem sobre a mesma pessoa - o devedor - , mas pode perfe i tamente acontecer de a responsabi l idade pairar sobre q u e m não tenha débito, que é o responsável. C o m isso, o responsável v incula seu pa ­t r imôn io ao c u m p r i m e n t o da obrigação, m e s m o sem ter débito.

A lber to dos Re i s 2 8 esclarece b e m a a ludida situação. Segundo ele

convém distinguir entre responsabilidade e obrigação. Não pode haver obrigação sem responsabilidade, visto que esta é a sujeição à coação ou aos actos pelos quais se tra­duz a sanção e sem coação não é concebível o vinculo obrigatório; mas pode haver responsabilidade sem obrigação, o que significa que o responsável, isto é, o indivíduo sujeito à coação, pode ser pessoa diversa do obrigado.

Desta forma, há responsáveis que assumem por vontade própr ia tal c o n d i ­ção (por exemplo, o fiador, o avalista) e outros que se t o rnam ex vi legis, e quando isso ocorre , se dá aqui lo que L i e b m a n d e n o m i n o u de responsabilidade executaria secundária.29

0 art. 592 do Cód igo de Processo C i v i l estabelece as hipóteses e m que certas pessoas p o d e m ter seu pa t r imôn io at ingido pela execução, o u seja, os responsá­veis executórios secundár ios, in verbis:

Art. 592. Ficam sujeitos à execução os bens: 1 - do sucessor a título singular, tratando-se de execução de sentença proferida em ação fundada em direito real;

II - do sócio, nos termos da lei; III - do devedor, quando em poder de terceiros; IV - do cônjuge, nos casos em que os seus bens próprios, reservados ou de sua mea-ção respondem pela dívida; V - alienados ou gravados com ônus real em fraude de execução.

O Cód igo de Processo C i v i l , po r sua vez, outorga leg i t imidade para a o p o s i ­ção dos embargos à execução ao devedor, p o r é m , ao uti l izar essa terminologia , o legislador pátr io c r i ou u m a grande controvérsia na dout r ina e na jur isprudênc ia , no que tange à legi t imidade dos responsáveis pat r imonia is . Tal problemát ica não é nova , n e m m e s m o o seu entend imento é pacíf ico.

Ibidem. RE I S , Alberto dos. Op. cit., p.214. L I E B M A N , Enrico Tullio. Op. cit., p.95.

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500 ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR

C â n d i d o Range l D i n a m a r c o , 3 0 em 1971, a inda sob a v igência do Cód igo r e ­vogado, já cobrava u m a solução para tal p rob lema. D iz i a o processualista:

Um dos problemas referentes à execução, e que o Código de Processo Civil não resol­ve expressamente, é o da situação do terceiro meramente responsável. Ocorre que na prática, alguém é titular de um bem, ou de bens que respondem pela execução, sem que haja entre essa pessoa e o credor vínculo obrigacional. Ele nada deve, não é parte na relação de direito material. Ele simplesmente responde pelo inadimple­mento não podendo subtrair determinado bem de sua propriedade, ou todo seu patrimônio, à sujeição executiva. É o caso do sócio, que responde pelas dívidas da sociedade; da mulher casada, que responde pelas dívidas do marido, quando constituí­das em benefício do casal; do proprietário de um bem sujeito ou sujeitável à execu­ção, como aquele que oferece algum bem à penhora, ou que dera em hipoteca algum bem de sua propriedade, para garantia de débito alheio. Essas pessoas tornam-se par­tes na execução? Devem ser citadas? Podem opor defesa? Que defesa podem opor? Tais problemas não são expressamente solucionados no Código de Processo Civil, cujo art. 888 diz de sua responsabilidade executória, mas que nada mais se preocu­pou em dizer a respeito delas; nem tampouco o Anteprojeto, cujo art. 615 não as inclui entre as partes legítimas para a execução.

Para L i e b m a n , os responsáveis pat r imonia is

que virem seus bens injustamente apreendidos por um dos títulos enumerados [to­das as hipóteses previstas no art. 592 do CPC] poderão defender-se com os embargos de terceiro.3 1

N e g a m , t ambém, a legitimidade aos responsáveis patr imoniais : Sérgio Sh imu-

ra , 3 2 V icente Greco F i lho , 3 3 M o a c y r A m a r a l Santos 3 4 e Robson Carlos de Ol iveira. 3 5

Segundo os referidos autores, o responsável pa t r imon ia l não t em leg i t imida­de para os embargos à execução, pois , não é parte na execução. 3 6

D I N A M A R C O , Cândido Rangel. Execução e legitimação do terceiro responsável. RJT-JESP. 19:15. L I E B M A N , Enrico Tullio. Op. cit., p.97. Cf. S H I M U R A , Sérgio Op. cit., p.56. Cf. G R E C O F I L H O , Vicente. Direito processual civil brasileiro, v.3, p.42. Cf. S A N T O S , Moacyr Amaral. Op. cit., p.251-3. Cf. O L I V E I R A , Robson Carlos de. Legitimidade para agir nos embargos à arremata-ção e à adjudicação: aspectos controvertidos. In : A R R U D A A L V I M , Teresa (coord.). Op. cit., p.614. Nesse sentido: SANTOS , Moacyr Amaral. Op. cit., p.251; L I E B M A N , Enrico Tullio. Op. cit., p.96.

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS 501

H u m b e r t o Theodo ro Jr . , que, pela mesma razão dos citados autores, nega­va leg i t imidade aos responsáveis pa t r imon ia i s , 3 7 ao tratar da remição dizia que

nos casos de execução sobre bens de terceiro responsável, mas não devedor (art. 592), admite-se, também, que seus parentes e cônjuge exerçam o direito de remição, por­que a posição do responsabilizado, na execução, é idêntica a do devedor, (g.n.)38

E m recente obra modi f icou seu entendimento ao af irmar que a condição da ­quele que adquir iu o b e m em fraude de execução é diferente, por conseguinte, o b e m

continuará sujeito a responsabilidade executiva pela dívida do alienante (art. 592, V). Por isso, tal adquirente, embora não seja co-devedor, terá legitimidade, como responsá­vel para oferecer embargos à arrematação ou à adjudicação, nas hipóteses do art. 746.39

Ass im, legi t imado que é para oposição dos embargos de segunda fase (à a r ­rematação e à ad jud icação) , t a m b é m o será para os de p r ime i ra (à execução).

Somos , contudo , de op in ião contrár ia . E m nosso sentir, o responsável pa t r i ­mon i a l t em legi t imidade para a oposição dos a ludidos emba rgos , 4 0 , 4 1 desde que, ev identemente , observados determinados aspectos que serão del ineados a seguir.

D e in íc io , devemos re lembrar que no processo de execução v ige o pr inc íp io de que toda execução é real , por tanto , o que se busca não é o envo lv imento pes ­soal do devedor e, s im , de seu pa t r imôn io . 4 2

3 7 Cf. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit, p.100-12. 3 8 Idem. Processo de execução, p.475. 3 9 In: Comentários ao Código de Processo Civil. 34.ed. Rio de Janeiro, Forense, 2003, v.IV,

p.698. 4 ( ) Nesse sentido: ASSIS, Araken de. Op. cit, p. 1.089; ARMELIN, Donaldo. Op. cit, p.308;

BELTRAME, José Alonso. Op. cit, p.57; VILLAR, Wilard de Castro. Processo de execu­ção, p.309; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro, p.289; WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduar­do. Curso avançado de processo civil, v.2, p.294, porém, tais autores ressaltam a ilegitimi­dade ativa do "terceiro responsável", no caso de terceiro adquirente em fraude à execu­ção; DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit, p.437; GRECO, Leonardo. O processo de execução, t.II, p.615-6.

4 1 No mesmo sentido: REsp. n. 14.264-RS, Rei. Min. Nilson Naves, j . 14/4/1992, vota­ção unânime; 1° TACSP - 5 a Câmara, Apelação n. 336.402, Rei. Juiz Laerte Nordi, j . 13/5/1985; I o TACSP - 4 a Câmara, Agravo de Instrumento n. 915.265-2, Rei. Juiz Paulo Roberto Santana, j . 18/9/2002; I o TACSP - 5 a Câmara, Agravo de Instrumento n. 905.039-9, Rei. Juiz Manoel Matos, j . 24/4/2002; I o TACSP - 3 a Câmara, Agravo de Instrumento n. 862.641-3, Rei. Juiz Itamar Gaino, j . 5/12/2000.

4 2 Cf. ASSIS, Araken de. Partes legítimas, terceiros e sua intervenção no processo executi­vo. Ajuris, 61:10.

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502 ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR

Para le lamente , o conceito de parte , segundo A r r u d a A l v i m 4 3

expressa a realidade representada pelo fato, que se origina da afirmação feita pelo autor, considerando-se com direito à ação em função de uma pretensão, e atribuindo ao demandado a qualificação de réu. Deriva, exclusivamente, pois, de uma afirmação.

C o m isso, se v isual izarmos o conceito de parte sob o pr i sma do pr inc íp io de que toda execução é real , ve remos os responsáveis pa t r imon ia i s c o m o tais, po is : ( i ) o que se busca na execução é a transformação do direito consubstanciado n o t í tulo e m fato, esse, p o r sua vez, deve representar aqui lo que o credor teria se a obr igação fosse espontaneamente ad impl ida ; ( i i ) a pretensão do credor é a p rá ­t ica de atos de execução c o m o fito de invad i r a esfera pa t r imon i a l do devedor para dal i ret irar u m b e m que expropr iado satisfaça seu direito de crédito; ( i i i ) o devedor responde pelo c u m p r i m e n t o da obrigação inad impl ida c o m seus bens presentes e futuros ( C P C , art. 591) ; ( i v ) os bens dos responsáveis pa t r imon ia i s , nos casos previstos do art. 592 do C P C , estão sujeitos aos atos de execução, o que os torna partes.

C o r r o b o r a n d o as conclusões anteriores, temos a l ição de A r a k e n de Ass is , 4 4

o qua l , d iscorrendo sobre as hipóteses do art. 592 do C P C , conc lu i que:

resolve-se o problema, outra vez, empregando o conceito puro de parte e aquilatan­do a natureza prática da execução. Embora não se tenha demandado o adquirente exclusivamente, pouca dúvida resta de que, desde a inicial da demanda executiva, ou na oportunidade em que o Oficial de Justiça certificar a alienação e o exeqüente optar pela perseguição do bem - pode deixar de fazê-lo - o adquirente sofre o peso do meio executório mediante o placet judicial. Logo, é parte.

Registre-se, ainda, a opinião de Alberto Cami f ia More i r a , 4 5 para q u e m "a qua ­l idade de parte deve ser reconhecida àquele e m cuja esfera ju r íd ica p r o d u z a m os seus efeitos a misure giurisdizionali o r iunda e m concreto do processo executivo".

43 Manual de direito processual civil, v.2, p.25. 4 4 Op. cit., p. 11.0 mesmo autor, porém, em outra obra, enfatiza sua opinião: "Ora, 'pro­

mover a execução' implica, além de endereçar a demanda contra alguém, satisfazer seu crédito com determinado patrimônio (art. 591). E quem se enrede nessa malha fma se encontra, para todos os efeitos imagináveis, 'executado'. Por tal motivo, o Códi­go arrolou os sujeitos que suportarão a atividade executiva, tanto no seu art. 568 quan­to no seu art. 592, embora tributando, infelizmente, subserviência à Liebman, este último dispositivo aluda a responsabilidade patrimonial." Op. cit., p.246.

4 5 Cf. Litisconsórcio no processo de execução, p.222.

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS 503

D e out ra parte, não há c o m o os responsáveis pa t r imon ia i s fazerem uso dos embargos de terceiro, c o m o sugere L i e b m a n . 4 6 O s embargos de terceiro v i sam à desconstrição do b e m indev idamente constr i to ; 4 7 n o caso dos responsáveis p a t r i ­mon ia i s , a agressão ao seu pa t r imôn io decorre de expressa permissão legal, o que lhes retira a leg i t imidade para oposição de tais embargos . 4 8

Vedada, ex vi legis, a uti l ização dos embargos de terceiro pelos responsáveis pa t r imon ia i s e, to lhida, a inda, a possibi l idade de embargarem c o m o se devedo­res fossem, restar iam derrogadas as garantias const i tuc ionais do acesso à just iça (CF , art. 5 o , X X X V ) , do cont rad i tór io e da ampla defesa (CF , art. 5 o , L V ) . 4 9

Cf. LIEBERMAN, Enrico Tullio. Op. cit., p.97. Cf. ARMELIN, Donaldo. Dos embargos de terceiros. Revista de Processo, v.62, p.52. Registre-se aqui a preciosa observação de ARMELIN, Donaldo: "De conseguinte, en­quanto uns responsáveis devem ser necessariamente partes para que seu patrimônio possa responder pelas obrigações por eles assumidas, outros são atingidos indepen­dentemente de seu ingresso no processo. Os responsáveis, cex vi' do estatuído no Código Tributário Nacional, como legitimados passivos que são na execução, bem assim como todos os demais assim qualificados no elenco do art. 568 do CPC devem figurar no título executivo [ressalvado o fiador judicial em nota de rodapé], como aliás o reconheceu expressamente a Lei 6.830 de 22/9/80, mandando que, na certidão de inscrição da dívida ativa conste o nome dos co-responsáveis pelo débito (art. 2 o § 5°, I). Ou então, pelo menos devem estar a ele vinculados, como acontece na sucessão da obrigação emergente do título. Em contrapartida, os terceiros sujeitos à responsabili­dade executória secundária, nomeada no Código vigente responsabilidade patrimo­nial, terão de pacientar os atos executivos em seu patrimônio. Realmente, se a própria situação jurídica em que se encontram autoriza a agressão patrimonial, sem que eles par­tes se tornem, evidencia-se que não podem subtrair da constrição judicial os bens assim atingidos. São terceiros, apenas em relação ao processo. Mas no que tange a satisfação do direito do credor, são os que diretamente suportam a atuação jurisdicional desenvolvida nesse sentido. Portanto, enquanto indiscutível a sua qualificação em uma daquelas catego­rias estatuídas no art. 592 do CPC, não tem esses terceiros legitimidade para embargar de terceiro, exatamente porque a lei lhes veda a subtração de seu patrimônio da constrição judicial. Por isso mesmo causa espécie que o próprio LIEBMAN, após ter firmado que o res­ponsável patrimonial não pode subtrair o bem do destino que lhe aguarda, entenda que a sua defesa far-se-á através de embargos de terceiro. Para que estes embargos possam ser admitidos é fundamental que o embargante prove não estar enquadrado em nenhuma das hipóteses do referido art. 592 do CPC, porque só então ele será terceiro legitimado para a propositura dessa ação11. In: Op. cit., p.307-8. (g.n.) No mesmo sentido: ARMELIN, Donaldo. Op. cit., p.312; LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Op. cit., p.278. Para Lucon "a necessidade de preservar sua esfera jurídica leva o terceiro a opor embargos à execução, adquirindo assim a qualidade de parte. Não aceitar a possibilidade de terceiro opô-los significa excluí-lo do contraditório,

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504 ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR

José Car los Ba rbosa M o r e i r a , 5 0 ao discorrer sobre os embargos do devedor, diz:

No que tange à legitimidade, convém assinalar que, não obstante a denominação adotada na lei e o teor literal do art. 736, não é só o "devedor" que se habilita ao oferecimento de embargos, mas também aquele que porventura suporte a respon­sabilidade executiva, apesar de não figurar na relação jurídica de direito material. A

quem se veja atingido em seu patrimônio por atos de execução, mas não reconheça aquela responsabilidade, a via que se abre para impugnar semelhantes atos será a dos "embargos de terceiro".

Out ross im , poderá o responsável pat r imonia l comparecer no processo e acei ­tar essa cond ição espontaneamente, c o m isso terá legi t imidade para oposição dos embargos à execução.

T ra tando agora especif icamente da situação do cônjuge, sendo ele i n t i m a ­do e ver i f icando-se, na espécie, a apl icação do quanto exposto n o art . 592, IV , do C P C , ele assumirá a posição de parte, a tuando c o m o l i t isconsorte do ou t ro c ô n ­j uge . 5 1

C o m o b e m l embra H u m b e r t o Theodo ro J r : 5 2

0 cônjuge não devedor pode assumir responsabilidade pela obrigação do consorte, quer tomando-a para si na própria origem da dívida, quer aderindo ao vínculo obri-gacional por meio de garantias como o aval e a fiança, ou por posterior assunção do débito.

D i a n t e disso, e de todas as razões expendidas quando t ra tamos da l eg i t im i ­dade do responsável pa t r imon ia l , terá esse cônjuge legi t imidade para a oposição dos embargos à execução. 5 3

violando preceito constitucional que o tutela (CF, art. 5°, LV). A possibilidade de par­ticipação do terceiro torna-se fundamento axiológico legitimador da tutela desejada pelo exeqüente no processo executivo. Ao permitir a participação de terceiro, o legis­lador nada mais fez que uma avaliação dos interesses que estão em jogo, tratando de tutelá-los em face de outros interesses". Op. cit, p.289. No mesmo sentido, BELTRAME, José Alonso. Op. cit., p.57. Cf. NEVES, Celso. Comentários ao Código de Processo Civil, v.VII, p.63. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução, Op. cit., p.434. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade afirmam que: "O cônjuge do executado tem legitimidade, em tese, para opor, alternativa ou cumulativamente, tanto embargos do devedor como embargos de terceiro, dependendo da situação jurídica

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS 505 I

D e outra fo rma , não sendo caso de responsabi l idade pa t r imon ia l do c ô n j u ­ge ( C P C , art. 592, IV), poderá ele embargar c o m o terceiro nas hipóteses do pará ­grafo 3 o do art. 1.046 do C P C , u m a vez que c o m o tal não terá legi t imidade para oposição dos embargos à execução.

A lbe r to C a m i n a M o r e i r a 5 4 preceitua que:

da intimação do cônjuge não decorre, automaticamente, o litisconsórcio necessário, dado que ela poderá não sofrer gravame em seu patrimônio, e, portanto, não have­rá razão alguma para ser considerada parte. 0 litisconsórcio fica na dependência da legitimidade da penhora sobre o quinhão do cônjuge.

N a esteira do que a f i rmamos, a in t imação prevista no parágrafo ún ico do art. 669 do C P C poderá dar ensejo à fo rmação de l i t isconsórcio facultativo ulte-r ior entre os cônjuges, tudo dependerá do reg ime de bens que rege o m a t r i m ô ­n io e da natureza da d ív ida executada. 5 5

N o regime da part ic ipação nos aquestos, não há que se falar e m penhora da meação, u m a vez que, por se tratar ela de direito expectativo, v incu lado à oco r ­rência de u m evento fu turo , qua l seja, a dissolução da sociedade conjugai , o legis­lador taxou-a c o m o impenhoráve l ( C C , art. 1.682).

que ostente. O cônjuge do devedor pode opor embargos do devedor, a) quando tiver sido citado como co-devedor e como co-executado; b) quando for responsável secundário (CPC art. 592 IV); c) quando alegar que o aval dado pelo outro não foi em benefício do casal; d) alegar ilegitimidade da dívida". Código de Processo Civil comentado e legis­lação processual civil extravagante em vigor, p.1.110, nota 3 ao art. 592. (destaques no original) Op. cit., p.223-4. ARMELIN, Donaldo, referindo-se à questão da legitimidade do cônjuge para opo­sição de embargos de terceiro nas execuções em que a penhora recai sobre bens imóveis, afirma que "em face de tantas restrições à extensibilidade das dívidas de um dos cônjuges aos bens próprios, reservados ou à meação do outro, quando isso ocorre corporifica-se a responsabilidade executória secundária, não tendo, destar­te, o cônjuge legitimidade para embargar como terceiro, a menos que consiga demonstrar que a sua sujeição a essa responsabilidade inocorre, no caso. Como tal matéria é intimamente ligada ao próprio mérito da ação de embargos, porque se integra no próprio fundamento do pedido de liberação de bens, torna-se, in casu, extremamente difícil separar a legitimidade ad causam do mérito dos embargos, maxime porque esta resulta da própria titularidade do direito que serve de supedâ-neo à pretensão de desconstrição de bens". Embargos de terceiros, p.325. (destaques no original)

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506 ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR

Insta registrar que o entendimento ju r i sprudenc ia l 5 6 e dou t r i ná r i o 5 7 é n o sen ­t ido de que ao cônjuge é confer ida dupla legit imidade, tanto para opor embargos à execução - c o m o substituto processual do cônjuge - , quanto para opor emba r ­gos de terceiro.

O cônjuge do devedor, casado pelo regime da part ic ipação f inal nos aquestos, não terá essa dupla legit imidade, o u seja, não poderá embargar c o m o terceiro, h a ­ja vista que não há meação para ser penhorada, e m razão da vedação legal.

D e out ra parte, caso seja penhorado b e m que constitua o pa t r imôn io p r ó ­pr io do cônjuge do devedor, estaremos diante das hipóteses estudadas alhures, p o d e n d o esse cônjuge assumir a condição de responsável executivo secundár io , ace i tando que a d ív ida assumida poster iormente ao casamento reverteu, total o u parc ia lmente , e m seu provei to ( C C , art. 1.677, parte f ina l ) , tendo, c o m isso, l eg i ­t im idade para a oposição de embargos à execução. N o entanto, caso a d ív ida as ­sumida não tenha revert ido e m seu provei to, não há razão para agressão de seu pa t r imôn io , mot i vo pelo qual poderá embargar c o m o terceiro, p rovando que não se benef i c iou .

N a hipótese de a d ív ida executada ter sido contra ída pelo cônjuge anter ior ­men te ao casamento, somente seus bens responderão por ela, não havendo que se falar e m responsabi l idade do out ro cônjuge, pois tais d ív idas são pessoais, não podendo ser imputadas ao outro cônjuge ( C C , art. 1.674, I I I ) . D i an t e disso, caso seja i nc lu ído n o pó lo passivo da demanda executiva, poderá opor embargos à execução, a legando sua i legi t imidade ad causam, c o m fundamen to no inc. o I I I do art . 741 do C P C .

D e ou t ro tu rno , se a d ív ida fo i contra ída antes do casamento, e m e s m o as ­s i m o cônjuge teve a lgum b e m de seu pa t r imôn io p rópr io penhorado , tentando

"Se a mulher quiser opor-se à dívida contraída pelo marido, a intimação da penhora lhe possibilitará o exercício dessa pretensão nos próprios autos da lide; se, no entanto, pretender afastar a incidência da penhora sobre sua meação, é na posição de terceiro, estranha a res in iudicio deducta, que deverá agir, tal como qualquer outro terceiro." (RTJ 100/401; citação do voto do Min. Soares Munõz) No mesmo sentido: RSTJ 46/242 e 105/274; RT 694/197 e 726/361; STJ, 4 a Turma, REsp. 252.854-RJ, Rei. Min. Sálvio de Figueiredo, j . 29/6/2000, deram provimento, v.u., DJU 11/9/2000, p. 258. Apud NEGRÃO, Theotônio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 34.ed. atual, até 14 de junho de 2002. São Paulo, Saraiva, 2002, p.928, nota 16 e 16a ao pará­grafo 3 o do art. 1.046. GRECO, Leonardo. Op. cit., p.339; LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Op. cit., p.281.

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PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE O REGIME DA PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS 507

se lhe carrear a responsabi l idade executiva secundár ia , deverá opor embargos na qua l idade de terceiro.

C o m relação à responsabil idade do cônjuge e m razão de garantia prestada pelo outro, acreditamos que o entendimento vigente de que "se o cônjuge está sendo executado e m v i r tude de ter prestado aval de favor, a jur i sprudênc ia t em entendido que essa d ív ida não beneficia o casal, po rque não contra ída e m b e n e ­f íc io da famíl ia" , 5 8 possibi l i tando, conseqüentemente, a oposição de embargos de terceiro pelo out ro cônjuge, não deve mais prosperar, pois , a teor do inc. I I I do art. 1.647 do novo Cód igo C i v i l , nenhum cônjuge pode, sem a autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta prestar aval.

D ian t e de tal alteração, o cônjuge que outrora t inha a seu favor a presunção de que a d ív ida não o benefic iava, agora, po r prestar o ava l , não t em c o m o e m ­bargar na qual idade de terceiro, pois f igurará n o t í tulo executivo.

A i n d a e m relação à leg i t imidade do cônjuge, temos que abordar o prob lema que surge na hipótese de a penhora recair sobre bens móve is . O d ip loma proces­sual nada dispõe acerca da questão, somente regula a hipótese de bens imóve is .

N o entanto, de lege ferenda, entendemos que deveria existir disposição n o Cód igo de Processo C i v i l no sentido de que, se a penhora recair sobre bens móveis e o devedor for casado o u v iver e m união estável, o cônjuge o u o companhe i ro de ­verão ser in t imados , aplicando-se-lhe, n o que tange à leg i t imidade para os e m ­bargos de segunda fase, tudo quanto restou exposto.

Tal ação se justif ica na exata med ida e m que o art. 592, IV , não qual i f icou a espécie do b e m que será at ingido e m razão da responsabi l idade pa t r imon ia l . C o m o b e m lembra D o n a l d o A r m e l i n , 5 9

o Código não distingue, de resto, entre bens móveis e imóveis integrantes da mea­ção do cônjuge responsável, nem especifica que somente os móveis reservados ou próprios são afetados à execução. Todos o são.

Registremos, a inda, que existem inúmeros bens móve is que possuem v a l o ­res, certas vezes, superiores ao do b e m imóve l , independentemente disso, nossa Const i tu ição estatui que n inguém será pr i vado de seus bens sem o dev ido proces­so legal (CF , art. 5 o , L I V ) , sem qualquer dist inção quanto à qual idade desse b e m .

N o regime da part ic ipação final nos aquestos, os bens móve i s presumem-se e m face de terceiros de d o m í n i o do cônjuge devedor, salvo se o b e m for de uso

Cf. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., nota 10 ao art. 669. ARMELIN, Donaldo. Embargos de terceiro, p.330.

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508 ANTÔNIO DE PÁDUA NOTARIANO JÚNIOR

Cf. LOBO, Paulo Luiz Netto. Op. cit., p.332.

pessoal do ou t ro ( C C , art. 1.680). Ta l disposit ivo visa a tutelar o interesse dos c re ­dores do cônjuge e m razão da di f iculdade de se provar a aquisição dessa espécie de b e m . 6 0

Portanto , sendo penhorado b e m móve l do devedor casado pelo regime de bens ora e m comento , ao seu cônjuge restará a oposição de embargos de tercei ­ro, que poderá ter c o m o fundamento : ( i ) o uso exclusivo do b e m ; ( i i ) a aquisição anter ior ao casamento; e ( iü ) que o b e m penhorado fo i adqu i r ido e m subst i tu i ­ção a ou t ro b e m que era de sua t i tu lar idade antes do casamento - sub-rogação.

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Page 524: Questões processuais do novo CC - Mazei

R E F L E X O S D O C Ó D I G O C IV I L D E 2002 N O S P R O C E S S O S D E I N V E N T Á R I O

E P A R T I L H A

GABRIEL SEIJO LEAL DE F IGUEIREDO*

Sumário 1. I n t rodução . 2. Noções conceituais de inventár ios e part i lhas. 3. Aspectos sistemáticos dos inventár ios e part i lhas. 4. Mod i f i cações imp lementadas pe lo T í t u ­lo I V do L i v ro V do novo Cód igo C iv i l . 5. Modi f icações implementadas pelos demais dispositivos do novo C ó ­digo C i v i l . Referências bibl iográf icas.

A exemplo do d ip loma de 1916, o Cód igo C i v i l de 2002 dedica o T í tu lo I V do L i v r o do D i re i to das Sucessões ao inventár io e à part i lha. O s arts. 1.857 a 2.027 da nova lei assemelham-se aos arts. 1.770 a 1.805 da codif icação anterior, d isc ipl inando temas c o m o : administração e representação do espólio, sonegados, pagamento de dív idas, colação, formas de extinção do c o n d o m í n i o causa mortis, garantia dos qu inhões hereditár ios e inva l idade da part i lha.

N o part icular, as no rmas do Cód igo C i v i l de 2002 não i n o v a r a m e m relação à substância do sistema de 1916.' Seguindo u m dos critérios gerais uti l izados para a elaboração da nova codif icação, o legislador buscou preservar os dispositivos de Cód igo Bev i l áqua sobre inventár ios e part i lhas que se adequam à real idade social contemporânea . 2

Advogado. Mestrando pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). 1 LEITE, Eduardo de Oliveira. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (coord.). Comentá­

rios ao novo Código Civil, v.21. p.710. 2 REALE, Miguel, Visão geral do novo Código Civil. In: TAPA, Giselle de Melo Braga

(coord.). Novo Código Civil brasileiro (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002): estudo

1. INTRODUÇÃO

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512 GABRIEL SEIJO LEAL DE FIGUEIREDO

A l é m disso, a natureza do inventário e da partilha apresenta caracteres tanto materiais quanto processuais. Ass im, conquanto os institutos tenham sido mantidos no corpo do novo Código Civ i l , parte de sua regulamentação se dá por intermédio do Código de Processo C iv i l (arts. 982 a 1.045). Isso decerto inspirou o legislador de 2002 a não promover modificações essenciais, a fim de não invadir a esfera do C P C . 3

Ent re tanto , apesar de não se ver i f i carem mudanças na essência do referido L i v ro IV , é certo que f o r am implementadas modif icações pontua is . Ê o caso, po r exemplo, das n o r m a s sobre va lo r das colações.

Ou t ross im , não há dúv idas de que as profundas alterações operadas nos d e ­ma is inst i tutos do direito das sucessões se refletirão no inventár io e na part i lha. A posição do cônjuge e a part ic ipação do companhe i ro , po r exemplo, são alguns dos aspectos que deverão ser reavaliados no ju ízo sucessório.

Adema i s , o operador do direito terá de modern izar sua postura na condução dos processos de inventár io e part i lha, a fim de amalgamá-la c o m os pr inc íp ios e va lores que no r t e i am a nova codif icação, entre os quais se destacam a eticida-de, a social idade e a operabi l idade. 4

E m pro l do me lhor entendimento da matér ia , examinaremos in ic ia lmente as l inhas mestras conceituais dos inventár ios e part i lhas. Feito isso, ut i l izaremos o mé todo compara t i vo para abordar a sistemática apl icada à matér ia pelo o rdena ­m e n t o jur íd ico . A seguir, adotando o mesmo pr isma metodológico, anal isaremos as mudanças pontua is implantadas no própr io bojo do T í tu lo IV . Po r fim, exam i ­na remos a f o rma c o m o as modi f icações introduzidas nos demais t í tulos do d i r e i ­to das sucessões se projetarão sobre os inventár ios e part i lhas.

2. NOÇÕES CONCEITUAIS DE INVENTÁRIOS E PARTILHAS

2.1 Noções gerais

A s noções conceituais dos inventár ios e part i lhas f o r am mant idas pelo C ó ­digo C i v i l de 2002. Pa ra compreendê-las, p o r é m , devemos p r ime i ramente abor ­dar as bases do direito das sucessões brasileiro.

comparativo com o Código Civil de 1916, Constituição Federal, legislação codificada e extravagante, p. 11. Entendemos que o CCIlGOl, quanto a essa questão, foi redigido acertadamente. As mo­dificações para conferir efetividade e celeridade aos inventários e partilhas - sem dúvi­da prementes - dizem respeito principalmente a seus aspectos procedimentais. Assim, deverão ser realizadas por meio de alterações no CPC. REALE, Miguel. Op. cit., p.l2-7.

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 513

A chave para o entendimento do direito sucessório pátr io está n o droit de sai-

sine, consagrado no art. 1.572 do Código C iv i l de 1916 e repetido no art. 1.784 do Cód igo C i v i l de 2002. 5 Trata-se de u m a regra o r i unda do direito consuetudiná-r io francês, 6 f ixada no século X I I I e m derrogação ao direito r o m a n o . 7

O droit de saisine é sintetizado pelo brocardo le mort saisit le vif, que po r sua vez remete o intérprete ao ax ioma de que não existe direito sem titular. Signif ica dizer que a transmissão da herança ocorre no exato m o m e n t o da abertura da sucessão. O u seja, o óbito acarreta a transferência automát ica do pa t r imôn io do falecido para seus herdeiros legít imos e testamentár ios. 8

Observe-se que há uma diferença na redação dos arts. 1.572 do CC/1916 e 1.784 do CC/2002. A lei anterior estabelecia que o óbito ocasionava a transferência, em favor dos herdeiros legítimos e testamentários, do domínio e da posse da herança. Por sua vez, o novo estatuto não se refere ao domínio e à posse, mencionando apenas a trans­ferência da herança. Isso poderia levar à falsa impressão de que a morte do de cujus não teria o condão de transmitir a posse da herança aos herdeiros. Todavia, tendo em vista sua condição de co-proprietário da herança, é certo que o herdeiro se apresen­tará, pelo menos, como possuidor indireto das coisas que integram o acervo heredi­tário (CC/2002, art. 1.197). Aliás, a herança é um dos casos clássicos de composse (cf. SANTOS, J. M. Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado, v.I, p.36-7). Daí advêm conseqüências de ordem processual, como a atribuição de legitimidade ao herdeiro para manejar os interditos possessórios. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v.6, p.16; alguns autores apontam uma origem germânica para o droit de saisine, manifestada no aforismo "der Todte erbt den Lebendingen". (BEVILÁQUA, Clóvis, Direito das sucessões, p.27-8) No direito romano, a propriedade do acervo hereditário não se transmitia de pleno jure com a abertura da sucessão. Para dividir os bens deixados pelo de cujus, segundo BEVILÁQUA, Clóvis, os sucessores tinham de entrar "em acordo para a cessão do direito que tinham sobre a universalidade dos bens, adquirindo, em troca, um direi­to exclusivo sobre uma parte deles". (Op. cit., p.374) Caso o acordo não fosse entabu-lado, qualquer dos herdeiros poderia manejar a actio familiaz erciscundaz (VELOSO, Zeno. In: Comentários ao Código Civil, v.21, p.432). No mesmo sentido, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit, p.291. PLANIOL, Mareei, em obra atualizada por Georges Ripert e Jean Boulanger, afirma que a saisine não deve ser confundida com a transferência da propriedade, que se opera de pleno direito com a morte do de cujus. Em seu entendimento, a saisine é ape­nas a legitimação conferida ao herdeiro para exercer os direitos e ações titularizados pelo extinto, sem a necessidade de qualquer formalidade preliminar. É o que se depreende deste escólio: "Il nefaut pas confondre la saisine avec la transferi de la pro-priété, qui s'opère de plein droit au décès au profit de tous les successibles. II ne faut pas confondre davantage avec la possession des biens: un héritier saisi peut ne pas avoir en fait la possession des bien héréditaires et un suecesseur irrégulierpeut Vavoir. Enfin on ne peut même pas y voir un droit à la possession qui permettrait à Vhéritier de continuer la per-

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514 GABRIEL SEIJO LEAL DE FIGUEIREDO

A conseqüência do droit de saisine é a fo rmação de u m c o n d o m í n i o entre os sucessores do de cujus.9 N o s termos dos arts. 57 e 1.791 do novo Cód igo C i v i l , a herança é u m a universal idade, 1 0 sobre a qual incide u m a comunhão de direitos dos sucessores. Trata-se de u m c o n d o m í n i o pro indiviso, estabelecido mortis causa e po r força de l e i . 1 1

Ocor re que a permanênc ia desse estado de comunhão repugna ao ordena­mento jur íd ico. A compropr iedade opõe-se ao exclusivismo e à individual ização que caracter izam o direito de propr iedade, a lém de cr iar obstáculos à l ivre c i r cu ­lação dos bens e apresentar-se c o m o u m a permanente fonte de tensão soc ia l . 1 2

Desse m o d o , o estado de c o m u n h ã o provocado pela abertura da sucessão é eminen temente t ransi tór io e c i rcunstanc ia l , 1 3 tendendo a extinguir-se. Seu desa­parec imento se dá med iante u m processo bifásico, in ic iado c o m o inventár io e f inal izado c o m a part i lha.

2.2 Noções conceituais do inventário

C o m efeito, antes de realizar-se a part i lha, é necessária a consecução de u m a série de medidas destinadas a separar a meação do acervo hereditár io, verif icar os t ítulos dos herdeiros, pagar as dív idas do de cujus, recolher os tr ibutos incidentes sobre a sucessão e determinar a exata composição do monte-mor , po r in termédio das colações e da descrição e avaliação dos bens que c o m p õ e m o espólio.

O con jun to dessas medidas antecedentes à part i lha const i tu i o inventár io . 1 4

N a def in ição de C u n h a Gonça lves , a

sonne du défunt avec les mêmes caracteres: cette jonction des possessions existe auprofit de tout successible. La saisine est simplement Vhabilitation legale reconnue à 1'héritier (ou, le cas échéant, au légataire) à 1'efjet d'exercer les droits et actions du défunt sans avoir besoin d'aucune formalité préalable, parce qu'il est le continuateur de la personne du défunt". (Traité élémentaire de droit civil, v.3, p.704-5)

9 BEVILÁQUA, Clóvis. Op. cit., p.373-4; LEITE, Eduardo de Oliveira, Op. cit., p.712; PEREIRA, Caio Mário da Silva, Op. cit., p.289; RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil, v.3, p.681.

1 0 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, v.60, p.194.

1 1 VELOSO, Zeno. Op. cit., p.394. 1 2 LEITE, Eduardo de Oliveira, Op. cit., p.712. 1 3 GOMES, Orlando, Sucessões, p.285. 1 4 O novo Código Civil admite o assim chamado "inventário negativo", isto é, um pro­

cedimento destinado a reconhecer que o falecido não deixou bens.

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 515

palavra inventário vem do latim invenire, que significa o ato pelo qual se acha ou ve­rifica o que existe na herança. 0 inventário é a solene e autêntica descrição dos bens a dividir da herança, a fim de se apurar a herança liqüida, depois de pagas as dívidas e fazer-se em seguida e afinal a partilha.15

A doutrina contemporânea segue a mesma linha, apenas chamando a aten­ção para o fato de existirem duas acepções para o vocábulo inventário. Nesse sen­tido, Eduardo de Oliveira Leite assevera que inventário,

em sentido lato, é a relação e descrição dos bens pertencentes a qualquer pessoa e, em sentido restrito, é o processo no qual se fazem a descrição, a avaliação e a parti­lha dos bens do defunto entre seus herdeiros. É nesse segundo sentido que nos inte­ressa o fenômeno do inventário.16

Além da preparação do espólio para a partilha, Francesco Carnelutti vis­lumbra no inventário uma função conservativa. 1 7 Ela se manifestaria, por exem­plo, nos atos de administração destinados a preservar o acervo hereditário.

O inventário deve tramitar em juízo, não se acolhendo o inventário extraju­dicial. De acordo com Pontes de Miranda, não é admissível "qualquer interpre­tação no sentido de se permitir inventário extrajudicial. Esse, se foi feito, é nulo. Não vale, sequer, como contrato de direito privado". 1 8 Essa orientação, prescrita pe­lo art. 465 do Código de Processo Civil de 1939 e adotada pelo art. 982 do CPC de 1973, foi preservada pelo sistema do novo Código Civil.

Do ponto de vista da processualística, o inventário consubstancia-se em um procedimento especial. Sua natureza é contenciosa, determinada não apenas pela topologia do Código de Processo Civil, que inseriu os inventários no título de­nominado "Dos Procedimentos Especiais de Jurisdição Contenciosa", mas tam­bém em razão de haver um potencial conflito de interesses entre herdeiros, Fisco e, eventualmente, meeiro, legatários, credores e o Ministério Público. 1 9

1 5 GONÇALVES, Luiz da Cunha. Princípios de direito civil luso-brasileiro, v.3, p. 1.362. 1 6 LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. cit., p.714. 1 7 CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil, v.3, p.336. 1 8 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit, p.197. 1 9 GOMES, Orlando, Op. cit, p.253; LEITE, Eduardo de Oliveira, Op. cit, p.714; PONTES

DE MIRANDA, Op. cit, p.196; THEODORO JÚNIOR, Humberto, Curso de direito pro­cessual civil, v.3, p.264; VELOSO, Zeno, Op. cit, p.395. No mesmo sentido, mas ressalvan­do a natureza voluntária do arrolamento sumário em caso de partilha amigável, CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Comentários ao Código de Processo Civil: inventário e partilha, v.9, t.I, p.15-6. À luz do direi to positivo italiano, CARNELUTTI, Francesco qualifica o inventário como "procedimento voluntário para a conservação de bens". (Op. cit, p.331)

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516 GABRIEL SEIJO LEAL DE FIGUEIREDO

O inventár io pode processar-se p o r três ritos dist intos: inventár io solene, ar-ro lamento sumár io e a r ro lamento simples. O Cód igo C i v i l de 2002 não os m o ­d i f i cou — n o que se houve b e m , pois, de acordo c o m a boa técnica legislativa, as questões proced imenta is devem ser discipl inadas pela le i processual .

O inventár io solene está regulamentado nos arts. 982 a 1.030 do C P C . Trata-se de u m r i to residual , apl icável quando não est iverem presentes os requisitos para a adoção de a lguma das demais fo rmas .

O a r ro lamento sumár io , po r sua vez, está previsto nos arts. 1.031 a 1.035 do d i p l oma processual . P o r me io dele, o ju iz homologa a part i lha amigáve l ce lebra­da pelos sucessores. É requisito do a r ro lamento sumár io que as partes sejam capazes, pe lo que se deve atentar para a redução da idade de ma io r idade c iv i l efe­tuada pe lo art . 5 o do novo Cód igo C i v i l . 2 0

P o r seu tu rno , o a r ro lamento simples é regido pe lo art . 1.036 do C P C . Ta l r i to t e m lugar quando os bens do espól io fo rem de va lo r igua l o u infer ior a duas m i l Obr igações Reajustáveis d o Tesouro Nac i ona l ( O R T N ) .

F i na lmen te , c u m p r e salientar que, e m alguns casos previstos e m numerus clausus, o direi to brasi le iro dispensa a realização do inventár io . Nas situações elencadas nos arts. I o e 2 o da L e i n. 6.858, de 24 de novembro de 1980, a regula­r ização da propr iedade dos bens hereditár ios independe de inventár io , operan-do-se c o m a me ra expedição de u m alvará a u t ô n o m o . 2 1

2.3 Noções conceituais da partilha

U m a vez encerrado o inventár io , t e m in íc io a fase f ina l do processo sucessó­

r io : a par t i lha . 2 2 Consoante o magistério de Pontes de M i r a n d a , a part i lha é "a atr i-

2 0 O art. 9 o do Código Civil de 1916 estabelecia que a menoridade cessava aos vinte e um anos de idade; de acordo com o art. 5 o do novo estatuto, a menoridade termina aos dezoito anos.

2 1 O inventário é dispensado em relação aos seguintes bens: (i) valores devidos pelos em­pregadores aos empregados; (ii) montantes das contas individuais do Fundo de Ga­rantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participação PIS-PASEP, não recebidos em vida pelos respectivos titulares; e (iii) restituições relativas ao Imposto de Renda e ou­tros tributos recolhidos por pessoa física. Caso não existam outros bens no acervo hereditário, também bastará a expedição de um alvará para a regularização da pro­priedade dos saldos bancários, das contas de cadernetas de poupança e dos fundos de investimento no valor de até quinhentas Obrigações do Tesouro Nacional.

2 2 Caso exista apenas um sucessor, o juiz lhe adjudicará todo o acervo hereditário. Com a adjudicação, não haverá necessidade de proceder-se à partilha. (THEODORO JÚNIOR, Humberto, Op. cit, p.286; VIANA, Marco Aurélio S. Curso de direito civil, v.6, p.266).

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 517

buição da parte de cada comune i ro , de m o d o que à c o m u n h ã o a causa de mor t e se subst i tuam situações sem c o m u n h ã o o u c o m u n h ã o inter v ivos" . 2 3

N o m e s m o diapasão, C lóv i s Bev i l áqua v incu la o conceito de part i lha à c o ­m u n h ã o , a f i rmando que o instituto "consiste na div isão dos bens da herança segundo o direito heredi tár io dos que sucedem, e na conseqüente e imediata adjudicação dos quocientes assim obt idos, aos diferentes herdeiros" . 2 4

A finalidade da part i lha, c o m o seu conceito deixa entrever, consiste e m pô r fim à c o m u n h ã o o r i unda da abertura da sucessão. Ass im , c o m o ressalta Ma ree i P l a n i o l , 2 5 seu escopo diz respeito à modi f i cação do reg ime de propr iedade a que se submetem os bens deixados pelo falecido:

Bien qu'en fait sa durée puisse être fort longue, 1'indivision est un état transitoire qui prend fin par le partage: la propriété privative est reconstituée au moyen de la réparti-tion des biens entre les différents héritiers. Le partage est un acte qui a essentiellement pour but de modifier le regime de la propriété.

N o direito romano, a parti lha t inha a natureza de ato translativo de proprieda­de . 2 6 Contudo, em face da adoção do droit de saisine, a parti lha hoje tem natureza declaratória, pois a atribuição da propriedade dos bens que compõem o acervo here­ditário acontece automaticamente c o m a abertura da sucessão. 2 7 Obv iamente , tal entendimento subsiste no sistema sucessório implantado pelo Código C iv i l de 2002.

A dout r ina ind ica a existência de três formas de part i lha: a part i lha amigá ­ve l , a part i lha jud ic ia l e a part i lha e m v ida . 2 8 Todas elas f o r am albergadas pelo d i ­p l oma c iv i l ora e m vigência.

A part i lha amigável é o contrato por me io do qua l os sucessores a justam a extinção do c o n d o m í n i o . 2 9 E m face de sua natureza contratua l , a va l idade da pa r ­t i lha amigável depende dos requisitos inerentes aos negócios jur íd icos e m geral. N o entanto, intensifica-se a exigência de capacidade das partes, que deve ser

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p.195. BEVILÁQUA, Clóvis. Op. cit., p.374. PLANIOL, Mareei. Op. cit., p.954. BEVILÁQUA, Clóvis, Op. cit., p.374; PEREIRA, Caio Mário da Silva, Op. cit., p.291; RUGGIERO, Roberto de, Op. cit., p.687. Clóvis Beviláqua, Op. cit., p.374; Caio Mário da Silva Pereira, Op. cit., p.291; Zeno Ve-loso, Op. cit., p.434; AMORIM, Sebastião; OLIVEIRA, Euclides de. Inventários e par­tilhas: direito das sucessões: teoria e prática, p.287; RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p.687. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p.286. GOMES, Orlando. Op. cit, p.287.

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plena, pois a part i lha amigável não pode ser ajustada por pessoas sujeitas a repre ­sentação, assistência, tutela o u curatela. 3 0

M e s m o sendo amigável , não se deve entender que essa modal idade de pa r t i ­lha escapa ao cr ivo do Poder Judic iár io. Tendo e m vista que o inventár io deve ser feito jud ic ia lmente e que se constitui e m u m antecedente necessário de todas as es­pécies de part i lha, o aperfeiçoamento da part i lha amigável depende de homo loga ­ção judic ia l (arts. 1.031 e seguintes do C P C c.c. art. 2.015 do novo Cód igo C i v i l ) .

P o r sua vez, a part i lha dita jud ic ia l t e m lugar quando as partes não chegam a u m acordo para repart ir p acervo heredi tár io o u quando existem incapazes e n ­t re os sucessores do fa lec ido ( n o v o C ó d i g o C i v i l , ar t . 2.016) . Nessas hipóteses, o ju iz deve determinar o qu inhão que caberá a cada sucessor, à luz dos cr i tér ios da igualdade, comod idade e prevenção de l it ígios ( C P C , arts. 1.022 a 1.036).

J á a part i lha e m v ida ocorre quando o própr io de cujus realiza a repartição de seus bens p o r ato inter v i vo s 3 1 o u disposição de ú l t ima vontade . Essa espécie de par t i lha estava prevista n o art. 1.776 do Cód igo C i v i l de 1916. O n o v o estatuto a conservou e m seu art. 2.018, c o m algumas modi f icações, as quais anal isaremos n o i t em 4.9 deste t rabalho.

F i na lmen te , insta salientar que n e m toda part i lha provoca a div isão do acer­vo heredi tár io . É l íc i to, po r exemplo, os sucessores acordarem que os bens f ica ­rão e m c o n d o m í n i o vo lun tá r io . 3 2

A doutrina acrescenta um outro requisito para a validade da partilha amigável: "a in­tenção de promovê-la sem discrepância" (GOMES, Orlando. Op. cit., p.287). Todavia, há farta jurisprudência afirmando que o juiz não poderá recusar o plano de partilha apresentado por herdeiros maiores e capazes (cf. acórdãos catalogados por LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. cit., p.713). Entendemos que, mesmo nesse caso, a partilha poderá ser rejeitada se ofender norma de ordem pública, uma vez que jus publicum privatorum pactis mutare non potest. O art. 1.089 do Código Civil de 1916, repetido no art. 426 da lei atual, veda a chama­da sucessão pactícia, isto é, que se celebre contrato tendo por objeto herança de pessoa viva. Entretanto, segundo NONATO, Orosimbo, o princípio comporta duas exceções: "a) nos contratos nupciais podem os cônjuges regular sua sucessão recíproca; b) podem os pais partilhar os seus bens com os filhos por ato entre vivos". (Estudos sobre sucessão testamentária, v.I, p.34) Essa forma de partilha tem origem romana e é larga­mente acolhida no direito comparado. Em comentário ao art. 3.514 do Código Civil argentino, por exemplo, SARSFIELD, Vélez aponta os benefícios da partilha em vida, afirmando que "Los padres sustituyen su voluntad ilustrada a la decisión de la suerte, puede decirse, para atribuir a cada uno de sus hijos el bien que conviene a su caracter, a su profesión, o asu posición pecuniária". (Código Civil de la República Argentina, p.742) CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Op. cit., p.3.

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 519

Dessa forma, a part i lha não t em por real objetivo a distr ibuição dos bens de i ­xados pelo de cujus, mas s im a extinção do c o n d o m í n i o f o rmado a causa da m o r ­te. Da í concordarmos c o m a l ição de P lan io l , transcrita anter iormente, no sentido de que o verdadeiro escopo da part i lha consiste e m modi f i ca r o regime jur íd ico do pa t r imôn io deixado pelo inventar iado.

O s aspectos gerais dos inventár ios e part i lhas, aqu i anal isados, são produtos de u m a longa t rad ição jur íd ica . S istemat izados pelo Cód igo C i v i l de 1916, f o ­r a m preservados pelo legislador de 2002. D a í have rmos conc lu ído que, e m rela­ção à substância dos inst i tutos, a nova codi f icação não i m p l a n t o u mudanças consideráveis.

3. ASPECTOS SISTEMÁTICOS DOS INVENTÁRIOS E PARTILHAS

3.1 Princípios fundamentais do novo Código Civil

Inser ido e m u m processo de publ ic ização do direi to p r i vado , o d ip loma de 2002 i m p õ e balizas à au tonomia da vontade por in te rméd io de u m considerável n ú m e r o de normas de o rdem públ ica. Tais regras de direito cogente não f o r am estabelecidas sem u m a base filosófica e axiológica. C o m o adiantamos na i n t r o d u ­ção, o novo Cód igo C i v i l ergue-se sobre três pr inc íp ios fundamenta is — eticida-de, social idade e operabi l idade - , todos estreitamente l igados ao cu l tura l i smo de M i g u e l Reale.

O p r i nc íp io da et ic idade cor responde ao a b r a n d a m e n t o do r igor formal is-ta e m favor dos va lores éticos que n o r t e i a m o o rdenamen to j u r í d i co . 3 3 Este p r i nc íp io f u n d a m e n t a l material iza-se p r i n c i pa lmen te nas c láusulas gerais, isto é, n o r m a s de con teúdo aberto dest inadas a faci l i tar a adequação das decisões jud ic ia i s aos precei tos da ét ica . 3 4 A s s i m , a et ic idade se mani festa po r m e i o da pos i t i vação de p r inc íp ios c o m o : a vedação ao exercício abus ivo de dire i tos, a boa-fé objet iva e a p ro ib i ção ao en r iquec imen to sem causa (arts . 113, 187, 422 e 884 a 886) .

De acordo com BRANCO, Gerson Luiz Carlos; MARTINS-COSTA, Judith, o "princí­pio da eticidade servirá para aumentar o poder do juiz no suprimento de lacunas, nos casos de deficiência ou falta de ajuste da norma à especificidade do caso concreto. Para Reale a eticidade é o espírito do novo Código Civil, e esse espírito é o 'conjunto de idéias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam"'. (Diretrizes teóricas do novo Código Civil brasileiro, v.6., p.64) REALE, Miguel, Op. cit., p.12.

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D e seu lado, a social idade t em o objetivo de m i n o r a r o ind iv idua l i smo da c o ­dif icação anter ior , marcada por u m a ideologia n i t idamente l ibera l . 3 5 A socia l ida­de manifesta-se, por exemplo, na função social da propr iedade (ar t . 1.228, pa rá ­grafo I o ) , na função social da posse (arts. 1.228, parágrafo 4 o , 1.238,1.239 e 1.242) e nas inéditas no rmas sobre função social do contrato (ar t . 421) .

P o r derrade i ro , a operabi l idade consiste e m redigir e sistematizar as n o r m a s c o m o intuito de facilitar sua exegese e aplicação. Ass im, o legislador p rocurou subs­t ituir as expressões arcaicas, equívocas o u contraditórias encontradas no CC/1916, b e m c o m o diferenciar de f o rma expressa e tratar n o m i n a l m e n t e inst i tutos cone ­xos (por exemplo, prescrição e decadência, sociedade e associação e t c ) . Ademais , o p r inc íp io da operabi l idade dá vazão à teoria do direi to concreto, que propug-na a adoção de técnicas legislativas que con f i r am m a i o r mob i l i dade e extensão aos poderes do j u i z . 3 6

C o m o se vê , os pr inc íp ios fundamenta is que or ien ta ram o legislador de 2002 não são estanques. A o contrár io, são interdependentes e apresentam diversos p o n ­tos de interseção, especialmente na fo rma c o m o se man i fes tam n o Cód igo .

A l é m disso, representam u m a renovação nas premissas uti l izadas pelo l e ­gislador, devendo direcionar todo o trabalho de exegese do novo estatuto - o que t a m b é m atinge, ev identemente , a discipl ina dos inventár ios e part i lhas.

3.2 Bipartição normativa dos inventários e partilhas

C o n f o r m e dissemos n o i tem 1 , a discipl ina dos inventár ios e part i lhas d i v i ­de-se entre o Cód igo C i v i l e o Cód igo de Processo C i v i l . Tal sistemática, já espo­sada à época do estatuto de 1916, fo i observada pelo legislador de 2002. Ass im , apesar de a nova codif icação ve icular no rmas sobre inventár ios e part i lhas, f o r a m man t idos e m v igor os disposit ivos do C P C que c u i d a m do tema.

Ainda na lição de BRANCO, Gerson Luiz Carlos; MARTINS-COSTA, Judith a socia­lidade se consubstancia "na exigência de que o direito deve ser exercido condiciona­do à função social. [...] A dimensão da socialidade está dispersa em diversos outros dispositivos do projeto e revela-se como uma diretriz central, sem a qual não se pode dimensionar o conteúdo e sentido das normas. Embora não haja tradicionalmente vinculação entre função social e usos e costumes, a dimensão da socialidade também é reconhecida pelo forte poder normativo que os valores sociais produzem em rela­ção ao direito e, nesse aspecto, as disposições e referências constantes aos usos (arts. 113, 429, 432), aos costumes ou costumes do lugar (arts. 596, 615, 695, 701, 872) são reveladores dessa dimensão". (Op. cit., p.66-70) Cf. REALE, Miguel, Op. cit., p.13. REALE, Miguel, Op. cit, p.15-6.

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 521

Par te da dout r ina crit ica essa b ipar t ição legislativa. 3 7

Enfat izando-se a natureza processual dos inventár ios e part i lhas, po r exem­plo , é possível sustentar que sua regulamentação n o Cód igo C i v i l representa u m resquício da fase imanent ista do processo c iv i l , inadmissível diante da evolução exper imentada pela teoria da ação . 3 8

Out ross im , a apl icação do direito cos tuma enfrentar prob lemas quando as no rmas de u m de te rminado inst ituto encontram-se dispersas e m diversos d ip l o ­mas legais. P r ime i ro : não faz sent ido a mera repetição legislativa, c o m leis d i s t in ­tas estabelecendo regras idênticas para u m a única matér ia . Segundo: caso tais regras sejam ant inômicas , poderão surgir discussões quanto à sua conci l iabi l ida-de e revogação tácita.

E m face desses argumentos, vár ios doutr inadores en tend iam que o legislador de 2002 deveria ter e l iminado do Cód igo C i v i l os artigos sobre inventários e pa r ­tilhas. Ass im, a discipl ina desses institutos seria destinada exclusivamente ao C P C , reservando-se ao estatuto civ i l institutos exclusivamente materiais da sucessão. 3 9

Contudo , eminentes autores se cont rapõem a essa corrente, defendendo a per ­manência das regras sobre inventários e parti lhas no Código C iv i l . Para tanto, afir­ma-se que a natureza dos inventários e partilhas não se resume à conotação proces­sual dos institutos, u m a vez que eles t ambém enfeixam aspectos de direito mater ia l .

Desta fo rma , a interpenetração de d ip lomas não só é salutar, c o m o t a m b é m necessária, pois os direitos e deveres o r iundos do inventár io e part i lha d e v e m ser regrados pela le i c i v i l , 4 0 ao passo que a n o r m a processual cuidará de seus aspec­tos proced imenta is . 4 1

E m verdade, por tanto , a b ipar t ição legislativa fundamenta-se não apenas na existência de aspectos processuais e mater ia is a pe rmear a matér ia , mas t a m b é m

3 7 CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. In: CAM-BLER, Everaldo (coord.). Curso avançado de direito civil: direito das sucessões, v.6, p.440.

3 8 Em sentido contrário, cabe observar que os procedimentos especiais - e não apenas o inventário e a partilha - costumam submeter-se a uma bipartição legislativa, em razão de se vincularem a um determinado instituto de direito material. Isso se dá, por exem­plo, na consignação em pagamento, nos interditos possessórios, na usucapião e nas ven­das a crédito com reserva de domínio.

3 9 AMORIM, Sebastião e OLIVEIRA, Euclides de. Op. cit., p.367; LEITE, Eduardo de Oli­veira. Op. cit., p.711.

4 0 Há questões claramente materiais no inventário, como é o caso das colações e sone­gados. (CAHALI, Francisco José; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p.440)

4 1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Op. cit., p.265; VIANA, Marco Aurélio S. Op. cit., p.259.

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n a p rópr i a dupl ic idade concei tuai do inventár io. C o n f o r m e ensina O r l a n d o G o ­mes, o conceito do inst i tuto não é ún ico . N a real idade, existe u m conceito civi-lístico de inventár io que deve conv iver c o m seu conceito processualístico:

Em dois sentidos emprega-se a palavra inventário: a) como o modo necessário de li­quidação do acervo hereditário; b) como o procedimento especial de jurisdição con­tenciosa no qual se descrevem e avaliam os bens do finado para dividi-los entre os herdeiros. Na primeira acepção, está previsto, no Código Civil, que o exige sob forma judicial em toda e qualquer sucessão (arts. 1.770 e 1.771), salvo se todos os herdeiros forem maiores e capazes (Lei n. 7.019, de 82). Na segunda, no Código de Processo (arts. 982 a 1.021).42

A l é m do ma i s , é certo que o sistema const i tuc ional brasi leiro admi te as n o r ­m a s heterotópicas . 4 3 Va le dizer, é possível que u m a n o r m a de direi to mater ia l r e ­gulamente questões de direito processual, e vice-versa. Logo , o novo Cód igo C i v i l pode reger até m e s m o os aspectos processuais dos inventár ios e part i lhas.

D a mesma forma, o direito comparado conhece inúmeros casos e m que a re ­gu lamentação dos inventár ios e part i lhas se reparte entre os Códigos C i v i l e de Processo C i v i l . Apenas para citar os exemplos mais p róx imos do sistema j u r í d i ­co brasi le iro, os o rdenamentos português, francês, i ta l iano e espanhol t r a tam da

4 2 GOMES, Orlando. Op. cit., p.253. 4 3 Em relação ao processo dinâmico-formal de elaboração legislativa, a Constituição de

1988 apenas demanda dois requisitos: a competência do ente legiferante e a obediência ao devido processo legislativo. A primeira exigência significa que o ente federativo deve ter poderes, atribuídos pela própria CF/1988, para legislar sobre determinada matéria. Para atender ao segundo requisito, o legislador deve adotar a forma normativa adequa­da à matéria - lei complementar, lei ordinária etc. Assim, se diferentes matérias forem da competência de um só ente e se submeterem ao mesmo tipo de processo legislativo, poderão ser disciplinadas por meio de um único diploma legal - mesmo porque o direito é ontologicamente uno, como bem demonstrou Hans Kelsen, sendo sua divisão em ramos um artifício de ordem eminentemente didática. Entretanto, não se olvida a recomendação insculpida no art. 7o da Lei Complementar n. 95, de 26 de fevereiro de 1998, segundo a qual o legislador não deve versar sobre diferentes assuntos em um único diploma legal. Todavia, de acordo com o inc. I do mesmo art. 7o, tal recomenda­ção não se aplica às codificações. Além disso, o inc. II do próprio art. 7o consagra a hete-rotopia em situações como a dos inventários e partilhas, ao permitir que uma lei dispo­nha sobre matéria estranha a seu objeto principal, mas a este vinculada por afinidade, pertinência ou conexão. Portanto, a duplicidade de diplomas regulamentadores não é uma característica peculiar aos inventários e partilhas, que os tornaria uma peça des-toante no panorama geral do ordenamento jurídico brasileiro, (cf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo Código Civil e o direito processual. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n.19, p.l 1)

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matér ia tanto na codif icação de direito mater ia l quanto na codif icação de d i r e i ­to processual . 4 4

Desse m o d o , os inventár ios e part i lhas const i tuem u m a matér ia complexa, que envolve u m a dupl ic idade concei tuai . Logo , seu estudo consiste e m u m per ­manente diálogo entre as no rmas de direito mater ia l e de direi to processual. N o mais das vezes, os direitos e deveres relativos aos institutos estão discipl inados no Cód igo C i v i l , enquanto o C P C cuida prec ipuamente dos aspectos p roced imen ­tais. C o n t u d o , nada obsta que haja áreas de interseção entre os d ip lomas , o que demanda redobrada atenção do operador para resolver as aparentes contradições do sistema.

3.3 Direito intertemporal dos inventários e partilhas

C o m o v imos no i tem 2, o direito brasileiro alberga o droit de saisine. A s s i m , a mor te acarreta a transmissão automát ica do pa t r imôn io do de cujus para seus sucessores.

A adoção desse pr inc íp io p roduz efeitos relevantes e m matér ia de direito i n ­ter tempora l . S ignif ica que a sucessão será regida pela lei e m v igor no m o m e n t o do óbito, a inda que tal le i seja revogada antes da conclusão do processo de i n v e n ­tário e part i lha. Desta fo rma , as no rmas sucessórias apresentam u m a espécie de sobrevida. Tal or ientação, prevista no art. 1.577 do Cód igo C i v i l de 1916, fo i preservada - c o m u m a redação ma is clara - pelos arts. 1.787 e 2.041 do novo estatuto.

N o tocante aos inventários e parti lhas, po rém, a regra deve ser examinada cum

granus salis. C o n f o r m e se expôs, os institutos envo lvem aspectos de o rdem ma te ­r ial e processual. E as leis processuais t ê m apl icação imedia ta , 4 5 abrangendo i n ­clusive os processos ajuizados anter io rmente à sua edição.

Da í poderia surgir a seguinte indagação: As normas do novo Código C iv i l so ­bre inventários e parti lhas aplicam-se aos processos iniciados antes de sua vigência?

GONÇALVES, Luiz da Cunha, Op. cit, p. 1.362; PLANIOL, Mareei, Op. cit, p.964. Cf. arts. 2.101° a 2.123° do CC português; arts. 815 a 892 do CC francês; arts. 484 a 511 e 713 a 768 do CC italiano; e arts. 1.035 a 1.087 do CC espanhol. STF, AgAI 156.338-0, I a T, rei. Min. limar Galvão, DJU 27/10/1995; STJ, REsp. n. 250901, 5 a T, Rei. Min. Edson Vidigal, DJU 11/9/2000; STJ, ROMS 4846, 6 a T, Rei. Min. Anselmo Santiago, DJU 15/3/1999; STJ, REsp. n. 138.997, 3 a T, Rei. Min. Ari Pargendler, DJU 27/9/1999; STJ, REsp. n. 181.727, 6 a T, Rei. Min. Luiz Vicente Cer-niechiaro, D/Lf 9/11/1998.

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A resposta à questão reside justamente na dupl ic idade conceituai dos inventá­rios e parti lhas. Ass im, no que tange às questões de direito material , serão aplicadas as normas do Código C iv i l de 1916. N o entanto, para regulamentar as situações de direito estritamente processual, deverão ser manejadas as regras do novo estatuto.

4. MODIFICAÇÕES IMPLEMENTADAS PELO TÍTULO IV DO LIVRO V DO NOVO CÓDIGO CIVIL

4.1 Considerações gerais

C o n f o r m e dissemos, os inventár ios e part i lhas são regulados pelo Cód igo de Processo C i v i l e pelo T í tu lo I V do L i v r o das Sucessões do n o v o Cód igo C i v i l .

O refer ido T í t u l o I V não fo i re fo rmulado substancia lmente pe lo legislador de 2002. E m verdade, f o r a m conservadas as feições gerais do sistema f i rmado e m 1916, c o m a lgumas modi f icações pontua is . Passaremos, a seguir, a analisar, u m a a u m a , tais mudanças .

4.2 Administração do espólio

O art . 1.991 do n o v o Cód igo C i v i l estabelece que a admin is t ração do espó­l io será desempenhada pelo inventar iante, n o per íodo que med ia r entre ( i ) a as ­s inatura do t e r m o de compromisso e ( i i ) a homologação da part i lha.

A assinatura do te rmo de compromisso é o ato que denota a assunção da in-ventar iança, c o m todos os poderes-deveres que lhe são pertinentes. P o r sua vez, a homologação da part i lha marca o f inal da comunhão a causa da mor te , não haven ­do, por tanto , po r que se falar e m administração do espólio após sua ocorrência.

Antes da assinatura do t e rmo de compromisso , a gestão do espólio deverá ser exercida po r u m admin is t rador prov isór io , ex vi do art. 985 do C P C c.c. art. 1.797 do n o v o Cód igo C i v i l .

O disposit ivo e m estudo não encontra correspondente n o Cód igo C i v i l de 1916. N o entanto , seu conteúdo já era inerente ao sistema, c o m o decorrênc ia dos arts. 990, parágrafo ún ico , 991 e 992 do Cód igo de Processo C i v i l .

4.3 Finalidade da colação

O caput do art. 2.003 do novo Cód igo C i v i l apresenta u m a inovação e m relação ao d i p l oma de 1916, ao dispor que as colações t ê m po r fim igualar não

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 525

apenas as legít imas dos descendentes, mas t a m b é m as do cônjuge sobrevivente. A modi f i cação decorre da inserção do cônjuge na categoria dos herdeiros necessá­r ios , levada a efeito pelo art. 1.845 da nova lei.

4.4 Valor da colação

Esta talvez seja a ma is sensível m u d a n ç a imp lementada n o t í tulo dedicado aos inventár ios e part i lhas. Po r me io dos arts. 2.003, parágrafo ún ico , e 2.004 o legislador r e tomou a sistemática de cálculo do va lor das colações estabelecida p e ­lo Cód igo C i v i l de 1916, a qua l havia sido revogada pelo CPC/1973 .

D e fato, o art. 1.792 do CC/1916 d i spunha que os bens doados 4 6 dever i am ser confer idos pelo va lor constante do ato de l iberal idade, certo o u meramente est imado. Caso a doação não atribuísse n e n h u m va lor aos bens , os mesmos deve ­r i a m ser "confer idos na part i lha pelo que então se calcular valessem ao t empo daqueles atos".

Desse m o d o , ao cu ida r da ava l iação dos bens co l ac ionados , o C ó d i g o Bev i l áqua sempre se repor tava ao va lo r que eles possu í am no m o m e n t o da doação .

Ent re tanto , tal or ientação fo i rad ica lmente alterada pelo Cód igo de P roces ­so C i v i l de 1973. Pa ra o cálculo da colação, haver ia de ser considerado o va lor do b e m no instante da abertura da sucessão, e não no m o m e n t o e m que a l ibera l i ­dade fo i concedida.

T a m b é m à luz do art. 1.014 do C P C , será diferente

o cálculo se o bem não estiver mais na propriedade do herdeiro. Nesse caso, o valor a ser conferido corresponderá ao preço da venda do imóvel [rectius, bem], se este foi o destino do bem, devidamente corrigido até a data do falecimento do autor da he-

Para fins de colação, o vocábulo "doação" deve ser entendido em uma acepção ampla, e não só no sentido do contrato pelo qual uma pessoa, por liberalidade, transfere bens ou vantagens para outra. Conforme observa RUGGIERO, Roberto de, os "escritores têm grande trabalho para determinar correntemente quais sejam as coisas sujeitas a colação, uma vez que 'doação' não deve aqui tomar-se em sentido técnico e restrito, mas compreende qualquer vantagem concedida a um herdeiro sobre outro. Doações diretas são os atos que têm por fim uma liberalidade ou que pessoalmente se dirigem ao herdeiro; indiretas, aqueles atos em que não participa o sucessível, tirando deles no entanto benefício, ou que não têm por fim próprio uma liberalidade, posto que dêem uma vantagem". (Op. cit., p.704)

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rança. Se o bem doado não existir mais, como no caso de doação em dinheiro, ou se ocorreu ato de liberalidade, o valor a ser conferido corresponderá ao da época da doa­ção, no primeiro caso, ou ao da data da liberalidade, no segundo, corrigidos moneta-riamente em qualquer das situações. Não seria razoável nesta última hipótese apurar o valor do bem à data do passamento, pelo simples fato de que ele não mais perten­ce ao herdeiro.''7

Destar te , o art . 1.014 do C P C p r o m o v e u u m a verdadeira revogação do art. 1.792 do Cód igo C i v i l de 1916. 4 8 E m vez de tomar-se c o m o base para as colações o va lo r dos bens ao t empo da doação, passou-se a levar e m conta o va lor ve r i f i ­cado n o m o m e n t o da abertura da sucessão. A modi f i cação fo i ap laudida por autores c o m o O r l a n d o G o m e s , que, embora lhe fizesse a lgumas ressalvas, cons i ­derava o pa râmet ro do Cód igo de Processo C i v i l ma is m o d e r n o . 4 9

C o n t u d o , a boa acolhida não fo i suficiente para que o legislador de 2002 m a n ­tivesse a sistemática int roduzida pelo C P C . A o revés, o art. 2.004 do n o v o Cód igo C i v i l empreendeu u m a verdadeira contramarcha, ao ordenar que as cola­ções sempre devem levar e m consideração o va lo r dos bens no m o m e n t o e m que a doação fo i realizada.

CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, Op. cit., p.152-3. Ocorreu a revogação tácita do dispositivo, nos termos do art. I o , parágrafo 2 o, da Lei de Introdução ao Código Civil. Cf., sobre o tema, CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro, Op. cit, p.152; GOMES, Orlando, Op. cit, p.272; VIANA, Marco Aurélio S., Op. cit, p.283; AMORIM, Sebastião e OLIVEIRA, Euclides de, Op. cit, p.232. Op. cit, p.272. VELOSO, Zeno demonstra que a solução do CPC é largamente empre­gada no direito comparado, fazendo-se presente em países como Suíça, Itália, Portugal, Argentina, Paraguai, Peru, França, Canadá (Quebec), China (Macau) e Espanha (Op. cit., p.419). Cabem aqui duas observações. A primeira concerne ao direito italiano. Rug-giero assinala que o cálculo das colações apresenta dois regimes distintos, um aplicá­vel aos imóveis e outro incidente sobre os móveis. Se o herdeiro ainda for proprietário dos imóveis doados, poderá optar entre colacionar o próprio bem ou imputar o valor do mesmo em seu quinhão - para o que será usada a avaliação do tempo da abertu­ra da sucessão. Já no que concerne aos móveis, a colação deve ser feita por meio da imputação, e "o valor que se tem em conta é o que tinham ao tempo da doação". (Op. cit, p.704-5) A segunda observação diz respeito ao direito argentino. Naquele país, a adoção do valor dos bens ao tempo da abertura da sucessão foi expressa na reforma do Código Civil de 1869, levada a efeito pela Lei n. 17.711, de 27/4/1986. Isso só vem reforçar a maior atualidade do sistema que o CPC brasileiro adotara e o CC/2002 optou por revogar.

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA S27

Ass im , o estatuto de 2002 revogou o art. 1.014 do C P C , p romovendo u m retorno ao mode lo preconizado pelo Cód igo C i v i l de 1916. 5 0 Respeitável d o u t r i ­na v e m reputando essa mudança como u m verdadeiro retrocesso. Edua rdo de O l i ­veira Leite, por exemplo, afirma que

perdeu a oportunidade o Novo Código Civil de adaptar a matéria à tendência atual, sendo criticável a repetição pura e simples do caput do art. 1.792, como se nada t i ­vesse ocorrido nos últimos anos. 5 1

4.5 Presunção de imputação na parte disponível

O art. 2.005, parágrafo ún ico , in t roduz iu u m a n o r m a sem paralelo no d ip l o ­m a de 1916. D ispõe ele que: "presume-se imputada na parte disponível a l iberali-dade feita a descendente que , ao t empo do ato, não seria chamado à sucessão na qual idade de herdeiro necessário".

O n o v o disposit ivo não quebra o sistema sucessório e possui i números co r ­respondentes no direi to compa rado . 5 2 C o m o o donatár io não se apresentava c o m o herdeiro no m o m e n t o da l iberal idade, presume-se que o de cujus t inha a vontade de doar-lhe o b e m sem a cláusula de antecipação da legít ima.

En t endemos que se trata de u m a presunção relativa, venc íve l por prova e m contrár io. P r ime i ro porque a presunção tem po r objeto u m a expressão da vonta ­de negocia i . Segundo porque não at ine a matér ia de o r d e m públ ica.

4.6 Redução de liberalidades

O art . 2.007 d o C ó d i g o C i v i l estabelece novas regras sobre doações ino f i-ciosas e as conseqüentes reduções . Em especia l , o legis lador p r o c u r o u a m o l ­dar a maté r i a às diretr izes t raçadas pe lo ar t . 2.004 pa ra o cá lcu lo do va lo r das colações.

Nesses termos, o caput do art. 2.007 de te rmina que a inof ic ios idade seja v e ­r i f icada de acordo c o m a parte disponível existente no m o m e n t o da l iberal idade.

T a m b é m or ientado pelo art. 2.004, o parágrafo I o do art. 2.007 estabelece que o excesso deve ser apurado c o m base nos valores que os bens apresentavam n o m o m e n t o da l iberal idade, e não ao t empo da abertura da sucessão.

VELOSO, Zeno, Op. cit., p.419; LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. cit., p.767. LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. cit., p.767. VELOSO, Zeno, Op. cit., p.423.

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528 GABRIEL SEIJO LEAL DE FIGUEIREDO

Ent re tanto , o parágrafo 2 o do m e s m o artigo, relativo à f o rma c o m o a r e d u ­ção será feita, parece contrad i tór io c o m essa posição. Segundo esse disposit ivo, a redução deverá ser efetuada mediante a restituição do excesso ao monte-mor , e m substância. Se o b e m não mais se encontrar e m poder do donatár io , a restituição deverá ser feita e m d inhe i ro , de acordo c o m seu va lor ao t empo da abertura da sucessão, e não do m o m e n t o da l ibera l idade. 5 3

F ina lmen te , os parágrafos 3 o e 4 o t a m b é m con têm n o r m a s desconhecidas na codi f icação de 1916, def in indo o que se considera a parte inof ic iosa das doações outorgadas aos herdeiros necessários e estabelecendo u m a o rdem cronológica para as reduções.

4.7 Rol de gastos isentos de colação

À semelhança do art . 1.793 do Cód igo C i v i l anterior, o art . 2.010 da nova legislação estabelece u m ro l de gastos que são dispensados da colação. O elenco de ambos os disposit ivos é prat icamente idênt ico, d iverg indo apenas n o ú l t imo i t em.

N o part icular , o art. 1.793 do CC/1916 isentava da colação os gastos real iza­dos pelo de cujus c o m a defesa do herdeiro e m processo c r im ina l , desde que este tenha sido absolv ido. P o r sua vez, o art. 2.010 do CC/2002 não exige o l i v r a m e n ­to para dispensar o herdeiro de colac ionar tais despesas.

E n t e n d e m o s que o legislador acer tou ao e l iminar esse requisito. O nove l d i s ­posit ivo está e m perfeita sintonia c o m os pr inc íp ios da d ignidade h u m a n a e da amp la defesa, insculp idos nos arts. 1°, III, e 5 o , LV, da Const i tu ição Federa l . A l é m disso, é de interesse do Es tado e da sociedade que os acusados se jam defendidos da f o r m a ma is eficiente possível - desde que respeitados, é c laro, os l imites impostos pela le i e pela ética prof iss ional .

4.8 Deliberação da partilha pelo testador

O art . 2.014 do novo Cód igo C i v i l veicula u m a disposição inédita e m re la­ção ao Estatuto de 1916. Segundo esse disposit ivo, o testador pode ind icar os bens que c o m p o r ã o os qu inhões hereditár ios, de l iberando ele p róp r i o a part i-

Ibidem, p.425.

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 529

De acordo com CAHALI, Francisco José, trata-se de uma norma mais ampla, "pois abrangente não apenas na linha descendente, mas de qualquer outra, como em favor dos ascendentes, colaterais e cônjuges". (Op. cit., p.510) LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. cit., p.793. VELOSO, Zeno. Op. cit., p.2.014.

l ha . 5 4 A vontade do testador deverá prevalecer, a menos que o va lo r dos bens não corresponda às quotas estabelecidas.

Med i an t e esse disposit ivo, o n o v o Cód igo C i v i l v i sou a homenagear o p r i n ­c ípio da au tonomia da vontade. Pressupõe-se que não haveria n i nguém mais aba­lizado do que o p rópr io de cujus para avaliar seu pa t r imôn io e distribuí-lo de mane i ra equân ime . 5 5 A l é m disso, o legislador p r o c u r o u confer i r ma io r celer ida­de à part i lha, c r i ando u m a solução para os percalços inerentes à fo rmulação de pedidos pelos herdeiros e às del iberações judic ia is .

Disposi t ivo semelhante é encont rado no o rdenamento jur íd ico português, embora de fo rma mit igada. C o m o not ic ia Z e n o Veloso, o art. 2.063° do Cód igo C i v i l lusi tano exige o consent imento dos herdeiros para que seja vá l ida a p a r t i ­lha del iberada pelo testador - o que não ocorre entre n ó s . 5 6

4.9 Legitimação para a partilha amigável

O art. 1.776 do Cód igo Bev i l áqua facultava que o pa i parti lhasse e m v ida seus bens. E m v i r tude da plena equiparação entre h o m e m e mu lhe r p romov ida pelos arts. 5° , I , e 226, parágrafo 5 o , da Const i tu ição Federa l , tal direito fo i esten­d ido à mãe .

Agora , po r força do art. 2.018 do novo Cód igo C i v i l , qualquer ascendente — não impor t a o g rau - está habi l i tado a realizar a divisio parentum inter liberos, desde que não pre jud ique a legí t ima dos herdeiros necessários.

4.10 Licitação

O art. 2.019 do novo Cód igo C i v i l cu ida dos bens insuscetíveis de div isão cômoda , os quais não coube rem na meação do cônjuge sobrevivente, no qu inhão de u m só herdei ro o u , acrescentamos, na meação do companhe i ro supérstite.

Nessa hipótese, inovando e m relação ao art. 1.777 do Cód igo C i v i l de 1916, a nova legislação permite que haja acordo para a adjudicação do b e m a todos. Isto é, d iante das dif iculdades prát icas encontradas para resolver o p rob lema, o legis­lador oferece c o m o solução até m e s m o a fo rmação de u m c o n d o m í n i o voluntá-

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r io - inst i tuto que, c o m o já t ivemos a opor tun idade de dizer, é apenas tolerado pelo o rdenamen to jur íd ico .

Adema i s , o parágrafo 2° do art. 2.019 do novo Cód igo C i v i l determina que, se a adjudicação for requer ida po r mais de u m herdeiro, será real izada u m a l i c i ­tação.

Obv i amente , não se trata do procedimento l icitatório regulamentado pelo d i ­reito admin is t ra t i vo . Para fins de sucessão, ensina C u n h a Gonça lves , l ic itação é o

acto pelo qual qualquer dos herdeiros oferece, por alguns bens da herança, um valor superior à avaliação judicial, com o direito de esses bens ficarem abrangidos no seu quinhão, se esse valor não for coberto por outro co-herdeiro, e sendo-o, terão de ser os mesmos incluídos no quinhão do licitante que por eles mais deu. 5 7

4.11 Decadência da anulação da partilha

A ú l t ima inovação imp lementada n o T í tu lo I V do L i v ro das Sucessões está estampada n o parágrafo ún i co do art. 2.027. Consoante esse disposit ivo, ex t in ­gue-se e m u m ano o direito de anular a part i lha.

D ispos ição semelhante já se encontrava n o art. 1.029, parágrafo ún ico , do C P C , segundo o qua l o "d i re i to de p ropor ação anulatór ia de part i lha amigáve l prescreve e m 1 ( u m ) ano".

Parece-nos que a intenção do Cód igo C i v i l de 2002 fo i enfatizar a natureza decadencia l do prazo, tendo e m vista que se trata de ação const i tut iva negativa.

C o n t u d o , a n o v a regra não so luc ionou as grandes discussões dout r inár ias e jur i sprudenc ia is sobre os prazos relativos à inval idação da part i lha. Desse m o d o , não pe rdeu sua ut i l idade a l ição de Sebastião A m o r i m e Euc l ides de O l i ve i ra : 5 8

a) Para a ação anulatória de partilha (quando houve sentença meramente homolo-gatória em partilha amigável), o prazo é de 1 (um) ano (art. 1.029 do CPC) [e, agora, art. 2.027, parágrafo único, do Código Civil];

b) Para a ação rescisória (quando a decisão foi dada por sentença em partilha judi­cial), o prazo é de 2 (dois) anos (arts. 495 e 1.030 do CPC); c) Para terceiros, que não participaram direta ou indiretamente do processo em que houve partilha, o prazo é de 20 (vinte) anos [atualmente, dez anos, a teor do art. 205 do nCC], cabendo ao interessado, neste caso, promover ação de nulidade da partilha

GONÇALVES, Luiz da Cunha. Op. cit., p.1.363. AMORIM, Sebastião; OLIVEIRA, Euclides de. Op. cit., p.299-300.

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 531

cumulada com petição de herança. Evidentemente, a procedência da ação de petição de herança importa em nulidade da partilha, consoante acórdão do STF, publicado na «77 52/193.

5. MODIFICAÇÕES IMPLEMENTADAS PELOS DEMAIS DISPOSITIVOS DO NOVO CÓDIGO CIVIL

5.1 Considerações gerais

C o n f o r m e examinamos n o i t em 4, as pr inc ipa is modi f icações implantadas pelo novo Cód igo C i v i l , na seara dos inventár ios e part i lhas, oco r re ram no T í t u ­lo I V do L i v r o das Sucessões. A s mudanças verif icadas não afetaram a substância dos inst itutos, mas certamente produz i rão i números efeitos de o r d e m prática.

M a s não é só. A o longo de todo o Cód igo C iv i l encontram-se dispositivos que inter ferem, direta o u ind i re tamente , no regramento legal dos inventár ios e pa r ­ti lhas. A lguns , de inf luência mais marcante , estão insertos n o p rópr io L i v ro V do novo Cód igo C i v i l - é o caso, po r exemplo, das novas regras que d isc ip l inam a p o ­sição do cônjuge e do companhe i ro na sucessão. Ou t ros se a cham dispersos, c o ­m o acontece c o m as no rmas sobre inventár io de ausentes.

Neste i t em, anal isaremos as pr inc ipa is inovações e m matér ia de inventár ios e part i lhas que não se encon t r am n o T í tu lo I V do L i v ro das Sucessões.

5.2 Posição do cônjuge sobrevivente na sucessão

O novo Cód igo C i v i l r e fo rmu lou tota lmente a posição do cônjuge sobrev i ­vente na sucessão. A s inovações se ap l i cam ao cônjuge que , à época do fa l ec imen ­to do inventar iado, não estava ( i ) separado jud ic ia lmente n e m ( i i ) separado de fato há mais de dois anos (CC/2002, art. 1.830).

E m pr ime i ro lugar, o art. 1.845 a t r ibu iu ao cônjuge supérstite a qua l idade de herdeiro necessário, juntamente c o m os descendentes e ascendentes. 5 9 Ass im, ele passou a ter leg i t imidade e interesse para mane ja r todas as medidas processuais de proteção à leg í t ima. 6 0

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v.5, p.105. A proteção à legítima constitui uma restrição à liberdade de testar. Significa dizer que o testador, possuindo herdeiros legítimos, não poderá dispor em testamento de mais da metade de seus bens (CC/1916, art. 1.721; CC/2002, art. 1.846). Essa limitação à auto­nomia da vontade é aplaudida por civilistas como o clássico NONATO, Orosimbo, para

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532 GABRIEL SEIJO LEAL DE FIGUEIREDO

N o entanto, as mudanças procedidas pelo art. 1.829 na o r d e m da vocação hereditár ia centralizaram-se na figura do cônjuge sobrevivente. Doravan te , o v i ú ­v o não se l imi ta a ocupar o terceiro lugar entre os herdeiros, podendo atingir pos ­tos mais favoráveis de acordo c o m o regime de bens apl icável a seu ma t r imôn io .

D e feito, se o cônjuge for casado sob os regimes da separação convenc iona l 6 1

o u da part ic ipação final nos aquestos, concorrerá à sucessão e m igualdade c o m os

quem desassiste "razão aos que propugnam a liberdade de testar sob o fundamento da plenitude da propriedade. E bem inspirado andou o legislador brasileiro com o limi­tar, em defesa dos interesses da família e, pois, da sociedade, a faculdade de dispor em testamento; bem inspirado andou em acolher o revelho instituto da legítima, reconhe­cendo, de par com a sucessão testamentária, a sucessão legal". (Op. cit., v.2, p.358) Se a limitação tinha cabimento no ambiente individualista do diploma de 1916, com mais razão se adapta ao sistema de 2002, marcado, como vimos, pelos princípios da eticida­de de socialidade.

6 1 SANTOS, Luiz Felipe Brasil, A sucessão dos cônjuges no novo Código Civil, p.l. Em sen­tido contrário, Miguel Reale afirma que o indivíduo casado sob separação de bens não concorre com os descendentes, não importando se tal regime foi estipulado por pacto antenupcial ou se foi determinado pela lei. (REALE, Miguel. O cônjuge no novo Código Civil, p.l) A questão passa pela interpretação do art. 1.829,1, do novo Código Civil, segundo o qual o cônjuge casado sob o regime da "separação obrigatória" não tem direito à herança em concurso com os descendentes. De acordo com o sábio coordena­dor dos trabalhos da nova codificação, o conceito de "separação obrigatória" abrange tanto a separação de bens instituída por pacto antenupcial quanto aquela instaurada por força de lei. Sem dúvida, a proposição do eminente Miguel Reale é mais harmôni­ca com o sistema do novo Código Civil. Entretanto, só poderá ser acolhida se empres­tarmos um novo significado à expressão "separação obrigatória". Com efeito, é certo que a separação de bens pode ser instituída por duas fontes diretas (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito de família, v.2, p.291-2). A primeira delas é a própria lei, que torna o regime compulsório nas situações definidas no art. 1.641 do novo Código Civil. A segunda fonte da separação de bens é o pacto antenupcial, instrumento por meio do qual os nubentes podem dispor sobre o regime patrimonial do casamento. Ora, a doutrina reserva a designação "separação obrigatória" (ou "separação legal") para a separação instituída ex vi legis, ao tempo que a denominação "separação conven­cional" (ou "separação contratual") é aplicada somente aos regimes instaurados por meio de pacto antenupcial (cf. RODRIGUES, Silvio, Direito civil, v.6, p.121; GOMES, Orlando, Direito de família, p.201-2; DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p.l 20-2; FRANÇA, Rubens Limongi (coord.). Enciclopédia Saraiva do direito, v.64, p.191-2; MONTEIRO, Washington de Barras, Curso de direito civil: direito de família, p.173; SANTOS, J. M. de Carvalho, Código Civil brasileiro interpretado, v.5, p.108). Portanto, para perfilharmos a posição do eminente Miguel Reale, teríamos de interpretar em uma nova acepção a expressão "separação obrigatória", insculpida no art. 1.829,1, para que ela açambarque ambas as espécies de separação de bens - ex potestate legis e resultante de pacto ante­nupcial. Entretanto, o próprio novo Código Civil se vale da expressão "regime obriga-

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 533

descendentes. 6 2 O mesmo se aplica ao cônjuge que optou pelo regime da comu­nhão parcial, caso o de cujus tenha deixado bens particulares (art. 1.829, 1). 6 3

Nessas situações, além da eventual meação consistente na metade do patri­mônio comum, o cônjuge receberá uma quota-parte dos bens particulares do inventariado. 6 4

A posição do cônjuge até poderá vir a ser mais favorável do que a dos descen­dentes, pois o art. 1.832 lhe assegura a quota mínima de um quarto da herança, caso também seja ascendente dos herdeiros com quem concorre à sucessão. 6 5

Afigura-se que, ao regulamentar o concurso entre cônjuge sobrevivo e des­cendentes, o legislador brasileiro inspirou-se no art. 2.139° do Código Civil portu­guês, segundo o qual

tório de separação de bens" para diferenciar o regime resultante de imposição legal do regime resultante de pacto antenupcial (art. 1.654). E, ao elencar as hipóteses em que será compulsória a adoção da separação de bens, qualifica o regime como "obrigató­rio" (art. 1.641).

6 2 Semelhante solução, sem a ressalva quanto ao regime de bens, é preconizada pelo art. 3.570 do Código Civil argentino, conforme a redação dada pelo art. 7 o da Lei n. 23.264, de 16/10/1985: "Art. 3.570. Si han quedado viudo o viuda e hijos, el cónyuge sobrevi-viente tendrá en la sucesión la misma parte que cada uno de los hijos".

6 3 KALLAJIAN, Manuela Cibim. A ordem de vocação hereditária e seus problemas no direito brasileiro, no direito comparado e no direito internacional privado, jus Navi-gandi, n.84, p.7. CHIARINI JÚNIOR, Enéas Castilho. O ponto-e-vírgula do art. 1.829, I, do CC, jus Navigandi, n.66, p.4-5. O inciso I foi redigido de forma truncada, o que tem ensejado interpretações as mais divergentes possíveis. Maria Berenice Dias, por exemplo, tem um entendimento oposto ao nosso em relação à concorrência do côn­juge casado sob o regime da comunhão parcial; para a desembargadora gaúcha, ele só herda se o de cujus não deixou bens particulares (Ibidem, p.l).

6 4 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Moraes. In: AZEVEDO, Antônio Junqueira de, Comentários ao Código Civil, v.20, p.56; CHIARINI JÚNIOR, Enéas Castilho, Op. cit., p.5. Em sentido contrário, RABELLO, Fernanda de Souza. A herança do cônjuge sobrevivo e o novo Código Civil, Jus Navigandi, n.57, p.2. Também SANTOS, Luiz Felipe Brasil entende que o direito hereditário do cônjuge nesses regimes não incide apenas sobre os bens particulares. Na verdade, o cônjuge sobrevivente teria direito de herança sobre os bens comuns do casal e os bens particulares do falecido - além, é claro, de ser titular da meação (Op. cit., p.2).

6 5 A reserva da quota mínima se opõe diametralmente à tradição romanista, segundo a qual a participação dos cônjuges, em concurso com os filhos, não poderia exceder uma quarta parte da herança (RUGGIERO, Roberto de. Op. cit., p.745). Isto é, a tra­dição romanística estabelece um patamar máximo, ao passo que o novo ordenamen­to brasileiro preconizou um patamar mínimo. A nova orientação, sem sombra de dúvidas, adequa-se melhor à realidade social contemporânea e à necessidade de amparar-se o cônjuge.

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534 GABRIEL SEIJO LEAL DE FIGUEIREDO

A partilha entre o cônjuge e os filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tan­tas partes quantos forem os herdeiros; a quota do cônjuge, porém, não pode ser in­ferior a uma quarta parte da herança. 6 6

Todav ia , o legislador brasi leiro afastou-se do mode lo lusitano e m u m ponto cruc ia l . C o m o se infere do texto ac ima, o art. 2.139° do C C de Portuga l assegura i rrestr i tamente a quarta parte da herança ao cônjuge. Vale dizer, é irrelevante se ele concorrerá c o m descendentes exclusivos do de cujus o u c o m descendentes c o m u n s .

A o estabelecer que o cônjuge terá direito à quota m í n i m a apenas quando concorrer c o m seus própr ios descendentes, o novo Cód igo C i v i l p ro vocou u m a perplex idade interpretat iva. Ta l perplexidade surge diante da hipótese - extrema­men te usual n a real idade fami l iar brasi leira - de o cônjuge concorrer tanto c o m seus descendentes quanto c o m descendentes exclusivos do de cujus.

Essa s i tuação não fo i antevista pe lo n o v o Cód igo C i v i l , que incor reu e m u m a omissão legislat iva severamente cr i t icada pe la dou t r ina . G ise lda H i r o n a k a v i s l u m b r a três soluções para o caso: ( i ) " ident i f i cação dos descendentes ( c o ­m u n s e exclusivos) c o m o se todos fossem t a m b é m descendentes do cônjuge sobrev i vente " ; ( i i ) " ident i f i cação dos descendentes ( c o m u n s e exclusivos) c o m o se todos fossem descendentes exclusivos do cônjuge fa lec ido" ; e ( i i i ) " c o m p o s i ­ção pela so lução h íb r ida , subdiv id indo-se p roporc iona lmente a herança , segun ­do a quant idade de descendentes de cada grupo" . 6 7 En t re tan to , a m e s m a autora demons t r a que as conseqüências matemát icas e jur íd icas das alternativas são inconc i l i áve i s . 6 8

M e l h o r teria sido seguir os exemplos do art. 2.139° do Cód igo C i v i l português, já transcrito, o u do art. 581 do Cód igo C i v i l i tal iano, que simplesmente estabelece

Solução interessante é preconizada pelo Código Civil francês, após a reforma promo­vida pela Lei n. 2001-1135, de 3/12/2001. De acordo com a nova redação do art. 757, o cônjuge pode optar entre tornar-se proprietário ou usufrutuário da herança (ou de parte dela): "Si 1'épouxprédécédé laisse des enfants ou descendants, le conjoint survivant recueille, à son choix, Vusufruit de la totalité des biens existants ou la propriété du quart des biens lorsque tous les enfants sont issus des deux époux et la propriété du quart en présence d'un ou plusieurs enfants qui ne sontpas issus des deux époux". HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p.226-7. Em sentido contrário, VENOSA, Sílvio de Salvo entende que se o cônjuge supérstite "concorrer com descendentes comuns e descendentes apenas do de cujus, há que se entender que se aplica a garantia mínima da quarta parte". (A sucessão hereditária do cônjuge) No mesmo sentido, SANTOS, Luiz Felipe Brasil. Op. cit., p.2.

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REFLEXOS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 NOS PROCESSOS DE INVENTÁRIO E PARTILHA 535

u m qu inhão fixo para o cônjuge, ao invés de equipará-lo ao herdeiro e s imultanea­mente, e m algumas situações, assegurar-lhe u m a quota-parte m í n i m a . 6 9

A s s i m , recomenda-se a revisão legislativa dos disposit ivos do CC/2002 sobre a sucessão do cônjuge, a fim de se preservar o p r inc íp io da operabi l idade, nor-teador de toda a estrutura codif icada, e confer i r segurança (leia-se, prev is ib i l ida­de) aos processos de inventár io e part i lha.

N o entanto, o art. 1.829, I I , a l çou o cônjuge à condição de herdeiro concor ­rente c o m os ascendentes - qua lquer que seja o reg ime m a t r i m o n i a l de bens. Desta forma, a teor do art. 1.837, o cônjuge sobrevivente terá direito a u m terço da herança se concorrer c o m ascendentes de p r ime i ro grau. Se concorrer c o m só u m ascendente de p r ime i ro grau , o u c o m ascendentes de g rau superior, fará jus à metade do acervo . 7 0

F ina lmente , o cônjuge t a m b é m tem direito real de habitação sobre o imóve l dest inado à residência da famíl ia, contanto que este seja o ún i co b e m dessa n a t u ­reza a inventariar. A habitação não pre judica a meação e a herança, e independe do reg ime m a t r i m o n i a l de bens. Adema i s , c o m o observa S í l v io de Salvo Venosa, o direito real de habitação "não fica subordinado ao estado de v iuvez do sobrevi-

"Art. 581. Concorso dei coniuge con ifigli. Quando con il coniuge concorrono figli legitti-mi o figli naturali, o figli legittimi e naturali (257), il coniuge ha diritto alia meta delVeredità, se alia successione concorre un solo figlio, e ad un terzo negli altri casi". A exemplo do novo Código Civil, o direito francês distingue: (i) o concurso do cônju­ge com descendentes do casal e (ii) o concurso do cônjuge com descendentes exclusi­vos do falecido; porém, o artigo 757 do Code Civil foi redigido de modo a também abranger, sem margens para especulações, a situação em que o cônjuge concorre com descendentes de ambas essas categorias (cf. transcrição acima). Neste ponto o Código Civil de 2002 afastou-se do Código Civil português, cujo art. 2.142° dispõe que "Se não houver descendentes e o autor da sucessão deixar cônju­ge e ascendentes, ao cônjuge pertencerão duas terças partes e aos ascendentes uma terça parte da herança". O Código Civil argentino, nos termos das modificações introduzidas pelo art. 7° da Lei n. 23.264/85, também admite a concorrência do côn­juge com os ascendentes, porém, formula uma solução diferente quanto ao cálculo dos quinhões: "Art. 3.571. Si han quedado ascendientes y cónyuge supérstite, heredará este la mitadde los bienes propios delcausantey también la mitadde la parte de ganan-ciales que corresponda alfallecido. La otra mitad la recibirán los ascendientes". Por seu turno, o art. 757-1 do Código Civil francês dispõe que: "Si, à défaut d'enfants ou de descenâants, le défunt laisse ses père et mère, le conjoint survivant recueille la moitié des biens. Vautre moitié est dévolue pour un quart au père et pour un quart à la mère. Quand le père ou la mère est prédécédé, la part qui lui serait revenue échoit au conjoint survivant."

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vente, sendo, portanto, vitalício".7 1 Obviamente, o gravame deverá ser observado quando da partilha.

O mesmo não ocorre, porém, com o usufruto vidual, previsto no art. 1.611, parágrafo 1°, do Código Civil anterior. A nova codificação não estipula que o côn­juge terá usufruto sobre uma parte dos bens do falecido. A omissão é de todo jus­tificável, tendo em vista o reforço concedido à participação do viúvo na sucessão.

Diante do exposto, conclui-se que, a depender do regime de bens adotado, o cônjuge poderá tomar parte na sucessão não apenas como meeiro, mas também na qualidade de herdeiro concorrente. Logo, terá legitimidade e interesse para usar os remédios processuais pertinentes às duas condições.

5.3 Posição do companheiro sobrevivente na sucessão72

Consoante o art. 1.725 do Código Civil de 2002, as relações patrimoniais oriundas da união estável submetem-se ao regime da comunhão parcial, salvo dis­posição contratual em contrário. Desse modo, se não houver contrato estabelecen­do o contrário, o companheiro sobrevivente terá direito, na condição de meeiro, à metade dos bens adquiridos onerosamente pelo de cujus na vigência da união. 7 3

Além de receber a meação, o convivente supérstite herda uma parte desses mesmos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável. No par­ticular, o art. 1.790, 7 41 e II, do novo Código Civil dispõe que o companheiro her-

7 1 VENOSA, Sílvio de Salvo. Op. cit., p.3. 7 2 Respeitável doutrina entende que o novo Código Civil representou um retrocesso na

posição do companheiro na sucessão, pois o distanciou dos direitos outorgados ao cônjuge e retirou sua primazia sobre os colaterais na ordem da vocação hereditária. (CAHALI, Francisco José. Op! cit., p.227) No mesmo sentido, HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p.56; VENOSA, Sílvio de Salvo. Os direitos sucessó­rios na união estável, p.2; SANTOS, Luiz Felipe Brasil, Op. cit., p.l; HORA, Maria Betânia Martins da. Evolução legislativa da união estável e sua regulamentação no novo Código Civil, Infojus, p.4; LAZZARINI, Alexandre Alves. Questões polêmicas no processo sucessório, Revista de Direito Mackenzie, n.l, p.245; OLIVEIRA, Euclides de. Direito de família no novo Código Civil, p.16.

7 3 CAHALI, Francisco José. Op. cit, p.227; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, Op. cit., p.56; VENOSA, Sílvio de Salvo, Op. cit., p.2. Em sentido contrário, LEITE, Eduardo de Oliveira assevera que o companheiro não é meeiro (Op. cit., p.55).

7 4 Critica-se veementemente a topologia do Código Civil de 2002, que disciplinou a ca­pacidade sucessória do companheiro em meio às "Disposições Gerais" do título deno­minado "Da Sucessão em Geral". Na verdade, as normas sobre a participação do con­vivente na sucessão se acomodariam melhor no capítulo que rege a vocação hereditária. (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes , Op. cit., p.53; LEITE, Eduardo de Oliveira. Op. cit., p.53-4; VENOSA, Sílvio de Salvo. Os direitos sucessórios na união estável, p.l)

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dará: ( i ) se concorrer c o m fi lhos comuns , u m a quota igual à que for atr ibuída ao fi lho; ( i i ) se concorrer c o m descendentes só do de cujus, u m a quota equivalente à metade da que couber ao descendente.

Surge aqu i o m e s m o prob lema de omissão legislativa ver i f icado e m relação à part ic ipação do cônjuge na sucessão. O que ocorrerá se o companhe i ro sobre ­v ivente concorrer não apenas c o m filhos comuns , mas t a m b é m c o m fi lhos exc lu ­sivos do autor da herança?

Giselda H i r o n a k a t a m b é m fo rmu la quatro soluções para o prob lema da filiação h íbr ida : ( i ) identif icar os "descendentes c o m o se todos fossem filhos c o ­m u n s , aplicando-se exclusivamente o inc. I do art. 1.790 do Cód igo C i v i l " ; ( i i ) identif icar os "descendentes c o m o se todos fossem filhos exclusivos do autor da herança, apl icando-se, neste caso, apenas o inc . I I d o art . 1.790 do Cód igo C i v i l " ; ( i i i ) " compos ição dos incs. I e I I pela atr ibuição de u m a quota e meia ao conv i-vente sobrev ivente" ; e ( i v ) " compos ição dos incs. I e I I pela subdiv isão p r o p o r ­c iona l da herança, segundo a quant idade de descendentes de cada grupo" . 7 5 A própr ia autora , mais u m a vez, ev idencia que n e n h u m a das proposições é satisfa­tó r i a . 7 6

Sendo assim, entendemos que o legislador deverá rever t a m b é m esta matér ia, sob pena de frustrar o pr inc íp io da operabi l idade e compromete r a segurança dos inventár ios e part i lhas.

Ent re tanto , caso o heredi tando não deixe herdeiros, o conv ivente conco r re ­rá c o m os ascendentes (CC/2002, arts. 1.790, I I I , 1.829, I I , e 1.836). À falta de as ­cendentes, o concurso se instaurará entre o companhe i ro e os colaterais até o quar to grau (arts. 1.790, I I I , 1.829, IV , e 1.839).

E m ambas as hipóteses, o companhe i ro receberá sua própr ia meação e her ­dará u m terço dos demais bens adquir idos onerosamente na constância da união. Por tan to , m e s m o concor rendo à sucessão c o m parentes distantes do de cujus

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p.60-3. Embora critique a redação legal, VENOSA, Sílvio de Salvo, à luz da igualdade consti­tucional dos filhos, entende que "se houver filhos comuns com o de cujus e filhos so­mente deste concorrendo à herança, a solução é dividir igualitariamente, incluindo o companheiro ou companheira". (Op. cit., p.3) Também SANTOS, Luiz Felipe Brasil, apesar de reputar essa situação como uma "dificuldade sem solução na lei", propõe que o convivente receba quinhão igual ao dos filhos (Op. cit., p.2). Por sua vez, CAHALI, Francisco José assinala que "Pela exegese do art. 1.790, concorrendo o sobre­vivente com filhos comuns e com outros exclusivos do autor da herança, o critério de divisão deverá ser aquele do inciso I". (Op. cit, p.232)

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(primos, tios-avós, sobrinhos-netos), o convivente não terá direito de herança sobre os bens particulares. 7 7

Existe uma única possibilidade de o companheiro estender seu direito su­cessório para além dos bens adquiridos onerosamente durante a união estável. Ela se concretiza quando não houver parentes sucessíveis do falecido (novo Código Civil, art. 1.790, IV). Nesse caso, a totalidade da herança será adjudicada ao convivente supérstite. 7 8

Finalmente, vale fazer referência ao direito real de habitação do companhei­ro sobre o imóvel destinado à residência da família. Tal direito foi criado pelo art. 7°, parágrafo único, da Lei n. 9.278, de 10 de maio de 1996, promulgada com o intuito de regulamentar a caracterização da união estável, os direitos e deveres pessoais dos companheiros, bem como suas relações patrimoniais e sucessórias. À luz do art. 2°, parágrafo 1°, da Lei de Introdução ao Código Civil, pode-se ques­tionar a revogação tácita da Lei n. 9.278/1996, haja vista que o novo Código Civil também regulou essas matérias. 7 9 No entanto, a doutrina vem entendendo que o

7 7 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit., p.65. 7 8 SANTOS, Luiz Felipe Brasil, Op. cit., p.1-2. Para alguns autores, mesmo na situação re­

gulada no inciso TV do artigo 1.790, o direito sucessório do companheiro se limitaria aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável (cf. CAHALI, Francisco José. Op. cit., p.230; CARVALHO NETO, Inácio de. A sucessão do cônjuge e do compa­nheiro no novo Código Civil. Júris Síntese, n.39, p.6; OLIVEIRA, Euclides de. Op. cit., p.16). Tal se daria em razão de a interpretação dos incisos subordinar-se ao caput do arti­go. Esse posicionamento poderia conduzir a situações inusitadas. Mesmo que não exis­tissem parentes sucessíveis, nessa linha de raciocínio, a meação e o direito sucessório do companheiro só incidiriam sobre os bens adquiridos a título oneroso durante a união estável. Assim, os demais bens do de cujus - isto é, adquiridos gratuitamente ou anterior­mente ao estabelecimento da união estável - seriam considerados herança jacente e toca­riam ao Município, ao Distrito Federal ou à União. Evidentemente, não é essa a mens legislatoris, muito menos a mens legis. Trata-se de uma interpretação aferrada a um lite-ralismo inaceitável, que despreza a proteção dispensada pela Constituição Federal à união estável como entidade familiar. Além disso, tal posição vai de encontro aos postu­lados da interpretação sistemática. De fato, o artigo 1.844 do próprio CC/2002 estabele­ce que a herança só é devolvida ao Poder Público se a ela não acorrerem o cônjuge, o companheiro ou algum parente sucessível. Logo, existindo companheiro supérstite, não se pode falar em herança jacente. À vista dessas razões, entendemos que, na hipótese regulada pelo inciso IV do art. 1.790, o convivente terá direito a todo o acervo, e não ape­nas aos bens amealhados onerosamente no curso da união estável. Do contrário, como a existência de convivente sobrevivo impede a devolução da herança ao Poder Público, os bens adquiridos pelo falecido a título gratuito ou antes da união estável configurariam um esdrúxulo patrimônio sem titular.

7 9 Critica-se a nova codificação por não ter indicado expressamente as normas que re­vogou, à exceção do Código Civil de 2002 e da Parte Primeira do Código Comercial de

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direito real de habitação do companhe i ro a inda pe rmanece e m vigor, havendo sido revogadas as demais disposições da Le i n. 9.278/1996. 8 ( 1

Ass im , ad instarão que acontece c o m o cônjuge sobrevivente, o c o m p a n h e i ­ro supérstite poderá participar do processo sucessório na dupla condição de meei-ro e herdeiro. Neste caso, por tanto , gozará de leg i t imidade e interesse para atuar e m juízo sob ambas as t i tulações.

5.4 Prazo para a ultimação do inventário

O art. 1.770 do Cód igo de 1916 estabelecia que o inventár io deveria iniciar-se e m até u m mês após a abertura da sucessão, u l t imando-se nos três meses sub ­seqüentes.

Caso o inventár io ultrapassasse in just i f icadamente o prazo legal, o inventa-r iante poder ia ser r emov ido do cargo e, se fosse testamenteiro, estaria sujeito a perder o p rêmio (CC/1916, art. 1.770, parágrafo ún i co ) . E m adendo, con fo rme a S ú m u l a n. 542 do S u p r e m o T r ibuna l Federa l , os estados da Federação p o d e r i a m estabelecer u m a mu l ta pelo re tardamento do processo sucessório.

O Código Civ i l de 2002 não fixou o l imite temporal para o encerramento do i n ­ventário. Isso poderia causar a falsa impressão de que tal prazo não mais existiria. N o entanto, o art. 983 do C P C preceitua que o inventário deve ser ul t imado no período de seis meses após sua instauração, salvo dilação do prazo concedida pelo juiz. 8 1

A n o r m a processual , segundo a me lho r dout r ina , cont inua e m v igor . 8 2 T o ­dav ia , agora aparece sem u m a de suas sanções - a pr i vação do p rêmio do testa­mente i ro , que decorr ia exclusivamente do art. 1.770 do CC/1916. 8 3 Subsistem as

1.850 (art. 2.045). Além de inobservar as melhores técnicas de elaboração de atos nor­mativos, o novo Código Civil desatendeu ao art. 9° da Lei Complementar n. 95/1998, que determina a enumeração expressa das leis ou disposições legais revogadas. H1RONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, Direito das sucessões brasileiro: dispo­sições gerais e sucessão legítima: destaque para dois pontos de irrealização da experiên­cia jurídica à face da previsão contida no novo Código Civil, Jus Navigandi, n.65, p.7; VENOSA, Sílvio de Salvo, Op. cit., p.2-3. Em sentido contrário, afirmando que a Lei n. 9.278/1996 foi inteiramente revogada, inclusive no que diz respeito ao direito real de habitação, CARVALHO NETO, Inácio de. Op. cit., p.7. Em razão dos conhecidos problemas que afligem a máquina judiciária, não raro o pra­zo para conclusão do inventário é ultrapassado. CAHALI, Francisco José, Op. cit., p.444; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, Op. cit., p. 109. A teor do art. 1.989 do novo Código Civil, o testamenteiro poderá perder o prêmio caso seja removido ou não dê cumprimento às disposições de última vontade.

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demais sanções - remoção do inventar iante e mu l ta pecuniár ia - , po rquanto i n s ­t i tuídas pe lo art . 995, I I , do Cód igo de Processo C i v i l 8 4 e po r leis estaduais.

5.5 Sucessão dos ausentes

F ina lmen te , a d isc ip l ina dos inventár ios e part i lhas sofreu alterações e m v i r ­tude das novas disposições sobre ausência.

O novo Cód igo C i v i l manteve a sistemática de seu antecessor, d ispensando à ausência u m t ra tamento d iv id ido e m três fases: ( i ) curador ia dos bens do ausen ­te; ( i i ) sucessão provisór ia; e ( i i i ) sucessão definit iva. 8 5 Con tudo , a legislação atual reduziu os prazos para que se passe de u m a etapa à outra .

Desta fo rma , nos termos do art. 26 do CC/2002, fo i d im inu ído o t empo m í ­n i m o para que se declare a ausência e se abra prov isor iamente a sucessão. E m r e ­gra, tal prazo será de u m ano, contado a part i r da arrecadação dos bens. Para a h i ­pótese de o ausente ter deixado representante o u procurador , deverão ter decorr idos três anos.

Tendo e m vista que o inventár io e a part i lha dependem da prévia declaração da ausência, a d im inu i ção dos prazos lhes i m p r i m i r á ma io r celeridade.

E m adendo, va le anotar que o art. 37 do n o v o Cód igo C i v i l t a m b é m d i m i ­n u i u o prazo para a abertura da sucessão def init iva. Ta l prazo passou a ser de dez anos, contado a par t i r do trânsito em ju lgado da sentença que deferir a abertura da sucessão prov isór ia .

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Impressão e Acabamento

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QUESTÕES PROCESSUAIS DO NOVO CÓDIGO CIVIL

C o o r d e n a d o r : R o d r i g o M a z z e i

••(...)

A obra que vem a lume, sob o título Questões Processuais do Novo Código

Civil, evidencia o espírito inquieto de seu coordenador, além de sua sensibilidade e

sintonia para com as novas questões que se colocam ao profissional do direito e que

exigem atenção e reflexão. Com esse trabalho, versando as interferências do novo

Código Civil nas regras de direito processual civil, busca-se servir de material de apoio

à solução dos diversos problemas daí surgidos. No presente trabalho, há artigos de

autores de renome — tais como Sérgio Shimura, Alexandre Freitas Câmara, Fredie

Didier Jr., Cristiano Chaves de Farias, Francisco Glauber Pessoa Alves e o próprio

coordenador, dentre outros igualmente notáveis - e de outros jovens estudiosos que,

por certo, trilharão o mesmo caminho. Os assuntos abordados nesses trabalhos são

interessantíssimos e bastante atuais, em torno da temática eleita pelo coordenador. E

obra útil para advogados, juizes e para as academias de direito, porquanto se propõe a

elucidar a influência de regras do vigente Código Civil em relação ao direito

processual civil. São textos a um tempo profundos, claros, minudentes e que

enfrentam problemas cuja solução não é fácil nos primeiros momentos de vigência do

Código Civil.

( • • • )"

Arruda Alvim

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