racionalismo e tutela preventiva em processo...
TRANSCRIPT
RACIONALISMO E TUTELA PREVENTIVA EM PROCESSO CIVIL *
Ovídio A. Baptista da Silva Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado da Unisinos
Professor titular (aposentado) de Direito Processual Civil da UFRGS.
1. Andrea Proto Pisani, jurista italiano consagrado por suas valiosas
contribuições à moderna doutrina processual, em recente conferência pronunciada no Brasil,
iniciou a exposição com estas palavras: "Os institutos de direito material estão destinados,
diria que naturalmente, a mudar de acordo com o surgimento e a diferente avaliação dos
interesses em conflito em relação à fruição dos bens materiais e imateriais. Diferentemente
dos institutos materiais, os institutos de direito processual que visam a garantir a tutela
jurisdicional dos direitos ´nascem, por assim dizer, não apenas com o selo terreno, mas com
aquele da eternidade, que lhes é aposto por seu próprio destino de garantir a realização da
justiça´". O período grifado que encerra o parágrafo reproduz uma afirmação de Satta, que
Proto Pisani aceita como "substancialmente exata", embora considere que poucas são as
categorias processuais que realmente são "eternas", porque, segundo ele, "a historia do direito
é também a história dos processos"1.
Mesmo assim, a proposição revela o compromisso do Direito Processual Civil
com o paradigma racionalista e, conseqüentemente, com a ideologia que concebe este ramo
do conhecimento jurídico como um instrumento puramente formal, abstrato e sem qualquer
compromisso com a História. Em última análise, concebe-se o Direito Processual Civil como
algo dotado da mesma eternidade de que se vangloriam as matemáticas.
O que chama atenção, no entanto, mais do que a proposição em si, é a
circunstância de conceberem os juristas (Satta e Pisani) que o direito material está
"naturalmente" submetido à contingência de mudanças constantes, segundo mudem as
eventuais avaliações dos interesses em conflito, não porém o Direito Processual.
* Comunicação escrita para o Segundo Congresso Internacional de Derecho Procesal a realizar-se em Lima no Perú, em junho de 2002. 1 Revista da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, nº 16, 2001, p. 23.
www.abdpc.org.br
É curiosa a contradição existente no pensamento moderno. Sabemos − mais do
que sabemos, vangloriamo-nos − de viver numa democracia pluralista, em que os valores são
relativizados, mas não temos capacidade de historicizar a modernidade. Nossa ahistoricidade
convive com um mundo essencialmente hermenêutico, como anotou Ágnes Heller2, no qual
nada pode aspirar ao "selo da eternidade".
2. Georges Ripert dissera, logo na abertura de uma de suas obras mais
conhecidas, que "la notion même de droit est en elle-même une notion statique"3, mesmo
porque "les juristes, quelle que soit leur profession, forment un corps de même esprit. Ils ont
été instruits par des hommes qui ne doutaient pas de la nature statique du droit" (p. 17).
Afirmações estas que levaram, no entanto, François Ewald a mostrar que Ripert, ao fazer essa
assertiva, assumia uma posição "rigorosamente fundada na lógica do positivismo"4 e que, ao
contrário do que ele supunha, o direito evolui tanto que os franceses viram a
jurisprudência de seus tribunais modificar todo o direito civil, sem necessitar sequer mudar
o Código (p. 211). A que podemos acrescentar que a mesma revolução silenciosa criou, na
França, inicialmente pelo trabalho da jurisprudência, um novo processo civil.
A nós, no Brasil, onde o jurista pronunciava a conferência, a idéia da
eternidade das leis de processo tinha visível sabor de ironia, se considerarmos a frenética
atividade legislativa em que se encontra empenhada a comunidade jurídica, na busca de novos
caminhos, capazes de oferecer respostas aos tremendos desafios enfrentados por nossa
experiência judiciária.
3. Estas considerações revelam-nos o núcleo do paradigma sob o qual se
formaram os sistemas jurídicos modernos, especialmente aqueles pertencentes à tradição
romano-canônica, integrada por grande parte dos países europeus e toda a América Latina,
cujo epicentro é sem dúvida o racionalismo iluminista nascido no século XVII. As raízes
de nosso sistema processual, quando descobertas, explicam as dificuldades enfrentadas pela
2 Más allá de la justicia, tradução espanhola de 1990, Editorial Crítica, Barcelona, p. 199. 3 Les forces créatrices du droit, Livrairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1955, p. 1. 4 Foucault - A norma e o direito, trad. port.. Lisboa, 1993, p. 157).
www.abdpc.org.br
doutrina para conceber uma tutela processual que tenha natureza puramente preventiva.
Tentaremos mostrar as causas desses embaraços.
Para isso, é indispensável acrescentar ao racionalismo, tão presente na
formação da ciência jurídica moderna, especialmente no direito processual civil, mais dois
ingredientes importantes. O primeiro deve-se à doutrina política da "separação de poderes",
marcada pela influência de Montesquieu, mas que nos vem, mais propriamente, de Thomas
Hobbes, a reduzir o Poder Judiciário a um poder subordinado, ou melhor, a um órgão do
poder, cuja missão constitucional não deveria ir além da tarefa mecânica de reproduzir as
palavras da lei, de modo que a jurisdição não passasse de uma atividade meramente
intelectiva, sem que o julgador lhe pudesse adicionar a menor parcela volitiva. A este
respeito, as lições de Chiovenda são exemplares. Várias passagens de suas obras poderiam ser
oferecidas para confirmar esta assertiva. Sirva-nos apenas estas: "Nella cognizione, la
giurisdizione consiste nela sostituzione definitiva e obbligatoria dell´atività intellettiva del
giudice all´attività intellettiva non solo delle parti ma di tutti i cittadini nell´affermare
esistente o non esistente una volontà concreta di legge concernente le parti"5.
No texto, ficam demarcadas a natureza meramente "intelectiva", enquanto
pura cognição, da função jurisdicional, e o princípio de que a atividade do juiz deve limitar-
se a revelar a "vontade concreta da lei". Sua missão seria apenas verbalizar a "vontade da
lei" ou a vontade do legislador. A outra passagem que merece referência é aquela em que o
grande processualista, referindo-se à interpretação, dá-lhe a exclusiva tarefa de investigar a
"vontade da lei"6, confirmando a premissa de seu sentido unívoco, porquanto não se haverá
de supor que ela possa ter "duas vontades".
A conclusão que se deve extrair decorre necessariamente dessa premissa: como
seria impensável supor que a lei tivesse "duas vontades", toda norma jurídica deverá ter,
conseqüentemente, sentido unívoco. Ao intérprete não seria dado hermeneuticamente
"compreendê-la", mas ao contrário, com a neutralidade de um matemático, resolver o
problema "algébrico" da descoberta de sua "vontade". Torna-se fácil compreender as razões
que, no século XIX, fizeram com que os autores dos Códigos procurassem impedir que eles
fossem interpretados. Reproduziu-se no século XIX a tentativa de Justiniano. A intenção que
5 Principii di diritto processuale civile, ed. de 1965, JOVENE, Nápolis, p. 296. 6 Istituzioni di diritto processuale civile, 1º vol. § 2, nº 11.
www.abdpc.org.br
sustenta esse propósito é a mesma que, no início da Era Moderna, procurou eliminar a
Retórica, enquanto ciência argumentativa, do campo do Direito, basicamente do campo do
Processo. A idéia de perfeição do direito criado, que se oculta sob essa conduta, foi relevada
por uma eminente filósofa contemporânea, ao mostrar o pathos tirânico, conseqüentemente
antidemocrático desse modo de compreender o direito7. O direito "perfeito" elimina
qualquer espécie de questionamento. É o direito do tirano.
4. Antes de determo-nos na análise da doutrina processual, convém ter
presente o conceito de ação, concebido pela ciência jurídica no século XIX europeu,
procurando revelar, a partir daí, o conceito de jurisdição, que haveria de irradiar-se até
culminar na formação do processo civil, como ciência ("ciência", identificada com o modelo
das ciências lógicas, até porque os grandes construtores do pensamento moderno eram,
antes de tudo, matemáticos. Basta mencionar, dentre os mais eminentes, Leibniz e
Descartes).
5. Parece apropriado, considerando as modestas dimensões desta pesquisa,
limitar a análise à figura de Savigny, em razão de sua marcante influência na ciência jurídica
do século XIX, especialmente o duradouro reflexo de suas concepções na doutrina
processual subseqüente.
É conhecido o conceito de ação, recolhido por Savigny das fontes romanas.
Em seu clássico Tratado, que se dizia de "direito romano atual", conceituava o jurista a
ação como a relação que nasce ao titular do direito no caso de sua violação: "La relación
que de la violación resulta, es decir, el derecho conferido á la parte lesionada, se llama
derecho de acción ó acción8.
Como se vê, a ação para Savigny nascia como conseqüência de uma segunda
relação jurídica, surgida da violação do direito. Para toda a doutrina que o sucedeu, até
nossos dias, passando naturalmente por Chiovenda, o conceito de ação está ligado a dois
pressupostos implícitos, que lhe demarcam as fronteiras. O primeiro decorre do paradigma
7 Ágnes Heller, Más allá de la justicia, cit., p. 313. 8 Sistema del derecho romano atual, trad. espanhola, 2ª edição, Madrid, vol. IV, § 205, p.10).
www.abdpc.org.br
racionalista, como depois tentaremos mostrar. O outro liga-se ao conceito de litis
contestatio, compreendido pelo direito romano "atual", do século XIX, como um contrato
judiciário, através do qual as partes "criavam" uma relação obrigacional, transformando o
direito litígioso − fosse real ou pessoal −, em virtude desse novo vínculo, em direito
obrigacional, de modo a perpetuar a relação existente em direito romano entre obligatio -
actio - condemnatio.
Os historiadores do Direito, mostram igualmente na doutrina de Savigny, a
influência de Kant, que se universalizou, através de dois postulados. O primeiro devido ao
fenômeno depois conhecido como "pessoalização" do direito real, de que temos tratado em
obras anteriores9; o outro, pela formação do "mundo jurídico", separado e distante da
realidade social − para o qual, como veremos, muito contribuiu Savigny −, de modo que os
juristas pudessem operar apenas com o direito, com o mais absoluto desprezo pelos fatos.
Quem tiver a curiosidade de investigar a força deste princípio, considere nossa metodologia
universitária, onde se estuda somente a regra não o caso, somente o "universal", com
desprezo pelo "individual". Essa fuga da realidade social − expressão acabada do nascente
normativismo jurídico −; essa incapacidade da doutrina jurídica de tratar o individual, de
conviver com a complexidade do mundo social, é uma herança recebida por Savigny da
filosofia de Descartes que vira na neutralidade o escudo que o eximia de acatar ou refutar
as "opiniões aceitas entre os doutos", permitindo-lhe escapar das inabarcáveis incertezas
próprias da existência humana, emigrando para um "mundo novo", formado por verdades
irrefutáveis10.
6. No que diz respeito ao conceito de ação, os juristas que escreveram
sobre Processo Civil, no Brasil, na primeira metade do século XX, seguiam rigorosamente a
doutrina que provinha de Savigny. João Monteiro, lente da Universidade de São Paulo,
ensinava ser a "ação a reação que a força do direito opõe à ação contrária (violatio juris) de
terceiro; é um movimento de reequilíbrio; é um remédio"11. Segundo ele dizia, é a
"violação que cria um vínculo de direito idêntico a uma obrigação, da qual é sujeito ativo o
titular da relação de direito, e sujeito passivo, o seu violador".
9 Especialmente "Reivindicação e sentença condenatória, in Sentença e coisa julgada, 3ª ed., 1995; e Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, 2ª ed., 1998, Cap. 11. R. T., São Paulo. 10 Discours de la méthode, trad. bras. da edição francesa de 1981, Ed. Ática, 1989, p. 64.
www.abdpc.org.br
Não seria necessário demorarmo-nos nesta questão, mas talvez seja oportuna
a referência à doutrina sustentada por um dos mais eminentes processualistas brasileiros
contemporâneos, quando, em seu Manual, define o "interesse processual" como destinado a
"supressão do obstáculo" oposto pelo demandado ao "gozo e utilidade normal" de seu
titular12. Quer dizer, a ação será sempre caracterizada por uma atividade dirigida à
remoção do "obstáculo impeditivo" ao gozo do direito, portanto necessariamente
repressiva, nunca preventiva do surgimento do obstáculo.
Cremos ser dispensável advertir que estamos transcrevendo lições de juristas
que atribuem ao vocábulo ação o sentido tradicional, que nos vem das fontes romanas, para
indicar a ação de quem tem direito, "ação de direito material", também impropriamente
indicada como ação "civilista".
7. O que fica de certo modo oculto nessa maneira de ver o direito "em seu
aspecto estático", como dizia a doutrina ou, ao contrário, o direito em sua "atividade", é o
próprio conceito de direito, pressuposto como ordem normativa. Um dos mais consagrados
juristas alemães do século XIX, de influência marcante na doutrina processual, referia-
se não à ação (como o momento dinâmico do direito), mas ao direito subjetivo, como a
categoria jurídica que nascia da violação da norma. Esta passagem é reveladora: "A
propriedade somente torna-se um direito quando, da transgressão da norma instituída para sua
tutela, nasce ao proprietário uma pretensão dirigida à remoção dessa ilicitude"13. Nem
seria a ação, mas o próprio direito a nascer da violação da norma.
Ao racionalismo deve-se a primeira e mais significativa conseqüência desta
premissa, qual seja a revelação do pressuposto de que o direito deveria ser uma ciência
explicativa, como qualquer ciência lógica, não uma ciência da compreensão, como as
modernas correntes da Filosofia do Direito contemporâneas o consideram14. Supõe-se que a
11 Teoria do processo civil, 6ª ed., Editor Borsoi, 1956, vol. I, p. 68. 12 J. M. de Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, 2ª edição, Rev. Tribs., I/241. 13 August Thon, Norma jurídica e direito subjetivo, tradução italiana de 1951, da edição alemã de 1878, p. 158 da tradução e 156 do original. 14 Sobre isso, especialmente H. G. Gadamer, Verdad y metodo, trad. da 4ª edição alemã de 1975, Salamanda (Espanha), 1988; e no Direito, por todos, Josef Esser, Precomprensione e scelta del metodo nel processo di individuazione del diritto, Università di Camerino, 1972.
www.abdpc.org.br
incidência e, conseqüentemente, a atividade de aplicação da lei sirva-se do mesmo raciocínio
lógico com que o matemático demonstra a correção de um teorema qualquer.
Eliminando-se a "compreensão" hermenêutica, retira-se qualquer legitimidade
à retórica, enquanto ciência da argumentação forense, que foi, de resto, como se sabe, o
grande empenho inicial de Hobbes, depois abandonado, em suas obras da maturidade15.
Como se vê, o racionalismo, especialmente nos sistemas jurídicos herdeiros da tradição
romano-canônica, tornou a tarefa judicial conceitualmente limitada a descobrir e verbalizar
a "vontade da lei".
É necessário observar que a eliminação da retórica suprimiu, ipso facto, tanto
a possibilidade de criação jurisprudencial do direito, quanto sua essencial dimensão
hermenêutica, segundo aquela idéia ingênua de que, sendo o legislador um ser iluminado,
capaz de produzir normas de sentido transparente, deve ficar vedada a seus aplicadores a
tarefa de interpretá-las. Com efeito, se a lei contém de fato "uma" vontade − pois não
seria logicamente possível supô-la contendo duas ou mais −, resta ao julgador apenas a tarefa
de descobri-la, como quem resolve um problema algébrico. Foi apoiado neste pressuposto
que se procurou impedir, na França, no início da vigência dos Códigos Napoleônicos, que
os magistrados o interpretassem. O núcleo da resistência oferecida pelo sistema à idéia de
que o Direito, como as demais ciências do espírito, seja uma ciência da compreensão, está
no mesmo paradigma racionalista, em sua luta contra os juízos de verossimilhança que,
como dissera Descartes16, haverão de ter-se liminarmente como falsos. Ora, se a norma
pudesse admitir − como inexoravelmente o admite − duas ou mais interpretações válidas e
legítimas, como seria possível obter a segurança jurídica procurada ardentemente pelo
nascente Estado Industrial?
8. A submissão do juiz ao legislador decorria, então, de uma premissa
lançada por Thomas Hobbes, em que o pai do positivismo moderno proclamara que a
missão do juiz era dar aplicação ao que o legislador dissera ser direito, sendo-lhe
indiferente a idéia de justiça. Disse o filósofo: "En todos los tribunales de justicia quien
15 Quentin Skinner, Razão e retórica na filosofia de Hobbes, Cambridge University Press, 1996, trad. bras., 1997, Fundação Editora UNESP. 16 Discours de la méthode, cit. p. 44.
www.abdpc.org.br
juzga es el soberano, que tiene la representación de la república. El juez subordinado debe
considerar la razón que movió a su soberano a hacer esa ley, a fin de que su sentencia sea
acorde con ella, y entonces será la sentencia de su soberano; en otro caso es la suya propia,
e injusta"17.
9. No campo propriamente do processo civil, a "geometrização" do Direito
foi difundida por Savigny que, em seu desprezo pelo caso, foi ao extremo de escrever: "Pero
quien haya observado com atención casos litigiosos se dará cuenta fácilmente de que esta
empresa ha de ser infructuosa, porque los casos reales presentan diversidades más allá de
lo imaginable. Precisamente en los códigos más modernos se ha abandonado por completo
todo esfuerzo por aparentar esta integridad material, sin que se la haya sustituido por ninguna
otra cosa. Y evidentemente tal integridad puede conseguirse de otra manera, que puede
explicarse mediante una expresión técnica de la geometria. En efecto, en cada triángulo hay
datos conocidos, de cuya combinación se infiere necesariamente todos los demás: por
ejemplo, mediante la combinación de dos lados y el ángulo compreendido entre los mismos,
está dado el triángulo. De modo análogo, cada parte de nuestro Derecho tiene fragmentos
tales que de ellos se derivan los demás: podemos llamarlos los principios rectores"18. Como
observou agudamente Franz Wieacker, a fuga do Direito rumo ao formalismo, desligando-se
da realidade social, representou uma "trágica opção-chave"19.
10. Derivam desse paradigma os obstáculos para a construção de uma
autêntica tutela preventiva. Com efeito, costuma-se distinguir as funções atribuídas a cada
um dos três poderes do Estado, nos regimes democráticos representativos, dizendo que os
legisladores têm a missão de prover para o futuro, aos administradores incumbe cuidar do
presente, enquanto os juízes têm por missão "consertar" o passado.
A razão para isto é facilmente compreensível. Se a função do magistrado é
descobrir a "vontade da lei", para aplicá-la ao caso concreto, não lhe será possível fazê-la
17 Leviathan, Cap. XXI, 7, trad. de 1983, Madrid (consultar sobre esta questão a Quentin Skinner, Razão e retórica na filosofia de Hobbes, Cambridge 1996, tradução de 1997, Ed. UNESP/ABDR. 18 De la vocación de nuestra epoca para la legislación y la ciencia del derecho (1814), trad. de 1970, Aguilar Ediciones, Madrid, p. 64. 19 Historia do direito na idade moderna, 2ª edição alemã, Gulbenkian Lisboa, 1980, p. 458.
www.abdpc.org.br
incidir sobre fatos ainda não ocorridos, pois, como advertira Savigny, os casos concretos
oferecem uma desconsertante diversidade de aspectos e circunstâncias que tornam impossível
aplicar-lhes "regras uniformes".
Isto determina que toda tutela preventiva deva necessariamente apoiar-se num
juízo, mais ou menos intenso, de probabilidade, no qual a certeza matemática cederá lugar
aos juízos de verossimilhança. Se o magistrado deve prover para o que possa ocorrer no
futuro, a sentença terá de sustentar-se em juízos hipotéticos. Em última análise, seu juízo
será, nestes casos, necessariamente condicional, com o risco de a sentença não representar
a vontade do legislador, mas a "vontade do juiz", de modo que, dizia Hobbes, seria por
definição "injusta". A dificuldade encontrada pela tutela preventiva reside nisto.
11. Os obstáculos enfrentados pela doutrina, caudatária do paradigma
racionalista, tornam-se claros quando se examinam as frustradas tentativas de construção de
uma tutela que deveria ser preventiva, através do processo cautelar, de tipo italiano. O
fracasso da empreitada é total, como temos mostrado em outras ocasiões. O mesmo ocorre
com as medidas antecipatórias, recentemente introduzidas no processo brasileiro.
No que diz respeito a estas últimas, como seria de prever, ou o sistema
recusa-se a atribuir-lhes a natureza de um autêntico "julgamento sobre a lide", para
considerá-lo "decisão sobre o processo" não sobre o meritum causae; ou, no primeiro
caso, quando se cuida daquele tipo especial de tutela dita cautelar, o paradigma impõe que
se o tenha como um "pedaço" do processo principal, parcela que, como na hipótese
anterior, igualmente consistirá numa antecipação, à espera de sua confirmação ou rejeição,
pela sentença final. Quer dizer, o sistema não pode prescindir de um processo principal,
em que a "cognição exauriente" dará ao juiz as condições para descobrir a "vontade da lei".
Mas − e isto é que importa quando se procura conceituá-las −, as medidas
cautelares que descendem da matriz italiana, são efeitos da sentença principal (de
procedência) que se antecipam. Na verdade, são medidas antecipatórias, rigorosamente
idênticas àquelas introduzidas no processo brasileiro, pela Reforma de 1994, indicadas,
agora, por seu verdadeiro nome.
www.abdpc.org.br
12. Quem tiver o cuidado de investigar a história do chamado processo
cautelar do moderno direito italiano, a partir de Chiovenda, verá que a doutrina nunca se
afastou do princípio segundo o qual aquilo que os processualistas peninsulares denominam
"provimento" cautelar, não passa de tutela antecipatória de algum efeito da sentença de
mérito de um processo satisfativo, construído com plenitude de cognição ou, como se diz
no Brasil, com "cognição exauriente", de modo que a tutela que se antecipa possa ser
absorvida pela sentença de mérito − que haverá de ser, para o sistema, a última manifestação
do julgador − se porventura se confirme ser essa a "vontade da lei"; ou a revogue se o
julgador convencer-se de que a aparência do direito que servira de fundamento para a
concessão da tutela antecipada, não se confirmar na instrução da causa.
A confirmação da liminar será sempre sua reabsorção no conteúdo da
sentença de mérito. Aquilo que o sistema tivera por simples decisão interlocutória − algo
que não dizia respeito à lide, e sim ao processo, enquanto medida liminar − agora incorpora-
se à sentença como uma parcela da lide. O que fora interlocutória torna-se mérito...!
Para sermos mais precisos, a chamada tutela cautelar do direito italiano,
copiada pelos sistemas latino-americanos, é uma forma de proteção que o juiz "empresta",
antecipando uma parcela da provável sentença de procedência. Rigorosamente ele não a
concede. Em nosso direito, há um monumento que o Código de Processo Civil erigiu como
testemunho desta realidade. É o art. 811 que pune o litigante que, obtendo a tutela
supostamente cautelar, venha a perder a demanda principal, impondo-lhe o dever de
indenizar o adversário, independentemente de culpa. Quer dizer, a tutela que fora
"emprestada", porque o juiz considerara a medida concedida, sob forma de liminar, como
correspondendo à presumível "vontade do legislador", terá de ser "devolvida" com "juros"
ao adversário, quando o julgador se convença de que seu provimento não passou de
"vontade do juiz", não "vontade da lei", conseqüentemente, por definição, injusta (Hobbes).
13. Chiovenda considerava a ação cautelar uma "ação mera", na verdade,
"ação do Estado", uma vez que, tendo existência atual, "quando ainda não se sabe se o
www.abdpc.org.br
direito acautelado existe", não se poderia, segundo ele, atribuir ao réu uma obrigação de
cautela, já existente "antes do despacho do juiz"20 (Seria mesmo "despacho", ou sentença !?).
Está aqui revelada a natureza repressiva disso a que o mestre italiano
dava o nome de "medida acautelatória". O juiz, segundo Chiovenda, somente poderia
reconhecer uma "obrigação de cautela" se houvesse − "antes do despacho do juiz" − um
vínculo jurídico capaz de obrigar o demandado. O juiz somente poderia manifestar-se
sobre obrigações constituídas antes de seu despacho. Portanto, as "medidas acautelatórias"
não poderiam proteger um "direito provável" da parte. Não havendo, "antes do despacho",
direito algum vinculando os litigantes, não se poderia, segundo Chiovenda, atribuir ao réu
um "dever de cautela", porquanto a função do juiz deveria limitar-se a "consertar" o
passado, sendo-lhe vedado reconhecer um "dever de segurança" dirigido ao futuro. Se a
jurisdição segundo essa doutrina, deve ser apenas declaratória, então a lide haverá de dizer
respeito à relações jurídicas pretéritas, nunca conflitos projetados para o futuro. Como
dissera Chiovenda, a obrigação a respeito da qual o juiz deve pronunciar-se terá de nascer
"antes da sentença". Isto torna impossível conceber um "dever de segurança" destinado a
proteger conflitos inexistentes no momento de ter início o litígio. Não foi por outra razão
que Calamandrei, num conhecido ensaio21, comparou o labor do juiz ao do historiador,
enquanto ambos se dedicam a investigar o passado.
Este é o núcleo da tenaz resistência oposta pela doutrina contra a existência de
um "direito substancial de cautela", que não vem ao caso agora discutir. Basta-nos mostrar
a dificuldade encontrada por Chiovenda em conceber uma tutela preventiva. Se ela tiver
de ser preventiva, então haverá de ser necessariamente antecipatória (de uma tutela
repressiva de natureza, no máximo, repristinatória do statu quo ante, quando não apenas
indenizatória).
14. Embora a doutrina não se tenha preocupado com isso, a verdade é que
Calamandrei − o discípulo de Chiovenda que propagou para o mundo latino sua teoria da
tutela cautelar − nunca escondeu o caráter "antecipatório" que ele emprestava a esta espécie
de tutela processual. Em seu célebre ensaio sobre "provvedimenti cautelari", Calamandrei
20 Istituzioni di diritto processuale civile, vol. I, nº 82.
www.abdpc.org.br
dividia-os em quatro grupos, dos quais o mais relevante consistia precisamente nos
provimentos que antecipavam efeitos da sentença de mérito, quando não antecipavam o
próprio mérito. É o conhecido "terceiro grupo" de provimentos, supostamente cautelares,, nos
quais, dizia Calamandrei, "il provvedimento cautelare consiste proprio in una decisione
anticipata e provvisoria del merito"22.
Como se vê, a doutrina presta tributo ao racionalismo sempre que se defronta
com alguma categoria jurídica, particularmente processual, que não tenha o selo da
definitividade; ou, quem sabe, como diriam Satta e Proto Pisani, o "selo da eternidade". A
medida cautelar, para ela, é dependente por ser provisória. . .! Como, imagina-se, alguma
coisa provisória poderia ser terminal, autônoma, independente, no plano processual, sem
que se caia na justiça do juiz", tão temida por Hobbes? Sendo assim, não é de estranhar que
Adolfo di Majo conhcido civilista italiano, considere a tutela possessória l´énfant terrible,
do sistema de tutelas processuais, precisamente porque, segundo ele, a tutela possessória "è
pur sempre una tutela interinale e provvisoria (a fronte di quella data in sede petitória)"23.
Verifica-se que a doutrina italiana cristalizou-se no século XIX, repetindo Jhering24 e
Dernburg25, que julgavam que o litígio possessório e a (eventual !) demanda petitória
subseqüente formariam uma só lide. Como se vê, teoria da posse tornou-se, para o
normativismo europeu, a "hidra mitológica", como atesta Hans Hattenhauer26. Se lhe
cortavam a cabeça, outras sete apareciam. O paradigma, reduzindo o direito à norma, torna o
jurista incapaz de operar com a realidade.
É a natural conseqüência daquele "selo de eternidade", tão sonhado pelos
iluministas dos séculos XVII e XVIII, capaz de manter prisioneiros os juristas italianos, que
ainda não atingiram a verdade, para nós brasileiros elementar, de ter o juízo possessório como
definitivo e independente do (eventual!) juízo petitório posterior, de tal modo que a coisa
julgada material formada no possessório seja tão coisa julgada e tão definitiva quanto a que
se venha porventura a formar no petitório. E, mais significativo ainda: sem que haja conflito
21 Il giudice e lo storico, in Opere guiridiche, vol. I/393. 22 Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, CEDAM, 1936, nº 14. 23 La tutela civile dei diritti, 3º vol., Giuffrè, 1993, p. 118-199. 24 Fondement de les interdits possessoires - Études complémentaires de l´esprit du droit romain, trad. francesa de 1882, p. 82 e 86. 25 Pandette, vol. 1º. § 184, nota 8, tradução italiana, Turim, de 1907. 26 Conceptos fundamentales del derehco civil, trad. da edição alemã de 1982, Ariel Derecho, Madrid, 1987, p. 50.
www.abdpc.org.br
de julgados, precisamente porque a possessória é uma demanda parcial (sumária) − porém
autônoma −, que não toca as questões petitórias !
15. A premissa de Calamandrei, a respeito do caráter antecipatório da
tutela cautelar, como era de esperar, alargou seus limites, na doutrina posterior, que passou a
considerar antecipatórios todos os provimentos cautelares, a ponto de Ferrucio Tommaseo,
muitos anos depois, denominá-los, no subtítulo de sua conhecida monografia, "provimentos
antecipatórios"27. No Brasil, a introdução das "medidas antecipatórias", ao lado daquelas
que a doutrina sempre tivera como cautelares − conservadas no sistema −, tem gerado
grande embaraço à doutrina fiel à Calamandrei, pois tanto aquelas quanto estas, são
provimentos antecipatórios, de modo que as cautelares de tipo italiano, e as autênticas
liminares antecipatórias acabaram igualadas em nosso direito, tornando impossível aos fiéis
seguidores de Calamandrei distinguir as medidas urgentes decretadas com fundamento
no art. 798 daquelas outorgadas segundo o art. 273 do Código de Processo Civil. A
confusão entre inibitórias e tutela cautelar, ocorrida na doutrina italiana, a partir do primeiro
Código italiano unitário de 1865, por nós denunciada em obra anterior,28 caiu sobre o
direito brasileiro com a força de cento e cinqüenta anos de doutrina superficial e equivocada.
Essa assimilação entre medidas antecipatórias e cautelares parte do
equivocado pressuposto de que, para a concessão de qualquer delas, as exigências (fumus boni
iuris e periculum in mora) sejam idênticas, não obstante saber-se que a última delas nada
tem a ver com "tutela de simples segurança", portanto não satisfativas, como as
antecipatórias. Como temos mostrado em obras anteriores29, o "pericolo nel ritardo"
(periculum in mora), desde as fontes medievais, mas até mesmo no direito italiano atual,
nada tem a ver com as autênticas medidas cautelares, pois a tutela nos casos de "perigo na
demora" deve contar, necessariamente, com medidas antecipatórias, de que haverá de
resultar, também necessariamente, alguma forma de execução provisória (urgente), como, de
resto, vem expresso no inc. 2º do art. 642 do Código de Processo Civil italiano.
27 Provvedimenti d´urgenza - Struttura e limiti della tutela anticipatoria, CEDAM, 1983. 28 Do processo cautelar (1ª edição 1985, Ed. LeJur, Porto Alegre, 58 e sgts.).
www.abdpc.org.br
16. Dissemos inicialmente que o racionalismo constitui um dos pilares de
nosso sistema processual, mas é necessário examinar mais de perto essa relação. Vimos
como o sistema, através da concepção de uma forma de tutela que seria, ao mesmo tempo,
cautelar e antecipatória, acaba fazendo do processo cautelar uma porção da lide principal,
ao identificar a proteção de mera segurança às medidas que antecipam "efeitos da sentença"
final do processo satisfativo a que o processo cautelar, nessa perspectiva, deverá estar ligado
por um vínculo de dependência. Na verdade, o processo cautelar faria parte do processo
principal, gozando apenas de autonomia procedimental. Se não fora assim, como imaginar
que nele se encontre um "pedaço" da futura sentença do processo principal, cujos efeitos
ele antecipa? O "pedaço" que se destaca para formá-lo continua, segundo essa doutrina, a
pertencer à lide (única) principal. Este, como temos dito30, era o ponto de vista sustentado
por Carnelutti, que fez discípulos no Brasil, especialmente H. Theodoro Júnior31.
Por que o processo cautelar será, como diz o art. 796 de nosso Código de
Processo Civil, "sempre dependente" do processo principal? Tendo presente o compromisso
do sistema com o paradigma racionalista, não é difícil descobrir o motivo que impõe essa
dependência. Com efeito, se a função do juiz resume-se em revelar a "vontade do legislador",
então não lhe será permitido julgar com apoio em juízos de verossimilhança, pois tais
juízos corresponderiam, no máximo, à "provável" vontade da lei. O juiz, ao proferir uma
decisão de mérito, antes de havê-la descoberto, transformar-se-ia em legislador, caso se
revelasse depois não ser essa a "vontade da lei"; e a decisão corresponderia, como advertira
Hobbes, à "justiça do juiz", não à justiça da lei.
17. A doutrina encontrou solução ao problema da tutela outorgada a quem
não tivera ainda seu direito "certificado" (accertato) tendo-a como uma forma de tutela
"emprestada", sob o compromisso de que se investigue, na mesma relação processual, sob
contraditório "exauriente", se esse efeito que se "emprestara" corresponde realmente à
"vontade da lei". Na mesma relação processual.
29 Do processo cautelar, 3ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 2001, p. 82 e sgts.; e Curso de processo civil, 3° vol., Rev. dos Tribs., São Paulo, 2000, p. 54 e sgts. 30 Cf. nosso Do processo cautelar, 3ª edição, 2001, p. 36. 31 Do processo cautelar, Livraria e Editora Universitária de Direito, São Paulo, 1976, n. 40.
www.abdpc.org.br
Mesmo que a burguesia tenha conquistado o poder sob o escudo da mais
notável ação sumária − com inversão do contraditório −, representada pelo título executivo,
ela própria cuidou de estreitar o princípio do contraditório, a tal ponto que nós brasileiros
inscrevemos na Constituição o princípio da "ampla defesa", com exclusão do contraditório
diferido e do contraditório eventual, que fora a arma responsável pela maior revolução no
direito processual civil, através da criação dos títulos executivos. Tendo eliminado as demais
formas de contraditório, acabamos, como é natural, por transformar em ordinárias todas as
demandas, pois sem liminares de mérito todas ela tornam-se ordinárias, dada a relação
essencial entre contraditório prévio e ordinariedade.
Daí a advertência de Sergio Chiarloni, aludindo a uma lição de Cappelletti, de
que "la procedura ordinaria corrisponde alle preferenze ideologiche e alle esigenze materiali
di gruppi già fermemente consolidati nel potere"32; para ressaltar que a grande revolução
ocorrida no Direito moderno, não se deveu ao lento e pesado procedimento ordinário, mas a
uma gloriosa tutela sumária, representada pelo título executivo, instrumento oferecido pelos
juristas para a construção do capitalismo industrial. A concepção do titulo executivo, no
direito medieval, é o testemunho mais eloqüente desta verdade elementar. É bom ter presente
que esse tropismo pelo contraditório prévio (audiatur et altera parte), é apenas uma
extensão ideológica da matriz racionalista, que reduz a jurisdição à mecânica descoberta da
"vontade da lei".
18. Esta é a razão pela qual o sistema expurgou todas as formas de tutela
sumárias, optando pela generalização do procedimento ordinário. A partir desta premissa,
a doutrina eliminou de seu horizonte conceitual as formas de contraditório diferido e,
especialmente, de contraditório eventual, para consagrar o contraditório prévio, como única
forma legítima de contraditório.
O direito brasileiro, submisso à premissa racionalista, como dissemos, foi ao
extremo de erigir em princípio constitucional, a exigência de "plenitude de defesa", com total
e absoluta eliminação da possibilidade de cisão entre a ação e as respectivas exceções,
como se dá no chamado "contraditório eventual", mesmo que esta técnica, como
32 Introduzione allo studio del diritto processuale civile, Ed. Giappichelli, Turim, 1975, p. 24.
www.abdpc.org.br
mostramos em outro lugar33, exista no processo executivo obrigacional, que sequer
admite defesa.
19. O que se disse, a respeito da exclusão das demais formas de
contraditório, quando se privilegia a ordinariedade, poderia parecer exagero, pois o
sistema convive bem com inúmeros exemplos de procedimentos capazes de produzir
medidas liminares, que é a forma comum de "contraditório diferido". Não há, porém, qualquer
exagero nessa assertiva. Se investigarmos o modo como a doutrina e a prática dos tribunais
compreendem essas liminares, veremos que elas somente são aceitas pelo sistema sob a
condição de não serem consideradas "decisões sobre a lide" − alguma coisa que pudesse ser
considerado julgamento (de mérito) antecipado.
Nem essa forma branda de inversão de contraditório é aceita pelo pensamento
formado sob o signo da ordinariedade, tanto que a doutrina recusa-se a considerar as
medidas liminares como um provimento de mérito. A resistência, na verdade, é mais radical:
dizem os processualistas que nem mesmo "julgamento" existe nessas liminares, que não
passam de "decisões interlocutórias" − provimentos sobre o processo, não sobre a lide.
20. Dissemos que o sistema "ordinarizou-se", eliminando a possibilidade
de que haja eventuais decisões de mérito em provimentos liminares. Com efeito, é essencial
ao procedimento ordinário o contraditório prévio, segundo o qual o juiz somente poderá
julgar depois de ter ouvido ambas as partes, porque somente assim estará habilitado a
"descobrir a vontade da lei", apreciar o meritum causae, o que pressupõe "cognição
exauriente" dos fatos da lide. Nosso Código de Processo Civil levou ao exagero seu
compromisso com a ordinariedade, ao dispor em um de seus artigos que "sentença é o ato
pelo qual o juiz põe termo ao processo" (art. 162, § 1º). Para o sistema, não pode haver
sequer "julgamento provisório". Julgar provisoriamente é não julgar. Para o sistema, não
há decisão provisória sobre a lide. Na verdade, decidir provisoriamente é nada decidir.
33 O contraditório nas ações sumárias, na obra Da sentença liminar à nulidade da sentença, Forense, 2001.
www.abdpc.org.br
Qual o princípio capaz de explicar esta doutrina tão singular? Precisamente a
idéia de que a missão do juiz reduz-se a ser o "oráculo da lei", cabendo-lhe apenas revelar-
lhe a "vontade", tarefa que pressupõe a exigência disso que nossa doutrina indica como
"cognição exauriente". Somente após esse contraditório amplo, o julgador estaria em
condições de "verbalizar" (enquanto "bouche de la loi") a "vontade da lei".
Há uma relação oculta e não tematizada entre essa "cognição exauriente" e os
"processos totais" de Carnelutti34, veículos para demandas plenárias − diga-se com outras
palavras: demandas não sumárias, pelo corte de determinadas exceções −, em que o
princípio constitucional da "plenitude de defesa" seja fielmente observado35.
Esta relação entre "cognição exauriente" e "plenitude de defesa" passa de
"contrabando", sem que aqueles que as empreguem tenham uma plena consciência dessa
interdependência, não obstante sua decisiva relevância, como arma utilizada para o expurgo
das ações materialmente sumárias, que pressupõem, justamente, alguma forma de cognição
"não-exauriente" sobre os fatos da causa.
21. Se investigarmos as raízes ideológicas que sustentam nosso paradigma,
veremos que o Direito moderno, a partir das filosofias do século XVII, passou a priorizar o
valor "segurança", como a exigência fundamental para a construção do moderno "Estado
Industrial". Como disse um notável escritor inglês36, a ciência jurídica moderna instituiu,
como tarefa fundamental, "domesticar o azar", conseguir no Direito resultados tão seguros
quanto poderá sê-lo a solução de um problema algébrico. Antes de Savigny "geometrizar" o
Direito, criando um "mundo jurídico", distante das "no imaginables diversidades" do caso
concreto e, portanto, da realidade social, Leibniz, dissera que, não apenas o direito, mas
a própria moral, seriam ciências tão demonstráveis, quanto qualquer problema matemático37.
34 Lezioni di diritto processuale civile, CEDAM, 1926, Pádua, vol. IV, p. 21 e sgts. 35 Este ponto foi objeto de nossa análise na obra Da sentença liminar à nulidade da sentença, p. 25 e sgts. 36 Jon Elster, Juicios salomónicos - Las limitaciones de la racionalaidad como principio de decisión, Cambridge, 1989, tradução de 1995, Gedisa Editorial, Barcelona, p. 40 e sgts. 37 Ensaio acerca do entendimento humano, trad. bras. 1973, Cap. III, n. 18.
www.abdpc.org.br
22. Dentre as hipóteses examinadas por Elster, a mais sugestiva é sem
dúvida o caso relativo à guarda dos filhos nas ações de separação judicial ou divórcio.
Nestes conflitos, o antagonismo de interesses aflora com tonalidades emocionais
verdadeiramente dramáticas. Em geral, cada um dos genitores luta denodadamente para
obter a posse dos filhos, pois, como diz o jurista, os pais, em muitos casos, consideram os
filhos uma extensão de suas personalidades. Entretanto, poderá não ser conveniente aos
menores que eles permaneçam sob a guarda de nenhum dos genitores. Estabelece-se,
portanto, um conflito triangular de interesses que ao juiz cabe resolver. Segundo que
critérios, porém, terá de fazê-lo? Com o sacrifício do legítimo interesse psicológico, afetivo
e moral dos pais de tê-los sob a guarda, ou haverá um limite para o sacrifício desses
interesses? Diz o jurista: " El niño requiere protección especial. Sin embargo, esa protección
no debe implicar pequeñas ganancias en el bienestar de niño obtenidas a expensas de
grandes pérdidas en el bienestar parental" (p. 122). O filho menor de seis anos ficará,
sempre, mais protegido quando confiado à guarda da mãe? Quando ele atingir a maioridade,
essa solução será necessariamente confirmada como a mais adequada?
Para ter-se uma pálida idéia da complexidade temática envolvida no problema
de Elster, tenha-se presente a observação do jurista de que o próprio tempo necessário
para que o juiz possa dispor de "cognição exauriente", descobrindo a problemática "vontade
da lei", poderá causar danos consideráveis ao menor, pois, nestes casos, "el divorcio parece
ser más dañino para la salud mental de los niños cuando la disputa es reñida" (p. 125).
A "vontade da lei", como é sabido, é priorizar o interesse do menor. Porém,
somente depois de alguns anos se poderia arriscar − apenas arriscar − uma avaliação da
alternativa que for adotada. Como poderá o juiz saber − hoje − se a solução de retirar o
filho do poder dos pais, para interná-lo numa instituição social, mostrar-se-á a melhor, dez
ou quinze anos depois, para o desenvolvimento físico e mental do menor?
Haveria, em tais casos, possibilidade de pleno conhecimento dos fatos e
das incontáveis variáveis independentes que o condicionam, capaz de corresponder ao que a
doutrina considera "cognição exauriente" dos fatos, das tendências e expectativas futuras, das
inclinações e temperamento que irão moldar o caráter do homem adulto, em que esse menor
se terá transformado? Ou, ao contrário, a chamada "cognição exauriente" apenas confirma
que a jurisdição cuida do passado, qual historiador, não estando apta para lidar com a tutela
www.abdpc.org.br
preventiva? "Cognição exauriente" não será uma singela expressão do princípio dispositivo,
que amarra, ou pretende amarrar, a cognição do juiz aos fatos conhecido e provados nos
autos (Allegata et probata partium iudicare debet)? Neste caso, a tutela que seria preventiva
fica soldada irremediavelmente ao passado, já que, nas autênticas tutelas preventivas, diz
Elster, o juiz estará navegando no domínio do mais puro indeterminismo das possíveis
conseqüências (p. 116), pois lhe serão negados os fatos, especialmente ser-lhe-á recusado
conhecer a moldura circunstancial que lhe dará, no futuro, a sonhada racionalidade
matemática.
Esta é a razão que explica a transferência para a chamada "jurisdição
voluntária" dos casos em que o julgamento se baseie em juízos discricionários, orientado por
critérios de simples conveniência, sob a falsa ilusão de que os verdadeiros juízos
jurisdicionais não seriam, em proporção de menor ou maior relevância, igualmente
discricionários. É assim que, em nosso sistema, o magistrado da jurisdição comum, mesmo
que se apoie em critérios de conveniência, finge ideologicamente decidir com a
racionalidade matemática que o paradigma lhe impõe. Esta é uma das tantas armas de
que o paradigma se vale, contra as eventuais exceções que o infirmem38. É o mesmo
mecanismo de autopreservação paradigmática que faz, por exemplo, com que o sistema
conviva com tutelas interditais, como as "medidas antecipatórias" de nosso direito,
fingindo, porém, tratarem-se de simples medidas interlocutórias, que não digam respeito
ao meritum causae. Com este expediente, preserva-se o princípio fundamental imposto
pelo paradigma, qual seja o de que ao juiz somente é permitido julgar com base em
"cognição exauriente". Quanto às demais decisões, particularmente aquelas sobre as
liminares (de mérito), finge-se que não chegam a ser julgamentos sobre a lide.
23. Indicamos acima (n. 13) a dificuldade encontrada pela doutrina de
aceitar a existência de um "direito substancial de cautela". É necessário, porém, ampliar o
exame deste ponto. A objeção levantada contra um "direito material à segurança" decorre,
a nosso ver, do mesmo paradigma racionalista, que veda os julgamentos fundados em
verossimilhança, a não ser quando − na mesma relação processual − uma sentença tomada
38 Sobre o conceito de paradigma por nós empregado, consultar Thomas Kuhn, especialmente em duas de suas obras fundamentais: a) A revolução copernicana, trad. portuguesa, 1990, Edições 70, Lisboa; b) A estrutura das revoluções científicas, trad. bras., 1975, Editora Perspectiva, São Paulo.
www.abdpc.org.br
sob "cognição exauriente" proclame a correção do julgamento provisório, revelando essa
inefável "vontade da lei", concebida com a ingênua intenção de impedir a criação
jurisprudencial do direito, que foi a grande esperança dos iluminados legisladores e filósofos
do século XVIII e dos legisladores do século seguinte. A ambiciosa criação de um mundo
social em que os homens não seriam mais dirigidos pelos homens, e sim pelas leis,
acabou por submeter os homens às suas máquinas, conseqüência, de resto, imanente
como tendência profunda, nascida com a idéia de "matematização" do direito e das demais
ciências do espírito, como instrumento da mais abjeta de todas as tiranias.
Se deixássemos aos aplicadores da lei qualquer margem de discricionariedade
que pudesse legitimar duas ou mais soluções diferentes contidas na norma, teríamos, com
certeza, como dissera Max Weber, impedido a "ascensão do Estado absoluto"39, do
asfixiante estado burocrático, centralizador e regulamentar em que se transformou a sociedade
contemporânea.
Mas não basta a existência dessa condição para explicar a resistência oferecida
pela doutrina ao reconhecimento de um direito material à segurança. Se quisermos
compreendê-la em toda sua extensão, é necessário recordar que o sistema eliminou a
possibilidade das "demandas parciais", nas quais "fracionam-se" a ação e as respectivas
exceções, de modo a formar, com estas, uma nova demanda igualmente parcial. Esta
questão foi examinada por nós no estudo anteriormente referido40, elaborado para mostrar
que nosso sistema tem uma especial predileção pelos processos que contenham o que
Carnelutti indicava como "processos totais", precisamente aqueles que, contendo "lides
integrais" − despreocupados com o tempo necessário para compô-las −, ainda pressupõem
a "plenitude de defesa".
24. A técnica de "parcialização" ou sumarização de lides é tão conhecida
e antiga quanto as mais remotas fontes romanas. Basta ver a relação entre os juízos
interditais do direito romano clássico e o "procedimento ordinário" das actiones, para ter-se
uma imagem precisa do que são processos sumários autônomos, nos quais as questões que
demandassem investigação probatória demorada e complexa − e que, por isso não se
39 "A política como vocação" in Ensaios de Sociologia, trad. bras., Zahar Editores, 5ª edição, 1992, p. 115).
www.abdpc.org.br
pudessem resolver-se através de summaria cognitio, que era a função do Praetor − , seriam
relegadas para tratamento em processo independente posterior (actio ex interdicto).
A criação dos "títulos executivos" extrajudiciais, no direito medieval, seguiu
a mesma técnica, de "fracionamento" da ação executiva, extraindo-lhe as questões que
poderiam compor as respectivas exceções, para torná-las substância de uma demanda
independente, a ser proposta − através da inversão do contraditório − pelo demandado,
agora transformado em autor, perante o processo executivo.
25. Seria possível conceber solução análoga fazendo com que nossas
liminares de antecipação de tutela adquirissem autonomia procedimental, passando a
constituir uma demanda preliminar independente, como ocorre com os falsos procedimentos
cautelares do modelo italiano, com a única − porém relevantíssima − diferença de
que, tal como na ação de embargos do executado, inverter-se-ia o contraditório, dando
autonomia ao juízo sumário, de modo a gravar a parte que nele sucumbisse com o ônus
de iniciar a demanda plenária subseqüente. Isso significaria generalizar (democratizar) o
privilégio executivo, eliminando a "elitização" desse benefício ao qual têm acesso, no direito
moderno, apenas as classes dominantes. Além da criação por lei e pelo negócio jurídico,
queremos sugerir a criação jurisprudencial de títulos executivos, fundados na mesma
verossimilhança que sustenta seus homônimos.
Por que esta solução mostra-se tão penosa para nossa doutrina? As razões
são conhecidas: a vitória no sumário, sem que o juiz tenha acesso à "cognição exauriente",
poderia resultar na proteção de alguém declarado sem razão, depois no juízo plenário,. A
autonomia do sumário permitiria que o juiz decidisse com base em juízo de verossimilhança,
aplicando não a "vontade da lei", mas a justiça do juiz (Hobbes), coisa que nosso
racionalismo não pode sequer imaginar, quanto mais permitir. O que existe de tutela
autenticamente preventiva no juízo cautelar impede que a doutrina o aceite na plenitude
de suas conseqüências, a comprovar, também aqui, a impossibilidade de tutela processual
que não se funde em "cognição exauriente", portanto, tutela que protege o passado, nunca
preventivamente o futuro.
40 O contraditório nas ações sumárias.
www.abdpc.org.br
26. As considerações precedentes autorizam-nos a concluir que o sistema
processual em vigor, enquanto se mantiver preso ao paradigma racionalista, supondo que a
norma jurídica tenha univocidade de sentido, permanecerá ancorado no férreo
dogmatismo que o tem dominado, impedindo a aceitação do raciocínio hermenêutico,
mesmo que as modernas correntes de Filosofia do Direito não mais duvidem deste caráter da
ciência Jurídica.
www.abdpc.org.br