realismo afetivo

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Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea ISSN: 1518-0158 [email protected] Universidade de Brasília Brasil Schøllhammer, Karl Erik Realismo afetivo: evocar realismo além da representação Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, núm. 39, enero-junio, 2012, pp. 129-148 Universidade de Brasília Brasília, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=323127333008 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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K. E. SCHOLLHAMMER

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  • Estudos de Literatura Brasileira

    Contempornea

    ISSN: 1518-0158

    [email protected]

    Universidade de Braslia

    Brasil

    Schllhammer, Karl Erik

    Realismo afetivo: evocar realismo alm da representao

    Estudos de Literatura Brasileira Contempornea, nm. 39, enero-junio, 2012, pp. 129-148

    Universidade de Braslia

    Braslia, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=323127333008

    Como citar este artigo

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    Realismo afetivo

    Realismo afetivo:evocar realismo alm da representao

    Karl Erik Schllhammer1

    O interesse pela questo do realismo na literatura e nas artes aparece na discusso crtica por motivos bastante evidentes. Existe uma populari-dade no mercado literrio mais abrangente de gneros que do continui-dade ao realismo histrico como os romances histricos, biografi as, no fi co, relatos de viagem entre outros. Entre os escritores contemporneos percebemos a mesma reciclagem de formas literrias com uma aproxima-o determinada realidade da experincia comum como crnicas da vida como ela , depoimentos testemunhais de experincias singulares e exticas, dirios, ensaios fi ccionais, relatos de viagem e uso de outras formas hbridas entre fi co e no fi co.

    No de estranhar que a literatura tambm refl ita essa preferncia de temas e de contedos que nos devolvem uma experincia de leitura em contato com a realidade social, cultural e histrica e seu estudo forma par-te de uma compreenso do lugar da produo literria nos circuitos cultu-rais, educacionais e miditicos em um sentido amplo que no contemple sua especifi cidade literria. Queremos aqui discutir um outro aspecto da questo. No a sobrevida de certas formas do realismo representativo re-tomadas pelos escritores contemporneos com uma liberdade que supera as crticas do modernismo contra o realismo histrico do sculo passado. Uma das defi nies dadas aos escritores das dcadas de 1970 e 1980 no cerne dos debates em torno da reviso ps-moderna do projeto moderno e modernista era exatamente essa permissividade que possibilitava a re-tomada, mesmo que irnica, de formas narrativas, fi gurativas e represen-tativas que foram abandonadas e estigmatizadas pelo experimentalismo modernista que predominou at fi nal dos anos 1950. De novo era possvel no contexto ps-moderno voltar representao ainda que fosse distn-cia pardica e metarrefl exiva, mas rapidamente caram as aspas e o para-digma representativo se instalou comodamente no s entre os escritores populares.

    Minha sugesto para a discusso atual entender o Realismo hoje como uma estranha combinao entre representao e no representao, por um lado, visvel na retomada de uma herana de diferentes formas histricas e,

    1 Professor da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]

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    por outro, na ateno em relao literatura em sua capacidade de intervir na realidade receptiva e de agenciar experincias perceptivas, afetivas e performticas que se tornam reais. Tudo isso forma parte dessa paixo pelo real que para o fi lsofo francs Alain Badiou (2004) caracterizou o sculo XX nas artes, no pensamento e na poltica sendo um dos temas mar-cantes dos debates do fi nal de sculo em torno da compreenso da cultura ocidental contempornea. Na perspectiva de Alain Badiou a paixo pelo real se expressava durante o sculo XX no s na preferncia pelo realismo, mas, sobretudo, na crtica contra a representao mimtica, na suspeita do poder da semelhana de criar conscincia falsa, portanto, na necessidade de criar distanciamento refl exivo e efeitos de estranhamento no experi-mentalismo artstico como no teatro de Brecht. Na viso de Badiou o real perceptvel apenas como resultado de uma relao contrafactual entre rea-lidade e representao que distorce os laos de semelhana e apenas pode ser reconhecida indiretamente num ato de paixo refl exiva. Assim tanto os realistas velhos e novos quanto seus crticos mais severos os mo-dernistas e ps-modernistas expressam a mesma paixo pelo real. Uns pela afi rmao da semelhana representativa e outros por sua negao. Na dramaturgia poltica de Bertolt Brecht, Badiou percebe um exemplo privi-legiado que une a esfera artstica e poltica, principalmente na tcnica de distanciamento em que o alvo radicalizar a diferena entre o real e sua encenao e problematizar os elos ntimos e necessrios que unem o real com a semelhana. por esse motivo que a arte do sculo XX se tornou refl exiva, pois ao revelar os mecanismos da sua potncia fi ccional, ao exibir seu prprio processo e idealizando sua prpria materialidade, a arte e a li-teratura colocavam em evidncia a brecha entre o real e sua representao, canalizando e expressando assim sua realidade.

    O que interessa para nossa discusso no tanto a analogia entre a reali-dade como sintoma, ideologia e falsa conscincia e a identifi cao do real com a potncia do falso como a relao estabelecida entre essa noo do real e uma arte experimental, refl exiva e autoconsciente da vanguarda. Contra o otimis-mo cognitivo do positivismo do sculo XIX, a arte e a literatura do sculo XX desdobrou o tema da efi cincia do reconhecimento errneo descobrindo e encenando o poder extraordinrio da ignorncia (Badiou, 2004, p. 49) e, ao seguir a lgica do desejo, abre mo da verdade para se alojar na alienao apaixonada. Assim, o tema do Realismo se vincula na entrada do sculo XXI intimamente com as questes das condies representativas na contempo-raneidade e s respostas da literatura a um regime esttico profundamente ligado crise e ao questionamento do conceito de representao.

    Os limites do realismo representativo do sculo XIX j foram perce-

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    bidos na mxima realizao de seu projeto de verossimilhana mimti-ca. Em Madame Bovary, de Flaubert, a submisso do estilo ao objeto e o recuo retrico da voz narrativa produziram uma nova autonomia da expresso literria em relao ao compromisso referencial, conforme Bar-thes mostrou em seu estudo O grau zero da escrita. De Roland Barthes (1972) a Jacques Rancire (2007) o realismo de Flaubert foi analisado ven-do-se nele uma espcie de auge representativo cuja independncia abriria a porta para a livre experimentao com as formas criando um lao ines-perado entre realismo e experimentao. Rancire rejeita, nesse sentido, que o romance realista seria o auge da literatura representativa e defende, pelo contrrio, que nele se encontram sinais evidentes da ruptura com o que ele defi ne como o regime representativo (2000) sustentado sobre os princpios da poiesis aristotlicos. Contrrio ao regime tico sustenta-do sobre um controle platnico da imagem, sempre subjugado supe-rioridade do bom e do verdadeiro, o regime representativo podia extrair por via de uma poesia narrativa do enredo forte uma verdade prpria e contribuir assim com compreenso da realidade. a partir do sculo XVIII, que surge, segundo Rancire, um regime esttico que vai defi nir o que entendemos por experincia esttica na modernidade e a propriedade da noo de literatura. O Realismo histrico coincide com essa ruptura com os princpios dos regimes ticos e representativos e corrobora com autores como Flaubert e Mallarm. Rejeitando a hierarquia entre tpicos altos e baixos, a superioridade da ao sobre a descrio e suas formas de conexo entre o visvel e o dizvel, o romance realista deu uma nova auto-nomia importncia dos dados sensveis para a compreenso dos eventos e suas descries, s vezes criticadas por serem suprfl uas e impressionis-tas, enquadraram as formas de visibilidade que deixariam a arte abstrata visvel. Ironicamente, foi assim que o Realismo em vez de expressar um novo domnio representativo sobre a realidade pde ser entendido como uma abertura de caminho para a experimentao do Modernismo. Nessa perspectiva podemos hoje ver o realismo histrico como o ltimo esforo desesperado de dominar uma crise da representao nascida no seio de seu regime epistmico.

    Em vez de fortalecer o efeito referencial, no romance do fi nal do sculo XIX, a realidade comea a aparecer, absorvida pela interioridade subje-tiva de um discurso indireto livre que se desenvolveu e radicalizou de Dostoievski a Joyce e Woolf, criando um certo Realismo psicolgico, fragmentado e anrquico, de uma viso de mundo em crise. Tambm nos novos realismos das dcadas 1920, 1930 e 1940, do Surrealismo de Bre-ton e ao Realismo mgico de Carpentier, passando pelo Realismo crtico

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    de Lukcs ou de Brecht, o real era entendido com um peso ontolgico que o afastava do simples registro positivo ou reproduo verossmil da expe-rincia. Para alguns se refl etia na expresso direta da sensibilidade intui-tiva e ntima ou no automatismo da escrita. Para outros jazia no arquivo lingustico e cultural de uma memria coletiva abafada ou transparecia de modo indireto na realidade objetiva intrnseca ao destino histrico do capitalismo. Em todos os casos, procurava-se um novo acesso realidade a partir de uma viso de mundo em crise e j no contido num esquema tradicional de representao mimtica. Na contramo do distanciamento autorreferencial e autorrefl exivo, certa literatura procurava, durante o s-culo XX, um sentido mais radical de semelhana liberado do mimetismo referencial. Surgiu uma literatura e uma arte com a utopia de expressar e dar conta da realidade diretamente, em sua consequncia, rompendo as fronteiras da representao mimtica sem por esse motivo se encerrar na refl exividade sobre seus prprios meios. De maneira radical essa arte demandava um novo realismo, no pelo caminho do Realismo histri-co, seno na procura de uma arte e uma literatura performtica capaz de interferir sem mediao no mundo e expressar sua realidade crua. Num ensaio de 1921, Roman Jakobson discute criticamente (Jakobson, 1971) a iluso inerente ao conceito universal de Realismo ao sublinhar as limi-taes mimticas da linguagem. Contrrio as artes plsticas, disse Jako-bson, a literatura representativa no chega a criar uma conveno slida de descrio do objeto como acontece, por exemplo, na imagem com o perspectivismo que fornece uma traduo universal quase automtica das trs dimenses em duas. A linguagem nunca consegue criar uma cpia sensvel do real e, diferente do ilusionismo visual, no corre o perigo de ser confundido com seu objeto. nessa limitao que aparece a importn-cia da conveno histrica de verossimilhana, e a nica representao realista na literatura, baseada na semelhana, disse Jakobson, descartan-do de modo radical sua possibilidade mimtica, o discurso que em vez de imitar a realidade, toma outros discursos como objeto. Desse modo, a nica linguagem propriamente realista aquela que copia a linguagem e no a realidade, ou, na literatura, aquela escrita que transcreve a voz em vez do mundo material. Mas para atingir os efeitos de realidade, diz Jakobson, o realismo procura frequentemente a distoro do uso discur-sivo convencional e o prprio trao transgressivo, a distoro artstica da norma, concebido como uma aproximao realidade. Uma parte sig-nifi cativa do Realismo engajado, das dcadas 1920 e 1930, se reconcilia, nessa perspectiva, com a literatura experimental modernista na ambio de criar ou recriar literariamente os discursos informais do povo, a lingua-

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    gem das pessoas reais e de suas falas do cotidiano sofrido, sem abrir mo de suas dimenses picas. O neo-realismo surgido na literatura brasileira na dcada de 1960 d continuidade a essa tendncia, agora no nas falas de um Fabiano ou de um Riobaldo, mas na contundncia expressiva do cobrador de Rubem Fonseca, do Z Pequeno de Paulo Lins ou do Maquel de Patrcia Melo. A semelhana coloquial j no apenas o privilgio dos personagens; os narradores assimilam a mesma voz e juntos, escritor, nar-rador e personagem, foram a expresso oral a sua extrema realizao na denominao daquilo que no tem nome, do inarrvel, do execrvel e do insuportvel em que a semelhana vai desaparecendo na confuso entre a forma representativa e seu contedo extremo.

    O realismo do choque

    Na dcada de 1990, uma terceira concepo do Realismo se confi rmou a partir do estudo do historiador de arte Hal Foster, no livro The return of the real de 1996. Numa distncia maior do realismo histrico e por via de uma releitura da histria da vanguarda das artes plsticas, Foster sugere uma mudana do Realismo com uma defi nio contundente. Descreve a transformao do Realismo entendido como efeito de representao ao realismo como um evento de trauma, ou seja, o efeito da representao se agrava para um evento traumtico. O que era percebido em termos de contemplao e experincia de uma obra se converte nesta perspectiva em fora de interrupo sobre o espectador. Esse Realismo traumtico foi caracterizado atravs de exemplos da arte das ltimas dcadas do sculo XX que expressam os elementos mais cruis, violentos e abominveis da realidade ligados inevitavelmente a temas radicais de sexo e morte. Em vez de representar a realidade reconhecvel e verossmil, surge, segundo Foster, de Andy Warhol a Andrs Serrano, um realismo extremo que procura expressar os eventos com a menor interveno e mediao sim-blica e provoca fortes efeitos estticos de repulsa, desgosto e horror. Ou seja, a obra se torna referencial ou real nesta perspectiva na medida em que consiga provocar efeitos sensuais e afetivos parecidos ou idnticos aos encontros extremos e chocantes com os limites da realidade, em que o prprio sujeito colocado em questo. A antiga utopia romntica de uma obra que se torna vida e uma vida que se converte em obra reaparece aqui em seu aspecto sinistro tocando no limite entre vida e morte.

    A partir da distino de Lacan entre o olho e o olhar, Foster prope que parte importante da arte moderna e ps-moderna caracteriza-se por no acolher o mandado representativo de pacifi car o olhar, unindo o imagin-

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    rio e o simblico contra o real. Em lugar disso, alguns artistas e escritores se propem a expor o efeito mortifi cante sobre o sujeito ao acentuar sua sobre-exposio ao olhar do Outro. Assim surge uma arte que acentua os extremos da interpelao sensual sobre a conscincia e reproduz o choque causado pelo contato traumtico com o real. como se a arte quisesse que o olhar brilhasse, que o objeto emergisse, e o real existisse em toda a glria (ou horror) do desejo pulsional ou, pelo menos, que evocasse esta condio sublime (Foster, 1996, p. 110). Aqui, percebemos um desdo-bramento daquilo que se poderia chamar de uma esttica negativa, uma esttica de choque da modernidade, em que o efeito sensvel e afetivo da imagem se sobrepe signifi cao do contedo representado. Seguindo uma interpretao psicanaltica, que se justifi ca pela importncia que esta mesma teoria tem para a arte do ps-guerra, Foster desloca a discusso da experincia esttica para uma vivncia artstica que coloca a prpria experincia em jogo em um nvel de subjetividade mais profundo. Assim, descreve uma produo artstica que abandona a distncia da realidade e se prope um encontro com ela no seu aspecto mais cru, abrindo caminho atravs de linguagens e imagens, atravs do simblico e do imaginrio em direo a um encontro impossvel com o real. O conceito do real aqui no tem nada a ver com o que na linguagem coloquial chamamos de re-alidade, pois adotado da trade lacaniana do simblico, imaginrio e real, esse termo ltimo defi nido por ser aquilo que resiste simboli-zao, aquilo que pela mesma razo no pode ser nem mesmo defi nido e muito menos representado e cuja mera existncia e emergncia produz angstia e trauma. Em outras palavras, o real para Hal Foster, como para Lacan, a experincia impossvel da Coisa em si, cujo encontro impli-ca um atentado contra a subjetividade no encontro falho do outro. Para Freud, o trauma acontece em consequncias de vivncias para as quais o sujeito no est preparado e pode causar uma compulsiva repetio desse mesmo fracasso que mantm o sujeito preso ao sintoma. Mesmo sendo inacessvel experincia, o real tem, assim, o poder de catalisar certa sim-bolizao, em forma de uma produo posterior de signifi cantes caracte-rizada pela repetio.

    Interpretado nessa perspectiva, o projeto do Realismo extremo parece paradoxal na verso de Foster, querendo expressar o inexprimvel, pre-sentifi car o irrepresentvel, indo em direo ao mais repugnante e intole-rvel da nossa realidade em que a efi cincia da experincia se evidencia na impossibilidade de representao. Outra fi gura do Romantismo rea-parece aqui na retrica do sublime, no em funo do imensamente gran-de ou forte como em Kant, mas em consequncia da baixa materialidade

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    mais repugnante e intolervel (o abjeto). Diante dessa realidade, a ima-gem entendida por Foster como tela ou biombo que simultaneamente exibe e esconde o objeto, nos expe ao real e nos e protege contra ele. Traz para dentro da representao sua manifestao mais concreta de violn-cia, sofrimento e morte, assim encoberta pela imagem ou pela linguagem, e simultaneamente inclui indcios que apontam para alm da imagem, para o real via seus efeitos sensveis e estticos.

    Central para a anlise de Foster sua compreenso da repetio que, seguindo o pensamento de Lacan, para ele no apenas uma Wiederho-lung, repetio do recalcado em sintoma ou signifi cante, seno Wiederkehr, repetio compulsiva do encontro traumtico com o real, algo que resiste a simbolizao, e que no constitui nenhum signifi cante apenas deixa o efeito (touch, tique) do real. Aqui, a repetio no se delimita a ser re-produo, ela no a representao de um referente nem a simulao de outra imagem, um signifi cante isolado. Mesmo que a representao con-tinue signifi cando a realidade, sustentada sobre esta forma de repetio, no seu limite, chega a enquadrar o real atravs da repetio compulsi-va e aponta, assim, para seu efeito traumtico. assim que a a noo de repetio reconfi gura o duplo papel da representao de aproximao e distanciamento, de exposio e de blindagem. importante entender que a perspectiva de Foster, embora parecendo estritamente ligada a um fe-nmeno extremo localizado nas artes plsticas, rapidamente ganhou for-a na interpretao de uma paixo muito mais abrangente pelo real que perpassa todas as artes da literatura ao cinema, passando pelas artes visuais e performativas em geral , enfatizando aspectos documentais, performticos, relacionais e indiciais em concorrncia direta e frequente-mente polmica e promscua com a demanda macia de realidade na cul-tura miditica. Hal Foster procura driblar os dois modelos representativos predominantes na crtica das ltimas dcadas: o modelo referencial, por um lado, e o simulacral, por outro. O primeiro modelo entende as imagens e os signos como ligados a referentes, a temas iconogrfi cos ou a coisas re-ais, situadas no mundo da experincia, e o segundo, entende todas as ima-gens como meras representaes de outras imagens, o que converte todo o sistema de representao, inclusive o Realismo, em um sistema autorre-ferencial. O desafi o segundo Foster pensar a representao contempo-rnea como ao mesmo tempo referencial e simulacral, pois ela cria imagens literrias que so conectadas realidade, mas tambm desconectadas, so simultaneamente reais e artifi ciais, afetivas e frias, crticas e complacentes. Para Hal Foster essa possibilidade de coexistncia simultnea dos dois modos de representao que constitui o que denomina o Realismo traum-

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    tico, uma imagem marcada pelo limite do que pode ser representado e ao mesmo tempo ndice e arquivo dessa mesma impossibilidade.

    Trata-se aqui de uma inverso signifi cativa da ideia do Realismo tal como vinha sendo entendido at ento, pois se o Realismo histrico era comprometido com a representao sustentada na verossimilhana e na ob-jetividade cientfi ca, e se os novos realismos de Bertolt Brecht a Alejo Car-pentier evocavam uma noo de real com certa demanda de realidade obje-tiva e confi ana numa referncia forte, o Realismo extremo evoca a derrota da representao. A referencialidade identifi cada por Foster nos efeitos de um real impossvel, em decorrncia da derrota das possibilidades represen-tativas. Percebemos claramente que aqui a arte procura tornar-se o prprio caminho para uma aproximao ao trauma, um processo de ruptura com a aliana entre o simblico e o imaginrio que distancia o sujeito do real, mas tambm o protege. Assim o Realismo extremo volta fi gura inicial, na iden-tifi cao negativa do real que, tanto na dialtica negativa adorniana quanto no Verfremdung de Brecht, se colocava a servio de um desvelamento cogni-tivo das iluses alienadas da nossa realidade e aqui se prope a presentifi -car seus efeitos sensveis. Recorre de fato a uma fi gura conhecida da esttica moderna, isto , ao sublime kantiano como a transcendncia da experincia esttica na derrota das faculdades do juzo. Mas agora, no se trata de uma derrota das faculdades sensveis diante das exigncias da razo, seno de uma derrota do esprito diante do sensvel em sua materialidade mais bai-xa, degradada, repulsiva, violenta e terrvel da possvel experincia huma-na. Visto nesta perspectiva, o Realismo traumtico de Foster certamente se identifi ca com uma arte e literatura que radicalizam o efeito chocante e que ao ativar o poder esttico negativo, se propem a romper a anestesia cultu-ral da realidade espetacular, propondo um choque do real, que j no pode ser integrado ou absorvido no prprio espetculo.

    Foi o fi lsofo italiano, que no livro Art and its shadow (2004), com maior clareza tem explorado uma dimenso eufrica do que ele, concordando com Foster, chama de Realismo extremo. Vincula o realismo psictico ao carter positivo da esttica do choque dentro do esforo de resgatar a especifi cidade da arte numa situao em que ela se encontra ameaa-da pela cultura espetacular de ser absorvida em forma de moda ou de comunicao. Perniola se inspira na noo de Schelling do estupor da razo, que ele v como uma experincia prxima xtase, uma sensa-o de estranhamento no a confundir com a alienao seno com um processo que escapa a fi xidez esttica das estruturas da vida e abre a per-cepo para novos horizontes. Perniola argui que essa alteridade que aparece na obra de Lacan, a partir de 1963, sob o nome do objet (petit) a,

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    Realismo afetivo

    defi nido como o objeto que no pode ser alcanado. Em outras palavras, a coisa em sua muda realidade inacessvel tanto da linguagem quanto do inconsciente... Atravs dele o real no interrompe como trauma, mas como esplendor (Perniola, 2004, p. 12). O conceito de esplendor, Lacan aproveita do pensamento de Plato, que no Simpsio, usa a palavra galma, signifi cando glria, ornamento, imagem do divino etc. e que para Lacan oferece um sentido importante na anlise da psicose, em que acentua a complexa (con)fuso entre interior e exterior. Sem entrar na anlise laca-niana, podemos apenas sublinhar que essa superao da fronteira entre interior e exterior na psicose, segundo Lacan, que inspira Perniola a falar sobre um realismo psictico: Aqueles que s percebem a abjeo da arte extrema sem ver o esplendor mantm-se presos de uma ideia ingnua do real. Nas obras mais signifi cativas e importantes do Realismo psictico h uma beleza extrema para qual necessria reinstalar um conceito da tradio fi losfi ca j esquecida h dois sculos, Magnifi cncia (id., p. 13). Para Perniola, trata-se desta maneira de ampliar o escopo restrito demais de Hal Foster e daqueles que s interpretam o realismo extremo em ter-mos de choque, desgosto e abjeo. Ele explora uma experincia esttica positiva de fuso e de impacto que suspende as fronteiras entre interior e exterior, entre eu e o outro e entre corpo e mundo sem necessariamente neg-las dialeticamente. Crucial a importncia do prprio corpo, que j foi o campo de batalha para a esttica do abjeto e do desgosto, tematizando tudo aquilo que ameaa a integridade do corpo por meio de dissoluo, penetrao ou desmembramento. Na perspectiva de Perniola, a modifi ca-o entre corpo e mundo recebe um tratamento exclusivo na explicao do realismo psictico, que para ele se defi ne pelo encontro e pela simbiose en-tre o homem e a mquina, o orgnico e o inorgnico, o natural e o artifi cial, que chega a suspender a noo de experincia esttica. Uma nova espcie de realismo psictico nasceu que colapsa toda mediao. Arte perde sua distncia para com a realidade e adquire um carter fsico e material que nunca antes tem tido: msica som, teatro ao, as artes fi gurativas tm tanto uma consistncia visual e conceitual. No h mais imitao da rea-lidade, mas realidade tout court, no mediada mais por nenhuma experi-ncia esttica. So extenses da faculdade humana que no precisa prestar conta para um sujeito porque esse completamente dissolvido numa exte-rioridade radical (id., p. 22).

    O Realismo afetivo

    Na anlise de Mario Perniola, o realismo extremo interessante como um elemento naquilo que ele denomina o sex-appeal do inorgnico e que

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    Karl Erik Schllhammer

    caracteriza um processo de reifi cao do corpo acompanhada por uma simultnea sensitivizao dos objetos que profundamente altera os limi-tes entre o corpo e o mundo e entre o orgnico e o inorgnico. O primeiro momento desse processo Perniola v na necrofi lia inerente da cultura mo-numental egpcea, j comentada por Hegel, o segundo momento corres-ponde cultura cyborg na perspectiva do ps-humano e do ps-orgnico, que se caracteriza por uma nova mediao tecnolgica entre o eu e o no eu que totalmente altera as fronteiras da nossa sensibilidade. O Realis-mo psictico representa para Perniola o terceiro momento nesse processo, descrito como uma obsesso pelo exterior que pode beirar loucura: Sou fascinado pela exterioridade. Torno-me o que vejo, sinto e toco. De fato, como se a superfcie do meu corpo se identifi casse com a superfcie do mundo externo (id., ibid.). Parece-me uma abordagem fecunda s no-vas tendncias estticas nas artes e na literatura, mais abrangente que o escopo estreito de um realismo traumtico, delimitado experincia ne-gativa de uma esttica de choque. Trata-se de um apagamento eufrico dos limites entre o eu e sua realidade, tambm uma forma de trauma, sem dvida, porm numa espcie de experincia de plenitude exagerada como expressada em certas celebraes do corpo virtual feito possvel nas novas tecnologias. Crucial a redefi nio do corpo e da indicernibilidade em certas experincias entre sujeito e objeto, corpo e matria, ao e pai-xo em funo do registro de potncias que se realizam em encontros e em certas vivncias sensveis e afetivas. Perniola permite ampliar a compre-enso das novas formas de realismo contemporneas, conciliveis com o que tentativamente chamei (Schllhammer, 2005) uma esttica afetiva, em contraponto a uma esttica do efeito, e que opera atravs de singu-laridades afi rmativas e criativas de subjetividades e intersubjetividades afetivas. Na experincia afetiva a obra de arte torna-se real com a potncia de um evento que envolve o sujeito sensivelmente no desdobramento de sua realizao no mundo. Algo intercala-se desta maneira entre a arte e a realidade, um envolvimento que atualiza a dimenso tica da experincia na medida que dissolve a fronteira entre a realidade exposta e a realidade envolvida esteticamente e traz para dentro do evento da obra a ao do sujeito. Assim como nas outras verses do realismo extremo, os aspectos que se ressaltam dessa esttica atingem as fronteiras entre a realidade e a representao, e tambm entre o sujeito autoral e as subjetividades envol-vidas na realizao da obra. Estabelece, portanto, uma chamada sensitiva ao subjetiva no encontro feliz com a obra, presente em tempo e espa-o, pela abertura operada a uma dimenso comunitria e participativa. Questionada aqui em primeiro lugar a autonomia autoral na produo e

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    Realismo afetivo

    recepo, que abre as fronteiras individuais para intensidades subjetivas que fl utuam dentro de uma comunidade ou de uma amizade, descrita por Blanchot como estar a, no como uma pessoa ou um sujeito, mas como demonstradores de um movimento fraternamente annimo e impessoal (1988, p. 32). assim que a esttica afetiva, necessariamente, inclui uma dimenso participativa, comunitria e tica, porque opera nos limites en-tre arte e vida, fundada numa espcie de suspenso radical, um epoch estoico, que vai alm do prazer e da afi rmao subjetiva do belo kantiano para liberar o sujeito no apenas de suas paixes e afetos, mas tambm de seu fundamento slido na individualidade, abrindo para um sentimen-to neutro, que nas palavras de Perniola explode a separao entre self e non-self, interno e externo, seres humanos e coisas. Assim, descrevemos na suspenso uma experincia esttica e tica comparvel com uma forma de epifania profana que constri uma unidade entre beleza sem paz con-templativa, por um lado, e por outro, sublimidade sem transcendncia, expondo a comunidade participativa de autores e receptores para um ou-tro tipo de engajamento tico na realidade. Voltando ao ponto de partida, sublinhamos que os aspectos afetivos e performativos pertencem expe-rincia esttica da literatura em geral e de maneira alguma so privilgios exclusivos da literatura realista.

    Na prosa contempornea o impacto afetivo no surge em decorrncia do suprfl uo dentro da descrio representativa, seno em consequn-cia de uma reduo radical do descritivo, de uma subtrao na estrutura narrativa da construo sinttica de ao e da preeminncia da oralidade contundente do discurso em procura do impacto cruel da palavra-corpo. Essa autonomia do signo sem referncia podemos entender melhor em dilogo com aquilo que Deleuze e Guattari chamaram de afetos e perceptos, denominando a existncia independente de modifi caes afetivas e per-ceptivas da experincia. O afeto , assim, a transformao sensvel produ-zida em reao certa situao, coisa ou evento. Na entrevista Sobre a superioridade da literatura anglo-americana, no livro Dilogos, Deleuze descreve o afeto como o verbo que se torna um evento, e no ltimo livro de Deleuze e Guattari, O que a fi losofi a (1997), os autores insistem em que os afetos sejam entendidos como algo diferente da experincia sensvel e cognitiva de um sujeito fenomenolgico, como algo independente desse sujeito. na arte, sugerem, que reconhecemos que os afetos podem exis-tir desligados de sua origem temporal e espacial, tornando-se entidades independentes e autnomas entre sujeito e objeto. Pode parecer uma de-fi nio abstrata, mas entendamos que, para Deleuze e Guattari, os afetos operam numa dinmica de desejos dentro do agenciamento da obra ou do

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    texto, como uma fora expressiva que intervm performaticamente, ma-nipulando sentidos e relaes, informando e fabricando desejos, gerando intensidades e produzindo outros afetos. Os afetos expressam as potn-cias em geral, e nas obras de arte e na literatura em particular que atuam na produo social e ganham poderes fi siolgicos ontolgicos e ticos. Os perceptos, por sua vez, acentuam o aspecto impessoal da literatura capaz de criar vises e audies independentes de um sujeito percepti-vo e independentes das percepes visveis e audveis representadas. Em outras palavras, certos escritores, como por exemplo Henry Melville e T. E. Lawrence, so visionrios, diz Deleuze (1997), porque so atravessados e dominados por vises e audies, alm das percepes realistas, cujo poder se expressa na escrita. John Marks (Parr, 2006) sugere que Deleuze no percepto nos mostra que a conscincia uma sorte de membrana que est em contato com o mundo externo ao mesmo tempo que faz parte desse mundo. Nesse sentido o self no distinto do mundo externo, mas uma sorte de dobra no mundo, uma membrana entre o interior e o exte-rior capaz de capturar e transmitir foras afetivas. Estamos nesse sentido no limite do campo semitico, onde a semiologia torna-se pragmtica e onde os efeitos da performance substituem a representao do sentido. Estamos ento falando da realidade do que o texto faz e no do que repre-senta, no abrimos mo da representao, mas o que nos interessa o que acontece em funo da sua gesto.

    O Realismo indexical

    Tornou-se um lugar comum nas humanidades identifi car o signo indi-cial com o paradigma fotogrfi co com seu realismo subjacente, principal-mente em referncia aos estudos clssicos de Walter Benjamin, Andr Ba-zin, Susan Sontag e Roland Barthes sobre a histria da fotografi a e de suas caractersticas sgnicas. O ndice na semitica de Charles Sanders Peirce se caracteriza pela relao fsica e existencial entre objeto e signo; o signo a marca do objeto ou o efeito direto da presena do objeto, traz testemu-nho do objeto, mas menos a representao de algo e mais o efeito de um evento, como a fumaa do fogo, a cinza do cigarro, a sombra projetada ou a pegada na areia. No h semelhana entre objeto e signo, o ndice pelo contrrio aponta para, e sempre esta no limite da realidade no semitica. Na fotografi a o aspecto indicial intrnseco marca do raio de luz sobre a superfcie fotossensvel e d fotografi a sua natureza melanclica de testemunho do passado, da morte e do desaparecimento. No cinema neo-realista italiano Andr Bazin (1991) fala assim das imagens-fato (limage-

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    Realismo afetivo

    fait) como ndices documentrios dentro da imagem. Peirce defi ne o signo indexical, o ndice, como a marca deixada pelo contato do objeto sem de-pender da semelhana icnica nem da simbolizao interpretativa. Desse modo, esses fragmentos podem ainda guardar uma riqueza semntica que qualifi ca simbolicamente o ambiente, mas sua funo mais importan-te produzir o efeito do isso foi, central na defi nio do efeito do real de Roland Barthes como o desvanecimento da linguagem em proveito de uma certeza de realidade: a linguagem se volta, foge e desaparece, dei-xando a nu o que diz (2005b, p. 144). No primeiro ensaio sobre o efeito do real, com o ttulo homnimo, esse efeito era consequncia de uma certa superfl uidade na descrio realista de detalhes cujo nico signifi -cado era sua prpria existncia, a evidncia de sua realidade. Mais tarde, o efeito do real reaparece no livro A cmera clara na anlise do punctum fotogrfi co como o detalhe na imagem com poder de atrair afetivamente a ateno subjetiva do espectador, mas nas anotaes do penltimo curso, A preparao do romance I, Barthes faz uma outra analogia entre o noema da fotografi a e a suspenso proferida pelo haicai no efeito do Isso foi, uma individuao absoluta do momento, uma exaltao da contingncia pura num signo que no tem sentido e que opera uma suspenso da re-ferencialidade e, simultaneidade, da interpretabilidade do signo. essa suspenso que, em vez de apontar para a epifania como no haicai na fi co contempornea, traz o peso da evidncia, a realidade de certos signos tex-tuais sobre os quais no h nada a dizer alem do j dito. So signos que s demandam o reconhecimento de sua evidncia inegvel, no adianta interpretar e procurar um sentido profundo escondido, pois causam uma espcie de tilt (id., ibid.) na tentativa de apropriao pelo conhecimento. O que tm a mostrar no est fora deles mesmos, apenas referem-se a sua prpria existncia.

    Em livros como Capo pecado, de Ferrz, Treze, de Nelson de Oliveira, Angu de sangue, de Marcelino Freire e at Nove noites, de Bernardo Car-valho, percebemos a importncia da incluso de fotos que no servem apenas para ilustrar o texto, mas, ao contrrio, criam uma tenso que cor-ri os recursos narrativos convencionais e a relao equilibrada entre a histria e a imagem. Assim como a fotografi a funciona como ndice no-representativo de contextualidade, a incluso de nomes prprios, de cita-es, cartas, desenhos, textos de msicas e outras miscelneas criam uma espcie de Realismo textual que desequilibra a relao entre fi co e docu-mento. So todos elementos de uma indexao do relato, so ndices reais que projetam sua prpria sombra no texto e permitem a passagem de um Realismo descritivo para um indexical. Luiz Ruffato costuma contar que

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    escreveu Eles eram muitos cavalos a partir de caminhadas nas ruas de So Paulo durante as quais colecionava e anotava tudo o que encontrava textos diversos, publicidades, santinhos, cardpios, falas, anncios er-ticos, advertncias e imagens. Quando chegava em casa era s converter essa coleo de fragmentos e ndices em texto, mantendo a estrutura ca-tica e fragmentada e inconclusa dentro de uma escrita criativa que tende a ser uma precipitao do real, um cogulo insolvel de realidade dentro da representao simblica. O esforo de incluir a realidade na escrita no deve ser confundido com documentarismo, pelo contrrio, no se trata de levar a realidade literatura, seno, levar a poesia vida, reencant-la, comprometer a escrita ao desafi o do ndice e fazer dela um meio de inter-veno sobre aquilo que encena fi ccionalmente.

    Entre o ndice que traz para dentro da escrita a marca da realidade como evidncia e testemunho, e a performance que converte a recepo em interveno potica sobre o mundo, a procura da literatura dos efei-tos e afetos que marcam as intersees dos nosso corpos na realidade da qual todos somos parte.

    O Realismo performtico

    Como se expressa o anseio de tornar a literatura real? De criar efei-tos de realidade atravs da literatura e de fazer da experincia da leitura um encontro com a realidade na literatura contempornea? claro que a diferenciao simples entre um Realismo representativo, que denomina uma realidade exterior, e outro no representativo, que procura tornar-se real, no resolve o problema conceitual, pelo contrrio, parece complic-lo, uma vez que introduz uma questo ontolgica de realidade, que no deve esperar sua soluo no contexto da teoria da literatura. Muitos ale-gariam, e com certa razo, que essa noo de realidade na literatura defi ne algo prprio ao conceito literatura, assim como foi concebido na modernidade, ou seja, na defi nio da literatura como diferente de outras produes textuais pela sua potncia de interveno na realidade em que recebida. A literariedade na sua origem foi exatamente percebido no poder potico de tornar algo fi ctcio real para o leitor, criar a iluso de realidade, de maneira que visava a transformar a compreenso do mundo do leitor e, eventualmente, auxiliar na escolha das opes mais adequa-das de ao. Dentro de uma compreenso hermenutica da literatura, esse realismo pareceu essencial para a prpria defi nio do que liter-rio, e correramos o perigo de concluir que a ambio de tornar-se real aquilo que caracteriza qualquer obra literria. Ao mesmo tempo, o Realis-

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    Realismo afetivo

    mo que tentamos defi nir aqui, no parece preocupado com a experincia hermenutica e fenomenolgica da realidade, na identifi cao entre uma voz narrativa e uma posio existencial receptiva. Pelo contrrio, encon-tramos nessa prosa, eis a nossa hiptese, efeitos de realidade que se do por aspectos performticos da escrita literria no exclusivos comunica-o racional nem aos efeitos sobre uma conscincia receptiva, seno que atuem afetivamente agenciados pela expresso textual num nvel que s pode ser denominado de no hermenutico.

    Precisamos acentuar ento que estamos falando de um tipo de realis-mo que conjuga as ambies de ser referencial, sem necessariamente ser representativo, e de ser, simultaneamente, engajado, sem neces-sariamente subscrever nenhum programa crtico. A sugesto analisar formas literrias que, sem necessariamente abandonar a representao, utilizam-na como um elemento no agenciamento afetivo da complexa ma-quinaria textual dentro do que foi chamado de Realismo performtico (Gade; Jerslev, 2005). Depois do auge terico das dcadas de 1960 e 1970, a teoria da literatura passa hoje por uma reformulao crtica que chega a ame-aar sua autonomia e a clareza de seus contornos disciplinares. Muitos departamentos de literatura procuraram redefi nies de seus campos de trabalho incorporando-se na abrangncia da rea de literatura compara-da ou acrescentando a perspectiva da cultura na tentativa de encontrar seu lugar prprio nos estudos culturais em dilogo e concorrncia com disciplinas como histria, antropologia, comunicao, psicologia e fi loso-fi a. Um dos fatores dessa reformulao foi a mudana na compreenso do prprio objeto literrio que em vez de ser defi nido pela qualidade do literrio, tentado durante muito tempo, perdeu sua caracterstica in-trnseca, ganhando apenas defi nies exteriores pelo posicionamento no sistema cultural. Hoje, no s caiu em descrdito qualquer tentativa de defi nir a literariedade como tambm foi problematizada a exclusividade dos estudos literrios a favor de abordagens transdisciplinares. Uma ten-dncia predominante foi a de deslocar o centro das leituras dos contedos e das caractersticas de discurso e estilo para uma ateno cada vez mais acentuada no fazer pragmtico do texto, seus efeitos e sua performan-ce. Era reconhecido desde os trabalhos de Austin (1956) que a linguagem opera por via de atos de fala e que de imediato ganha um papel perfor-mativo, que, em princpio, foi analisado em sua dimenso mais conser-vadora e afi rmadora de instituies sociais. Para os estudos da literatura a discusso ainda demorou a ganhar relevncia, pois os fi lsofos da lin-guagem negavam a possibilidade de uma funo pragmtica dos atos de fala na fi co ou nas artes. Nas discusses seguintes, que contaram com

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    a participao de tericos distintos como Jacques Derrida, Judith Butler e Mieke Bal, entre outros, foi claro que era preciso, na aplicao da teoria da literatura, de uma distino entre performance e performatividade, uma caracterizando a funo conservadora e pragmtica dos atos de fala nas instituies da sociedade, e outra, a possibilidade por via da linguagem de transgredir as convenes e de criar outras realidades por via da fi c-o. Ainda que uma fi rme diferena conceitual no exista, os conceitos de performance, performtico e performatividade so aplicados nor-malmente sem diferenciao; o fazer da linguagem e da literatura precisa ser sempre enxergado nessa dupla perspectiva de afi rmao do que existe e de possibilidades criativas atravs da assertiva de outras realidades, um campo que, por sua relevncia, ainda merece toda a ateno possvel da teoria literria. Na antropologia literria de Wolfgang Iser (1996), que in-sistiu nessa dimenso humana da experincia literria, o performativo foi analisado como aspecto constitutivo da mimesis aristotlica, importante para noes de jogo e de encenao (staging). Iser observou a relevncia do conceito de performance na luz do fi m da representao, mas per-guntou, ao mesmo tempo, se esse termo descrevia apenas uma condio histrica, ou a falta de adequao do conceito (de representao) enquan-to explicao do que acontece nas artes e na literatura (Iser, 1996, p. 293). A insistncia de Iser foi enfatizar o aspecto performtico dos atos de fi c-cionalizao no conceito aristotlico de mimesis e no restringir a repre-sentao a uma mera cpia de uma realidade preexistente e emprica. Em vez de criar uma dicotomia entre representao e performance, Wolfgang Iser insistia em entender a mimesis como criao produtora de sua pr-pria referncia que , em ltima instncia, na perspectiva da antropologia literria, permitir o leitor um conhecimento melhor de si e da insero prpria no mundo.

    Consideraes fi nais

    Voltando ao ponto de partida, sublinhamos que os aspectos afetivos e performativos pertencem experincia esttica em geral e de maneira algu-ma so privilgios exclusivos da literatura realista. Trouxemos os conceitos para o debate sobre os novos realismos hoje para indicar que, mesmo na ausncia de uma nova linguagem literria capaz de unir a gerao contem-pornea em torno de um projeto novo de Realismo, percebemos em muitos escritores a urgncia em relacionar a literatura com os problemas sociais que assolaram a histria recente do Brasil. Temas subjacentes de excluso, desigualdade, misria, crime e violncia surgiram em foco ou como pano

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    Realismo afetivo

    de fundo para as narrativas das ltimas dcadas e foram longamente discu-tidos pela crtica universitria em pesquisas que defi niram o rumo de pro-jetos anteriores sobre a permanncia e a transformao da tradio realista da literatura brasileira. Procuramos defi nir e analisar as experincias liter-rias dedicadas criao de efeitos de realidade, uma espcie de efeitos de presena e no apenas o que H. U. Gumbrecht chamaria de um efeito de sentido (Gumbrecht, 2004). Isto , no investigamos na literatura apenas uma noo reconhecvel da realidade tratada, mas uma vivncia concreta atravs da literatura com uma potncia transformativa.

    Ao abordar o desafi o que a representao/apresentao da condio contempornea pe para que a literatura brasileira, se articula sua especi-fi cidade expressiva, aquilo que s a literatura faz, entre uma ampla gama de outras formas discursivas e outras mdias. De que maneira o contedo social e cultural amplia as expresses literrias procura de uma compre-enso do que s vezes resulta incompreensvel, por um lado, e de uma forma esttica adequada radicalidade da realidade intrnseca, por outro.

    O desafi o literrio se coloca, assim, em termos de uma esttica do afeto, em que entendemos o afeto como o surgimento de um estmulo imaginativo que liga a tica diretamente esttica. Se o Realismo histrico um Realismo representativo, que vincula a mimesis criao da imagem verossmil, ou ao efeito chocante ou sublime da sua ruptura, o realismo afe-tivo, por sua vez, se vincula criao de efeitos sensveis de realidade que, nas ltimas dcadas, alcanam extremos de concretude que levou tericos a falar de uma volta do real ou de paixo do real. Nas perspectivas de leitura aqui comentadas, o objetivo era entender as experincias perfor-mticas que procuram na obra a potncia afetiva de um evento e envolve o sujeito sensivelmente no desdobramento de sua realizao no mundo.

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    Recebido em agosto de 2011.Aprovado em outubro de 2011.

    resumo/abstract

    Realismo afetivo: evocar realismo alm da representaoKarl Erik SchllhammerO ensaio discute formas de expresso literria que procuram estabelecer vias de realismo sem propriamente dar continuidade s formas diversas de Realismo histrico e representativo que se desenvolvem nos sculos XIX e XX. Tratam-se de experincias literrias no limite da representao e que lanam mo de estratgias de performance e agenciamento procura de efeitos e afetos no seu processo in-tegral de realizao. Aqui o Realismo representativo questionado pelo compro-misso com a realidade social do objeto, por um lado, e, por outro, pela necessidade de encontrar estratgias criativas que se relacionem com a realidade ao valorizar a atividade literria e artstica. Assim, ambiciona-se desenvolver a discusso est-tica das estratgias de expresso de uma realidade que desafi a a representao e problematiza a criatividade literria e sua possibilidade de criar impactos afetivos e assim acentuar sua potncia transformativa na realidade brasileira contempornea.Palavras-chave: realismo afetivo, performance e performatividade literrias, rea-lismo no-representativo

  • Affective Realism: evoke realism beyond representationKarl Erik SchllhammerThis essay will discuss different kinds of literary expression in search for ways to realism without giving continuity of the historical realism that appears during the 19th and 20th century. The focus is on literary experiences on the edges of re-presentation aiming to develop strategies of performance and agency in search of effect and affects during its integral process of realization. Here the representative Realism is questioned by the commitment to the social reality of the object, on one hand, and, on the other, by the necessity to fi nd creative strategies in relation to re-ality through literary and artistic activity. The ambition is to establish an aesthetic discussion of the strategic expressions of a reality that defi es representation and questions the literary creativity and its possibility to create affective impacts and hereby accentuate its transforming potential in the contemporary Brazilian reality.Key words: affective realism, literary performance and performativity, nonre-presentational realism

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