rebelo da silva - ráusso por homizío
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OBRAS COMPLETAS DB LDIZ ADGUSTO REBELLO DA SILVA
Revistas c ntthodicaniente coordenadas por **#
I -
ROMANCES ENOYELLAS-I
RÁUSSO NI HOMIZIO
VOLUME ÚNICO
LISBOAcLmpreza da Historia de Portugal
Saciedade editora
LIVRARIA MODERNA II TYPOGRAPHJAH. Augusta, g5 1 46 X. Jvemt, 4t
1907
FEB 1 2 1968
ADVERTÊNCIA AO LEITOR
Fieis á nossa promessa e mais com o obje-
ctivo de prestarum bom serviço ás lettras
pátrias do que impulsionados pelapreoccu-
pação de interesses pecuniários, continuamos
a nossa publicação das obras completas dos
escriptores portuguezes mais illustres do sé-
culo xix, que nos tem sido permittido editar.
Depois de havermos publicado as obras do
brilhante prosador e poeta Almeida G-arrett,
e do poeta clássico e incomparável purista A.F. de Castilho, ó com intima satisfação quecomeçamos a publicar a grande obra litteraria
e philosophica de Luiz Augusto Ribello da
Silva, cujo talento multíplice se adaptava ao
estudo dos mais variados ramos dos conheci-
mentos humanos, sobresahindo sempre coma sua inconfundível individualidade. E' para
surprehender, a quem sabe o que custam, emtempo e estudo, os trabalhos litterarios dignos
6 Emprejd da Historia de Portugal
d'este nome, enumerar o grande numero de
obras publicadas por L. A. Rebello da Silva,
durante a sua curta existência de 49 annos,
quando sabemos que este homem publico an-
dou sompre envolvidonas luctas politicais edeimprensa, bem como nas apaixonadas discus-
sões parlamentares, gastando o melhordosseus
dias, a subir as escadas das secretarias dista-
do, para servir amigos, tendo, além d'isso, as
noites tomadas pelas prelecções da cathedra
ou dos saraus litterarios e reuniões politicas.
Comtudo a individualidade litteraria d'este
escriptor ó inconfundivel, em qualquer ma-nifestação do seu talento; como romancista,
historiador ou philosopho, encanta pela bel-
Jeza de colorido do seu opulento estylo.
Entendemos que deveriamos começar a edi-
ção d'estas obras, com uma singella e resumi-
da biographia de Rebello da Silva, coordena-
da dos escriptos d'aquelles homens de lettras
que mais privaram e mais justos foram para
com este escriptor.
Luiz Augusto Rebello da Silva, filho único
do desembargador Luiz António Rebello da
Silva e de D. Anna Joaquina de Lima Rebel-
lo da Silva, nasceu em Lisboa a 2 de abril
de 1822 e falleceu a 19 de setembro de 1871
pelas 9 horas da manhã, succumbindo á ruptu-
ra d'um aneurisma na cróssa da aorta, apoz
longos mezes de cruel soffrimento.
Foi desde a infância muito fraco e doente;
mas, revelando desde então a sua grande e
Obras completas de Rebello da Silva 7
precoce intelligencia. Era muito creança ain-
da, quando seus pães o entregaram aos cuida-
dos de dois tios frades do convento de Jesus,
Fr. José e Fr. Manuel Rebello da Silva, muito
douto na lingua latina e insigne arabista, pre-
gador © confessor da ordem á qual pertencia,
e ahi permaneceu ató que, depois daextincção
das ordens religiosas, voltou de novo á casa
paterna, mas profundamente influenciado pela
educação monaca) e com uma grande paixão
pelos estudos clássicos.
A sua organização muito fraca, que lhe per-
mittia apenas ir vivendo difficilmente sob umsevero regimen aconselhado pelo medico, nãolhe consentiu o dedicar-se ao trabalho comodesejava, continuando, todavia, os seus «stu-
dos clássicos e philosophicos com o professor
official João Baptista Corrêa de Magalhães.
Aos 16 annos, na Sociedade Escholastico
—
Philomatica, começou a revelar-se como ora-
dor, salientando-se pelo relevo rhetorico da
phrase.
Em fevereiro de 1840 fez os exames pre-
paratórios para a admissão á matricula na Es-
cola Polytechnica de Lisboa, sendo approvadoplenamente com três rubricas dos examina-
dores; mas, suppondo seu pae que emCoimbraaproveitaria melhor do que em Lisboa o tra-
balho consagrado ao estudo, mandou-o matri-
cular, em outubro de 1840, no primeiro anno
mathematico e philosophico da Universidade,
curso que frequentou com assiduidade até 4
de fevereiro de 1841, quando uma grave doen-
Emprega da Historia de Portugal
ca, que o teve ás portas da morte, o obrigou a
podir uma licença de 15 dias, que lhe foi con-
cedida pelo vice-reitor.
Prolongando-se a enfermidade, viu-se obri-
gado a perder o anno, e, regressando a Lisboa,
apoz uma longa convalescença, mal recupe-
rou uma saúde precária que o deixou em ex-
tremo grau de abatimento physico.
Abandonando por completo os estudos uni-
versitários, dedicou-se apaixonadamente aos
trabalhos litterarios, com os mais auspiciosos
resultados, passando os dias na bibliotheca
da Ajuda á sombra do grande mestre Alexan-
dre Herculano, velho amigo de seu pae,e com-panheiro nas luctas pela causa da liberdade.
N'aquellaepocha, em 1842, diz o sentimental
poeta—Bulhão Pato : ' «Rebello da Silva ti-
nha então vinte e dois annos. Estaturamediana
débil, lymphatico ; fronte espaçosa e aboba-
dada, na forma da testa de Shakespeare, se-
gundo representam o Eschylo inglez. Cabello
basto, excessivamente negro e fino. Olhos pre-
tos, faiscando como dois brilhantes negros
das mais finas aguas. Bôcca voltaireana. Re-
bello tinha o epigramma prompto, corrente,
agudissimo, mas a sua ironia não era nem di-
caz nem venenosa. Ainda na adolescência, o
corpo acurvava-se, como se estivesse na sene-
ctude.
«Tinha o vicio de Bocage: roía desesperada-
mente as unhas. A sua phisionomia, olhada
' Sob os cyprestes, por Bulhão Pato
Obras completas de Rebello da Silva q
perfunctoriamento, parooia vulgar; estudada
com attenção, ora a phisionomia do um ho-
niniii superior.
N'esta epocha oscroveu o Ráusso por homi-
romance histórico do reinado do I >. Sancho
II; em 1848 sahin a lume o Ódio velho não
rança, emocionante romance histórico funda-
do n'uma tradição do século xiii, o rapto do
Maria Paes Ribeira; em 1 852 publicou o notá-
vel romance Mocidade de D. João V; em 1863
escreveu, em Cintra, o primoroso romanco
histórico do reinado do D. Maria I—Lagrimas
e thesouros; em 1865 apparece á venda o ro-
mance histórico do tempo dos francezes— a
Casa dos phantasmas. As publicações posthu-
mas foram os romances
—
De noite todos os
gatos são pardos o os Contos e Lendas.
O romance Mocidade de D. João V teve
uma grande acceitaçâo do publico, e as apre-
ciações mais honrosas do mundo litterario; e,
passando as fronteiras, alguns dos seus mais
formosos capitulos foram publicados nos jor-
na es francezes.
A'cerca do romance— Lagrimas e thesouros
Camillo Castello Branco publicou um formo-
so estudo no Commercio do Porto, em 10 de
fevereiro de 1864, que depois veiu a ser pu-
blicado no livro Esboços de apreciações littera-
rias de que a Empreza da Historia de Portugal
fez ainda ha bem pouco tempo uma edição po-
pular. Para esse estudo enviamos o leitor.
A historia foi sempre, para Eebello daSil-
vn, desde os tempos da infância, o mais attra-
i o Emprefã da Historia de Portugal
hente ramo da litteratura, bem comoaphilo-Bophia foi a gymnastica poderosa que lhe des-
onvolveu e disciplinou as faculdades intel-
lectuaes, encaminhando-o a metaphysica pelos
paramos ideaes, por onde se expandia a sua
imaginação ardente e inspirada, condensan-
do-se em pensamentos da moral mais pura.
Os annos que passara na grandiosa bibliotheca
de Jesus, sugeito á disciplina monacal, não
foram jamais esquecidos; porque no meio
d'um mundo do livros, chronicas, historia sa-
grada o profana, habituára-se na meditação
dos livros a viver com as gerações extinctas, e,
quem sabe, se em visões, como phantasmas,
lhe appareciam a horas mortas, nas sombras
dos solitários claustros, aquelles grandes vul-
tos históricos que elle depois retratou nas pa-
ginas dos seus livros com a fidelidade de ins-
tantâneos photographicos. A contemplação
religiosa e os estudos theologicos levaram-
n'o a emprehender uma obra de largas pro-
porções os Fastos da Egreja, que, por circum-
stancias imprevistas, não poude continuar,
publicando só dois volumes em 1854, que
abrangem o primeiro periodo da epocha do
christianismo -- a vida de Jesus-Christo. Emlinguagem moderna, e sobre este assumpto,
não ha livro mais bello.
A introducção é como que um pórtico de
formosissima architectura manuelina; tem o
arrojo de pensamento e o soberbo estylo de
Volney nas suas descripções do oriente no
seu livro—La Ruine des Empires. Quadro mais
Obras completas de Rebello da Silva 1
1
bello da sociedade romana quando surgiu o
ehristianismo, não o conhecemos; tal 6 o pri-
mor da linguagem e o vigor das pinturas que
parecem mais surgir em uma tela do pincel
magico de Leonardo de Vinci que dos bicos
d'uma penna.
Descrevendo a vida de Christo, como theo-
logo e não como philosopho, Rebello da Silva
não podia ir beber os conhecimentos históri-
cos a outras fontes que não fossem os livros
sagrados, e, d'esse lendário, vasto e grandioso
scenario da Terra Santa a pintura que nos
faz é maravilhosa, attestada, a cada passo, a
verdade chorographica, pelos auetores mais
conceituados dos tempos antigos e moder-
nos.
Como olhando por um maravilhoso kalei-
doscopo percorremos a Syria e a Galiléa, como seu mysterioso mar ou lago de Genesareth,
rodeado d'um amphitheatro de altas monta-nhas cinzentas, escuras, excepto do lado do
meiodia, onde se estreita, para deixar o rio
sagrado dos Hebreus, o rio dos prophetas— o
Jordão, que serpeia pela planície pantanosa
de Esdraelon. Subimos ao monte Caramello,
onde desde então até agora têem habitacto, emhumilde convento, frades ascetas; pisamos os
arbustos odoríferos que o revestem, para de-
pois nos encaminharmos para a cidade sancta,
a Jerusalém da'Escriptura. Passamos a ravina
do Cédron, subimos ao monte das Oliveiras e
contemplamos o precipício de Gethsemani e
e o valíe de Josaphat, presenciamos todos os
12 Emprega da Historia de Portugal
acontecimentos da vida de Christo e assisti-
mos ao grande drama do Calvário.
Durante o período que decorro de 1860 a
1871 escreveu a Historia de Portugal nos sé-
culos xvn e xviii, comprehendendo cinco gros-
sos volumes, onde se doscrevem os successos
que determinaram mais de perto a decadência
da monarchia portugueza, desde a batalha de
Alcacer-Kibir até á revolução de 1640.
Como historiador, o ponto fraco de Rebello
da Silva era não profundar muito as maté-
rias, não as investigar ou comproval-as de
modo a deixar satisfeito o leitor exigente,
porque o tempo não lhe chegava para ler os
pergaminhos dos velhos archivos do paiz, nemtinha secretários, como é costume no estran-
geiro, que o ajudassem n'este trabalho; por
isso não poude ir além do estudo do que havia
impresso acerca d'aquella epocha o do muito
que ainda poude investigar de papeis inédi-
tos, na Bibliotheca da Ajuda e na Torre do
Tombo.A maior parte dos criticos apreciaram em
vida devidamente o trabalho de Luiz AugustoRebello da Silva, se bem que a alguns d'elles
inspirasse a penna, em sentido desfavorável,
a paixão politica e partidária. A sua obra
passou as fronteiras, e ahi cahiu sob a acção
da critica da generosa e douta litteratura
franceza.
O jornal francez Le Monde lllustré, de 17
d'agosto do 1861, apresenta nn sua ultima pa-
gina o retrato de Luiz Augusto Rebello da
Obras completas de Rebcllo da Silva i3
Silva, acompanhado cTunia longa e bem ela-
borada biographia.»
Começa por dizer d'este auetor «c^st un
des écrivains dont les Portugais s'enorgueil-
lissent ajuste titre.»
Apreciando a Historia de Portugal, diz: «Le
premier volume vient de paraítre à Lisbon-
ne. On le traduit maintenant en espagnol et
en françai.
«Ce livre, dont il est question du jeune roi
Dom Sebastien et de ses malheurs légendai-
res, de Charles V, de Philippe II, du célebre
duc d'Albe et de tant d'autres grandes figu-
res historiques, est plus qu'un travail exclu-
sivement portugais ; c'est un ouvrage euro-
péen et par le sujet et par Télévation des
idées.»
Em janeiro de 1862, a Rivista Italiana dl
seienze, lettere ed arti, publicada em Torino,
em um formoso artigo, o sr. Vegezzi-Rus-
calla faz um resumido estudo da litteratura
portugueza tecendo o mais rasgado elogio á
obra litteraria de Eebello da Silva.
A Historia de Portugal mereceu especial
sympathia aos escriptores francezes que se
oceuparam d'esse trabalho em difíerentes jor-
naes e por dififerentes epochas, sempre comuma critica agradável para o auetor e honro-
sa para o paiz que lhe deu o ser. A enumera-
ção d'esses jornaes é a seguinte.
Journal des Débats, Paris, samedi 28 mai
1861, La Presse du 18 Juillet 1864, Le Tempsdu 11 Aôut 1864, La Patrie, du 30 Aôut
14 Emprefa da Historia de Portugal
1864, Le Moniteur universél du l er Septeni-
bre 1864. Le Temps, Paris 27 Septembre 1864,
na secção letras, sciencias, e bollas artes, pu-
blica a noticia
:
«M. Victor Hugo a adressó la letre suivan-
te á Thistorien portugais, M. Rebello da Sil-
va, auteur du dernier ouvrage (Invasion et
occupation du royaume de Portugal en 1580)
dont nous avons rendu compte dans notre
numero du 11 aôut dernier:
Hauteville — House, 11 aôut 1864.
Monsieur
J'ai lu avec un vif interêt le remarquable
ouvrage que vous avez bien voulu m'envoyer.
Le talent de l'historien est à la hauteur du su-
jet.
Vous êtes inspire par un noble sentiment
patriotique, et j1
applaudis à vôtre ceuvre.
Le Portugal est une illustre nation. II a
jadis compté parmi les peuples puissants, et
il compte aujourd'hui parmi les peuples li-
bres. Cette double gloire le place três haut
dans l'histoire de la civilisation.
Je vous felicite, monsieur, de votre tra-
vail approfondi et lumineux, et je vous offre
Tassurance de ma considération três distin-
gueé.
Victor Hugo,
Obras completas de Rebello da Silva 1
5
Em 1865, a Bevue Contemporaine (xiv
Année, Deuxième série), apresenta á estampa
um desenvolvido estudo de um conhecido es-
criptor brazileiro acerca da litteratura por-
tugueza, no qual, sendo severo na critica e
nada benévolo para com Rebello da Silva,
como jornalista, cita com admiração algumas
das suas obras e apresenta, como specimen
do estylista primoroso, uma pagina da sua
Historia de Portugal— % batalha de Alcacer-
Kibir.
O jornal francoz L 'International, vendido
de manhã em Paris e á noite em Londres, oc-
cupa-8e n'uma serie de números dos estudos
históricos de Rebello da Silva em 9, 10, 12
e 14 de Julho de 1866.
Um dos poetas e litteratos mais distinctos
do século passado, António Xavier Rodrigues
Cordeiro, em uma biographia no Almanach
de Lembranças de 1874, aprecia em breves pa-
lavras Rebello da Silva, mas com critica sin-
cera e justa: — «Como historiador, Rebello
da Silva pôde não profundar muito as maté-
rias, não investigal-as ou comproval-as, de
modo que deixe satisfeito o leitor exigente.
Em compensação, seduz expondo ; os seus re-
tratos são acabados, é imparcial na aprecia-
ção dos factos, avalia os acontecimentos comdesassombrada critica, e o seu estylo, sempre
fluente, sempre accommodado ás situações, é
amplo, tem movimento e brilho. Pena foi que
tão prematura morte lhe não deixasse levar
ao fim a historia dos séculos xvn e xvm,
16 Emprega da Historia de Portugal
porque não seria um dos menos perduráveis
monumentos da sua incontestável gloria.»
Para concluir estas reminiscências littera-
rarias, permitta-nos o leitor que façamos a
transcripção d'uma verdadeira jóia litteraria
da penna do brilhante escriptor, e grande co-
ração d'homem de bem — Manuel Pinheiro
Chagas, contemporâneo de Rebello da Silva,
estampada no Diário lllustraão de 18 de Se-
tembro de 1872.
«Foi n'este mez que o perdemos. Em se-
tembro de 1871 desappareceu do mundo dos
vivos aquelle grande vulto.
«Estavam então mais accesas do que nuncaas paixões politicas; mas emmudeceram jun-
to da canxpa entre-aberta do grande escriptor,
e do orador eloquente. Enterrou-se, uma tar-
de em que já sopravam tristemente na ramados cyprestes, as primeiras brizas do outomno.O sol, frouxo e tibio, illuminava com os seus
raios descorados a lousa de Rebello. Sobre a
terra, remechida de fresco, vimos erguer-se
o vulto commovido de Bulhão Pato. Com a
voz cheia de lagrimas, com a dôr a arrancar-
lhe do coração torrentes de eloquência, o
poeta mavioso proferiu o adeus supremoáquelle que franqueava n'esse momento os
umbraes da immortalidade.
«Quando nos vibraram no ouvido os últimos
echos da palavra prestigiosa de Bulhão Pato,
quando sentimos depois o surdo estrondo da
terra que desaba sobre o caixão, afastámo-
nos com passos vagarosos ; depois a turba
Obras completas de Rebello da Silva 17
correu para a cidade a tratar do» seus inte-
resses, dos seus prazeres, das suas occupações
;
o a viração da tarde, sussurrando nas lyras
do cyprestal, começou a psalmear o seu eter-
no Requiem sobre a lousa de Rebello da Sil-
va.
«Pois deixava elle na litteratura portugue-
sa um vácuo difficil de preencher. Era umd'estes vultos possantes que espantam pela
diversidade das aptidões, e pela tacilidade dotrabalho. Era uma intelligencia completa,
uma personalidade vigorosa. A abundância
era o característico do seu talento. Semeavacom mãos pródigas as pérolas da sua elo-
quência ; corria-lhe tão fácil a palavra comoa penna. Illuminava-se com o mesmo esplen-
dor o discurso e o artigo. Manavam da mes-ma fonte e da mesma inspiração. Na tribu-
na, ou no gabinete ou na cathedra, nunca lhe
faltou nem a palavra colorida, nem o período
elegante. A idéa brotava-lhe, fundida de umsó jacto no bronze no seu estylo. Se tem, ás
vezes, imperfeições, é porque é a torrente
que transborda, e escapa ao molde severo dopensamento. Pode peccar por superabundân-cia, nunca por defíiciencia. Só ás vezes o pre-
judicava a demasiada opulência da seiva. Emtorno da sua obra, enroscavam-se, como nas
florestas virgens da America, em torno de al-
guma arvore gigante, os festões variegados
das flores.
«As telas dos seus romances podem ter, ás
vezes, o colorido ardentíssimo, mas nunca1— ráusso 2
18 Emprega da Historia de Portugal
apresentam a pallidez fria e insípida dos
quadros tímidos, que è o cunho da mediocri-
dade. Sente-se alli uma exuberância de sei-
va, de luz, de vida, de alegria e de paixão,
que nos arrebata. A sua phantasia ó inexhau-
rivel ; figuras graciosas, ou burlescas, ou ma-jestáticas, ou severas, ou elegantes, brotam-
lhe do cérebro, e vem fascinar o leitor coma sua individualidade perfeitamente definida,
cheia de luz e de movimento.«Historiador, conserva nos seus livros as
faculdades do romancista ; como no romance,
inventa, resuscita na historia.
«Pode desdenhar o segredo das instituições
e a investigação laboriosa, mas ninguém tem,
mais do que elle, o magico dom de animar
as figuras de pedra, que dormem sobre as
lousas das cathedraes, de lhes insufílar a vi-
da, e de as fazer passar por deante do leitor,
apaixonadas, frementes, sombrias ou radio-
sas. Desenrola-se de novo deante de nós o
apagado panorama das batalhas, das conspi-
rações, dos assédios, das assemblóas popu-lares.
«Assistimos á tragedia de Alcacer-Kibir,
vemos ennovelarem-se os esquadrões árabes
e volteiarem com gritos confusos em torno
das hostes portuguezas, assistimos á carga
impetuosa do troço dos fidalgos, seguimos
com os olhos a figura esbelta do moço rei, que
se embebe no seio do turbilhão inimigo, e
que lá deixa a vida, a coroa, a gloria, a in-
dependência do reino, e a própria individua-
Obras completas de Rebello da Silva 1 o
lidade que se desfaz em névoa mysteriosa.
«Presenciamos a revolução de 1 de dezem-
bro ; ouvimos darem nove horas nas torres
da capital, sentimos nos corredores do paço
os temerários conspiradores, ouvimos os gri-
tos de alegria, a saudação do povo, o repicar
dos sinos, o troar dos canhões, todos os ru-
mores confusos da cidade que desperta que-
brando os grilhões da monarchia.
«E' que a imaginação era talvez a faculdade
predominante de Rebello da Silva, e a ima-
ginação è, em que póze a alguns criticos, umdos elementos do génio do historiador. Comoconseguirá comprehender o espirito das epo-
chas, se não conseguir recompôl-as na phanta-
sia ? Como ha de penetrar na consciência dos
grandes vultos, se não souber resuscital-os
para lhes inquirir face a face o segredo das
suas paixões e dos seus actos ? Que outra fada
que não seja a imaginação, discretamente
guiada pelo estudo consciencioso, o ha-de
fazer contemporâneo dos séculos que decor-
reram ? Que hippogripho o ha-de transpor-
tar ao seio das cidades extinctas ? Como des-
creverá os guerreiros e os prélios, os navega-
dores e as tormentas, os conspiradores e as
conjurações, os reis e as cortes, os agitadores
e as turbas, se todo esse panorama confuso
não vier reflectir-se-lhe na camará escura
da phantasia ?
«Rebello da Silva era sobretudo um mestre
do estylo, e não se entenda por isto que eu
lhe quero dar gloria vã de ser cinzelador de
2o Emprega da Historia de Portugal
inúteis arabescos. Possuia o estylo, porque
possuía a eloquência. Tinha sempre a expres-
são colorida e harmoniosa, a palavra doira-
da, o periodo elegante, a phrase correcta, o
molde gracioso ao serviço da idéa elevada e
grandiosa.
«Nos lábios d'aquelle homem a idéa des-
abrochava em flores, como nos lábios de ou-
tros que nós conhecemos pôde desabrochar
em cardos. O seu pensamento formulava-se
em melodias; ha muitos cujos pensamentos
se formulam em algazarra. Tinha á sua dis-
posição um maravilhoso instrumento. Erauma lyra a sua palavra
;quando transmittia
aos outros o pensamento que lhe refervia nointimo d'alma, traduzia-o em musicas di-
vinas.
«Foi a voz, serena e grandiosa do parlamen-
to portuguez, que teve em José Estevam a
voz dominadora e apaixonada. José Estevamera o tribuno moderno arrastando as turbas,
subjugando os espiritos, ás vezes trivial co-
mo 0'Connell, subindo ás vezes além de Mi-
rabeau em raptos inexcediveis ; Rebello da
Silva era orador atheniense, captivando a umtempo o ouvido e o espirito, tendo na ironia
o atticismo elegante mas aliado, que se for-
mulava também n'aquelle espirito, entre
bondoso e malicioso, que lhe desfranzia os
lábios e lhe illuminava a physionomia. José
Estevam era a torrente e a vaga, Rebello da
Silva foi o rio que desliza, espelhando o céu,
as estrellas, o luar, as verduras das margens,
Obras completas de Rebello da Silva i\
e as vólas brancas dos barcos ; mas o rio tam-
bém tem as suas procellas, e o sr. bispo de
Vizou reconheceu-o amargamente. '
«O historiador eloquente da revolução do
1640 presentia os novos perigos que nos cer-
cam, e a sua vozjáquasiextincta, ainda soube
despertar os echos adormecidos com as ma-gicas palavras, cujo segredo elle tinha; ainda
soube fazer correr um frémito de enthusias-
mo pelas veias dos que o escutavam.
«Foi essa, para assim dizermos, a manifes-
tação ultima da sua eloquência. Partiram-se
as cordas do melodioso instrumento, e a alma,
cujas inspirações traduzia, não tardou muito
a desprender-se do invólucro terreno.
«Parece que o estou ouvindo agora, quandoelle em sua casa, na sua bibliotheca, me fez a
honra de me lêr o prologo de um romanceque se conserva inédito. Já não vinha longe a
morte ; na fronte pallida já lhe corriam nuvens
de melancholia; mas nos olhos fulgurava-lhe
de vez em quando um relâmpago de joviali-
dade, desfranzia-lhe os lábios aquelle sorriso
que dava tão amável expressão ao seu rosto
peninsular. O prologo falava em Garrett. Re-
bello da Silva phantasiava uma espécie de
Dialogo dos mortos, e pintava-se a si mesmopenetrando, como um heroe de Virgilio ouHomero, nas regiões sombrias, e pedindo ao
auctor do Fr. Luiz de Souza alguns conselhos
1 Alluaão ao celebre discurso proferido na Camará
dos Pares, do qual damos adeante um trecho.
22 Emprega da Historia de Portugal
litterarios. Mal suppunha ou que bem cedo
olle iria encontrar-se com o grande poeta cuja
voz imitava, ao lêr-me, com grande animaçãoe relevo, as graciosas paginas do seu pro-
logo.
«No seu livro
—
Sob os cyprestes, consagra
Bulhão Pato algum capitulo ao eminente es-
criptor, de quem foi intimo amigo, e que tanto
apreciava o seu mimoso talento de poeta, e a
sua eloquência espontânea. Verá então o pu-blico Rebello da Silva na intimidade, queelle
alegrava com a sua veia inexhaurivel, e emque se revelava a bondade nativa do seu ca-
racter. Transluzem os dotes da sua alma na
sua obra sã, luminosa e honesta. Nos seus ro-
mances ha o riso franco e o sentimento deli-
cado, o pensamento grandioso, o dizer nobre
e casto. Rebello da Silva tinha a phantazia de
um pintor, e a alma de um poeta. O seu estylo
pittoresco sabia temperar com as sombras do
sentimento a luz das suas grandes telas. São
por isso algumas das suas pequenas narrativas
uns primores.
«Rebello da Silva morreu no principio do
outomno; devia morrer então, porque o seu
talento era todo primavera; brotavam as flores
nô seu estylo, como as boninas nas campinas
verdes; nos seus livros como que se espelhava
a luz serena do firmamento azul;quando fa-
lava, nos seus lábios melodiosos cantavam os
rouxinoes de maio».
Demoremo-nos agora um pouco a conside-
Obras completas Je Rebello da Silva 23
rar Robello da Silva, como orador, uma daí
suas proeminentes feiçftes.
Aos 1G annos, em 1838, frequentava a So-ciedade Escholastico-Philomatica, na rua daAtalaya, onde se reuniam os estudiosos u'on-
tão para se ontregarem a apaixonadas discus-
sões politicas e littorarias. Foi ahi que come-çou a revelar os seus dotes oratórios.
Havia n'aquelle tempo em Lisboa uma ag-
gremiação d'homens notáveis e importantes
das differentes classes sociaes, que se denomi-nava a Associação da Liga; discutiam-se os
seus estatutos— ' «Defendia Rebello da Silva,
a sua opinião, que tinha sido contestada. Na sa-
la tudo guardava silencio. De repente todos os
olhos viram erguer-se um homem da sua ca-
deira, approximar-se insensivelmente do ora-
dor como se fora uma sombra, ecom os lábios
meio abertos, e as faces pálidas, estacar dean-
te d^lle, correndo-lhe dos olhos dois fios de
lagrimas.
«Não assombra que Rebello da Silva tivesse
o poder d'arrastar a tal commoção pelo en-
thusiasmo um homem, que era sou pae,
porque era o pae também eloquente, tam-
bém artista da palavra, quando elle, falando,
se insinuava no animo dos mais frios, ten-
do-os sempre suspensos do seu verbo ins-
pirado».
1 Rodrigues Cordeiro. Âlmanach de Lembranças de
1814.
24 Emprega da Historia de Portugal
Diz Bulhão Pato— ' «quando se erguia para
falar todo elle era outro.
«O semblante illuminava-se-lhe com o ful-
gor da verdadeira inspiração. Os olhos chis-
pavam.
«Não podia esconder o tremor dos dedos nos
primeiros períodos do discurso; todavia a voz
era firme, voz redonda, sonora, não demasiado
extensa, nem com grande diversidade de notas,
como Josó Estevam, mas insinuantíssima.»
Entrou para a camará dos deputados em1848, mas a sua grande estreia foi nos pri-
meiros dias da regeneração. Ouçamos ainda
Bulhão Pato: — «O poeta das Folhas cahi-
das era ministro dos estrangeiros; Rebello
da Silva era opposição. Levantou-se para ata-
car o governo ; mas, parando deante do mestre,
que estava sentado nobanco dos ministros, sau-
dou primeiro o grande orador e grande poeta.
prologo d'esse discurso ó um dos peda-
ços mais elevados, mais brilhantes, mais bel-
los da eloquência portugueza ! Infelizmente
não restam d'elle mais do que umas notas mu-tiladas no Diário do Governo.
Em 1869 estava na camará dos pares, onde
proferiu talvez os seus mais enérgicos e ins-
pirados discursos politicos.
Na sessão de 30 de julho, Rebello da Silva
fez um longo e vehementissimo discurso com-
batendo o governo presidido pelo sr. bispo
de Vizeu.
1 Sob os cypreetes 1873.
Obras completas de Rebello da Silva 2 5
A impressão foi grande na camará : poucas
vozes a eloquência do Rebello da Silva tinha
assumido aquelle vigor tribunicio, e princi-
palmente no foro aristocrático, onde os mais
desassombrados espíritos costumam sacriii-
car ás fornias convencionaes.
Quasi no íim d'essa mesma sessão, a propó-
sito do uma carta em que o famoso orador,
Emilio Castelar, advogava abertamente as
suas idéas sobro a união ibérica, Rebello da
Silva lovantou-se e de improviso fez então
outro discurso superior ao primeiro.
Bulhão Pato, termina assim a sua aprecia-
ção acerca de Rebello da Silva, como orador:
«Rebello da Silva, como Emilio Castelar,
quando se tornava mais colorido e imponen-
te, era quando entrava no campo da historia.
Essas luctas parlamentares violentissimas,
porque só na sessão de 30 de julho de 1869
falou por duas vezes, fazendo dois longos
discursos, contribuiram muito para accelerar
a maldita enfermidade que, passados dois an-
nos, o devia levar á sepultura.
«Com José Estevam e Rebello da Silva per-
deu-se o padrão da verdadeira eloquência emPortugal, e Deus sabe quando se tornará a
encontrar!»
Referindo-se ao fallecimento cfeste escri-
ptor, o Diário de Noticias de 20 do setembro
de 1871 escrevia
:
«Nas lides da tribuna, onde o seu talento
mais brilhantemente esplendia, correndo-lhe
a palavra suavemente, sahindo-lhe viva e bem
26 Emprega da Historia de Portugal
expressa a idéa, imaginoso, correcto, decoro-
so, ás vezes, vehemente, e sempre tocado pela
chamma do gonio, quando a paixão, o capri-
cho ou o amor da justiça offondida lhe agui-
Ihoava o esinrito e lhe exaltava a alma, con-
quistou uiu dos postos mais avançados entre
os campeões da palavra.»
Toda a imprensa do paiz, sem distincção
de coros politicas, apreciou, similhantemonte
Rebello da Silva.
1 >ove-so á generosa iniciativa do D. Pedro V,de honrada memoria, a creação do Curso Su-
perior do Lettras. Em 1859 foi convidado
Rebello da Silva a reger a Cadeira de Histo-
ria Pátria e Universal. Ouçamos Bulhão Pato
:
«Na epocha em que fui passar uma larga
temporada com Rebello da Silva, na sua casa
do Valle de Santarém, preparava-se elle para
abrir o Curso Superior de Lettras. Era umatentativa audaz em Portugal, onde os estudos
d'essa ordem de cousas andavam tão descu-
rados.
«Rebello, na vastidão e flexibilidade do seu
engenho, ao passo que tractava de trabalhos
de outro género, como membro do conselho
de instrucção publica, gisava as primeiras li-
ções do curso, procurando nos livros mais no-
táveis o ouro da boa critica e da alta herme-
nêutica.
«Quando appareceu pela primeira vez na
Cathedra, o salão transbordava com quanto
havia de notável em Lisboa.
Obras completas de Rebello da Silva 27
«Todos aocudiam a ouvir aquello admirável
orador.
«A fama quo havia alcançado na tribuna
politica não a perdeu n'aquelle foro de
lettras.
«A eloquência do Rebello, nas lições do
curso, tinha grande analogia com a de Emí-lio Castelar nas conferencias do Atheneu.
Imaginação viva, colorido forte, grandes
quadros, scenas deslumbrantes.
«O príncipe, que fundara aquelle curso, ia
assistir ás conferencias.
«A physionomia serena e formosa ora se
cobria de nuvens, segundo a historia, nos
seus variados lances, apresentava os dias ri-
dentes das grandes idéas, que tem sido a
Paschoa florente da humanidade, ou os mo-mentos tremendos em que os povos, oppres-
sos durante séculos pelo braço da tyrannia,
sacodem as cadeias, e no furor da sua justa
vindicta baptisam com o sangue o advento
dos grandes princípios.
«Rebello era imparcial, desassombrado e
largo na apreciação das paginas da historia,
que ia illuminando de improviso.
«Conheço hoje por ahi alguns republicanos,
muito democratas e sociaes, que não teriam
alma de dizer, deante d'uma testa coroada,
metade do que Rebello da Silva disse muita
vez, e com a maior anchura, na presença do
sr. D. Pedro V.
«Não escreveu nenhuma das suas conferen-
cias. Promettia-me sempre que no dia se-
28 Emprega da Historia de Portugal
guinte reconstruiria o discurso, mas nuncao fazia.
«Foi p«na
!
«As licções eram delineadas, ás vezes, á ul-
tima hora.
«A mais inspirada foi a descripção do mar-tyrio de Felicidade Perpetua, no Circo
llomano.
«Esplondissimo quadro ! Arrebatou a quan-
tos o ouviram, e estavam presentes muitas e
das primeiras intelligencias de Portugal.
«Aquella grande actividade d« trabalho, as
luctas da imprensa, e principalmente da tri-
buna, não eram para a sua compleição fraca.
Muitas vezes, depois d'uma conversação ani-
mada, offegava cansado, e, levando a mão ao
coração, dizia com um sorriso melancholico :
— «A minha morte está aqui.»
«Isto passava como uma nuvem fugitiva.
Acudia logo o bom humor, e a phantasia
começava a debuxar na tela do futuro os
painéis mais risonhos.»
Como académico, critico litterario e phi"
lologo, escreveu o Elogio histórico de Sua Ma-gestade El-Rei o Sr. D. Pedro V, proferido nasessão solemne da Academia, de 26 d'abril
de 1863. No mesmo anno publica (em hespa-
nhol e portuguez), a Memoria sobre a vida po-
litica e litteraria de D. Francisco Martinez de
la Rosa, um dos mais illustres homens de
Hespanha— poeta, historiador e publicista.
Durante 20 annos, nos periódicos littera-
Obras completas de Rebello da Silva 29
rios e políticos de maior nomeada, escreveu
innumeros artigos de critica litteraria, publi-
cando um formoso trabalho — a Memoriabiographico-litteraria acerca de Manuel MariaBarbosa de Bocage, para illustrar a nova edi-
ção das poesias d'este auctor
Pela mesma epocha, uns curiosos estudos
sobre a Arcádia, e três dos seus membrosmais distinctos — Pedro António Corrêa
Garção, Domingos dos Reis Quita e AntónioDiniz da Cruz e Silva.
Rodrigues Cordeiro, acerca d'estes estudos
diz: — «Não sendo poeta, ninguém melhor do
que elle iulgava as escholas, ou diíFeren-
çava em poesia o bom do mau, para lhe no-
tar bellezas ou defeitos, e dar a cada auctor
o quinhão que lhe cabe, avaliando-os em toda
a altura da critica.»
Depois de haver publicado os seus primei-
ros trabalhos acerca da historia de Portu-
gal, dedicou-se aos estudos económicos e em1868 publica a 1.* parte da Memoria sobre a
população e agricultura de Portugal, n'um vo-
lumi de 385 paginas em 8.° grande, que des-
creve a vida económica da sociedade portu-
gueza desde 1097 até 1640, trabalho de alto
valor pelo grande numero de factos que rela-
ta, com respeito, ao modo de viver da socie-
dade portugueza, á organização da proprie-
dade, ónus que a sobrecarregava, circumstan-
cias que prejudicavam a agricultura, contra-
riando-lhe o desenvolvimento, preço dos gé-
neros agricolas, sua evolução, etc.
3o Emprega da Historia de Portugal
Este livro deve ser considerado como umannexo á Historia de Portugal, por elle escri-
pta, porque completa uma lacuna— no quediz respeito á vida económica dos povos.
Poucos annos depois, publica os Compen-pendios de Economia Politica, Industrial e Ru-ral, em três volumes para uso das escolas po-
pulares creadas pela lei de 7 de junho de1866 O Compendio de Economia Rural é notá-
vel pelo methodo, clareza e laconismo, sendo
curiosas as referencias acerca do paiz, con-
cluindo por um trabalho estatistico em formade notas ao texto, que foi o mais valioso
e completo até então publicado no paiz.
A politica havia seduzido Rebello da Sil-
va, arrastando-o ás pugnas da imprensa, e
nas paginas dos jornaes A Carta, A Discus-
são, A Pátria, A imprensa e Lei, e outros pe-
riódicos, estampou vários artigos de pole-
mica, mas resentindo-se dos desmandos das
paixões d'aquella epocha, o que lhe creou ir-
reconciliáveis inimigos.
Em 1857 foi proprietário da typographia
Universal com Ribeiro de Sá, dirigindo-a
Thomaz Quintino Antunes, um dos fundado-
res do Diário de Noticias.
Depois de ter batalhado longos annos na
politica, seguindo com inconstância um ououtro partido, náolhe permittindo o seu tem-
peramento a sujeição da disciplina, só pouco
tempo antes de morrer, è que foi chamadoaos Conselhos da coroa, exercendo com gran-
Obras completas de Rebello da Silva 3i
de distincção o logar de ministro da mari-
nha, desde 11 d'agosto de 1869 até 20 de maio
de 1870. Em tão curto espaço de tempo ne-
nhum ministro produziu tanto nem melhor.
Na gerência da pasta da marinha, revelou
as suas intenções rectas, aturado estudo,
provada competência e prestou relevantes
serviços á pátria.
Os sens relatórios são um modelo no seu
género, e, durante pouco mais de oito mezes
de trabalho, com a saúde exhausta e pairando
em volta d'ello as sombras da morto, a sua
obra resume-se no seguinte
:
Estabeleceu d'um modo justo e preciso a
duração que devem ter as diversas estações
navaes, segundo a salubridade dos climas e
as circumstancias locaes; simplificou a forma
do expediente dos serviços do ministério da
marinha e ultramar, regulando as attribuições
dos chefes e impondo a cada um a responsa-
bilidade que lhe pertence ; aceudiu ás neces-
sidades do serviço da armada chamando 557
recrutas, fixando o numero dos que deveriam
ser fornecidos por cada um dos departamen-
tos e districtos marítimos do reino; creou o
commando geral da armada, dando-lhe mais
modestas attribuições do que tinha a antiga
majoria general, separando os assumptos dis-
ciplinares e do pessoal, dos negócios do ma-terial e das fabricas da marinha, como se ha-
via experimentalmente verificado ser indis-
pensável, e em harmonia com o systema com-pleto das reformas da secretaria de estado, do
32 Emprega da Historia de Portugal
arsenal e das intendências de marinha, que
também decretou, realizando em toda* grande
economia, e conseguindo fazer profundos me-
lhoramentos; instituiu o conselho de admi-
nistração de marinha de maneira tão profícua
para a fazenda publica, que se notaram logo,
desde a sua execução, notáveis vantagens al-
cançadas nos preços dos forneoimentos e qua-
lidades dos géneros, a ponto de que baixou de
preço a ração de bordo tendo melhorado emqualidade.
Reorganizou os corpos dos officiaes de
fazenda da armada e dos machinistas navaes;
harmonizou convenientemente, por meio de
varias modificações, os serviços de saúde na-
val e do ultramar, bem como os que se referem
á admissão, promoção, e vencimento dos aspi-
rantes a facultativos; melhorou a lei e regu-
] amento geral das promoções na armada; de-
cretou os regulamentos necessários para plena
o cabal execução de todas as reformas que
effectuou; providenciou acerca das pharma-
cias da índia; isemptou do pagamento de
quaesquer direitos os compradores de navios
estrangeiros, para serem embandeirados emportuguezes, protegendo assim a navegação
e o commercio nacionaes; decretou novas e
melhores pautas para os pagamentos de di-
reitos nas alfandegas de Moçambique, da ín-
dia, Ambriz, Timor, S. Thomé e Principe, de-
clarando portos-francos os de Bissau e Cacheu,
na Guiné; fez uma nova divisão judicial das
comarcas do Ultramar e regulou as trangfe-
Obras completas de Rebello da Silva 33
rencias e aposentações dos juizes de direito,
e dos agentes do ministério publico; mandouapplicar o código civil ás províncias ultra-
marinas, com as modificações exigidas pelas
circumstancias locaes de cada uma d'ellas;
regulou a forma dos concursos para os magis-
trados do minitierio publico e judiciaes do
ultramar; reformou a administração publica;
organizou systematicamente a administração
do ensino; reorganizou os serviços militares
e de obras publicas; ordenou o estabelecimen-
to de colónias penaes no ultramar; regulou
os termos e condições em que se deve conce-
der a pesquiza e a lavra de minas no ultra-
mar, substituiu, por outros, alguns impostos,
com vantagem da fazenda e dos povos; regu-
lou os vencimentos fixos e os emolumentos
dos íunecionarios das diversas categorias, etc.
O leitor consciencioso que diga se taes re-
formas não valem mais alguma cousa do que
portarias de simples expediente e decretos de
nomeações de afilhados e de protegidos para
logares pingues e rendosos, referendados por
tantos ministros, que
—
serviram com zelo, in-
telligencia e a contento do monarcha
!
Este dedicado servidor do Estado, quando
já em lueta com a morte, foi expulso dos ban-
cos do poder por um revolucionário sem es-
crúpulos; lavraram-lhe o decreto de demis-
são,—que o rei (antigo ofíicial de marinha,
assignou), negando-lhe o testemunho official
de ter servido a contento de quem represen-
tava o pais
!
I «— RÁUSSO 3
-V Emprega da Historia de Portugal
Extranha e pouco vulgar mesquinhez de
caracter em homens que cingem a espada e a
proverbial ingratidão dos reis para quem os
serve leal e dedicadamente.
No dia seguinte ao do enterro d'estehomem,que durante toda a vida trabalhou a favor doprestigio da realeza, escrevia ojornal—o Com-mercio do Porto—«Nem El-Bei D. Luiz, nemo senhor D. Fernando foram representados nofuneral.*
«Decerto, que essa falta que não passou des-
percebida, se explicará por S. S. M. M. não
terem tido noticia do triste suecesso, por se
acharem fora de Lisboa».
Para concluirmos, digamos alguma cousa—do homem no recesso da família.
Rebello da Silva sabia ser amigo dos seus
amigos. Por muitos annos, aos domingos, (diz
Rodrigues Cordeiro), vel-os em volta de si á
mêza do jantar—jantar á portuguesa, era pra-
zer que não trocava facilmente por outros.
— « ' Todas as quartas feiras Rebello da
Silva recebia a jantar os seus amigos Íntimos,
A. Herculano, Rodrigues Cordeiro, Lopes de
Mendonça, Lima Felner, F. Maria Bordallo,
e eu.
«Até ao café appareciam ordinariamente
Oliveira Marreca, Latino Coelho, AndradeCorvo.
«A meza franca, excellente e abundantíssi-
ma.* Sob os Cyprestes, Bulhão Pato.
Obras completas de Rebello da Silva 35
«O maior agasalhado, a mais affectiva lha-
neza nos donos da casa.
«Rebollo, diga-sea verdade, na torrente es-
maltada o luminosa da palavra n&o tinha quemo egualasse . .
.
«Davam-se n'elle puerilidades incríveis.
Uma das suas inanias era julgar-se insigne
atirador á pistola e á frecha.
«Possuía para isso duas grandes condições
:
ser extremamente tremulo, e ter a vista cur-
tíssima ! Mas. a sua imaginação era tal que se
figurava rival vencedor d'aquelle frecheiro,
que matou Ricardo, Coração de Leão, e, por
um excesso de modéstia, dava o segundo lo-
gar, na pistola, ao marquez de Niza.
«Podiam fazer-lhe quantos reparos quizes-
sem a propósito das suas obras litterarias. Era
de uma docilidade extrema, mas, em se lhe
negando a destreza na pistola e na frecha, en-
furecia-se.
«O homem é um paradoxo!
«Outras excentricidades havia n'elle tam-
bém; mas essas provavam a sua grande alma
!
«Fumavapéssimos charutos, etinhaem casa
os mais puros havanos, que oíFerecia, ás mãos
cheias, aos amigos. Deixava, ás vezes, de com-
prar um objecto insignificante em que tinha
apetite, e, em secreto, valia a muita gente,
chegando a acudir com contos de réis a umamigo, a quem os desgarrões da má fortuna
liaviam collocado em apertadíssimo lance.
«Nunca cVaquella bôcca saiu um gabo das
suas nobres acções!
36 Emprega da historia de Portugal
«Quando as faculdades lhe chegaram ao má-
ximo grau de perfeição com a edade e a expe-
riência, os symptomas da enfermidade fatal
começaram a apparecer.
«E' singular e parece providencial! Princi-
piou a attribuir a phenomenos nervosos o que
julgava, quando os rebates eram muito pe-
quenos, como uma lesão orgânica!».
Eis aqui em poucas e mal alinhavadas pa-
ginas o que foi este homem illustre cuja obra
litteraria vamos começar a dar a publico.
*
Feita assim em rápidos traços a resumidabiographia do illustre escriptor que se cha-
mou Luiz Augusto Rebello da Silva, cum-pre-nos apresentar o plano, a que obedece a
edição das suas obras que vamos emprehen-
der.
E' vasta a obra do notabilissimo homemde lettras; mas anda ella tão disseminada emjornaes, revistas, opúsculos, etc, que se tor-
na quasi impossível dar das suas producções
uma nota completa, pois que não ha um guia
seguro para nos conduzirmos no dédalo das
publicações da epoclia em que elle mais ou
menos collaborou.
Innocencio F. da Silva, nos volumes V e
XIII do seu inexcedivel Diccionario Biblio-
graphico dá-nos uma resenha d'essas obras,
mas tão desegual e tão incompleta, que é dif-
Obras completas de Rebello da Silva 3y
ficil, por esse guia, que aliás costuma ser tão
seguro, fazer obra perfeita.
O sr. Rebello da Silva, filho illustre de tão
illustre escriptor, homem intelligentissimo
versado em tantas matérias litterarias e scien-
tiíicas, professor distincto do Instituto de
Agronomia, e digno par do reino, a quem pe-
dimos que tomasse a seu cargo a direcção
littoraria d'esta nossa edição, excusou-se a
eise tão honroso como fatigante trabalho;
para isso deu razões tanto quanto possivel
attendiveis, pois que os afazeres da sua vida
afanosa lhe não pormittem dedicar-se a umtrabalho que elle próprio consideraria gra-
tissimo fazer.
Em vista, pois, do que fica dito, fomos for-
çados, apezar da nossa incompetência, a orga-
nizar um plano, que submettemos ao juizo do
publico, certos de que nos desculparão o ar-
rojo, se elle não conseguir satisfazer os gos-
tos de todos os paladares, o que se nos afigu-
ra difiicultosissimo.
PLANO GERAL DA EDIÇÃO POPULARDAS
OBRAS COMPLETAS DE LUIZ AUGUSTO MULO DA SILVA
PUBLICADAS PELA
EMPREZA DA HISTORIA DE PORTUGAL
I— Romances g Novellas:
Ráusso por homizio
Ódio velho não canra
Mocidade de D. João VLagrimas e thesouros
Casa dos phantasmas
De noite todos os gatos são pardos
Contos e lendas, comprehendendo
:
Introdacção —A torre de Caim—Castello de Almourol— Camisa de
noivado (publicado anteriormen-
te sob o titulo de Uma aventura
de D. Pedro)— Ultima corrida de
touros em Salvaterra— Tomada de
Ceuta— Pena de lálião.
II— Theatro:
O/hello ou o Mouro de Veneza
Infante Santo (incompleto)
III — Estudos críticos e litterarios :
Introãucção ás « Viagens de Beckford
em Portugal»
A Arcádia Portugueza
Obras completas de Rebello da Silva 39
Poetas da Arcádia:
1.° Garção2.° Quita3.° António Dini:
Memoria biograyhica acerca de Bo-
cage.
A Escola Moderna litteraria— O sr.
Garrett
Oradores Portugueses: Almeida Gar-
rett
Juízo critico sobre o «Frei Luiz de
Souza», de Garrett
Alexandre Herculano
Juízo critico sobre o «Monge de Cis-
ter»
Poetas lyricos: Mendes Leal
Memorias de Litteratura, de Lopes
de MendonçaPaymundo Bulhão Pato
Francisco Maria Bordallo
Camillo Castello Branco
Francisco Gomes de AmorimD. Francisco Martinez de la Rosa
IV— ESCRIPTOS RELIGIOSOS :
Fastos da Egreja
V — Escriptos de polemica :
Cartas ao sr. Ministro da Justiça
Duque de Saldanha
Cartas de um aldeão
VI — Estudos de pedagogia :
Compendio de Economia politica
40 Emprega da Historia de Portugal
Compendio de Economia commercial
e industrial
Compendio de Economia rural
VII— Elogios biogbaphicos :
Infante D. Henrique
Diogo de Mendonça Corte Real
Duque de Palmella
Fernandes ThomazMousinho da Sãveira
José da Silva Carvalho
José Estevam
Passos ManuelD. Pedro VD. Luiz I
VIII — Discubsos :
Discursos parlamentares
IX — Estudos histobicos:
Memoria sobre a população de Por-
tugal
D. João II e a Nobreza
Mosteiro da Batalha
Jorre de Belém
Quadro elementar das Relações di-
plomáticas
Relatórios do Ministro e secretario
de estado dos Negócios da Marinha
(L. A. R. da Silva)
Historia de Portugal
X— Escbiptos divebsos :
O que apparecer disperso depois do
que fica descripto.
Obras completas de Rebello da Silva 41
Este será o plano que os assignantes e com-
pradores dos volumes d'esta nossa edição te-
rão em vista para a colleccionação d'ellas;
porque a íórma do publicação que vamos dar-
lhes não será esta, pois que o que agrada a
certos leitores desagrada a outros, e obrigan-
do a edição a esta ordem de publicação, os lei-
tores que porventura apreciassem os estudos
históricos de Rebello da Silva de preferencia
a qualquer outro género litterario d'este au-
ctor, só tarde, muito tarde, poderiam saborear
os fructos opimos do escriptor n'esta secção
da sua actividade litteraria ; assim publica-
remos alternadamente um volume de roman-
ce, outro de theatro, um terceiro de es-
tudos criticos, e assim successivamente, con-
tentando nós d'este modo o paladar litterario
de cada um dos leitores das obras do grande
Rebello da Silva.
Publicadas que sejam as obras d'este bri-
lhante escriptor do século xix, tencionamos
encetar a publicação de obras completas de
outros vultos de nomeada da nossa galeria
litteraria, sentindo bastante que razões abso-
lutamente estranhas á nossa vontade nos não
permittara, como seria nosso deseje, vulga-
rizar em edições elegantes e económicas, comosão estas, toda a bella litteratura portugueza
d'aquelle século.
Os Editores.
ÉI§50 Pi HOP1IZÍQ
NOTA BIBLIOGRAPHICA
1^)AitA melhor comprehonsão do sentido e in-
L» tuitos do romance que vae lêr-se, recom-
mendamos aos nossos leitores a consulta do
Elucidário de Viterbo, nos termos RausoRáusso e Homizio: não sendo nosso intento
dar 11'esta ligeira nota mais do que simples
indicações bibliographicas, limitamo-nos a
dizer que esta producção, uma das primei-
ras do grande estylista, é agora publicada emvolume pela primeira vez
;pois que, até hoje,
apenas foi impressa uma vez e esta n'umperiódico litterario de grande nomeada, a
Revista Universal Lisbonense, dos annos de
1842 e 1843, isto é, quando o auctor contava
pouco mais de 20 annos.
Diz Andrade Ferreira a propósito: «Em1839 cursou (Rebello da Silva) a Universida-
de de Coimbra, aonde se demorou menos de
dois annos, estudando o primeiro anno ma-thematico e philosophico, e primando n'elle
a mais decidida repugnância pelas sciencias
exactas, e mais ainda, pode ser, pela discipli-
na das aulas regulada pela corda do sino.
46 Emprega da Historia de Portugal
Uma grave enfermidade de peito, que o teve
próximo da sepultura, obrigou-o a recolher-
so em 1841 a Lisboa, e a suspender toda a
applicação. Quando as forças lh'o consenti-
ram, tornou a dedicar-se com fervor «ás let-
fcras e escreveu na Revista Universal um ro-
mance, já de bastante valor, Rausso por Ho-
io, devendo muito, para se abalançar e
tentar o género, ao seu amigo A. Herculano,
cuja amisade adquiriu n'aquella epoclia—
»
A direção cYaquella notável Revista tanto
reconhecia o alto valor litterario de Kebello
da Silva em tão verdes annos, que não teve
duvida em precedêl-o das-lisongeiras palavras
que em seguida transcrevemos, fechando as-
sim a presente nota
:
«Encetámos hoje a publicação do Ráussopor
Homizio, romance, peregrino pela invenção,
pela profundez de estudos archeologicos, pelo
cabal e prinio da execução poética, pela pu-
reza e opulência da linguagem.—Damol-o
sem alteração de uma virgula, e qual saiu da
pena do seu auetor :— que seria sacrilégio to-
car, nem de leve, nas primícias que á sua Pá-
tria offerece um tal espirito — ! quem n'o acre-
ditaria!— I de vinte annos!»
RHUSSO POR HOP1IZÍO
Homizfo
Em 1245 levantava o monte, agora ermo e
.esquecido de Algoço, a cabeça torreada sobre
o despenhadeiro, que descaindo arremessado
para o sul, fallece quasi ás margens do An-gueira.— Debruçado para o precipício medo-nho, no vulto descommunal representava o
velho alcacere, águia gigante, abrigando á som-bra das azas de granito a povoação, que, pen-
durando-se do outro lado, pelo íngreme da en-
costa, ajunctava a base nas raízes do monte,
mas encolhida, enfeixada, e como receosa de
se alastrar pelo valle, onde hoje alvejam as
moradas da nova villa.—E' que, imagem dos
séculos de íerro da meia edade, encostava-se
ao Castello, como o peão â lança do Rico-
homem.Ao collocar nas alturas aquellas muralhas
de grossa cantaria, aquellas torres quadran-
48 Emprega da Historia de Portugal
•
guiares e macissas, creu o architecto árabe
fadar-lhes eternidade. —Pela mente lhe ade-
jou, talvez, um pensamento de orgulho, ao
imaginar, no ardor de uma crença fervorosa,
que, similhante á vaga encapellada, batendoem alcantis marinhos, havia a hoste dos na-
zarenos de ressaltar, e quebrar-se só ao pulsar-
Uie os limites : e todavia annos depois, na face
torva do Castello, escreveram Portuguezescom a espada uma palavra, que, apoz o largo
combator de séculos, estamparam também,como ferrete de servidão affrontosa, na frente
da altiva e linda pérola dolslam— nos pannos
dos muros vencidos de Ceuta, a descrida.
Destroncado e caído ao desamparo o herdou
o passado século; já então muitas pedras, des-
engastadas da sua coroa d'ameias, se vestiam
em assentos arrelvados pelo pendor da encos-
ta. O resto, enredado de heras, involto emmanto de musgo, matisado de florinhas agres-
tes, signalaráporventura— o sitio, onde, comomoribundo decrépito, aguarda que o tempo,
similhante a Djinn, enorme no perpassar rá-
pido, o desabe a terra.
Por uma tarde húmida e mal assombrada
dos fins de novembro, dos eirados das atalaias
espraiavam os vigias a vista pelos cabeços
bravos coroados de pinheiros tristes, pelos
soutos, estevaes, e por toda a larga campina,
onde a espaços resaía o vulto branqueado dos
casaes e aldêas;panorama, que se desdobrava
como alcatifa de rico lavor, até se embeberao longe nas serranias circumstantes. No fun-
Obras completas de Rebello da Silva 49
do valle ao sopó do monte estrepitava o An-gueira, trasbordando o leito com as aguas
caudaes do inverno ; ao largo alteavam-se emhorisonte alongado na fronteira Castella as
serras de Seabra, recortando os topes pardo-
escuros no chão cinzento do céu ; desenros-
cando-se das quebradas dos cerros o nevoeiro,
manso e manso, trepava, e como véo alvacen-
to de odalisca formosa ondeava meneado pelo
sopro do vento.— Para o poente, o sol, por
cuja face volteavam ligeiras as nuvens, pare-
cia dormitar aprumado sobre o viso das mon-tanhas do Nogueira, em throno de púrpura
orlada de oiro, e os seus raios, refrangidos
em um céu pardo, repercutiam embaciados e
fugitivos nos cascos e largos ferros das lan-
ças dos esculcas '
.
De súbito contra o sul, e juncto ao logarejo
onde se erguia uma recém-fundada ermidinha,
deram rebate os vigias de dois homens, que
vinham apertando o passo caminho do Cas-
tello : ao acercarem-se, viram dois frades da
nova ordem de S. Domingos : perguntados a
que vinham— respondera um já de edade gra-
ve:—«Que o padre Fr. Gil com seu barbato
era alli a requerer do Alcaide acolheita por
aquella noite, e uma pobre enxerga, em que
o corpo se repousasse do trabalho da jornada».
Emquanto os dois aguardam fora da barba-
1 Sobre a Yilla e Castello de Algoço, vide Carvalho
Corogr. Port. tom. 1 • pag. 482 (mihi) Cardoso. Dic'
cion. Geogr.
1 — ráusso 4
5o Èmprefa da Historia de Portugal
ean o despacho da sua petição, é mister que
atemos o fio espedaçado de tempos, que já lá
vão sumidos nas trovas do passado, para o lei-
tor n'um relancear de olhos travar mais ínti-
mo conhecimento com os personagens d'esta
mui verídica historia.
Já n'este anno de 1243, pela face torvada do
reino, volteavam, ennovelladas nas azas do tu-
fão, as procellas politicas, que no seu embater
medonho quebraram um throno, e arremessa-
ram para longe, como folha despegada do ra-
mo, um rei, débil e volúvel sim, mas innega-
velmente bom, esforçado e generoso.
D. Sancho II, que, nas pelejas e em muitas
outras coisas, foi tão rei e tão cavalleiro comotodos os que o haviam precedido— perdeu-se
pelo amor:— o pousar a lança e trocar pelas
gallas de cortezão a sua boa armadura de
campeador, para se reclinar nos braços de
uma mulher, tráscurando deveres, e cerrando
a tudo os ouvidos, era á luz de um século fa-
nático e guerreiro o máximo opprobrio da
coroa. De leito a paixão cega e insensata emque ardia pela nobre dona e mui excellente
Senhora D. Mecia Lopes de Haro, como a no-
meavam os mais aprimorados, que d'ella ti-
nham, ou fiavam ter, mercês e terras, ratraíra o
monarcha do commercio dos Ricos-homens e o
sugeitava ás censuras do clero, que apregoa-
va este casamento como contrario á discipli-
na da egreja, pela razão de parentesco, que
•ntre os dois havia. — O povo, esse, desarra-
zoado © irreflectido sempre, desaffogava a sua
Obras completas de Rebello Jj Silva 5i
má vontade, regalando a rainha com o nomodo feiticeira, quesó foitiços o ligamentos
cuidava aquella boa gente, quo valiam a ar-
redar o rei das lides do governo do seu povo,
apertando o Laço que o ligava a D. Mocia.
Afora este motivo de religião, as>im trava-
do com o inteiro esquecimento das tradi-
ções guerreiras da épocha, outros de não me-nor vulto e para temor revolviam os ânimos.
— Os dois máximos elemei*tos da civilização
da meia edade, o sacerdote o o soldado, que
tão trabalhada e escabrosa tornaram a vida
do seu pae, cobrando novos alentos da indole
mansa e irresoluto animo do rei, lançavain-se
atropelladamente pela estrada das usurpa-
çõos, desfazendo debaixo dos pés os pequenos
e mesquinhos, e floreando um a adaga, o o ou-
tro o pendão de Eoma, no extender dos bra-
ços descerravam de todo o véu, apontando
abertamente ao alvo da sua ambição, ao pre-
dominio dos respectivos interesses.
Para arrostar com elles, forçando-os a re-
fugir para os seus âmbitos, e estremando,
quanto então consentia o incompleto da admi-
nistração geral, as raias das diversas classes,
tão retalhadas pela desunião legalizada nos
foraes e costumes, era mister quo com o sce-
ptro do pae houvesse D. Sancho herdado a sua
vontade tenaz, e robusta intelligencia.— Queo pensamento, ou, para melhor dizer, o ins-
tincto que ressumbra de seu reinado, comoum vislumbrar da unidade monarchica, o ras-
treasse elle ao menos.
52 Emprega da Historia de Portugal
Mas sirnilhante ao prisma, que, sem tor ne-
nhuma, reflecte todas as cores do iris, vaguea-
va do parecer em parecer para se encostar
sempre ao ultimo e peior ; a validos tredos e
aborrecidos por malefícios confiava o regimen-
to da terra; as vinganças e homicidios ge-
rando-se das paixões férvidas e tumultuosas
do século, dos ódios, que um dia encanecia e
arreigava para sempre no peito, até ante os
cancellos do throno, vinham rugir e pelejar-
se, e elle por montarias o saraus, a colher sor-
risos nos lábios de D. Mecia. O descontenta-
mento dos populares oppressos, do clero es-
carnecido e entrado de ruína e affrontas, e a
inimisade dos fidalgos a crescer, a accumular-
se, e a trasbordar, e elle como aturdido outomado de súbito turpor, jazia ás orlas da
cratera, que de longe incendiam seu irmão
D. Afíbnso conde de Bolonha, e seu tio D. Pe-
dro conde de Urgel, alimentando parcialida-
des, que o seu renome enraizava no solo, e
que iam invadindo e enredando insensivel-
mente boa porção do reino. E' que Deus ti-
nha contado os dias do seu reinado, e pela
mão de uma mulher o guiava ao eterno re-
pousar das lides e bulicio do mundo, que para
elle fora exilio escabroso aquello throno,
atormentado das tempestades da terra, aos
pés do qual se revolvia agitado pelo vento de
Deus o vulto indelineavel, immenso, e fero-
císsimo, chamado povo.
Dois mezos antes da épocha, em que demos
começo a esta historia, um feito covarde e
Obras completas de Rebello da Silva 53
réfece de certos cavalloiros da corte era o pas-
to saboroso de todas as praticas.— Para vin-
garem, segundo corria, o homizio do um pa-
rente, que Martim Viegas Portocarrero, fi-
dalgo velho o auctorizado do Minho, emrecontro quo tivera dois annos atraz, mataraá espada, o haviam assaltado em seus paços,
e assassinado cruamente com todos os servi-
çaes e solarengos que acudiram; ermando-lho
casaes e herdades, decepando arvores, e rou-
bando e incendiando o resto.—Porém a ver-
são do caso, como andava pelo povo, não a
acceitavam os atilados phisiologistas da meiaedade, que se prezavam de subtis em averi-
guar enredos, e traduzir sorrisos de cortezãos;
ao contrario, tomando a mão em todas as con-
versações, affirmavam— «que isto padecera
por seus peccados o bom cavalleiro, e por al-
gumas razões, que passara com o senhor rei
na ultima vez que fora chamado á cúria, so-
bre seu casamento com D. Mecia, estranhando-
lhe em termos mais rudes e desabridos, doque a sisudeza pedia, aquella paixão má, quesobre ensurdecel-o ás lastimas do seu povo,
até a consciência lhe embotava, tractando
mulher tão sua parenta com grave eífensa deDeus e do senhor Papa, e indo por deante emsuas falas affrontára os validos, que lá eram,
jurando que confuso e abaritam ' fosse elle,
1 Praga esta mui usada dos antigos, que vale o mes-
mo que dizer— seja confundido e devorado pela terra
como Datan e Âbiron.
54 Emprega da Historia de Portugal
-cá lança e espada não provasse o dicto aos
melhores três».— Aqui, sumindo as palavras,
e como a modo, recordavam para maior cer-
teza a vingança, que o avô do senhor rei to-
mara do D. Martim Fernandes ', e subindo
depois com a voz uma oitava, rematavam o
arrazoado, benzendo-se e rogando a Deus, que
fosse servido livrar sua senhoria das bruxa-
rias e mais artes dos damnados acólitos de
Belzebut 2.
Pela austeridade do seu viver, pelo alumia-
do do seu entendimento, e pela humildade e
compostura do seu aspecto, se estremava o
padre Fr. Gil dos outros membros de um cle-
ro rico, devasso e rude.—Tempestuosa, po-
rém, lhe correra a mocidade, consumida emdeleites e vicios, desvairada por uma paixão
mais que nenhuma ingrata e impia— o orgu-
lho da sciencia— paixão, que no desferir o vooroça pelas estrellas, para até sobre o throno
de Deus ir tremular o seu pendão rebelde, se-
de de Tântalo, que mirra e secca o coração, e
o estorce nas vigílias das noites affanosas, semhaver affecto sancto desabrochado no peito,
que não murche e queime ; fé pura e viva, que
não definhe logo por ella, como o Archanjo
1 Vide sobre esta vingança de D. Sancho I os docu-
mentos dos fins do século XTI em Ribeiro Ditsert.
Chron. pag. 267.
2 ... E geralmente se dizia que el-rei andava empoder d'ella (D. Mecia) enfeitiçado e aguo do juizo. .
.
Ruy de Pina Chr. de, D. Sancho II.
Obras completas de Rebello da Silva 55
maldicto, se despenhou nas trevas do descrer,
no anciar de mil agonias insoffridas, na eter-
na desesporação do tudo, que é a morte hor-
renda d'alma.
Mas a este homem, tinha Dous da sua mãopara levantar a voz inspirada sobre os erros
do mundo.—Uma luz suave desceu do Empí-reo a aclarar a noite tormentosa em que se
revolvia, apontando-lhe o único ádito cerrado
ás tormentas da terra, o único caminho que
da visinhança do Céu colhia serenidade e con-
solação; remédio e esperança só o claustro lh'o
podia dar. Lucta foi aquella, para até aos an-
jos mover inveja. Debaixo da estamenha, que
amortalhava o corpo, vivia ainda o mesmocoração férvido e ardente ; lá o sentia pular
contra o peito no rugir das procellas da alma;
quando a phantasia pelos sentidos lhe escorria
a imagem dos prazeres e gosos d'essa outra
vida, que já vivera, esplendidos e encantados
nas ricas vestes de oiro e rosas : tão intima
e pungente o apertava esta saudade, que nemcilícios nem orações bastavam a apagar-lh'a.
Os espíritos grossos e fanáticos, ouvindo-o
pela callada da noite desatar em choro alto, e
em brados soccorrer-se á Virgem, tinham pa-
ra si, que eram visões de demónios ; como se
ahi houvesse mais temerosa tentação, que o
vacillar de uma vontade sancta á voz do mun-do, e o agonizar do pensamento no esmorecido
palpitar na esperança do futuro, quando o co-
ração descae de desalento, e o animo vibrado
entre a morte e a vida d'alma, nuta, trepida,
56 Emprega da Historia de Portugal
e vae perder-se no abysmo. Agonizar este si-
milhante ao do homem, suspenso pelas roupas
sobre precipício medonho, ao sentir vergar e
gemer sob o peso do corpo o ramo de que lhe
pende a salvação.—Depois de largo combatersaiu illeso da prova, e tão puro e ajustado era
o seu viver, que a corte o respeitava por suas
lettras e virtude, e o povo lhe chamava san-
cto.
A humildade e sugeição do claustro não ha-
viam comtudo resfriado a robusta amisade,
que de largos annos o unia a Martim Viegas,
e a seu filho D. Keimão, a quem comofamiliarcreárano convento de Santarém, ensinando-lhe
as pueris, até o despedir para na hoste do
conde de Urgel aprender e praticar as boas
artes de cavallaria, á sombra da lança do guer-
reiro, cujos feitos ajustados pelas maravilhas
do Cid, espantavam o século.Em Compostella,
aonde o chamaram negócios da ordem, se vi-
ra com elle, que se tornava a matar saudades
de dois annos nos braços de pae e irmã, e a
pendurar entre outros também signados de
golpes de infiéis o escudo de novel : por isso o
bom do frade, ao soar-lhe a noticia do horren-
do homizio, se abalara para Algoço, que era
castello real, e por tal escolhido pelo moçoAlcaide, como seguro abrigo, quando ao en-
trar na terra da pátria soube que já nem pae
nem irmã tinha.—Mas emquanto Fr. Gril alli
aguardava a resposta embebeu-se em tristes
reflexões : receava que as palavras de conso-
lação e os brandos conselhos com que traçava
Obras completas de Rebello da Silva 5j
minorar-lho a dôr, nada aproveitassem, por-
que no coração do mancebo estavam as pai-
xões incisivas e violentíssimas do tempo: por
isso nem ousava imaginar no como robentaria
a vingança, que se via immutavel como a voz
do destino, bem o sabia elle, espantosa e im-
placável, provava-lh'o até a própria dilação.
O som cavo que tiravam os alçapões ferra-
dos tombando sobre os seus apoios de pedra,
e a voz cheia do velho ovençal, desejando-lhe
a boa vinda o despertaram d'este triste medi-
tar, e encommendando-se interiormente a
Deus, atravessou a ponte levadiça, e sumiu-
se pelo profundo portal da abobada.
I
II
Preço do sangue
Para a sala de honra mandou o alcaide guiar
o prior Fr. Gil ; logo á entrada estacou o fra-
de de espantado ; a luz que batia de chapa no
semblante de D. Reimão em um momentolho revelou a incomportável agonia d'aquella
alma.— Via, o não podia ainda acreditar o queos olhos lhe estavam mostrando ; tão diverso
do moço gentil e florido, que creára e amavacomo filho, se lhe representava o homem, que
tinha alli deante. Ao contemplar as faces su-
midas e desbotadas, o corpo definhado, e os
lábios esbranquiçados de Portocarrero ; ao
attentar no véu de riso convulso, que a espa-
ços, rodeando-lhe a bocca, se espraiava pela
rosto, tão melancholico e funéreo como a so-
breveste de burel pardo, que vestia, um des-
fallecimento,um agastamento intimo lhe aper-
tou o coração ; embotaram-se-lhe na memoriaas palavras brandas, que compunha para o
consolar; prendeu-se-lhe a voz na garganta,
C>o Emprefã da Historia de Portugal
e ficou de pó, com os braços descaídos, e os
olhos cravados no parecer demudado do man-
cebo, similhante na immobilidade a um dos
corpos de armas brunidos a pender das colum-
nas, que sustinham as voltas ponteagudas do
tocto.
E1 que expressão do rosto, que outrem não
soubera adivinhar feição por feição, a estava
elle traduzindo, e debaixo da apparente tran-
quillidade lá rastreava uma paixão mâ, masfunda, soberana, indestructivel; é que nos
olhos, que reluziam com fulgor estranho,
d'esse perenne reflexo dos mais occultos pen-
samentos, como denuncia do tumulto medo-
nho, que ia lá dentro, relampeava um clarão
instantâneo.
D. Reimão sorriu-lhe um sorriso triste;
pousou-lhe nas mãos descarnadas e pállidas
os lábios crestados pela febre da desesperação,
e lh/as apertou entre as suas húmidas e frias
como de moribundo.
Nem Fr. Gil lhe dizia nada, nem Portocar-
rero a elle.
Depois de largo silencio, o prior, deitando-
lhe os braços á roda do pescoço, disse com as
faces orvalhadas de lagrimas
:
—D. Reimão, o homem põe e Deus dispOe;
seja feita a sua vontade ; com amarguras pro-
va o Senhor os bons da terra, que os maus . .
.
—Esses folgam e riem, acudiu o Alcai-
de com amargo sorrir, calculando ao redor
do ataúde do assassino o preço vil da infâ-
mia . . . mas aguarda-os o castigo l Que vai
Obms completas cif Rcbcllo dct Silva 6
1
isso ? com os haveres tudo alcança o abasta-
do .. . até" a salvação; o do sobra os tinha o
velho, que mataram . . .idemais, dirão elles,
Deus é do misericórdia!
— Mas ê também a summa justiça, redar-
guiu o frade com fervor; a conta d'este hor-
rendo crime a hão-de elles saldar no infer-
no ..
.
— Merencório estaes hoje dom prior, ata-
lhou o mancebo, soltando uma risada sêcca o
irónica ; não é o inferno para agasalhar tão ri-
cos cavalleiros, nem homens de tanto sangue
e valia como elles são; para servos e vilões des-
validos se fez, que não estranhem, acabando
cá na terra as suas penas, irem lá em cima go-
sar-se de eternal ventura . .
.
—A todos se fará o julgamento segundo
suas obras, replicou Fr. Gil em voz alta.
—Errado íalaes, reverendo nonno, lhe tor-
nou Portocarrero com um riso encoberto, nemesse é o sentimento dos monges, e sanctos Bis-
pos; que mal lhes fora o haverem logo de lar-
gar senhorios e rendas pelo breve passal de hu-
milde egreja assentada em terra pobre, ou na
coroa de serra alpestre.
O prior olhou para elle com aspecto grave
e severo;pela mente lhe passou uma suspei-
ta; disfarçou-a, e continuando na pratica:
— Cor contridum et humiliatum Deus non
despiciet, disse elle;para abrigar o triste pec-
cador transviado como mãe carinhosa tem a
egreja abertos os braços . .
.
—E longos, bem longos, bradou D. Reimão,
G2 Emprega da Historia de Portugal
se não mentem vozos de serviçaes : digani-n'o
os do Burgo Episcopal do Porto, que andamsérios como adro de egreja, pobres e mofinos
como leproso aborrido . . . E' o que vos digo;
negra que tenham a alma como o mais im-
mundo caifaz judeu ou moiro, se fizerem pra-
zo a Sancta Cruz do alguma vinha deliciosa
nas cercanias do Mosteiro, de cinco maravedisd'além Doiro á Albergaria de Poyares, etodo
o seu cabedal for desbaratado pelas Sés emanniversarios, tão seguro refugio lhe alcan-
çarão os monges e cónegos com suas preces
no purgatório, como se vivessem vida áspera
do hermitães na breve cellade um asceterio !...
O Alcaide suspendeu-se, advertindo nas la-
grimas, que a fio manavam dos olhos do velho.
Cuidava o prior que a suspeita se convertera
em realidade, o que para sempre se apagara
a fé pura e fervorosa, que o mancebo tão ar-
reigada tinha no peito ; i^esta hora de mortal
angustia, em que de todo lhe fenecia a es-
perança, chorava, como opropheta de Anathotsobre o moço, que tão cedo e logo ao desaper-
tar serenas e doiradas as flores da vida as vira
sêccas e murchas pelo sopro ardente da procel-
la; mas enganava-se. Postoque incerta e esmo-
recida, aquella luz do céu lá aclarava ainda um.recanto d'alma, e as palavras contrafeitas e
amargas, que lhe soavam como blasphemias,
eram o faiscar do incêndio abafado, que empouco ia romper, sanguineo na côr, tremendo
e tétrico.— Por um instante vacillou Porto-
Obras completas de Rebello da Silva 03
carrero; depois atirou-se soluçando aos bra-
ços do frade.
—Não choreis,iSou louco, mil vezes louco !
Nem eu sei o que disse . . . desvarios d'esta
lentaagonia cm que se confrange a alma ...;oh!
não choreis . . . Voto á Virgem um frontal de
brocado; prometto cobrir-mo de vaso o jejuar
três dias a pão e agua\para que se amercêe
de mim ! . . . Padre, perdoai-me estas blasphe-
mias, perdoai-m'as, que bem dura é de levar
a cruz d'amargura, ;oh! ;o bem agudos ferem
os espinhos d'este calvário, para arrancar do
peito um ai ao afflicto
!
— Deus perdoará, como te eu perdoo o es-
cândalo que lhe deste; murmurou o frade,
extendendo a mão por sobro a cabeça do man-cebo ajoelhado aos seus pés—ambos rogare-
mos á Virgem, ique afaste de ti as tentações
e más ideias de Satanaz ! . . . Asserena o es-
pirito . . . . é pezada a tua cruz, jbem o sei ! . .
.
Olha porém, que lá mora ao cabo da agra via
a fonte de eternal consolação, a bemaventu-rança do justo— no mundo passa o homem,como a ave nos céus, librado pelas azas da
esperança entre o Empíreo e o mar da perdi-
ção : ai d'aquello a quem fallecerem os alentos
d" fé, que a esse, tragado pela vaga tenebrosa,
nenhum remédio aproveitará, que tudo. . .
.
;tudo o tempo acaba, monos o padecer infinito
do réprobo
!
— j O tempo !io tempo ! . . . murmurou Por-
tocarrero, <^que remédio tem elle contra estas
dores fundas e eternas, que me encaneceram
64 Emprega da Historia de Portugal
o corpo, e em um momento envelheceram o
espirito, como se já vivera séculos?— \ O tem-
po é para este coração atormentado de negras
imaginações como a voz do louco, tentando
refrear aquellas nuvens, que se desvairampelos ares, tormentosas como os meus pensa-
mentos, escuras e sinistras como as trevas
em que se affunda esta alma
!
—j Sancto Deus ! arreda essas idéas sestras
;
soccorre-te ao Senhor para que te haja da sua
mão n'esta lucta suprema; covarde chama o
mundo ao cavalleiro que em lide de infiéis se
retrae do pendão ; réfece, mil vezes réfece, ó o
homem, que a troco de um punhado de oiro
renega da sua fó; mas aos olhos do Eterno
mais covarde e réfece ainda seria aquelle, que
até a esperança da salvação vendesse ao infer-
no—Jpara similhante crime não haveria per-
dão no céu ! . . . j Orações, filho
!
— i Orar ? . . . j Eu ! Reverendo nonno, para
rezar é mister esquecer e perdoar, e a memo-ria do que fui e do que me tornaram trago-a
sempre viva aqui!... E apertando a cabeça
com anciã entre os punhos, proseguiu com a
voz truncada e sumida— sempre aqui. . . ja
escaldar-me o cérebro, e a perder-me a alma
!
— i E o senhor Deus não perdoou do alto
da cruz aos seus algozes ? redarguiu o prior
com ar solemne;— mancebo, apontas aos um-braes da vida; olha que é duro de soffrer, pi-
zar eternamente um solo a rever sangue.—iPerdoa D. Reimão
!
— jNão posso! gritou Portocarrero, medin-
Obras completas de Rebello da Silva 65
do a largos passos o aposento com unia das
mãos cerrada ao peito, e mostrando com a
outra o brazão d'armas do seu broquel
:
—iNão! mil vezes não! Entre mim e elles
está a deshonra e vilta de uma inteira linha-
gem de cavalleiros — está o cadáver do velho,
que foi meu pae, cuja voz, como brado ergui-
do do sepulchro, me restruge nos ouvidos,
gritando :—ivinga-me !— Está todo um mar
de sangue, que não bastará outro a estancar a
sede que me róe as entranhas !<Jeu perdoar-
lhe?j isso nunca!
Houve então uma larga pausa, que só cor-
tavam o sussurrar do vento pelos vãos pro-
fundos da abobada, lá por sobre os frizos, la-
çarias, e capiteis da sala, e o respirar alto e
rápido dos homens. Nos olhos do Alcaide
duas lagrimas borbulharam; mas enxugou-
as logo com o revez do braço—Fr. Gil atirou-
se de bruços; a testa batia nas lageas frias do
pavimento, e a sua afflicção rebentou emorações fervorosas : ergueu-se passados alguns
minutos, e disse
:
—A teu pae, D. Reimão, devi eu quanto a
um amigo pôde dever outro ; a ti amo . . . amei
como filho, que foste meu na creação . . . pelo
céu que nos vê, por teu pae que repousa emjazida ensanguentada, por tua irmã, que é ...
— ilrmã? não a tenho já . . . exclamou Por-
tocarrero com voz atroadora:— se quereis
saber o como, ide á Crasta do Mosteiro pró-
ximo, que lá jazerão por ventura ainda, recli-
nados nos braços das soldadeiras, alguns d'es-
i— RÁUSSO 5
66 Emprega da Historia de Portugal
s«s réfeces, que mui bem vol-o saberão dieer,
se lh'o consentir o somno da ebridade, quedormem involtos nos coromens d'Arraz das
mulheres perdidas ao som das violas e trovas
dos jogretes!
— Senhor Deus Jesus, murmurou espavo-
rido o Prior.
Então o Alcaide, com a insensibilidade
contrafeita, que cobre o tumultuar das pai-
xões na horas de fundada desesperação, lhe
contou, como, depois de morto o pae, aquelles
homens, para com a vilta da filha affrontarem
a nobreza da sua raça, a seguiram por valles e
serras com alões destrellados, ao som de trom-
pa, pela forçarem a esposarum villão deherda-
de. Dois dias vagueou desatinada a pobresi-
nha, perdida nas brenhas e selvas, voando por
alcantis e espinhos, rasgada das silvas, e re-
passada do frio. No terceiro, ao romper d'au-
rora, uns vessadores, que andavam perto, vi-
ram sobre o píncaro de um rochedo a pender
ao Doiro, surgir d'entre o véu vaporoso de
névoas uma figura de forma incerta: ao acer-
carem-se, enxergavam-n'a a ella extendendo
com um rir louco os braços para a corrente,
que ia lá em baixo rápida e angustiada no seu
leito de rocha viva.— Depois viram um corpo
ennovellar-se, dobar pelos ares, resaltar dan-
do nas pontas da rocha, e desvanecer-se de
todo nas aguas do rio ; acudiram logo, e rou-
baram-n'a ao sepulchro gelado, conchegadi-
nha nas suas roupas, com o rosto mimoso tão
ereno e meigo, descerrando-lhe os lábios tão
Obras completas de Rebello da Silv* 67
inefável e suave sorriso como se a pobre mar-
tyr, enlouquecida de tanto ponar, não estive-
ra morta, mas adormecida com a face encos-
tada ao collo da mãe, no brando frouxel de
tola de seus Paços.
Ao ouvir esta horrenda crueza, nova toda
para elle, o frade para quem os gosos e deli-
cias da terra, o esplendor e bulicio do mundojâ não eram mais, que a sombra tremula e
meio apagada da arvore no espelho da fonte
uma saudade—uma lembrança remota; que
dos outros homens só conhecia os afílictos para
lhes ungir de piedade o coração com mansas
falas de paz, os desvalidos e eppressos para
lhes lançar no regaço o óbolo do pobre; que dos
afíectos, que o mundo gera só um guardava— o mais sublime — o que encerra o pensa-
mento divino ; assellado com o sangue do jus-
to, no tremendo sacrifício do G-olgotha, sen-
tiu passar rápido, adejar-lhe pelo espirito
um como ancear de vingança; mas só adejou,
que veiu logo a memoria recordar-lhe o augus-
to da sua missão, e um movimento de orgulho
sancto, como voz do íntimo, lhe segredou
ao coração, que nenhuma victoria sobreleva-
ria a esta, se a efiicacia da sua doutrina vales-
se a arrancar ao desespero aquelle sem-ven-
tura.
Houve outro largo silencio, durante o qual
o Prior orava de joelhos sobre as lages, não
pelo seraphim que acerescera ao throno de
Deus, virgem no coração e até no pensamen-
to, mas por si, que peccára pedindo sangue,
68 Empreja da Historia de Portugai
e pelo irmão que alli via prestes a sumir-se
no abysmo do descrer. Portocarrero, que no
começo olhava para elle sem pestanejar, doeu-
se da afflicção do velho; pelas faces immoveiscorriam-lhe as lagrimas em fio —eram as pri-
meiras!
Fr. Gil levantou-se e com voz débil e afíb-
gada em choro, disse, levando-o nos braços
:
—Do senhor é vingança, meu filho;pequei,
pedindo-a aos homens; mas socega, que do
sangue innocente te fará justiça o rei D. San-
cho ...
— i Justiça de D. Sancho! acudiu D. Reimãocom ar carregado, j o mesmo fora descobrir
entre as malhas d'aço d'aquella couraça de
Milão, a que puliu e soldou o armeiro Pêro
Britador, que apontar entre os cortezãos da
corte um que seja bom e leal ! ... Ir eu, neto
e filho de cavalleiros, j rojar-me com a face no
pó ante os degraus do throno! para D.Mecia,
com uma caricia, com um sorriso brando apa-
gar logo o pranto com que lhe orvalhasse os
pés;para me elle perguntar talvez a quantos
centos de soldos, í a quantos maravedis monto
o preço do homizio ?—Outra será a justiça . .
.
justiça da espada . .
.
Callou-se de súbito, tomado de repentino
meditar; faiscaram-lhe os olhos, eum sorriso
ambíguo lhe sulcou o rosto como um raio de
alegria, que rompia a triste immobilidade da
dor:
— Dom Prior, bradou elle, afferrando-o pelo
braço,<Jcomo é que os Ricos-homens e bispos
Obras completas de Rebello da Silva 69
ingrezes alcançaram, contam-se hoje trinta e
dois annos, £ o que elles chamam Magna caria?
frade abria a bocca para responder, quan-
do um ruido estranho, que vinha da corre-
doira próxima, como de vozes que altercavam,
lhe atalhou a fala : —d'ahi a pouco escanca-
rou-se a porta, e na atalaya do Castello soou
duas vezes a trombeta do rebate.
III
Açor por Varas
— Coisa de três tiros de besta para lá da ei-
mida . . . dois cavalleiros moços, e obra de doze
homens d'armas . .
.
—E sobre tomarem o açor por força, dizê-
des vós que a sua mercê requestam e reptam
para em lide se matar com elles . .
.
—A todo o transe e sem misericórdia ; seria
peccado havel-a, D. Reimão, com taes ladrões,
que nem ás aves perdoam; dôr de reiras o con-
suma, je aos cascavéis de Gí-alaôr!— sem elles
nunca deram comnosco.— Quem a toda a caça se lança, nenhuma
alcança; já vos] tornáveis com o açor em pu-
nho . .
.
—j Se o milhano não passa ! . . . sempre tinha
de ser; antes os damnados dentes da vossa ma-tilha, Martim Lebreu, me desfizessem saio e
capa com serem de panno de Ipre verde, de
onze soldos brancos o covado.
—j Sim , sim ! manhoso vos dizem, Pêro Voa-
72 Emprega da Historia de Portugal
dor, • nem só lavado para os falcões trazêdes
na bolsa . . . que já alguém a viu forrada de
bons maravedis de prata . . . mas enxugade-
me uma vez de vinho e haverêdes quebra
n'esse cuidado . .
.
— [Quebra n^ste cuidado! escolhêdo-o de
cincoenta entre falcões, nebrís e girifaltes to-
dos primas, e dizêde vós Martim Lebreu . .
.
— Que não me descose isso a mim o saio,
nem me aquenta, nem me arrefenta: olhade,
Pêro Voador, quanto menos d'essas mofinas
aves por cá andarem, melhor: lá vos avinha-
des como quizerdes— j ainda se fora o meubomalão Bravor !— Bem certo fala o rifão: «quem
corre á lebre não se desvia para prender ga-
mos ; » io que sei é que tudo vae do ensino
!
Os dois personagens, entre quem se travara
esto dialogo, emquanto na sala de honra pas-
sava a scena, que referimos, estremavam-se
por inclinações, geito e artes. — Um mandava
na terra; governava o outro nas alturas; ou, o
que vai o mesmo, Martim Lebreu, (e não res-
pondia á figura o sobrenome, porque mestre
Lebreu era gordo como o Imperador Vitellio,
e guloso como Heliogabalo) havia inteira al-
çada nos dominios da montaria com direito de
trélla e cutello sobre a sua adúa e moços de
monte, com os quaes dispendia largas horas
no glorioso mister de ensinar cães e homens;— horas negras e atravessadas para os tristes,
que era sugeito o nosso monteiro a uns en-
thusiasmos bacchicos, que paravam, ou, para
melhor dizer, se inclinavam sempre para os
Obras completas de Rebcllo da Silva j3
costados dos seus vassallos na prosaica forma
de tagante, ou do alentada haste de venábulo;
afora esta leve pecha, era como de si affirraa-
va, com sublime persuasão, o melhor homemdo mundo.—Nom todos eram do sou parecer.
Não doiravam estas prendas a Poro Voador,
pequeno de corpo, e já de annos; sommavamtodos os aífectos do honrado falcoeiro no en-
sino e mestria de suas aves;quasi louco o ti-
veram com a morte do bom Martim Viegas
:
— não era todavia a perda do amo o que mais
sentia; chorava unicamente o ter-se finado
n'elle um dos apurados mestres da mui nobre
caça da altaneria.
Uma duvida sobre a preeminência das suas
artes arreigara a inimisade no peito dos dois;
saudavam-se, praticavam, e conviviam, mas,
similhantes a sábios émulos, com sorrisos
falsos, e palavras mansas cobriam a má von-
tade e o rancor. A palavra ensino, que era
bordão certo de Mestre Lebreu, accendeu as
iras do falcoeiro, que redarguiu enraivado:
—j Do ensino ! dois pares de falcões tenho
na creação, e outros a ensaiar no vôo ; vede-
mos: — nenhuns, mas que sejam os do senhor
rei, se hão-de nunca assimilhar a Galaôr noremontar a prêa
;que subia direito a ella sem
fazer pontas a uma, nem a outra parte;—jpois
caparoeiro! d'elle dizia dois annos ha o mei-
rinho da provincia, que por si só valia todos
os que vira: e bem se podia crer aquella his-
toriando rei de Castella, que por este, se o ai-
74 Emprega da Historia de Portugal
cançára, tinha d© empenhar com o Conde Fer-
nan-Gonçalves mais ainda, do que o reino! ...
jensino!.-. E bom é o que dades aos vossos
alões e sabujos, que não é para maravilhar tão
gulosos e esfaimados andarem: |do mestre
aprenderam as manhas
!
—i0'lá ! dom sandeu — bradou ardendo em
chólera o monteiro — <jque são todos os açores
do mundo ao pó do meu Bravor? Rapoza oujavardo, que se levante, nunca lhe perde a
peugada, nem cervo tão prompto no vento,
que não corra e trave ardido. Os vossos falcões
; de mal peccado ! já custaram dois escravos
moiros, que mais cedo foram arder com o
demo, affogados nos pegos e apahues, que na-
davam para lhes aprazar garças . . .jgulosos
os meus lebreus ! Que outra coisa havia umvelho tonto de resmungar, j se o pobre nemacerta no que vae do milhano ao falcão
!
Era para Pêro Voador aquella affronta a
suprema injuria humana, e vibrada pelo ho-
mem, que aborrecia com as veras d'alma—en-
trou-lhe no peito funda como a ponta azerada
de bulhão agudo.— Más maleitas te colham a ti, e aos réfeces
que me sacaram o melhor açor da terra . .
.
bem é que a perros queira tanto quem de per-
ros vem— gritou desatinado o falcoeiro;—fi-
lho de judeu te dizem . . .inem outro pôde ser
o sangue ou antes o vinho d'essas veias!
Martim Lebreu íicou primeiro petrificado
de pasmo e de indignação: levou depois a mãoao punho da gomía, ou faca curva moirisca,
Obras completas de Rebello da Silva jS
que lhe pendia ao lado, e soltando por entre
os dentes cerrados nm rugido, ia investir commestre Pêro, quando lho atalhou a fúria umatoz choia e sonora
:
—i Vamos, vamos! ruim contenda é essa,
que ora tendes; jnão querem vêr dois chris-
tãos a matarem-se por um triste cãoi
. . . En-fiade-me já a gomía, mestre Lebreu, se não
comigo vos haverêdes . . . que mais rijo entra
este cutello no corpo, do que a vossa pausa
nas viandas da ovençaria, com fazer lá, segun-
do o mordomo affirma, maior estrago que toda
a vossa matilha de belzebuths . .
.
Martim Lebreu voltou a cara com sanha;
mas esmoreceram-lhe para logo os brios ao
pôr os olhos no homem, que tão descortez nas
palavras retreava a sua vingança.— Eraoar-meiro Pêro Britador, a melhor espada peã
d'aquelle tempo. Não foi todavia de bom gra-
do, que aprazou para mais tarde o soldar a
conta: comparou porém a sua estatura quasi
espherica, roliça, e curta com a do robusto e
espadaúdo armeiro ; calculou mentalmente o
cubo do seu vigor e esforço, junctou-lhe o cu-
tello e o punhal do contrario, e acabou por
embainhar a gomía.
— Sandices andam sempre na bocca do mei-
rinho da cosinha— disse elle a Pêro Britador
— no céu esteja o pagem que tão ajustado
nome achou ; nem ha maior javardo de monte,
que esse mofino velho, tão aferrolhado no
alheio, como as arcas do caifaB Abraham de
Coimbra . . . Pêro Voador ficade-vos muito nas
76 Emprega da Historia de Portugal
boas horas; mas se os lombos vos não doeremem pouco excommungado seja eu pelo senhorPapa ... — E saiu com ademanes altivos o
mestre, mui sabedor das matilhas do Castello
;
na cola lhe desfechou logo o bom do armeiroa mais ruidosa e sincera gargalhada, que nun-ca se o uvíra.
— iNão vos sabia aqui!— disse passados
momentos o falcoeiro— fazia-vos agora mes-mo em Coimbra; boas fadas vos trouxeram,
que não era eu muito a meu prazer ha pou-co...
—Nem o caso para tal: da corte me parti a
levar dois bons arnêzes e um capello de ferro
ao Conde de Urgel; e de lá aqui com recado
seu para D. Reimão.— (»]\láu tempo para jornadas?—
iNão muito máu, para quem vem nas per-
nas de outrem! o peior era a aljaveira, que era
já no íio— e o demo a saltar lá como em paços
seus; bem magra saiu a mesquinha; vede-m'a
gorda e anafada, que nem leitão de dois mezes!
E com certas papagens onde pelo direito m'acisaram como moiros ou judeus!
E abrindo a capa de peão lhe mostrou umdobrai bem recheado, ao que parecia, da diva
pecunia.
— <}Pelo seguro, sobre o saio, essa malha
d'aço, e ao lado o bom cutello?—perguntou
o outro.— São leaes amigos, que não ha es-
quecer, ou largar ; e ahi fora na barbacan como desalmado perro deum escudeiro de MartimCravo, que lá era a falar a sua mercê os qui-
Obras completas de Rebello da Silva 77
zera eu provar: <Jnão ouvistes o rebate da ata-
laya?— Ah! jmaldicto seja o demo! de todo me
varreram as sandices de Martim Lebreu o
rópto da cabeça! jSancta Maria vai! ^e será
já na sala d'armas?— Lá deve de estar : três varas traz o mofi-
no para por parte de três cavalleiros fazer
requesta a D. Reimão. <jDizêde, mestre Voa-
dor, certo é o haverem elles sacado á força o
vosso bom açor prima?— Tão certo, como é peccado apanhar fal-
cões e açores antes do S. João, ou tomar-lhe
os ovos ! Mas boa tenção teem estes que pagamo açor por varas . .
.
—As varas os quizera eu— retrucou o ar-
meiro — como a bruxa comborça da tia Brazia
de Coimbra, e a anciã do alcaide no chumaço;
só, em vez do coitado, que não era para taes
autos, um braço como este meu ! . .
.
— Tá, tá !iatagantar esses milhanos !— acu-
diu o falcoeiro ; — roiam-vos os piozes, e lan-
çavam-se ás aves mais foros e bravos . .
.
— Avisadamente falades, Pêro Voador;
melhor lhes fora uma absolvição com o meuphilisteu ; e tal pancada lhes dera o malho,
que de bigorna haviam de ter a cabeça para
não valer por um talho da boa espada de Fer-
não Annes ! . . . Mas ouvide : na sala de honra
são a esta hora pagens, escudeiros, e o oven-
çal; bofe, que ninguém é mais aposto para
contar a historia do açor . . .jporventura ser-
virá de muito ao caso ! . .
.
78 Emprega da Historia de Portugal
— Seja como vos aprouver.
Os dois seguiram pela corredoira, viraram
para a esquerda, e emboccaram com a porta
escancarada de par em par : lá dentro estava
D. Reirnão assentado em um escanlio, e ajoo-
lhado deante d'elle, com o casco na mão o es-
cudeiro, que trazia pintadas no arnez as armas
do Martim Cravo.— E' obra minha— disse em voz baixa o ar-
meiro, apontando para a coiraça— e todavia
tão fino corte tem este cutello; que lh'a rom-
peria como se fora um dos pergaminhos de
Roma!Mas prondeu-lhes logo a fala e a attenção
o que alli se passou depois.
IV
O beijo do cutello
escudeiro ergueu-se ; deu dois passos atraz
e acenando com duas varas, disse para D. Rei-
mão
:
— Trédo e desleal ó o homem, que, resguar-
dado pelos adarves dos muros, acode ás frestas
das seteiras, para de lá rosnar, como velha dona,
palavras aleivosas e mentidas contra nobres
e esforçados cavalleiros : a esse, se vilão nas-
ceu açoitam-n'o na picota as varas do algoz
;
se de boa linhagem, convém que prove o di-
cto á lança e espada em lide a todo o transe. .
.
— <J E se a tal se negar? — atalhou seccamen-
te o Alcaide.
— Se tal negar— proseguiu o mensageiro— apregoam-n'o como covarde e refalsado da
hora de terça á hora de sexta ao som de trom-pa, para ser escarneo das gentes
!
—£ Acabaste?— gritou o castellão em cuja
yoz se misturava a chólera com a dôr.
—j Senhor, não
!
8o Emprega da Historia de Portugal
—j Fala, mas sê-me breve!
— D. Romão Viegas Portocarrero, cavallei-
ro de linhagem, e rico-homerti de Riba doDoiro, e vós outros pagens, escudeiros, sola-
rengos, e homens de sua mercê ouvide, e sede
attentos, ao que por parte dos nobres e bonscavalleiros Estevam Pires, e Fernão Gonçal-
ves, tenho que dizer.
—jAh!— exclamou, carregando o sobrolho
o Alcaide — dizêde o resto.
— Como lhes soasse, que por boccas deruins andavam seus nomes, e d'elles affirma-
des, senhor Portocarrero, que negra tem a
alma, e moira a crença; que foram elles nohomizio de JMartim Viegas, vosso pae, e ahi
feitos vis e maus, dizêdes que obraram, por
mi negam tudo, e por sua vida e salvação ju-
ram;que mentides como escravo, perro e
judeu!—
iMentides ! j mentides, escudeiro ! — bra-
dou, ou antes rugiu D. Reimão por entre os
dentes cerrados, apertando com os dedos con-
vulsivamente o punho da espada.
—E por tal — continuou este — vos fazem
requesta e vos reptam para vos matardes comelles sem mercê, nem misericórdia, de sol a
sol, sem haver repouso nem trégua !— Domcavalleiro a vós enviam, como testimunho do
repto, estas varas, e se não fordes na lide, jcom
ellas intenderão em vos correger como servi-
çal despresado, ou folião perdido ! . .
.
— Ah! ^lindaste o recado d'esses perros e
rófeces matadores de velhos e donzollas?
Obras completas de Rebello ia Silva 9>\
— i Senhor, bí !— retraçou o escudeiro, en-
fiando.
—I Olhado, Pedro Britador se o mofino bo-
queja sequer no bom açor ? — disse mansinho
o falcoeiro ao ouvido do seu robusto amigo.—
iFoi pombo que caiu no bucho do milhano!
ifeitiços os tomem e mal d'olhado !
— Deixade-os, que me quizèra eu antes
na pelle de uma ovelha com os dentes do
lobo em cima, do que na d'elles, sumidadebaixo das grevas e arnezes ; melhor fora
andar a braços com o demo, e afferral-o pe-
las ventas com as tenazes, como já fez aquel-
le sancto ingrez, de que reza uma devota
lenda . . . j mas vêde-me o gesto irado de sua
mercê! . .
.
De feito Portocarrero com as faces accêsas
em rubor, e os olhos banhados de chólera,
corria desatinadamente pela sala de punhofechado, e a passos incertos, trémulos de rai-
va, e agitados. Parou depois, deante do men-sageiro, e mediu-o com vista fulminante; os
lábios esbranquiçados lhe tremiam como as
urzes meneadas pelo sopro do vento nos ca-
beços visinhos: por derradeiro, rompendoeste silencio de máu agoiro para o triste escu-
deiro, cujo temor denunciavam a palidez dorosto, e o arquejar do peito, que sobre o»
hombros lhe rangia a coiraça, perguntou comvoz rouca e truncada
:
—<jDia da lide?
— De hoje a trinta.
—-(jO logar?
I — )UÍUM« 6
Emprega da Historia de Portugal
—A terra de Sancta Maria ; dois tiros de
bosta para lá do alcácer moirisco.
—<jHora?
— iQuarto de prima
!
—oAs armas?— Punhal e montante, braçaes e cota.
—(JO signal ?
— Senhor, ó este.
D. Reimão tomou-lhe das mãos as duas va-
ras ; íicou suspenso por alguns instantes, e
depois, quebrando os juncos, atirou os troços
aos pós do escudeiro, accrescentando em tompausado
:
—j Não acceito a requesta
!
Levantou-se então na sala um murmúrio,
que era o sussurrar das vozes dos que alli
estavam espantados e confusos de tão estra-
nho desfecho.
— <» Quem se atreve aqui a abrir a bocca,
quando eu falo ?— gritou o Alcaide com voz
presa, e meneios irosos :— l cuidades que me
arreceio d'elles? Nunca respiraram ao bafo
ardente das pelejas, nem lhes crestou o rosto
o sol das batalhas .... quando no peito trou-
xerem escriptas, e bem fundas como eu, as
lettras do seu brazão, abertas pelo gume das
cimitarras, serei com elles na lide— hoje fo-
ra covardia,;que não valem um talho d'esta
boa folha
!
E arrancando a espada da bainha, acenou
ao escudeiro, que se achegasse.
—iVêde-nfa ! é a espada do damasco, her-
Obras completas de Rebello da Silva 83
dada de filhos a netos desde a hora, em quena frontaria de Beja se reclinou no leito daterra dura a repousar de oitenta ânuos de
combates o velho Gonçalo Mendes da Maia:— tão antiga como o roino ; e todavia não está
boto ainda o leal ferro ! jurei pela minha al-
ma na derradeira despedida, nunca ferir senão
pela fé e pelo rei no céu está agora o pae,
que me ouviu .... pura, sancta, e fadada pela
victoria m'a entregaram— retemperei-a nas
correntes do Aragão — afíiei-a nas pontas das
penhas das Astúrias, alli mesmo, aonde se
despediram aquellas nobres almas, voandomartyres para o céu— alli, sobre a loisa dos
fortes, que tanto lidaram pela cruz . . . . j não
!
j minha boa espada, não irei deshonrar-te
!
iandaste sempre encostada a corações gene-
rosos, vibraram-te braços, que nunca descaí-
ram de fadiga, e victoriosa te saudou o alfa-
geme, que tal fio soube dar-te ! . . . \ Morrepois, virgem de feitos desleaes, pura, e hon-
rada como o ultimo, a quem serviste ! . .
.
E dobrou-a contra os joelhos para a esta-
lar; mas parou, como tomado de outro pensa-
mento.— De hoje avante corrou-se-me a lide dos
fortes—icomo tigre dobarei pelas trevas as
sendas tortuosas da vingança ! . . . \ nunca te
cingirei eu mais ! . . . \ irás repousar ao lado de
meu pobre pae ! . . . j e só te haverá outro cora-
ção como aquelle, que lá jaz desfeito em pó!
Seguiu-se largo silencio, cortado só pelo
respirar anceado d© todos, e pelo soluçar alto
84 Emprega da Historia de Portugal
do mancebo, que, escondendo no seio do prior
Fr. Gil a cabeça, desafogava com o pranto a
amargura da alma ;— o frade sentiu as lagri-
mas traspassarem-lhe a estamenha do habito,
e humedecerem-lhe o peito ardentes, comofogo.
—iAnimo ! — murmurou elle— l que dirão
estes de ti?
—iTel-o-hei ! — acudiu o moço alçando a
fronte abrazada—\que ninguém saiba que eu
chorei! . . . Escudeiro, dizêde aos réfeces, que
vos aqui mandaram que não ó á lança e
espada, que elles hão-de commigo soldara con-
ta. ,. . mercê esta, que lhes não farei. Outro
castigo os aguarda, por foro do reino e de-
gredo do senhor rei D. Aífonso, vou requerer
a pena de sangue . . . . e justiça será feita ....
ipara elles se ergue medonha a forca peã, po-
pular e infame dos villões
!
— i]Senhor, que não é finda ainda de todo a
mensagem!— exclamou este, ajoelhando de
novo.—
iAcaba-a, e breve
!
— Lastima-se o leal cavalleiro Martim Cra-
vo de serem no homizio de vosso pae uns
seus escudeirosimas já d'elles houve as
cabeças por justiça!
— <J E que me requer ?
— Que de tal feito o tenhades por innocen-
te, que longe andava, e na conta de amigo e
muito seu affin vos teve sempre, como pede
o devido de sangue, que entre ambos existe.
— E a boa mente o hei, e declaro assim
;
Obras completas de Rebello da Silva 85
— lhe tornou o castellão.— Esforçado e ge-
neroso e* o coração de Martim Cravo — e o
mesquinho que outra coisa affirmar cosida
terá a bocca mentirosa com a ponta do meubulhão.
— Pede-vos elle, senhor, que se acabe entre
ambos o homizio por costume de Santarém !
—iSerá como quer !— ajoelhado ahi :
— e
vós homens bons, livres por nascimento, ou-
vide. — Escudeiro tirade o cutello ... £ Jura
Martim Cravo por sua vida, pelos ossos de
pae e mãe, e pela salvação da alma, que ne-
nhuma culpa teve no homizio covarde e ró-
fece?
— Senhor, jura. E aqui o tendes escripto e
assolado com seu punho perante cavalleiros
e homens bons n'este pergaminho.—
iBasta ! — disse Portocarrero ; e, toman-
do o cutello, pegou da mão do escudeiro, er-
gueu-o do chão, e beijou-o na testa.
— Sede vós outros testimunhas — prose-
guiu o Alcaide, correndo olhos lentos pelos
rostos, que o rodeavam — de que, d'oravante
amigos e affins ficamos como outr'ora fomos!
iE' isto fiir omezio para sempre
!
N'este momento o armeiro, rompendo por
entre os que lhe tomavam a deanteira, avizi-
nhou-se a D. Reimão.
— i Ah ! i Já de volta Pêro Britador ? — per-
guntou Portocarrero.
— i Senhor, si ! j e com recado mui de vulto
para vós de Compostella
!
D. Reimão, chamando o prior, retraíu-se
86 Emprega da Historia de Portugal
logo com o amieiro para o recanto de umafresta no topo da vasta quadra.— O que elles
falaram ninguém o soubo — viram só mestre
Pêro tomar do cinto um pergaminho, e o fra-
de lêl-o ao cavalleiro. Praticaram ainda poralgum tempo
;quando voltaram, dando por
acabada a conversação, os que ficavam maispróximos colheram soltas estas palavras do
prior :
— Por vida vossa esperade-me— nada se
ha-de tentar antes de lhe eu requerer o quenos cumpre ....
isabedes o que é o conde
d'Urgel ! . . .iaté á hora derradeira vai o arre-
pendimento ao homem
!
—iSim, sim ! . . . Ovençal agasalhade-me
bem este escudeiro.— Que me arreem a mul-
do meu corpo. iNo terreiro da barbacan doze
homens d'armas e um pagem a cavallo ao
quarto d'alva
!
— í Partides logo ? — disse o prior em meia
voz,
— A'manhã para Compostella, e de hoje a
vinte dias serei na corte. — j Vou lá a pagar
as arrhas da nova rainha de Portugal
!
O judeu lssachar de Coimbra
. Linda e serena se despregava a noite ; o nor-
te, varrendo as profundezas do céu, lançara
para o extremo horisonte as nuvens densas o
tempestuosas, que por oito dias, como toldo
immenso, se haviam desdobrado sobre a ca-
beça da antiga Coimbra, que, enfeixada entre
os grossos lanços das duas coiraças, se recli-
nava no pendor da encosta, rodeada dos sua-
ves oiteiros, e viçoso estendal de veigas e pra-
dos, que em si compõem o risonho painel de
seus arredores.
Alegre e festivo correra o dia.— O ruido
das vozes e passadas do povo; a toada dos
alaúdes e violas; e as endeixas sentidas dos
trovadores reboavam pela cidade, misturan-
do-se com as risadas discordes e falas chisto-
sas dos pagens e donzeis. Os tabardos varie-
gados ; as cotas bordadas de oiro ; e os mantosforrados de pelles dos cavalleiros, resaíam,
doirados pelo sol, no chão escuro dos sáios
88 Emprega da Historia de Portugal
capas, dos zorames e bragas dos populares,
por entre os quaes os ginetes, galopando á ré-
dea larga para a Alcáçova, abriam sulcos tor-
tuosos. A pouco e pouco se esmoreceu o bu-
lício até de todo se apagar ao cair das som-bras da noite.— Só lá do alto, aonde campeavao castello moirisco, transpiravam pelas ven-
tanas sons de festa, e o clarão das tochas,
que allumiavam o sarau esplendido, similha-
va de longe, coroa de estrellas cingida na fren-
te torreada do velho alcácer.
Pouco antes de ser bem cerrada a noite as-
somara ao portal da casa dos cónegos, funda-
da por D. Paterno juncto da Sé, um vulto re-
buçado em capa de peão.— Alguns, curiosos
de natureza, que o seguiam, viram-no dobrar
a quina da rua para onde davam as portas la-
teraes do templo— passar rápido pela face
tisnada dos paços de Dona Vetaça, e dobran-
do depois pela rede baralhada de viellas mal-
assombradas e torcidas, enredar-se no laby-
rinto da communa, ou bairro dos judeus. Asfrestas e agulheiros de uma casinha, assenta-
da ás margens do Mondego, transverberavam
uma claridade pallida e immovel. O vulto
parou alli, e deitando a uma e outra parte os
olhos com dessocego bateu de manso á
porta : depois de curto espaço ouviram-n'a os
curiosos ranger nos gonsos, abrir-se, e para
logo tornar a cerrar-se sobre o recemche-
gado.
— E* algum triste servo do demo, a quem o
mal-arenturado judeu Issachar vae levando
Obras completas de Rebello da Silva 89
pela mâo aos paços de Belzebuth !—disse-
ram lá conisigo os honrados burguezes. E tal-
vez acertassem.— O vulto era D. Reimão Por-
tocarrero; e n'oste dia se contavam os trinta,
que marcara, para começar a pagar as arrhas
da nova rainha do Portugal.
Emquanto elles assim se tornavam descon-
solados, lá em cima na casa do judeu, conti-
nuava uma pratica, que logo ao entrar trava-
ra Portocarrero.
— Meu querido Issachar— dizia com umsorriso irónico D. Reimão— farás serviço a
um amigo ; darás os duzentos maravedis.—
iMofino de mim ! tão certo como ser eu
o mais pobre e desamparado dos filhos de Is-
rael, que não ha tirar íio de saio velho; j nemum soldo tenho de meu! já bati a todas as
portas da Communa de Coimbra, e nem sequer
uma mealha mais pude apurar além dos cemmaravedis, que vos contarei... quero dizer
que vos emprestarão dois mercadores . .
.
—j Com razão te chamas mofino !
— atalhou
o Alcaide com ar de escarneo— pois, sem tan-
to caminho andado sei eu quem os porá aqui
sem falta.— E' um lebreu desdentado, oven-
çal do senhor rei, que hontem com os direitos
vencidos na herdade de Eiras, e nos Reguen-
gos de Coimbra, recheou o dobrai de bons
morabitinos de oiro ! . .
.
— Quereis zombar com o vosso servo— in-
terrompeu Issachar com anciedade— \ cemvezes vendido não alcançara eu com que ajun-
tar tamanha somma ! juro pela toura . .
.
90 Emprega da Historia de Portugal
— Não te afflijas, honrado Issachar; jconhe-
ço ainda outro ovençal, a quom por escambos e
proveitos, que tira dos direitos reaes, hão-deaçoitar pela cidade, e penhorar todo o seu ha-ver, segundo o degredo do senhor rei D.Affonso, quando amanhã um cavalleiro pro-var que do alheio se alfaiou ! . .
.; Judeu ! larga
essa astúcia de raposa— gritou, mudando detom— ou pela alma de meu pae, que em poucosaberás como estoiram os ossos carunchososde um perro vil e maldicto
!
Issachar recuou espavorido; lá dentro ia
uma lucta cruel; mas a final, arrancando umsuspiro entranhavel, e com os olhos afíbgadosem lagrimas exclamou
:
— Virão aqui os duzentos maravedis; irei
varrer com as barbas os degraus da Synago-ga, e pedil-os a preço d'uzura a meus irmãos;
mas amanhã o mais arruinado mercador d'esta
terra serei eu
!
— Socega: de hoje a um mez colherás do-
brados os teus maravedis, e, á fé de cavallei-
ro, que abençoarás mil vezes o serviço queme fizeste ! . . . j Astrólogo e adivinho te cha-
mam ! . . .(J é certo devassares tu pelas feições
o pensamente recalcado e sumido no coração,
e descobrires o segredo, que nunca se fiou dos
lábios?
—iSenhor sim !
— respondeu o judeu, er-
guendo o rosto, e cravando no de Portocarre-
ro olhos vivos e escrutadores.
— I Que lês nas minhas?
Mestre Issachar abriu a bocca para respon-
Obras completas de Rebello da Silva 91
der, mas susteve-se, e ficou enleiado comoquem não atinava com a resposta.
— i Arroceias-to de mim? j vamos! j verda-
de ou mentira, dizo-a, o breve!— - liovela-ine a tosta espaçosa e alta— res-
pondeu em tom grave o j udeu— que ahi morouum animo nobre e aberto a todos os aífectos
generosos . . . mas o véu pesado, quo entene-
brece o rosto, e o clarão medonho, que relam-
peja nos olhos, me denunciam, que uma idéa
sestra e má lançou raízes profundas no cora-
ção . . .in'esses lábios a sorrir desbotados es-
praia-se um pensamento de sangue, que umdia encaneceu! ..
.
— Sim. ; Adivinhaste ! <jE serão as estrellas
favoráveis ao meu intento ? . . . fala, triplica-
rei os maravedis, que já te devo . .
.
— jOiro! mancebo— atalhou o astrólogo,
cujo parecer despindo-se da abjecção costuma-
da, se depurava e ennobrecia com o fervor da
crença— j oiro !<Je que vai elle para rastrear
lá nas alturas a palavra de Jehovah, gravada
com lettras de fogo no seio mais intimo dos
céus ? . . . Repara n'estas faces cavadas e pá-
lidas ; n'esta vida que palpita como a lâmpa-
da do templo ao sopro da morte ; n'estes olhos
embaciados, aonde quasi seccaram a fonte da
luz as lagrimas da desesperança. . . . j é este o
preço da sciencia ! . . . j oh !jquantas vezes me
descaiu a vista cançada de luctar; quantas a
ergui, sem devassar entre esse milhão de as-
tros, que giram no espaço, as estrellas myste-
riosas, que são a coroa de Deus assentada na
92 Emprega da Historia de Portugal
tenebrosa fronte da noite ! . . . <»Aonde vão dias,
noites, annos, durante os quaes me consumiaem vigilias, curtindo escarneo, affrontas, e
amargura pelo coração desfeito de tanto pa-
decer? áQuo sou hoje? Um morto que fala;
iuma sombra que passa na terra ! e, todavia
nesses esplendores celestes só antevi a thyá-
ra de Jehovah ; só adivinhei que as constel-
lações são luz; j e apenas soletro uma pagina
das mil desenroladas na órbita de fogo
!
Issachar correu a mão pela testa; os seus
olhos brilhavam com fulgor estranho, e o ros-
to se lhe tingiu de leve rubor.
— ; Vaidade é isto ! • • .imas também certe-
za! um raio de luz rompe as trevas d'esta
existência descolorada, quando lá do céu as
estrellas respondem ao homem; quando in-
vôlto ainda no pó da terra folhêa o livro, que
nem os anjos percebem, e de myríadas de soes
compõe a palavra fatal,jque só leu Salomão!
— (iDize-me, influem elles contra mim?—
j Não ! j mas guarda-te ! Na sua elliptica
o astro não formou com as estrellas Jod e
Zain o triangulo mystico.
— I E o do rei ?
O astrólogo correu olhos tímidos pelo apo-
sento, e pegando da mão de Portocarrero,
guiou-o para uma das frestas, que dava para
o rio.
—i Não vês— disse elle — além, por cima
d'aquelle cabeço, uma estrella desmaiada a
tremer incerta na abobada azul? <jNão lhe
divinas no centro uma nódoa ? E' a emanação
Obras completas de Rebello da Silva $S
de Saturno j ameaça-o de morte breve ! • ,
.
— Calou-se, embebido em alto meditar—Man-cebo — proseguiu depois com voz cava—\o
throno ó similhante á rocha, que rompe emseios o escarcéu de mares revoltos, sem haver
arbusto, que pegue no recosto estéril, hora,
que vista de folhas a fraga nua!... j comoDavid, desafiou este por uma Bethsabóth a
cholera de Deus, e bem dura pesará ella sobre
o reino
!
D. Reimão, espantado, cuidava, que algumencantamento transformara no sábio serio, e
grave o judeu lazerado e sôfrego, que pri-
meiro vira :— por largo espaço o esteve mi-
rando, sem dizer palavra.
— I Dize-me— perguntou — não transpa-
rece alli a tua estrella ?
— Nazareno — respondeu com tristeza o
astrólogo— quando, pelas horas mortas da
noite, cravo a vista nas profundezas do
espaço, vejo desdobrar-se nas trevas do san-
ctuario a pagina de luz, só uma palavra se
esvaece alli sempre, \è a da minha sorte!
cerram-me os olhos as névoas de Tobias.
Houve, depois, um largo][silencio, em que
os dois olhavam um para o outro.
— Sincero foste commigo — disse D. Rei-
mão — e fizeste bem. & Issachar, não tens umafilha formosa ?
—j Sim ! E' a minha Esther ; como os sons
maviosos da cithara do rei propheta, me desce
suave ao intimo da alma a sua voz, para tam-
bém, como elles, mitigar tristezas e desalento:
04 Emprega da Historia de Portugal
è o fructo do meu primeiro amor ; o lirio des-
abrochado no jardim do Saron lá jazerá
ella agora de joelhos em Santarém encom-mendando ao Deus de Israel o pae perdido
nas tempestades do mundo.— Enganas-te. Seus olhos negros, e lindo
parecer quebraram leis e dever de chris-
tãos . . . .iroubaram-fa, Issachar
!
—iDeus de Moysés j . . . innocente Esther
!
j mas enganais-mo ! quereis zombar do vosso
servo . . .io ódio da crença arredará sempre o
Nazareno maldicto ! . .
.
—j O ódio da crença, Issachar !
<J Vedou-lhe
elle porventura a tenção damnada, quando o
já traçaram?—
iSim ! j sim !
isou louco ! — Esforçado ca-
valleiro— accrescentou, ajoelhando lavado emlagrimas— sois bom e generoso, — j salvai-a !..
.
mil maravedis .... dois mil . . . . j todo o meuhaver pela íilha da minha dôr
!
—iErgue-te, Issachar ! e não peças ao ti-
gre que se atire á prêa : l sabes a que vimaqui ? j vim a arrancar a alma do corpo ; a es-
tancar a sede da vingança em todo sangue das
veias d'esses, que a tomaram ! . . . são os mes-
mos, que mataram um velho fraco como tu.
ie uma donzella, pura e linda como a tua Es-
ther, dorme no seio dos anjos assassinada por
olles ! . .
.
— Fazoi-o, leal cavalleiro, fazei-o assim.
— Asserena o animo;pelo rasto os hei se-
guido; dia e noite velei ao redor d'elles como
o lobo em volta do redil <> Enxergas no
Obras completas de Rebello da Silva 95
alto a Alcáçova, coroada de luzes? Lá estão
elles rindo ao som das violas, respirando per-
fumes, e requebrando as formosas. Lá estão
cobrindo com falas a sabor o peito damna-
do . . . . mas virão aqui, não a entregar-te a fi-
lha, que é já por mim segura, mas a tomar
todo o teu oiro, tudo o que houveres—
<JAonde está a minha Esther?j quero
vêl-a
!
—iSilencio, judeu !<» além no rio não al-
canças uma setía voando leve pelo vulto ar-
queado das aguas ? . . . l não vês reverberar-se
o clarão incerto das estrellas em ferros de lan-
ças, e cascos brunidos ? ; São os meus ! alli cor-
re ella também, j A hora da Noa, a barca abi-
cará á praia, e pelas hortas entrarão a ca-
sa! ...idá-me as chaves da porta falsa
!
—; Senhor são estas ! Jehovah vos abençoo
como abençoou o Deus de Abraham e Isaac !
— Lá se vai destoucando o velho alcácer —proseguiu Portocarrero com os braços encru-
zados, e a voz truncada— j sumiram-se as es-
trellas, que o coroavam ! . . . j assim se apaga-
rá também no livro do mundo, meus leaes ca-
valleiros, a pagina da vossa vida ! . . . j mas a
ultima palavra tem de graval-a bem funda no
vosso coração a ponta d'este punhal ! . . . de-
mora-os aqui, Issachar, chora, roja-te pelo
chão j e recusa tudo ! . . . j Adeus ! j serei com-tigo em breve
!
E involto na capa, saiu pela porta falsa,
que o judeu lhe abriu.
— | Deue de Israel— exclamou Issachar, ca-
96 Emprega da Historia de Portugal
indo de bruços — dae-me as forças de Sansà\o
para desabar sobre elles o templo de sua mal-dade !
la a erguer-se, quando lhe soou de fora umgrito agudo, como de homem que matam a
ferro.
—j Mataram-n'o ! — bradou o judeu, ba-
tendo com a cabeça na pedra, e arrancando
um gemido de agonia extrema—ioh!
iminha
Esther, minha Esther, que te não verei eu
mais ! — E íicou extendido como morto sobre
as lageas do pavimento.
VI
Homizio por homizio
Passados alguns momentos volveu Issachar
ao seu accôrdo : ergueu-se sobresaltado, e cor-
rondo os olhos espantados pela corredoira, for-
cejava por atar o fio de suas recordações meioapagadas
;porém a pouco e pouco se lhe avi-
vou a lembrança do que havia passado ; e já
subia para o apozento, aonde com Portocar-
rero travara o dialogo, que referimos, quandouma rija aldrabada, abalando a porta, o esta-
cou á entrada tremulo e desíallecido.
— ^Quem bate ?
— iAbri a Isaac de Santarém ! — gritou de
fora uma voz cheia, respondendo ao tiple es-
ganiçado da velha Rachel.— D'ahi a curto es-
paço um homem alto, de cabellos grisalhos e
aspecto grave, abraçava Issachar.
—iA bençam de Jehovah desça sobre ti
das alturas !— exclamou elle — Similhante a
Josué venho alentar as esperanças de Israel.
I— RÁUSÍO 7
98 Emprega da Historia de Portugal
—i Isaac ! — <» viste a Benóni ? ...
ique é
da minha Esther?— Segurou-lhe refúgio ura nazareno. Asse-
rena o ânimo.—
j Não me enganou elle! . . . dóste pelo avi-
so ... i o velho Judas ? ...
— Chegou tarde.— Pela volta da hora da
sexta á minha pobre morada bateu Samuel,
filho de Judas, e disse-me:^- Saúda-te Issa-
char de Coimbra, como o anjo saudou a Loth,
e te requer a filha do seu amor, a formosa Es-
ther. — Ergui-me, e ouvi. No outro dia ao
romper da alva ia ella caminho. .
.
—j Da perdição ! — atalhou comum suspiro
Issachar. Malaventurado de mim, que, tão ce-
go como Tobias, a atirei ao laço dos incircon-
cisos ....
— Mas logo depois — proseguiu Isaac—Pêro Britador, que alli viera feirar, segundo
costume, soube, que a haviam salteado e le-
vavam captiva dois cavalleiros da corte.
—iSim !
iandavam perto espreitando o lan-
ço ! — interrompeu o outro— por um escudei-
ro de Martim Cravo me enviou o armeiro es-
te aviso : — j Acautela-te ! dois amalecitas
que foram no homizio de Portocarrero, tra-
çam roubar a tua Esther .... j E eu tão louco
que de um velho trôpego fiei o recado, que só
de mim devera fiar ! . . . mas era próximo o
dia de arrecadar os direitos reaes, e . . .
.
—I Não creste no aviso do nazareno ? . ...
disse o outro — apenas me soou a noticia, cingi
as roupas, e respigando, como Ruth, no mes-
Obras completas de Rebello da Silva 99
quinho campo do meu thesoiro, segui-os pelo
rasto ; o oiro tentará o Pharaó incirconciso,
ou a sua linda Dalilla, dizia eu commigo—masnão me desamparou o Deus de Moysós : — des-
cançava á beira da fonte, todo embebido no
meu cuidado, quando avistei, galopando á ré-
dea larga um cavalleiro, que no perpassar mesoltou estas palavras — Socega Isaac .... a
Judia é salva . . . .ientregou-a o Alcaide de
Montemor ! — i Abençoei-o então como Joha-
zor abençoou a Eebecca na fonte de Ba-
thuel....'
—l E quem era o cavalleiro ?
— Robusto e victorioso fere o seu braço, e
similhante a Gedeão nunca lhe resistiram
muros, nem torres . . . chama-se Reimão Vie-
gas . . . três dias antes o havia eu agasalhado
em Santarém, e bem me pagou agora a poisa-
da . .
.
—iDeus de Abraham ! j é o mesmo ! . . . ha
pouco era elle aqui ... a noticia colhi-a da
sua bocca, e acreditei-o, que de largos tempos
o conheço, e nunca quebrou palavra, que
desse ... ; oh ! . . . j mas aquelle grito ! . . . era
de mortal agonia . . . mataram-n'o, Isaac, e
com elle morreu a esperança de Israel . .
.
O judeu depennava as barbas, e chorava
lagrimas como punhos. Isaac olhava para elle
assombrado, não sabia atinar com o motivode tamanho pranto . .
.
N'este momento pela rua soou um murmú-rio de vozes, e rumor de passadas ; e logo apóz
bateram na porta uma pancada rija.
ioo Emprega da Historia de Portugal
—| Deus de Moysé'»
!; são elles ! . . . j escon-
dei-vos Isaac, que vos não sintam ! . . .iRa-
chel, abri ! irosos os tornará a demora.
Dois vultos assomaram á entrada, rebuçados
em mantos escuros; destraçaram-n'os, é o
Judeu conheceu os dois cavalleiros.
~l Isaac, sabes a que venho?— perguntou
Estevam Pires.
Quiz responder o judeu, mas a voz ficou-
lhe presa na garganta.
— Por certo, que o adivinhaste já— prose-
guiu com um sorriso irónico o cavalleiro—amarga e acre ó a taça da vida . . . não sei te-
cer aranzeis . . .iserei breve! — £ aonde está a
chave de tuas arcas ?...j responde com umapalavra ! . .
.
—iNo inferno arda eu com Datan, Coro, e
Abiron, se tenho lá de meu um maravedí ! ..
.
achareis os direitos vencidos nas herdades do
senhor rei ... \ mas custar-me-hia a vida na
forca o perder uma mealha ! . . . j apiedae-vos
!
— E o judeu estorcia as mãos, e abraçava os
dois pelos joelhos.
— jFóra, cão maldicto! ...£ que tenho eu
com os direitos ? . . . da forca terás os olhos
mais apontados para o céu, e dançarás, cornoj
uma estrella, nos ares . . . j Issachar, e scolhe
darás a chave, ou amanhã na almacova dos
judeus chorarão teus irmãos sem remédio
sobre um cadáver ... A tua Esther é nossa
captiva . . .itodo o teu oiro pelo seu res-
!
—iMentis, nazareno !—bradou desatinado o
Obras completas de Rebello da Silva 101
judeu—isalvou-a o filho do relho, que assas-
sinaste ! . .
.
—iAh ! . . . não te enganes, meu querido
Issachar,— acudiu com amargo sorriso Fer-
não Gonçalves— Bem guardada a temos...
E amanhã uma loisa e alguns punhados de
terra cobrirão para sempre o segredo, jquo
dorme nos lábios do morto ! . . . j o homem,que d'aqui saiu, não verá mais a terra ! . .
.
—j Judeu o tempo corre ; só a preço de oiro
haverás a tua Esther ! j ou por Santiago Apos-tolo, que d'aqui a uma hora será já tarde o
arrependeres-te ! um golpe puxado d'alma . .
.
esse rio que vae fundo . . . e ficará tudo calla-
do entre dois . .
.
—Í Só vos esquecia o terceiro, meus leaes
cavalleiros
!
—iJesus !— exclamaram os dois espavori-
dos,—ió Portocarrero
!
—j Já não vive esse triste!— disse D. Rei-
mão—imataram-n'o saudades, desesperança,
e agonias ! . . .iagora só aqui está o servo des-
prezado, o pobre folião perdido, que jurastes
pôr ás varas ! . . . j como se esvaeceu o esforço
de tão robustos corações ! I tentaes as saídas?
j mais segura bateu a minha espada no alvo, do
que o ferro dos vossos assassinos no peito de
um falcoeiro sem ventura! . . . jjá vos conhecia
assas! . . . j agora, nobres cavalleiros, ó tambémjá tarde o arrepender-vos ! . . . j Pêro Brita-
dor ! . . . j são as adagas para as cingirem os es-
tremados, a estes nem cabem punhaes de co-
vardes !
102 Emprega da Historia de Portugal
armeiro adeantou-se cora alguns homenstTarnias, que haviam entrado atraz de Porto-
carrero ; depois do leve defeza, ficaram desar-
mados os dois cavalleiros, e á mercê do seu
contrario . .
.
—iAté que os alcancei ! — bradou D. Rei-
mão, com os olhos accosos em sinistro fulgor
— fáceis vem as traições aos que vivem d'el
las ... o segredo de que pendia a vossa rida
revolou-me o escudeiro de Martim Cravo —j a morte, que dispunham dar-me, acautelei-a
pelo aviso do judeu ! .
.
'..\ oh ! j agora ! . .
.
—iNão nos assassines—estamos á tua mer-
cê !—exclamaram os dois cahindo de bruços.
—j Não, mil vezes não !—bradou Portocar-
rero— j Mercê! .. . e esquecem os covardes,
que eu contei as feridas que tão fundas abri-
ram no peito do velho;que o vi, estirado en-
tre pedras tombadas, e traves incendidas, como coração frio, e os lábios desbotados . . . j e
que não morri alli! . . . j mercê !jpedis vós !
—
tornai-me primeiro ao meu passado tão riso-
nho . . . j cada dia a esfolhar-me esperanças,
cada hora a coar-me alegrias e venturas pelo
coração ! . . .(,quem me cerrou esse futuro tão
esplendido? i quem me envenenou a essência
da vida? . . . ^esta alma pura, e singela, quem a
converteu em demónio?— ipobre vida que já
vivi, que saudades tuas me doem na alma ! . .
.
j oh ! j e tudo isso espedaçaram elles contra a
pedra ensanguentada de um sepulchro ! . .
.
Uma pausa solemne se seguiu:— de repen-
te Portocarrero soltou um rugido, que era
Obras completas de Rebello da Silva io3
como o rebentar de todas as fibras do cora-
ção; e tirando a adaga deu dois passos para
elles.
—; Misericórdia!— bradaram os dois, solu-
çando.
Recuou, poróm; e enfiando o bulhão, comgesto pausado, accrescentou:
—iNão !
iora morcê ! . . . homizio por homi-
zio ...imas na forca peã e popular dos tró-
dos ! . . .jpagem !
jque enfreiem o meu corre-
dor pombo;— o meu montante bem afiado. .
.
jao castello de Montemor!— j Serão estas as
primeiras arrhas da rainha de Portugal ! . .
.
j o resto pagar-lh'o-hei á volta ! . .
.
VII
O preito
Cinco dias haviam resvalado já sobre aquel-
la noite, que tão branda e saudosa passara in-
volta no seu clarão suave pela face da guer-
reira Coimbra, emquanto o tumulto medonhodas paixões e as tempestades da alma contras-
tavam na terra a serenidade do céu.— Formo-sa rompera a manhã ; o sol entornava torren-
tes de luz sobre as veigas, e oiteiros inter-
meiados de vinhas, ou cerrados de arvores, cu-
jo tope ondeava a viração, que, murmurandopelos eirados das casas semi-arabes no gosto
e pelos adarves e troneiras do alcácer moi-
risco, ia, roçando o leve sopro pelas aguas do
Mondego, responder lá embaixo com o gemi-
do affbgado das ramas ao sussurrar da cor-
rente que se debruçava por entre sinceiraes
viçosos. Em uma das salas da alcáçova dois
homens continuavam uma larga conversação,
cortada a espaços por momentos de silencio,
ou por meneios de enfado do mais moço, que,
io6 Emprega da Historia de Portugal
vestido em rico breal, apertado pelo cinto degamo lavrado de prata, d'onde lhe pendia o
bulhão, nos modos umas vezes sôccos e irosos
outras irresolutos e ambíguos, denunciavaque o ânimo lhe vacillava incerto sem assen-
tar n'uma vontade robusta e firme. — No as-
pecto grave, na compostura do gesto, e na in-
leireza das palavras estava o outro descobrin-
do o coração, que se não dobrava a fala9
mentidas, ou a lisonjas doiradas de cortezãos
refalsados.
Depois de curto silencio, o mais moço, quetinha a cabeça entre os punhos, e os cotovelos
fincados nos joelhos, ergueu de súbito a fron-
te nobre e gentil, accêsa em rubor, e pondo-s«
de pé, gritou com voz áspera e truncada
:
— ; Não! Em elmo de cavalleiro se engastou
a coroa d'este reino ; e nunca servirá de tim-
bre á mitra, ou no embater ousado espedaça-
rá o báculo do bispo o sceptro real, emquan-to me não fallecer a vida .....
isou rei, e sou
christão ! por essas terras alvejam mosteiros
e egrejas, thesoiros e senhorios, reparti por
elles com vontade sincera .... icontai-m'os! . .
.
Prior, não sereis vós que me ensinareis a.fó !
— A fé vive na alma, e mora no coração ;—
respondeu Fr. Gil com ar severo— e essa
ninguém dirá que esmoreceu no peito de D.
Sandio . . . mas as lagrimas do afflicto não as
seccam thesoiros jos grilhões do servo, de oiro
que sejam, curvam-n'o para a terra, e lhe ro-
çam pelos ossos ! . . . afflicta e escrava é a egre-
ja...
Obras completas de Rebello da Silva 107
—i Nunca o foi! . . . inão o será!— bradou o
rei. —j Errado é o quo dizois !
— Não tos menti eu nunca, senhor, j nun-
ca ! . . . Polas crastas d'ossos mosteiros resoampragas de servos, risadas e vozes de prosti-
tutas; nas ameias e torres dos conventos scin-
tillam achas e azevans de piões, e a toada de
rimances devassos mistura-se com os cânticos
e orações dos monges ; ricos-homens e caval-
leiros albergam nos casaes, e até nas cellas,
convertendo as terras e casas da egreja emostalla de seus ginetes, em covil de suas
adúas . . . como á antiga Sião lanças e cutellos
a cercam, rodeam-n'a tendas de guerreiros,
e pelas frestas de pobre ermida sibillou já o
granizo das settas, e se tingiram as naves de
sangue innocente! . . . Senhor rei, aos olhos
de Deus a obediência vale mais do que o sa-
crifício.— Cumpri o que de vós requer o se-
nhor papa.
D. Sancho passeava torvado pela sala, e no
seu rosto se pintavam duvidas e receios; masa final estas verdades, que vinham do intimo
de um coração purificado de ódios e conve-
niências terrenas, o despertaram do torpor,
varreram incertezas, e calaram no ânimo.—
i Farei como dizeis!— respondeu elle—de mansidão e brandura tem sido este meuthrono, lá se ha-de sentar agora a justiça, se-
vera, despiedosa, inexorável ... i mas quedirão elles?
— Que sois christão, que sois leal á fé—atalhou Fr. Gril— j ninguém o ousará negar!..,
108 Emprega da Historia de Portugal
—«jNinguem? ... enganaes-vos, devoto prior;
dirão . . . l mas que importa o que elles dirão?...
iante a voz do Deus calam interesses do mun-do !.. . Padre, bastará isto para merecer . .
.
—iO perdão do céu?...— interrompeu o
frade, com aspecto grave—só com palavras
não se alcança . . . deveres de rei esquecestes
vós por uma paixão sóstra e louca . .
.
—j Padre!
— Verdades amargas são estas, mas verda-
des . . . Maldicto ó o homem que não arremes-
sa á arena da lucta sceptro de oiro, e falas de
paz, que asserenom os ânimos, e apaguem esse
pelejar cruento de irmãos... j ai do triste!
que melhor fado cabe aos que dormem o
somno extremo nas gandras ensopadas emsangue, do que ao malaventurado que fica
com o peito ralado de remorsos a olhar esses
campos, aonde alvejam as ossadas dos fortes,
a ouvir lastimas e supplicas faladas em lin-
guagem, que é sua, a vêr ermas e mudas as
villas e cidades, sem haver um som, um ge-
mido ao menos, que lhe lembre o rumor con-
fuso das mil vozes de um povo ! . .
.
— iQue ó isso que dizeis?<Jque painel estaes
traçando? . .
.
— E' triste, mas é assim, senhor rei ... oh
!
e que inferno de agonias e amarguras lhe an-
dará lá dentro, quando, do seio da solidão mal-
dicta, surgir coroada de incêndios, e trajado
na purpura de sangue o demónio do extermí-
nio, bradando-lhe por entre o riso torvo :—
iQue miras? Viveu aqui um povo; jo sepul-
Obras completas de Rcbello da Silva 109
chro abriste-lh'o tu ! . . . essas pedras requei-
madas e soltas formaram cidades risonhas e
alegres; esse torrão árido já foi estendal do
formosos prados; era tudo ditoso, e rico,
j transformaste-o tu em deserto ! . . . ao amorimpuro, á ambição cega de uma mulher ven-
deste os brios d'esta nobre terra, a tua ven-
tura, | e a de um reino inteiro ! . . . j és grande
no crime ! . . . j és egual a Satanaz! uma pala-
vra de soberba tornou réprobos milhões de
espiritos celestes, uma paixão tua riscou do
livro da vida um povo inteiro ! . .
.
Pálido, immovel, e espantado o ouvia D.
Sancho ; a voz embargou-lh'a na garganta o
assombro, o gesto prendeu-lh'o o pasmo, masrevelavam o seu padecer os lábios trémulos,
e o coração que batia atropelladamente. Poralguns instantes o contemplou Fr. Gil silen-
cioso, depois accrescentou:
— ; Esquecei essa mulher! jesquecei-a, se-
nhor rei! o sello da reprovação escreveu-o
Deus na fronte do primeiro assassino, mas o
nome do algoz de um reino até o inferno re-
ceia soltal-o!
— Frade, larga tem sido esta prática, jbemlarga ! \ seria peccado tentares por mais tempoa paciência de um homem ! . . . até aqui affo-
guei a ira, que me abraza, mas . .
.
—i Rei!— bradou o prior com voz cava—
pende de um fio a tua coroa . .
.
—iEmbora ! o seu peso esmaga-me.
— nome de cavalleiro . .
.
i io Emprega da Historia de Portugal
— Aqni está bota de golpes a minha adagapara o provar . .
.
— Na terra a felicidade, a salvação no . .
.
— Mil annos de mortal angustia por umahora d'este viver do céu . . . frade, o amorpuro, que se desatou viçoso dentro n'alma
não o podes tu avaliar ! . .
.
Uma lagrima se escoou pelas faces cavadas
do Telho, encruzou os braços, e ergueu os
olhos para o céu.—A pouco e pouco se lhe
accendeu a vista, assomou-lhe ao rosto leve
rubor, e extendendo o braço, com voz cortada
e solemne, como se o tomassem assomos de
inspiração divina, exclamou:—
j Tarde será o arrependeres-te ! a mão do
Senhor vergou pesando os crimes d'esta gera-
ção; contou Deus os dias do teu reinado . .
.
as rozas e amores, que te esfolha a vida, co-
brem espinhos e cuidados . . . breve e amargaserá ella jao cabo desesperança, remorsos, e o
sepulchro ! . . . j o sepulchro ! longe dos teus
em terra estranha . . . Na vida, mágoas e ago-
nias ; na morte, desamparo e solidão ; nem umalagrima de saudade, nem um suspiro, nemuma bençam sobre aquelle |que foi nobre, ca-
valleiro e rei ! . . .jpobre rei !
jque nem ao
menos deixarás um écho de gloria vã ! . .
.
j silencio e trevas te sumirão no seio da eter-
nidade !
O prior saiu arrebatadamente. ED. Sancho,
enleiado em fundo meditar, nem se bulia
d'onde ouvira estas derradeiras palavras ; de
repente rompeu o fio de suas reflexCe», e se
Obras completas de Rebello da Silva 1 1
1
encaminhou para uma porta, que dava para
o interior; recuou. — De pé e com a mão cer-
rada ao peito, era alli a rainha D. Mécia; na
pureza das linhas, no suave contorno das fei-
ções, e no olhar brando e triste recordaria ella
aos que a vissem hoje essa belleza ideal, crea-
ção divina da arte, que encarnou com seus
toques sublimes na formosura melancholica
da Virgem o pincel de Rafael Sanzio. A dôr,
que lhe estorcia o coração, retratavam as fa-
ces desbotadas, os lábios trémulos e descora-
dos, e os olhos affogados em lagrimas.
—iOuvi tudo !
— disse D. Mécia, apertando
com anciã o braço do rei, e fitando-o com des-
alento íntimo— [tudo! joh! jque martyrios
insoffridos curti em cada instante ! . .
.
—jNão desfalleças! . . . <Jque valem as vozes
de um louco ? . . . \ nem eu sei o que elle disse
!
— jNão eram, não !— respondeu a rainha—
a8 vozes de um povo inteiro podem mais do
que o desvario das paixões . . . irei longe, mui-
to longe esquecer . . . ;oh !\que não se esque-
cem amores como estes ! . . . viver vida de sau-
dades . . .iirei ! que o requer a ventura d'esta
terra que é já minha, a gloria da coroa . .
.
—iNão irás !
— bradou o rei, atirando-se a
seus pés suffocado em choro— j Seria peccado
decepar a bonina porque se desabrochou á
beira do abysmo ! . . . não me cortarás tu este
affecto sancto, que me prende á terra . . . é o
único raio de esperança que desponta no ho-
risonte escuro da existência . . . jo throno nu-
ta estremecido pelo escareou d'esse mar re-
1 1
2
Emprega da Historia de Portugal
volto de paixfles ; a coroa um tufão a varre
da fronte; mas este amor! . . . j ninguém!— Senhor, sabeis que por vós me apartei da
torra de meus pães;que por vós arrisquei
nome, que vem de reis, fama . . . tudo quantouma mulher pôde arriscar—ique vos pedi
eu?... amor que pagasse tamanho amor—como só vos pedirei agora o abrigo de ummosteiro, uma saudade, que vos recorde essa
mulher que vos amou tanto, e depois . . . umaloisa para cobrir os ossos, e a esmola da ora-
ção, ique é de todos ! . .
.
—i Nunca! jés minha esposa! ique venham
arrancar-te d'aqui !— exclamou D. Sancho es-
treitando-a nos braços.— | Não ha-de ser
!
—j Ha-de ser ! — replicou D. Mécia— j ou-
vi-me!— ha muito, na primavera, vagueavapelo horto; parei ao pó do rozal— uma flor
se desapertava do botão— era linda como as
mais lindas, e a preguiçosa gentil desenrolava
as folhas ao sol, que lhe estava coando amo-res . . . vi-a, e passei. Ao outro dia não sei por-
que tornei lá— murcha pendia da haste, coma côr desbotada, sem o alento suave de seus
perfumes . . . mas na orla de uma folhinha, da
mais tenra, poisara o orvalho uma lagrima— a ultima que bebeu a pobresinha ...
\co-
lhi-a ! . . . e logo pelo coração me correu umpressentimento negro . . . representou-me o
fado na triste roza . . . olhae ó esta . . . j morta,
esqueceram-n'a todos! . .
.
— Calla-te, — gritou o rei.—\Que me im-
portam os agoiros insensatos de um frade! ...
Obras completas de Rebello da Silva 1 1
3
jAh! ^querem-n'o assim?... Verão que de
meu pae herdei o ânimo duro e tenaz . . . este
casamento, que a occultas se fizera, já adivi-
nhado de muitos, em três dias o hei-de apre-
goar ante os meus ricos-horaens, e cavalleiros
iem que pez a tredos e desleaes ! . .
.
Os olhos de D. Mécia brilharam alegres, e
um sorriso mal disfarçado se lhe espraiou
pelo rosto. A sua alma, que era um abysmode ambição, envidara n'este lance todas as
posses e fingimentos, para ostentar uma pai-
xão, que não existia— não a illudiram seus
cálculos ; surtiu effeito a astúcia ; e por isso
o coração se lhe dilatava; para esconder a
alegria, lançou-se lavada em pranto nos braços
do rei ; os soluços parecia que lhe estalavam
o peito.
— iComo ella me amava ! dizia comsigo
D. Sancho.— iHora de venturas em que assentei na
fronte essa coroa, que tanto anceio ! murmu-rava ao mesmo tempo D. Mécia.— Será teu o castello de Ourém — prose-
guiu o rei, depois de leve silencio — dou-t'o
em arrhas — é o preço do teu corpo. Um ca-
valleiro moço e esforçado escolhi para teu al-
caide ; mataram-lhe dois réfeces o pae . . . esse
caso contou-m'o ha dias o Prior ; e quero pa-
gar ao filho a dívida em que estou com o ve-
lho Martim Viegas ! . . . hoje mesmo . . . embreve estará elle aqui a prestar o juramentode preito . . . j dos assassinos justiça tremendase fará ! . .
.
i— hàusso 8
i <4 Empreja da Historia de Portugal
—| E já se fez, senhor rei ! — gritou da en-
trada Portocarrero, a quem dois pagens ha-
Tiam já annunciado sem o rei dar por isso.
D. Sancho voltou-se para elle como espantado:
— d Quem sois para assim entrardes sem ser
requerido ?
— Sou Reimão Viegas Portocarrero, quesobre aviso vosso mui secreto, venho prestar
a esta linda Senhora o juramento . .
.
—iAh !
— disse o rei asserenando o parecer— fazei-o, que amanhã será sabido, o que dis-
punha calar ainda Portocarrero ajoelhou
deante de D. Mócia, que lhe tomou as mãoientre as suas
:
—<J Que juraes Dom Cavalleiro ?
—j Juro pela alma de meu pae, e pelo Céu,
que nos vê, nuuca render ou entregar o Cas-
tello de Ourém, no alto e no baixo, irado e
pagado senão a Vós, ou quem de vós houver
preito e menagem!Mas estas palavras despegaram-se-lhe dos
lábios soltas e repassadas de accento frio e
irónico ; e a vista, que pregou no rosto da
rainha era sombria e sinistra — quando disse
só a vós um sorriso horrendo lhe assomou rá-
pido aos lábios para logo se sumir — mas era
evidente que alli encerrava elle um pensa-
mento cruel.
—iEm Ourém será soldada a dívida de
sangue ! . . . ; até lá mui linda e excellente se-
nhora !
Era este pensamento, que transparecia no
rosto do novo alcaide.
VIII
Monteria
A promessa, que o rei empenhara com D.
Mecia, esse casamento, que encerrava em si a
eterna desventura de um monarcha, de ura
reino, não fora apregoado ainda : quando asse-
renou o fervor das paixões e socegadamente
attentou D. Sancho nas murmurações, na aver-
são, e nos ódios, que rompendo por entre tro-
péis de cortezãos, lhe resoavam nos ouvidos
;
quando, arredando os olhos do vulto desco-
munal do clero, que, entestando com o thro-
no, lhe atravessava abertamente o intento, os
volveu para os seus ricos-homens e cavallei-
ros, enxergou-os a todos irados e sombrios,
lavrando-lhes no peito desejos de cega cobi-
ça, luctando-lhes n'alma anciãs de vingança,
e aguardando o desfecho, como pelejadores,
que suspiram pela hora breve de entrar na li-
de.
Mudou então de parecer, e determinou ten-
tear os ânimos rebeldes, favorecer as ambições
i íí Emprega da Historia de Portugal
dos senhores, e ganhar a vontade dos popu-lares, para assim crear uma parcialidade ro-
busta, que, trayada estreitamente com o* in-
teresses da nova rainha, os provasse á espada
no campo aberto das pelejas.
Este plano delineado com astúcia fora obra
de D. Mecia; e lograria cabal victoria se vis-
ta mais aguda, pensamento mais atilado, e
mais tenaz e dura vontade, do que a sua, o
não estorvassem ; dobando pelas trevas mãoocculta lhe desfazia ou baralhava os fios do
concerto, adivinhava tudo, e torcia ou derro-
tava o que se representava"mais seguro e cal-
culado. Quem fosse, ninguém o sabia, maspela mente da futura rainha já passara, rápi-
da, uma suspeita.
Ao romper da alva de um dia de primave-
ra, formosa cavalgada transpunha o portal da
alcáçova, e á rédea larga saía ao campo. Os
saios verdes, que vestiam os cavalleiros, as
lanças de monte, as trompas a tiracollo, as
adúas de cães atrellados aos pares, e as rizadas
e louco folgar dos que n'ella iam, estavam de-
nunciando que monteria brava teriam as foras
ainda adormecidas nos seus covis.
Em vistoso palafróm, com os cabellos toma-
dos por grinalda tecida de rozas e boninas,
seguia I). Mecia o alegre cortejo; o mantoforrado de pélles ondeava ao sopro da briza,
emquanto as dobras da garnacha rica, aperta-
da polo cinto de gamo, desciam em airosas
pregarias sobre os sapatos brochados, aonde
rosaíam bordadas a ouropel as armas do rei-
Obras completas de Rebello da Silva 11
7
no.— O garbo no colher as rédeas, a compos-
tura do gesto engraçado, o sorriso que lhe
descerrava os lábios, o as faces incendidas da
linda fragueira quebravam de inveja os
olhos dos cortozãos, o ateavam cada vez mais
a paixão ardente de D. Sancho.
—d Cervo prompto no vento e bons alões,
mestre Pêro ?— perguntou el-rei.
— Senhor, si. Náo lhe perderão estes o rasto
na abalada . . . j é cervo real, cervo de dez ga-
lhos!
— i Cuidado ! — bradou uma voz — passou
aqui javardo novo . . . deixou as peugadas . .
.
—j Batei moitas e balseiras ! — acudiu ou-
tro.
—Í Avante!— gritou á uma o tropel— é
rasgar por valles e oiteiros, se não quereis
perder o lanço.
E tudo a despedir a carreira ; voam em re-
demoinho sabujos, corcéis, e monteiros; de-
baixo dos pés dos ginetes tremem gandras
e montes; brados, latidos, e relinchos reboamao longe, sôa o fragor das armas, e a trompaabala a selva. «—
iAVante ! iávante !» exclama
a rainha, soltando rédeas ao palafrém.
Do seio da cavalgada romperam de súbito
clamores de júbilo:
—iO cervo levantando ! desatrellae os sa-
bujos; alargae a corrida... | corrida aber-
ta!...iandar, andar! jvalem muitos pés ao
gamo ! . . . andar, que não esperava . .
.
E todos arremessaram os cavallos apóz a
matilha, que se atirava despeada e férvida na
i iS Emprega da Historia de Portugal
pista do rei da selva; rolos de pó turvam a
vista, e os escondem dos olhos da rainha,
que, sem elles o advertirem, no alvoroço, so-
peara a fúria ao ginete, detendo-se n'um alto,
para resfolgar á vontade.
Mas a toada das trompas e clarins espantou
outras foras: no momento, em que D. Meciadava de vara ao corcel, um gamo novo, atra-
vessando o caminho, pulou do cabeço para
uma balsa; o palafróm refoge, ennovéla-se,
e fazendo chaças, tenta sacudir o pêzo, quelhe tolhe a fugida.
A rainha pendeu-se atraz, e puxou as ré-
deas, soltando vozes de pavor : de repente ao
seu lado aponta um cavalleiro, e mâo segura
prende as rédeas.
D. Mecia olhou para elle ; era o seu PagemMondo Pires.
IX
Rosa de saudade
Mendo desceu do palafróm a donosa caval-
leira ; e ficou de braços encruzados, e os olhos
pregados no chão sem dizer palavra : a rainha
encetou a practica
:
—iBemvindo, meu formoso donzel !
<Jo ale-
gre folgar de monteiro não te prendeu a von-
tade, nem te varreu o prazer da lembrança da
tua dama?. . . leal foste sempre, e sempre ao
meu lado te descobri em hora tal.... vê que
ingrata que era —- accrescentou com brando
sorriso — tudo esquecia agora ....
—i Ingrata não, linda senhora! alma tão
gentil não o sabe ser— retrucou Mendo me-lancholico no gesto—
<Jque vale o vosso pagem
para vos andar de continuo na memória? . .
.
nunca o triste o creu . . . .inunca ! j seria lou-
cura o cuidal-o
!
D. Mécia encarou-o pasmada da amargura
de que vinham repassadas estas íalas; vis-
lumbrou-lhe um receio, um pensamento ; masnem se atrevia a acredital-o : disfarçou-o.
1 2© Emprega da Historia de Portuga
— (í Porque te apartaste meu donzel? locervo, que me atravessou o caminho, trans-
viou-te da abalada ?
— Não foi o cervo, senhora minha— j não
!
larguei a monteria por aquella que me leva
cuidados e....je essa já alli não era!...
temi .... algum caso, algum risco, tudo ....
j nem eu sabia o quê ! . . . corri, busquei-a an-
ciado, até que a alcancei ....
— £E desejas voltar breve, não é assim?
em ligeiro ginete cavalgas ; de longe soa a
trompa ; não espaces a volta. Vamos, ardido
fragueiro, solta as rédeas ; aguarda-te o gamopara a derradeira corrida.
—j Não irei se o não mandaes ! . . . recorda-
me elle sou louco, nem sei vencer-me. Láse anda o coitado furtando á morte ; espinhos
que o ferem não lhe doem; ó vigor não lh'o des-
fallece a larga carreira; j ainda espera ! Cor-
tem-lhe o ultimo lanço de salvar-se, dará emterra esmorecido .... morto de desesperação
;
que primeiro o acabará ella do que o tomemferros, ou raivosas matilhas . . . . j roubar-lhe
eu extremo abrigo, seria crueza ! . . . tambémme soou a esperança n'alma.
—j Mendo ! que triste que estás . . . . e não
só de hoje. ^Meu pagem, quem te matou o
alegre viver? £ quem te apagou o riso dos lá-
bios?. .. tens os olhos pisados, as faces des-
botadas.. . . <» donzel, tu choraste?
— Chorei, senhora minha, chorei sobre essa
existência, que toda deslisava por entre ven-
turas e contentamento; sobre este coração
Obras completas de Rebello da Silva 1 2
1
que se desatava cora jubilo ao sol da vida,
como bonina ás orlas do areal rovôlto, des-
cuidado da procella quo tinha do o quei-
mar .... sobro esso tão doco e esquecido viver,
que fugiu, que definharam amargos prantos,
lagrimas, o desesperança eterna.
—I Pagem, tu amas?
— jSe amo! [amo, linda senhora, amo mui-
to ! ... j amo d'alma ! . . . mas. . .
.
—c5Responde com rigores a ingrata ao teu
galanteio, com desprezo talvez?... Socega,
meu donzel, por nobre e senhora que seja, não
lhe cede o teu brazão, e tão alto subirás queto acceitem
<Jquem é ella ?
— ^ O seu nomo ? . . . nem me atrevo a pro-
feril-o .... crésta-me os lábios . . . • adoro-a
como no céu so adora a Virgem, de joelhos e
sem erguer a vista ....
— I E no rosto, ou nos meneios não lhe co-
lheste mostras, que te dêem algum alento ?
— j Nenhumas! nunca o tive eu; [nunca!
[Senhora minha!... este amor callei-o, nin-
guém o adivinha; está sepultado aqui; mor-
rerá comigo, desconhecido, despresado, [mas
escarnecido, não ! . .
.
—E's leal meu donzel [leal em extre-
mo! . . . quasi que me gera invejas a tua dama—proseguiu a rainha, sorrindo-se com ar
chistoso— ^dize-me, e pela mais linda, dono-
sa, e engraçada de todas a apregoas? <Jnão é
verdade ? olha, Mendo, mentem muitos olhos
e vozes de namorado ; não o crês tu agora. .
.
<í e sabe ella que a amas tanto ?
t22 Emprega da Historia de Portugal
— Não o sabe . . . . j não o saberá nun«a
!
|que não ousa o sem-ventura revelar-lh'o ! . .
.
se elle o ousara com a face no pó bradaria,
como eu brado agora:— senhora, houve na
terra um homem, que vos quiz muito, quevos amou com todo o amor que n'alma ca-
bia . . . . e nem de consolação, nem de esperan-
ça o sustentava o triste .... abafou esse affe-
cto, recalcou-o no fundo do coração que es-
tallava . . . viveu, se aquillo era viver, a olhar-
vos, a ouvir palavras meigas, sorrisos suaves,
que entornavam um paraiso de deleites no
peito d'outro mais ditoso, que lhe estorciam
o seu com anciãs, ciúmes, e agonias incom-
portáveis e nunca uma vista ardente, nun-
caum grito de dôr arrancado do íntimo denun-
ciaram o incêndio, que ia lá dentro . . . . j nun-
ca !. .. Chorou esse homem .... chorou muito
;
mas as lagrimas de sangue, vertidas por mar-
tyrios insoffridos, bebeu-as elle só ... . sumiu-as todas no coração
—Mendo— gritou a rainha— l enlouque-
ceste? .... que estranhas falas ....
—iOuvi-me, linda senhora, que me ou-
vis pela derradeira vez ! . . . a esse malaven-
turado acabou-se o soffrimento . . . . já não
pôde mais .... amanhã lá se vae em lides de
moiros descobrir o peito ao alfange do des-
crido .... i vae ganhar morte breve, que lhe
dê repouso ! . . . morte do corpo, que a alma
traz elle morta ha muito ;dae-lhe um sus-
piro, uma lagrima, que alveje sobre a lousa
do pagem, dae-lh'a que frio e gelado a senti-
Obras completas de Rebello da Silva 123
rá ainda o pobre ! . . . jalentae-o com falas
brandas, oom um sorriso ao menos, que o sa-
crifício ó grande, e o trago de fel bem amar-
go !.. . fazei-o, senhora minha, não vos des-
luzirá a coroa; mais perdeu o triste, que
trocou por vós as rosas da vida, pelos goivos
da morte, pelo cypreste de sepulchro esque-
cido !
D. Mécia o escutou assombrada; Mendo,
ajoelhado e com os olhos affogados em pran-
to, parecia nem ouvir, nem sentir.
— Mendo — disse ella, depois de breve pau-
sa, com ar de magoada— louca é essa pai-
xão. . . . j amor de creança, que nem sei levar-
t'o em mal !.'.
. o tempo ha-de-o arrefecer. . .
.
ha-de apagal-o de todo. Vae, meu pagem, não
te tolherei o intento nobre, vae a guerrear os
infiéis; arnez e elmo te endurecerão o pei-
to Volta com o broquel assignado de gol-
pes, rico de glorias .... partirás amanhã ....
jhoje mesmo!O donzel poz-se de pé, e beijou-lhe a mão
com funda tristeza; — despregou-se n 1
aquelle
instante uma rosa da grinalda da rainha, ©
bateu no seio do moço;pegou-lhe elle, e com
suspiro entranhavel lh'a entregava.
— Não, Mendo, irá comtigo, se a cubicas
— acudiu ella sorrindo-se mansamente— sau-
dades da tuaj dama recordará a rosa \ leva-a
!
ninguém o estranhará, j Sê bom e esforçado
cavalleiro ! . . . agora convém que te apar-
tes .... se algum dos meus for perto, envia-
m'o; aqui aguardo; não seguirei a monte-
124 Emprega da Historiai de Portugal
ria .... olha, men pagem, quero Ter se á vol-
ta ainda a pobre flor te anda conchegada ao
coração hão-de invejar-t'a lindos olhos. .
.
hão-do requerer-t'a ciumes .... ^e quem sa-
be se a osquecerás, meu donzel ? . .
.
—iNunca, senhora minha, nunca! pensarei
muito em vós j sempre! j como se pensa
na formosa imagem do archan}o radioso e
cândido, que transparece em sonhos a esfolhar
osperanças sobre o que só assim revê ventu-
ras ! . .
.
Um raio de alegria sulcara o semblante do
pagem : D. Mécia acenou-lhe que saisse ; sal-
tou de leve no corcel, chegou-lhe os acicates,
e affastou-se a bom galopar; já de longe vol-
veu o rosto atraz, e cerrou a mão ao peito
;
sumiu-se depois na distancia.
—j Pobre Mendo ! — murmurou a rainha,
rebentando-lhe duas lagrimas; e ficou por
momentos toda suspensa em alto meditar
;
seriam ellas recordações, ou mostras de pie-
dade; seriam voz do coração ou suspiro d'al-
ma.— Nem ella própria o saberia talvez ao
certo.
Traição contra traição
Em breve planície, que se alargara entr«
torcidas e estreitas veredas aguardava im-
movel um troço de homens d'armas e bestei-
ros de cavallo o momento de arremessar os
ginetes pelos plainos, que se estiravam ao lar-
go ; enfado e cançasso estavam todos denun-
ciando nas posturas e movimentos ; e a vista
que alongavam pelas sendas, que prendiam
n'esta clareira, revelava o motivo, que alli os
detinha : esperavam algum aviso.
—iHora de terça ! — exclamou com modos
irados um cavalleiro já de annos — i leve o
demo gamos e monteiros ! . . . \E nós desde o
quarto d'alva por valles e serras como as ra-
pozas matreiras a rastrear-lhe os passos !
boa prêa corremos, mas desconfio já do lan-
ço ... . pois se perderam este, tarde será achar
outro egual.iAh!; Gonçalo Esteves já de
volta !(JEntão homem, resoam esses mo-
íinos clarim» ? £ Por onde vai a abalada ? que
126 Emprega da Historia de Portugal
me parece tudo abalado juraria eu por San-
tiagoinem sentida de longe se apercebe
aqui ! . . . . i avistaste alguém ?
—E' que longe e muito longe iam os fra-
gueiros lá para as bandas—
j Sim ! j sim ! Para o sitio que havemoimister
;<^mas parou tudo de súbito ? ...
— Senhor, sim : ó para maravilhar ; bomvento sopra ; e de pouco apupavam bozinas
inda que esmorecida nos vinha a toada . . . . j e
callar de salto tudo ! . . . . I teria que ? . ..
j ah
!
olhade ! j ahi temos noticia segura
!
E o besteiro apontava para um caminho,
que girava por entre oiteiros ; á fulla-fulla se
atirava um cavalleiro, que, chegado ao pé,
colheu as rédeas, e saltou abaixo mui ligeiro.
—d Que novas ? — perguntou o velho com
viveza.
—j Boas ! — redarguiu o outro. — Senhor
Martim Cravo, surtiu effeito o plano ....
— I E D. Mécia onde é agora? . .
.
—Perto a tendes, que se transviou dos
seus: em Coimbra arde o tumulto; os caval-
leiros de Riba do Doiro cercam a alcáçova, e
os populares accêsos em ira se junctaram no
terreiro da sé com suas azevans e cutellos : a
grita é espantosa; e já dois recados enviou o
alcaide a el-rei ....
— (>E requerem ?
— Que se aparte sua senhoria da feiticeira
;
ó seu prepoedor o armeiro Pêro Britador.
—j Ah ! j e eu aqui ! i Aonde está D. San-
cho?
Obras completas de Rcbcllo da Silva 127
— Galopa a bom galopar caminho do
Coimbra. — Logo que lhe soou o caso, dispôt
roltar á alcáçova; n'aquelle momento soube-
ra pelo pagem Mendo como D. Mécia ficara
atraz, perdida da cavalgada . . . . e determinouafasta] -a.
— • £ Que aviso manda Portocarrero ?
— Pede-vos que, por atalhos e a bom cor-
rer, lhe tomeis a deanteira ; e aqui tendes o
seu bulhão para o que sabeis.
—j Percebo ! ó tempo de acabar com os
taes milhanos .... Escudeiro, com cinco dos
meus, sáe-lhe ao encontro, e avisa-o de quese fará tudo como requer . .
.; Vamos ! \ andar,
andar
!
E o escudeiro com os cinco homens d'armas
despediu logo á rédea larga, em quanto Mar-tim Cravo voava pela estrada de Montemor.A curta distancia toparam com a cavalgada
da rainha ; o escudeiro arredou-se com Porto-
carrero, e falou-lhe em segredo por alguns
instantes.— No rosto sereno e rizonho de D.
Mécia não transparecia o menor vislumbrede pezar ou temor; n'um relance calculara
ella todas as vantagens e riscos ; e apurara to-
das as artes do seu engenho agudo e promptopara dissipar este novo obstáculo ; alcançou
logo, que, vencido o alvoroto peão, se lhe abria
limpo de estorvos o caminho da coroa; e quena lide, rompendo por entre as mós de popu-lares desfeitas, a boa lança do rei havia de
asselar com o ferro o pacto tácito de ambos
;
sabia eguaJmente, que apenas a signa real es*
i a8 Emprega da Historia de Portugal
voaçasse tendida ao bafo violento da peleja,
a tinham de rodear aquelles mosmos que maiscontrários se declaravam contra o seu inten-
to : e nâo era duvidoso, que no embater do
montante do cavalleiro contra a azevan popu-lar, voaria esta em rachas :— previa, também,que, deante d'aquella lueta, se refreariam
ódios e ambições; e que a espada do rico-
homeni desceria a embargar na garganta a
voz do povo para que ao depois lhe não affo-
gasse a sua.
Por isso do fundo do coração saudava a ho-
ra em que rebentara o incêndio, que, longe de
relaxar o laço, que a estreitava a el-rei, o ti-
nha de apertar mais; e que, provando com a
adaga em punho o seu direito, a alçava ao
throno a despeito, e por mãos 'dos que tenta-
vam arredal-a: que esse throno assentasse
sobre cadáveres truncados;que o salpicasse
sangue de vencidos ; e o amaldiçoassem gemi-
dos e prantos de afflictos;pouco se lhe dava.
E todavia o dedo de Deus escrevia n'esta
hora, a par do dedo dos homens, a eterna des-
ventura deum rei, e seccava para sempre estas
esperanças doiradas, que lhe adejavam emroda, deslumbrando-lhe os olhos.
Emquanto os dois practicavam, D. Mécia
ria, e continuava na conversação, que trava-
ra com o seu pagem.—
iTodos ! dizes tu, jmeu donzel ! . . . recua-
ram muitos deante de suas achas afiadas . . . é
feroz e cruel nas suas iras o povo ; e quando
mesteiraes, e villõee o revolvem não se lh«
Obras completas de Rebello da Silva 1 29
estanca a sede senão em mar do sangue . . . #sa-
bes o que os de Compostella obraram contra
a rainha D. Urraca? . .
.
— Sei, senhora minha: jmas sei tambémcomo cortam espadas leaes por corpos de tre-
dos!... boa de beber se lhe affigura a taça,
mas o trago mais amargo ó o ultimo, e esse
tem de o provar . . . ié o que vos digo ! . . . sahi-
ram todos os que sentem brios de cavalleiros
á lide;jmas Deus perdoe ao braço que vibrou
o golpe !io cutello ha-de espedaçar-se nô en-
contro, mas a mão oceulta, que o guiou?...
— i Não entendo o que receias !
— Não são receios, linda senhora, é* certe-
za. Esse povo, que trasborda e ondea comovaga agitada pelas procellas não se ergue por
si só ...iconcerto encuberto, e traição de se-
nhores desfecharam o tiro ! . .
.
—j Seja como fôr, meu donzel !— redarguiu
a rainha depois de leve silencio—De um sei
eu que me não ha-de desamparar, nem trair:
(Jnão é verdade, Mendo? jolha! j nunca novel
anciou mostrar seu amor e esforço em lanço
arriscado, que tão cedo o lograsse ! . .
.
—iNunca elle desejou tanto ! . . .
icuidava o
triste morrer só ; morrer longe e esquecido
;
e agora reclinará a cabeça em terra da pátria,
e com o sopro a briza da sua primavara, ro-
çando-lhe pelos lábios, lhe colherá o extremoalento ; se depois pelo formoso rosal vos sus-
pirar perfumada e louquinha não a despre-
zeis, linda senhora traz saudades de morte ! . .
.
aqui vive a rosa ! ... na hora em que mão es-
1 —ráusso 9
1 3o Emprega da Historia de Portugal
tranha vol-a entregar, dae-me um suspiro . .
.
jque paguei com vida, e sangue! . .
.
— Senhora,— disse Portocarrero, que ouvi-
ra tudo sem ser sentido — Martim Cravo nãoestá advertido para vos agazalhar como cum-pre ... j se vos apraz, irá oste bom donzel le-
var-lhe aviso ! . . . mas parece elle cubicar o
maior risco por vos servir . .
.
Mendo mediu-o com um olhar desconfiado
e escrutador.
— Irei e já, senhor alcaide; só receio, quemais no caso esteja Martim Cravo, do quepensaes ... lá verei.— Senhora, recordae-vos
do que vos disse : não é do cutello que fere,
que me temo— j só me assusta a mão que o
guia ! ... se todos vos desampararem . . . ! só umvos não faltará nunca !
— iFalaes acortadamente!— acudiu D.Rei-
mão— ide e breve: que no recado, que achar-
des, conhecereis, que raro nascem rosas emterra alagada de sangue . .
.
A tenção ambigua d'estas palavras não a
entendeu o pagem ; corou e abaixou os olhos;
e a rainha cravou com ar suspeitoso a vista
no semblante de Portocarrero : mas era frio,
amargo, e sombrio o seu gesto como sempre.
D'ahi a poucos momentos tinha transpor-
tado o donzél o ultimo cabeço.
—iAvante !
— bradou D. Reimão.
E seguiram todos a trote.
Por largo espaço caminharam em silencio
:
a distancia, que se embebia na ligeira corrida,
parecia crescer e alargar-se; e os sítios, que
Obras completas de Rebello da Silva 1 3
1
D. Mécia tinha" tão marcados já ha muito,
quo lhe rugiram dos olhos : a cavalgada tro-
cara por sendas enredadas, por desvios escusos
os viçosos plainos, om que tão alegro se de-
leitava a vista:— a rainha ainda não dos-
oerrára os lábios, e toda enlevada em seu
cuidar não reparara no caminho que levavam :
a alegria e o contentamento a pouco e pouco
se lhe esmoreceram ; e a cor melancholica dos
pensamentos se lhe espraiou polo rosto : n'esse
reflexo perenno do intimo sentir poderia qual-
quer rastrear a lueta interna dos receios e
suspeitas, que a combatiam ; similhante á su-
perfície de espelho polido o semblante se an-
nuviára ao sopro de affectos oppostos, e a
imagem da esperança quo sorria n'alma insen-
sivelmente se fora retraindo até de todo a su-
mir véo de funda tristeza : a serenidade e o fres-
cor esvaecêu-os ella ; o sorriso que floria apenas
também o apagou, deixando em seulogar umasombra turva e confusa como o negro pres-
sentimento, que n'aquella hora lhe enlutava
o coração ; esse pressentimento, que nem sa-
bia entender, nem disfarçar, e que todavia
lhe segredava ao peito com voz oceulta aviso
do perigo encoberto o mal sentido.
Portocarrero também não soltara ainda pa-
lavra: de instante em instante um riso con-
vulso agitava suas faces immoveis, o o olhar
frio se accendia em fulgor estranho: masacudia logo a refrear os ímpetos, que lhe aba-
lavam o ânimo, e a oscondel-os debaixo do
gosto severo e triste, máscara que d© longos
1 32 Emprega da Historia de Portugal
tempos ajustara ao parecer, para que outros
não adivinhassem esse abysmo de desventura,
essa tenção sestra e má, que lá dentro se re-
volvia om lucta cruel : a sua hora ainda não
batera: ainda por momentos tinha o tigre de
se arrastar por balsas e vallados antes de se
atirar raivoso e férvido ; entre ambos media-
vam só instantes; mas instantes de insoffrido
padecer : contou-os e esperou ! Aquella vin-
gança meditada e previdente só devia ferir
á sua hora, segura, inevitável, e horrenda até
na dilação.
De repente a rainha ergueu a fronte, e cor-
reu a vista pelos sitios, que a rodeavam : por
um estorço súbito cortara o íio de suas refle-
xões, e tentava distrair os cuidados travando
conversação com o alcaide : mas D. Reimãorespondia apenas com falas soltas e curtas
ás perguntas de D. Mécia.
— Negras imaginações vos tomaram, domcavalleiro— exclamou a final a rainha com ar
entre de enfado e ironia— ninguém dirá, que
nos tornamos do folgar em alegre monteria,
senão que nos vamos acercar do ataúde de
algum finado . . . j bom é que estejam aqui ves-
tes de festa para o desmentir
!
E D. Mécia ria amargamente: Portocarre-
ro, ouvindo estas palavras, que iam encontrar
a sua idéa sinistra, estremeceu; e a encarou
com mostras de espanto
:
—iLucto e finados ! — acudiu elle com voz
preza— não o digaes zombando, senhora mi-
nha, que talvez bem ao certo aconteça, o que
Obras completas de ítebello da Silva 1 33
affirmaes por mofa ... I Quem sabe o que
nos o guarda ao cabo? ... No caminho da exis-
tência a vida o a morto correm abraçadas . .
.
ie louco ó o que tenta dovassar os futuros de
Deus ! . .
.
— jSois discreto!— interrompou D. Mécia—
iboas falas essas para divertir a aspereza
do caminho ! ... na bocca do prior Fr. Gil ar-
razariam os olhos d'agua ao judeu mais laza-
rado —tisnada que elle tivesse a alma, vende-
ria a aljubeta, desaferrolharia as arcas, \e emalgum acisterio purificaria a alma ! . . . caval-
leiro, cuido que trocareis em breve a cervi-
lheira e o capello de aço por devoto habito
de ©stamanha, e sahíreis a pregar no ermo;ise
voz apraz íicae-vos já aqui, a ponto escolhes-
tes o logar
!
—Senhora minha, não sei fingir falas a sa-
bor, nem prender a vontade das damas comrequebros namorados . . . não me creei entre
saraus e folias de cortezãos, melhor do que euo fará o vosso pagem Mendo, o pobre Mendo,jque ainda crê que o rosto de um anjo não es-
conde muitas vezes a alma de um demónio
!
—E bem o mostraes, senhor alcaide— retru-
cou D. Mécia rindo com ar de escarneo— bemo mostraes: sois rude como essa armadura,
que envergaes; nunca vos terão por cortez e
advertido ; socegae, assas o provam vossos di-
ctos.
—jE todavia, linda senhora, já o fui!— re-
darguiu Portocarrero, que se despiu do seu
gesto pausado, e com as faces incendiadas e
1 34 Empreça da Historia de Portugal
os olhos inflammados parecia rover-so todo
no passado — jjá o fui! também acreditei noolhar límpido de uma mulher; também ima-
ginei que os lábios puros do seraphim nãopodiam montir . . . quando no perpassar o saio
mo roçava polas vestes bordadas, quando via
sou brando sorrir, e sentia o cheiro suave
dos perfumes de seus cabollos também me ba-
teu atropellado o coração, e me deslumbroutanta gentileza... coou-me pelas veias esse
veneno lento,idoeu-me esse espinho a que
chamam amor! j amei e muito ! . . . e tudo isso
passou, apagou-se como a estoira luminosa
da leve setía, que voa descuidada pelas aguas
do Mondego, veiu uma noite de horrenda ago-
nia . . . j tonho-a sempre aqui j ... — o elle aper-
tava a cabeça entre os punhos com a vista
desvairada— ao outro dia, quando dei por
mim; o coração era ermo e nú; j a alma enve-
lhecera séculos debaixo do peso da amicção !
icá dentro era tudo morto ! \ e cuidaram que
vivia, porque volvi ao mundo dos homens j...
volvi sim, que uma divida se havia de sol-
dar . . .ie já a soldei ! . . . j viver ! loucos que
não sabiam, que sob aquella mortalha de pur-
pura e rosas dormiaum cadáver, que da vida só
uma coisa guardara como sancta—ia memo-
ria! das paixões humanas só um aífecto lhe não
mirrara o incêndio— j a vingança !—E elles
que a não adivinharam, porque passava enco-
berta e disfarçada no riso de amargura, comoa dôr do afflicto, como a miséria do po-
bre; riso de desesperação, que ninguém co-
Obras completas de Rebcllo da Silva i35
nhoce, porque não vorte sangue, noni abro fo-
zidas ... I demais, quo importa aos outros
que a um iilho matassem o pao? ..isão tran-
ces por quo todos toem de passar!
D. Mócia olhou para ello pasmada: Porto-
carrero, com a cabeça pendida sobro o peito,
nom via, nem ouvia: as lagrimas corriam-lho
em íio pelas faces, e não as sentia : n'aquella
hora recordou-se ella do homizio de MartimViegas, e também se recordou das palavras
agastadas, que lhe cahíram dos lábios, e que
á ponta da espada gravaram no peito do ve-
lho os seus cavalleiros: remorsos e pezares,
não do assassinio, que o não mandara, mas de
o haver talvez causado, lhe ralavam o cora-
ção : por isso baixou os alhos, e seguiu com a
cavalgada, que já se avizinhava de Monto-mor:—D. Eeimão de repente alçou a cabe-
ça : e cravou n'ellauma vista amarga e severa
:
as palavras dospegavam-se-lhe seccas, e trun-
cadas.
— Era um esforçado e bem aventurado ca-
valleiro, disseram uns—continuou elle, comose não tivesse interrompido a pratica—mor-reu o velho Martim Viegas, afnrrnaram
outros— i mais nada ! . . . e comtudo nunca emrecontros de um contra dez, o viram recuar
um palmo; e se alli havia faces descoradas,
ou arquejava o peito de susto — [não era od'elle ! l Que vai isso ? ; morreu
!; mataram-n' o
— E vós perdestes um nobre pae, senhor al-
caide— respondeu a rainha suffocada— ;bemo sei ! i
Deus se amercêe d'elle ! ... se oracóos
i36 Emprega da Historia de Portugal
o preces prestam aos mortos não lhe falta-
rão . .
.
—j O premio do sessenta annos de contínuo
lidar foi aquolle! — proseguiu Portocarrero— não lhes soffreu o ânimo, que essa existência
de minutos, que tão do perto bafejara a morte,
acabasse por si... O muito bom e leal rei,
que assim vos toma o espedaça a vida contra
os degraus do throno para desaggravar umabarregã, que vos rasga as veias para lhe of-
ferecer o sangue do justo na taça da ebrieda-
de, virtuosa e excellente senhora, que vende
corpo e alma á perdição pelo oiro de umacoroa; pela triste vangloria de calcar aos pós
um povo inteiro ....
O sorriso que lhe tremia nos lábios esbran-
quiçados cortava o ânimo ; estas falas vinham
repassadas de uma desesperação irrepressivel.
O ruido da respiração, e os olhos esgazeados
do alcaide tolheram a voz a D. Mécia; desde
alli previu que uma grande desventura a
aguardava em Montemor.—
iSenhor Deus Jesus !— bradou com mor-
tal angustia— i enlouqueceu! . . . \ e eu aqui
só e sem soccorro ! . .
.
—iLouco !
— bradou o cavalleiro —ie não
o fiquei então ! . . . <» que quereis ? ó passo que
temos todos de transpor; que a morte desar-
raigue a arvore carcomida, ou que a cercêe
pelo pé o cutello do villão, j sempre é morrer!
e para o finado o mesmo é dormir o seu somno
eterno conchegado com os ossos dos seus, ou
cair varado de golpes entre pedras tombadas,
Obras completas de Rebello da Silva i"iy
e trayes incendiadas em torra sua : ficar alli
Bem sepultura, nem orações, sem gemidos e
lagrimas dos que amou na vida ; alli desam-
parado e esquecido como uma fora, do que
repousar debaixo da lousa ; o esto do sol ba-
terá no seu cadáver, o passará por elle comoescarneo atroz, emquanto em roda da prêa
esvoaçam abutres, o raivam lobos. iQuo valo
isto, linda senhora, se no meio de sarau es-
plendido, entro dictos chistosos e cantares
doidos do trovadores, um homem vos jurar,
que sois formosa, que sois rainha. ; Não revê
sangue a purpura!— £ Mas que vos fiz eu ? — exclamou D. Mé-
cia— nunca o soube, nem o desejei, ipela mi-
nha alma o juro!
— Mas se esse homem assassinado— conti-
nuou D. Reimão — se esse cavalleiro covar-
demente morto, deixasse um filho, que ao ar-
remessar o ginete contra os paços de seus
avós topasse com um montão de ruinas;que
ao atirar-se rápido para matar saudades do
três annos, saudades de pae e irmã, ao desca-
valgar calcasse um cadáver lívido, roto de fe-
ridas, o involto em pó, e fosse o de seu pae
:
so d'alli so afastasse como insensato, correndo
emquanto se pôde menear, até cair desfalleci-
do, e ao abrir os olhos desse com outro cadá-
ver, de um anjo de pureza e innocencia, que
perguntava ás rosas da sua grinalda;porque
ao aspecto de estranhos as faces lhe roubavama côr mimosa ! j oh ; então esse filho que emhoras breves so vira orpham © perdido no
i38 Emprega da Historia de Portugal
inundo, que aíFundára no abysmo de eterna
desventura toda uma vida de amor e felici-
dade, juraria, como eu jurei, com os lábios
sobre o rosto gelado o insensivel d'aquelle ca-
dáver—ivingança tremenda, despiedosa, e
inoxoravel!. ..
; e vingança será feita! . .
.
N'aquolle instante a cavalgada alcançara o
viso de um cabeço d'onde se avistava Monte-mor: para lá endireitaram em silencio; ao
acorcar-se, Portocarrero pegou das rédeas ao
palafrém da rainha, e o som cavo e sombrioda sua voz a despertou:— estavam perto da
barbacan.— Sobre o adarve do muro, que ro-
deava o eirado de uma das torres, descobrira
ella de longe dois pontos negros que se recor-
tavam no azul do céu, nem sabia atinar como que seria : agora aquella voz fez-lhe erguer
a cabeça
:
—j Rainha de Portugal, eis alli as vossas
arrhas !— bradou D. Reimão, soltando uma
risada aguda e convulsa.
D. Mécia olhou para cima.
Dois cadáveres pendiam de uma forca, e se
baloiçavam açoitados pelo norte, que sopravacom fúria : olhou de novo horrorizada — co-
nheceu-os.
Eram os dois assassinos de Martim Viegas,
estava cumprido o juramento do alcaide: naforca tétrica, popular e peã, soldaram a divi-
da de sangue.
A D. Mécia fugiu o lume dos olhos, e caiu
sem accôrdo ás portas de Montemor.
XI
Ráusso por pena de sangue
Na manhã do seguinte dia, Portocarrero tra-
vou com Martim Cravo uma conversação, que
não sorá desagradável ao leitor para alcançar
a razão dos acontecimentos, que marcaram a
chegada da rainha.
Os dois estavam em uma corredoira, pró-
xima da sala de honra, aonde D. Mécia, que
em pouco tornara em si, repousava da fadiga da
jornada ; falavam manso, mas o ciciar das pa-
lavras sumidas ia bater nos ouvidos da tris-
te captiva, o avivar-lhe os receios: tentou
erguer-se, e chegar-se para a porta, que dava
para aquelle sitio, mas faltaram-lhe as forças,
e caiu sem alento sobre a almadraquexa do
estrado.
Era mortal e insoífrida aquella angustia.
— Socegae, senhor Martim Cravo— dizia
D. Reimão com ar distraído— não é como jul-
gaes : j tomou-a o susto de sobresalto, e nada
mais ! • . . nunca pensei que tivésseis tão ligei-
ros ginetes para nos levardes tamanha dean-
140 Emprega da Historia de Portugal
teira; dizei-me, gereis ha muito aqui, quandoo pagem Mendo veiu com o recado?—
j Ha muito !— redarguiu o alcaide com
gesto carregado — quasi estou em que nos
imaginaes dotados de azas .... seria mister
roar pelos ares, o não esfalfar-se arrastado
por estes caminhos :idôr de reiras os consu-
ma ! bom valem pés ao lobo, mas nunca ne-
nhum, acossado de finos galgos, estirou simi-
lhante carreira, j e então que voltas!. . . inada!
io donzel apanhou-nos a descavalgar na bar-
bacan
!
— <jEd'ahi?...
—iD'ahi ! j cuidei logo logo em lhe apres-
tar a poisada, ora cortezia ! alli na torre de
menagem ontre quatro paredes grossas, combons ferrolhos corridos, e uma fresta por on-
de espreitasse a sabor ....
— dE elle? Agradeceu-vos.iEsteve por
tudo!—
iOh! j se esteve ! não, que não tinha outro
remédio. Primeiro lá lhe ia subindo o sangue
á cabeça, e começava já a cofiar o punho dobulhão com feros de rachar o inferno ....
| ora ! esfriei-o que foi maravilha— sabeis quesou mais de obras do que de falas— rangeram-lhe os ossos do hombro debaixo do meu guan-
te ferrado, vergou, e enfiou como uma don-
zella .... mas d'aqui a um par de annos, quan-
do as forças responderem ao ânimo ha-de ser
de antes quebrar que torcer.
—áE viu tudo d'alli?
—j Se viu !
jque lhe havia elle de fazer !
Obras completas de Rebello da Silva 141
isempre cri que lhe saltavam fora os olhos
!
—(jE elles? — perguntou com voz sumida, e
como a modo D. Roimão.— j Ah! (Jos dois? Isso foi dicto e feito.
Apenas me enviastes o bulhão, como era en-
tre ambos concertado, percebi o que mandá-veis, j Bom ! disse eu commigo : a cada qual
o seu boccado ; agora estes, amanhã aquelles :
ó tempo de aviar estes milhafres, [boa via-
gem ! . . . pena tenho eu, mas é de que não tor-
nem, que bem curiosas novas nos haviam de
trazer elles dos Paços de Micer Belzebut ! . .
.
— Mas—
iLá vamos já ! Assim que cheguei, até
lhe armar alli tudo para a dança não parei.. .
.
depois fui ter com elles, e do melhor modo,
que soube, avisei-os do caso|qual ! sem-
pre julguei que era o dia de juizo . . . . é ver-
dade ; disse-me um sancto monge que se acaba
o mundo breve; pois deixal-o acabar: cá por
mim duas vinhas ao Mosteiro de ...
.
—j Recuarem deante da morte !— exclamou
Portocarrero— os covardes que só para ve-
lhos e
—i Recuaram! força foi leval-os de rasto,
«i Morrer e d'esta morte!» bradavam elles comanciã.— Que quereis, respondi eu, não morresenão quem tem de morrer .... ihoje por vós
amanhã por mim ! ; Vamos é andar ! mas o cer-
to é que me roía cá por dentro não sei quê.
«Morrer sem confissão— gritaram de novoentre choros e de joelhos— não nos mateis a
alma.» Aquillo era outra coisa. Também eu
142 Emprega da Historia de Portugal
«intes da peleja sempre quiz a absolvição; nãosei porque o braço fere mais pesado, limpo de
peccados, mas é assim .... dei-lhe alguns ins-
tantes e um monge . . . . j depois pst! em obra
d'um credo eram com Deus.— jE Deus lhes perdoe como eu perdoo ago-
ra ! . . . aos umbraes da morte calam ódios ....
senhor Martim Cravo, que lhes façam por al-
ma preces e rezas em trintario cerrado ! . .
.
devo-vos já muito. . .
.
—A fé que não. O demo despacha os seus
acólitos. Pela salvação vos juro, que não hou-
vera posto a mão no fogo se não fosse . . . ^masa pobre Aldonça, a minha pobre filha? . .
.
j louca, perdida, ralada de amarguras, mortapor elle ! tinha também a minha divida a ajus-
tar .... Deus se amercêe de Estevam Pires
;
mas cá na terra [o que fiz era justiça
!
— Bem o soi, senhor alcaide de Montemor;
sois rude pelejador, mas ninguém dirá que
sois covarde ou tredo; i ninguém! tendes ahi,
dissestes, homens de armas e cavallos descan-
çados, que os enfrêem; que um pagem melimpe a armadura, j e a minha espada bem afia-
da na sala d'armas! Em duas horas para Ou-
rém ....
— <>Edelá?
—Para Toledo : tareia mas segura foi a vin-
gança ; chegou finalmente.
—Por Deus que não lhe errastes nunca o
alvo.
— jNunca ! esses loucos enredaram-se no la-
ço por si mesmos ; á vontad© colhi o» fios . . ..
Obras completas de Rebello da Silva 143
que amargos dias correram esses dois réfeces
desde a noito em que os tomei ás mãos omcasa do judeu de Coimbra aqui entre a
vida e a morte tão corta, Ião esporada:ium
raez! ja contar cada instante que os acercava
da sepulchro! insolIVido e cruol martyrio ti-
veram, jmas o meu! joh! j esse não se pinta
com palavras!... E' tempo agora de acabar
tudo; j e ella chorará e chorará também sem
remédio
!
— jNão sei entender-vos ! £ como a forçareis
a ficar em Toledo ? Para a roubar ao rei, al-
vorotastes o povo pelo armeiro'; ganhastes a
fó de D. Sancho polo prior Fr. Gil ; revolves-
tes ódios e má vontade dos cavalleiros de ri-
ba do Doiro para virem a Coimbra; pelo vos-
so oiro, Issachar, o judeu, vendeu-vos segre-
dos, planos, e traças da rainha, que fiava de
um perro, o que nem do rei fiava; tudo isto
entendo eu; jmas ficar ella! isso não. O mes-
mo será vêl-a lá, do que têl-a cá.
— j Ficará, ficará! n'aquella alma, aonde é
tudo ermo, só vibrauma corda, por ella a pren-
derei; é o meu segredo : depois o sabereis ....
vou dispôl-a para a partida, em breve sahirá;
que tudo esteja prestes.
E entrou na sala aonde a rainha se reco-
lhera.
D. Mécia, por um esforço violento mas ins-
tantâneo, correu o braço pelos olhos para dis-
farçar as lagrimas ; mas o rosto pálido, a vista
lânguida, e a tristeza do parecer desmentiam
a serenidade e altivez do seu porte ; era toda-
144 Emprega da Historia de Portugal
via nobre, firme, e desassombrado o seu as-
pecto.
—Dom cavalleiro — disse com modos gra-
ves e soberanos— se vindes pedir mercê pela
doscortezia e crueza, que obrastes, fazoi-o, e
íicae corto de que o não saberá a rainha.
Portocarrero encarou-a espantado: troca-
ram um olhar rápido mas de profunda signi-
ficação ; ambos se entendiam : n'aquella lucta
dos dois, robusto coração batia contra o peito
fraco e mimoso da mulher.— Nem mercê, nem misericórdia, senhora
minha :— respondeu elle com gesto sombrio— a rainha não a vejo eu aqui ; não a vi nun-
ca. Mas a viuva de D. Álvaro Pires de Castro»
a . . . . a dama muito amada de D. Sancho, ó
que tem de a pedir de joelhos, e com a face
no pó, não a mim, que lhe não acceito pala-
vras mentidas, j mas a este povo inteiro ! . .
.
mercê e misericórdia por esta generosa terra,
escarnecida, vendida e arrastada no lodo pela
sua ambição, pela gloria do rei, adormecido
no seu regaço longe da lide dos cavalleiros, e
pelas lagrimas e pelo sangue de seus filhos
desamparados e esmagados contra os degraus
do seu throno de vileza e adultério j E pôde
ser, que esse povo ainda com os olhos mal en-
xutos, e a verter sangue das feridas vos per-
doe ! . . . uma nação esquece muito, mas vemum dia em que desperta, e então lembra-se, e
vmga-se
— D. Reimão— redarguiu com ar sério e
socegado D. Mécia— o rei pôde fingir que não
Obras completas de Rcbcllo Jj Silva 14Í»
ouve; pode íigurar-se adormecido. • • • icuida-
dado! nao acordeis o loão quo dorme, os reis
também se lembram.— Linda senhora! uni punhado do terra o
uma oração; uma pedra rasa, duas lettras, e
a«.abou-se tudo — j o povo é que não morre
!
— Dom cavalleiro ; recordae-vos do D. Maria
Paes Ribeiro !.. . jogaes arriscado : rompe bempelo gorjal do cavalleiro o cutello do algoz
;
e quando uma fronte se ergue alta a entestar
com o throno, um golpe e um aceno rojani-i^a
por terra ; deanto do cepo do saião as mais ou-
sadas curvam-se, e não se alçam mais!
—iQuando se curvam ! j cutello corta, mas
nao verga
Houve então uma curta pausa : ambos reco-
lhiam as forças; ambos se mediam, e tenta-
vam adivinhar o que se escondia no peito.
Portocarrero interrompeu-a.
— Senhora— disse elle friamente— apres-
tae-vos, que partimos breve.
— Sois desleal o tredo, D. Reimão : um peão
não forçaria assim a vontade de uma fraca mu-lher : ipor minha alma que o não faria!
— Em três dias sereis no forte castello de
Ourém, que el-rei vos deu em arrhas— conti-
nuou Portocarrero sem mudar de tom— e emoito para sempre sobre vós se ha-de cerrar a
grade de um mosteiro — em oito para To-ledo.
Um sorriso sulcou como raio de luz o sem-
blante amiuviado da rainha: era o mesmopensamento, que já tivera Martiin Cravo, que
1— ráusso 10
146 Emprega da Historia de Portugal
lhe desabrochava esta flor de esperança; D. liei-
mão rastreou-lh'o, e rospondeu com outro
inexorável o sanguento
:
— Irei, senhor alcaide; mas tarde virá de-
pois o arrepender-vos; inem mercê, nem mi-
sericórdia ! n'este feito covarde, tentastes esta-
lar-me o coração debaixo do guante de ferro
da vossa armadura—iuma dama pareceu-vos
um inimigo cruel e esforçado !ipois bem ! co-
ração duro e despiedoso de homem pulsará
de hoje avante contra o peito brando d'essa
dama :ia rainha não vos ha-de esquecer
!
D. Reimão riu-se amargamente.—
iEntendo-vos, linda senhora ! n'este mo-
mento leio no vosso coração como em um per-
gaminho aberto ; ó esta uma das artes que
aprendi do vosso leal ovençal Issachar de
Coimbra.— «j Pobre louco, dizieis lá no íntimo,
pobre louco, que te imaginas vingado, e não
advertes que ó por instantes ! — Três dias emOurém ; oito em Toledo, e no decimo, sobre o
teu cadáver destroncado assentarei os degraus
do meu throno, o teu sangue avivará a púr-
pura do meu manto;jno decimo sou rainha!»
— Formoso sonho era este em verdade ; infe-
lizmente não passa de sonho,ie a realidade
vae longe
!
A rainha olhou para elle com mortal ancie-
dade, e involuntariamente uniu as mãos.
Esta horrenda incerteza era insofifrida.
— Senhora minha — proseguiu D. Reimão
em tom áspero e severo — o vosso engenho
agudo e prompto não adivinha ainda tudo.
Obms completas de Rcbcllo da Silva 147
<jNão descobris até na dilação a vingança me-ditada o previdente?
A sua respiração ora af&nosa, o as palavras,
que seguiram, rangiam por entro os dentes
cerrados.
— Tudo ó morto em redor de vós. Morto
como os affoctos nobres da alma de uma mu-lher, que Deus fizera anjo, e a ambição tor-
nou demónio; morto como o futuro e a espe-
rança d'esta vida,jque por vós escrevi com
sangue no livro da perdição !imorto, e morto
para sempre
!
—l Quereis então matar-me ? — gritou ella
quasi desvairada— j tão moça, tão presa á vida
e ao mundo, que me sorri ! . . .imatar-me ! . .
.
inão ! j não ! tirae-me tudo . . .
itudo, menos a
vida!
—E tudo vos será arrancado . . . jmenos a
vida !iassim o juro ! . . . Não vos recordaes—
acerescentou com ar entre de ironia e piedade—
I não vos lembraes de certa viagem encober-
ta, que longe, bem longe da corte e dos risos
e devaneios dos saraus, alongou para triste
morada uma formosa fragueira, que logo ao
descavalgar de tão afadigado caminho aper-
tou nos braços uma creança, e pareceu querer
infundir-lhe a alma entre beijos ardentes, en-
tre mimos e afíagos? ^não vos lembraes d'is-
to, senhora?—
j Lembro ! j lembro ! . . . sabeis tudo . ..
; mer-cê e misericórdia ! . . .
;pede-a a mãe
!
— Que lagrimas e que suspiros lhe não es-
talaram o peito— continuou D. Reimão — j á
148 Emprega d.i Historia de Portugal
vista (Taquella linda creatura tão frágil e mi-
mosa!... ;não o esquecestes vós por corto,
bem o sei ! ; não o podeis nunca esquecer ! . . .
porque no encontro da mãe com o filho, o anjo
que se vendera á ambição, ficou anjo... jo
salvou-se ! . . . ora, essa creança tomei-a eu . .
.
io no castello de Ourém ouvirá de vossos lá-
bios a sua sorte ! . .
.
D. Mécia caiu de joelhos, e arrastou o rosto
pelas lages do pavimento: o orgulho, o amorpuro c sancto de mãe, todos os affectos no-
bres, todas as paixões más lactaram, espeda-
earam-n'a, vergaram-n'a, partiram-lhe o co-
rarão, e quebraram-lhe o alento. Era o pri-
meiro passo pelo calvário da amargura, o pri-
meiro trago de fel libado na taça da agonia,
um penar do mil tormentos que a estorcia e
rasgava.
Chorou então, alli o deante d'elle, chorou
muito o em silencio.
Pelo amor chamava Deus a si aquella alma;
a vingança e a ambição encontraram-se, com-
bateram, e caíram.
iAlli só estava a mão ! e Portocarrero sentiu
acudirem-lhe as lagrimas aos olhos, e a pie-
dade ao ooraç
Tornou a ter fé.
Passado curto espaço, D. Mécia alçou a no-
bre fronte, enxugou os olhos, e com a voz
presa ^ agitada perguntou a Portocarrero:
—(. Esse segredo íntimo quem o revelou?
senhor alcaide, não é por mim, por mim que
dei já do mão a pensamentos altos, mas por
Obras completas de Rebello iã Silva 149
©lie que o quero saber por elle !... & enten-
deis? a rainha morreu ás portas do Monte-
mor . . . mas a mãe |oh ! [essa viverá Lndá além
do sepulcro ! . .
.
D. Reimão inclinou a cabeça deanto d'ella.
— |E se o fizerdes do coração, sois uma san-
ei 1 e nobre creatura!
Então contou-lho o caso do Judeu Issaohar;
o roubo da filha, a prisão dos dois assassinos,
e como iodos os segredos da rainha, confiados
á fé do Judeu por interesse e gratidão lhe
eram revelados — esto da creanea, que de boa
vontade quizera cila calar — levou-a a con-
fia r-lhe o desejo de indagar pelos astros a
sorte do filho. Depois narrou-lho o modo, por
que o tomara, e como em Ourem o tinha fiado
de mãos leaes : a rainha não poude duvidar da
verdade. Acreditou-o.
Irei a Toledo, separar-me-hei d'elle ... do
pae de meu filho, do rei que tentou subir-me
altura do sou throno, ;e que por mim arris-
cou tanto ! . . . farei tudo, nunca nos veremos
mais . . .imas esse menino, quero-o !
— Ficará em vossas mãos logo que D. San-
cho escolha uma esposa, j até lá não !— respon-
deu o alcaide — ; assim o jurei pelos ossos do
velho assassinado ! . . . mas debaixo de guarda
segura, serei como pae, ; o orpham nunca adi-
vinhará que o ó ! . . . jdou-vos a minha fé !
—iNão o ver mais ! . . . £ mas não sabeis que
sou sua mãe ? . . . que . .
.
— Que darieis um anno da vossa vida por
cada vista, ! por cada saudade saciada em mil
i5o Emprega da Historia de Portugal
falas e beijos d'amor ! . . .isei, senhora mi-
nha ! . . . vêl-o-heis uma vez por anno, de sú-
bito e sem o esporardes, j também o juro ! ..
.
(>Croio que podemos partir?
—iPartir ! . . . » sim e brevo !— respondeu
olla suspirando— j om Ouróm o verei ao me-
nos ! . . . aqui aguardo.
Portocarrero saiu.
—j Nem uma saudade só ! j nem uma lem-
brança do pobre captivo e preso pagem ! . .
.
A rainha olhou sobresaltada ouvindo esta
voz triste, e viu o donzel immovel de braços
eucruzados.
—iMendo !
imeu leal e bom donzel ! . . . vou
partir . . . deixar-te a ti e a esta formosa terra
de Portugal .... que eu amava tanto, j Adeusmeu pagem ! . . . j o teu pressentimento saiu
certo ! . . . a rosa . .
.
—; Tenho-a aqui sobre o peito ! — disse o
donzel ajoelhando — \ e não m'a arrancarão
nunca ! . . . j ouvi tudo, senhora minha ! j tu-
do !.. . amava-vos d'alma . . . \ agora adoro-
vos!— Adeus meu donzel . . .
<Jver-nos-hemos
um dia não é assim ? . . . Quando o pagem da
rosa for um estremado e bom lidador . . . j e
será breve ! . .
.
— Senhora minha, fiz um juramento, j e
hei-de cumpril-o ! . . . «Se todos vos desampa-
rarem só um vos não faltará nunca . ..
; e esse
não vos faltou ! \ nem vos faltará !»
—j E' tudo prestes, e as horas voam, se-
Obras completas de Rebcllo da Silva 1 5 i
nhora; os 'ginetes enfreados aguardam-nos
!
Era a voz do Portooarroro.
— j Vamos! senhor alcaide, o meu pagemMendo mo seguirá a Ourém, se nâo mandaoso contrario.
D. Reimão inclinou-se.
D'ahi a curto espaço o tropear dos ginotos
sumia-so na distancia. Foi o ultimo dia de
rainha, que teve D. Mécia.
Dias depois um troço de cavalleiros e de
homens d'armas a bom galopar acercavam-se
de Ourém — o alcaide saiu ao adarve : nomeio viu esvoaçar ao sopro da viração a si-
gna real — Era D. Sancho II.
—iQue nos abram as portas, e desçam as
pontes !— bradou o rei adeantando-se.
D. Eeimão calou a viseira, e trazendo pela
mão D. Mécia, tornou á aberta do adarve.
— E eis a minha resposta. Senhor rei, ju-
rei nunca entregar o Castello d'Ourém, noalto e no baixo, irado e pagado senão a D.Mécia, ou a quem d'ella tivesse preito e
menagem,— esse tenho-o eu— l Senhora man-dries abrir estas portas, e descer as levadiças ?
A rainha estava pálida, muito pálida, to-
davia a sua voz soou forte
:
— Não.iAlcaide obrae segundo vos è da-
do !iMeu filho !
ique dôr me deste já ! — dis-
se ella manso.
Dos olhos de Portocarrero escoou-se umalagrima, e elle não a encobriu.
i52 Emprega da Historia de Portugal
-- jBéstoiros! oncurvae as bestas; e alça©
todas as levadiças ; correi os postigos, e ar-
mae vossos trons, quom se adeantar a tiro de
bostaimorra
!
D. Sancho pendou a cabeça para o peito
com desalento.
N'esto apuro um postigo abriu-se, e o pa-
gem Mendo saiu por elle, chegou-se ao rei, e
falou-lhe por muito tempo a sós, até lhe en-
tregar uma trança e um collar. D. Sancho
logo depois virou rédeas ao cavallo e afas-
tou-se com os seus.
Os que o viram, disseram depois que cho-
rava lagrimas como punhos.
E' que se cumprira bem cedo a prophecia
do frade.'
FIM DO «EÁUSSO^POH HOMIZIO»
ÍNDICE
Par»
Advertência ao i.bitok 5
Nota bibliographica 45
I—Homizio 47
II—Preço do sangue 59
III—Açor por Varas 71
IV—O beijo do cutello 79
V—O judeu Iesachar de Coimbra 87
VI—Homizio por homizio 96
VII—O preito 105
VIII—Monteria 116
IX—Rosa de saudade 119
X—Traição contra traição 125
XI—Ráusso por pena de sangue 139
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» VIII — Viagens Ha minha terra — i.° volume.
» IX— » » » — 2. »
» X — A Sobrinha do Marquez—As prophecias
do Bandarra. — Um noivado no Da-
fundo.
» XI — Arco de SancfAnna — i.° volume.
XII— « » —2.° »
XIII— D. Branca.
» XIV— Romanceiro
—
2. volume.
XV— » —3." »
» XVI — Lyrica.
» XVII — Fabulas— Folhas cahidas.
» XVIII — Alfageme de Santarém.
p XIX — Portugal na balança da Europa.
XX — Da Educaço.
» XXI — Retrato de Vénus, precedido de umEnsaio sobre a historia da lingua e
da poesia portugueza.
» XXII — Helena
» XXIII — Discursos parlamentares — Memorias
biographicas.
» XXIV—Escriptos diversos.
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XVI a XVIII—Excavações poéticas (3 vol.)
XIX e XX—O Presbyterio da montanha (2 vol.)
XXI e XXII-0 Outono (2 vol.)
XXIII a XXVI— Quadros his-toricos de Portugal
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XXVII e XXVIII—Novas excavações poéticas (2 r.)
XXIX a XXXII—Camões, drama e notas (4 vol)
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XXXIV—Um anjo d \ pelle do diabo.—O casamento
de oibo.
XXXV—Aristodemo, tragedia. — A volta inespe-
rada, farça.
XXXVI—A festa do amor fil<al.— A filha para
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ra (com.) O Alcaide de Faro(drama).
5 Theatro completo, de J. Cas-caes. Vol III : O Mineiro deCascaes. O Estrangeiradoe Nem russo nem tuco ou OFanatismo politico (com )
6 Theatro completo, Vol. IV;Nem César nem joáo Fer-nandes ou Os extremos to-cam-se (com.), e a Pedra dasCarapuças (drama).
7 Theatro completo, Vol. V: ALei dos Morgados e A Ca-ridade (dramas).
8 Theatro completo, Vol. VI :
A 1NAIGURAÇAO DA ESTATUAfc questke (com). O Carnide(scena dramática), e o estudode Maximil. d'Azeve,° acerca
do notável dramaturgo.
Rebello da Silva, Luiz Augusto9261 Ráusso por homizioR4A151907
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