recensão
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Breve apontamento sobre texto de MICHEL HENRY, Encarnação, parágrafos 33, 34, 35.TRANSCRIPT
Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Teologia
Recensão
MICHEL HENRY, Encarnação, parágrafos 33, 34, 35
(versão não editada).
Sérgio Góis
Trabalho realizado para a disciplina de Escatologia do Prof. Dr. Fernando Rosas
Porto
2013/2014
Semestre de Verão
A reflexão filosófica de Michel Henry (1992-2002), devedora da fenomenologia husserliana e em
diálogo com Heidegger e Sartre, é pautada pela valorização da manifestação/impressão em si, enquanto
aquilo que vem a nós. Para tal, postula uma inversão fenomenológica, a fim de superar a dicotomia entre
impressão e essência, estabelecida tanto pela filosofia da consciência (Descartes, Husserl…), como pela
filosofia do ser (Heidegger), na medida em que ambas concebem a essência da impressão como algo exterior
à própria impressão. Para Michel Henry, a essência da impressão impõe-se, enquanto tal, na própria
impressão, como auto-revelação, tal como afirma no início do texto recenseado. E assim é, «porque esta
auto-revelação se cumpre como um pathos, na auto-impressionalidade de uma carne, que toda a vida reveste
uma forma impressional» (p.1).
Porém, o pathos da vida, que se manifesta na auto-impressionalidade da carne – carne que é «matéria
fenomenológica pura» (p.1), na medida em que é o lugar onde o fenómeno se torna presente – não
fundamenta a vida em si mesma, mas apela-nos para uma Vida Absoluta, que a origina e sustenta. A
fenomenologia da carne remete-nos consequentemente para um Arqui-Pathos de uma Arquicarne, comum a
toda a vida e a todo o vivente e, como tal, pressuposto da fenomenologia da vida. É o infinito no finito ou,
segundo as palavras do autor, «a passibilidade de uma vida finita alimentando a sua possibilidade na
Arquipassibilidade da vida infinita» (p.2).
A fenomenologia da carne reporta-nos para uma fenomenologia da En-carnação, em que a carne
deixa de ser um mero acrescento empírico, tornando-se coevo ao ego, isto é, à consciência, anterior ao
conhecimento. Contudo, o ego não é a última instância. Antes do ego, está a «Ipseidade absolutamente
originária na qual a Vida absoluta vem a si no Si do seu Verbo» (p.3), tal como antes da carne está a
Arquipassibilidade, que possibilita todo o viver. Deste modo, correlação entre ego e carne, num processo de
auto-geração de vida, revela o «Antes do ego» e o «Antes da carne» como condição de possibilidade da
vida.
A partir daqui, Michel Henry pode retomar a questão principal da obra acerca da compatibilidade das
palavras do IV Evangelho, fundamentais para o cristianismo: «No princípio era o Verbo» - «E o Verbo fez-
se carne». A primeira refere-se à essência de Deus, à própria Vida do Verbo; a segunda refere-se à carne do
Verbo, como consequência da primeira. Mas na questão da Encarnação revela-se a ambiguidade da carne,
pois nela se joga tanto a possibilidade da salvação como a possibilidade da perdição, tal como já advertira o
cristianismo primitivo, nomeadamente Paulo e Ireneu. Por isso, é necessário caminhar em direcção ao que
está no princípio, tendo em conta esta ambiguidade da carne.
No segundo parágrafo, Michel Henry mostra que, para além da fenomenologia da carne nos abrir
para a auto-impressionalidade da vida num Arqui-Pathos de uma Arqui-Carne, reporta-nos também para um
poder de exercício (eu posso), comum a todo o vivente, que se nos apresenta simultaneamente como poder
absoluto e original. Porém, também ele não vem a si por si mesmo: «Todo o poder traz consigo o estigma de
uma incapacidade radical» (p.6).
Ora, a fenomenologia da Encarnação refere-se precisamente à auto-doação da vida absoluta do
Primeiro Vivente, Deus, a partir do Qual todo o poder é dado, tal como diz Cristo. Este poder não se reduz à
ética ou à política, mas refere-se em primeiro lugar ao dom da vida, dado na Vida absoluta, da qual nenhum
ser vivo se pode separar. E porque não se pode separar da vida, nenhum ser vivo se pode separar de si. É
precisamente esta dupla incapacidade que possibilita todo o poder:
«A incapacidade de todo o poder em relação ao poder absoluto que o pôs em si mesmo e contra o qual
nada pode, a impossibilidade que daí resulta para se desfazer de si, esta dupla incapacidade tem de
extraordinário isto: é ela que confere todo o poder o que faz dele um poder» (p.8).
É este paradoxo entre fraqueza e força que Paulo expressa quando diz: «Quando me sinto fraco, é
então que sou forte» (2Cor12, 10) ou «A aflição é o nosso orgulho» (Rom5, 3). Perante este paradoxo,
Paulo, segundo Michel Henry, propunha, na maioria das vezes, uma solução ética: é o limite e a impotência
do homem que sustenta a esperança de salvação de uma intervenção superior. No entanto, o autor destaca
uma outra solução possível, dada por Kierkegaard: o salto na fé, pelo qual o homem rompe com uma
condição de pecado, passando para uma situação de salvação. Independentemente de ser ético ou religioso, o
que importa para Michel Henry é que o salto seja possível, mesmo sendo inacessível à razão, pois na
possibilidade da salvação joga-se a realidade última da existência:
«Nenhuma vida finita existe como tal. Ela só vive dada a si na autodoação da Vida infinita. Pela
mesma razão, ela não tem nenhum poder se estiver para sempre incapaz de o dar. Na falta, o que a comete faz
a experiência trágica da fraqueza que fere à raiz toda a sua vida, na medida em que, privada de todo o poder
verdadeiro, ela o está, ao mesmo tempo, de fazer o que quer. Ela quer o bem e faz o mal» (p.9-10).
Esta experiência da pobreza radical da existência humana abre-nos radicalmente para a nossa
condição de filhos, na medida em que de tudo o que temos nada é nosso.
No terceiro parágrafo, Michel Henry mostra como este poder exercer, este «eu posso», nos conduz à
incerteza, por revelar em si a nossa ilusão e a sua realidade. Os poderes da carne, embora cada um deles
comporte a potencialidade, não são na verdade um poder, na medida em que não subsistem por si. Neste
sentido, são apenas modos de ser, facto esse que implica não só o poder, mas também a carne, na sua
singularidade. É a imanência da vida, que nos revela que a nossa existência apenas subsiste «in allio». Mas
pergunta Michel Henry: «Com esta imanência, nele (o vivente), de uma Vida sem a qual ele se esvaece, não
ficará o vivente privado do que dá valor à sua condição de vivente: o sentimento de ter uma vida própria,
livre, independente, uma vida sua e que, com efeito, não é de nenhum outro» (p.11)? Aqui reside a ilusão!
Segundo o autor, como reacção ao racionalismo, a vida assumiu o lugar central nos vários domínios
humanos (filosofia, literatura, arte em geral) a partir do século XIX, introduzindo uma nova sensibilidade na
cultura europeia, de teor panteísta. Consequentemente, o desejo de alcançar o absoluto redundou numa
«fusão identificadora (…) acompanhada de uma dissolução da individualidade» (p.11), pois, numa análise
fenomenológica, no indivíduo concorre tudo aquilo que o limita: o espaço, o tempo e o conceito. Ora, é
precisamente na vida, comum a todos, que o indivíduo pode superar este limite. Porém, a abertura ao Todo,
que a própria vida implica, sem o indivíduo, corre o risco de redundar no nada. Este problema fora levantado
por Schopenhauer que, ao princípio de individuação contrapõe a Vontade, «que mais não é do que um outro
nome para a vida» (p.12). Schopenhauer marcaria a cultura moderna, concluindo que, perante este dilema,
afinal, a vida redunda na impessoalidade, na cegueira e no inconsciente.
É precisamente aqui que se joga o âmago da revelação cristã, no qual a Verdade se identifica com a
Vida: a revelação de Deus (Vida) brota do seu próprio ser (na Ipseidade de um Si originário). Deste modo, o
indivíduo vivente descobre-se gerado, a partir de Deus («Si originário»), como indivíduo único («Si
singular»), o que lhe garante e irredutibilidade da sua existência na carne e do seu poder: «A imanência da
vida em todo o vivente não lhe confere só a determinação fenomenológica originária e essencial de ser um
Si carnal, mas faz dele um «eu posso» efectivo e real» (p.14). E é este poder efectivo e real que constitui o
vivente verdadeiramente livre: liberdade entendida como posse de si, o que vai para além dos meros desejos
e da especulação metafísica. É a liberdade que nos é dada na criação, na geração, «geração na autogeração
da Vida absoluta daquilo que só vem a si na vinda nela e enquanto não cessa de vir em si» (p. 16).
Em jeito de conclusão, podemos dizer que Michel Henry, nesta parte da obra Encarnação,
demonstra, por via fenomenológica, como o fundamento da vida humana está para além da própria vida que
o homem experimenta. No entanto, isso não significa um destino trágico, tal como lamentou Schopenhauer e
o romantismo, no século XIX. Por outro lado, dá-nos conta de como a fenomenologia da carne, por via da
imanência, revela-nos uma geração de vida que, sendo comum a todo o vivente na sua auto-geração da Vida
Absoluta, configura cada vivente como um si singular, isto é, uma existência única, que se descobre
realmente na posse de si, fundamento da liberdade. Por fim, pela fenomenologia da Encarnação, mostra-nos
como o Deus revelado em Jesus Cristo, o Verbo Encarnado, é o fundamento da esperança humana, cuja vida
não está destinada à diluição no nada, mas a uma plenitude original, na medida em que o indivíduo, na sua
qualidade individual, está destinado à plenitude em Deus.
Ora, quanto a nós, esta pequena, mas densa, reflexão afigura-se-nos original do ponto de vista
teológico e, especificamente, escatológico, por dois motivos. Em primeiro lugar, salvaguarda a singularidade
de toda e cada vida humana, através da fenomenologia da carne, entendida não em sentido biológico, mas
biógeno. Isto faz com que a reflexão acerca do final dos tempos não reduza a plenitude da salvação a uma
diluição de ‘alminhas’ despersonalizadas. Em segundo lugar, destaca o alcance vital da revelação cristã,
muitas vezes reduzida a mera doutrina. Por isso, fica claro que, antes da doutrina, há a experiência do
encontro com o Verbo Encarnado, que nos gera e regenera para uma vida nova. Esta nova geração não
pressupõe uma alienação, mas antes uma radical actualização da vida recebida na criação.
Consequentemente, a esperança cristã, fundada na fé e alicerçada na caridade, só pode assentar radicalmente
numa carne e num pathos, que é como quem diz: na vida vivida ou padecida.