recensão kasper.pdf

4
Universidade Católica Portuguesa Faculdade de Teologia Recensão KASPER, Walter, “La Iglesia, lugar del perdón de los pecados”, in Communio 1 (1989) 27-34. Sérgio Góis Trabalho realizado para a disciplina de Sacramentologia: Cura e Serviço do Prof. Dr. Nélio Gouveia Porto 2014/2015 Semestre de Verão

Upload: anonymous-xokgon

Post on 08-Dec-2015

215 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Recensão Kasper.pdf

Universidade Católica Portuguesa

Faculdade de Teologia

Recensão

KASPER, Walter, “La Iglesia, lugar del perdón de los

pecados”, in Communio 1 (1989) 27-34.

Sérgio Góis

Trabalho realizado para a disciplina de

Sacramentologia: Cura e Serviço do

Prof. Dr. Nélio Gouveia

Porto

2014/2015

Semestre de Verão

Page 2: Recensão Kasper.pdf

KASPER, Walter, “La Iglesia, lugar del perdón de los pecados”, in Communio 1 (1989) 27-34.

Que significa o perdão dos pecados na e para a Igreja? Como pode ser a Igreja lugar do perdão dos

pecados? Quais as implicações de uma renovação eclesial na esteira do Concílio Vaticano II à luz do artigo

de fé do perdão dos pecados? Eis algumas questões insinuadas por Walter Kasper no artigo “La Iglesia,

lugar del perdón de los pecados”. Nele, o autor procura demonstrar como a confissão de fé sobre o perdão

dos pecados constitui um dos fundamentos principais da Igreja e, como tal, deve ser o motor da Igreja e da

renovação eclesial.

No primeiro ponto, A mensagem do perdão dos pecados (cf. pp.27-30), partindo do conteúdo da

revelação sobre o perdão dos pecados, evidencia-se que a superabundante misericórdia de Yahvé, enquanto

acto livre, gratuito e exclusivo de Deus, é «a convicção fundamental do Antigo Testamento» (p.27). E é de

tal maneira um excesso de graça por parte de Deus, que não «somos nós que nos reconciliamos com Deus,

mas é Deus quem se reconcilia connosco» (p.27).

Se nos profetas a mensagem do perdão dos pecados vai ganhando paulatinamente contornos

escatológicos, no Novo Testamento é «um bem salvífico escatológico» (p.28), o que constitui uma autêntica

novidade. Esta novidade é realizada em Jesus, cuja acção salvífica implica o perdão dos pecados e cuja

morte redentora é sinal máximo de tamanho dom. Tal poder divino de Jesus Cristo, que «supera tudo o que o

AT e o judaísmo esperavam do Messias» (p.28), é concedido aos homens (cf. Mt 9,8; Lc 24,48), através do

dom do Espírito Santo (cf. Jo 20,23), da conversão e do baptismo (cf. Act 2,38). Deste modo, o perdão dos

pecados constitui o efeito principal – «a característica do bem salvífico central» (p.28) – concedido pela

morte, ressurreição, glorificação e envio do Espírito Santo (cf. pp.28-29). Por isso, «a mensagem do ‘perdão

dos pecados’ é central para o NT» (p.29), contendo em si a totalidade da mensagem cristã.

No entanto, o autor chama a atenção para o facto de o núcleo da mensagem cristã se deparar, nos dias

de hoje, com uma sociedade pautada pelo secularismo, que perdeu a consciência do pecado e da dignidade

do homem, como consequência do desconhecimento de Deus, tal como adverte a Comissão Teológica

Internacional no documento Reconciliatio et Paenitencia (cf. p.29). Assim, o artigo de fé sobre o perdão dos

pecados não só é actual, como urgente, ao mesmo tempo que desafia a missão da Igreja perante a sociedade

moderna:

«(…) a Igreja não tem a missão de proclamar a mensagem da ameaça do pecado, mas a boa nova da

remissão dos pecados, ou seja, a doutrina do pecado no horizonte da graça e da concessão do coração novo, o

qual movido pelo espírito de Deus cumpre o mandamentos divinos por um impulso interno» (p.30).

No ponto dois, Vida cristã a partir do perdão, Walter Kasper mostra como, nos primeiros séculos da

era cristã, a convicção de que o perdão dos pecados – enquanto acontecimento único, mediante a conversão

a Deus, em Jesus Cristo, no baptismo – suscitava uma «vida a partir do perdão» (p.30), alimentada pelo

jejum, esmola e oração, bem como pela eucaristia (cf.30). Contudo, o facto de os cristãos cometerem

Page 3: Recensão Kasper.pdf

pecados graves fez com que se considerasse uma segunda penitência – «uma segunda tábua de salvação», no

dizer de Tertuliano (pp.30-31) – acrescentando-se também a Unção dos Doentes, que «desde a sua origem

tem o poder de perdoar os pecados (Tg 5,15)» (p.31). E uma vida a partir do perdão implica necessariamente

o perdão fraterno e uma comunhão fraterna aberta ao perdão, tal como atesta a Sagrada Escritura. Por isso,

diz-nos o autor:

«Se a Igreja quer ser lugar de perdão, tem que começar por si mesma, viver ela própria em

reconciliação e ser uma igreja reconciliada. Tem que se confessar como uma Igreja de pecadores, que

constantemente necessita de se purificar e que percorre ininterruptamente o caminho de penitência e de

renovação. Só assim a Igreja é um lugar da remissão dos pecados não só pela sua mensagem, mas também

pela totalidade da sua vida» (p.31).

Mas também esta é uma realidade posta em causa, não só na sociedade moderna, mas também no

seio da própria Igreja, precisando, por isso, de ser revigorada. Por outras palavras, a consciência da

necessidade de perdão na Igreja e nos seus membros é fundamental para uma coerência de vida, para uma

vida cristã integral. De contrário, corre-se o risco de a mensagem do perdão dos pecados sair debilitada e da

graça ser reduzida a ‘graça barata’, tal como alerta D. Bonhoeffer, aqui recordado (pp.31-32). Assim sendo,

torna-se urgente uma pastoral da penitência e da reconciliação (cf. p.32).

No terceiro e último ponto, Walter Kasper refere-se concretamente ao poder de perdoar os pecados,

concedido por Jesus aos seus discípulos. A eficácia da «palavra de reconciliação» (p.32) é especialmente

expressa pelos verbos ‘atar e desatar’ (Mt 18,18; cf. 16,19), que correspondem aos verbos ‘perdoar e reter’

de Jo 20,23. Para melhor os compreender, o autor recorre à tradição veterotestamentária, onde o pecado não

é entendido como uma acto meramente privado e individual, mas como um acto individual que afecta todo o

povo de Deus, na medida em que fere a santidade a que o povo é chamado (cf. 32). Por sua vez, também no

NT há pecados que excluem da comunidade, porque opõem-se ao Reino de Deus, afectando todo o Corpo de

Cristo, a Igreja. No entanto, isto não significa que a Igreja seja elitista, pois ela deve permanecer disponível

a acolher o pecador que se converta. Deste modo, a acção de ‘atar e desatar’ corresponde a um dinamismo,

no qual a Igreja, pelo poder outorgado pelo seu fundador aos seus ministros, se constitui como lugar de

perdão, concedendo simultaneamente o perdão de Deus e a reconciliação com a Igreja:

«Atar e desatar, perdoar e reter os pecados não são duas faces de uma alternativa, mas duas fases de

uma reacção, com a qual a Igreja santa dá resposta ao pecado de um dos seus membros. Porque a Igreja

expulsa um pecador, i.e., porque o exclui da sua comunidade e, se está disposto a converter-se, retira-lhe de

novo a excomunhão, o recebe de novo na sua comunidade, é lugar de perdão dos pecados. Pois o que acontece

aqui na terra, nas palavras de Jesus segundo Mateus, tem validade perante Deus. Mediante o levantamento da

excomunhão, o pecador é libertado do anátema das forças do mal. Concede-se-lhe de novo a comunhão com

Deus e a liberdade dos filhos de Deus» (p.33).

Page 4: Recensão Kasper.pdf

Esta sacramentalidade da Igreja, actualizada no sacramento da penitência, foi já afirmada nos

primórdios do cristianismo, nomeadamente pelos padres da Igreja (cf. pp.33-34). Porém, com o devir dos

tempos, a dimensão eclesial deste sacramento acabou reduzida ao poder ministerial do ministro. Por isso, a

teologia contemporânea procurou recuperar esta dimensão, assumida pelo magistério no Concílio Vaticano

II e pela reforma litúrgica, dele decorrente, do sacramento da penitência (cf. p.34). No entanto, segundo o

nosso autor, ainda há muito caminho a percorrer, no sentido de passar de uma praxis penitencial que muitas

vezes se confunde com uma consulta psicoterapêutica, para uma verdadeira consciência comunitária da

penitência. Para tal, é necessário valorizar as celebrações penitenciais, sendo estas uma forma particular de

revelar a Igreja, «na sua totalidade» (p.35), como lugar de perdão (cf. p.35).

E é precisamente o «caminho de penitência pessoal e comunitária, para além da celebração

sacramental da penitência» que deve pautar a reforma promovida e promulgada pelo Concílio Vaticano II, a

fim de que a renovação eclesial corresponda aos apelos do próprio Evangelho. Note-se que o artigo data de

1989, quando a Igreja pós-conciliar vivia uma fase intermédia entre a euforia inicial, fruto do espírito

renovador do Concílio, e a decepção, decorrente das dificuldades em aplicar as resoluções conciliares no

âmbito intraeclesial, no diálogo com os desafios do mundo e no confronto com novas questões.

Não obstante, passados 50 anos da celebração do referido Concílio e cerca de 26 anos da publicação

do artigo recenseado, este caminho de penitência pessoal e comunitária é uma premissa que se mantém

actual e uma referência perene da e na vida da Igreja. De facto, a leitura dos sinais dos tempos verifica-se

ainda hoje, bem como os desafios que o mundo lança à Igreja, além de que a confissão de fé do perdão dos

pecados constitui um dado fundamental da revelação, pelo que deverá estar sempre presente no seio da vida

eclesial e no diálogo da Igreja com o mundo. Neste sentido, o artigo destaca, e bem, dois aspectos

nevrálgicos para a compreensão teológica actual do sacramento da penitência e sua vivência eclesial: 1) os

desafios de um mundo que nega a culpa e o pecado; 2) a necessidade de revitalizar a consciência da

necessidade do perdão e da reconciliação na própria Igreja, que por sua vez deverá valorizar a dimensão

eclesial do sacramento da penitência. Se, por um lado, estes elementos alertam para um estado de crise –

tema tão presente nos textos do nosso autor –, por outro, poderão constituir condições de possibilidade para

uma vivência cada vez mais radical do Evangelho, tanto na vida eclesial, como no testemunho perante o

mundo.