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Disciplina: Literatura, Leitura e Ensino Tópicos:
• » Para início de conversa o » Literatura, Leitura e Ensino
Apresentação ________________________________________________________________________________________ Olá! Estamos iniciando as disciplinas do Módulo 1 do Curso de Língua Portuguesa. Na disciplina Literatura, Leitura e Ensino, examinaremos diferentes concepções sobre literatura, veremos como se deu o ensino de literatura no Brasil nos dois últimos séculos e abordaremos a leitura literária, observando a existência de múltiplas interpretações. Ao final da disciplina, serão propostos alguns temas que você poderá desenvolver em seu TCC. Espero que você aproveite muito a disciplina! Clique aqui para assistir o vídeo de introdução da disciplina. ________________________________________________________________________________________
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Disciplina: Literatura, Leitura e Ensino Tema: 1. O Que é Literatura Tópicos:
• » Tópico 1 -‐ Literatura: um uso especial da linguagem
Um início de conversa ________________________________________________________________________________________
Entender o que é literatura, muitas vezes, causa grandes dificuldades para os alunos (e para os professores que têm que discutir com eles!). Nessa unidade temática, vamos conversar sobre algumas definições de literatura, considerando três aspectos centrais:
• a literatura como uso especial da linguagem; • literatura e cânone; • literatura e diversidade cultural.
Ao final, esperamos chegar a uma compreensão abrangente do que é literatura, deixando de lado muitos dos preconceitos que esse tema costuma trazer consigo. Vamos lá?
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Ponto de partida ________________________________________________________________________________________ Em sua vida escolar, tanto como aluno quanto como professor, você deve ter entrado em contato com várias definições de literatura. Em geral, os livros didáticos começam com um item em que se tenta explicar quais são as características linguísticas que tornam um texto literário, desenvolvendo a ideia de que são consideradas literárias as obras em que se nota um uso especial da linguagem -‐ como, por exemplo, a presença de rima nos poemas. Mas será que é mesmo assim? Todo texto em que há uma elaboração sofisticada da linguagem é literário? ________________________________________________________________________________________
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Mãos à obra ________________________________________________________________________________________ O jornal The Washington Post realizou uma experiência, no campo da música, que pode nos ajudar a pensar sobre a definição de literatura como uso especial da linguagem. Um dos maiores violinistas do mundo, Joshua Bell, aceitou tocar em uma estação de metrô de Washington, sem se identificar. Na Europa e nos Estados Unidos muitos artistas apresentam-‐se nas estações de metrô, para conseguir alguns trocados dos transeuntes. É possível ouvir desde apresentações de obras clássicas até grupos de percussão -‐ todos tocando com um chapéu (ou uma sacola, uma cesta, uma caixa...) no chão para recolher as notas e moedas. A ideia do jornal era verificar se as pessoas reconheceriam a extraordinária qualidade da apresentação de Joshua Bell, que, dias antes, havia tocado no Symphony Hall de Boston, onde os melhores lugares custavam 1.000 dólares. A experiência permite observar se a avaliação estética tem a ver apenas com a qualidade da produção ou se outros elementos interferem na apreciação. Para ver o resultado clique aqui.
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Colocando os conhecimentos em jogo 1 ________________________________________________________________________________________ Como você explica o fato de milhares de pessoas terem passado sem sequer olhar para um músico reconhecido como um dos melhores do mundo? Você acha que alguém com conhecimentos musicais deveria necessariamente perceber que ali estava um dos maiores violinistas do mundo? Você acredita que o lugar de apresentação e a aparência do músico interferiram na reação dos transeuntes? Será que há alguma coisa errada com as pessoas que não prestaram atenção a uma interpretação musical de tão alta qualidade? Você deve ter percebido que a experiência proposta pelo jornal coloca em xeque ideias arraigadas sobre qualidade estética. Em geral, imagina-‐se que uma obra de arte é definida por suas características internas e que qualquer pessoa bem educada é capaz de reconhecê-‐las e valorizá-‐las. Entretanto, a excelente execução de uma peça clássica, feita por um grande músico erudito, não despertou interesse. Alguns elementos ajudam a entender por que isso aconteceu: o local não era uma sala de concertos, o artista não estava vestido a rigor, os transeuntes não tinham expectativa de ouvir uma apresentação de um músico consagrado. Portanto, não há nada de errado no fato de quase ninguém ter parado. Afinal, a percepção da qualidade estética depende de vários fatores e não apenas das características intrínsecas à obra.
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Colocando os conhecimentos em jogo 2 ________________________________________________________________________________________ Com literatura1 acontece algo semelhante, mas a situação é um pouco mais complicada... Em primeiro lugar, nem todo texto em que há um uso sofisticado de linguagem é considerado literatura. Basta pensar, por exemplo, em slogans de publicidade que se esmeram na criação de ritmo, no uso de aliterações e rimas, na criação de imagens surpreendentes para atrair os consumidores. Pense, por exemplo, no slogan "Se é Bayer, é bom". Essa curta frase tem um ritmo marcado, reforçado pela aliteração do B. Mesmo assim, ninguém a colocaria entre as obras literárias da língua portuguesa! Por outro lado, há textos muito semelhantes a slogans que são considerados literários. Clique aqui para ver um exemplo. Esse texto, publicado por Décio Pignatari em 1957, parte de um slogan publicitário ("Beba Coca-‐Cola") e utiliza recursos frequentemente empregados nas propagandas (como a aliteração, a assonância e a repetição). Mas, ao contrário do que acontece com os slogans, ele é considerado uma obra literária. Mais do que isso: é um clássico da poesia concreta! Por que isso acontece?
1 No Caderno do Aluno, 1ª série, vol. 2, pág. 27 aborda-‐se o tema das definições de Literatura.
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Atividade dissertativa individual ________________________________________________________________________________________ Uma outra experiência realizada por um jornal pode nos ajudar a responder. Em 1999, a Folha de S. Paulo fez uma "pegadinha" com várias editoras, submetendo para publicação um livro pouco conhecido de Machado de Assis, sem revelar o nome do autor. Leia as matérias veiculadas pela Folha, disponíveis na ferramenta "Leituras", no TelEduc, e descubra qual foi o resultado. Depois, acesse o espaço "Atividade" do TelEduc, clique sobre Atividade dissertativa 1 e realize a atividade proposta. ________________________________________________________________________________________
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Finalizando... ________________________________________________________________________________________ Muitos críticos e teóricos da literatura dizem que a linguagem e a estrutura específicas de um texto é que o fazem literário, em outras palavras, é o que constitui sua "literariedade". Os que pensam assim, em geral, enfatizam existência de relações fortes (seja de reforço ou de contraste) entre som e sentido, entre organização do texto e tema apresentado, etc. Para eles, os elementos que fazem de um texto qualquer uma obra literária são internos a ele, não tendo qualquer relação com questões externas à obra. Essa visão está presente nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio -‐ Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, quando se afirma que "uma de suas [da literatura] marcas é sua condição limítrofe, que outros denominam transgressão", que pode levar "a limites extremos as possibilidades da língua" (p. 49). Entretanto, os exemplos apresentados neste tópico deixam claro que a chamada "literariedade" não está somente no texto e que usos linguísticos "transgressivos" ou "extremos" não garantem que uma obra seja considerada literária. Além disso, obras não incluídas na designação literatura -‐ ou incluídas apenas quando o termo é acompanhado por um complemento como literatura popular, literatura de entretenimento, etc. -‐ em geral utilizam-‐se de procedimentos linguísticos semelhantes (ou, às vezes, idênticos) aos presentes nas produções canonizadas ou seja, naquelas bem avaliadas pela crítica, pela universidade e pela escola. Mesmo assim, não são objeto de estudo na escola ou, ainda pior, são alvo de crítica e de rejeição. Vamos conversar sobre isso no próximo tópico! ________________________________________________________________________________________
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Ampliando o conhecimento ________________________________________________________________________________________ Para saber mais sobre as diferentes definições de literatura, você pode ler o livro Literatura Leitores e Leitura, de Marisa Lajolo, em que são apresentadas e rebatidas várias das definições mais comuns de literatura. O texto é leve e se parece, muitas vezes, com uma conversa da autora com seus leitores.
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Tópicos: • » Tópico 2 -‐ A literatura e o mercado
Ponto de partida ________________________________________________________________________________________ Neste tópico, vamos pensar sobre o trabalho estético realizado em composições não eruditas -‐ e, portanto, não inseridas na categoria "literatura" por muita gente. Essas obras não costumam ter lugar na escola, mas talvez seja a hora de começar a mudar isso!
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Mãos à obra ________________________________________________________________________________________ Certamente, você já viu alguém lendo um livro de Paulo Coelho ou um romance sentimental como Sabrina. Diante desse tipo de leitura, é possível que você tenha ouvido alguém comentar: "Isso não é literatura! Ninguém devia perder tempo com esse tipo de bobagem!". Essa mesma pessoa, se encontrasse alguém lendo A Viuvinha, de José de Alencar, talvez exclamasse: "Agora sim!!". Como você explica esse tipo de reação? Que diferenças há entre A Viuvinha e um romance da série Sabrina? Para pensar sobre isso, você precisará ler (ou reler) a narrativa de José de Alencar2 e uma das histórias publicadas na série Sabrina3. ________________________________________________________________________________________
2 É muito fácil conseguir o livro A Viuvinha, de José de Alencar. Consulte a biblioteca da sua escola ou da sua cidade. Se ele não estiver disponível, é possível comprá-‐lo em livrarias ou consegui-‐los em sebos, por preços muito baixos. Na internet, é possível fazer o download do livro no Portal Domínio Público: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp.
3 Os romances da série Sabrina estão disponíveis em bancas de jornal espalhadas por todo o país. É possível consegui-‐los também, por um preço muito acessível, em lojas de livros usados e em bancas de troca. Na internet, é possível fazer o download de alguns exemplares em sites como: http://ebooksgratis.com.br/livros-‐ebooks-‐gratis/literatura-‐estrangeira/romance-‐serie-‐sabrina-‐diversos-‐volumes-‐para-‐download/.
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Colocando os conhecimentos em jogo 1 ________________________________________________________________________________________ Você se lembra do texto "Para gostar de literatura", apresentado no Caderno do Professor da 2ª série, volume 1, Ensino Médio (2009)? Se você não está com o texto bem fresco na memória, retome seu Caderno e releia as páginas 29 a 34. O propósito do texto é "conceituar e contrastar os sistemas de arte e de distração" (p. 31). Fica claro que os autores do texto acreditam que há um antagonismo entre o entretenimento e a arte, avaliando positivamente as formas artísticas e depreciando as obras voltadas para a diversão. Nessa perspectiva, se alguém fosse responder a questão colocada há pouco -‐ que diferenças há entre A Viuvinha e um romance da série Sabrina? -‐ provavelmente diria que a narrativa de Alencar4 é uma obra de arte e que Sabrina é mero entretenimento. É possível também que estimulasse a leitura de A Viuvinha na escola como "leitura literária" e desaconselhasse o contato com o romance de banca de jornal por ser "leitura de distração". As coisas não são tão simples assim quando se conhece o contexto de produção dos livros. ________________________________________________________________________________________
4 No Caderno do Aluno, 1ª série, 2ª série, vol. 2, pág. 39, há material sobre José de Alencar.
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Colocando os conhecimentos em jogo 2 ________________________________________________________________________________________
José de Alencar era um jovem escritor estreante quando compôs A Viuvinha. Pouco antes, no final de 1855, ele havia se tornado gerente e chefe de redação do jornal Diário do Rio de Janeiro, e logo se lembrou de uma maneira de atrair os leitores: publicar uma narrativa ficcional aos pedaços (mais conhecida como folhetim), forçando os curiosos a comprarem o próximo número ou a fazerem uma assinatura do jornal.
Alencar escreveu, ele mesmo, a história encarregada de fisgar o interesse dos leitores, publicando, anonimamente, sua primeira obra ficcional, Cinco Minutos. O sucesso foi tanto que Alencar decidiu investir ainda mais na história, lançando-‐a num pequeno volume, também anônimo, e oferecendo-‐a como brinde de final de ano aos assinantes do periódico. O êxito não podia ser maior, pois velhos e novos assinantes correram à redação para obter um exemplar. Contente com o sucesso e preocupado em manter as vendas do jornal, José de Alencar mal acabou de publicar O Guarani, em 20 de abril, e logo deu início a um novo folhetim, no dia 21. Era a história de A Viuvinha, publicada em capítulos ao longo de três meses. Essas três narrativas, compostas em menos de um ano, contêm tramas tão diferentes quanto as aventuras de um índio no século XVI, os sofrimentos de uma moça tuberculosa ou a fidelidade de uma jovem viúva. Mas têm algo em comum: o desejo de atrair leitores, oferecendo a eles histórias emocionantes, enredos cheios de aventura e de suspense, ou seja, entretenimento. Já se vê que, sob esse ponto de vista, não há muita diferença entre essas produções de Alencar e os romances da série Sabrina.
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Colocando os conhecimentos em jogo 3 ________________________________________________________________________________________
Eles têm outro ponto em comum. Parte importante do estímulo de Alencar para escrever vinha de seu interesse em aumentar as vendas do jornal onde as narrativas eram publicadas. A publicação em livro também envolvia um interesse pecuniário5, tanto que o escritor ficou indignado quando soube que O Guarani estava sendo republicado por um jornal do Rio Grande do Sul sem pagamento de direito autoral. Quem critica obras da série Sabrina muitas vezes as caracteriza como "sub-‐literatura", por elas serem produzidas com interesse mercadológico6. Se o critério for esse, vai ser preciso desqualificar grande parte da produção literária do século XIX, pois assim como José de Alencar, boa parte dos escritores visava atingir públicos amplos e vender muito. O texto veiculado no Caderno do Professor (2ª série, volume 1, 2009) argumenta que a arte se diferencia do entretenimento, pois "permite que nos reconheçamos como parte de uma humanidade que constrói sua identidade ao longo do tempo" (p. 32). Ela deveria ser valorizada "por espelhar aquilo que foi feito por outros ao longo do tempo" (p. 32) e por visar a "perpetuar a essência humana, emocionando os leitores de agora e das próximas gerações" (p. 29). Um dos focos principais de romances da série Sabrina é emocionar os leitores, colocando-‐os em contato com questões centrais da "essência humana": o amor, o desejo e o temor da rejeição.
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5 Em 1873, José de Alencar escreveu uma longa carta a um amigo, expondo seu percurso literário. Depois de sua morte, o texto foi publicado em livro, com o título de Como e por que sou romancista. Nele o autor deixa clara sua preocupação com as vendas e com o retorno financeiro obtido com seus livros. Sobre O Guarani ele disse: “A edição avulsa que se tirou d’O Guarani, logo depois de concluída a publicação em folhetim, foi comprada pela livraria do Brandão, pôr um conto e quatrocentos mil réis que cedi à empresa. Era essa edição de mil exemplares, porém trezentos estavam truncados, com as vendas de volumes que se faziam à formiga na tipografia. Restavam pois setecentos, saindo o exemplar a 2$000. Foi isso em 1857. Dois anos depois comprava-‐se o exemplar a 5$000 e mais. Nos belchiores [vendedores de livros usados] que o tinham a cavalo do cordel, embaixo dos arcos do Paço, donde o tirou o Xavier Pinto para a sua livraria da Rua dos Ciganos. A indiferença pública, senão o pretensioso desdém da roda literária, o tinha deixado cair nas pocilgas dos alfarrabistas. Durante todo esse tempo e ainda muito depois, não vi na imprensa qualquer elogio, crítica ou simples notícia do romance, a não ser em uma folha do Rio Grande do Sul, como razão para a transcrição dos folhetins. Reclamei contra esse abuso, que cessou; mas posteriormente soube que aproveitou-‐se a composição já adiantada para uma tiragem avulsa. Com esta anda atualmente a obra na sexta edição.” http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000311.pdf.
6 No Caderno do Professor, na página 33, os autores do material dizem que “muitos textos literários são adaptados para a televisão e o cinema, sem que haja genuínas preocupações com o valor artístico da obra, mas apenas em conseguir melhores índices de audiência ou aumentar os números de ingressos vendidos nas bilheterias”. Como você viu, José de Alencar tinha preocupações semelhantes quando compôs seus folhetins e quando os transformou em livros.
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Colocando os conhecimentos em jogo 4 ________________________________________________________________________________________
A identificação com as situações apresentadas e a reflexão causada por elas permite que os leitores se "reconheçam como parte da humanidade" e colaboram para o processo de "construção de identidade" (coletiva e individual). Assim, os livros de banca cabem perfeitamente nos quesitos definidores da "arte", segundo a concepção expressa no Caderno do Professor. O argumento do caráter duradouro das obras de arte, apresentado nas páginas 32 e 33 do Caderno, precisa ser pensado à luz do diferente prestígio atribuído a obras como Sabrina e como A Viuvinha. As chamadas "obras de arte" são conservadas em bibliotecas, estudadas em escolas, exigidas em exames vestibulares e, portanto, têm melhores condições para "permanecer" e chegar a uma "eventual imortalidade". A permanência histórica de romances de banca é dificultada pelo preconceito que os cerca, já que raramente eles estão disponíveis em bibliotecas, não têm lugar na escola e tampouco em exames seletivos. Mesmo assim, permanecem devido ao interesse dos leitores assíduos (que os colecionam, emprestam e trocam) e às possibilidades abertas pela rede mundial de computadores. Sites como Ebooksgratis disponibilizam décadas de romances da série Sabrina para alegria dos milhares de leitores que o acessam diariamente. ________________________________________________________________________________________
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Finalizando... ________________________________________________________________________________________ No tópico anterior, vimos que as características internas dos textos (usos de linguagem, estruturação do enredo, tipos de rima etc.) não são suficientes para definir o que é literatura, sendo necessário observar questões externas à obra. Como você percebeu, os romances da série Sabrina têm fortes semelhanças com A Viuvinha tanto do ponto de vista do texto (trama simples, enredo previsível, linguagem coloquial para a época) quanto das condições de produção e de primeira circulação. Apesar disso, as histórias de Sabrina costumam ser consideradas como "entretenimento", "sub-‐literatura" ou "literatura de massas", enquanto a narrativa de José de Alencar costuma ser vista como "arte", como "literatura canônica" ou, simplesmente, como Literatura. Assim, a definição de literatura não deriva apenas do texto tampouco depende apenas das condições de produção e de circulação. A essa altura, você já deve estar se perguntando: afinal, o que define a literatura? É o que veremos no próximo tópico. ________________________________________________________________________________________
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Ampliando o conhecimento ________________________________________________________________________________________ Para saber mais sobre os romances de série, como Sabrina, e sobre a relação que os leitores mantêm com eles, você pode ler o interessante artigo de Simone Meirelles Rodriguez, fruto de sua Dissertação de Mestrado, defendida na Universidade Federal do Paraná: RODRIGUEZ, Simone Meirelles (2005). Leitoras com coração: usos de leitura dos romances sentimentais de massa. Revista Letras, n. 65. Curitiba: Editora UFPR, pp. 23-‐37, jan./abr. O texto está disponível aqui. A Feira Literária de Paraty (FLIP) de 2010 causou espanto em certos setores ao convidar a escritora chilena Isabel Allende para o evento, pois a FLIP "não costuma mirar autores best-‐sellers, mas mais aqueles com boa reputação na crítica", como escreveu Fábio Victor para a Folha de S. Paulo. Perguntada sobre isso, a escritora não teve dúvidas e sapecou: "Há uma tendência de considerar que, quando um livro tem êxito de vendas, necessariamente a qualidade é inferior. Isso é subestimar os leitores, não acha?". Para ler a entrevista completa, acesse o "Material de Apoio", no TelEduc, e clique em "Folha de São Paulo -‐ 31 de julho de 2010". O filme Misery, traduzido no Brasil como Louca Obsessão (Rob Reiner, 1990), conta a história de um autor de best-‐sellers que é, literalmente, refém de sua "leitora número 1". É um thriller emocionante! Depois de assistir ao filme, você poderá ler a análise que fiz sobre ele no quarto capítulo do livro Cultura letrada: literatura e leitura (São Paulo: Ed. Unesp, 2006). ________________________________________________________________________________________
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Tópicos: • » Tópico 3 – Literatura: cânone e valor
Ponto de partida ________________________________________________________________________________________ A essa altura, você deve estar se perguntando sobre o que ocorre para que uma obra seja considerada literária, enquanto outras, que utilizam procedimentos linguísticos semelhantes e são produzidas em situações parecidas, não são tidas como literárias. Se a observação das características internas de um texto não é suficiente para definir a literatura e tampouco basta observar questões externas para estabelecer se uma obra é literária, como se faz a seleção dos livros que recebem o rótulo de literatura? Na verdade, a pergunta mais correta talvez seja: quem tem o poder de escolher as obras consideradas literárias? ________________________________________________________________________________________
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Mãos à obra 1 Em 2000, a Faculdade Coc, de Ribeirão Preto, incluiu em seu vestibular uma questão que tratava da definição de literatura. Leia a questão e tente resolvê-‐la.
As Ilusões da Literatura Mario Vargas Llosa Condenados a uma existência que nunca está à altura de seus sonhos, os seres humanos tiveram que inventar um subterfúgio para escapar de seu confinamento dentro dos limites do possível: a ficção. Ela lhes permite viver mais e melhor, ser outros sem deixar de ser o que já são, deslocar-‐se no espaço e no tempo sem sair de seu lugar, nem de sua hora e viver as mais ousadas aventuras do corpo, da mente e das paixões, sem perder o juízo ou trair o coração. A ficção é compensação e consolo pelas muitas limitações e frustrações que fazem parte de todo destino individual e fonte perpétua de insatisfação, pois nada mostra de forma tão clara o quão minguada e inconsistente é a vida real quanto retornar a ela, depois de haver vivido, nem que seja de modo fugaz, a outra vida -‐ a fictícia, criada pela imaginação à medida de nossos desejos. (Folha de S.Paulo,14/08/95, transcrito de El País). Assinale a alternativa que contém um conceito sobre literatura que NÃO combina com o que diz o texto acima. a) Literatura é criação de uma supra-‐realidadade com os dados profundos e singulares da intuição do artista. b) Literatura é a arte da palavra e existe para provocar o deleite e ampliar a visão de mundo do leitor. c) Literatura é a expressão artística dos conteúdos da ficção ou imaginação por meio da palavra escrita. d) Grande Literatura é simplesmente a linguagem carregada de significado até o máximo grau possível. e) Ciência e Literatura têm o mesmo objeto de estudo, o mesmo método e servem aos mesmos fins da vida humana.
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Mãos à obra 2 ________________________________________________________________________________________ Como você viu, a questão pedia que o aluno assinalasse a alternativa que não estava correta, portanto, quatro das definições foram consideradas adequadas. Examine cuidadosamente cada uma das alternativas e reflita: todo texto que cria "uma supra-‐realidade" é considerado literário? A "intuição do artista" e sua "singularidade" são suficientes para tornar uma obra literária? Qualquer texto que use a palavra "artisticamente", que use uma "linguagem carregada de significado até o máximo" é literário? Toda obra literária "provoca o deleite e amplia a visão de mundo do leitor"? Toda produção ficcional artística apresentada por escrito é literatura? ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 1 ________________________________________________________________________________________ Provavelmente, você respondeu "não!" a todas as perguntas. Afinal telenovelas criam uma realidade diferente da nossa, provocam muito deleite em grande parte da população, ampliam a visão de mundo do telespectador e, nem por isso, são consideradas literatura. Da mesma forma, pessoas como Chico Buarque, por exemplo, são artistas com muita intuição, criam letras de canções em que as palavras são usadas artisticamente, carregando a linguagem de significados em um alto grau. E nem por isso letras de canções são consideradas literatura. Você pode estar pensando que esses não são bons exemplos, pois telenovelas e canções recorrem a elementos audiovisuais em sua composição, não sendo, portanto, textos no sentido estrito. Peças teatrais também recorrem a elementos audiovisuais e muitas delas são consideradas literatura. Por isso, não é esse o problema! O pulo do gato está na letra d) em que se adiciona o adjetivo "Grande" à palavra "Literatura", grafada com L maiúsculo para dar mais importância. Por trás da maior parte das definições de literatura está subentendida a ideia de literatura erudita canônica, ou, dito simplesmente, Grande Literatura. Trata-‐se de um conjunto de obras de diversos períodos históricos, eleitas como sendo as melhores produções literárias de determinada época ou país. É claro que, se você estivesse realizando esse exame vestibular, você teria assinalado a alternativa e), pois, obviamente, Ciência e Literatura não têm o mesmo objeto de estudo, não utilizam o mesmo método e não servem aos mesmos fins da vida humana. Mas isso não ajuda em nada quem quer saber o que é literatura... ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 2 ________________________________________________________________________________________ Selecionar um conjunto de obras como sendo as melhores, ou seja, compor um cânone, não é necessariamente um problema. Afinal, não há tempo para ler todos os romances e cada um dos poemas já escritos, tampouco é possível assistir a todas as peças teatrais já criadas. Assim, essa seleção ajudaria o leitor a ir direto ao que há de melhor. Da mesma forma, ajudaria a escola, que poderia trabalhar apenas com textos realmente excelentes. Entretanto, essa seleção traz consigo alguns problemas É preciso pensar em quem faz essa escolha -‐ ou seja, quem estabelece o cânone. A definição de um conceito de literatura e o estabelecimento de um cânone principiou no século XIX, quando professores, críticos e membros de academias de diversas partes do mundo começaram a se inquietar com a proliferação de livros e de leitores. No Brasil, professores de colégios de prestígio (dentre os quais se destacava o Colégio Pedro II do Rio de Janeiro) e autores de manuais de retórica tomaram a si a tarefa de separar o (suposto) joio do trigo. O retor Manoel da Costa Honorato, por exemplo, em um dos primeiros livros publicados no Brasil para ensino de literatura, explicava aos alunos que a crítica literária era "a arte que ensina a distinguir o verdadeiro merecimento dos autores", evitando a apreciação cega, que costuma valorizar o defeituoso. E arrematava: a crítica não deveria sujeitar-‐se ao "sentimento popular", que não possui os necessários princípios de julgamento das artes (ver fonte7). ________________________________________________________________________________________
7 HONORATO, Manoel da Costa. Synopses de Eloqüência e Poética Nacional acompanhadas de algumas noções de critica litteraria extrahidas de vários autores e adaptadas ao ensino da mocidade brasileira por Manoel da Costa Honorato, professor de Oratória e Poética cônego honorário da Cathedral e Capella Imperial, bacharel formado em Sciências Sociaes e jurídicas pela faculdade de Direito de Recife (..) Rio de Janeiro, Typ. Americana de Eduardo Augusto de Oliveira, 1870, p. 235.
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Colocando os conhecimentos em jogo 3 ________________________________________________________________________________________ Ele estava apenas fazendo eco ao que se dizia na Europa. Veja, por exemplo, o que escreveu o abade francês Trublet8:
O verdadeiro belo, o verdadeiro bom, é aquilo que agrada àqueles que têm muito espírito e gosto. [...] Mas freqüentemente aquilo que agrada muito àqueles que têm muito espírito e gosto, agrada menos, ou mesmo não agrada absolutamente àqueles que os têm em menor quantidade, e é bem natural que seja assim. O bom gosto em todas as matérias não é de forma alguma o gosto da maioria em geral, é o gosto do maior número daqueles que têm as qualidades, os conhecimentos, a experiência necessária para julgar bem a matéria de que se trata; é, se posso me exprimir assim, o gosto mais comum entre as pessoas menos comuns.
O que diferencia esses professores e críticos dos séculos XVIII e XIX dos de hoje é que eles eram muito mais explícitos! Eles estavam preocupados com o fato de haver cada vez mais livros no mercado, assim como se inquietavam com a existência de grandes massas (para a época) de leitores, que liam fundamentalmente para se divertir. Ao buscar criar diferenças entre os eruditos e o público em geral, entre as obras que eles apreciavam e as que eram lidas vorazmente pela maioria, eles deram início a um processo que culminou com a criação do conceito de literatura e com a seleção de um conjunto de obras que se tornaram canônicas. Obviamente, eles selecionaram as obras produzidas e apreciadas por gente semelhante a eles -‐ ou, como disse o Abade Trublet, eles se pautaram pelo "gosto mais comum entre as pessoas menos comuns". Dessa forma, a seleção do que é literatura excluiu (e exclui) as obras produzidas fora do círculo restrito da erudição e as que eram (e são) apreciadas por muita gente, mesmo que essas obras façam um uso artístico da linguagem, criem um universo ficcional sofisticado, propiciem o deleite e alterem de maneira complexa a visão de mundo de grandes contingentes de leitores. ________________________________________________________________________________________
8 TRUBLET, Abbé. Réflexions sur le gout. Essais, tomo I, primeira parte. Apud: VIAL, Francisque e DENISE, Louis. Idées et doctrines littéraires du XVIIIe siècle (extrait de préfaces, traités et autres écrits théoriques. Paris: Librairie Ch. Delagrave, 1909, p. 123.
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Colocando os conhecimentos em jogo 4 ________________________________________________________________________________________ Assim, o que se chama de literatura hoje é, na verdade, um conjunto de obras selecionado por um grupo de intelectuais e letrados. Ou seja, o que se chama de literatura é aquilo que as comunidades interpretativas autorizadas (ou seja, os professores universitários, os críticos literários, os autores de livros didáticos, os formuladores de políticas públicas etc.) disserem que é literatura, pois eles ocupam um lugar de prestígio intelectual na sociedade, conseguindo fazer com que seu modo de apreciar as obras e sua maneira de ver o mundo se imponham sobre os demais. Uma das maneiras de efetivar essa imposição foi transformar a literatura em matéria escolar. Sem explicitar o fato de que se trata de uma seleção de obras, feita por umas poucas pessoas, a partir de critérios muito particulares, construiu-‐se, pouco a pouco, a ideia de que aquele conjunto de textos expressava a melhor realização poética, ficcional ou teatral, que, portanto, deveria ser apreciada igualmente por todos. Como isso aconteceu é o assunto do próximo tema: "O ensino da literatura." Mas antes de prosseguir, realize a atividade proposta a seguir. ________________________________________________________________________________________
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Atividade autocorrigível 1a ________________________________________________________________________________________ Uma proposta de discussão sobre o que é literatura e o que é arte está na "Situação de Aprendizagem 39/Lição de Casa" do Caderno do Aluno da 1ª série. Nela, são apresentadas quatro definições de literatura elaboradas em diferentes épocas, por professores brasileiros e estrangeiros. Leia as definições e identifique a que melhor corresponde ao ponto de vista defendido neste tópico:
Trecho 1 Na leitura e na escritura do texto literário, encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade. (COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 1ª edição, 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2007, p. 17).
Trecho 3 [A literatura], considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma fase. Estes denominadores são, além das características internas (língua, tema, imagens), certos elementos de natureza social e psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente. (CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006).
Trecho 2 A literatura, no sentido de uma coleção de obras de valor real e inalterável, distinguida por certas propriedades comuns, não existe. Os juízos de valor que a constituem [isto é, a literatura] são historicamente variáveis, mas [...] esses juízos têm, eles próprios, uma estreita relação com as ideologias sociais. Eles se referem, em última análise, não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre os outros. (EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 15 e 22).
Trecho 4 A literatura, assim como outras formas de manifestação artística, preenche a necessidade de ficção do homem, possibilitando-‐lhe por meio da palavra a recriação e reinvenção do universo. [...] Observando e analisando a condição humana, através dos sentimentos e conflitos existenciais das personagens de ficção, [...] [uma pessoa é levada] a refletir sobre a sua própria existência, chegando a uma compreensão mais profunda de si mesmo e do homem. (VIEIRA, Alice. O prazer do texto: perspectivas para o ensino da literatura. São Paulo: EPU, 1989, p. 13 e 26).
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9 Veja o Caderno do Professor, 1ª série, volume 2, 2009, páginas 26 a 29.
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Atividade autocorrigível 1b ________________________________________________________________________________________ A concepção que melhor corresponde ao ponto de vista apresentado no tópico Literatura: cânone e valor é:
a) a transcrita no Trecho 1
b) a transcrita no Trecho 210
c) a transcrita no Trecho 3
d) a transcrita no Trecho 4
e) nenhuma delas
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10 A alternativa correta é a b) (Trecho 2), pois o trecho de Terry Eagleton apresenta a ideia de que “a literatura é o conjunto de textos que os poderosos decidem que seja arte”, conforme a paráfrase feita pelos autores do Caderno (p. 29).
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Ampliando o conhecimento ________________________________________________________________________________________ Vários dos assuntos tratados aqui são desenvolvidos no meu livro intitulado Cultura letrada: literatura e leitura (São Paulo: Ed. Unesp, 2006). O livro discute os conceitos e definições de literatura e reflete sobre as maneiras como ela tem sido ensinada. São debatidos temas quentes como: há livros bons em si? todos devem apreciar o mesmo tipo de texto? há uma qualidade estética objetiva nas obras? há uma maneira correta de ler literatura? Os capítulos em que se discute o conceito de literatura estão disponíveis em "Material de Apoio", no TelEduc. Você pode pensar sobre o ensino tradicional de lite ratura assistindo ao filme Encontrando Forrester, que narra a história de um aluno negro que é transferido para uma escola de elite devido aos seus brilhantes resultados acadêmicos. Ali ele encontra um professor de literatura bastante tradicional, que insiste na apresentação dos grandes autores eruditos e na realização de tarefas convencionais. Tudo muda quando o aluno encontra o recluso escritor Forrester. Mas antes de prosseguir, realize a atividade proposta a seguir. ________________________________________________________________________________________
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Tema: 2. O Ensino da Literatura Tópicos:
• » Tópico 1 – O que aprendiam os nossos avós – o ensino de literatura no passado
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Um início de conversa ________________________________________________________________________________________
O modo como se ensina literatura brasileira é bem recente e, sejamos sinceros, bastante confuso. Os livros didáticos, em geral, misturam correntes teóricas e linhas críticas como se não houvesse entre elas qualquer divergência. Como você verá nesse Tema, o ensino atual conserva ideias antigas de mais de um século, apresentando-‐as, lado a lado, com propostas que visam negá-‐las! Vamos acompanhar algumas etapas importantes da reflexão sobre como compreender e ensinar literatura e vamos nos deter sobre os "estilos de época" e "as características de escolas literárias", que, em geral, ocupam um lugar central nos programas de ensino e nos materiais didáticos. ________________________________________________________________________________________
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Mãos à obra ________________________________________________________________________________________ Todos percebemos que o modo de vida, as roupas, os penteados mudam com o tempo e mudaram muito no último século. Mas temos a tendência a imaginar que produções do espírito -‐ como a literatura -‐ e seu ensino sempre foram da maneira como os conhecemos. Isso faz com que muitos tenham dificuldades em aceitar mudanças, pensando "isso sempre foi assim, para que mudar?" Neste (e no próximo) Tópico, você vai ver que as concepções sobre como ensinar literatura se transformaram de maneira impressionante nos últimos séculos -‐ e que, talvez, seja bom transformá-‐las um pouco mais... ________________________________________________________________________________________
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Ponto de partida ________________________________________________________________________________________ Quando você era estudante, no Ensino Médio (que se chamava Colegial ou Segundo Grau, conforme sua idade...), você, provavelmente, estudou literatura de maneira histórica, principiando pela produção medieval e evoluindo até a Geração de 45, mais ou menos. Possivelmente, você estudou a literatura portuguesa e a brasileira em paralelo. Na universidade, é provável que você tenha visto tudo isso novamente; talvez, com o acréscimo de uma literatura de outra língua que não a portuguesa. Por isso, é possível que você pense que sempre se ensinou literatura assim e que só há essa maneira de aprender. Se você conversar com sua mãe ou com sua avó, logo perceberá que elas aprenderam literatura de modo diferente no curso que, no tempo delas, se chamava "Científico" ou "Clássico". Se fosse possível conversar com sua bisavó, você ficaria espantada ao perceber como tudo era diferente... Como não é mais possível conversar com as pessoas que foram à escola no século XIX ou no começo do XX, vamos observar os livros que elas usavam para descobrir como era o ensino de literatura. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 1 ________________________________________________________________________________________ No século XIX, o ensino do que hoje chamamos de literatura era muito diferente! Havia aulas de Retórica e de Poética, concentradas no sexto e no sétimo anos do ensino médio -‐ que, em colégios como o Pedro II, durava sete anos e era destinado à formação de bacharéis. As disciplinas de Retórica e Poética abrangiam produções universais, sem nenhuma preocupação com a nacionalidade dos autores que produziram os textos e voltavam-‐se à apresentação dos preceitos que norteavam a composição de discursos e de poesias. Veja, por exemplo, de que elementos se compunha o livro Postillas de Rhetorica e Poetica, escrito pelo cônego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro11 e publicado em 1871. Os estudantes do Colégio Pedro II, para quem o livro foi concebido, aprendiam um conjunto de regras que tornavam um discurso oral ou escrito convincente (Retórica) ou que tornavam um poema belo (Poética), prescrevendo os assuntos e os modos de tratá-‐los. Esse estudo tinha por objetivo "conhecer e apreciar o mérito dos escritores notáveis, julgar suas obras e manifestar a impressão que elas deixam em nosso espírito" (p. 8). O estudo da Retórica, além de capacitar o aluno a avaliar as obras já produzidas, tinha também o propósito de ensinar a produzir discursos persuasivos. Embora o cônego Fernandes Pinheiro oferecesse um maior número de exemplos extraídos das literaturas portuguesa e brasileira, não havia, em sua obra, nenhuma preocupação nacional.
Clique aqui se quiser ver algumas obras de J.C.F.Pinheiro. ________________________________________________________________________________________
11 Se você quiser conhecer as obras de Fernandes Pinheiro, acesse o site http://www.archive.org/search.php?query=Joaquim%20Caetano%20Fernandes%20Pinheiro. Lá estão disponíveis versões digitais de seus principais livros, muitos deles em primeira edição. Mesmo que você não queria ler toda a obra do cônego, vale a pena dar uma espiada, ao menos para ver como eram as edições escolares do século XIX.
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Colocando os conhecimentos em jogo 2 ________________________________________________________________________________________ Somente em 1860, surgiu uma disciplina específica destinada ao ensino da literatura brasileira a ser ministrada apenas no sétimo (e último) ano do ensino médio. Embora a disciplina se chamasse "literatura nacional", seu conteúdo abordava principalmente a literatura portuguesa! A disciplina era composta por 30 pontos, dos quais 20 tratavam da literatura portuguesa; oito, da brasileira; um, da origem da língua portuguesa e outro da noção e divisão de sua literatura. Para dar conta desse programa, foi publicado o primeiro livro escolar destinado ao ensino da literatura brasileira, também escrito pelo cônego Januário Caetano Fernandes Pinheiro e publicado, em 1862, com o título Curso Elementar de Literatura Nacional. Veja como era apresentada a matéria. Compare os itens elencados no Sumário com aqueles listados no índice do livro didático que você costuma consultar. Que diferenças você observa? Anote os principais elementos que chamaram a sua atenção. Provavelmente, você percebeu que não há separação entre os autores portugueses e brasileiros -‐ veja, por exemplo, a lição XXXI, em que convivem poetas portugueses (Correia Garção, Antonio Diniz da Cruz e Silva e Filinto Elísio) com poetas hoje apresentados como parte da literatura brasileira (Tomás Antonio Gonzaga e Silva Alvarenga). ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 3
É possível, também, que você tenha observado que a matéria é dividida em seis períodos históricos (1140 a 1279; 1279 a 1495; 1495 a 1580; 1580 a 1750; 1750 a 1826 e 1826 em diante). Se você tivesse o livro em mãos, perceberia que a separação entre as épocas se faz ora por questões políticas -‐ como o início da terceira época, em 1580, devido à perda da autonomia política de Portugal para a Espanha -‐ ora por eventos literários -‐ como início da última época em 1826 devido à publicação do livro Camões por Almeida Garrett (que, na verdade, saiu em 1825!). Pode ser que você tenha percebido que, dentro dessas épocas, a matéria é organizada em função dos gêneros convencionais (lírico, épico, dramático, didático) e das espécies (bucólica, lírica, elegíaca, didática, satírica e epigramática), seguidos de formas tidas, à época, como híbridas ou de difícil classificação (como o romance) e por gêneros e tipos de texto de menor destaque (como os diálogos, a epistolografia, a historiografia, as viagens, a biografia). Talvez, você tenha notado que são incluídas obras que hoje não consideramos como literárias, como é o caso da historiografia. Mas, talvez, o que tenha mais chamado a sua atenção tenha sido a ausência de referências a escolas literárias como "classicismo", "barroco", "arcadismo". Como você deve ter percebido, a única escola mencionada é a "escola romântica". Se você consultar o livro, perceberá que o fato de referir o movimento romântico como escola não torna a abordagem semelhante à da maioria dos livros didáticos atuais, pois o texto traz apenas uma apresentação dos principais autores, com farta citação de trechos de suas obras, sem que se faça qualquer referência a "características de época", que hoje recebem grande destaque no ensino de literatura.
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Finalizando... ________________________________________________________________________________________ Como você viu, a existência de uma "literatura brasileira" e seu ensino são quase uma novidade, já que, no plano histórico, 150 anos não são grande coisa! O modo como ela é ensinada hoje -‐ de maneira evolutiva, subdividida em "escolas literárias", com características bem definidas -‐ é ainda mais recente. No próximo Tópico, vamos ver como isso aconteceu; mas, por enquanto, o que importa reter é que a maneira pela qual se ensina literatura na maior parte das escolas, hoje, não é única nem inevitável. Ao contrário, ela é fruto de um processo, realizado nas últimas décadas, que gerou sucessivas e importantes modificações. Antes de avançar, faça a atividade apresentada a seguir. Vamos ver se você está entendendo tudo mesmo! ________________________________________________________________________________________
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Atividade autocorrigível 2 ________________________________________________________________________________________ professor Roberto Acízelo de Souza realizou um profundo estudo sobre a organização das disciplinas no Colégio Pedro II entre 1850 e 1900 e as sintetizou em um quadro (clique aqui para ver o quadro). A partir da análise do quadro de distribuição das disciplinas, é correto afirmar que: I. a perspectiva nacionalista não era predominante no ensino de literatura no século XIX; II. o ensino de retórica e de poética teve grande destaque até a década de 1880; III. o ensino de literatura nacional como disciplina autônoma implanta-‐se lentamente; IV. o ensino da história literária reunia a literatura geral, a portuguesa e a brasileira em vários momentos; V. as disciplinas relativas ao ensino de literatura não se modificaram de maneira significativa. a) apenas as afirmações I, II e III são corretas b) apenas as afirmações II, IV e V são corretas c) apenas as afirmações I, II, III e IV são corretas12 d) nenhuma das afirmações é correta e) todas as afirmações são corretas ________________________________________________________________________________________
12 A alternativa correta é a c), pois como mostra o quadro e como você viu no texto da aula, o ensino de literatura se modificou de maneira significativa ao longo dos séculos XIX e XX.
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Ampliando o conhecimento ________________________________________________________________________________________ Uma boa apresentação do processo de constituição da literatura como disciplina escolar pode ser lida no livro de Roberto Acízelo de Souza, intitulado Introdução à Historiografia da Literatura Brasileira (Rio de Janeiro: EdUerj, 2007). O capítulo "Ao raiar da literatura brasileira: sua institucionalização no século XIX" é especialmente interessante! Você pode encontrá-‐lo em "Material de Apoio", no TelEduc. Para sentir como o universo escolar mudou nas últimas décadas, você pode assistir ao filme A Dúvida (direção John Patrick Shanley, 2008), que apresenta o cotidiano de uma escola religiosa americana em 1964. A trama gira em torno da suspeita de que um dos professores, o Padre Flynn, teria segundas intenções em seu relacionamento com um dos alunos. Se você gosta de filmes de suspense, pode preferir ver Piquenique na Montanha Misteriosa (direção de Peter Weir, 1975). A história é ambientada na Austrália, em 1900 e tem por assunto o misterioso desaparecimento de algumas alunas e de sua professora no final de um piquenique realizado na montanha Hanging Rock. Nenhum deles trata especificamente de literatura, mas deixam bem claro como tudo era diferente -‐ e, sendo assim, por que só o ensino de literatura seria sempre igual? ________________________________________________________________________________________
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Tópicos: • » Tópico 2 – Entre o texto e o contexto: como apresentar a história da literatura?
Mãos à obra
________________________________________________________________________________________ O ensino de literatura, tal como se faz hoje na maioria das escolas de Ensino Médio, é fruto de um longo processo de reflexão sobre a melhor maneira de compreender o fenômeno literário. Nos últimos cento e poucos anos, houve animados debates sobre o que seria mais importante destacar no estudo das obras literárias. Isso, obviamente, teve consequências sobre a maneira de ensinar literatura nos níveis pré-‐universitários. No tópico anterior, vimos o início dessa história. Agora você vai ver seus desdobramentos e vai entender um pouco melhor por que os livros didáticos que você utiliza são como são. ________________________________________________________________________________________
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Ponto de partida ________________________________________________________________________________________
Observe o livro didático que você costuma utilizar ou a que recorre na preparação de suas aulas. Tome, por exemplo, o capítulo relativo ao "Barroco". É muito provável que ele traga informações sobre a Reforma e a Contra-‐Reforma; que estabeleça conexões entre esses fenômenos e a produção literária européia; que apresente a situação brasileira, com ênfase na produção açucareira no Nordeste; que faça uma lista das características que as obras do período manifestam; e que, finalmente, apresente os principais autores e suas obras, referindo o Padre Antonio Vieira e Gregório de Matos (ou, em alguns casos, apenas Gregório de Matos). Talvez essa maneira de abordar a literatura pareça natural para você. É possível que você julgue que esse é o modo mais completo de compreender a produção literária do passado. Mas, na verdade, trata-‐se de uma sobreposição de teorias e modos de compreender a literatura que se desenvolveram a partir do final do século XIX. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 1 ________________________________________________________________________________________ O Curso Elementar de Literatura Nacional, cujo índice você examinou no tópico anterior, foi, por muito tempo, um dos principais livros adotados para o ensino de literatura nacional, que continuava subordinada à literatura portuguesa e concorrendo com as disciplinas de Retórica e Poética (cujo foco era pouco histórico e nada nacionalista). Somente no final do século XIX, em 1892, a literatura brasileira passou a ocupar um lugar de relativa importância no Ensino Médio. No Colégio Pedro II (que tem servido de parâmetro em muitos estudos para a observação da história do ensino no Brasil), foi nesse ano que se passou a ensinar exclusivamente literatura nacional, abrindo mão do ensino da retórica e da poética. Nesse momento, o livro do cônego Fernandes Pinheiro foi substituído pela obra História da literatura brasileira13, de Sílvio Romero. Este livro trazia muitas novidades, a começar pelo fato de não tratar da literatura portuguesa como parte da literatura nacional, mas mantinha algumas características do modo de ensino anterior, por exemplo, a associação entre a vida do autor e sua produção, procurando na biografia traços para explicação dos textos -‐ procedimento que permaneceu no modo como se ensina literatura até hoje, em muitos livros didáticos. ________________________________________________________________________________________
13 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1888. A ortografia foi modernizada nas citações. Fragmentos disponíveis para baixar em PDF em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2128, acesso em 15/10/2010.
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Colocando os conhecimentos em jogo 2 ________________________________________________________________________________________ A grande novidade do livro de Romero era ter como objetivo principal "mostrar as relações de nossa vida intelectual com a história política, social e econômica da nação" (p. 9). Para chegar a isso, ele achava que era "preciso deixar ver como o descobridor, o colonizador, o implantador da nova ordem de cousas, o português em suma, foi-‐se transformando ao contato do índio, do negro, da natureza americana, e como, ajudado por tudo isso e pelo concurso de ideias estrangeiras, se foi aparelhando o brasileiro." (p. 9) Para ele, o que explicava a produção literária era a ação da "raça" (ou seja, da etnia a que pertenciam os autores), do "meio" (ou seja, do contexto) e do "momento" (ou seja, a época). (p. 13). Esse modo de compreender a produção literária foi marcante e afetou os livros produzidos nas décadas seguintes. Embora houvesse discordâncias aqui e ali com o método de Sílvio Romero, sua concepção historicista e sociológica da literatura permaneceu por muito tempo. A subordinação da literatura à história é um traço ainda presente em muitos materiais didáticos, que apresentam as obras literárias como reflexo das atividades sócio-‐político-‐econômicas. Em meados do século XX, entretanto, surgiram questionamentos importantes a essa maneira de compreender a produção literária, pois muitos passaram a reivindicar uma autonomia da obra de arte em relação a seu contexto de produção, afirmando que os elementos internos dos textos deveriam ter primazia. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 3 ________________________________________________________________________________________ As correntes de maior destaque a pregar esse tipo de abordagem foram a dos formalistas russos e a dos estruturalistas, que concentravam sua atenção no funcionamento do texto, evitando tecer qualquer consideração sobre sua ideologia ou sua relação com o contexto. Obviamente, eles estavam muito distantes do que faziam os historiadores da literatura, mas tiveram grande importância para os que criticavam a periodização adotada pelas histórias literárias. Até então, a separação em períodos misturava critérios políticos (início ou final de reinados, por exemplo), cronológicos (estabelecimento de conjuntos de anos relativamente arbitrários) e literários (publicação de determinada obra tida como relevante). A partir dos trabalhos de René Wellek, muitos passaram a acreditar que a literatura teria um "desenvolvimento próprio e autônomo, que não pode ser reduzido ao de outras atividades", devendo, portanto, ser subdividida em períodos que se caracterizem por "um sistema de normas, padrões e convenções literárias, cuja introdução, alastramento, diversificação, integração e desaparecimento podem ser traçados." ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 4 ________________________________________________________________________________________ A obra de René Wellek teve grande importância para os trabalhos de Afrânio Coutinho14 que, nos anos de 1950, coordenou uma equipe de pesquisadores encarregados de escrever uma nova história da literatura brasileira, a qual, entre outras novidades, trazia a matéria subdividida em períodos, marcados por diferenças de estilos. Para ele, "os estilos principais que prevaleceram como unidades periodológicas" no Brasil foram os seguintes: "Barroquismo, Neoclassicismo, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, Impressionismo, Modernismo" (pp. 27 e 33) Sob sua orientação foi produzida a obra A literatura no Brasil, publicada entre os anos de 1955 e 1959, na qual se buscava mostrar que a literatura é um "fenômeno autônomo" (p. 33), embora mantenha relações com outros setores da atividade humana. Ela deveria ser estudada tendo em vista suas características internas e seu "desenvolvimento imanente", "não condicionada por influências extraliterárias de origem social ou política." (p.62) Agora você deve ter percebido de onde vem a divisão dos capítulos dos livros didáticos mais comuns e de onde se originaram as famosas listas de características de época! ________________________________________________________________________________________
14 COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1968. As citações de Wellek foram extraídas dessa obra, à página 21.
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Atividade autocorrigível 3 ________________________________________________________________________________________ Como você sabe, a internet está repleta de sites que apresentam conteúdos escolares de forma menos ou mais animada. Muitos deles trazem explicações sobre escolas literárias e suas características. Acesse o site e leia o texto "Movimento Barroco". Observando a maneira de apresentação da matéria, é correto dizer que: I. há grande coerência teórica no modo de explicar o movimento barroco. II. há uma justaposição de correntes teóricas, muitas das quais são incompatíveis. III. há grande interesse no material por trazer todas as informações necessárias para a compreensão do barroco. Passe o cursor na letra da alternativa correta: a) todas as afirmações são corretas b) apenas a afirmação III é correta c) apenas a afirmação I é correta d) apenas a afirmação II é correta15 e) apenas as afirmações I e III são corretas ________________________________________________________________________________________
15 A alternativa correta é a d), pois há uma justaposição de correntes teóricas o material apresentado no site. Muitas delas são contraditórias, portanto incompatíveis. O exercício é comentado no texto a seguir.
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Finalizando... ________________________________________________________________________________________ Os modos de compreender a história da literatura brasileira apresentados nos dois últimos tópicos convivem, de maneira pouco harmônica, nos livros didáticos atuais. Como você deve ter percebido, no capítulo relativo ao "Barroco" examinado na questão anterior, convivem informações sobre a história do pensamento religioso na Europa (relato sobre a Reforma e a Contra-‐Reforma), articulações entre texto e contexto (conexões entre história religiosa e produção literária européia), vinculações entre a produção literária e as condições sócio-‐econômicas (a produção açucareira no Nordeste como pano de fundo da produção de sermões e poesias), descrição formal de elementos dos textos (listas das características de época), associação entre trajetórias individuais e produção literária (apresentação de biografias dos autores em relação com as obras). Essa justaposição de teorias é pouco consistente, pois tenta conjugar o que, no plano teórico, é, muitas vezes, antagônico ou incompatível. Além disso, faz-‐se, em geral, uma diluição das propostas e de seus resultados, transformando-‐os em narrativas históricas superficiais, breves esboços biográficos e listas de características textuais. De todas essas maneiras de abordar a literatura, a que costuma ter maior difusão escolar é a que se centra em apresentar a "evolução" das "escolas literárias" e suas "características de época", embora essa seja uma maneira anacrônica e redutora de compreender a produção literária. No próximo tópico, vamos ver por quê. ________________________________________________________________________________________
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Ampliando o conhecimento ________________________________________________________________________________________ Uma bela apresentação dos temas tratados brevemente nesse tópico pode ser lida no livro Teoria da Literatura, de Roberto Acízelo de Souza (São Paulo: Ática, 2007). Com grande poder de síntese, o professor apresenta, em 80 páginas, a história da reflexão teórica sobre literatura, referindo os debates mais importantes e esclarecendo termos e conceitos críticos. Tudo isso em linguagem simples e agradável! ________________________________________________________________________________________
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Tópicos: • » Tópico 3 – História da Literatura, Escolas Literárias e características de época
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Mãos à obra ________________________________________________________________________________________
O ensino de literatura como ensino de história literária, subdividida em "escolas" com características de época bem definidas é o que prevaleceu no Ensino Médio nas últimas décadas. Esse modo de ensinar literatura é uma mistura de uma concepção historicista-‐sociológica (como a realizada por Sílvio Romero, por exemplo) com uma concepção imanentista, que observa o funcionamento do texto, buscando localizar suas características fundamentais (como a proposta por Afrânio Coutinho, por exemplo). Provavelmente, você aprendeu literatura desse modo e talvez acredite que essa maneira é a que melhor conduz
os alunos à compreensão do fenômeno literário. Vamos pensar sobre isso? ________________________________________________________________________________________
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Ponto de partida ________________________________________________________________________________________ No quarto volume do Caderno do Professor relativo à 1ª série, há propostas de trabalho que visam ensinar as "características de estilo de época" e levar os alunos a perceber "os principais estilos de época da literatura em língua portuguesa" (p.10). A Atividade 2 apresenta "as principais características das escolas literárias" e propõe a tarefa de "identificar a que estilo de época pertencem". A proposta consiste em relacionar características a nome de escolas, mas nós vamos fazer um pouco diferente! Vamos relacionar as características apresentadas a obras literárias. ________________________________________________________________________________________
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Atividade autocorrigível 4 ________________________________________________________________________________________ A Atividade 2 da Situação de Aprendizagem 1 -‐ "O estilo nosso de cada época" (Caderno do Professor, volume 4, 2009, p. 13) apresenta as seguintes características como definidoras do "Barroco":
Representa o momento de crise do antropocentrismo, com os valores religiosos mascarando a visão do homem sobre si. O equilíbrio apregoado pelo Renascimento é substituído pela expressão angustiada do ser humano, que se sente pequeno diante da realidade em que vive. Por isso, fala-‐se muito da brevidade da vida. O leitor é conduzido à confusão das coisas, de modo que os textos criam uma ideia de instabilidade. Valoriza-‐se o jogo de oposições e contrastes.
Leia os poemas a seguir (clique aqui) e identifique aqueles que pertencem ao Barroco, segundo a definição acima. Em seguida, responda: Considerando as características apresentadas no Caderno do Professor, são barrocos os poemas: a) I, II, III, IV, V, VI. b) I, II. c) IV, V, VI. d) I, II, III, IV, V16. e) VI. ________________________________________________________________________________________
16 Você acertou. Os poemas que correspondem às características listadas estão na letra d), entretanto eles não foram escritos no Barroco. Apenas o poema VI foi produzido no período designado como Barroco, mas ele não apresenta as características listadas.
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Colocando os conhecimentos em jogo 1 ________________________________________________________________________________________ Exercícios de identificação de textos a partir de características pré-‐definidas são muito comuns no cotidiano escolar, por isso essa tarefa deve ter parecido familiar para você. O fato de os poemas serem apresentados sem indicação de autoria talvez também tenha parecido habitual, pois a crença na ideia de que há estilos de época e que a eles correspondem determinadas características muitas vezes leva à realização de exercícios como esses. É possível que você tenha observado que o poema (I) mantém relação com a ideia de que "o equilíbrio apregoado pelo Renascimento é substituído pela expressão angustiada do ser humano", pois ele trata das dificuldades experimentadas pela persona lírica com seu próprio ser, exprimindo seus desentendimentos internos. Talvez você tenha associado o poema (II) à ideia de que o Barroco "representa o momento de crise do antropocentrismo, com os valores religiosos mascarando a visão do homem sobre si", já que ele expressa a submissão do homem a Deus e Sua presença em todas as coisas. Já o poema (III) pode ter lembrado a você a afirmação de que, no estilo barroco, "valoriza-‐se o jogo de oposições e contrastes", uma vez que o poema joga com a oposição entre ausência e presença; vazio e completude. Se você pensou assim, deve ter assinalado a alternativa d), uma vez que o poema (VI) parece ser o único que não corresponde a nenhuma das características apresentadas. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 2 ________________________________________________________________________________________ Entretanto, nenhum dos poemas citados entre I e V foi composto no período tido como Barroco. O primeiro deles é atribuído a Sá de Miranda (1481 -‐ 1558), que o compôs justamente no período designado como "Renascimento", época em que haveria "equilíbrio" e que seria suplantado pela "angústia" barroca. O segundo poema intitula-‐se "Deus é a luz celestial..." e foi publicado no livro Poesias (1938), da autoria de Alphonsus de Guimarães (1870-‐1921), poeta tido como "Simbolista". O terceiro poema é de Carlos Drummond de Andrade e foi publicado em seu último livro -‐ Corpo -‐ publicado em 1987, em um período para o qual os livros didáticos não estabelecem escolas literárias! Já o quarto poema, intitulado "O meu impossível" foi escrito pela poetisa portuguesa Florbela Espanca (1894-‐1930), conhecida por seus sonetos de tema amoroso, mas normalmente não associada a uma escola literária específica. O quinto poema chama-‐se "O Relógio" e foi escrito por Cassiano Ricardo (1895 -‐ 1974), poeta que tomou parte no movimento Modernista brasileiro. Ou seja, tendo em vista o momento de sua elaboração, nenhum deles seria considerado Barroco, embora todos apresentem elementos arrolados como característicos daquele "estilo de época". Por outro lado, o poema (VI), que não apresenta nenhuma das características arroladas, é o único que foi composto no período designado como Barroco. Ele é atribuído a Gregório de Matos (1636? -‐1696) e aproxima o amor à relação sexual, utilizando uma linguagem coloquial e debochada. ________________________________________________________________________________________
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Finalizando... ________________________________________________________________________________________ A ênfase sobre os estilos de época e sobre as características de escolas literárias, em geral, cria nos alunos a impressão de que todos os autores que escreveram em determinado momento seguiam uma mesma proposta e sentiam-‐se parte de um grupo homogêneo e coeso. Isso é uma ideia falsa, sobretudo se considerarmos as composições realizadas até o final do século XVIII. Como você viu, as tais "características de época" não são exclusivas de um determinado período, estando presentes em produções de momentos absolutamente distintos. Da mesma forma, nem todos os que escrevem em uma determinada época fazem uso de elementos semelhantes. Além disso, a ideia de que há "escolas literárias" que se definem por um conjunto de elementos comuns é bastante recente, datando de meados do século XX. Se fosse possível conversar com o poeta Gregório de Matos, ele certamente ficaria muito espantado com a ideia de pertencer ao estilo "barroco", pois, em seu tempo, "barroco" significava apenas um tipo de pérola mal formada... ________________________________________________________________________________________
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Ampliando o conhecimento ________________________________________________________________________________________ Você pode ler o livro Teoria Literária: uma introdução, de Jonathan Culler (São Paulo: Becca, 1999). Jonathan Culler apresenta um panorama dos principais temas e questões tratados pela teoria literária ao longo do século XX e fornece indicações que permitem que você continue acompanhando a discussão em outras obras e textos. O livro contém um precioso Apêndice, em que se apresenta um pequeno resumo das principais tendências teóricas e críticas do século passado. Além disso, o livro tem a virtude de ser claro e divertido. ________________________________________________________________________________________
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Tema: 3. Literatura: Espaço da Multiplicidade Tópicos:
• » Tópico 1 – Gostar ou conhecer?
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Um início de conversa ________________________________________________________________________________________ Até aqui, retomamos a maneira pela qual você aprendeu literatura e pensamos sobre o modo como você a ensina. Vimos que os livros didáticos, muitas vezes, tentam conjugar teorias e propostas histórica e teoricamente divergentes. Agora é hora de pensar em uma proposta renovada para o ensino da literatura.
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Mãos à obra ________________________________________________________________________________________ O ensino de literatura, muitas vezes, é associado à tarefa de difundir o gosto pela literatura erudita. É verdade que ninguém gosta daquilo que não conhece ou não compreende. É verdade também que a escola deve ser o lugar de ampliar as referências dos alunos, permitindo que eles conheçam um amplo conjunto de produções literárias bem como tomem contato com o legado artístico. Mas será preciso fazer com que os alunos gostem disso? ________________________________________________________________________________________
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Ponto de partida ________________________________________________________________________________________ Você se lembra de quando tentava fazer seu filho pequeno (ou priminho ou irmãozinho, tanto faz...) gostar de comer verdura? Talvez a angústia que você sentia diante da sua veemente recusa seja semelhante à que toma você de assalto quando tenta explicar para seus alunos que eles devem gostar de literatura -‐ sendo literatura aquele conjunto de obras canonizadas e escolarizadas... Talvez seu filho, hoje, adore comer acelga, mas provavelmente ele (e você!) recuaria horrorizado diante de um prato de Sannakji, preparado com filhote de polvo cru temperado com óleo de gergelim. Quando bem feito, os tentáculos, cortados em pequenos pedaços, chegam ainda se mexendo à mesa e, se não forem bem mastigados, podem ficar grudados na boca ou garganta devido às ventosas ainda ativas. Ficou com nojo? Pois saiba que o Sannakji é tido como uma iguaria fina na Coréia! É verdade que gosto se aprende, mas é mais verdade ainda que o gosto é cultural. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 1 ________________________________________________________________________________________ Você percebeu que a definição do que é literatura tem, além do componente estético, uma grande dose de disputa de poder. O que se considera uma história bem narrada em uma tribo africana não é o que se considera bem narrado em Paris; o enredo que emociona uma jovem de 15 anos não é o que traz lágrimas aos olhos de um professor de 60 anos; o que um crítico literário carioca identifica como um uso sofisticado de linguagem não é compreendido por um nordestino analfabeto. O problema é que o parisiense, o professor, o crítico literário, o homem maduro têm mais prestígio social que o africano iletrado, a jovem, o agricultor. Por isso conseguiram fazer com que seu modo de ler, sua apreciação estética, sua forma de se emocionar, seus textos preferidos fossem vistos como o único (ou o correto) modo de ler e de sentir. Ao invés de tentar (inutilmente) disseminar o gosto pela produção erudita entre pessoas que vivem em situações culturais inteiramente diversas, é mais produtivo que você favoreça o contato de seus alunos com múltiplas produções culturais (inclusive as canônicas). Mostre para eles que a sofisticação estética não é privilégio das composições eruditas. Cada grupo social e, principalmente, cada grupo cultural tem um conceito sobre o que seja literatura e tem critérios de avaliação próprios para examinar histórias e poesias. Muito melhor do que ter preconceito contra o gosto dos outros é conhecer as várias produções e entender como elas são compostas e avaliadas por seus autores e por seu público. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 2 ________________________________________________________________________________________ Essa questão é abordada na "Situação de Aprendizagem 3" da 1ª série (Veja o Caderno do Professor, 1ª série, volume 2, 2009, páginas 26 a 29), em que se propõe uma discussão sobre gosto e literatura. A proposta tem elementos interessantes, como entender a literatura "como um conceito aberto" (p. 27), estimulando o professor a não ser "dogmático" e abrir-‐se "para a argumentação e para o diálogo" (p. 27). No item "Sondagem", propõe-‐se que se peça aos alunos para trazer para sala de aula um texto de que gostem e que considerem "bonito" ou "belo", apresentando "os motivos que os levam a considerar cada texto como 'belo'" (p. 27). Essa é uma excelente maneira de compreender o gosto estético dos alunos e perceber as possíveis diferenças dentro de uma mesma classe. Depois de ouvir os alunos, propõe-‐se que você apresente a eles um poema que cons idere "bonito, mas que, ao mesmo tempo, seja também considerado uma obra literária importante". Os autores do material sugerem a utilização de um soneto de Luís de Camões. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 3 ________________________________________________________________________________________ Há aí alguns problemas. Ao apresentar o texto de Camões como exemplo de elaboração estética de qualidade, é possível que você passe aos alunos a ideia de que boa literatura é algo de difícil compreensão (o que não é verdade!). Além disso, a proposta não sugere que você explique aos alunos por que motivos esse poema é considerado um clássico da literatura. Isso pode gerar a ideia de que a qualidade literária não depende da época ou do lugar e que ela deveria ser reconhecida instintivamente por qualquer pessoa em qualquer tempo. Finalmente, as questões propostas para o debate também podem conduzir a desentendimentos, pois se pede que o professor pergunte: "Qual deles [o texto trazido pelos alunos ou o soneto de Camões] considera mais artístico? Por quê? Qual deles permite que pensemos melhor em nossa identidade e existência? Por quê?" (p. 27). Se sua sala de aula for um espaço de sinceridade, provavelmente os alunos dirão que o texto trazido por eles é mais artístico e permite pensar melhor sobre a existência. Se seus alunos acharem mais prudente tentar adivinhar o que a escola gostaria que eles respondessem, provavelmente dirão que o melhor é o soneto de Camões. Em qualquer uma das duas situações, o que os alunos ganham com a atividade? O que ela ensina para eles? ________________________________________________________________________________________
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Finalizando... ________________________________________________________________________________________ Professores de outras disciplinas, como física ou biologia, não costumam colocar entre seus objetivos principais fazer com que seus alunos gostem de física ou de biologia. Eles querem que os estudantes conheçam os fundamentos da disciplina e sejam capazes de operar com eles, pelo menos com os mais simples. Alguns deles gostarão disso e procurarão aprofundar seus conhecimentos, fazendo, quem sabe, um curso superior de Física ou de Biologia. Os que gostarem muito disso talvez se tornem professores de Física ou de Biologia, sem que lhes passe pela cabeça que sua missão na escola é fazer com que os alunos sejam como eles: gente que gosta de Física ou de Biologia. Nós, professores de Literatura, nos atrapalhamos quando colocamos como meta fazer com que os alunos gostem do que ensinamos. É muito mais simples e mais eficiente ensinar a eles quais são os fundamentos da literatura (ou seja, quais são os procedimentos básicos presentes em composições que diversas comunidades interpretativas reconhecem como obras literárias), quais são as convenções que regem as variadas elaborações produzidas em diferentes épocas e culturas e apresentar-‐lhes o que de melhor se produziu ao longo do tempo e em diferentes grupos culturais. Um programa como esse é amplo e complexo, mas é muito mais possível de ser realizado do que fazer com que todo mundo goste da produção erudita... ________________________________________________________________________________________
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Ampliando o conhecimento ________________________________________________________________________________________ Os desentendimentos entre o mundo erudito e o universo dos alunos de escolas de periferia são magnificamente representados no filme Entre os muros da escola (direção de Laurent Cantet, 2008). Você pode ler uma boa resenha do filme, escrita por Edilson Saçashima aqui ("‘Entre os Muros da Escola' expõe a visão francesa do choque de civilizações"). No mesmo endereço, poderá ver fotos e assistir ao trailler do filme. Clicando aqui, você poderá ler uma entrevista com o diretor do filme, Laurent Cantet, realizada por Taíssa Stivanin ("Diretor fala sobre 'Entre os Muros', filme indicado ao Oscar que retrata nova sociedade francesa"). Para ver uma experiência inteiramente diferente de contato com a literatura, assista ao vídeo "Povo lindo, povo inteligente -‐ o sarau da Cooperifa". ________________________________________________________________________________________
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Tópicos: • » Tópico 2 – E agora ?! O que fazer?
Mãos à obra ________________________________________________________________________________________ Até aqui, vimos que o ensino de literatura mudou muito nos últimos cento e poucos anos. Vimos também que a maneira como a literatura é apresentada na maioria dos livros didáticos é pouco adequada, por se concentrar na produção erudita e por misturar posições teóricas distintas e, às vezes, irreconciliáveis. Provavelmente, você está se perguntando: mas, então, o que devo fazer? No tópico anterior, foi feita uma proposta: ensinar os fundamentos da literatura; explicar quais são as convenções que regem as variadas elaborações produzidas em diferentes épocas e culturas; apresentar o que de melhor se produziu ao longo do tempo e em diferentes grupos culturais. Vamos pensar mais sobre isso?
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Ponto de partida ________________________________________________________________________________________ O que há de comum entre o folheto de cordel A Força do Amor de Leandro Gomes de Barros e o Poema em Linha Reta de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)? Quais são as semelhanças entre Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa e O Segredo de uma Promessa de Danielle Steel? O que é similar entre Hamlet de Shakespeare e O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna? Se você respondeu: nada!, enganou-‐se. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 1 ________________________________________________________________________________________ Não se encontrou, até hoje, um grupo cultural que não contasse histórias ou que não cantasse. As formas de fazer isso são as mais variadas, mas há uns tantos elementos recorrentes. O poema de Fernando Pessoa assim como o de Leandro Gomes de Barros são compostos em versos, com ritmo e sonoridade fortes. O romance de Guimarães Rosa, assim como o de Danielle Steel têm narradores e personagens que se movimentam em um ambiente e agem em determinado tempo. As peças de Shakespeare e de Suassuna também têm personagens que vivem em determinado ambiente e tempo, mas, diferentemente dos romances, pressupõem a participação de atores, a criação de figurinos e a elaboração de um cenário. Esses são alguns dos elementos essenciais da poesia, da ficção e do drama. Seus alunos precisam saber disso! ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 2 ________________________________________________________________________________________ Ao entrar em contato com poesias, é importante que seus alunos tenham noções sobre métrica (ou seja, o número de sílabas poéticas por verso), rima (isto é, a disposição de sons semelhantes no final dos versos) e ritmo (quer dizer, a distribuição das sílabas tônicas e átonas no verso). Há poemas em que não há rimas, nem um número fixo de sílabas, nem uma distribuição regular das tônicas pelos versos, mas há um trabalho especial com a sonoridade do texto pelo uso de aliterações ou de paralelismos ou pelo uso de onomatopeias etc. Seu aluno vai deixar de observar e compreender elementos essenciais da poesia (seja ela erudita ou popular) caso não preste atenção a questões desse tipo. Poesias podem ou não contar uma história. Se contarem, será necessário observar os elementos essenciais das narrativas. Um deles é a forma de organização do enredo, outros são o comportamento do narrador, a constituição do ponto de vista, a elaboração das personagens, a construção do cenário e do tempo, assim como o modo pelo qual a verossimilhança é assegurada. Obras ficcionais eruditas assim como as destinadas às grandes massas trabalham com esses elementos e seu aluno não pode se enganar diante deles, pensando, por exemplo, que está lendo um relato sobre um fato verídico do passado. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 3 ________________________________________________________________________________________ Quando se trata de narrativas, é preciso prestar atenção para não confundir duas figuras: o autor e o narrador! Ao ler ou ouvir uma história não entramos em contato com as opiniões do autor, necessariamente, pois ele pode expressar ideias totalmente distintas das que verdadeiramente tem, criando um narrador inteiramente diferente de si. Por isso, a partir da leitura de um texto ficcional, nunca pergunte aos seus alunos "o que o autor quis dizer" em determinada passagem ou "qual é opinião do autor" sobre determinado assunto! Já os textos dramáticos, como o de Suassuna e o de Shakespeare apresentam sua história por meio de personagens e diálogos e foram concebidos, principalmente, para serem vistos e não lidos. Por isso, são importantes o figurino, a sonoplastia, os jogos de luz, a caracterização do cenário e sua movimentação, assim como os recursos empregados para indicar a passagem ou a mudança de tempo. Diante de uma peça teatral, seus alunos não podem se queixar porque não há comentários do narrador, por exemplo, pois eles precisam saber que textos dramáticos não se utilizam desse recurso. Antes de mais nada, é preciso ter certeza de que seus alunos entenderam o que leram e que percebem quais são os elementos constitutivos daquele texto. Ler um poema sem prestar atenção ao ritmo e à sonoridade; ler um romance sem se importar com o narrador e as personagens; assistir a uma peça teatral sem ligar a mínima para os diálogos é deixar de perceber boa parte da graça dos textos. ________________________________________________________________________________________
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Finalizando... ________________________________________________________________________________________ Embora haja elementos básicos que costumam estar presentes nas composições poéticas, dramáticas e ficcionais, eles são trabalhados de maneiras muito diferenciadas em grupos culturais diversos e em tempos passados. Nesse sentido, há enormes diferenças entre A Força do Amor e o Poema em Linha Reta; entre Grande Sertão: Veredas e O Segredo de uma Promessa; entre Hamlet e O Auto da Compadecida. Se você tiver se convencido de que é importante ampliar os horizontes para além das obras canônicas e eruditas, será interessante mostrar aos alunos como as pessoas de outras épocas e de outras culturas pensaram e pensam sobre as composições literárias e como eles as avaliavam e avaliam. ________________________________________________________________________________________
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Atividade autocorrigível 5a ________________________________________________________________________________________ Você viu que uma boa leitura literária passa pela percepção e compreensão de recursos utilizados na composição de poesias, narrativas e peças teatrais. Para relembrar o que você aprendeu sobre os elementos essenciais da narrativa e da poesia, quando estava no colégio e na Faculdade, leia os itens "O que é um poema", "De que é feito o poema" e "Do que se faz uma narrativa" do livro Leitura, Literatura e Ensino (Campinas: Cefiel, 2009). O livro, escrito por Orna Messer Levin e por mim, está disponível no item "Leituras", no TelEduc. Para retomar seus estudos sobre teatro, leia o capítulo "Apagam-‐se as luzes, abrem-‐se as cortinas" do fascículo Primeiro ato: uma introdução ao teatro em cinco cenas. O fascículo, elaborado por um grupo de alunos de Licenciatura em Letras da Unicamp, também está no item "Leituras". Não se apavore! Os capítulos são bem curtos e escritos em linguagem acessível e agradável! O capítulo sobre o teatro traz algumas sugestões de atividades, mas você não precisa realizá-‐las. Depois de ler os textos, responda a questão abaixo, assinalando verdadeiro (V) ou falso (F). Em seguida, escolha a alternativa correta da atividade autocorrigível. I. Uma produção teatral não depende apenas do texto; ela envolve a sonoplastia, os figurinos, a iluminação e a construção do cenário. (V) (F) II. As narrativas costumam conter personagens, que realizam ações, em determinado espaço e tempo. (V) (F) III. As formas de encenação de peças teatrais são fixas e determinadas pelo texto composto pelo autor. (V) (F) IV. Espera-‐se que uma narrativa seja verossímil, ou seja, que os acontecimentos pareçam plausíveis dentro da lógica interna do enredo. (V) (F) V. São elementos essenciais da poesia: métrica (número de sílabas por verso), ritmo (distribuição das sílabas tônicas e átonas no verso) e rima (disposição de sílabas semelhantes no final dos versos). (V) (F) VI. As ideias apresentadas pelo narrador correspondem às opiniões do autor. (V) (F) VII. É frequente o uso de figuras de linguagem em poemas, narrativas e peças teatrais, embora nenhuma figura seja exclusiva das composições literárias. (V) (F) VIII. Para que uma narrativa seja verossímil é preciso apresentar fatos verdadeiros, que aconteceram no mundo real. (V) (F) IX. Em peças teatrais, os cenários têm a função de representar os locais onde se desenvolve a trama. (V) (F) X. Um poema é uma composição verbal que ordena palavras em versos, de modo a criar uma medida métrica que produz ritmo. (V) (F) ________________________________________________________________________________________
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Atividade autocorrigível 5b ________________________________________________________________________________________ Em relação às afirmações avaliadas como verdadeira ou falsas, assinale a alternativa correta:
a)17 Todas as afirmações são verdadeiras.
b)18 Todas as afirmações são falsas.
c)19 I, II, III, IV, V, VI são verdadeiras.
d)20 IV, V, VI são falsas.
e)21 As afirmações III, VI e VIII são falsas.
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17Todas as afirmações são verdadeiras. As afirmações III, VI e VIII são falsas. 18Todas as afirmações são falsas. Somente as afirmações III, VI e VIII são falsas. 19I, II, III, IV, V, VI são verdadeiras. As afirmações III, VI e VIII são falsas. 20IV, V, VI são falsas. Somente as afirmações III, VI e VIII são falsas. 21As afirmações III, VI e VIII são falsas. As afirmações III, VI e VIII são falsas.
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Ampliando o conhecimento ________________________________________________________________________________________ Para realizar a Atividade, você leu alguns capítulos de duas obras. Para saber mais sobre os elementos essenciais da narrativa e da poesia você pode ler o livro todo: Leitura, Literatura e Ensino. Orna Messer Levin e Márcia Abreu. Campinas: Cefiel, 2009. O foco do livro é apresentar os impactos que esses elementos têm sobre a interpretação e discutir a leitura literária na escola. Ele está disponível no item "Leituras", no TelEduc. Para aprofundar seus conhecimentos sobre teatro, você pode ler o texto integral do fascículo Primeiro ato: uma introdução ao teatro em cinco cenas, elaborado por um grupo de alunos de Licenciatura em Letras da Unicamp e disponível no site Alfa-‐Letras, do Centro de Formação Continuada de Professores (CEFIEL). Ele expõe os elementos essenciais da dramaturgia, conta um pouco da história do teatro, apresenta alguns de seus gêneros e relata algumas das polêmicas originadas por encenações teatrais. Além disso, traz uma série de propostas de atividades, que você pode realizar com seus alunos. Para consultas pontuais sobre elementos literários, você pode acessar o E-‐Dicionário de Termos Literários, organizado pelo Professor Carlos Ceia. ________________________________________________________________________________________
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Tópicos: • » Tópico 3 – A convenção e o cânone
Mãos à obra ________________________________________________________________________________________ O ensino de literatura, muitas vezes, é associado à tarefa de difundir o gosto pela literatura erudita. É verdade que ninguém gosta daquilo que não conhece ou não compreende. É verd ade também que a escola deve ser o lugar de ampliar as referências dos alunos, permitindo que eles conheçam um amplo conjunto de produções literárias bem como tomem contato com o legado artístico. Mas será preciso fazer com que os alunos gostem disso? ________________________________________________________________________________________
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Ponto de partida ________________________________________________________________________________________ Você já observou que A Força do Amor e o Poema em Linha Reta; Grande Sertão: Veredas e O Segredo de uma Promessa; Hamlet e O Auto da Compadecida compartilham procedimentos linguísticos também empregados em muitos outros poemas, narrativas e peças teatrais. Mas a principal semelhança entre eles não é essa! Eles fazem parte do cânone de diferentes comunidades interpretativas, ou seja, são considerados realizações de excelência pelas c omunidades culturais nas quais foram produzidos e em que circulam preferencialmente. Leandro Gomes de Barros, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, Danielle Steel, Shakespeare e Ariano Suassuana são autores valorizados nos grupos a que pertencem e são considerados escritores cujas obras vale a pena conhecer. Por que não teriam, então, lugar na sua sala de aula? ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 1 ________________________________________________________________________________________ Como você já sabe, as produções literárias são muito variadas e são produzidas segundo convenções distintas. Portanto, não devem ser julgadas por um único critério. Uma comparação com o que acontece fora do mundo dos textos pode tornar tudo mais claro. Um crítico musical que avaliasse mal um samba devido à ausência de guitarra ou um rock pela falta de pandeiro estaria fazendo uma grande tolice. É óbvio que não se pode avaliar uma obra com elementos próprios a outro tipo de composição -‐ guitarras não fazem parte dos instrumentos utilizados em sambas, nem pandeiros em grupos de rock. Da mesma forma, esse crítico seria motivo de piada se reclamasse de um rap pela forma declamada de cantar! Nesse caso, ele mostraria que desconhece os critérios de composição próprios a esse gênero musical, o que também seria uma grande tolice. ________________________________________________________________________________________
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Colocando os conhecimentos em jogo 2 ________________________________________________________________________________________ Parece uma idéia bizarra fazer cruzamentos assim, utilizando critérios exteriores às produções que se avalia, mas é o que acontece quando são empregados valores da cultura erudita para julgar obras de outra natureza, como os best-‐sellers ou a poesia popular. Por exemplo, um folheto de cordel como A Força do Amor, julgado segundo os padrões de avaliação da crítica literária moderna e erudita, pode ser considerado simples e pouco elaborado. O mesmo folheto, avaliado pela comunidade nordestina e por seus poetas, é considerado de excelência incontestável. Já um poema moderno, como Poema em linha reta, se for julgado com os critérios compartilhados pelos apreciadores da literatura de folhetos parecerá inteiramente defeituoso. Por isso, é preciso conhecer a convenção na qual as obras foram produzidas e os critérios pelos quais são julgadas. Os fãs de samba, de rock e de rap, assim como os poetas populares e seu público, conhecem os elementos que os compõem e compartilham um conjunto de critérios com os quais julgam as composições. Em geral, eles percebem que uns sabem fazer bem os versos enquanto outros não são bem sucedidos, uns tocam no ritmo e outros não. ________________________________________________________________________________________
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Finalizando... ________________________________________________________________________________________ O trabalho realizado por você e por seus colegas produziu um excelente material para uso em sala de aula. Com ele, você poderá ensinar aos seus alunos como são concebidas obras de natureza muito diversa e sugerir a leitura de uma obra considerada uma excelente realização. Você poderá reproduzir essa atividade com seus alunos, ampliando ainda mais o conjunto de produções que você conhece e entrando em contato com obras consideradas de alto valor estético por eles. Aproveite para aprender com seus alunos! Além de contar com seu conhecimento pessoal e com o de seus alunos, será preciso realizar um bocado de pesquisa para conhecer a convenção que rege a elaboração de obras de diferentes grupos culturais e por que critérios elas são julgadas. A internet facilitará muito essa pesquisa, pois ela disponibiliza material de origem variada e agrupa pessoas com interesses culturais semelhantes em comunidades virtuais. Livre de preconceitos e com sua curiosidade intelectual aguçada, você certamente preparará excelentes aulas e um ótimo TCC! Veja as sugestões que temos para você abordar a literatura em seu TCC, clicando aqui. ________________________________________________________________________________________
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Ampliando o conhecimento 1 ________________________________________________________________________________________ Para finalizar, algumas sugestões sobre maneiras de construir conhecimento sobre produções não eruditas. Por exemplo, caso você deseje discutir com seus alunos a Literatura de Cordel nordestina, você poderá aprender muito assistindo a alguns documentários como "Nordeste: cordel, repente e canção" (Tânia Quaresma, 1975). Vale a pena conferir também "Saudades do Futuro" (César Paes, 2000). Os alunos do curso de Cinema da Universidade Estácio de Sá também produziram um interessante documentário sobre a Academia Brasileira de Literatura de Cordel. O site da Academia Brasileira de Literatura de Cordel também traz informações valiosas, principalmente sobre os preceitos seguidos por quem escreve folhetos de cordel. Você também poderá consultar um conjunto de obras produzidas por teóricos da literatura, por antropólogos e por sociólogos a esse respeito. Vai dar trabalho, mas sua aula vai ficar espetacular! ________________________________________________________________________________________
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Referências Bibliográficas ________________________________________________________________________________________ ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Ed. Unesp, 2006. (Sinopse22). COMPAGNON, Antoine. "Literatura". In: O demônio da teoria -‐ literatura e senso comum. BH: Editora da UFMG, 2003. (Sinopse23). CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Becca, 1999. (Sinopse24). EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2001.(Sinopse25). LAJOLO, Marisa. Literatura: leitores & leitura. São Paulo: Editora Moderna, 2001. (Sinopse26). ________________________________________________________________________________________
22 Com linguagem fluente e acessível, sem prescindir porém do rigor acadêmico, a autora apresenta uma análise sobre a literatura e seu ensino, procurando responder a questões como: há livros bons em si? todos devem apreciar o mesmo tipo de texto? há uma qualidade estética objetiva nas obras? há uma maneira correta de ler literatura? como definir literatura?
23 "Neste livro, sete noções ou conceitos literários são examinados: a literatura; o autor como autoridade dando sua opinião (sentido) ao texto; o mundo como sujeito e matéria da obra; a leitura compreendida como conversação entre o autor e o leitor; o estilo como escolha de ma maneira de escrever; a história literária como majestosa procissão de grandes escritores; o valor côo propriedade objetiva do cânone literário.".
24 O autor apresenta um panorama dos principais temas e questões tratados pela teoria literária ao longo do século XX e fornece indicações que permitem ao leitor continuar acompanhando a discussão em outras obras e textos. O livro contém um precioso Apêndice, em que se apresenta um pequeno resumo das principais escolas críticas do século passado. Não bastasse sua precisão e utilidade, o livro tem a virtude de ser claro e divertido.
25 Logo no prefácio à segunda edição inglesa do livro, Terry Eagleton deixa claro seu objetivo: "este livro é uma tentativa de tornar a teoria literária moderna inteligível e atraente ao maior número possível de leitores." Ele faz interessantes questionamentos sobre os limites das definições de literatura, mostrando em que medida estas definições podem variar conforme o momento histórico, cultural e ideológico. Caso você deseje prosseguir suas leituras na área, poderá se valer da boa bibliografia apresentada ao final do livro, ordenada por correntes teóricas e, internamente a cada corrente, por ordem de dificuldade. Terry Eagleton é bem humorado eescreve de forma bastante compreensível.
26 Marisa Lajolo percorre a história, sobretudo a brasileira, mostrando como os sentidos atribuídos ao literário variaram e trazendo para o primeiro plano não apenas os autores e obras canônicos, mas também os não-‐canonizados. No capítulo "Leituras de torna-‐viagem", há um roteiro comentado de indicações de leitura para quem quer pensar sobre "o que é, como se faz e para que serve literatura".