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REDES DE SOLIDARIEDADE: UMA ANALISE DA CONGADA NO MUNICÍPIO DE CARANDAÍ MG 1 Elisangela aparecida Damasceno Almeida PEB Juiz de Fora - MG [email protected] -Leonardo de Oliveira Carneiro Professor Adjunto UFJF [email protected] INTRODUÇÃO O presente trabalho traz para discussão a Congada e as redes de solidariedade que a circundam, como também as relações que essas estabelecem com o poder público. Para tanto, levou-se em consideração, principalmente, as relações humanas que se estabelecem (ou não) dentro e fora das comunidades congadeiras. A experiência da autora, enquanto observadora participante do processo, uma vez que sua relação com a Congada extrapola os muros da academia, e o enriquecimento teórico- metodológico do curso de Especialização em Religiões e Religiosidades Afro-brasileiras, oferecido pelo NEAB-UFJF (Núcleo de Estudo Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Juiz de fora), entre os anos de 2013 e 2014, se tornaram combustíveis necessários para o desenvolvimento da pesquisa. Estudos como os de Gomes e Pereira (2000), Gabarra (2009) e Silva (2010) tornaram-se referência para o diálogo, pensando, analisando e argumentando as questões da Congada e as relações que a envolvem, sejam elas religiosas, culturais, sociais e/ou econômicas. 1 O presente artigo foi elaborado como trabalho de conclusão de curso Latu Senso, em Religiões e Religiosidades Afro-Brasileiras, oferecido pelo NEAB (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro) da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora MG)

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REDES DE SOLIDARIEDADE:

UMA ANALISE DA CONGADA NO MUNICÍPIO DE CARANDAÍ MG1

Elisangela aparecida Damasceno Almeida

PEB Juiz de Fora - MG

[email protected]

-Leonardo de Oliveira Carneiro

Professor Adjunto UFJF

[email protected]

INTRODUÇÃO

O presente trabalho traz para discussão a Congada e as redes de solidariedade que a

circundam, como também as relações que essas estabelecem com o poder público. Para tanto,

levou-se em consideração, principalmente, as relações humanas que se estabelecem (ou não)

dentro e fora das comunidades congadeiras.

A experiência da autora, enquanto observadora participante do processo, uma vez que

sua relação com a Congada extrapola os muros da academia, e o enriquecimento teórico-

metodológico do curso de Especialização em Religiões e Religiosidades Afro-brasileiras,

oferecido pelo NEAB-UFJF (Núcleo de Estudo Afro-Brasileiros da Universidade Federal de

Juiz de fora), entre os anos de 2013 e 2014, se tornaram combustíveis necessários para o

desenvolvimento da pesquisa. Estudos como os de Gomes e Pereira (2000), Gabarra (2009) e

Silva (2010) tornaram-se referência para o diálogo, pensando, analisando e argumentando as

questões da Congada e as relações que a envolvem, sejam elas religiosas, culturais, sociais

e/ou econômicas.

1 O presente artigo foi elaborado como trabalho de conclusão de curso Latu Senso, em Religiões e

Religiosidades Afro-Brasileiras, oferecido pelo NEAB (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro) da UFJF

(Universidade Federal de Juiz de Fora MG)

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Neste sentido, pensando a Congada enquanto manifestação popular que historicamente

agrega uma camada da sociedade afrodescendente e que muitas vezes é percebida à margem

do sistema que nos envolve, torna-se pertinente argumentar. Este texto é composto dois

momentos. No primeiro momento, a abordagem é feita no sentido histórico-geográfico, uma

tentativa, mínima, de localizar a Congada no tempo e no espaço, trazendo para o diálogo o

período colonial brasileiro, no qual muitos africanos foram trazidos e escravizados. Esses, por

sua vez, trouxeram consigo memórias e hábitos, que se (trans) formaram ao passar de uma

geração para outra. A descendência africana e, consequentemente, os adeptos da Congada, ou

simplesmente congadeiros, é marcante em Minas Gerais. E por isso, neste trabalho, elegemos

como objeto de estudo as Bandas de Congada Nossa Senhora da Guia e Santa Efigênia, do

município de Carandaí, localizado na mesorregião do Campo das Vertentes. De acordo com

relato dos próprios congadeiros, essa manifestação cultural/religiosa é centenária no

município. No fim do primeiro momento apresentaremos a festa, ou seja, os ritos e rituais que

acontecem em devoção a Nossa Senhora do Rosário, a mãe de todos os congadeiros.

No segundo momento do texto, trataremos das relações humanas que se (des) envolvem

em torno da Congada, as redes de solidariedades, ou seja, como essas pessoas se organizam

(logística e financeiramente) para celebrar o Reinado e para fazer possíveis deslocamentos.

Nessas relações foi pertinente incluir indagações relacionadas ao poder público, uma vez que

o objeto de estudo em questão teve e tem momentos de proximidade e afastamento com ele.

1 - A CONGADA: ORIGENS DA MANIFESTAÇÃO.

Pensar a cultura popular, seja do Brasil ou de qualquer outra parte do mundo, tornou-se

uma forma de instrumentalizá-la, na tentativa de encontrar maneiras de trazer para o debate

questões que durante muitos anos se mantiveram à margem. Marginalidade que está presente

não somente na academia, mas também na sociedade de um modo geral, em que o

pensamento e a atitude predominantes entre a grande maioria das pessoas são os de uma

pequena parcela da sociedade. Nesse contexto de rebaixamento da cultura popular, o estudo

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sobre a Congada2 torna-se pertinente. No viés da cultura popular e também perpassando

pelas questões do sagrado, a Congada aparece no cenário brasileiro no período colonial, com

a vinda dos africanos que foram escravizados em nosso território. De acordo com Almeida, as

primeiras informações que se tem dessa manifestação no Brasil datam do século XVIII3.

É interessante salientar que os negros que chegaram ao Brasil vieram de diversas partes

do continente africano, porém os que deram origem à Congada vieram das áreas centrais do

continente, principalmente das regiões que hoje ocupam a República do Congo e Angola. De

origem banto 4, os africanos trazidos para o Brasil trouxeram consigo as suas histórias e as

suas memórias, ou seja, a sua língua, os seus costumes, os seus ritmos e muitos outros

aspectos socioculturais, hoje percebidos ou não. Mesmo sob o domínio europeu a cultura

africana se enraizou em nosso território, e com ela a Congada.

A Congada é uma manifestação popular em devoção a Nossa Senhora do Rosário5, e,

no Brasil, atravessou o tempo, surgido no período escravista e acontecendo até os dias de

hoje. De acordo com Rubens Alves da Silva, a Congada:

[...] é uma manifestação que acontece tradicionalmente entre os meses de

agosto a outubro (período que varia de um lugar para outro). Apontado como

o traço mais marcante da cultura afro-brasileira predominante em Minas

Gerais, bem como da forma de resistência histórica do negro neste território,

o Congado articula-se, em sua complexidade ritual e simbólica, com duas

2 De acordo com Gomes e Pereira, “Existe uma correspondência entre (conferir) os ternos congos, congada e

congado. A denominação congo é mais usada no Norte e nordeste, designando a totalidade do auto; pode

também significar uma guarda ou terno, como em minas e no Paraná. Quanto à variação entre congado e

congada, trata-se apenas do uso de dois gêneros para a mesma palavra, ora na forma masculina, ora na feminina”

(GOMES; PEREIRA, 2000 p. 246).

3 PEREIRA Edimilson de Almeida, Congado: Sistema Religioso, Identidades Experiências: Curso de

Especialização em Religiões E Religiosidades Afro-Brasileiras, 08 de mar. 2013 - 26 de jul. 2014. Notas de aula

30 de maio de 2014 (1762- Santo Amaro/BA: Francisco Calmom Relação das Faustissismas Festas)- em

comemoração ao casamento real, todo o reino festejava e o autor relata a manifestação da Congada em 3

momentos.

4 TURCI, Érica Bantos. “Quatrocentos grupos étnicos falam línguas bantas atualmente”. Disponível em:

http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/bantos-quatrocentos-grupos-etnicos-falam-linguas-bantas-

atualmente.htm Acesso em : 13/06/2014

5 “O culto de Nossa Senhora do Rosário fora criado por São Domingos de Gusmão, mas estava fora de moda,

sendo restabelecido justamente na época em que os dominicanos enviaram seus primeiros missionários para a

África, daí, sua introdução e sua generalização progressiva no grupo de negros ou de virgens negras foi, de início,

imposto de fora ao africano, como uma etapa de cristianização, e que foi considerado pelo senhor branco como um

meio de controle social, um instrumento de submissão para o escravo.” (BASTIDE, apud GOMES e PEREIRA,

2000 p. 236).

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dimensões, às vezes paradoxais, do catolicismo: o popular ( devocional) e o

oficial. (SILVA, 2010 p.15).

De acordo com a perspectiva de Silva, a Congada é considerada uma festa pelos

participantes (Silva 2010), que enfatizam a religiosidade presente no rito. O Reinado é

considerado pelos congadeiros um dos pontos marcantes do culto a Nossa Senhora do

Rosário, ou da festa, como a designam os devotos. O Reinado consiste na coroação do rei e da

rainha conga (Almeida, 2000, p 246) durante o período dos festejos.

As figuras do rei e da rainha na Congada aparecem em dois tempos. No primeiro, o rei e

a rainha que representam uma determinada banda6 são figuras, pode-se dizer, vitalícias, uma

vez que só deixam de ser reis e rainhas quando morrem, e normalmente são representadas

pelas pessoas mais antigas do terno. O segundo são os reis e rainhas, que os congadeiros

denominam reis e rainhas festeiros, que, por sua vez, são coroados anualmente. A escolha do

rei e da rainha festeiros pode se dar por indicação da comunidade a pessoas que contribuíram

de alguma forma para o acontecimento da festa (ou que tenham condições financeiras de

patrocinar a festa do ano seguinte), ou ainda por vontade própria de alguém, que por razões

pessoais e muitas vezes por promessa, a alguma graça recebida, se propõem a ser coroados e

promover a festa (GOMES; PEREIRA, 2000 p. 247).

Ao se fazer uma analise da Congada no território brasileiro, percebe-se que o rito ou

manifestação que descende dos africanos, hoje abarca uma gama da população de afro-

brasileiros que na sua maioria estão à margem da saciedade, (sobre) vivendo em comunidades

rurais pobres ou ocupando as periferias de centros urbanos e consequentemente em

subempregos. O legado deixado pelos africanos e seus descendentes vemos se transformar e

se adaptar às situações mais adversas para sair da invisibilidade ou até mesmo para não se

perder no tempo e no espaço.

2 - O ROSÁRIO DAS MINAS GERAIS.

6 Neste trabalho o termo escolhido para designar a Congada será “banda”, pelo fato de assim ser denominada

pelos participantes das bandas no município de Carandaí, nosso objeto de estudo.

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Das muitas manifestações de bandas de Congada em território mineiro, o recorte feito

para este trabalho trouxe para a cena a Banda de Congada Santa Efigênia e a Banda de

Congada Nossa Senhora da Guia, uma vez que os integrantes da segunda já pertenceram à

primeira, ambas alocadas no município de Carandaí-MG.

Carandaí está localizada na Mesorregião do Campo das Vertentes, na Microrregião de

Barbacena. O município, com 90 anos de emancipação, teve seu embrião urbano

desenvolvido ao longo da Estrada Real, em meados do século XVIII. Posteriormente, no fim

do século XIX, com a chegada da estrada de ferro, houve um novo levante de crescimento, e,

já em meados do século XX, a BR040 passa a ser a sua principal via de acesso para a cidade.

O processo histórico de ocupação da região tornou-se um fator positivo à interação entre as

pessoas, e nesse víeis, consequentemente a história da Congada no município se mistura à

história da própria cidade.

A Congada no município de Carandaí existe aproximadamente há cem anos e conta

hoje com três bandas. O relato dos próprios congadeiros diz que no perímetro urbano da

cidade primeiramente se formou a Banda de Congada Nossa Senhora do Rosário, que neste

trabalho não será abordada. Alguns anos depois se formou a Banda de Congada Santa

Efigênia, e, mais recentemente, em 2007, formou-se a Banda de Congada Nossa Senhora da

Guia. Cada uma com seus integrantes, suas histórias e suas tradições, como bem explanado

por Silva (2010, p. 68): “Cada terno distingue-se pelo estilo particular da sua indumentária,

coreografia e ritmo do batuque [...] que, ao mesmo tempo padroniza e diferencia um grupo do

outro”.

De acordo com relatos, antes de a primeira banda surgir no município, alguns

dançantes já se reuniam para os festejos da Congada em seus lugares de origem, nos arredores

da cidade, na zona rural e em municípios vizinhos. A formalidade da existência da Congada

no município aconteceu somente quando um congadeiro que exercia liderança entre um grupo

passou a residir no perímetro urbano do município, ou seja, os festejos e rituais da Congada

começaram a acontecer na cidade de Carandaí.

Sobre a origem da Banda Santa Efigênia, que de acordo com relatos data da década de

1910, sua formação inicial se dá na comunidade do Campinho, zona rural do município de

Caranaiba, que até 1953 pertencia ao município de Carandaí. O nome dado à banda nesse

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primeiro momento foi Banda Nossa Senhora do Rosário. Na década de 1940, o responsável

pela banda passou a ser um integrante que morava no município de Carandaí, assim como

alguns outros congadeiros dessa banda que já residiam no município. Por esse motivo a festa

a Nossa Senhora do Rosário passaria a acontecer na cidade de Carandaí. De acordo com o

senhor Vicente7 “para registrar a banda na cidade não podia ter duas bandas com o mesmo

nome”. Desse modo, definiu-se então que a banda passaria a se chamar Banda de Congada

Santa Efigênia. Com isso a Festa do Reinado da banda passou a acontecer no mês de

setembro, mês em que se comemora Santa Efigênia, e não no mês de outubro, quando se

comemora Nossa Senhora do Rosário. A respeito desta banda, nos foi informado que ela já

contou com até “sessenta integrantes em 1948”. No tempo da pesquisa a banda contava com

dezesseis componentes, podendo chegar a trinta e cinco no período das festas.

No ano de 2007, surge no cenário carandaiense a Banda de Congada Nossa Senhora da

Guia, fundada por José Márcio da Cruz e seu irmão Norberto, ambos pertencentes

anteriormente à Banda Santa Efigênia. José Márcio nos relatou que sua história com a

congada está entrelaçada à história de sua família, pois, por ser filho e neto de congadeiros,

José Márcio cresceu dançando entre os tambores. Na década de 1970 parou de dançar, pois

mudou-se. Foi embora da cidade para trabalhar e, de acordo com seu relato, até tentou dançar

em outras bandas da capital, Belo Horizonte, mas não se adaptou, embora a vontade de

dançar sempre esteve guardada no seu íntimo. Ele diz: “quando a gente é novo a gente se

encanta com outras coisas, as coisas da cidade” e completa “quem é congadeiro sempre vai

sê congadeiro”, deixando claro que mesmo que fique distante da dança por algum tempo

(período curto ou longo), o ser congadeiro transcende e prevalece no seu ser. A vontade de

voltar a dançar sempre existiu e em 2004, de volta a Carandaí, integra-se novamente à Banda

de Congada Santa Efigênia.

Por questões de pontos de vista divergentes entre os congadeiros, José Márcio,

juntamente com seu irmão, decidiu se desligar da Banda Santa Efigênia e criar a nova banda,

a Banda de Congada Nossa Senhora da Guia, que conta com 12 componentes.

7 O senhor Vicente Gerônimo, 88anos, e sua esposa Eva Elias, 64 anos, foram entrevistados e nos relataram as

informações a respeito da Banda Santa Efigênia em janeiro de 2013.

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O que se pode perceber no processo de construção e manutenção das duas bandas, que

têm um tronco comum de surgimento, é a dificuldade de manter os mais jovens por perto e os

custos financeiros para a manutenção de instrumentos, uniformes e deslocamentos, assunto

que trataremos no capitulo 5 deste trabalho.

A variação dos nomes das bandas é posta como uma forma para distinguir umas das

outras, sendo que, embora na Congada a devoção a Nossa Senhora do Rosário prevaleça (todo

congadeiro é filho do Rosário) outros santos também aparecem como santos de devoção,

como Santa Efigênia e São Benedito.

3 - A FESTA.

As festas em devoção a Nossa senhora do Rosário normalmente acontecem entre os

meses de agosto a outubro (Silva, 2010), e consistem em um processo/ritual que pode durar de

três dias a uma semana (Gomes e Pereira 2000). No caso das bandas aqui estudadas, hoje o

rito tem duração de uma noite e um dia, começando no sábado à noite com o levantamento do

mastro no adro da Igreja Matriz, e terminando com a sua retirada no final da tarde de

domingo, após o término da missa em que são coroados o rei e a rainha festeiros do próximo

ano.

No perímetro urbano do município há varias igrejas católicas, porém, para os dias de

festa, a Igreja Matriz da cidade, que tem como padroeira Santana é a escolhida para os ritos.

Nesse caso, o que se pode observar é a apropriação do espaço pelos que normalmente estão à

margem. A igreja se torna um símbolo, algo concreto e palpável, cuja importância se equipara

à importância da festa para os devotos, tornando-se matriz de uma manifestação afro-católica.

Nos períodos em que acontecem a Festa do Reinado, a dança, além de ocupar as ruas da

periferia, passa a ocupar também as ruas do centro da cidade. Quando perguntados a respeito

do sentimento, da sensação de estar fardado e seguindo o cortejo da procissão pelas principais

ruas da cidade, os nossos interlocutores foram unanimes em suas respostas, de que a sensação

transcende as palavras.

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“É como se a cidade tivesse se reverenciando a nós, a gente fica flutuando” (Rayane,

15 anos) 8

“É um negocio que não da pra explicar, só sentir [...] é maravilhoso! [...] vejo a cidade

se curvar a Congada” (José Márcio, 63 anos) 9

“Nem da pra explicar, é bão de mais” (Vicente Gama, Tininho, 59 anos) 10.

Percebemos que, ao ocupar as ruas centrais da cidade, os cangadeiros se sentem “mais”

pertencentes à cidade enquanto cidadãos que, além de cumprir funções sociais e econômicas,

usufruem deste espaço culturalmente. Ao trazerem para a rua a sua dança com seus rituais, os

congadeiros mantêm acesa a chama da memória, fortalecendo seus laços com os demais e a

sua ancestralidade. Concordando com Michel Pollak, que argumenta “[...] a memória coletiva

de um determinado grupo, [...] que ao definir o que é comum a um grupo e o que o diferencia

dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras

socioculturais” (POLLAK, 1989, p.3). Nesse ínterim, laços se formam e se transformam.

Os ritos precisam ser encurtados em vários casos, e que essa é uma adaptação

justificada pela disponibilidade dos participantes, que muitas vezes fazem deslocamentos

consideráveis para estarem presentes na festa, mas que precisam voltar para retomar as

atividades cotidianas das quais estão incumbidos e de onde tiram seu sustento. Essa é uma das

varias adaptações das quais não só a Congada, mas a maioria das manifestações populares tem

que fazer para continuar existindo.

4 - MÃOS QUE BATUCAM TAMBÉM SE ESTENDEM.

8 CRUZ Rayane Patrícia da silva, 15 anos, entrevista em jan. 2013. Entrevista concedida a autora deste trabalho.

9 CRUZ José Marcio, 63 anos entrevistado em janeiro de 2013. Entrevista concedida a autora deste trabalho.

10 SILVA Vicente Gama da, 59 anos, entrevistado em janeiro de 2013. Entrevista concedida a autora deste

trabalho.

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Como já dito anteriormente, muitas bandas celebram o seu Reinado, não no dia de Nossa

Senhora do Rosário, mas no dia do santo ao qual a banda carrega o nome. Por esse motivo

observam-se festas em tempos alternados ao longo doa ano.

A festividade, embora muito alegre, com muita fartura e batuques, é carregada de

simbolismos, pois a fé dos congadeiros permeia todas as suas ações durante o rito. O

levantamento do mastro indica que o reino está aberto (Silva 2010) e que, durante todo o

período em que estiver erguido, homenagens e reverências ao santo de devoção serão feitas.

Nas festas das bandas que estudamos normalmente a maioria das pessoas, individualmente, ou

mesmo as bandas visitantes, chegam logo pela manhã de domingo, o dia mais importante.

Rezam e cantam juntas até a hora do almoço. É interessante ressaltar que, em muitos lugares,

hoje, já não há mais os terreiros, e as rezas, os cantos e até mesmo o almoço se dão na rua, na

frente da casa do rei e/ou da rainha festeiro.

Após esse período de chegada e confraternização, a Congada, que celebra o

encerramento de um Reinado, segue em cortejo com seu rei e sua rainha pelas ruas da cidade,

com as bandas convidadas e demais devotos tocando em louvor a Nossa Senhora rumo à

Igreja, para que sejam coroados um novo rei e uma nova rainha que reinará até a próxima

festa.

Pensando que os congadeiros em sua maioria são pessoas com poder aquisitivo mais

baixo, torna-se pertinente fazer uma pequena análise de como essas pessoas organizam-se

para promover a festa da santa de sua devoção. O que implica pensarmos como essas pessoas

fazem para se deslocar, para “pagar” as visitas de outras bandas, ou seja, o procedimento

(logístico e financeiro) que utilizam para participar de festividades em outros municípios.

5 - OS CONGADEIROS E AS REDES DE SOLIDARIEDADE.

Ao perguntar a um congadeiro sobre uma festa que ele tenha participado, certamente ele

irá responder que “teve boa”, que “os dançantes fizeram bonito”, e é pouco provável que ele

dirá espontaneamente que tenha contribuído material ou financeiramente para a realização da

mesma. É uma característica interessante para se pensar, e suscita algumas questões, como:

Por que a contribuição material e financeira não entra no relato dessas pessoas? Por que

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mesmo passando por dificuldades financeiras essas pessoas se propõem a promover a festa?

Por que a importância de prestigiar o outro? Esses e muitos outros questionamentos

perpassam pelo pensamento de quem pesquisa as festas do Rosário. Acreditamos que, mesmo

as pessoas que estão por perto das festas, mas não participam desse universo, se fazem estes

questionamentos.

Nesse viés, o objetivo é tentar pensar como essas pessoas e bandas se articulam, e traçar

um panorama de suas atuações nas festas no município de Carandaí. Em outras palavras,

pensar como se forma, se manifesta e se fortalece o que designamos aqui de redes de

solidariedade entre as pessoas do grupo e também entre as próprias bandas. É importante

ressaltar que tratamos de dois pontos distintos: o primeiro é a organização da festa em si, ou

seja, como um anfitrião se organiza para receber uma ou mais bandas, na arrecadação e

compra de suprimentos para a ocorrência da festa. O segundo ponto, é o da articulação entre

os congadeiros para o deslocamento a eventos aos quais são convidados, de como a banda se

organiza para pagar o transporte.

Considerando a observação participante, como instrumento de coleta de dados, embora

muita dessa observação sejam anteriores à academia, fugindo ao que Da Mata aponta ser o

trabalho etnográfico11, e agrupando a essas observações entrevistas semiestruturadas com

lideranças da Congada e representantes do poder público local, tentamos entender o

funcionamento dessas redes de solidariedade.

Em se tratando da festa de Reinado, na qual o responsável pela organização e execução

do evento é o rei e/ou a rainha que será (ão) coroado(s) e reinará (ão) até o próximo ano, o que

se pode constatar é que não há exatidão quanto a origem do recurso financeiro utilizado para a

festa. De acordo com os relatos, constata-se que esses recursos podem vir tanto da renda

pessoal do rei ou da rainha, como também podem vir de doações em forma de esmolas que

alguns reis e rainhas se propõem a pedir como forma de pagar uma promessa alcançada ou

mesmo para alcançar graças futuras durante o ano de reinado. Isso fica claro no relato do

11 Para Da Mata o trabalho etnográfico tem três momentos. O primeiro: a teoria; o segundo: a preparação para o

campo; e o terceiro: o encontro com o objeto a ser pesquisado. Nesse sentido, algumas observações desta pesquisa

“fogem” do conceito proposto por Da Mata, por serem anterior ao processo teórico. DAMATTA, Roberto. "O

ofício de etnógrafo, ou como ter “anthropological blues”." In: Nunes EO, organizador. A aventura sociológica. Rio

de Janeiro (RJ): Zahar,1978, p. 30-45.

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senhor Norberto, capitão da Banda Nossa Senhora da Guia, que, quando indagado se o

responsável pela festa recebe doações de dinheiro ou alimentos, diz:

“Isto tem duas maneira quando é uma promessa, você vai a igreja e tira a lista, pede o

padre uma lista de doação de esmola com o carimbo da igreja, para as pessoas ver que não é

calote . E sai pedindo de casa e casa ... parte da renda pode ser doada para a igreja também

além de ajudar nas despesas da festa. Quando é festa sem promessa faz do próprio bolso com

a lista” 12.

Os depoimentos dos demais entrevistados também não fogem a esta ideia, sendo

complementado e reforçado que os próprios congadeiros e até mesmo vizinhos ajudam para

que os festejos possam acontecer.

A solidariedade é algo bastante concreto tanto entre a comunidade congadeira quanto

entre vizinhos. A relação de proximidade entre vizinhos em cidades menores é recorrente, e,

por se tratando de bairros periféricos, muitos com laços de parentesco entre si, e com as

dificuldades financeiras circundantes entre a maioria, a proximidade se intensifica e uma rede

de solidariedade se estabelece.

Quando questionados por que, mesmo com grandes dificuldades financeiras, essas

pessoas se propõem a fazer a festa, as respostas são diretas, porém sempre com ênfase na

“missão” de terem recebido um legado e a necessidade de passá-lo a outras gerações. A ideia

de que a dança “vem no sangue” e que o congadeiro não consegue viver sem ela também

perpassa pelos diálogos a todo o momento, segundo eles dando força para continuar.

De modo geral o que se percebe na comunidade congadeira no município é uma

dificuldade muito grande em se deslocar, ou seja, participar de eventos fora do perímetro

urbano e que exijam gastos financeiros com veículos de transporte. Muitos congadeiros não

têm condições nem de arcar com a sua indumentária necessária, e menos ainda condições de

arcar com visitas ou festas em outro município através de recursos próprios. Levando em

consideração ainda que às vezes podem ter famílias inteiras participantes da banda, esses

deslocamentos ficam onerosos para o chefe da família. De acordo com relatos, já houve casos

em que o capitão da Banda Nossa Senhora da Guia arcou com a metade do valor do ônibus e a

outra metade foi dividida entre os demais membros da banda e os simpatizantes que os

12 Senhor Norberto Cruz, capitão da Banda de Congada Nossa Senhora da Guia, em entrevista em 20/06/2014.

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acompanhavam. É comum familiares e simpatizantes da Congada acompanhar a banda para

eventos, pois para muitos as apresentações são momentos únicos de lazer.

A carência financeira das bandas e dos seus membros é um fator que dificulta o deslocar-

se, porém não os impede de participar dos eventos, pois percebemos no discurso de alguns

entrevistados a importância de estar com os “irmãos” e se fortalecer. Nesse caso, foi-nos

relatado que às vezes é necessário escolher qual festa participar, e dois pontos foram

levantados: o primeiro é ir a uma festa para retribuir visita, prestigiar quem te prestigiou é

questão de honra e de afinidade; o segundo foi que, quando é importante para a banda que

convida, eles pagam o transporte. Nas indagações dos entrevistados, a cidade de Conselheiro

Lafaiete, vizinha do município de Carandaí, é vista como modelo, pois as bandas se

organizaram em associações e isso facilita o deslocamento dos seus membros.

Outro apontamento sobre o deslocamento das bandas para eventos fora da cidade traz

para o debate questões pouco tratadas e consequentemente pouco entendidas pela população e

até mesmo pelos próprios gestores do sistema público: a relação entre Congada e o poder

público, que trataremos no tópico a seguir.

6 - A GESTÃO PÚBLICA E A CONGADA

Não pretendemos aqui nos aprofundar, porém tornou-se pertinente alguns apontamentos a

esse respeito, uma vez que nas entrevistas ficou clara a existência de uma relação, ora de

proximidade ora de afastamento, da Congada com o poder público local. Foi-nos relatado que,

em anos anteriores, havia por parte da prefeitura uma quilometragem pré-estabelecida por ano

para cada banda da cidade. De acordo com a ex- presidente do Concelho Municipal de

Patrimônio Cultural, a quilometragem era de 600 km, aprovada pelo concelho, e, ao longo do

ano, era disponibilizado transporte para os deslocamentos dos congadeiros de acordo com a

demanda. Porém, conforme relatado pela ex-presidente, no ano de 2014, em que realizávamos

a pesquisa que originou este trabalho, não havia transporte disponível para as comunidades

Congadeiras se deslocarem. A razão dessa ausência de transporte é o fato de não ter sido

aberta licitação para a contratação do serviço. Se os integrantes da banda não conseguem

pagar com seus recursos e a prefeitura não fornece o transporte, a banda muitas vezes não

viaja.

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O argumento do atual responsável pelo setor de patrimônio do município é que, de acordo

com o IEPHA (Instituto Estadual de patrimônio Histórico e Artístico), o fundo de patrimônio

que é repassado para o município só pode ser utilizado em bens tombados e registrados. Com

isso, bens inventariados, como é o caso das bandas de Congada, que poderiam usufruir deste

beneficio, não são comtempladas com o fundo de patrimônio do município recebido do

estado de MG. Esse entrave prejudica a comunidade congadeira nos deslocamentos

necessários, mas principalmente enquanto patrimônio imaterial municipal inventariado, este

obstáculo dificulta a manutenção cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Longe de esgotar o tema, o que se pôde constatar ao longo deste trabalho é que,

mesmo com as muitas dificuldades existentes, e percalços cotidianos aos quais os atores

envolvidos são acometidos, as redes de solidariedade entre os congadeiros e entre as bandas

existem, são permanentes e se expandem, no tempo e no espaço. E que essas redes

transcendem o material, pois para a maioria dos congadeiros a Congada é uma religião e não

simplesmente uma manifestação cultural. Eles se sentem ligados à Congada por algo maior, e

muitos falam de elo com a ancestralidade, elo de espírito.

Nesse sentido, concordando com Gabarra (2009, p.32), pode-se considerar que as tradições

se formam e transformam ao longo do tempo.

[A] construção e a manutenção da tradição independem relativamente do

território concreto de assentamento, pois os grupos criam a partir de suas

memorias, mesmo que descontinuas, um lugar de pertencimento que definirá

sua identidade, sua memória e seu projeto ainda que no meio de tensões e

conflitos próprios dessa articulação.

Portanto, enquanto existirem pessoas comprometidas e preocupadas em não permitirem

que suas memórias caiam no esquecimento, a manutenção das tradições estará garantida pela

luta e pela persistência. No caso deste trabalho, tratamos dos congadeiros que buscam

perpetuar no tempo me no espaço o seu rito, a sua religiosidade, a sua dança e a sua história.

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REFERÊNCIAS

GOMES, Núbia Pereira de Magalhães; & Edimilson de Almeida Pereira. Negras raízes

mineiras: os Arturos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2000.

DAMATTA, Roberto. "O ofício de etnógrafo, ou como ter “anthropological blues”. In:

NUNES, E. O. (org.). A aventura sociológica. Rio de Janeiro (RJ): Zahar (1978): 30-45.

GABARRA, Larissa Oliveira e. O reinado do Gongo no império do Brasil : o congado de

Minas Gerais no século XIX e as memórias da África Central. Orientadora: Margarida de

Souza Neves. – 2009. 296 f. : il. (color.) ; 30 cm. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

POLLAK, Michael, “Memoria, Esquecimento, Silêncio”. Estudos Historicos. Rio de Janeiro,

vol.2 nº 3, 1989, p. 3-15.

SILVA, Rubens A. da. “Negros católicos ou catolicismo negro? Um estudo sobre a

construção da identidade negra no congado mineiro”. Belo Horizonte: Nandyala, 2010.

(coleção Repensando África, Volume 6).

TURCI, Érica Bantos. “Quatrocentos grupos étnicos falam línguas bantas atualmente”.

Disponível em: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/historia/bantos-quatrocentos-grupos-

etnicos-falam-linguas-bantas-atualmente.htm Acesso em : 13/06/2014