reflexÕes acerca da subjetivaÇÃo do antigo egito … · resumo a tese de doutoramento estuda...
TRANSCRIPT
Raquel dos Santos Funari
REFLEXÕES ACERCA DA SUBJETIVAÇÃO DO ANTIGO EGITO NA SALA DE AULA A PARTIR DO FILME “O PRÍNCIPE
DO EGITO”.
Novembro - 2008
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Funari, Raquel dos Santos F962r Reflexões acerca da subjetivação do Antigo Egito na sala
de aula a partir do filme “O Príncipe do Egito” / Raquel dos Santos Funari. - - Campinas, SP : [s. n.], 2008.
Orientador: André Leonardo Chevitarese. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
1. Egiptologia. 2. Cultura – História. 3. Subjetividade. 4. Cinema. 5. Egito – Antiguidades. I. Chevitarese, André Leonardo. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.
RESUMO
A tese de doutoramento estuda como estudantes brasileiros percebem o
antigo Egito, por meio de uma análise do filme O Príncipe do Egito. O estudo se inicia
com a discussão da História Cultural e dos estudos cinematográficos, tal como são
tratados na literatura internacional e brasileira. Em seguida, O Príncipe do Egito é
estudado em detalhe, incluindo a análise das imagens e das mensagens, e as
percepções dos alunos são analisadas em diferentes contextos. A Tese conclui-se por
ressaltar as principais características das representações culturais percebidas pelos
alunos.
v
ABSTRACT
The PhD Dissertation studies how Brazilian pupils perceive ancient Egypt, through an
analysis of the movie The Prince of Egypt. The study starts by discussing cultural history
and cinema studies, as recently explored by both international and Brazilian scholarship.
The Prince of Egypt is then studied in details, including the analysis of images and
messages. This is followed by the detailed study of students’ perceptions in different
contexts. The Dissertation concludes by pointing out the main features of cultural
representation as perceived by pupils.
vii
ÍNDICE Resumo v
Abstract vii
Agradecimentos 1
Introdução 7
Capítulo 1 - História Cultural e Cinema 13
Capítulo 2 - O Príncipe do Egito 29
Capítulo 3 - O Príncipe do Egito na sala de aula 123
Conclusão 201
Bibliografia 207
ix
Aos meus filhos, Daniel, Paula e Luísa.
xi
AGRADECIMENTOS
1
Os agradecimentos são muitos, a começar pelo meu orientador, Prof. Dr.
André Leonardo Chevitarese. O Prof. Chevitarese foi fundamental para minha formação
acadêmica. Durante muitos anos, atuei em sala de aula e em outras atividades de
consultoria histórica, na produção de material didático e na publicação de livros
destinados ao ensino. Meus anseios e aspirações acadêmicas foram despertados pelo
Prof. Chevitarese, como estudioso que integrava, em sua atuação, esses dois aspectos
da prática acadêmica. O Prof. Chevitarese destacava-se, no meio acadêmico, como
estudioso de temas especializados e de alta erudição, com seus estudos sobre a
literatura grega, sobre a História da Grécia antiga e sobre a iconografia de vasos
áticos1. O que me levou à pesquisa, contudo, foi a atuação do Prof. Chevitarese no
campo da difusão do conhecimento, com sua atuação no campo do Teatro, do Cinema,
das publicações de divulgação em bancas de jornal, sua constante presença na mídia,
na divulgação para o grande público. Este foi o link que faltava, para que sentisse
firmeza em que minhas preocupações e minhas atividades, voltadas para o ensino e
para a difusão, podiam inserir-se na academia também. Por isso, não posso deixar de
reconhecer que esta pesquisa resulta da inspiração e do exemplo do Prof. Chevitarese.
Nesta trajetória acadêmica, também foram importantes os professores que
pude conhecer e com os quais pude aprender na Unicamp. Na Linha de Pesquisa, a
Profa. Margareth Rago, com sua inquietação e pensamento crítico, foi fundamental para
que tomasse conhecimento de temas das relações de gênero2 e que me levaram a
tratar dessas questões na tese. Na área de História Cultural, aprendi com o Prof.
1 Cf. http://lattes.cnpq.br/8607821911525405. 2 Cf. http://lattes.cnpq.br/3274637598730008.
2
Leandro Karnal a importância da erudição e do conhecimento da cultura3. Em tantos
trabalhos sob sua coordenação, aprendi a apreciar a importância de uma visão
universal impressionante, que nos inspira e guia. Sua participação do Exame de
Qualificação foi, além disso, fundamental por suas indicações, sugestões e dicas. O
Prof. Paulo Miceli, também da mesma área de História Cultural, coordenou projetos dos
quais pude participar e com os quais aprendi muito4. A atuação, sob sua liderança, na
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, ajudou-me de forma decisiva a
entender a inserção desta pesquisa no contexto educacional mais amplo. O Prof.
Glaydson José da Silva 5, hoje na Universidade Federal de São Paulo, foi mestre na
Linha de Pesquisa e como pós-doutorando, com o qual tenho tido a oportunidade de
participar de projeto coordenador pelo Prof. Miceli, sempre aprendendo com suas
reflexões sobre os usos do passado. Ainda na Unicamp, muito aprendi com o Prof.
Gilson Rambelli6, em especial no que se refere ao patrimônio. A vinda, como
pesquisadora visitante, com apoio da FAPESP, da Profa. Lourdes Dominguez, da
Oficina Del Historiador, de Havana, Cuba, foi fundamental para que intensificasse
minha preocupação com o patrimônio arqueológico e aprendesse, nesse processo, com
a pesquisa coordenada pela Profa. Dominguez, e pudesse, até mesmo, publicar em
parceira com a grande mestra cubana. No campo patrimonial, também devo mencionar
a interação com a Profa. Érika Robrahn-González7, na produção de material sobre a
temática.
3 Cf. http://lattes.cnpq.br/7752713464627656. 4 Cf. http://lattes.cnpq.br/2588130647211211. 5 Cf. http://lattes.cnpq.br/6399650055335751. 6 Cf. http://lattes.cnpq.br/6594968549543791. 7 Cf. http://lattes.cnpq.br/6998953797820727.
3
A participação no Grupo de Pesquisa sobre Egiptologia e Egiptomania,
liderado pela Profa. Margaret Bakos8 foi também fundamental. Participei de encontro
em Porto Alegre, na PUCRS, assim como publiquei em obras organizadas pela Profa.
Bakos. O aprendizado foi imenso, tendo descoberto as várias facetas do amor pelo
Egito Antigo, no mundo e no Brasil. A Profa. Renata Senna Garraffoni9, com quem
interagi em diversas ocasiões, ajudou-me muito no que se refere às relações entre a
História e o cinema. A Profa. Sandra Pelegrini10
participou do Exame de Qualificação,
com indicações sempre úteis. Aprendi muito, ainda, com o convívio com professores
eminentes e inspiradores, em especial, a Profa. Margarida Maria de Carvalho11
, o Prof.
Gabriele Cornelli12
.
O apoio dos amigos e colegas foi fundamental, em todos os aspectos,
tanto acadêmicos, como pessoais: a Mônica Lungov, em especial, por compartilhar
diversas decisões e aos queridos amigos Rodrigo Batagelo, Roberta Alexandrina da
Silva, Renilson Rosa Ribeiro, Adilton Luís Martins, entre outros. Agradeço os
funcionários que tanto me ajudaram: Júnior, Wagner Duduch, Ziara Roque, entre
outros.
Esta tese resulta, ainda, de apoios institucionais. Em primeiro lugar, devo
mencionar a Pós-Graduação em História da Unicamp e o IFCH/Unicamp, tanto pelas
disciplinas, como pela biblioteca, pelos recursos bibliográficos ingentes, como o JSTOR,
8 Cf. http://lattes.cnpq.br/7246907329737558. 9 Cf. http://lattes.cnpq.br/7088336949228296. 10 Cf. http://lattes.cnpq.br/7631047969563279. 11 Cf. lattes.cnpq.br/3463162645180441. 12 Cf. lattes.cnpq.br/4547907128459717.
4
mas também pela infra-estrutura em geral. Na mesma linha, menciono o Núcleo de
Estudos Estratégicos. Contei, ainda, com o apoio integral do Colégio Santo Américo.
No campo pessoal, muitos contribuíram para que esta tese pudesse ser
feita, a começar da minha família: meu marido, meus filhos, minhas irmãs e irmãos,
meus pais, todos ajudaram muito mesmo.
A todos agradeço muito.
5
INTRODUÇÃO
7
No cinema, mais do que no teatro, os personagens são, antes de tudo, sujeitos de
experiências emocionais: a alegria e a dor, a esperança e o medo, o amor e o ódio, a gratidão e a inveja, a
solidariedade e a malícia, conferem ao filme significado e valor.
Hugo Munsterbert in A Experiência do Cinema, org. Ismail Xavier, Rio de Janeiro, Graal, 2003,
p. 46, tradução de Teresa Machado.
8
O Príncipe do Egito seria um tema de tese de doutoramento13 em
História? Esta interrogação está entre as primeiras não apenas dos leitores desta tese,
dos seus examinadores, como estava na raiz mesma da minha pesquisa. Por muito
tempo refleti sobre essa questão: qual o interesse acadêmico de um filme de cinema,
de um grande estúdio? Estas dúvidas persistiram, ainda e quando iniciei as pesquisas
de campo, os levantamentos e análises estatísticas. Afinal, a História, ciência do
passado, teria mesmo algo a refletir sobre um blockbuster14 de nossos dias? Não foi
isso que aprendi nos bancos escolares, nem a percepção que ainda está presente em
obras voltadas para o público escolar ou mesmo para o leitor comum. Como lembrava
Paulo Celso Miceli, em capítulo agora já clássico, “a História é matéria difícil, e essa
dificuldade não vem de datas e nomes com que se imagina poder ensiná-la, pois, se
dependesse disso, ela seria apenas chata. A História exige muita sensibilidade, coisa
que pode ser cultivada, mas não ensinada15”. Claro, foi essa sensibilidade que me
levou, e levou a tantos de nós, ao estudo da História, mas ela nem sempre estava
presente nos livros e na percepção do que seria propriamente História. Foi essa
atração, tão bem definida por Miceli como uma “sensibilidade”, que me conduziu ao
13 As notas de pé-de-página apresentam as referências, para facilitar a leitura, e, ao final, encontram-se as obras citadas em ordem alfabética de sobrenome. 14 O sentido original da expressão indicava o êxito de um filme nas salas de cinema, mas, hoje, já indica um êxito em qualquer contexto, como em DVDs ou mesmo no download virtual de algo. Cf. http://www.thefreedictionary.com/blockbuster, s.v., Something, such as a film or book, that sustains widespread popularity and achieves enormous sales. 15 Cf. Paulo Celso Miceli, Por outras histórias do Brasil, O ensino de História e a criação do fato, São Paulo, Contexto, 1988, org. Jaime Pinsky, p. 35.
9
Príncipe do Egito e aos usos do passado16. A percepção tradicional, contudo, pode
persistir por diversos motivos. Para Geraldo Teruya17:
“Muitos alunos ainda identificam história como matéria que se memoriza.
Nada mais grotesco ou anacrônico. Essa distorção é, em parte, herança da ditadura
militar que impôs um ensino acrítico e não-reflexivo. Os tempos mudaram, mas alguns
problemas persistem: a falta de leitura, a mercantilização, a má qualidade do ensino e
sua desvinculação da realidade. Isso, é claro, incide sobre o estudo da história”.
Não cabe dúvida que as amarras impostas pelo regime militar no Brasil,
entre 1964 e 1985, contribuíram para a persistência de uma distonia entre passado e
presente, entre o estudo do passado e o conhecimento do presente. Para além disso,
entretanto, persiste uma acomodação com percepções do passado ancoradas na
naturalização das relações sociais e num certo positivismo18. A explicação, portanto,
espraia-se e ultrapassa o entulho da ditadura, que já terminou há mais de duas
décadas. As reflexões de David Lowenthal19 podem ser sugestivas, a esse respeito:
“A percepção retrospectiva, assim como o anacronismo dá forma às
interpretações históricas. Explicar o passado ao presente significa enfrentar-se não
somente com as percepções, valores e linguagens cambiantes, mas também com os
desenvolvimentos posteriores ao período que se revê. Temos de ver a Segunda Guerra
Mundial, em 1985, de forma diferente do que em 1950, não apenas porque vieram à luz
muitas das novas evidências, mas também porque os anos desdobraram novas
16 Cf. Glaydson José da Silva, Imaginar, forjar, e utilizar a Antigüidade: representações dos gauleses e construção da identidade nacional na França, de Pétain a Le Pen. Boletim do CPA, UNICAMP - IFCH, Campinas, v. 18, p. 245-265, 2004. 17 Teruya é professor do ensino médio. A citação está em aula virtual disponível no portal UOL: http://vestibular.uol.com.br/ultnot/resumos/ult2769u34.jhtm. 18 Cf. RAGO, L. M. . "O historiador e o tempo". In: Rossi, Vera Lúcia Sabongi; Zamboni, Ernesta. (Org.). Quanto tempo o tempo tem!. 01 ed. Campinas: Alínea, 2003, v. 1, p. 25-48. 19 Cf. David Lowenthal, The Past is a Foreign Country. Cambridge, Cambridge University Press, 1985, p. 317.
10
conseqüências – a Guerra Fria, as Nações Unidas, o revival das economias alemã e
japonesa. Traduzindo o conhecimento em termos modernos e usando um
conhecimento do qual antes não se dispunha, o historiador descobre não apenas o que
foi esquecido em torno do passado, mas também o que se uniu de maneira incorreta e
as coisas que antes ninguém havia chegado a saber. Conceitos tais como o
“Renascimento” ou “Antigüidade clássica” não “eram percebidos como existentes no
princípio do processo, e...só se podia reconhecê-los e articulá-los plenamente no final
do mesmo”, apontou S.R. Humphreys”.
A Antigüidade apresentava-se à minha frente, à frente de todos, no
Príncipe do Egito, não como sucessão chata de datas e personagens, mas como
criação efetiva e afetiva de nossa realidade quotidiana, para além da busca das
origens20 verdadeiras de um personagem como Moisés.
Conforme me aprofundei na pesquisa, pude observar a relevância de um
estudo sobre o filme e suas interpretações ou representações. Neste processo, diversas
estratégias foram adotadas e estão consubstanciadas nesta tese de doutoramento. Em
primeiro lugar, adoto um estilo narrativo que poderia definir como cumulativo e
fragmentado21. Fragmentado, pois preferi apresentar em pequenos apartados, com
inter-títulos freqüentes, a seqüência de questões tratadas. Cumulativo, pois a sucessão
20 Cf. Glaydson José da Silva e Adilton Luís Martins, Genealogia e História Antiga, v Subjetividades Antigas e Modernas, São Paulo, Annablume, 2009, org. M. Rago e P.P.A. Funari (no prelo, quando da finalização desta tese), p. 46: “valores, costumes, práticas e experiências que orbitam universos originais são lidos, interpretados, imaginados e reivindicados no estabelecimento de compreensões de questões contemporâneas e na oferta de respostas ao que, aos olhos dos “agentes”, se configura como problemas no presente, fazendo do passado seu juiz e sua escola”. 21 Cf. Tania Navarro Swain, “A questão da autoria, seja na literatura/arte, seja na ciência, está imbricada às suas condições de imaginação e produção, ou seja, o autor exprime, na escolha e nos recortes de sua temática, as representações sociais, os valores, o regime de verdade no qual se constitui sua experiência e sua subjetividade”, História: construção e limites da memória social, Subjetividades Antigas e Modernas, São Paulo, Annablume, 2009, org. M. Rago e P.P.A. Funari (no prelo, quando da finalização desta tese), p. 26.
11
de fragmentos visa a definir uma narrativa22 que trata, de forma sucessiva, dos diversos
temas: cinema, representação, escolas, alunos, questionários, respostas, gráficos,
comentários, conclusões. Em consonância com a abordagem adotada e com as
discussões epistemológicas das últimas décadas, abusamos do uso de recursos
visuais, virtuais e midiáticos23. Assim, a tese constitui-se de duas versões, uma em
papel e outra dinâmica, em mídia digital, que permite a incorporação do discurso fílmico
estudado no corpo do trabalho. Isto não seria possível há algum tempo, mas, hoje,
constitui parte das possibilidades não apenas tecnológicas, como epistemológicas. Não
cabe dúvida que foi a revolução informática que permitiu a produção de uma tese de
doutoramento em meio digital e com imagens em movimento24. Esta característica
tecnológica liga-se a uma questão de fundo, contudo: a produção de conhecimento liga-
se ao suporte25. Na medida em que esta tese de doutoramento parte de um filme,
reproduzido em meio digital, pareceu adequado uma forma narrativa que desse conta
desse seu caráter.
22 Cf. RAGO, L. M. (Org.) ; GIMENES, R. A. (Org.) . Narrar o passado, repensar a história. 1. ed. campinas: ifch, 2000. 23 Cf. Michael Coventry ET alii, Ways of seeing: evidence and learning in the history classroom, The Journal of American History, 92, 4, 2006, 1371-1402. 24 A Unicamp destacou-se como pioneira nesse campo. A Biblioteca Digital da UNICAMP, foi oficialmente instituída em 08/11/2001, através da portaria n? GR-85, que trata da estruturação da Biblioteca Digital da UNICAMP, através da produção Científica/Acadêmica da Unicamp em formato eletrônico de: artigos, fotografias, ilustrações, obras de arte, revistas, registros sonoros, teses, vídeos e outros documentos de interesse ao desenvolvimento científico, tecnológico e sócio cultural". O trabalho consolida-se na disponibilização da Biblioteca Digital da UNICAMP à comunidade interna e externa, nacional e internacional, provendo mais um mecanismo de difusão da informação. Cf. http://libdigi.unicamp.br/ 25 Cf. Karnal, L. (Org.) . A Escrita da Memória - Interpretações e Análises Documentais. 01. ed. São Paulo: Instituto Cultural Banco Santos, 2004.
12
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA CULTURAL E CINEMA
13
As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um
diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição social de quem os
utiliza.
Roger Chartier, A História Cultural, entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 2002, p. 17,
tradução de Maria Manuela Galhardo.
14
História Cultural: o contexto teórico do estudo do cinema
O estudo do cinema deve ser entendido no contexto dos debates
historiográficos das últimas décadas, em particular, como parte das discussões da
História Cultural. Parece importante explicitar o ponto de vista teórico ou epistemológico
no qual se insere esta tese de doutoramento. Para isso, apresenta-se, a seguir, um
panorama das discussões e como a pesquisa sobre o cinema pode ser entendida26.
Uma genealogia da História Cultural
Um exame da historiografia constata que as origens mais antigas da
História Cultural remontam à Grécia antiga, com seus mitos, mas também com o
surgimento da historiografia, com Heródoto. Seria apenas no século XVIII, contudo, que
as modernas preocupações com a História da civilização teriam uma seqüência com o
que se passa hoje ainda, no século XXI, na historiografia cultural. Como em muitos
domínios científicos, foi em terras de língua alemã que um programa de História
Cultural foi mais precoce e sistemático, em particular Jakok Burckhardt, com sua
Civilização do Renascimento na Itália, publicada originalmente em 1860. Aparecem
termos que teriam grande continuidade, como “espírito do tempo, ou de uma época”
(Zeitgeist) e “espírito de uma comunidade” (Volksgeist). Centrada nas manifestações
culturais eruditas, essa historiografia de língua alemã foi acusada de ignorar a cultura
popular ou de massa.
Em seguida, já em nossa época, floresceu a História das Mentalidades,
que talvez tenha começado com a tese de Alphonse Dupront, defendida na Sorbonne
26 As reflexões desta capítulo retomam os argumentos de Pascal Ory, Histoire Culturelle. Paris, Presses Universitaires de France, 2004.
15
em 1956, mas só publicada em 1997, sobre o mito da cruzada27, mas a grande marca
foi o livro de Jean Delumeau, sobre o medo no ocidente28. A História das Mentalidades
visava à reconstituição das atitudes diante da vida, segundo Philippe Ariès, psicologia
histórica, de acordo com Robert Mandrou. As críticas não tardaram e os novos influxos
vieram dos estudos culturais (cultural studies). Em lugar da visão de uma única cultura,
aparecem as subculturas: de gênero, gay, lésbica, afro-americana, nativa, pós-
coloniais, subalterna, entre outras. Por sua valorização das produções pouco
legitimadas, essas abordagens fazem uma abertura heurística análoga àquela da
História Cultural. Estas perspectivas condividem muitas preocupações do
desconstructivismo de Derrida, Foucault e Deleuze, conforme François Cusset29. A
coerência e flexibilidade da História Cultural devem-se à diversidade das suas fontes, à
diferença dos pais fundadores dos Annales, centrados na História stricto sensu. Em
particular, faz-se recurso às Ciências Sociais e à Filosofia, à Escola de Frankfurt
(Benjamin, Adorno).
Não se pode fazer História sem documentos ou, mais do que isso, o
centro da abordagem do historiador encontra-se na delimitação de um sujeito na sua
transformação em objeto. O historiador inventa suas fontes, no sentido que ele as
desnaturalizam: em suas mãos, um esqueleto não é mais um morto enterrado para sua
família, sua comunidade, religião ou que seja, mas torna-se fonte de informação e de
hipóteses sobre sua saúde, alimentação, demografia, status social, arte, crenças. A
História centrou-se sempre no documento escrito, mas a História Cultural irá buscar
27 Le mythe de croisade. Paris, Gallimard, 1997. 28 La peur em Occident: XIVe.-XVIIe. Siècle, une cité assiégée. Paris, Fayard, 1978. 29 French Theory: Foucault, Derrida, Deleuze met cie e les mutations de la vie intellectuelle aux États-Unis. Paris, La Decouverte, 2003, passim.
16
romper com essa restrição. Na História Cultural, “tudo é fonte”, em particular, os meios
de comunicação, como o cinema. Cada vez mais, ao lado da história de um filme ou de
seu autor, surgem estudos do espetáculo cinematográfico em sua totalidade, que supõe
que se integra, ou reintegra, o filme e o autor (um autor coletivo, na verdade) em um
conjunto mais vasto.
Cultura e História Cultural
No sentido mais restrito de conjunto de conhecimentos adquiridos, a
palavra cultura tem um uso bastante antigo. Nas últimas décadas, no interior da
historiografia, a cultura tem tido uma definição antropológica: o conjunto das
representações coletivas de uma dada sociedade. A representação refere-se a uma
forma sensível, em primeira instância, para designar, em seguida, algo que está
ausente. O grande cineasta americano John Ford, em seu The Man who shot Liberty
Valance, o faroreste de 1962, apresenta uma reflexão muito oportuna:
“When the legend becomes fact," the editor says, "print the legend30."
“Quando a lenda se torna fato”, o editor diz, “imprima a lenda”.
Não se espere, portanto, encontrar a realidade, mas apenas aparências
da realidade. Não se trata de uma necessidade do real, mas simplesmente, da
necessidade de acreditar. Claro que há que existir um elo indispensável entre a
representação e a experiência humana. Muito antes do surgimento do cinema, isto
estava claro, se voltarmos às vidas dos santos, ou hagiografias. Tais biografias foram
importantes para o povos, mas a historiografia positivista, surgida no século XIX iria
30 http://findarticles.com/p/articles/mi_qn4182/is_20010924/ai_n10147868/pg_2.
17
rejeitar tais relatos, considerados cheios de lendas. Nas últimas décadas, contudo, tais
narrativas passaram para o centro da atenção dos historiadores, como representação
social. A História Cultural investiga a dimensão coletiva dos processos de
representação. Essa coletividade exprime e estrutura uma sociedade. A este grupo se
reconhece uma identidade que pode ser interna ou externa. No primeiro caso, os
membros do grupo se designam explicitamente, no outro caso, o grupo é a criação de
um observador ou estudioso, tendo em vista os seus próprios objetivos.
A História Cultural pode ser considerada uma modalidade de História
Social, mas diversa da História Social clássica, que se preocupa com as classes
sociais, pois se preocupa com os fenômenos simbólicos. Esta História Social das
Representações ocupa-se das práticas e das formas de representação.
A História Cultural volta-se para o ambiente, que ultrapassa o conceito
mais restrito de “contexto”. O texto ou o filme não existem sem seus paratextos, que
permitem que um livro ou um filme passem por diversos intermediários, do editor ao
livreiro, do produtor cinematográfico ao distribuidor. Há, pois, dois aspectos importantes,
na pesquisa cultural ou simbólica: os aspectos mensuráveis e os mediáticos. O
mensurável nem sempre é quantificável. Pode-se verificar os números de cópias de um
filme ou de pessoas que o assistiram, quantas vezes foi reproduzido na televisão e
assim por diante. Nem tudo, entretanto, pode ser quantificável. Há aspectos
qualitativos, como o impacto, a recepção de um filme, ainda que se possa fazer
pesquisas com o público, como veremos mais adiante. O segundo aspecto, mediático,
refere-se à circulação, às relações.
18
A História Cultural desconfia, quase de maneira apriorística, das
interpretações totalizantes e unificadas, que colocam em cena um ser humano
simplificado e racional. Mostra-se preocupada com o ser humano atravessado, ou
mesmo animado, por contradições internas que podem, por exemplo, desejar ter medo,
sonhar sem iludir-se, ou desejar simultânea e profundamente uma coisa e seu exato
contrário. Isto é importante para entender os fascínio dos filmes: um thriller, uma
aventura, uma comédia. O Egito antigo, como tema, encontra-se bem nesse quadro, ao
permitir que os sentimentos mais variados e até mesmo contraditórios possam aflorar.
O cinema como experiência pedagógica 31
“O significado de um filme é o todo”, diz o lingüista Milton de Almeida, “amálgama desse conjunto de pequenas partes, em que cada um não é suficiente
para explicá-lo, porém todas são necessárias e cada uma só tem significação plena em relação a todas as
outras” (1994, p. 29) (Duarte, 2002:37).
Os filmes permitem que se usufrua, de maneira intensa, as emoções
provocadas pelas imagens, de modo a reconhecer valores sociais e questionar os
próprios valores. Segundo a descrição clássica do sociólogo francês Pierre Bourdieu
(1996), a interação das pessoas com o cinema permite o desenvolvimento do que se
poderia denominar “competência para ver”, isto é, uma certa disposição, valorizada
socialmente, para analisar, compreender e apreciar qualquer história cinematográfica
contada (Duarte, 2002:13). O gosto pelo cinema, como um conjunto de preferências,
liga-se, de forma direta, à origem familiar e social das pessoas e tais preferências por
determinadas formas culturais fazem parte do universo de preocupações de
professores e pesquisadores. 31 As considerações sobre cinema e educação devem muito à análise de R. Duarte (2002).
19
A socialização da criança constitui um conceito sociológico útil, a partir das
duas grandes vertentes sobre o tema. Uma delas, mais tradicional e que podemos
designar como normativa, vê a socialização como um mecanismo segundo o qual o
indivíduo interioriza as regras sociais, assimila, de modo mais ou menos pacífico, as
normas que a sociedade impõe aos seus membros (Duarte, 2002:15). Os que não se
conformam são definidos como desviantes. Para as perspectivas críticas aos modelos
normativos, o sujeito é o resultado de um conjunto de interações, nas quais os sujeitos
têm papel ativo a desempenhar. Essas são interações de tipo educativo, na família,
escola, igreja, e outros lugares de constituição da subjetividade. Ocorrem, ainda, em
ambientes sem intenções de construção do sujeito, como na interação com os pares, no
trabalho, nos mais diversos tipos de atividades em conjunto. De qualquer forma, a
educação escolar constitui apenas parcela da subjetivação, pois há muitos modos de
transmissão e produção de conhecimento, da constituição de padrões morais e
comportamentais, da formação de valores. Nas sociedades atuais, as mídias como o
cinema são importantes nesse processo. Assistir a filmes é uma atividade social de alto
potencial de formação cultural, tanto ou mais do que os outros meios tradicionais, na
medida em que os sentidos são envolvidos de forma mais intensa e profunda. Isto
ocorre a tal ponto que se pode dizer que toda a experiência de subjetivação, a partir das
primeiras décadas do século XX, passou a contar com participação do cinema. Mesmo
historiadores profissionais são influenciados, em sua concepção do mundo, pelas
imagens cinematográficas e isto tanto mais é verdade no que se refere ao grande
público (Hingley 2005).
20
Não por acaso, em países centrais, os bens culturais audiovisuais, incluindo os
cinematográficos, são considerados recursos estratégicos para a construção e a
preservação de identidades nacionais e culturais (Duarte, 2002:19-20).
A linguagem cinematográfica, por ser direta e sensorial, está ao alcance
de todos e prescinde de uma educação formal dos sentidos, à diferença da escrita,
dependente de um domínio de códigos e estruturas gramaticais e lingüísticas
padronizadas. Nas sociedades modernas, fundadas nos múltiplos meios audiovisuais,
as interações com os esses meios começa na mais tenra idade. O cinema funda-se, em
sua expressão como linguagem, da câmera, da iluminação, do som e da montagem,
também conhecida como edição. Entre os recursos mais usuais estão os flashbacks ou
cutbacks, às vezes marcados pelas imagens distorcidas ou pelo uso de cores, ou preto
e branco, de forma diferencial. Nos filmes, detalhes, objetos, imagens isoladas, podem
ser tão essenciais, ou mais, do que uma seqüência, pois, como afirma Carrière (1995),
a memória de imagens é muito mais duradoura e marcante do que aquela fundada nas
palavras. A posição das filmagens, também conhecida como tomada (take), produz
sentidos por si só. Tomadas de cima costumam imprimir um caráter espetacular,
estimulante e movimentado ao espectador. De cima para baixo ou frente, as tomadas
podem induzir a um senso de perigo ou dificuldade particular.
O ângulo, portanto, transmite mensagens, como no caso de uma tomada de
um indivíduo de baixo para cima, que o apresenta em posição de poder, enquanto a
perspectiva inversa, de cima a baixo, menoscaba a amesquinha o personagem. Takes
em perspectiva partem do personagem e induzem ao sentido de vulnerabilidade no
espectador.
21
Os ataques dos monstros ou personagens malignos são comuns nessa perspectiva. A
iluminação visa, segundo Graeme Turner (1997: 61), a estabelecer um estado
emocional, dar ao filme uma ‘aparência’ ou contribuir para detalhes da narrativa, como
caráter e motivação. No sentido oposto, cenas bem-iluminadas favorecem a segurança
e a ausência de ameaça ou perigo. O som motivado por ações ou fatos ocorridos na
narrativa, tais como berros ou barulhos, é chamado de diegético. Este conceito
narrativo funda-se na terminologia grega, a partir do verbo32 diegeomai, junção de dia
(por meio de) e hegeomai (liderar), “dar uma narrativa detalhada”, daí diegesis33
(narrativa), por oposição a mímesis (imitação).
As personagens femininas foram consideradas a partir da constatação de
que o cinema continua sendo, de forma predominante, uma arte masculina. Ann Kaplan
(1995) lembra esse olhar masculino e que as mulheres existem “para-serem-olhadas” e
essa objetificação orienta a maneira como o corpo feminino é apresentado e o lugar
simbólico que ocupam na narrativa. Uma parte significativa das narrativas
cinematográficas apresenta as mulheres em posição dependente, sem autonomia e
capacidade de decisões racionais, sempre em busca de um parceiro masculino
dominante, que a proteja e assegure. Os papéis reservados às mulheres, tantas vezes,
resumem-se ao casamento, procriação, cuidado da prole, amor unilateral. Neste, como
em outros aspectos, os filmes servem para reforçar padrões sociais normativos e são
por eles influenciados. A partir do diretor e dos produtores, os filmes ligam-se a
convicções políticas, religiosas e de gênero, a valores e normas sociais. Muitos
estudiosos e o senso comum costumam atribuir ao cinema e a outras produções áudio-
32 Agradeço a Pedro Paulo Funari os esclarecimentos sobre os termos gregos e latinos mencionados no decorrer da tese de doutoramento. 33 Cf. Platão, República, 392d5-6.
22
visuais, como as telenovelas, atitudes, modismos, crenças, e valores. Contudo, tanto
estudos empíricos, como considerações teóricas questionam tais postulados. Por um
lado, do ponto de vista epistemológico, a teoria social das últimas décadas tem posto
em dúvida a eficácia de modelos normativos de comportamento e a subordinação das
pessoas às regras sociais. Embora existam forças em direção à homogeneidade e à
norma, há, também, uma dinâmica social fluida e nômade, que dá vazão à diversidade
de interesses e pontos de vista. Em seguida, estudos de caso têm questionado o
caráter reprodutivo e passivo dos espectadores.
O estudioso da Universidade Gregoriana de Roma, Robert White, tem
defendido, desde a década de 1980, que o cinema antes que “receptores” forma
sujeitos dotados de valores e saberes, em interação, de forma ativa, na produção de
significado das mensagens34. Os espectadores não são, para parafrasear Paulo Freire,
um banco, que recebe, de forma passiva, os valores da mídia. Suas experiências,
valores, referências e interesses interpretam e interagem os filmes. O espectador não
vê o que o diretor quer que ele veja, mas recompõe as imagens ao seu modo. Como diz
Umberto Eco a respeito da obra literária, o filme é sempre uma obra aberta35: cenas
inexistes são inventadas pelos espectadores, como a provar a co-autoria. Os
espectadores encontram, nos filmes, elementos de identificação, de modo que possam
projetar seus sentimentos positivos e negativos, algo que não escapa, nunca, do
horizonte dos produtores cinematográficos. Isto é explícito na criança, que se identifica
com o super-herói, mas o é, de forma sutil e mediada, para todo espectador. A sedução
constitui, portanto, elemento central. As interpretações dos outros espectadores são
34 Robert White, Is “empowerment” the answer? Current theory and research on development communication, International Communication Gazette, 66, 2004, 7-24. 35 Umberto Eco, Opera Aperta, Milão, Bompiani, 1962.
23
constitutivas, também, da percepção individual. Quem não se lembra da experiência de
trocar impressões sobre filmes com amigos? Este processo constitui uma maneira de
reinventar o filme, agora à luz das opiniões dos outros. O mesmo se passa com a crítica
de cinema, ainda que o discurso científico da crítica constitua tanto uma atração como
uma repulsão para o espectador. A doxa (opinião) dos amigos costuma valer mais do
que a episteme dos críticos36. Carlo Ginzburg37 tece considerações sobre o documento
histórico que se podem aplicar aos filmes:
Bisogna superare l'idea illusoria che il rapporto con i testi o con le persone sia facile: la trasparenza è un
inganno. Il primo aiuto forse ci viene dalla nozione di straniamento, che è stata evocata prima: un
atteggiamento che ci fa guardare a un testo come a qualcosa di opaco. È un atteggiamento che può essere
spontaneo; più spesso, è il frutto di una tecnica deliberata: non capire un testo come premessa per
capirlo meglio, non capire una persona come premessa per capirla meglio. Diffido profondamente delle
metodologie che trapassano i testi come un coltello taglia il burro. La loro apparente potenza è illusoria. In realtà
l'interprete trova solo se stesso.La stessa cosa succede con le persone. L'idea che tutti si capiscano è illusoria. Al contrario, il fraintendimento, la difficoltà di comprensione
fa parte dei rapporti normali, anche fra persone che appartengono alla stessa cultura. Questo sforzo, quindi,
è necessario e passa attraverso il riconoscimento dell'opacità. Cosa dice questo testo? Cosa mi dice
questa persona? Perché fa così? Io credo che domande di questo tipo debbano essere continuamente poste.
Quindi bisogna autoeducarsi a farsi domande: nei confronti dei testi, per chi fa questo mestiere; nei
confronti delle persone, per chiunque – perché questo fa parte del mestiere di vivere.
Nel libro del grande storico dell'arte Ernst Gombrich Arte e illusione, l'autore evoca un aneddoto:
all'inizio dell'Ottocento un gruppo di pittori va nella
36 Doxa é a opinião e episteme a ciência, segundo a terminologia grega antiga, retomada por modernos como Pierre Bourdieu; cf. Jan Szaif, Doxa and episteme as modes of acquaintance in Republic V, Les Études Platoniciennes, 4, 2007, 253-272, Loïc Wacquant,http://sociology.berkeley.edu/faculty/wacquant/wacquant_pdf/CRITICALSOLVDOXApdf. 37 Carlo Ginzburg, Il pré-giudizio aiuta la ricerca storica, Corriere della Sera, 24/07/2008, p. 27.
24
campagna romana a dipingere lo stesso luogo e ne vengono fuori molti quadri diversi. Come mai? Ognuno di loro si accostava allo stesso paesaggio non solo con un
bagaglio tecnico, ma con qualcosa che era legato alla propria formazione. In questa specie di griglia, in questo
filtro mentale entrano, io credo, anche i valori morali. Bisogna sottolineare da un lato la diversità; dall'altro, la
traducibilità.
Il lavoro che facciamo di fronte a un testo è di interpretarlo, e cioè, anzitutto, di tradurlo. Possiamo dire
allora che c'è un conflitto fra giudizio morale e prospettiva cognitiva? Io credo di no, a patto di ammettere che la
prospettiva cognitiva non è mai neutra, sebbene sia traducibile. Molti elementi entrano nella prospettiva
cognitiva, inclusi gli elementi morali, politici ecc. Tutti devono, per quanto è possibile, entrare a far parte della
consapevolezza.
Dobbiamo diventare consapevoli dei nostri pre-giudizi. Stacco pre-giudizi, perché siamo abituati a
dare alla parola pregiudizio una connotazione negativa: mentre qualche forma di pre-giudizio, cioè di giudizio
anticipato, è auspicabile, come sa bene chi studia testi. Se non si parte da un'ipotesi non si capisce nulla. Certo,
dobbiamo evitare di imporre il nostro pre-giudizio. Dobbiamo essere disposti a imparare dal testo38.
38 É necessário supera a idéia ilusória que a relação com os textos ou com as pessoas seja fácil: a
transparência é um engano. A primeira ajuda vem-nos da noção de estranhamento, evocada antes: um comportamento que nos faz olhar o texto como algo opaco. É um comportamento que pode ser espontâneo; mais freqüentemente, é o fruto de uma técnica deliberada: não compreender o texto como premissa para entendê-lo melhor, não entender uma pessoa como premissa, para entendê-la melhor. Desconfio profundamente das metodologias que cortam os textos como uma faca que corta a manteiga. A sua aparente potência é ilusória. Na realidade, o intérprete encontra apenas a si mesmo. O mesmo se passa com as pessoas. A idéia de que todos se entendam é ilusória. Ao contrário, a incompreensão, a dificuldade de compreensão faz parte das relações normais, mesmo entre pessoas que pertencem à mesma cultura. Este esforço, portanto, é necessário e passa pelo reconhecimento da opacidade. O que diz este texto? O que me diz esta pessoa? Por faz isso? Creio que tais perguntas devem ser continuamente colocadas. Portanto, é necessário educar-se a si mesmo a fazer perguntas: em relação aos textos, para quem os estuda; em relação às pessoas, para todos, pois isto faz parte da própria vida.No livro do grande historiador da arte, Ernst Gombrich, Arte e Ilusão, o autor evota uma anedota: no início do século XIX, um grupo de pintores vai ao campo romano para pintar o mesmo lugar e surgem diversos quadros, diferentes entre si. Como? Cada um ficava no mesmo lugar na paisgem e a abordava não só um uma bagagem técnica, mas com algo que era ligado à sua própria formação. Nesta espécie de grelha, neste filtro mental, entram, creio, também os valores morais. É necessário sublinhar, por um lado, a diversidade e, do outro, a possibilidade de tradução. O trabalho que fazemos diante de um texto é interpretar-lo e, portanto, de traduzir-lo. Podemos dizer, então, que existe um conflito entre o juízo moral e a perspectiva cognitiva? Não o creio, se admitimos que a perspetiva cognitiva não é nunca neutra, ainda que seja intraduzível. Muitos elementos entram na perspectiva cognitiva, como os elementos morais, políticos, entre outros. Todos devem, na medida do possível, fazer parte da consciência.
25
Devemos, da maneira sugerida por Ginzburg, aprender com os filmes.
Os alunos podem apreciar os filmes no contexto histórico, cultural e
político em que foram criados e produzidos, de modo a que possam criticar, avaliar e
refletir sobre o filme, sobre si mesmos e sobre a sociedade como um todo e em sua
diversidade. Desde sempre, imagem e imaginação fazem parte do conhecimento da
história, diz o cineasta e professor Sílvio Tendler no prefácio do livro A história vai ao
cinema (2001).
A cultura de massas, popular ou indústria cultural caracterizam a nossa
época (Bell 1969). Por meio do seu estudo, conforme Raymond Williams em seu
clássico Raymond Williams: Culture and Society, Londres, 1958, págs. XIII-XV, podem
utilizar-se como um mapa, por meio do qual é possível reconsiderar as mudanças nas
formas de vida e de pensamento. Durante quase dois séculos, a cultura ocidental
representou uma dualidade entre uma cultura superior, produzida por livros e outra,
narrativa, fabricada para o mercado (claro que o cinema entrou nesta segunda
categoria, cf. MacDonald 1969: 59 in Bell 1969). Haveria, como sugeria André Malraux39
em artigo célebre de 1951, uma diferença entre um Bach e a música popular. Alguns
autores, como Horkheimer e Adorno (1969: 195-6 in Bell 1969), associam a diversão,
amusement, a um prolongamento do trabalho, no capitalismo tardio, para usar sua
terminologia. Um filme de diversão (Horkheimer e Adorno 1969: 203 in Bell 1969)
serviria, assim, para preparar de novo o trabalhador para a faina repetitiva do dia-a-dia.
Devemos estar conscientes dos nossos pré-conceitos. Destaco que são pré-conceitos, pois estamos acostumados à palavra preconceito uma conotação negativa: enquanto algumas formas de pré-conceito, ou seja, de idéia pré-concebida, seja desejável, como sabe bem que estuda textos. Se não se parte de uma hipótese, nada se entende. Claro que devemos evitar impor o nosso pré-conceito. Devemos estar dispostos a aprender com o texto. 39 André Malraux, Art, popular art and popular illusion, Partisan Review, September/October 1951.
26
O cinema, sob esta perspectiva, estaria a serviço da manutenção da estrutura social
(Lazarsfeld e Merton 1969: 25 in Bell 1969).
27
CAPÍTULO 2
O PRÍNCIPE DO EGITO
29
O livro do Êxodo mostra como os setenta membros do clã de Jacó originaram em terra egípcia um
grande povo, logo submetido. A escravidão é apresentada como a provação que uniu o povo de
Israel, antes que um homem criado na casa do rei – Moisés, da tribo de Levi – o conduzisse à liberdade em
nome de um Deus Todo-Poderoso, que até então os hebreus desconheciam.
Élie Barnavi, História Universal dos Judeus, da Gênese ao fim do século XX. Belém, Cejup, 1995, p.
4, tradução de Beatriz Sidou.
30
O Príncipe do Egito: um estudo de caso.
As produções cinematográficas ao longo do século XX e, provavelmente
do século XXI, direta ou indiretamente, informam as pessoas sobre diferentes
momentos e movimentos da História. Segundo Sidney Ferreira Leite, os filmes “na
mesma proporção, também foram responsáveis para desinformá-las. A história não é,
durante todo tempo, interessante, romântico ou simples como a maioria das produções
de Hollywood a faz parecer, e suas personagens não são tão atraentes e sensuais
como os astros e estrelas que os representam nas telas da sétima arte” (LEITE,
2005:80).
O Egito Antigo, dentro desse contexto, tem recebido uma atenção dos
diretores de cinema. O filme O Príncipe do Egito, dos fundadores da Dreamworks
Pictures David Geffen, Steven Spielberg e Jeffrey Katzenberg, foi lançado em 1998,
simultaneamente em cinqüenta países, em vinte e dois idiomas, como inglês, alemão,
mandarim, grego, hebraico, francês e português entre outros. Um desafio que levou
centenas de artistas, técnicos, animadores e músicos a trabalhar por quatro anos para
levar às telas o filme. Na verdade, é uma história de dois irmãos, que se separam e
distanciam a ponto de se tornarem completamente opostos.
A produção cinematográfica desta película envolveu uma equipe de
desenhistas, cinegrafistas, dubladores, roteiristas e milhares de horas de trabalho.
Desde o início os produtores queriam que o filme ultrapassasse as limitações técnicas e
artísticas dos desenhos convencionais. Como inspiração buscaram as ilustrações do
artista francês do século XIX Gustave Doret por causa de uso dramático da luz.
31
Estudaram também o pintor impressionista Claude Monet por seu manuseio das cores e
senso de lugar e também o diretor de filmes David Linn por seu épico senso de cinema
e escala.
Gustave Doré (1832-1883) pode ser considerado, com Claude Monet, um
dos grandes modelos para os realizadores do filme Príncipe do Egito. Doré nasceu em
Estrasburgo, em região na confluência de dois mundos: o francês e o germânico. A
cidade esteve sempre no entrecruzar de influências de Paris, do lado ocidental, e das
regiões germânicas a leste. A própria população local sempre foi, majoritariamente,
falante de dialeto alemão. O nome da cidade já indica isso, pois significa, em
germânico, “cidade da estrada”, dos caminhos entre os burgos alemães e as cidades
francas, em especial a sede da corte, a Ilha de França.
Doré tornou-se ilustrador de livros em Paris. Destacou-se como desenhista
de grandes autores franceses, como Rabelais e Balzac, mas também de muitos outros,
como Dante e lorde Byron. Os ingleses encantaram-se com seu estilo marcante e ele
foi contratado para diversas obras, com destaque para as ilustrações da Bíblia,
publicada em 1865, um best-seller que lhe rendeu uma exposição na capital britânica
dois anos depois, em 1867. Desta mostra resultou a Dore Gallery, na New Bond Street,
na City. A partir de 1869, Doré dedicou-se a produzir um retrato amplo de Londres.
Passou a viver por um trimestre por ano na capital inglesa e o resultado foi o magistral
London, a pilgrimage (Londres, uma peregrinação), com 180 gravuras, publicada em
1872. Foi acusado de invencionices, mas tornou-se popularíssimo, com suas imagens
impressionistas.
32
Cérbero, de Gustavo Doré (1832-1883)
Lúcifer, por Gustave Doré
33
Monet (1840-1926) exerceu uma influência particular no cinema de animação
e, em particular, no Príncipe do Egito. Monet foi considerado o fundador do
impressionismo, ainda que tenha sempre desconfiado das classificações estéticas,
como afirmou, pouco antes de morrer:
J'ai toujours eu horreur des théories... Je n'ai que le mérite d'avoir peint directement, devant la nature, en cherchant à rendre mes impressions devant les effets les plus fugitifs, et je reste désolé d'avoir été la cause du
nom donné à un groupe dont la plupart n'avaient rien d'impressionniste.
“Sempre tive horror das teorias...Não tenho outro mérito, senão pintar
diretamente, diante da natureza, tentando apresentar minhas impressões diante dos
efeitos mais fugidios. Lamento estar na origem do nome dado a um grupo que, na
maioria, nada tinha de impressionista40”.
Essa influência dos impressionistas foi destacada por diversos estudiosos,
como Anthony Quinn, em resenha do filme Príncipe do Egito41:
Two very different aspects of the film begin to emerge. The first is the architectural grandeur of
Pharaoh's empire, a symphony in cool beige stone with Kane-like, deep perspectives and vertiginous drops. Humans are dwarfed to ant-like insignificance by the
towering verticals, pyramids and sphinxes. Elsewhere, the production design nods proudly to a variety of
influences - the etchings of Gustave Dore, Monet's paintings, Cecil B DeMille's The Ten Commandments
and the wide-screen immensity of David Lean (this is the sandiest film since Lawrence of Arabia).
“Dois aspectos muito diferentes do filme começam a emergir. O primeiro é a grandeza
arquitetônica do império do faraó, uma sinfonia em uma
40 Cf. http://www.impressionniste.net/monet.htm, acessado em 02/10/2008. 41 The Independent, 17/12/1998, 54.
34
pedra bege claro, com perspectivas profundas e quedas vertiginosas. Os seres humanos são apequenados até a insignificância de parecem formigas, diante das imensas
torres verticais, em forma de pirâmides e esfinges. Em outras passagens, a produção paga tributo, de forma
orgulhosa e explícita, a uma diversidade de influências: os esboços de Gustave Doré, as pinturas de Monet, Os
Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille e a imensidão das telas amplas de David Lean (este é o filme com mais
areia, desde Lawrence da Arábia).
José de Souza Martins42 apresenta uma interpretação original de dois
quadros de Monet, muito pertinentes para entender o Príncipe do Egito: “Impressão do
nascer do sol” e “O Parlamento no pôr-do-sol”. Separadas por um hiato de 32 anos:
“o reflexo das águas, e também do céu, redesenha o cenário ao adotar
uma linguagem em que a obra é construída a partir do código da inversão e da
deformação que o reflexo propõe. A própria composição da imagem se altera,
ganhando ela uma verticalidade necessária à incorporação das revelações formais e
cromáticas das adjacências, sobretudo do céu e da água, e a multiplicação dos efeitos
de luz e cores do reflexo. O apenas residual do que até então fora o convencional da
imagem desloca-se para o centro dos critérios de sua construção. E deixa o
propriamente convencional, formal, preciso e similar para a fotografia”.
42 Martins, J.S., Sociologia da Fotografia e da Imagem. São Paulo, Contexto, 2008, p. 151.
35
Claude Monet “Impressão do nascer do sol” (1872
Claude Monet “O parlamento no pôr-do-sol” (1904)
36
Campbell e a construção do personagem.
Um dos livros mais influentes do século XX foi O Herói de Mil Faces , de
Joseph Campbell e, portanto, não é de admirar que Hollywood esteja incorporando as
idéias que Campbell apresenta em seus livros43. Em seu estudo sobre mitos mundiais
do herói, Campbell propôs que todos eles, na essência, são a mesma história, contada
e recontada infinitas vezes, em variações também infidáveis. Segundo Campbell, o
modelo da Jornada do Herói seria universal, ocorrendo em todas as culturas, em todas
as épocas. Suas variantes seriam infinitas, como os membros da própria espécie
humana, mas sua forma básica permaneceria constante. A Jornada do Herói é
interpretada como um conjunto de elementos persistente, que jorra sem cessar das
mais profundas camadas da mente humana. Seus detalhes são diferentes em cada
cultura, mas são, no seu cerne, sempre iguais. Trata-se de uma interpretação de cunho
psicológico. As histórias construídas segundo o modelo da Jornada do Herói exercem
um fascínio que pode ser sentido por qualquer pessoa, porque brotam de uma fonte
universal, no inconsciente que compartimos, e refletem conceitos universais. O cinema
joga com este inconsciente.
Convém reconstruir os passos da saga, segundo Campbell, a começar
pela jornada do herói. O herói sai de seu ambiente seguro e comum para se aventurar
em um mundo hostil e estranho, local novo que passa a ser a arena de seu conflito com
um adversário. O herói cresce e se transforma, fazendo uma jornada de um modo de
ser para outro: do desespero à esperança, da fraqueza à força, do sofrimento para a
43 Cf. VOGLER, Christopher, A Jornada do Escritor: Estruturas míticas para contadores de história e roteiristas/Tradução Ana Maria Machado. Rio de Janeiro - RJ: Ampersand Ed. 1997.
37
satisfação. Essas jornadas emocionais prendem uma platéia de cinema e fazem com
que as pessoas queiram acompanhar a narrativa.
Um segundo aspecto da narrativa consiste na contraposição de um mundo
comum para um mundo especial. Apresenta-se ao herói um problema, um desafio, uma
aventura a empreender e ele não pode mais permanecer no conforto de seu mundo
comum. Esse chamado visa a obter justiça, melhorar uma situação, mudar de vida. De
início, o herói tem medo, receia partir e aventurar-se e para isto, muitas vezes, convém
que um mentor prepare o herói, com conselhos, para jornada. O mentor representa o id
da psicanálise, ou a consciência. O mentor é aquele que ensina, doador, segundo as
análises de Propp sobre o conto popular. È o motivador. O mentor não pode
acompanhar o herói por todo o tempo, contudo, ele deve seguir só e não pode voltar
atrás. Deve aprender as regras do mundo especial, fazer amigos, reconhecer os
adversários, encontrar uma parceira ou parceiro. Aproxima-se do local onde se esconde
o objeto da sua busca, na caverna oculta, ponto sob controle do adversário. A Provação
Suprema é um momento especial para a platéia, pois ficamos em suspense e em
tensão, sem saber se ele vive ou morre. Sofre uma provação, parece morrer, para
poder renascer em seguida, o que gera entusiasmo e euforia no público. Segue a
recompensa. Após sobreviver à morte, o herói e a platéia têm motivos para celebrar. O
herói, então, pode se apossar do tesouro que veio buscar, sua recompensa. O herói é
perseguido no Caminho de Volta pelas forças vingadoras que lê perturbou. Muitas
vezes, este é um segundo momento de vida-e-morte, quase uma repetição da morte e
renascimento da Provação Suprema. A morte e a escuridão fazem um último esforço
desesperado, antes de serem finalmente derrotadas.
38
Cada nova provação lhe dá mais conhecimento e mais domínio da Força. Da
experiência o transforma em um novo ser. O herói retorno ao mundo ordinário com uma
lição útil para todos. A partir Vladimir Propp, cujo livro Morfologia do Conto Popular
analisa motivos e padrões recorrentes em centenas de contos russos, é possível definir
os arquétipos dos personagens. A noção de arquétipo psicológico foi bem detalhada por
Jung.
O herói, na maior parte das vezes, é a pessoa mais ativa do roteiro. O Herói
deve realizar a ação decisiva da narrativa, a ação que exige maior responsabilidade. A
qualidade principal do herói consiste na sua capacidade de sacrifício, no sentido original
de “fazer sagrado”. Há os heróis decididos e os hesitantes, os há solitários, como os há
catalisadores.
Todos os heróis encontram obstáculos na estrada da aventura. Em cada
portão de entrada a um novo mundo há guardiães poderosos defendendo esse limiar,
ali colocados para impedir a passagem e a entrada de quem não for digno. Testar o
herói é a função dramática primordial do Guardião de Limiar. O Guardião de Limiar não
deve ser derrotado, mas incorporado, trazido para dentro do corpo.
Personagens que não têm problema interno parecem inconsistentes e para
evitar isso, é preciso que esses personagens tenham um problema íntimo, um defeito
de personalidade ou vivam um dilema moral, para que funcionem bem.
Um dos poderes mágicos do filme deve ser sua capacidade de seduzir cada
membro da platéia para que cada um projete uma parte de seu ego no personagem que
está na tela. A identificação deriva do fato de o herói ter objetivos, impulsos, desejos e
necessidades universais.
39
O herói costuma ter carência de algo, como uma família perdida (caso de Moisés, no
filme). Isso ajuda a criar solidariedade para com o herói.
A crítica cinematográfica ou a fortuna crítica do P ríncipe do Egito.
No campo das artes, a recepção das obras, por parte dos críticos ou
estudiosos, tem sido chamada de fortuna crítica44. Na origem, fortuna foi um termo
usado para designar a perenidade de uma obra, sua capacidade de resistir ao tempo.
Fortuna é uma palavra latina, cujo sentido abrange a sorte e o destino45, associada,
desde o Renascimento à noção de permanência, acenada por Horácio, Odes, 3, 30:
exegui monumentum aere perennius (“executei um monumento mais perene do que o
bronze”), para se referir à relevância futura da obra poética ou artística. O segundo
termo da expressão “fortuna crítica” remonta à noção grega de krisis (separação), do
verbo krinein (separar). A crítica, portanto, procura distinguir partes de uma obra,
separar o superior do inferior, ou o joio do trigo46.
O cinema apresenta um tipo de fortuna crítica menos consolidado, mais
efêmero ou mesmo circunstancial, pois as críticas consubstanciam-se, via de regra, em
publicações diárias ou semanais de divulgação. Muitas vezes, as avaliações são
mesmo anônimas e não se pode, tampouco, determinar com clareza as motivações
econômicas dos analistas. De todo modo, um apanhado das críticas o Príncipe do Egito
permite notar uma imensa recepção positiva. Assim, reiteram-se notas positivas, como
em texto anônimo de 1999:
Prince of Egypt is a deep movie, a serious story, and the first mainstream animation film not to
44 Tradução portuguesa dos termos fortune critique (francês), fortuna critica (italiano), critical fortune (inglês). 45 Cf. si bona fortuna veniat, ne intromiseris, Plauto, Aululária, 1,3,22 (“se vier a boa fortuna, não te intrometas”). 46 Na tradição ocidental, para além das inspirações clássicas acenadas, há que se mencionar a leitura cristã, a partir da Parábola do Joio e o Trigo, em Mateus, 13, 24-30.
40
pander to a children's audience. (Every Disney movie has its cute animal sidekicks and even the psychedelic
Yellow Submarine was a merchandising goldmine.) It picks up the torch that was dropped by Fantasia in 1940
and provides us with a form of storytelling we never imagined. Not only is the film an artistic triumph; it is may
be a turning point of animation history.
“O Príncipe do Egito é um filme profundo, uma narrativa séria, o primeiro
desenho animado não submetido a uma audiência infantil (todo filme da Disney tem um
animalzinho e mesmo o Submarino Amarelo era uma mina de merchandising). O
Príncipe do Egito toma a tocha deixada por Fantasia, em 1940, e dá-nos uma forma de
narrativa que nunca havíamos imaginado. Não apenas o filme é um triunfo artístico;
pode marcar uma virada na história da animação”47.
A avaliação do arqueólogo amador e midiático, Doyle Lynch, conhecido
como Digger Doyle, merece destaque, por sua repercussão entre os interessados em
temas históricos e arqueológicos, no público em geral:
It definitely sets a milestone in this arena for a new generation of cartoons. So, when viewing the movie
from the standpoint of its genre, I'll have to give it an excellent rating. The story was good, the soundtrack was
good, the actors were good and the quality of the film was good…There was nothing objectionable to
Christians. This is in part due to their decision to consult with Christian leaders (such as Billy Graham, James
Dobson, and Pat Robertson) while making the movie48.
“Estabelece um novo parâmetro na área da nova geração de desenhos.
Assim, quando vemos o filme enquanto gênero narrativo, tenho que dar uma nota
excelente. A história é boa, o som, os atores e a qualidade do filme são bons...não há
nada de questionável para os cristãos. Isto é, em parte, devido à decisão dos diretores
47 http://www.geocities.com/d-patanella/prince.html. 48 http://www.digbible.org/princeofegypt.html.
41
de consultarem líderes cristãos (como Billy Graham, James Dobson e Pat Robertson),
durante a preparação do filme”.
Ambas as críticas tratam de um aspecto que foi muito ressaltado à época
e que se mostrou menos relevante do que se previa: a inovação do gênero de filmes
animados para adultos. O filme - com sua temática séria e mesmo dramática - parecia
inaugurar um filão de desenhos voltados para o público adulto, ainda que sem afastar
as crianças. Isso não ocorreu exatamente desta maneira, nos anos que se seguiram.
Não se multiplicaram os desenhos de temas bíblicos ou apenas sérios. Contudo, houve
sim uma mudança, com a generalização de filmes animados voltados para o público
infantil e adulto a um só tempo. Os filmes infantis passaram a contar com piadas,
situações e atrações para os adultos que acompanham as crianças ao cinema49. O
segundo aspecto relevante refere-se à referência à consulta a pregadores da Direita
cristã americana. Isso demonstra que o filme estava bem inserido num ressurgimento
do conservadorismo cristão americano, ainda que estivesse atento, claro, a não ferir as
suscetibilidades do público judaico, na raiz na narrativa bíblica de base.
O relato bíblico sobre Moisés
O relato bíblico é brevíssimo sobre a vida de Moisés antes de sua fuga para
Madiã, de Êxodo 2, 1 a 2,15, assim como sobre sua vida em Madiã. A narrativa
concentra-se na missão libertadora de Moisés. Um quadro50 resumido dá bem conta
dos temas tratados:
49 No entanto, os filmes infantis que incorporam os adultos não possuem temática dramática e adulta, como no caso pioneiro do Príncipe do Egito. 50 Há diversas maneiras de se dividir o relato bíblico, a partir de uma variedade de critérios. O quadro segue, no geral, as propostas de Alberto Colunga e Laurentio Turrado, Bíblia Sacra iuxta Vulgatam Clementinam, nova editio, logicis partionibus aliisque subsidiis ornata a Colunga et Turrado, Madri, La Editorial Católica, 1982, sexta editio.
42
Êxodo
Origem de Moisés,2,1-10;
Moisés mata um egípcio, 2,11-14;
Fuga para Madiã, 2,15-22;
Deus ouve os gemidos dos filhos de Israel, 2,23-25;
Moisés vê Deus em Horeb, 3,1-10;
Moisés, sua missão de libertação e a revelação do nome de Deus, 3,11-22;
Os sinais de Deus dados a Moisés, 4,1-9;
Aarão é dado como porta-voz de Moisés, 4,10-18;
Deus manda Moisés de volta ao Egito, 4,19-31.
Moisés e Aarão diante do Faraó, 5,1-4;
O Faraó aumenta a opressão contra os hebreus, 5,5-22;
Nova aparição de Deus para Moisés, 6,1-8;
Moisés conta ao povo a sua visão, mas não fazem caso, 6,9-13;
Famílias dos hebreus, Moisés e Aarão levitas, 6,14-28;
Ensinamento de Deus a Moisés e Aarão, 6,29-7,7;
Moisés e Aarão diante do Faraó vencem os magos; 7,8-13;
Primeira praga: a água se transforma em sangue, 7,14-25;
Segunda praga: multiplicação das rãs, 8,1-15;
Terceira praga: borrachudos, 8,16-19;
Quarta praga: moscas, 8,20-32;
Quinta praga: peste nos animais, 9,1-7;
Sexta praga: úlceras nos homens e animais, 9,8-12;
Sétima praga: todas as pragas, 9,13-35;
43
Oitava praga: gafanhotos, 10,1-20;
Nona praga: trevas, 10,21-29;
Predição da última praga, 11,1-10;
Páscoa primeira, 12,1-28;
Décima praga: morte dos primogênitos, 12-29-30;
Israel pode sair, 12, 31-36;
A partir daí, 12, 37, começa uma segunda parte do relato do Êxodo,
relativo à saída do Egito (12,37 a 18,27), com partes grandes relativas aos preceitos
legais:
Saída do Egito, 12,37-42
O que comer na Páscoa, 12,43-51;
Lei de primogenitura, 13,1-16;
Caminho até o Mar Vermelho, 13,17-14,4;
A travessia do Mar Vermelho, 14,5-31;
Cântico de Moisés, 15,1-21;
A transformação da água salgada em doce, 12,22-27;
Abrigo e maná, 16,1-36;
Da pedra sai água, 17,1-7;
Vitória contra os amalecitas, 17,8-16;
Jetro vai a Moisés, 18,1-12;
Jetro se aconselha com Moisés, 18,13-27;
44
Inicia-se, em 19,1, uma terceira parte, que ser refere à subida ao Monte Sinai
e aos mandamentos divinos (19,1-40,36). Trata-se de longa e detalhada exposição,
iniciada pela aparição de Deus, seguida da emanação do decálogo, e de outros
preceitos como a destruição da religião dos cananeus (23,23-33) e a descrição
detalhada do aparato do culto, como a descrição da Arca da Aliança (25,10-22), dos
tabernáculos (26,1-30), passando pelo altar dos holocaustos (27,1-8), as vestes
sacerdotais (28,1-5), entre outros muitos detalhes.
Moisés volta como personagem no Livro dos Números, em sua segunda
parte (10,11-13,34) e na terceira seção (14,1-21-35), quando o povo transgride os
mandamentos fica a errar por quarenta anos. Sucedem-se disputas internas e lutas
externas. No livro do Deuteronômio, Moisés continua como personagem importante, já
pelo discurso inicial. Moisés vê a entrada em Canaã negada por Deus, que lhe permite
apenas avistar a terra prometida (3,21-29). Há outras proclamações importantes de
Moisés, como o Decálogo (5,1-22), assim como se anuncia a próxima morte de Moisés
(31,14-18), e seu fim de vida (34,1-10), em Moab, ali sepultado, em lugar ignorado
(31,6), aos cento e vinte e anos de idade (31,6).
Como ressalta Ivan Esperança Rocha, “uma análise literal da narrativa
bíblica dificilmente consegue resgatar todo o vigor do seu conteúdo51”. O relato da vida
de Moisés gerou e continua a gerar um sem fim de propostas interpretativas. Freud
pensou em Moisés como um egípcio, outros enfatizaram seu casamento com uma
medianita, mas o que importa, não é tanto a substância histórica por detrás da
narrativa, mas seus usos como representação. Há muitas passagens memoráveis e
51 Ivan Esperança Rocha, Práticas e Representações Judaico-Cristãs, Exercícios de Interpretação. Assis, Unesp, 2004, p. 36.
45
marcantes. Algumas delas são capitais, tanto no texto bíblico, como na tradição
posterior, seja no Judaísmo, seja no Cristianismo. O sofrimento do povo e a
compreensão de Deus dessa dor estão na raiz na história. Deus “sabia” da escravidão,
Êxodo 2,23-25:
“Depois de muito tempo, morreu o rei do Egito. E o povo de Israel gemia sob
a escravidão, pedia ajuda e seus gritos chegaram até Deus. E Deus ouviu seus
gemidos e Deus lembrou-se de sua aliança com Abraão, Isaque e Jacó. E Deus viu o
povo de Israel e Deus compreendeu sua condição”.
No original, está vayedá (“e soube”), do verbo yadá, cujo sentido é
conhecer profundamente, estar em contato íntimo52. Esta temática será recursiva, tanto
na Bíblia Hebraica, como no Cristianismo e mesmo, segundo alguns, em todo tipo de
messianismo53, até os nossos dias. Como quer que seja, o clamor do povo oprimido é
um primeiro grande tema. Em seguida, aparece o nome de Deus: “sou o que sou” (Ex.
3, 14). Logo em seguida, Deus se apresenta como “Deus de Abraão, Deus de Isaque,
Deus de Jacó” (Ex. 3,16), com a repetição de Deus a cada patriarca. Como indicam
comentadores hassídicos, essa redundância pode não ser apenas enfática, mas parece
indicar que Deus aparece para cada crente de maneira única. Não tem uma forma
física, não se assemelha a um ser humano, algo que também marca todo o relato de
Moisés. Em terceiro lugar, o profeta Moisés tem contato direto com Deus, mas precisa
de um porta-voz: é incompleto, não é um orador. Esta incompletude está em toda a
História do personagem: não chegará a conhecer a Terra Prometida. Outros aspectos
da narrativa mosaica são destacáveis. Os hebreus recalcitram e ficam a vagar por
52 Daí o uso do termo conhecer, no sentido bíblico, como manter relações sexuais, cf. Gen. 4,1. 53 Cf. Joseph Klausner, The Messianic Idea in Israel. Londres, Allen & Unwin, 1956.
46
quarenta anos no deserto. Ao final, o próprio Moisés não chega à Terra e tampouco
ganha sepultura memorável: “nenhuma pessoa conhece seu sepulcro até o dia de hoje”
(Deut. 34, 6). Morto em terra estrangeira, sem memorial, o maior profeta de Israel: “Em
Israel, nunca mais surgiu outro profeta como Moisés, que conhecia Deus face a face”
(Deut, 34, 10). Aparente paradoxo, pois como poderia o maior de todos ter sua tumba
esquecida? A última mensagem do personagem: Moisés era apenas um homem, seu
poder vinha de Deus54.
A auto-representação do filme Príncipe do Egito
As informações fornecidas pelos cineastas na sessão making of, uma
novidade dos últimos anos, revelam muitas particularidades sobre um filme. Por um
lado, são peças de marketing ou de relações públicas, e, neste aspecto, seguem uma
tradição milenar de discurso encomiástico55 e laudatório56. As peças laudatórias,
contudo, nem por isso deixam de dar indicações sobre as intenções e estratégias dos
seus autores. Constituem documentos importantes, bastante explorados, no campo da
historiografia, que não deixa de tratar de obras como o clássico Panegírico de Trajano,
composto por Plínio, o jovem57. Já os modernos making ofs ainda não têm sido tão
explorados pelos estudos históricos, talvez por certo prurido de estudar o que seria
propaganda. As indicações, contudo, são preciosas. Apresenta-se, em seguida, a
54 Cf. Erich Fromm, You Shall Be as Gods. Nova Iorque, Fawcett, 1969, p. 52 et passim. 55 Encômio é palavra grega, em+komos (koimos), banquete, derivado do verbo keimai, estar colocado, sentar-se. Já em grego designava um elogio pomposo, http://www.etimo.it/?term=encomiocf. 56 Palavra de origem latina, derivada de laus, laudatio, louvor. 57 O famoso discurso de Plínio no Senado, em 100 d.C. , começa por dizer que só falará a verdade e que não fará adulação, o que aproxima, de forma clara, a prática retórica antiga àquela de nossos dias, nos making ofs. Cf. Panegírico, 1,1: utque omnibus, quae dicentur a me, libertas, fides, veritas constet: tantumque a specie adulationis absit gratiarum actio mea, quantum abest a necessitate.
47
transcrição, traduzida ao português, do making of do filme Príncipe do Egito, seguido de
comentários específicos, de tanto em tanto.
Transcrição comentada do 'making of' do Príncipe do Egito
“É uma história atemporal... e grandiosa.
Quando ouvimos a história quando crianças, nossa compreensão não é a mesma de quando a
ouvimos depois de adultos.
Há temas e idéias espirituais no filme. Há lutas morais.
É um feito extraordinário”.
De forma programática, o filme funda-se na espiritualidade e na
moralidade, dois temas atuais. O texto bíblico não destaque tais temas, já que as
palavras espírito ou moral não aparece no relato da Bíblia Hebraica. O relato original
enfatiza, por outro lado, a luta entre opressores e escravos. O revestimento moral do
filme foi, portanto, o resultado das inquietações da nossa época.
“Dreamworks Pictures apresenta o making of d'O Príncipe do Egito.
Uma aventura épica. Um desafio incrível que levou centenas de artistas, técnicos, animadores e
músicos a trabalhar por 4 anos para trazer às telas.
Um filme que os fundadores da Dreamworks David Geffen, Steven Spielberg e Jeffrey Katzenberg e
estavam determinados a realizar.
Eu não queria que a gente fizesse um conto de fadas. Queria que escolhêssemos um tema
interessante, dramático, um épico, que incluísse todas as técnicas de animação”.
48
A menção ao estilo épico revela a inserção do filme na tradição ocidental e o
distancia do relato bíblico, que não pode ser qualificado como épico. O próprio termo,
grego, é estranho à narrativa religiosa hebraica. Épica deriva de epos, palavra, canto, e
refere-se a poemas longos em honra de grandes heróis. A caracterização da História de
Moisés como uma épica conduz o personagem bíblico para o campo dos heróis gregos.
“ Aí o Steven pensou sobre isso por alguns segundos, inclinou-se para frente e disse: Por que não
fazemos os Dez Mandamentos? Bem assim.
Depois que minha surpresa passou, eu pensei: Que idéia fabulosa!
Porque o filme é tão diferente de tudo que já havia sido feito em animação, ninguém mais ousava
participar do projeto.
É uma história incrível, que merece ser contada.
(00.02.02) O Príncipe do Egito é a história dramática de dois irmãos cujos futuros são destinados a
entrarem em choque”.
Surge nova referência à tradição ocidental, de matriz grega, ao caracteriza
o filme como um drama, um ato de peça teatral. É notável a aproximação ao gênero
dramático grego. Neste, alternam-se as falas dos personagens e as intervenções do
coro. No filme, as vezes do coro são feitas pelas canções.
“Ramsés, que tal ter seu rosto esculpido na pedra?
Um dia, sim.
Que tal agora?
Uma mentira os fez irmãos.
49
Venha, Ramsés. Vamos mostrar ao faraó seu novo irmãzinho: Moisés.
A verdade os separará para sempre.
Você nasceu de nossa mãe Yochevet. Você é nosso irmão.
O destino levou Ramsés e seu destino de um dia ser o faraó por um caminho, e Moisés e seu destino
de tornar-se um pastor e um líder por um outro caminho.
Ele tem que abandonar tudo que ele sempre conheceu, tudo que sempre achou que era – sua
identidade egípcia – e descobrir que seu destino era maior: sua missão de libertar os escravos do Egito”.
O tema da identidade, de uma única identidade, é típico de nossa época.
No texto bíblico, não se mencionada identidade. Abundam, na literatura recente, as
discussões sobre as identidades sociais, como fluidas58, em mudança constante, mas
persistem os discursos sobre a identidade única, fixa, permanente, que aparece, de
forma programática, no filme.
“Na verdade, é uma história de irmãos. Dois irmãos que se separam, e distanciam a ponto de se
tornarem completos opostos.
Estes dois homens gostam um do outro, de forma que seus destinos, suas vocações e suas
responsabilidades não se tornam menos importantes.
Eles são inimigos, mas quando irmãos tornam-se inimigos eles não deixam de ser irmãos.
O filme traz as vozes de Val Kilmer como Moisés e Ralph Fiennes como Ramsés.
Moisés!
Ramsés!
58 Cf. Social Identities, Journal for the Study of Race, Nation and Culture. A identidades sociais são tema, em particular, no âmbito do doutoramento em História Cultural da Unicamp, na Linha de Pesquisa sobre Subjetividades, cultura material e relações de gênero.
50
O elenco é um dos melhores grupos já formados para um filme de animação.
O que estes atores fizeram foi trazer uma dimensão, um aprofundamento e um significado
incríveis. Criaram camadas de conteúdo emocional para as frases mais simples.
Eles também foram capazes de fazer crenças muito sutis virem à tona.
Pare! Deixe este homem em paz!
Val Kilmer trabalhou por mais tempo no filme do que qualquer outro ator. Ele
nunca se recusava a vir ao estúdio quando pedíamos, nem que fosse para refazer
somente uma fala, só para deixar um diálogo um pouco melhor para o filme, ter um
desempenho um pouco melhor.
Você viu o que aconteceu. Acabei de matar um homem!
Esta experiência me lembrou muito o teatro, que eu estudei por muito tempo. O ritmo das falas, a
importância de cada frase. O tipo de trabalho que um ator raramente tem a chance de fazer em um filme”.
A referência explícita ao teatro e aos atores, mesmo por oposição ao filme
com atores (por oposição à animação, como no caso do Príncipe do Egito), também nos
leva à tradição ocidental, não apenas grega, como moderna, a partir de Shakespeare.
Ainda neste caso, fica clara a inserção do Príncipe do Egito nas tradições narrativas
ocidentais e seu distanciamento do texto bíblico de base.
“Eu não posso mais me esconder no deserto enquanto eles sofrem!
Pela minha palavra, assim será!
51
Ralph Fiennes é tão profissional! Ele teve tanto a acrescentar ao filme. É inacreditável.
Eu trabalhei muito em cima do que eu imaginava ser a cena. Tinha muito poucas 'dicas' visuais
ou físicas a minha volta. Eles colocaram 'storyboards' num tela de TV ou em boards. Embora tenha quer ser físico na frente do microfone, tudo é focado na voz do
ator.
Moisés!
Sua voz tem que ser um corpo físico.
Nossa mãe te soltou nas águas em uma cesta para salvar a sua vida!
Sandra Bullock interpreta Miriam.
O papel dela é o daquela que crê, daquela que se mantém na fé.
Eu tenho sido uma escrava a vida toda. E Deus nunca havia respondido as minhas preces – até
agora.
Ela ajuda seu irmão a olhar para dentro e redescobrir sua origem.
Minhas crianças, vamos agradecer a Deus pela comida abundante.
Danny Glover é Jethro, e Michelle Pfeiffer é Tzipporah, sua filha, que se casa com Moisés.
A notável voz do faraó Seti é de Patrick Stewart. Hellen Mirren é a Rainha.
Eu fui convencida a interpretar o papel quando vi o desenho daquela mulher absolutamente
lindíssima. Sempre gostei de interpretar rainhas.
Miriam, o que você pensa que está fazendo?
Jeff Goldblum é Arão, o irmão de Moisés.
Steve Martin e Martin Short interpretam os altos sacerdotes egípcios Hotep and Hoy.
52
'Deliver us' (Liberte-nos')
No filme 'O Príncipe do Egito' estreiam 6 novas músicas escritas pelo letrista ganhador de um
Oscar Stephen Schwartz e pelo compositor e também ganhador de Oscar Hans Zimmer.
Eu embarquei neste desafio emocionante imediatamente, porque você lida com tanta história, com
as emoções de tantas pessoas, e crenças, e bases da identidade das pessoas”.
Além de reforçar a idéia de identidade única e fixa, chama atenção a
ênfase nas emoções e crenças das pessoas. Isto pode relacionar-se ao papel que tais
sentimentos profundos, irracionais, imanentes, teriam nos mecanismos de identificação
única das pessoas. Uma identidade única, permanente e estável justifica-se em
estratégias psicológicas emocionais, do tipo: “sou brasileiro, não sou outra coisa” ou
“sou cruzeirense, não sou nada mais”. Esse mecanismo depende, em grande parte, da
manipulação de emoções e crenças.
“'Deliver Us' foi a primeira música que eu escrevi para o filme.
Como letrista, para mim é muito importante que o público entenda de cara o sofrimento e a lua dos hebreus e que já simpatizem com suas dificuldades, e também que o público se relacione com a história num
nível mais pessoal.
Aquilo foi um presente. Ter aquilo com o primeiro material para se trabalhar, e poder construir a visão que construímos. Ele nos deu a base essencial
para o resto do filme, e também serviu com um padrão, algo como ' Ah, entendi. Esta é a cara do filme.'
O único fio num tapete, embora suas cores sejam vivas e brilhantes, nunca pode entender seu
propósito no padrão do desenho divino
Canções tornaram-se muito importantes num filme de animação, para contar uma história e também
para dar o estilo e o tom do filme.
53
A canção 'Through Heaven's Eyes' (Com os Olhos do Céu) veio da idéia de como medir o valor de
um homem.
Você deve olhar para sua vida com os olhos do Céu.
Uma das coisas que tentamos garantir é que as canções estivessem ligadas aos acontecimentos do
filme. A canção 'Through Heaven's Eyes' retrata um longo espaço de tempo, no qual Moisés se torna parte
da cultura e casa-se com Tzipporah.
(08m50s)
Por todo o processo Steven esteve lá e suas letras vão fazendo com que a história avance. Não são
canções sem significado, ou função. Elas levam a história do Príncipe do Egito a um novo lugar”.
Explicita-se o papel direcionador das canções. À maneira do coro grego,
que explica para o espectador o sentido da trama, as músicas são carregadas de
significado e direcionamento, no Príncipe do Egito.
“TUDO QUE EU SEMPRE QUIS
Sou um soberano, príncipe do Egito, um filho da história de orgulho que é mostrada em todas as
paredes
WHEN YOU BELIEVE
Nestes tempos de medo, quando as orações são tão freqüentemente em vão...
Tivemos a idéia de criar uma canção que representasse o filme e tudo o que esperávamos dele, e
a beleza e a positividade do espírito humano.
'When you believe' (Quando você acredita) é a canção central do filme. É sobre fé e sobre
perseverança.
Milagres podem acontecer... quando você acredita
54
As estrelas da música Mariah Carey e Whitney Houston também interpretaram 'When you
believe' para o filme.
Doces perfumes de incenso... graciosas salas de alabastro... tudo que eu sempre quis... este é o meu
lar
Para pesquisar a origem desta história antiga, o diretor, produtores, animadores e membros da equipe
de arte viajaram para o Egito e para a península do Sinai.
Incrível!
Acho que a maior vantagem da nossa viagem para o Egito foi ter a chance de andar pelos mesmos
lugares onde Moisés teria andado e estar nos mesmos ambientes onde ele esteve. Eu pude sentir o que foi ter
construído um desses templos e pirâmides enormes.
São os detalhes que são tão úteis. O nome de pássaros, o som dos pássaros no Vale dos Reis. Estes
são alguns detalhes que podem aparecer nas letras.
A qualidade da luz pode ser suficiente para inspirar uma seqüência.
Uma das seqüências em que estou trabalhando mexe com hieróglifos, e imagens, e coisas
que eu nunca havia notado em fotografias. Definitivamente acrescenta qualidade à textura do filme.
Você pode incluir uma textura real.
O Príncipe do Egito tem o talento de mais de 425 animadores, artistas e técnicos da Dreamworks.
É uma família que se une.
O que me impressionou foi o profissionalismo de todos os envolvidos.
Os estilos de pintura são realistas e são empurrados para dimensões diferentes.
A persistente energia voltada à perfeição, e o questionamento, 'Será que acertamos?' É sombrio
demais, sério demais?'
55
Aquele muro é a distância entre a vida e a morte de seu filho.
O nível da arte gráfica, e a inteligência das cenas. Isso me impressionou muitíssimo.
Quando ele diz 'Meu filho', faça com que ele coloque suas mãos em Moisés, tocando-o, em seus
ombros. E Moisés se afastando, saindo da luz, se afastando do toque de seu pai, então ele desaparece na
escuridão.
Desde o começo, os diretores queriam que o Príncipe do Egito expandisse os limites estéticos da
animação. Para buscar inspiração, eles pesquisaram o ilustrador francês Gustave Doré pelo uso dramático de luz, o pintor impressionista Claude Monet pelo seu uso de cor e lugar, e o diretor de cinema David Lean, pelo
seu senso épico de cinema e escala”.
As referências à arte ocidental e ao cinema de David Lean inserem o
Príncipe do Egito no estilo narrativo conhecido pelo público ocidental. Uma vez mais, há
uma preocupação explícita com a inserção do filme numa tradição ocidental
reconhecível pelas pessoas, ainda que de forma subliminar.
“Animação é expressão criativa pura. É pura arte. Tudo que você vê ou ouve em um quadro vem da
imaginação de alguém.
Quando eu vi a qualidade do trabalho de arte com a qual os produtores estavam trabalhando, deu um escopo extraordinário. Achei magnífico, e percebi que, é
claro, em animação você pode fazer as coisas mais extraordinárias. Esta forma é capaz de contar uma
história desta forma, toda a grandiosidade e o tamanho que são necessários.
Tivemos um grupo fenomenal de artistas, e acredito que eles vieram porque tinham algo para provar
a si mesmos. O esforço que foi colocado neste filme é extremamente significante.
56
Para ajudar no design da aparência do filme, os supervisores de fundo (background) da Dreamworks
viajaram para o Vale da Morte, Califórnia.
Os produtores disseram: 'Vocês estarão pintando o filme, desenhando as cores e paisagens, e
texturas. Então, terão que saber como é. Então eles pediram que escolhêssemos um lugar, e o Vale da Morte é perfeito, porque é a coisa mais próxima ao Sinai neste
país.
É espetacular, e bonito, e amedrontador. Espaços enormes, céu imenso. E a luz é o elemento
mais poderoso lá. Você tem que viver a experiência, não pode só ver de fora. Se vai pintar uma cena, ela tem que
parecer quente na tela. Tem uma cena do Moisés andando no deserto, e ele vai morrer. Mas para
conseguir passar esta sensação na tela você tem que ter estado lá. Sentir o sol batendo no seu rosto, sentir o
suor. É uma coisa emocional, então acredito que o filme tenha que ser algo emocional também.
O design e direção de arte originais do Príncipe do Egito exigiram que os artistas da
Dreamworks criassem uma aparência igualmente inovadora para os personagens.
É um estilo novo, é muito realista. Não estamos desenhando coelhinhos ou camundongos.
Desenhamos seres humanos. Acho que todo animador coloca muito de si mesmo em sua arte. A gente fecha a
porta e interpreta as cenas antes de começar a desenhar. Aí começamos a tentar colocar as coisas no
papel.
Eu uso bastante o espelho. Tenho um espelho bem na minha frente, e uso para desenhar caras
engraçadas, mãos, ângulos difíceis, coisas assim.
Uso muitas influências de minha própria vida, quando possível. Tento ser natural, e espero que a relação de Moisés com sua mãe pareça ser assim,
também. Ela está sempre tocando-o, tentando consolá-lo, e minha mãe fazia exatamente isso, toda vez que eu
ficava chateado.
São coisas que vem da minha própria família.
57
Tudo vem de seus pensamentos. Não dá para fingir, tudo que você faz vai para a tela.
Isso foi há muito tempo atrás.
Fui às sessões de gravação e foi muito útil, pois Jeff Goldblum tem esse jeito super pessoal de se
movimentar, e seus gestos.
Meu bom príncipe, ela está exausta do dia de trabalho.
Ele pegou meus maneirismos, e coisas que eu tentava fazer, foi divertido ver, acho que ele fez um
trabalho incrível.
Animação pode ser tão real. Você se emociona com uma pessoa maravilhosamente bem animada. É incrível. Nunca tinha notado como sou
'animada', até ver na tela e pensar 'Ah, eu faço isso mesmo!'
Mostre respeito por um príncipe do Egito.
Mas estou mostrando todo o respeito que você merece. Nenhum!
Michelle Pfeiffer. Eu fiquei muito surpreso com a precisão do seu trabalho. Ela se preparou e pronto: lá
estava a cena. Tentei captar o mesmo sentimento para a personagem. Minha mulher foi uma grande inspiração
para a Tzipporah”.
As mulheres do filme apresentam muitas características que são aquelas
atribuídas a elas hoje. No filme, aparecem mulheres de tope, com barriga e pernas de
fora, como se fossem adolescentes de nossos dias. A referência à inspiração em
mulheres concretas da nossa época revela a estratégia geral do filme de aproximar a
narrativa da nossa realidade. Tenta passar a idéia de que poderíamos ser nós mesmos,
se pudéssemos ser transportados para o passado, por um túnel do tempo, em
procedimento oposto àquele da História como inventário das diferenças59.
59 Como no clássico de Paul Veyne, L’inventaire des differences. Paris, Seuil, 1976.
58
“Não lhes ensinei nada?
Não deve ser tão duro consigo mesmo, majestade. Fez o que pode para criar filhos dignos.
No começo não tinha certeza se o cara gordo deveria ser o Steve, mas quando ouvi a voz de Steve
Martin, pensei... eles combinam.
Sim, sua grandeza, não é vossa culpa que seus filhos não aprenderam nada.
E com Martin Short funcionou muito bem.
Ah, minha coisa nova!
O Príncipe do Egito trouxe o Egito antigo de volta à vida ao expandir os limites de imagens geradas
por computador, e desenvolvendo ainda mais a tecnologia.
Usando um software revolucionário chamado de 'Ferramenta de Exposição', pela primeira vez os
animadores podem colocar desenhos de 2 dimensões feitos à mão em um mundo de 3 dimensões gerado no computador. Os personagens podem ser movimentar nesse mundo, e a câmera pode seguí-los, trazendo a
história para a tela em uma apresentação visual totalmente nova.
Com a Ferramenta de exposição a câmera é livre para movimentar-se dentro desse ambiente,
exatamente como as câmeras de Steven Spielberg se movimentam num set real.
Normalmente o fundo está aqui, e quando você muda a câmera, você vê os cantos do fundo, e a
cena não fica mais tão boa. O que a Ferramenta de Exposição faz é torcer o fundo, para que ele fique com
uma perspectiva aproximada durante o processo.
Uma das cenas onde a ferramenta é usada é a corrida de carruagens. Ramsés estã na carruagem, e a
câmera se afasta e o segue até o topo da colina.
Em seqüências de ação, conseguimos tratar a câmera de uma maneira rápida, editorial, de maneira a
seguir a ação e reposicionar-se o tempo todo.
59
Sem entrar em detalhes técnicos: uma cena que costumava demorar 9 meses para ser feita, agora
pode ser feita em 3 dias.
Dreamworks contou com o talento de artistas de efeitos especiais para mostrar uma série de pragas
que devastaram o Egito.
As cenas das pragas eram enormes e tinha muitos detalhes. A mudança do Nilo em sangue. O
enxame de gafanhotos. As saraivas. Cada um deles era muito complexo, e é por isso que decidimos usar
animação de computador nessas seqüências. A cena dos gafanhotos, por exemplo, tinha milhões de
gafanhotos. Não conheço muito animadores que podem desenhar um 7 milhões de gafanhotos.
A praga das pestes foi um desafio para o computador. Tínhamos insetos que andavam em
superfícies, interagiam com itens na superfície. Eles saíam no pão, não podiam entrar nos cálices, tinham que
destruir o pão enquanto saiam. Isso foi realmente um grande avanço tecnológico.
A praga final é a morte do primeiro filho, o que eles chamam de praga do Anjo da Morte. Ela levava a
vida dos primeiros filhos no Egito. É concebida como uma forma muito orgânica, vaporosa, pensante. Nosso
desafio foi fazer com que ela não parecesse ter sido criada em computador.
Há uma cena que eu gosto muito. Há um fundo pintado, e uma outra camada pintada, à meia distância, e entre as duas há a imagem do anjo da
morte, que foi gerada por computador. Os estilos combinam tão bem que fica perfeito.
A sarça ardente me foi descrita como o momento vital do filme. A primeira representação por
efeitos da presença de Deus. Além de ser visualmente espetacular, queríamos tocar o público em um nível
pessoal.
A seqüência do êxodo, quando Moises lidera os hebreus na saída do Egito aumenta inda mais a
característica épica do filme.
60
Conforme desenvolvíamos a história percebemos que tínhamos que fazer grupos completos
de famílias, atravessando o Mar Vermelho com todos os seus pertences.
Não havia software ou alguém que já tivesse feito isso.
Cada um dos personagens foi animado separadamente.
As pessoas nos perguntam quais são tradicionais e quais são gerados por computador, e isso
é exatamente o que queremos escutar.
Uma dos maiores desafios para os animadores de efeitos por a divisão do Mar Vermelho.
Animar um milagre é incrível. Com que freqüência você tem a chance de animar um ato divino?
A divisão do mar vermelho é um grande desafio, porque é um ponto vital na história. Se não
tivéssemos os efeitos apropriados, teríamos desapontado a historia.
A divisão tinha que ser enorme, amedrontadora, mágica, espetacular.
Criamos uma pintura e trouxemos o público para este ambiente, imerso na experiência que nunca poderíamos filmar, e que nunca tinha sido vista antes.
Efeitos visuais em um filme de animação ocupam o computador da mesma forma, e são tão
criativos quanto em filmes tradicionais. A seqüência do Mar Vermelho usou 3.000 horas de tempo de
digitalização, e quase o dobro do tempo de digitalização total do Titanic.
O Príncipe do Egito usou a tecnologia para dar poder ao artista de mostrar sua visão criativa, de
contar uma história sem tirar o publico da história.
É totalmente inovador, mudando o que as pessoas conhecem como animação. As pessoas vão
mudar de opinião.
61
É espetacular. Diferente de qualquer filme de animação que você tenha visto.
A coisa mais especial a respeito do filme é a profundidade. Tem tantas camadas de significado, de
desempenho, e arte.
O milagre verdade do Príncipe do Egito é quantos grandes talentos há lá fora, e o quanto eles
queria participar. O quanto as pessoas se dispuseram a arriscar.
A decisão de Jeffrey, Steven e David de fazer um filme que eles tinham que fazer ao invés de fazer um
filme mais vendável foi a melhor decisão possível. O foco não é fabricar brinquedos, não é fazer o que os outros
querem, e sim fazer um filme que eles de fato acreditam ser um filme de qualidade”.
Ao final do making of, usa-se o argumento tradicional, na melhor tradição
retórica dos encômios: não se busca o aplauso, mas a o correto. É uma maneira e
desculpar-se pelo óbvio (“um filme vendável”), por meio de uma captatio
benevolentiae60 (“fazer um filme que tinham que fazer”).
“Esta é uma das poucas vezes que eu terminei meu trabalho e pensei que estava feliz em ser
uma parte pequena nesta grande experiência.
É uma mensagem bonita, e um filme poderoso”
As imagens do Príncipe do Egito
O filme constitui um documento em movimento e não pode ser sentido,
sem sua integridade, apenas a partir de um conjunto de imagens paradas. Os usos e
manipulações imagéticas, a partir de inspiradores como Doré e Monet, admirem toda
60 Expressão da retórica, “captação da benevolência”, usada para se referir a conseguir a simpatia do público.
62
sua significação apenas no conjunto da animação. Esta se compõe de todo um conjunto
de elementos: as imagens em movimento, as canções e músicas, as falas dos
personagens, em sua oralidade expressiva, resultado da dublagem de atores
famosos61. Do ponto de vista de uma análise das imagens, contudo, é possível tecer
considerações a partir de uma seqüência que procure captar tanto a narrativa, como um
todo, como as principais características formais. Os sentimentos gerados por um filme
podem ser a identidade, a incredulidade, a negação, o aprendizado ou a catarse, como
participação afetiva62. O filme é, portanto, uma empresa epistemológica, como propõe
Ismail Xavier63, janela para o imaginário social64. A partir de um número limitado de
imagens (114 figuras), é possível comentar algumas das mais relevantes características
dessa construção narrativa e imagética.
Figura 1 – Carrasco chicoteando escravos.
61 Por este motivo, esta tese de doutoramento compõe-se de duas partes: uma cópia em papel, que se resume, necessariamente, às duas dimensões e um DVD, que apresenta documentação digital. 62 Cf. E. Morin, O Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa, Moraes editores, 1970. 63 Cf. I. Xavier, A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro, Graal/Embrafilme, 1983. 64 Cf. Amaury César Moraes, A escola vista pelo cinema: uma proposta de pesquisa, A Cultura da Mídia na Escola, Ensaios sobre cinema e educação, org. Maria da Graça Jacintho Setton, São Paulo, Annablume, 2008, 53-65, especialmente, p.56.
63
Figura 2 – Carrasco gritando com os escravos.
Figura 3 – Miriam e Aarão fogem dos soldados.
64
Figura 4 – Mãe de Moisés se escondendo dos soldados.
Figura 5 – Moisés ao se colocado no cesto.
65
Figura 6 – Joquebebe canta para seu bebê antes de deixá-lo no rio.
Figura 7 – Mãe de Moisés chorando ao deixar seu filho.
66
Figura 8 – Miriam acompanha o trajeto de seu irmão pelo rio.
Figura 9 – Rainha é surpreendida com a chegada do cesto.
67
Figura 10 – Rainha se assusta ao ver um bebê dentro do cesto.
Figura 11 – Ramsés admira Moisés sendo carregado pela rainha.
68
Figura 12 – Miriam fica surpresa ao ver quem acolheu seu irmão.
Figura 13 – Moisés e Ramsés apostam corrida pela cidade.
69
Figura 14 – Ramsés com dificuldade de controlar sua biga.
Figura 15 – Ramsés se esforça para vencer Moisés.
70
Figura 16 – Ramsés e Moisés.
Figura 17 – Hotep e Huy atônitos com a avalanche de areia causada pelos garotos.
71
Figura 18 – Avalanche de areia atinge os sacerdotes.
Figura 19 – Garotos destroem acidentalmente Esfinge enquanto se divertem.
72
Figura 20 – Faraó repreende Moisés e Ramsés.
Figura 21 – Moisés e Ramsés escutam ao Faraó.
73
Figura 22 – Faraó furioso com a atitude de Ramsés.
Figura 23 – Moisés observando Ramsés se retirar da sala.
74
Figura 24 – Faraó explica a situação para Moisés.
Figura 25 – Moisés imitando o Faraó.
75
Figura 26 – Ramsés e Moisés chegam ao banquete recepcionados pela Rainha.
Figura 27 – Rainha conta a Ramsés que ele acaba de ser nomeado Príncipe Regente.
76
Figura 28 – Prisioneira é apresentada ao público.
Figura 29 – Ramsés e Moisés admiram a prisioneira.
77
Figura 30 – Prisioneira sendo levada aos aposentos de Moisés.
Figura 31 – Guardas são surpreendidos por Moisés enquanto prisioneira foge.
78
Figura 32 – Miriam reconhece seu irmão Moisés.
Figura 33 – Aarão defende sua irmã.
79
Figura 34 – Miriam tenta se explicar perante o príncipe.
Figura 35 – Moisés ameaça Miriam.
80
Figura 36 – Miriam chora pelo tratamento de Moisés.
Figura 37 – Painel de um dos cômodos do palácio.
81
Figura 38 – Moisés busca explicações com a Rainha.
Figura 39 – Rainha diz a Moisés que ele é seu filho.
82
Figura 40 – Moisés assustado com o sofrimento dos escravos.
Figura 41 – Furioso, carrasco questiona quem cometeu o crime.
83
Figura 42 – Irmãos e escravos atônitos com a atitude de Moisés.
Figura 43 – Irmãos e escravos atônitos com a atitude de Moisés.
84
Figura 44 – Moisés sendo resgatado do poço.
Figura 45 – Moisés é recebido por Jetro, Alto Sacerdote de Midiã.
85
Figura 46 – Filha do Sacerdote observa Moisés trabalhando.
Figura 47 – Moisés admira paisagem enquanto descansa.
86
Figura 48 – Filha do sacerdote e Moisés dançam durante cerimônia.
Figura 49 – Moisés durante cerimônia de casamento.
87
Figura 50 – Moisés se casa com filha de Sacerdote.
Figura 51 – Moisés questiona a voz que o chama.
88
Figura 52 – Moisés ouve as orientações.
Figura 53 – Moisés tenta explicar sua missão à esposa.
89
Figura 54 – Moisés e Séfora dirigem-se ao encontro de Ramsés.
Figura 55 – Ramsés atônito ao rever Moisés.
90
Figura 56 – Templo de Ramsés sendo destruído, após o reencontro com Moisés.
Figura 57 – Templo sendo destruído.
91
Figura 58 – Detalhes egípcios no templo.
Figura 59 – Ramsés se assusta com o discurso de Moisés.
92
Figura 60 – Miriam consola Moises.
Figura 61 – Moisés é instruído a usar seu cajado.
93
Figura 62 – Moisés transforma a água em sangue.
Figura 63 – O sangue se espalhando pelo rio.
94
Figura 64 – Soldado se assusta com sangue na água.
Figura 65 – Cajado de Moisés transformando a água em sangue.
95
Figura 66 – Toda a água é transformada em sangue.
Figura 67 – Praga das rãs.
96
Figura 68 – Praga dos insetos.
Figura 69 – Praga dos insetos.
97
Figura 70 – Ramsés critica povo hebreu.
Figura 71 – Praga das rãs
98
Figura 72 – Morte dos animais.
Figura 73 – Chuva de meteoros.
99
Figura 74 – Chuva de meteoros.
Figura 75 – Praga dos gafanhotos.
100
Figura 76 – Praga dos gafanhotos.
Figura 77 – Praga da sarna.
101
Figura 78 – Praga da sarna.
Figura 79 – Moisés perplexo com as pragas.
102
Figura 80 – Ramsés furioso com as pragas que atingiam o Egito.
Figura 81 – Estátua fragmentando-se.
103
Figura 82 – Praga da escuridão.
Figura 83 – Ramsés culpa Moisés pelas pragas.
104
Figura 84 – Moisés alerta Ramsés sobre piores pragas.
Figura 85 – Portas marcadas com sangue.
105
Figura 86 – Casas marcadas com sangue nas portas.
Figura 87 – Casas marcadas com sangue nas portas.
106
Figura 88 – A chegada de Deus.
Figura 89 – Avanço da praga do primogênito.
107
Figura 90 – Avanço da praga do primogênito.
Figura 91 – Filho de Ramsés morte pela praga do primogênito.
108
Figura 92 – Séfora canta após Ramsés ter libertado os hebreus.
Figura 93 – Povo hebreu libertado.
109
Figura 94 – Hebreu deixando o Egito.
Figura 95 – Moisés lidera seu povo libertado.
110
Figura 96 – Hebreus caminham para sua terra natal.
Figura 97 – Hebreus assustados com a aproximação dos soldados egípcios.
111
Figura 98 – Deus ataca os soldados.
Figura 99 – Fogo impede o avanço dos egípcios.
112
Figura 100 – Moisés lidera a salvação dos hebreus.
Figura 101 – As águas do mar se abrem.
113
Figura 102 – O Mar Vermelho se abre.
Figura 103 – Moisés abre caminho para os hebreus.
114
Figura 104 – Moisés abre as águas do mar.
Figura 105 – Hebreus atravessam o Mar Vermelho.
115
Figura 106 – Soldado surpreso com a abertura das águas.
Figura 107 – Egípcios com dificuldade em perseguir os hebreus.
116
Figura 108 – Água do Mar Vermelho se fechando sob os egípcios.
Figura 109 – Felicidade de Miriam após concluir travessia do mar.
117
Figura 110 – Povo hebreu salvo dos egípcios.
Figura 111 – Séfora contente com a liberdade dos hebreus.
118
Figura 112 – Moisés com os dez mandamentos.
Figura 113 –Moisés apresentando os Dez Mandamentos ao seu povo.
119
Figura 114 – Moises frente ao seu povo libertado.
As duas figuras iniciais mostram algumas das estratégias usadas pelos
cineastas para enfatizar a brutalidade da escravidão no Egito: tomadas de baixo para
cima e feições violentas nos personagens malvados, justamente os egípcios. Estas
caras contrastam com os hebreus Míriam e Aarão, apresentados com rostos simpáticos
e inspiradores de compaixão e simpatia, bem caracterizados pelo público como
“bonitinhos65” (figura 3). A acolhida de Moisés pela rainha contrasta as diferenças entre
os dois bebês, sendo o menor, como é de se esperar, digno de maior simpatia do que o
mais velho, que aparece querer chamar a atenção para si (figura 11).
As diferenças físicas entre os irmãos Moisés e Ramsés são enfatizadas
por imagens que retratam o futuro faraó maior e mais forte. Ainda que Moisés tenha
também um físico musculoso, Ramsés parece ser inspirado nos personagens violentos
de Hollywood (figuras 13-16). Os sacerdotes são apresentados com seus semblantes
sérios, bravos, que intimidam e traem sua maldade (figura 18). Como nos adverte
65 Tradução do inglês cute; cf. http://www.dvdtalk.com/reviews/108/prince-of-egypt-the/.
120
Joseph Campbell66, bons e maus se apresentam com clareza para o público. O mesmo
efeito transparece na arrogância e prepotência do faraó (figura 22), em seu descontrole,
retratado de baixo para cima. A rainha, antes apresentada de forma simpática, aparece
como cheia de intrigas, com feições também ameaçadoras (figura 27). Já a prisioneira é
apresentada com um tope, de barriga de fora, com adornos nas orelhas e nos braços,
em uma representação bem ao gosto do erotismo da nossa época. Atrai, de imediato, a
simpatia do público, atraído por muitos seus atributos (figura 28). Os olhares de
Ramsés e Moisés traem seu encanto67.
A descoberta da identidade hebraica de Moisés culmina com a
apresentação de Míriam em prantos, imagem que induz à simpatia imediata do público
(figura 36). Moisés se revolta com a condição dos escravos (figuras 42-43). Em
seguida, começa a transformação do herói, bem no esquema proposto por Campbell.
Retirado do poço, já é outro, mais frágil (figura 44). Adereçada e atraente, a filha do
sacerdote é, de novo, apresentada como modelo feminino da nossa época (figura 46). A
sedução da moça acentua-se pela dança, por uma movimentação em tudo excitante
(figura 48). O casamento coroa o envolvimento de Moisés (figuras 49-50), enquanto a
noiva aparece, ainda uma vez, como modelo de beleza e elegância.
Deus é apresentado como voz e claridade, algo que pode ser relacionado
à noção original semítica68, mas que se apropria muito bem, para uma animação
(figuras 51-52; 88-90;98). Séfora reluta, mas segue o marido (figuras 53-54). Os
milagres de Moisés apresentam o novo herói, transformado, como propõe Campbell, de
forma profunda: é, agora, introspectivo (figura 61; 73;91), assemelha-se a Jesus (figuras
66 Cf. http://www.pbs.org/moyers/faithandreason/perspectives1.html. 67 Trata-se do chamado “olhar masculino”, male gaze; cf. http://www.ltcconline.net/lukas/gender/pages/gaze.htm. 68 Cf. http://www.bible-history.com/isbe/S/SEMITES,+SEMITIC+RELIGION/.
121
62; 66;91). As pragas aparecem em toda sua violência (a partir da figura 62). Séfora
continua belíssima, encantadora, com sua voz inspiradora (fig.92).
O povo hebreu libertado é apresentado minúsculo, ante os monumentos
egípcios imponentes, já destroçados, entretanto (figura 94). Moisés volta a sorrir (figura
95), mas as paisagens continuam a reforçar a pequenez do povo em fuga (figura 96).
Moisés é associado a Deus, apresentado, de novo, na forma de luz, agora como fogo
(figura 100). A abertura da água do mar recria, ao contrário, a grandeza da paisagem
egípcia, que antes oprimia o povo, no início da animação, e que agora permite sua
libertação (a partir da figura 101). Os egípcios são, uma vez mais, apresentados bravos
e malvados (figuras 106-7). O final apresenta o herói Moisés no topo de uma montanha,
mas a narrativa não chega aos mandamentos e aos desafios que se seguem, segundo
o relato bíblico. O filme conclui-se, segundo os ensinamentos de Campbell, com a
vitória do herói.
122
CAPÍTULO 3
O PRÍNCIPE DO EGITO NA SALA DE AULA
123
A memória é o resultado de um trabalho de organização e de seleção do que importante para o
sentimento de unidade, de continuidade, e de coerência – isto é, de identidade. E porque a memória é mutante,
é possível falar de uma história das memórias de pessoas ou grupos, passível de ser estudada por meio
de entrevistas.
Verena Alberti, Histórias dentro da História, Fontes Históricas, org. Carla Bassanezi Pinsky, São
Paulo, Contexto, 2005, p. 167.
124
As escolas participantes da pesquisa.
Para a pesquisa apresentada nesta pesquisa de doutorado foi aplicado um
questionário, realizado com alunos de três escolas: Escola Municipal Francisco
Magalhães Gomes, Colégio Iavne e Colégio Santo Américo.
A Escola Municipal Francisco Magalhães Gomes é uma instituição de ensino
que atende 1150 alunos de três a quinze anos, localizada em Belo Horizonte, Minas
Gerais. Das 44 turmas mistas da escola, no ano letivo de 2006, quatro estavam no atual
sexto ano, com um total de cento e oito alunos (52 meninos e 56 meninas). Segundo as
orientações do regimento interno é dever da escola garantir à formação global e
continuada do ser humano, considerando as dimensões crítica, social, política, ética,
ambiental, estética e cognitiva. Levar as crianças e adolescentes a conhecer, agir, e
transformarem a realidade social. Para o desenvolvimento desses saberes a escola se
compromete a:
• Garantir meios para a permanência de aluno no espaço escolar,
combatendo toda forma de exclusão;
• Fortalecer as instâncias de participação democrática;
• Oferecer ensino de qualidade e trabalhar junto com a família,
sociedade e o governo, em busca do melhor desenvolvimento de
todos os alunos e alunas;
• Buscar a igualdade de direitos sem perder de vista a diversidade
social e cultural, as questões de gênero, étnicas e religiosas.
125
A Escola Municipal Francisco Magalhães Gomes tem, em sua grade
curricular, três aulas semanais de História, não adotou livro didático em 200769 e em
seu planejamento os conteúdos agrupados forma agrupados em projetos temáticos,
integrando diferentes disciplinas como tropas e tropeiros, cultura popular, os primeiros
habitantes do Brasil, que foram desenvolvidos paralelamente com os professores de
português, artes, matemática, geografia e ciências. O tema Egito foi integrado ao
planejamento a partir de uma solicitação feita junto à diretoria da escola e do
departamento de História e foi analisado a partir do filme O príncipe do Egito e de aulas
expositivas.
A segunda escola, o Colégio Iavne, desde o início tem como objetivo
proporcionar uma educação religiosa e secular, nos moldes dos ensinamentos da Tora
(a Bíblia Hebraica), segundo as normas do Talmud70 e de seus decodificadores, com o
objetivo de formar bons cidadãos e bons judeus. As diretrizes da escola baseiam-se na
certeza de que a preservação da identidade judaica71 só se mantém pela prática da
69 Em especial, no ano de 2007, os professores das disciplinas dos grupos de alunos da série em que o questionário
foi aplicado, organizaram eixos temáticos integrando conteúdos de geografia, arte, português, ciências, história e
matemática. A principal razão da integração destas disciplinas ocorreu em função de readequação da proposta
curricular das escolas que não podiam contar com o livro didático na sala de aula. O Projeto Nacional do Livro
Didático (PNLD), que atende os alunos das redes municipal e estadual de todo o nosso país e que efetua compra
livros a cada quatro anos, em geral, não consegue atender a quarta turma que utiliza o material. Em geral, este
material não se encontra em condições de uso, o número de livros é menor que o número de alunos e muitos deles
foram desviados nos anos anteriores em que foram utilizados, ressaltando aqui que o material foi distribuído para a
turma da quinta série de 2003 e, portanto, esta seria a quarta turma a utilizar o mesmo livro didático, que possuía 30
livros, para um total de 120 alunos. Assim os professores da Escola Municipal Francisco Magalhães utilizaram
diversos projetos durante o ano letivo para suprir a falta do material didático. A escola foi convidada a participar do
projeto a partir de uma carta dirigida à escola, em nome do programa de pós-graduação da Unicamp. A direção e
corpo docente da escola aceitou o desafio da trabalhar o tema Egito, que não estava previsto no ano letivo de 2007,
a partir da abordagem dos temas presentes no filme.
70 Cf. http://www.judaismovirtual.com/1_general/talmud.php. 71 Entendida como identidade no singular. Para uma visão sobre a diversidade de judaísmo, cf. CHEVITARESE, A. L. ; Cornelli, G. . Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. Ensaio sobre Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo. São Paulo: Annablume, 2007; Paulo Nogueira, I Encontro do GT Nacional de História das Religiões e
126
vivência intensa dos valores religiosos. A escola foi fundada em 1946, na rua Bela
Cintra, em São Paulo, oferecendo inicialmente o curso de judaísmo complementar ao
currículo escolar brasileiro. Atualmente a escola funciona na Rua Padre João Manoel e
atende alunos da educação infantil, ensino fundamental e médio, com os alunos
agrupados em duas classes (turma masculina e turma feminina). A escola, no ano letivo
de 2007, possuía duas turmas de sexto ano do ensino fundamental, uma com 14
meninas e a segunda com 17 meninos. A grade escolar inclui três aulas de História, que
a partir do ano de 2003, passaram a ser ministradas por um moré (professor) para os
meninos e uma morá (professora) para as meninas. O currículo da escola oferece ainda
as disciplinas de hebraico e Torá em hebraico para a análise de temas religiosos, como
“O monoteísmo, êxodo do Egito e conquista de Canaã”. Os temas de história são
estudados em livros de apoio didático e apostilas organizadas pelos professores das
áreas religiosa e laica.
As disciplinas relacionadas á religiosidade judaica estão agrupadas em três
disciplinas. A primeira, História Judaica, aborda aspectos geográficos do Estado de
Israel, sua localização, os patriarcas, a escravidão no Egito, o Êxodo do Egito, a
geração do deserto, a conquista de Knaan até Yehosua. A segunda, Cultura Judaica,
tem como temas principais, a compreensão do texto da Torá, o conhecimento das
histórias dos patriarcas, a ligação entre a Torá e os dias atuais, o fortalecimento da fé
em D’us72 por meio do estudo da Torá, a partir do reconhecimento da escrita de
Rashi73. A terceira disciplina Ivrit, busca a ampliação do vocabulário e da estrutura da
Religiosidades - ANPUH.Como se define identidade judaica na antiguidade? Crítica a pressupostos da historiografia e da exegese bíblica.. 2007. (Participações em eventos/Congresso). 72 Utilizamos aqui a grade curricular do colégio Iavne disponibilizada no site da escola. 73 Rabino medieval, que estudou a Bíblia Hebraica e organizou comentários o Talmud.
127
língua hebraica incentivando a conversação, a escrita e os componentes da
conversação, como verbos, substantivos e adjetivos e ainda as festas religiosas
judaicas, como, Rosh Hashanah — O Ano Novo Judaico, Yom Kippur — Dia do Perdão,
Sucot, um festival que dura 7 dias, também conhecido como a Festa dos Tabernáculos,
Chanucá — Festival das Luzes, Chanucá — Festival das Luzes , Pessach — Páscoa.
A terceira escola, o Colégio Santo Américo foi fundado a partir de uma
pequena comunidade dos beneditinos húngaros, que chegou ao Brasil a partir de fins
do século XIX, especialmente, a que se inicia a partir de 1920. Inicialmente o grupo de
beneditinos foi acolhido no tradicional Mosteiro de São Bento, localizado na região
central de São Paulo ali permaneceram até 1938.
A pequena comunidade de beneditinos húngaros cresceu e ampliou suas
atividades, voltando-se para as ações sociais e, sobretudo, à educação de jovens,
estimulados pelos padres-professores. A comunidade transferiu-se em 1951, para um
prédio localizado no bairro da Santa Cecília e nessa nova habitação instalaram o
Mosteiro e fundaram um Colégio, cujo nome foi uma homenagem ao príncipe húngaro
Santo Américo. A partir dos anos 1960 iniciaram-se as novas obras da nova sede do
Mosteiro, no bairro do Morumbi, as quais se encerraram somente em 1978, com a
conclusão da Igreja São Bento do Morumbi.
Desde seu início, o Colégio Santo Américo desenvolveu uma linha
pedagógica preocupada em proporcionar aos alunos uma formação humana integral,
tendo como binômio escola-família. O Colégio partia da referência familiar original e,
como seu prolongamento, procurava desenvolver, de forma equilibrada, tanto as
potencialidades intelectuais como os valores religiosos e morais dos seus alunos.
128
Para alcançar esse objetivo central direcionado à formação intelectual,
espiritual, esportiva, cultural e social, desde o início, além das disciplinas do currículo
comum da grade escolar, duas aulas semanais de religião. Nelas, aprende-se Moral,
História Sacra, Liturgia e Sociologia Cristã. Portanto, incorporando o ensino religioso tal
como as outras disciplinas, de acordo com a faixa etária dos alunos.
Desde o ano de 2005, o Colégio Santo Américo desenvolve anualmente o
Projeto Bentinho, que teve início em 2005, na Educação Infantil e no Ensino
Fundamental 1, com o objetivo de consolidar nos alunos valores cristãos e princípios
humanistas que promovam sua formação integral. Em 2006, esta iniciativa estendeu-se
aos alunos do Ensino Fundamental 2, com o nome Projeto de Valores.
Abaixo relacionamos os valores74 abordados anualmente e sua relação com
a vida beneditina e cristã, para que os senhores pais nos auxiliem nesse trabalho.
• JANEIRO: PACIÊNCIA
“Com efeito, diz o Apóstolo: ‘Você não sabe que a paciência de Deus o
conduz à penitência? (Rm 2,4).” Regra de São Bento, Prólogo,
versículo 37
• FEVEREIRO: ACOLHIDA
“Todos os hóspedes que chegarem ao mosteiro sejam recebidos como
a Cristo, porque Ele mesmo vai dizer:”Eu fui hóspede e me recebeste.”
Jesus Cristo (Mt 25, 35) e RSB, 53,1
74 O Colégio Santo Américo enviou para os pais no dia 4 de abril de 2008, uma lista com os valores trabalhados durante os meses do ano, organizados pelo departamento Ético-Religioso, sob o coordenação da Professora Regina Célia Tocci Di Giuseppe
129
• MARÇO: FRATERNIDADE
“Ame o próximo como a si mesmo” Jesus Cristo (Mt 22, 37-39)
• ABRIL: RESPEITO/TOLERÂNCIA
“Faça aos outros o que você gostaria que os outros fizessem a você.”
Jesus Cristo ( Lc 6, 31)
• MAIO: OBEDIÊNCIA
“O caminho da obediência leva a Deus.” RSB 71, 2
“Faça-se em mim segundo a sua vontade.” Maria de Nazaré (Lc 1, 38)
• JUNHO: AMIZADE
“Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus
amigos.” Jesus Cristo (Jo 15,13)
• JULHO: VERDADE
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” Jesus Cristo (Jo 8,
32)
• AGOSTO: RESPONSABILIDADE
“Ide então, fazei de todos os povos discípulos meus.” Jesus Cristo (Mt
28, 19)
• SETEMBRO: AMOR
“Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.”
Jesus Cristo (Mt 22, 37)
• OUTUBRO: SOLIDARIEDADE
“Eu estava com fome e me deste de comer, tive frio e me vestiste...”
Jesus Cristo (Mt 25, 35)
130
• NOVEMBRO: PAZ
“Procura a Paz e segue-a.” RSB, Prólogo, 17
• DEZEMBRO: BONDADE
“Cuide com todo empenho dos enfermos, das crianças, dos hóspedes
e dos pobres, sabendo com absoluta certeza que deverá prestar
contas no dia do juízo por todos esses.” RSB 31,9
Análise dos dados pesquisados nas escolas.
O tema da esfinge é milenar, das mais profundas tradições egípcias. O nome
é grego, sphinx, derivado do verbo sphingein, “estrangular”, “apertar”, aparentado ao
nosso esfincter75 e se refere mais às associados da mitologia grega do que egípcia. Na
tradição posterior grega, mais conhecida, a esfinge é uma criatura com corpo alado de
leão e cabeça de mulher76, enquanto os egípcios o tinham como homem com corpo de
leão. A esfinge egípcia associava-se ao horizonte, como o deus Harmakhet, Hórus no
Horizonte, e, portanto, um potente símbolo religioso de completude e proteção77. O
filme apresenta a esfinge com imagens que remetem à sua imagem no Ocidente, como
algo ameaçador78. As cenas do Príncipe do Egito que retratam a esfinge são muitas e
nelas toda a simbologia posterior à civilização egípcia é ressaltada, num exemplo de
inversão tão comum, quando símbolos religiosos positivos são tomados como malignos.
75 Este termo médico designa um anel que se fecha e impede a saída indesejada da urina. 76 Conhecida pelo enigma apresentado e resolvido por Édipo: “qual criatura anda com quatro pernas de manhã, duas ao meio-dia e três ao por-do-sol?”. A resposta correta: o homem. Consulte-se o clássico estudo de H.A. van der Sterren, The King Oedipus of Sophocles, The International Journal of Psychoanalisis, 33, 1952, 343-350. 77 Cf. E.A. Wallis Budge, The Gods of the Egyptians, Nova Iorque, Dover, 1969. 78 J. Vercoutter, Em busca do Egito esquecido, São Paulo, Objetiva, 2002, p. 42 et passim.
131
Isto ocorre, em particular, nas décadas recentes, no uso dado pela mídia a
personagens históricos ou lendários79.
As respostas das meninas e dos meninos sobre o papel da Esfinge no
início do filme mostram preocupações comuns, mas com ênfases diferenciadas. Em
ambos os casos, a proteção encontra-se com a grande maioria das percepções, mas as
garotas enfatizam um pouco mais esse aspecto (cerca de 10% mais importante para
elas do que para eles). A proteção tem sido associada, em termos históricos, à mulher e
isso não nos deve, portanto, surpreender. A diferença maior está na ênfase dada à
brincadeira, pois as moças enfatizam esse aspecto quase o dobro do que os garotos
(5,61% versus 3,85%). Estas respostas revertem a expectativa de que os meninos são
mais brincalhões do que as garotas.
Tabela 1
Qual o papel da Esfinge que aparece no início do fi lme? (meninas)
proteger 68 63,55%
recepcionar 19 17,76%
brincar 06 5,61%
assustar 06 5,61%
acolher 06 5,61%
não respondeu 02 1,87%
79 Como no caso de Drácula, cf. Denise Noe, From moralist to seducer: how fiction inverted the meaning of the real Dracula bloodlust, Men’s News Daily, 10/08/2006.
132
Gráfico 1
Qual o papel da Esfinge que aparece no início do fi lme? (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70
não respondeu
acolher
assustar
brincar
recepcionar
proteger
nº de alunos
Tabela 2
Qual o papel da Esfinge que aparece no início do fi lme? (meninos)
proteger 78 60,00%
recepcionar 28 21,54%
brincar 05 3,85%
assustar 08 6,15%
acolher 07 5,38%
não respondeu 04 3,08%
133
Gráfico 2
Qual o papel da Esfinge que aparece no início do fi lme? (meninos)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80
não respondeu
acolher
assustar
brincar
recepcionar
proteger
nº de alunos
Figura 1 – Garotos destroem acidentalmente Esfinge enquanto se divertem.
134
Uma ressalva importante merece ser feita, inicialmente, em relação a essa
questão, pois todos os meninos e meninas do Colégio Iavne, responderam Canaã. Os
alunos do Colégio Iavne utilizam uma apostila organizada pelo moré Gabriel Steinberg e
ela morá Ilana Iglicky, com a supervisão do moré Reuven Faingold, a partir de uma
seleção de textos intitulados “Monoteísmo, Êxodo do Egito e Conquista de Canaã”. Um
de seus textos merece destaque pela forma como o tema é trabalhado com os alunos
desta série, além de outros recursos como mapas e imagens e atividades de leitura.
A TERRA DE CANÃA (ERETZ KNAAN)
O ponto de partida para o estudo da História do povo judeu é uma estreita faixa de terra que se
estende entre o mar Mediterrâneo e o deserto da Síria e da Arábia. Ela serviu, nos tempos antigos, como ligação natural entre as terras da Mesopotâmia (banhadas pelos
rios Tigre e Eufrates) e o Egito (banhado pelo rio Nilo).
Toda esta área recebeu o nome de Crescente Fértil devido à forma de meia lua que apresenta quando vista no mapa. A área estreita entre o Mediterrâneo e o rio Jordão era conhecida na antiguidade pelo nome de
Canaã (Eretz Knaan).
Figura 2 – Faraó repreende Moisés e Ramsés.
135
(...) A importância de Canaã , era o fato de ser ela a ligação entre a África, Ásia e a Europa. Ela é a
ponte cobiçada para o trânsito de mercadores e exércitos. Ao longo dos séculos legiões de soldados, vindas de todas as direções, percorreram a terra de
Knaan em busca de seus objetivos de conquista.
Egípcios, assírios, babilônios, persas, filisteus, gregos, sírios, romanos, bizantinos, árabes, cruzados,
turcos, ingleses...
Por isso, os habitantes de Knaan, sempre tiveram suas vidas e suas terras ameaçadas. Todos
estes povos passaram por Knaan e deixaram suas marcas características: monumentos, moedas,
costumes, etc...80
O nome da Terra Prometida apresenta diferença notáveis entre garotos e
garotas. A Palestina aparece superdimensionada pelas meninas, com quase três vezes
o coeficiente masculino (13,08% versus 4,62%). Como interpretar essa variação? Difícil
dizer, pois a resposta predominante, tanto para homens como para mulheres, refere-se
a Canaã (42,06% e 46,15% respectivamente). Se juntarmos essa resposta àquela
referente a Israel (28,04% para meninas e 33,85% para meninos), poderemos observar
uma maior atenção masculina para Israel e feminina para a Palestina. As crianças têm
experiência com Israel e Palestina nos últimos cinco anos, período no qual Israel tem
aparecido com grande potência militar, masculina, agressiva, por contraposição à
Palestina, ocupada, oprimida. Israel é nome masculino e Palestina nome feminino. Não
seria uma metáfora para a condição da mulher?
Vale ainda ressaltar, que a relação para a grande maioria com o nome
Israel, ocorre, muitas vezes, pela presença do nome na mídia, nos telejornais, em aulas
de catecismo e atividades religiosas para crianças das comunidades evangélicas e
80 Monoteísmo, Êxodo do Egito e conquista de Canaã. Apostila, Colégio Iavne, s.d.
136
outras igrejas relacionadas ao protestantismo, como acontece como os alunos da
Escola Municipal Francisco Magalhães e dos alunos do Colégio Santo Américo.
Tabela 3
A partir das imagens do filme, o rosto da Esfinge p ode ser associado a: (meninas)
um anjo 34 31,78%
uma pomba 06 5,61%
um bandido 06 5,61%
um cordeiro 15 14,02%
um lobo 45 42,06%
não respondeu 01 0,93%
Gráfico 3
A partir das imagens do filme, o rosto da Esfinge p ode ser associado a: (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50
não respondeu
um lobo
um cordeiro
um bandido
uma pomba
um anjo
nº de alunos
137
Tabela 4
A partir das imagens do filme, o rosto da Esfinge p ode ser associado a: (meninos)
um anjo 41 31,54%
uma pomba 08 6,15%
um bandido 10 7,69%
um cordeiro 21 16,15%
um lobo 48 36,92%
não respondeu 02 1,54%
Gráfico 4
A partir das imagens do filme, o rosto da Esfinge p ode ser associado a: (meninos)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50
não respondeu
um lobo
um cordeiro
um bandido
uma pomba
um anjo
nº de alunos
A associação do rosto da Esfinge com o lobo domina as respostas de
homens e mulheres, ainda que cerca de um terço responda que imagem mais lembrada
é a do cordeiro, justo oposto do lobo. O anjo, outra imagem positiva, vem em segundo
lugar para ambos os gêneros. A soma das imagens positivas é predominante (anjo,
pomba, cordeiro, com mais da metade das respostas), mas por pouco, o que mostra a
ambigüidade da esfinge para as crianças.
138
Figura 3 – Moisés e Ramsés escutam ao Faraó.
Figura 4 – Faraó furioso com a atitude de Ramsés.
139
Figura 5 – Moisés observando Ramsés se retirar da sala.
Figura 6 – Faraó explica a situação para Moisés.
A imagem da esfinge é muito forte no filme. Em uma das cenas que marcam
uma série de brincadeiras entre os dois “irmãos” Moisés e Ramsés quebram o nariz da
140
esfinge, ocasionando a destruição do templo que estava sendo construído pelos
escravos hebreus. O discurso do pai de Ramsés é muito interessante, pois marca um
momento que dará um viés ao filme em diversas seqüências.
- Por que me atormentam os deuses com filhos tão afoitos, destrutivos e blasfemos? Procuro
construir um império e vocês só pensam em se divertir, destruindo tudo. Não lhes ensinei nada?
Moisés diz que a culpa é sua, pois provocou Ramsés e que, portanto toda a responsabilidade era sua,
já Moisés responde que é o culpado, pois provocou Moisés.
O pai pergunta a Moisés: Sabe o que significa esta palavra, Ramsés?
Ramsés responde: eu compreendo pai.
Faraó: Compreende a tarefa que seu nascimento lhe reservou? As tradições ancestrais?
Quando eu me for para o outro mundo... Você será a estrela da manhã e da noite.
Ramsés diz ao pai: Um templo danificado não destrói séculos de tradições.
Faraó responde: Mas um elo fraco quebra a cadeia de uma poderosa dinastia.
No filme, o faraó bíblico é apresentado como Ramsés, nome que não
aparece nas fontes judaicas. O relato da Bíblia Hebraica nunca menciona um nome
concreto e nem se pretende ser uma narrativa histórica, no sentido moderno da palavra.
As grandes linhas parecem retratar os acontecimentos, mas sempre de maneira já bem
inserida na perspectiva teológica dos compiladores do texto bíblico. A maioria dos
estudiosos relaciona a estada dos antepassados dos hebreus no Egito com o domínio
dos Hicsos naquele reino, entre 1720 e 1580 a.C. Os hicsos, como semitas, poderiam
ter facilitado as idas e vindas dos semitas nômades, talvez chamados de Hapiru
141
(Hebreus), termo que poderia designar apenas “nômades”. Seria como a palavra
moderna “beduíno”, derivada do árabe badawi, habitante do deserto.
A partir do Novo Reino, com a retomada das dinastias egípcias e com a
expansão em direção à Palestina e à Síria, parece ter havido a entrada de novos
nômades, hapiru que vinham como escravos. Haveria, pois, duas populações
hebraicas, uma mais antiga e próspera, no Delta, e outras mais recentes e
escravizadas. Alguns estudiosos modernos consideram que foi Seti I (1291-1278) a
escravizar os nômades e que seria Ramsés II (1292-1225) o faraó do Êxodo, que teria
ocorrido em 1225 a.C81. Contudo, Flinders Petrie descobriu e publicou, no monumento
funerário de Merenptá, filho de Ramsés, uma inscrição sobre suas vitórias militares que
menciona o seguinte:
“Canaã foi saqueada, foi conquistada Ashkalon, Gezer foi tomada, Ienoam
não existe mais, Israel está desolado, não há semente, a Palestina tornou-se uma viúva
para o Egito82”.
Isto significa que, à diferença do relato bíblico, haveria israelitas na
Palestina nessa época (ca. 1215 a.C.). Como quer que seja, a moderna erudição
relacionou o Êxodo a Ramsés II, personagem bem conhecido pela Egiptologia, e esta
associação passou para a cultura popular, por meio da mídia.
A identificação de Ramsés mostra diferenças notáveis entre meninos e
meninas. Os garotos identificam em Ramsés um faraó em sua imensa maioria (83%),
81 Cf. Max Margolis e Alexander Marx, History of the Jewish People, Nova Iorque, Meridian, 1958. 82 A partir da tradução inglesa, em Pictorial History of the Jewish People, Nathan Ausubel, Nova Iorque, Crown, 1956, p. 26.
142
um terço mais do que as garotas (57,94%). Elas, por sua parte, privilegiam sua
assimilação aos sacerdotes, seis vezes mais do que eles o fazem (37,38% versus
6,92%). Fica claro que os meninos valorizaram o papel de poder político de Ramsés,
como faraó, enquanto as meninas, em muito maior número, perceberam o caráter
religioso da narrativa relativa a Ramsés. De fato, no filme, Ramsés consulta e respeita
os sacerdotes, colocando-se, de certa forma, sob sua custódia. Esta sutileza foi muito
mais percebida pelas mulheres do que pelos homens, algo que revela sua atenção aos
sentimentos, antes que à força bruta ou ao poder exterior, à aparência da potência. Um
detalhe, mas revelador da percepção feminina.
Tabela 7
Um dos personagens do filme é Ramsés, que represent a um: (meninas)
Escravo 03 2,80%
Faraó 62 57,94%
Sacerdote 40 37,38%
camponês 02 1,87%
estrangeiro 00 0,00%
Gráfico 7
Um dos personagens do filme é Ramsés, que represent a um: (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70
estrangeiro
sacerdote
escravo
nº de alunos
143
Tabela 8
Um dos personagens do filme é Ramsés, que represent a um: (meninos)
escravo 08 6,15%
faraó 108 83,08%
sacerdote 09 6,92%
camponês 05 3,85%
estrangeiro 00 0,00%
Gráfico 8
Um dos personagens do filme é Ramsés, que represent a um: (meninos)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90 95 100 105 110
estrangeiro
camponês
sacerdote
faraó
escravo
nº de alunos
O filme passa a idéia de que Moisés foi abandonado às margens do Nilo
pela perseguição ao seu povo, tanto para meninos, como para meninas (entre 86,92% e
89,23%, para elas e eles, respectivamente). Isto significa que a mensagem do diretor foi
muito bem sucedida. Note-se, contudo, que os dados numéricos relacionados à
alternativa que a família não tinha recursos para criá-lo, aparecem somente aparece
144
entre os alunos da Escola Estadual Francisco Magalhães,83 que, em parte
responderam que a criança foi abandonada por falta de recursos econômicos (entre
6,15% para meninos e 8,41% para meninas). Isto pode ser explicado, talvez, pela
realidade brasileira e com as condições sócio-econômicas dos alunos desta escola, que
tem em seu número de alunos um grande percentual de famílias que participam de
projetos sociais dos governos municipal, estadual e federal, como por exemplo, o bolsa-
família, o que torna este tema uma constante preocupação, ainda que crianças com
essa faixa etária, teoricamente, não deveriam estar preocupados com questões
relativas ao sustento da família. A mídia relata abandonos de crianças recém-nascidas
e a pobreza constitui uma característica constante do nosso país. A maior preocupação
feminina com estas questões econômicas tampouco é de admirar, pois são as meninas
que devem confrontar, de maneira mais direta, a procriação. Por outro lado, todos os
alunos do Colégio Iavne, assinalaram a alternativa que mostra que seu povo era
perseguido e isso o salvaria.
Tabela 9
Moisés foi abandonado às margens do rio Nilo porque : (meninas)
sua família não tinha recursos para criá-lo 09 8,41%
seu povo era perseguido e isso o salvaria 93 86,92%
sua mãe o perdeu sem se dar conta 02 1,87%
queriam que ele fosse um egípcio 03 2,80%
ninguém sabia como criá-lo 00 0,00%
83 Os gráficos foram analisados inicialmente observando-se as particularidades das escolas. A inserção de tabelas por escola acontecerá somente quando os dados forem muito diferenciados, caso contrário, serão mencionados a partir dos dados pesquisados.
145
Gráfico 9
M oisés foi abandonado às margens do rio Nilo porque : (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90 95 100
ninguém sabia como criá-lo
queriam que ele fosse um egípcio
sua mãe o perdeu sem se dar conta
seu povo era perseguido e isso osalv aria
sua família não t inha recursos paracriá-lo
nº de alunos
Tabela 10
Moisés foi abandonado às margens do rio Nilo porque : (meninos)
sua família não tinha recursos para criá-lo 08 6,15%
seu povo era perseguido e isso o salvaria 116 89,23%
sua mãe o perdeu sem se dar conta 01 0,77%
queriam que ele fosse um egípcio 03 2,31%
ninguém sabia como criá-lo 02 1,54%
Gráfico 10
Moisés foi abandonado às margens do rio Nilo porque : (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90 95 100
ninguém sabia como criá-lo
queriam que ele fosse um egípcio
sua mãe o perdeu sem se dar conta
seu povo era perseguido e isso o salvaria
sua família não tinha recursos para criá-lo
nº de alunos
146
Figura 7 – Moisés ao ser colocado no cesto.
Figura 8 – Joquebede canta para seu bebê antes de deixá-lo no rio.
147
Figura 9 – Miriam acompanha o trajeto de seu irmão pelo rio.
Figura 10 – Rainha é surpreendida com a chegada do cesto.
148
Figura 11 – Ramsés admira Moisés sendo carregado pela rainha.
Figura 12 – Miriam fica surpresa ao ver quem acolheu seu irmão.
149
O tema principal do filme, a partir das músicas (songs) e das suas letras
(lyrics), é o binômio faith and hope, traduzidos como fé e esperança. São dois conceitos
de longuíssima tradição. O primeiro origina-se na pistis grega e na fides latina e volta-se
para a lealdade, a boa-fé e a honestidade. São conceitos pré-existentes, que foram
apropriados pelo Cristianismo. Na Bíblia Hebraica não há essa noção e as palavras
traduzidas por pistis na Septuaginta e por fides na Vulgata são diversas, como aman,
batah, mibtah, hasah, galal, mahseh, yahal, rekhats, emunah84. Portanto, faith
corresponde a um conceito cristão, subjacente à mensagem. Mais cristão ainda é o
termo hope, esperança, tradução do latino spes, pois não corresponde a um único
termo grego85 e, menos ainda, hebraico86. Parece, desta forma, que a mensagem
principal funda-se na milenar tradição cristão de fides et spes e isto ficou claro para
todos. Isto pode ser devido tanto à forma, quanto ao conteúdo da mensagem. O fator
principal parece ser a música e sua letra, que bate e rebate o tema da fé e da
esperança, mas o êxito da mensagem deve-se, também, ao fato de que ambos os
termos estão no cerne da formação cristã, ainda que inconsciente e laica, do público.
Essa hipótese parece reforçar-se pelos outros termos citados: solidariedade e
sabedoria. Ambos os termos traduzem noções cristãs, ratio (razão) e Sophia
(sabedoria), assim como solidariedade (do latim solidus sum, sou sólido), termo
moderno, mas muito difundido na teologia cristã. A equipe de direção do filme tinha
como preocupação fundamental passar como tema principal durante as cenas a
importância da fé e da esperança, como no papel de Miriam, que em todo momento
84Cf. http://internetbiblecollege.net/Lessons/Hebrew%20Words%20For%20Faith.htm. 85 Elpis é o termo mais lembrado. 86 Tikvah é a palavra mais usada.
150
representa o papel dela é o daquela que crê, daquela que se mantém na fé e no da
mãe de Moisés que transmite em seu olhar a esperança.
Tabela 11
Assinale o tema presente durante a grande maioria d as cenas do filme: (meninas)
bondade e caridade 06 5,61%
esperança e solidariedade 07 6,54%
saber e ciência 00 0,00%
fé e esperança 83 77,57%
razão e sabedoria 11 10,28%
Gráfico 11
Assinale o tema presente durante a grande maioria d as cenas do filme: (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90
razão e sabedoria
fé e esperança
saber e ciência
esperança e solidariedade
bondade e caridade
nº de alunos
Tabela 12
Assinale o tema presente durante a grande maioria d as cenas do filme: (meninos)
bondade e caridade 02 1,54%
esperança e solidariedade 20 15,38%
saber e ciência 02 1,54%
fé e esperança 88 67,69%
razão e sabedoria 18 13,85%
151
Gráfico 12
Assinale o tema presente durante a grande maioria d as cenas do filme: (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90
razão e sabedoria
fé e esperança
saber e ciência
esperança e solidariedade
bondade e caridade
nº de alunos
Figura 13 – Mãe de Moisés chorando ao deixar seu filho.
152
Figura 14 – Miriam acompanha o trajeto de seu irmão pelo rio.
Figura 15 – Moisés lidera seu povo libertado.
153
Figura 16 – Hebreus caminham para sua terra natal.
A retirada de Moisés do poço apresenta respostas com grande variação, a
partir do gênero das crianças que participaram da pesquisa. Embora a resposta
“crianças” tenha sido predominante em ambos os casos, as garotas foram mais
incisivas (61,68% versus 53,69%) e, ao contrário, foram menos propensas a responder
“mulheres” (23,36% versus 27,69%). Neste caso, os meninos foram mais inclinados a
reconhecer um papel feminino relevante. Outra resposta diferenciada refere-se aos
“camponeses”, observação muito mais freqüente entre as mulheres (13,08% versus
9,23%). A maior e mais notável dissonância, contudo, dá quanto aos “viajantes”, mais
do que sete vezes mais representados entre os meninos (6,92%) do que entre as
meninas (0,93%). Seria isto devido à sua atenção ao masculino, associado aos
viajantes? Difícil dizer.
154
Tabela 13
Em uma das cenas Moisés é jogado ao poço. Quem reti ra Moisés do poço? (meninas)
camponeses 14 13,08%
viajantes 01 0,93%
mulheres 25 23,36%
crianças 66 61,68%
idosos 01 0,93%
Gráfico 13
Em uma das cenas Moisés é jogado ao poço. Quem reti ra Moisés do poço? (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70
idosos
crianças
mulheres
viajantes
camponeses
nº de alunos
Tabela 14
Em uma das cenas Moisés é jogado ao poço. Quem reti ra Moisés do poço? (meninos)
camponeses 12 9,23%
viajantes 09 6,92%
mulheres 36 27,69%
crianças 70 53,69%
idosos 01 0,77%
não respondeu 02 1,54%
155
Gráfico 14
Em uma das cenas Moisés é jogado ao poço. Quem reti ra Moisés do poço? (meninos)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75
não respondeu
idosos
crianças
mulheres
v iajantes
camponeses
nº de alunos
A retirada de Moisés da água e sua salvação apresentam como resposta
dominante, em ambos os segmentos: “uma mulher” (90,65% e 84,62%,
respectivamente, para meninas e meninos). O faraó, contudo, aparece muito mais
representado nas respostas masculinas, sendo quatro vezes mais freqüente (1,87
versus 7,69%), o que sugere uma maior suposição masculina de que o personagem
poderoso masculino, o faraó, estaria por trás da salvação do personagem. Neste caso,
como em outros, a percepção masculina e feminina afastam-se, a partir de suas
predisposições prévias. Não se trata de percepções naturais, claro, mas de maneiras
aprendidas de encarar o mundo que enfatizam determinados aspectos da realidade87.
87 Cf. http://www.allacademic.com/meta/p_mla_apa_research_citation/1/1/6/0/7/p116074_index.html, com indicações de pesquisas recentes sobre as diferenças de percepção, no projeto Global Gender Gaps: Male and Female Perceptions of the World Nicole Speulda, The Pew Research Center for The People & The Press, Mary McIntosh, Princeton Survey Research Associates International, Elizabeth Mueller Gross, The Pew Research Center for The People & The Press.
156
Tabela 15
Em uma das passagens do filme Moisés é jogado na ág ua. Quem o salva? (meninas)
o faraó 02 1,87%
um camponês 02 1,87%
um sacerdote 04 3,74%
uma mulher 97 90,65%
um idoso 01 0,93%
não respondeu 01 0,93%
Gráfico 15
Em uma das passagens do filme Moisés é jogado na ág ua. Quem o salva? (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90 95 100
não respondeu
um idoso
uma mulher
um sacerdote
um camponês
o faraó
nº de alunos
Tabela 16
Em uma das passagens do filme Moisés é jogado na ág ua. Quem o salva? (meninos)
o faraó 10 7,69%
um camponês 05 3,85%
um sacerdote 04 3,08%
uma mulher 110 84,62%
um idoso 01 0,77%
157
Gráfico 16
Em uma das passagens do filme Moisés é jogado na ág ua. Quem o salva? (meninos)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90 95 100 105 110
um idoso
uma mulher
um sacerdote
um camponês
o faraó
nº de alunos
A revelação a Moisés sobre suas origens associa-se à mulher em ambos os
gêneros (71,03% e 77,69%). A diferença aparece, de forma mais clara, no papel
atribuído à criança, muito mais pronunciado entre as meninas (6,54% versus 2,31%), o
que parece provir, ainda uma vez, nas percepções ensinadas que enfatizam a criança
nas meninas.
Tabela 17
Uma das cenas mostra que Moisés não era egípcio. Qu em conta a Moisés que ele não era egípcio? (meninas)
o faraó 12 11,21%
um sacerdote 04 3,74%
uma mulher 76 71,03%
um camponês 07 6,54%
uma criança 07 6,54%
não respondeu 01 0,93%
158
Gráfico 17
Uma das cenas mostra que Moisés não era egípcio. Qu em conta a Moisés que ele não era egípcio? (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80
não respondeu
uma criança
um camponês
uma mulher
um sacerdote
o faraó
nº de alunos
Tabela 18
Uma das cenas mostra que Moisés não era egípcio. Qu em conta a Moisés que ele não era egípcio? (meninos)
o faraó 16 12,31%
um sacerdote 02 1,54%
uma mulher 101 77,69%
um camponês 08 6,15%
uma criança 03 2,31%
Gráfico 18
Uma das cenas most ra que Moisés não era egípcio. Qu em conta a Moisés que ele não era egípcio? (meninos)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55 60 65 70 75 80 85 90 95 100 105
uma criança
um camponês
uma mulher
um sacerdote
o faraó
nº de alunos
159
Os valores captados pelas crianças variam bastante, com diferenças
notáveis entre garotos e garotas. Para as mulheres, esperança contra força aparece em
primeiro lugar, sendo um terço mais freqüente do que entre os rapazes (28,04% versus
19,23%). Já para estes, em primeiro lugar estão justiça e fé, quase na mesma
proporção (20,56% para elas versus 28,46% para eles). A presença marcante da força
para meninas e da justiça para meninos pode causar surpresa, pelas associações
tradicionais de força com o homem, mas a atenção feminina na força não deve ser
subestimada, seja por admiração, como por repulsa. A força é um atributo não menos
importante para as garotas e isto se reflete nas respostas.
Tabela 19
Quais dos seguintes valores abaixo foram apresentad os no filme: (meninas)
Bem x Mal 29 27,10%
Justiça x Fé 22 20,56%
Esperança x Força 30 28,04%
Luta x Saudades 01 0,93%
Vingança x Fé 25 23,36%
Gráfico 19
S
S
Quais dos seguintes valores abaixo foram apresentad os no filme: (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35
Vingança x Fé
Luta x Saudades
Esperança x Força
Justiça x Fé
Bem x Mal
nº de alunos
160
Tabela 20
Quais dos seguintes valores abaixo foram apresentad os no filme: (meninos)
Bem x Mal 32 24,62%
Justiça x Fé 37 28,46%
Esperança x Força 25 19,23%
Luta x Saudades 05 3,85%
Vingança x Fé 31 23,85%
Gráfico 20
Quais dos seguintes valores abaixo foram apresentad os no filme: (meninos)
0 5 10 15 20 25 30 35 40
Vingança x Fé
Luta x Saudades
Esperança x Força
Justiça x Fé
Bem x Mal
nº de alunos
Grandes diferenças surgem nas perguntas mais ligadas aos sentimentos e
emoções, temas, ademais, de forma tradicional, associadas às mulheres. Alguns
estudos associam a mente feminina à mais acurada percepção dos sentimentos e estas
pesquisas não podem ser subestimadas88. Contudo, não cabe dúvida que, a uma
possível maior capacidade emocional, contribui a educação das sensibilidades89. As
88 Cf. matéria publicada pelo jornal inglês The Guardian, http://www.guardian.co.uk/life/news/page/0,12983,937443,00.html. Este artigo reporta-se a pesquisas científicas de Simon Baron-Cohen, da Universidade de Cambridge. 89 Cf. Walter Last, Learning to feel, http://www.health-science-spirit.com/learntofeel.html.
161
garotas sentiram mais de dez vezes mais medo90 do que os meninos, que tiveram o
dobro de percepções de alegria. Estes são os dois casos extremos, com umas tendo
sensações apreensivas e outros se divertindo. Entretanto, as sensações dominantes
foram as mesmas, com ênfases diversas: surpresa e angústia.
Tabela 21:
Escolha o sentimento principal, que você tenha sent ido durante o filme: (meninas)
medo 13 12,15%
angústia 34 31,78%
alegria 14 13,08%
surpresa 32 29,91%
raiva 14 13,08%
Gráfico 21:
Escolha o sentimento principal, que você tenha sent ido durante o filme: (meninas)
0 5 10 15 20 25 30 35 40
raiva
surpresa
alegria
angústia
medo
nº de alunos
90 Consulte-se o clássico sobre o medo feminino, Female Fear, M.T. Gordon e S. Riger, Nova Iorque, Free Press, 1989.
162
Tabela 22:
Escolha o sentimento principal, que você tenha sent ido durante o filme: (meninos)
medo 02 1,54%
angústia 34 26,15%
alegria 32 24,62%
surpresa 41 31,54%
raiva 21 16,15%
Gráfico 2 2:
Escolha o sentimento principal, que você tenha sent ido durante o filme: (meninos)
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45
raiva
surpresa
alegria
angústia
medo
nº de alunos
A percepção das pragas, nos diversos colégios, varia no detalhe, mas
predomina, em todas elas, a morte dos primogênitos. Destacam-se, na E.M. Francisco
Magalhães Gomes, as respostas relativas ao ambiente dos próprios alunos, em
particular, “quando Jesus fala com Moisés” e “os escravos apanhando”. Neste caso, as
respostas dos dois colégios confessionais, o judaico Iavne e o Católico Santo Américo,
refletem um direcionamento mais teológico das respostas, à diferença da escola
pública.
163
Um dado bastante sintomático da pesquisa é a questão relativa às pragas
mostradas no filme. Todos os alunos do Colégio Iavne apresentam as pragas, inclusive
com a numeração das mesmas, destacando as águas transformadas em sangue,
primeira praga e a décima, a morte dos primogênitos. Em relação aos alunos da Escola
Municipal Francisco Magalhães ocorre uma grande confusão, pois a grande maioria dos
alunos, tanto meninas como meninos, por não terem estudado as pragas enquanto
conhecimento formal, acabam apresentando informações ligadas à realidade em que
vivem, como por exemplo, os escravos apanhando, a falta de água, o capeta entrando
nas casas, as baratas, as najas, o fogo ou quando Jesus falava com Moisés.
Como isso é possível? O que faz com que alguém acredite em um filme uma
imagem, um objeto ou mesmo um personagem que jamais esteve lá? Por que uma
mesma história, contada em uma linguagem relativamente universal, pode ser
interpretada de modos diferentes? Por que certos elementos de um filme passam
despercebidos para alguns e, ao mesmo tempo, são profundamente significativos para
outros? (Duarte, 2002:69). O que nos leva a uma reflexão sobre como o diretor
direciona o olhar do expectador como um dos elementos chaves que afirmam cada
filme com expressão viva de uma intenção. Como nos mostra Ismael Xavier (Xavier,
2005:54), em uma citação a Bela Balazs, cineasta e teórico russo “um bom diretor de
cinema não permite que o expectador olhe para a cena ao acaso. Ele guia nosso olho
inexoravelmente, de um debate ao outro, ao longo da linha de montagem”.
164
COLÉGIO SANTO AMÉRICO
165
166
167
168
169
Athur Lungov
Bugelli 5a série 2007
Caroline M. Kato 5a série 2007
170
171
172
Fernanda
Pinedo 5a série 2007
173
174
175
176
177
COLÉGIO IAVNE
178
IAVNE Renée Khafit 5a série 2007
IAVNE Daniella Korich 5a série 2007
179
IAVNE Nissim
Betesh 5a série 2007
IAVNE Lior Wolff 5a série 2007
IAVNE Sharon Segal 5a série 2007
180
IAVNE Tiffany 5a série 2007
IAVNE Camila Shammah 5a série
181
2007
IAVNE Karen Grinberg 5a série 2007
E.M. FRANCISCO MAGALHÃES GOMES
182
183
184
185
186
187
188
189
As diferenças entre meninos e meninas, nos três colégios, mostram algumas
características particulares. A morte dos primogênitos é muito mais ressaltada pelos
garotos do colégio católico, enquanto nos outros dois as diferenças de gênero são bem
mais discretas. Os alunos do Santo Américo têm o dobro das preocupações com os
primogênitos91, em relação às alunas. Já na escola pública, a chuva de meteoros foi
muito mais sentida pelos garotos do que pelas garotas.
Quando instados a relatar as dez palavras mais relacionadas ao filme,
prevaleceu, como se esperaria, uma imensa dispersão. De toda forma, os temas mais
91 A importância, na doutrina católica, da primogenitura masculina não pode ser subestimada, cf. Catholic Encyclopaedia, s.v. first-born, http://www.newadvent.org/cathen/06081a.htm.
190
freqüentes foram amor, bondade, coragem, Deus, escravidão, esperança, faraó, fé e
Terra Prometida. As maiores diferenças entre garotos e garotas deram-se nos temas
coragem, Deus, faraó e Terra Prometida, com muito maior atenção dada pelas meninas
a tais temas, apenas escravidão teve maior atenção masculina. Os temas privilegiados
pelas alunas referem-se a um valor social muito forte, a coragem, e a três conceitos
tradicionalmente associados aos homens, como Deus, faraó e Terra Prometida. Isto
não é tão surpreendente, ao notarmos a vitalidade das reflexões feministas no campo
da teologia, pois notamos que as mulheres podem estar tão ou mais atentas a tais
questões92.
Escreva dez palavras relacionadas ao tema apresenta do no filme que chamaram sua atenção. (meninas)
Acolhida 06 0,63%
Acreditar 02 0,21%
Alegria 08 0,84%
Ambição 01 0,11%
Amizade 09 0,95%
Amor 28 2,95%
Angústia 05 0,53%
Anjo 04 0,42%
Ajuda 03 0,32%
Aposento 01 0,11%
Areia 01 0,11%
Árvore 02 0,21%
Árvore de fogo 05 0,53%
Astúcia 01 0,11%
Baleia 01 0,11%
Bastão 10 1,05%
Bebê 01 0,11%
Bem 01 0,11%
Bondade 19 2,00%
Caçados 01 0,11%
92 Confira-se a revista Feminist Theology e o livro de Ivone Gebara, Teologia Feminista, São Paulo, Brasiliense, 2008.
191
Cajado 03 0,32%
Camponeses 11 1,16%
Canaã 02 0,21%
Cansaço 01 0,11%
Caridade 05 0,53%
Carinho 03 0,32%
Carneiro 01 0,11%
Casa 01 0,11%
Cavalo 01 0,11%
Cobra 04 0,42%
Compaixão 02 0,21%
Consciência 01 0,11%
Confiança 07 0,74%
Consideração 01 0,11%
Construção 02 0,21%
Coração 01 0,11%
Coragem 11 1,16%
Covardia 01 0,11%
Criação 01 0,11%
Criança 07 0,74%
Crença 01 0,11%
Culpa 01 0,11%
Dança 01 0,11%
Decoração 01 0,11%
Desistir 01 0,11%
Deus 23 2,42%
Divisão 01 0,11%
Dó 02 0,21%
Egípcio 04 0,42%
Egito 13 1,37%
Egoísmo 01 0,11%
Escravidão 31 3,26%
Escravos 27 2,84%
Escuridão 01 0,11%
Esfinge 10 1,05%
Esperança 49 5,16%
Estátua 01 0,11%
Estrangeiro 01 0,11%
Família 03 0,32%
Faraó 34 3,58%
Fato 01 0,11% Fé 70 7,37%
192
Feitiçaria 01 0,11%
Felicidade 05 0,53%
Fogo 02 0,21%
Fome 01 0,11%
Força 11 1,16%
Fraternidade 01 0,11%
Generosidade 03 0,32%
Gentileza 01 0,11%
Grandeza 01 0,11%
Gratidão 02 0,21%
Guerra 05 0,53%
Igualdade 01 0,11%
Insistência 01 0,11%
Ira 05 0,53%
Irmandade 01 0,11%
Irmão 06 0,63%
Israel 02 0,21%
Judeu 02 0,21%
Justiça 13 1,37%
Hebreus 02 0,21%
Honestidade 01 0,11%
Humildade 02 0,21%
Lar 01 0,11%
Lealdade 01 0,11%
Liberdade 18 1,89%
Luta 06 0,63%
Machado 01 0,11%
Mãe adotiva 01 0,11%
Magia 03 0,32%
Mal 01 0,11%
Maldade 07 0,74%
Mar 08 0,84%
Medo 09 0,95%
Mentira 06 0,63%
Milagre 05 0,53%
Miriam 03 0,32%
Moisés 15 1,58%
Morte 16 1,68%
Mulher 03 0,32%
Obediência 01 0,11%
Orgulho 01 0,11% Paciência 02 0,21%
193
Pai 01 0,11%
Paixão 01 0,11%
Palestina 01 0,11%
Pasto 01 0,11%
Paz 11 1,16%
Perdão 03 0,32%
Perseguição 01 0,11%
Pessoas 02 0,21%
Peste 01 0,11%
Piedade 02 0,21%
Pirâmide 01 0,11%
Pobreza 01 0,11%
Poço 06 0,63%
Poder 07 0,74%
Ponderação 01 0,11%
Povo 06 0,63%
Praga 28 2,95%
Príncipe 02 0,21%
Primogênito 02 0,21%
Promessa 01 0,11%
Proteção 01 0,11%
Raiva 03 0,32%
Ramsés 06 0,63%
Razão 08 0,84%
Recepcionar 02 0,21%
Rei 01 0,11%
Reino 02 0,21%
Religião 01 0,11%
Resistência 01 0,11%
Respeito 11 1,16%
Responsabilidade 02 0,21%
Riqueza 02 0,21%
Rio Nilo 05 0,53%
Sabedoria 18 1,89%
Sacerdote 16 1,68%
Salvação 02 0,21%
Sangue 13 1,37%
Santa 02 0,21%
Saudades 04 0,42%
Saúde 01 0,11%
Sentimento 02 0,21% Simplicidade 01 0,11%
194
Sinais 01 0,11%
Sofrimento 04 0,42%
Solidariedade 21 2,21%
Sonho 01 0,11%
Surpresa 01 0,11%
Terra Prometida 27 2,84%
Tripora 01 0,11%
Trabalho 02 0,21%
Tristeza 09 0,95%
União 02 0,21%
Velho 01 0,11%
Verdade 05 0,53%
Vingança 15 1,58%
Violência 01 0,11%
Escreva dez palavras relacionadas ao tema apresenta do no filme que chamaram sua atenção. (meninos)
Abertura do mar 02 0,19%
Acolhida 09 0,85%
Acreditar 01 0,09%
Adoração 01 0,09%
Afeto 02 0,19%
Agressão 01 0,09%
Ajuda 02 0,19%
Alegria 11 1,04%
Ambição 01 0,09%
Amizade 14 1,32%
Amor 22 2,08%
Animais selvagens 01 0,09%
Angústia 02 0,19%
Areia 02 0,19%
Armas 01 0,09%
Arquiteto 01 0,09%
Astúcia 03 0,28%
Ataque 01 0,09%
Atitude 01 0,09%
Barco 01 0,09%
Bastão 01 0,09%
Bebê 01 0,09%
195
Bem 04 0,38%
Bestas 01 0,09%
Bom 01 0,09%
Bondade 29 2,74%
Briga 02 0,19%
Brincadeira 02 0,19%
Bruxas 01 0,09%
Cajado 05 0,47%
Calma 01 0,09%
Camelo 01 0,09%
Camponeses 04 0,38%
Canaã 02 0,19%
Cansaço 01 0,09%
Caráter 02 0,19%
Caridade 10 0,95%
Carinho 03 0,28%
Castigo 02 0,19%
Ciência 01 0,09%
Chicotadas 01 0,09%
Cobra 03 0,28%
Cidade 01 0,09%
Chuva de granizo 06 0,57%
Compaixão 02 0,19%
Compartilhamento 01 0,09%
Confiança 02 0,19%
Conflito 01 0,09%
Coragem 07 0,66%
Cordeiro 01 0,09%
Criança 01 0,09%
Crença 04 0,38%
Crueldade 02 0,19%
Culpa 01 0,09%
Dedicação 01 0,09%
Deserto 01 0,09%
Desespero 01 0,09%
Desigualdade 01 0,09%
Desgraça 01 0,09%
Desordem 01 0,09%
Desrespeito 01 0,09%
Destrato 01 0,09% 196
Determinação 01 0,09%
Deus 16 1,51%
Discórdia 01 0,09%
Doença 02 0,19%
Dor 05 0,47%
Egípcio 06 0,57%
Egito 14 1,32%
Equipe 01 0,09%
Escravidão 45 4,25%
Escravos 21 1,98%
Escuridão 06 0,57%
Esfinge 13 1,23%
Esperança 52 4,91%
Esperteza 01 0,09%
Espiritualidade 01 0,09%
Estátua 01 0,09%
Exército 01 0,09%
Família 01 0,09%
Faraó 25 2,36%
Fé 79 7,47%
Felicidade 04 0,38%
Festa 01 0,09%
Filha 01 0,09%
Fogo 01 0,09%
Força 17 1,61%
Fuga 03 0,28%
Fuga do Egito 02 0,19%
Gafanhoto 09 0,85%
Generosidade 06 0,57%
Guardas 01 0,09%
Guerra 03 0,28%
Hebreus 03 0,28%
Honestidade 02 0,19%
História dos Hebreus 03 0,28%
Hospitalidade 01 0,09%
Humildade 01 0,09%
Idoso 01 0,09%
Infelicidade 01 0,09%
Injustiça 03 0,28%
Inovação 03 0,28% 197
Inteligência 01 0,09%
Inveja 01 0,09%
Irmão 01 0,09%
Judeu 04 0,38%
Justiça 22 2,08%
Ladrões 01 0,09%
Liberdade 19 1,80%
Luta 11 1,04%
Magia 03 0,28%
Mal 05 0,47%
Maldade 12 1,13%
Maldição 03 0,28%
Maltrato 01 0,09%
Mandamentos 02 0,19%
Mar 05 0,47%
Matança 01 0,09%
Mau caráter 01 0,09%
Medo 10 0,95%
Mentira 09 0,85%
Meteoros 02 0,19%
Milagre 07 0,66%
Miséria 01 0,09%
Moisés 11 1,04%
Monumento 01 0,09%
Morte 12 1,13%
Morte dos animais 07 0,66%
Morte dos primogênitos 07 0,66%
Músicas 01 0,09%
Obediência 03 0,28%
Ódio 04 0,38%
Ordens 01 0,09%
Ovelha 01 0,09%
Pai 01 0,09%
Palácio 01 0,09%
Palestina 01 0,09%
Paz 11 1,04%
Perdão 02 0,19%
Perseguição 02 0,19%
Persistência 01 0,09%
Peste 03 0,28%
198
Piolho 08 0,76%
Pirâmide 01 0,09%
Planta 01 0,09%
Pobreza 03 0,28%
Poço 02 0,19%
Poder 01 0,09%
Politeísmo 01 0,09%
Política 01 0,09%
Povo 04 0,38%
Praga 28 2,65%
Princesa 01 0,09%
Príncipe 05 0,47%
Progresso 01 0,09%
Prosperidade 01 0,09%
Rã 06 0,57%
Raiva 05 0,47%
Ramsés 08 0,76%
Razão 06 0,57%
Realidade 01 0,09%
Relação 01 0,09%
Religião 02 0,19%
Respeito 19 1,80%
Responsabilidade 05 0,47%
Revolta 01 0,09%
Riqueza 02 0,19%
Rio Nilo 04 0,38%
Sabedoria 11 1,04%
Ruim 01 0,09%
Sacerdote 17 1,61%
Sacrifício 04 0,38%
Sangue 14 1,32%
Sapo 10 0,95%
Saudades 07 0,66%
Sarna 02 0,19%
Segredo 01 0,09%
Sinceridade 02 0,19%
Soberba 01 0,09%
Sofrimento 07 0,66%
Soldado 01 0,09%
Solidariedade 24 2,27%
199
Solução 01 0,09%
Surpresa 01 0,09%
Surto 01 0,09%
Susto 01 0,09%
Templo 01 0,09%
Terra Prometida 02 0,19%
Trabalho 01 0,09%
Trabalho pesado 01 0,09%
Tradição 03 0,28%
Traição 04 0,38%
Tristeza 09 0,85%
União 08 0,76%
Verdade 06 0,57%
Vingança 16 1,51%
Violência 03 0,28%
Vontade 01 0,09%
200
CONCLUSÃO
201
Entre o cinema e a História, as interferências são múltiplas: por exemplo, na
junção da História que se faz, àquela da História compreendida como relação do nosso tempo, como explicação do devir das sociedades. Em
todos esses lugares o cinema intervém.
Marc Ferro, Cinema et Histoire. Paris, Gallimard, 1993, p. 19.
202
Ao término desta trajetória, as conclusões dirigem-se aos diversos
aspectos desta tese de doutoramento. Em primeiro lugar, há que tratar das questões
propriamente teóricas. Esta pesquisa procurou mostrar a relevância das discussões
epistemológicas no interior das Ciências Humanas e Sociais, nos últimos anos. O
conhecimento do passado não pode prescindir de uma reflexão sobre o presente, sobre
as condições de produção de conhecimento no presente. Alguns estudiosos, como
Richard Hingley93, mostraram como olhamos o passado a partir das condições do
presente e, em particular, de maneira subliminar, por meio das impressões que tivemos
na tenra infância. Os usos do passado, para usarmos uma expressão consagrada e
difundida, entre nós, por Glaydson José da Silva94, ligam-se às nossas inquietações e
aos nossos costumes e interesses. Esses usos, fundados no presente, ligam-se,
segundo Thomas Patterson, à História da Ciência, de um ponto de vista externalista95,
às relações sociais, políticas, ideológicas, antes que a um mero campo fechado das
próprias e idéias e conceitos. Moisés, como vimos, não pode ser desvencilhado do
Príncipe do Egito, filme cuja perenidade influenciará ainda os futuros estudiosos96.
Em segundo lugar, ainda em termos teóricos, esta tese de doutoramento
insere-se em uma concepção de ciência subjetiva e engajada, a um só tempo. Por um
lado, e como decorrência do presentismo, o estudo do passado não se distancia do
sujeito, daquele que pesquisa e reflete. Num certo sentido, esta abordagem parte de
93 Hingley discute o que chama de presentism, presentismo, em diversas obras e, em particular, explorou este tema em suas palestras, como professor visitante, da Escola de Altos Estudos da CAPES, na UNICAMP, em agosto de 2008. Essas reflexões encontram-se no livro a sair como resultado da visita, a ser publicado pela Editora Annablume e CAPES, organizado por Pedro Paulo A. Funari, Renata Senna Garraffoni e Renato Pinto. 94 Cf. Glaydson José da Silva, História Antiga e Usos do Passado: um estudo de apropriações da Antigüidade sob o Regime de Vichy (1940-1944). São Paulo, Annablume, 2007. 95 Cf. Thomas Patterson, A Social History of Anthropology in the United States. New York, Berg, 2001. 96 Segundo Hingley, as imagens recebidas na infância continuam a atuar na vida adulta, mais de cinqüenta anos depois, de forma direta, e pela leitura secundárias, por muito mais tempo. Desta forma, um filme como O Príncipe do Egito espraia sua influência pelas primeiras décadas do século XXI.
203
uma crítica da perspectiva positivista e voltada para um conhecimento objetivo, neutro e
apolítico do passado e dos usos do passado pela mídia. Não se trata de buscar o
êxodo, tema do filme O Príncipe do Egito, “tal como ele realmente aconteceu97”. O
passado apresenta-se nos embates do presente, como atestam as discussões
historiográficas dos últimos anos98, tanto em termos gerais, como, em especial, no que
se refere à Antigüidade99. Esta subjetividade significa que a discussão dos contextos de
produção histórica e da mídia está no centro das reflexões. Em seguida, e como
decorrência, esta tese insere-se em uma perspectiva de ciência engajada, política e, em
certo sentido, até mesmo como proposta de intervenção no mundo. Marx afirmava que
cabia, mais do que pensar, mudar o mundo100, mas a ciência mostrou-se, por muito
tempo, preocupada com uma objetividade enganosa, que ocultava os interesses e
conflitos sociais. Em diferentes âmbitos, adotou-se uma postura mais crítica e
acolhedora da sociedade, em toda sua diversidade. Paulo Freire foi um pioneiro da
proposta de conhecimento com as pessoas, não para as pessoas101, mas essa
perspectiva generalizou-se com a inclusão da interação como estratégia de produção
de conhecimento. Nesta perspectiva, dar ouvidos à recepção do Príncipe do Egito,
como vimos, significa interagir com as pessoas comuns, com as crianças em sua
imensa variedade. Mais do que isso, essa interlocução visa a servir para uma ação no
97 Wie es eigentlich gewesen, na fomosa expressão de Leopold von Ranke, de 1823, reproduzida por todos os estudos historiográficos como fundador da própria disciplina histórica (pace P.P.A. Funari & G.J. Silva, Teoria da História, São Paulo, Brasiliense, 2008). 98 Assim entendemos obras como O campesinato na História (Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002), organizado por André Leonardo Chevitarese. 99 Atestam isto muitas obras recentes, como A Tradição Clássica e o Brasil (Brasília, Fortium, 2008), organizado por A.L. Chevitarese, G. Cornelli e M.A.O. Silva. 100 Karl Marx, Teses sobre Feuerbach, tese 11, datada de 1845. 101 Cf. Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia. 15a.ed. São Paulo, Paz e Terra, 2000.
204
mundo: uma percepção histórica crítica, mudanças nos currículos102, transformações na
própria mídia103.
Em seguida, ainda no campo teórico, esta tese insere-se numa
perspectiva fundada na valorização e respeito à diversidade. As interpretações
fechadas do passado, as abordagens hierárquicas deixavam de lado toda uma riqueza
de expressões culturais humanas. As fantasias e inquietações, sentimentos e emoções
estiveram, por muito tempo, distantes da História, mas passaram a pertencer ao campo
historiográfico. Multiplicaram-se os estudos sobre tais aspectos da sensibilidade
humana104, temas presentes, de forma incisiva, nas percepções das crianças ao
Príncipe do Egito. Um aspecto de particular relevância refere-se à diversidade de
gênero. A História, assim como as ciências em geral, centrou-se numa perspectiva
masculina do mundo e do passado. Muito se escreveu sobre o falocentrismo da
sociedade ocidental105, mas o que se tem ressaltado, nos últimos anos, não é tanto a
dominação do falo, quanto a diversidade e a força, tanto de homens, como mulheres,
em sua imensa diversidade106. Como propõe Rago, uma abordagem amiga das
mulheres, ou filógina, não se atém, nem aceita, os pressupostos de uma suposta
dominação masculina, mas propõe dar voz e ouvidos a todos e todas. As percepções
dos papéis masculinos e femininos no Príncipe do Egito mostram como essa
102 Como no caso dos livros publicados pela Secretaria de Estado da Educação do Estado de São Paulo, em 2008, sob coordenação de Paulo Celso Miceli. 103 Como fica claro nas produções midiáticas dos últimos anos, e.g. Mulheres e violência masculina, de André Leonardo Chevitarese, 2006 (produção televisiva). 104 Cf. Peter Gay, The Cultivation of Hatred, New York, Norton, 2003. 105 Cf. Jacque Lacan, La signification du phallus. Paris, Seuil, 1966. 106 Cf. Margareth Rago, Feminizar é preciso, ou por uma cultura filógina, La Manzana de la Discórdia, 2, 2007, 55-78.
205
abordagem pode ser rica e produtora de práticas de amizade107 entre os seres
humanos.
A pesquisa apresentou uma série de dados concretos sobre a construção
das identidades, na interação entre públicos e mídia. As percepções identitárias
mostraram-se variadas, mas sempre marcantes. Os temas do sofrimento e da
escravidão foram fundamentais para inteiras comunidades, como a judaica. As
imagens do menino abandonado em um cestinho, sua juventude entre os poderosos e
sua descoberta de uma coletividade oprimida revelam, ou renovam, os sentimentos de
um exílio sentido no cotidiano. O Moisés do Príncipe do Egito aparece como mais real
ou tangível do que aquele personagem sagrado, mas distante das páginas da Bíblia. As
personagens femininas do filme, em sua coragem, charme, fascínio e sedução, revelam
uma proeminência feminina, efetiva ou potencial, reconhecida por muitos meninos e
meninas. Por fim, esta tese de doutoramento terá alcançado seus objetivos se o leitor,
ao assistir a um filme qualquer, no cinema, na televisão, ou em outro meio, o olhar com
outros olhos. Como propõe o Penn Museum, da Universidade da Pennsylvania, nos
Estados Unidos, “um novo olhar @ uma antiga cultura108”.
107 Cf. Edson Passetti, Éticas dos Amigos, invenções libertárias da vida. São Paulo, Imaginário/Capes, 2003. 108 Em inglês, a new look @ an ancient culture, com um trocadilho, pois @ em inglês lê-se at, a preposição que segue o verbo to look, ver. O importante é mostrar que olhamos em meio virtual, @. Cf. http://www.museum.upenn.edu/new/exhibits/online_exhibits/egypt/egyptintro.shtml
206
BIBLIOGRAFIA
207
Autores antigos
Bíblia
Colunga, A.; Turrado, L. Bíblia Sacra iuxta Vulgatam Clementinam, nova editio, logicis
partionibus aliisque subsidiis ornata a Colunga et Turrado, Madri, La Editorial Católica,
1982, sexta editio.
Gen. 4,1.
1 Samuel, 8, 7,
Mateus, 13, 24-30.
Outras fontes antigas
Plínio, Panegírico, 1,1
Platão, República, 392d5-6.
Plauto, Aululária, 1,3,22
Sites 109
http://www.pbs.org/moyers/faithandreason/perspectives1.html
http://www.dvdtalk.com/reviews/108/prince-of-egypt-the/
http://www.ltcconline.net/lukas/gender/pages/gaze.htm
http://www.bible-history.com/isbe/S/SEMITES,+SEMITIC+RELIGION/.
http://www.thefreedictionary.com/blockbuster
http://vestibular.uol.com.br/ultnot/resumos/ult2769u34.jhtm.
http://libdigi.unicamp.br/
109 Os sites foram consultados em diferentes momentos, mas todos acessados na finalização da tese, em 10/10/2008.
208
http://findarticles.com/p/articles/mi_qn4182/is_20010924/ai_n10147868/pg_2.
http://sociology.berkeley.edu/faculty/wacquant/wacquant_pdf/CRITICALSOLVDOXApdfh
ttp:/ http://www.geocities.com/d-patanella/prince.html.
http://www.digbible.org/princeofegypt.html.
wwhttp://www.searsarchives.com/catalogs/history.htm..impressionniste.net/monet.htm,ht
tp://www.researchamerica.org/poll_methodology.
http://www.freudfile.org/psychoanalysis/.
http://www.judaismovirtual.com/1_general/talmud.php.
http://internetbiblecollege.net/Lessons/Hebrew%20Words%20For%20Faith.htm.
http://www.allacademic.com/meta/p_mla_apa_research_citation/1/1/6/0/7/p116074_inde
x.html.
http://www.guardian.co.uk/life/news/page/0,12983,937443,00.html.
http://www.health-science-spirit.com/learntofeel.html.
http://www.newadvent.org/cathen/06081a.htm.
http://www.museum.upenn.edu/new/exhibits/online_exhibits/egypt/egyptintro.shtml
http://lattes.cnpq.br/8607821911525405.
http://lattes.cnpq.br/3274637598730008.
http://lattes.cnpq.br/7752713464627656.
http://lattes.cnpq.br/6399650055335751.
http://lattes.cnpq.br/6594968549543791.
http://lattes.cnpq.br/7246907329737558.
209
http://lattes.cnpq.br/7246907329737558.
http://la http://lattes.cnpq.br/7246907329737558.
http://lattes lattes.cnpq.br/4547907128459717.
http://lattes lattes.cnpq.br/6998953797820727.
http://lattes.cnpq.br/2588130647211211.
http://lattes.cnpq.br/7088336949228296.
Estudos vários
AA.VV. Monoteísmo, Êxodo do Egito e conquista de Canaã. Apostila, Colégio Iavne,
s.d.
Ausbel, N.; Margolis, M. A Pictorial History of the Jewish People. Nova Iorque, Meridian,
1958.
Barnavi, História Universal dos Judeus, da Gênese ao fim do século XX. Belém, Cejup,
1995, p. 4, tradução de Beatriz Sidou.
Bell, D., Macdonald, D., Shils, E., Adorno, T.W., Horkheimer, M., Lazarfeld, P. Industria
Cultural Y Sociedad de Masas, Caracas - Venezuela: D.R.©Monte Avila Editores, C.A.,
1969.
Bourdieu, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Carrière, J.C. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995.
Chartier, R. A História Cultural, entre práticas e representações. Lisboa, Difel, 2002, p.
17, tradução de Maria Manuela Galhardo.
Chevitarese, A. L. ; Cornelli, G. . Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. Ensaio sobre
Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo. São Paulo: Annablume, 2007.
Chevitarese, A.L. O campesinato na História. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2002.
210
Chevitarese, A.L.; Cornelli, G.; Silva, M.A.O. A Tradição Clássica e o Brasil. Brasília,
Fortium, 2008.
Coventry, M. et alii. Ways of seeing: evidence and learning in the history classroom, The
Journal of American History, 92, 4, 2006, 1371-1402.
Cusset, F. French Theory: Foucault, Derrida, Deleuze met cie e les mutations de la vie
intellectuelle aux États-Unis. Paris, La Decouverte, 2003.
Delumeau, J. La peur em Occident: XIVe.-XVIIe. Siècle, une cité assiégée. Paris ,
Fayard, 1978.
Duarte, R. Cinema & Educação, Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
Dupront, A. Le mythe de croisade. Paris, Gallimard, 1997.
Eco, U. Opera Aperta, Milão, Bompiani, 1962.
Ferro, M. Cinema et Histoire. Paris, Gallimard, 1993.
Freire, P. Pedagogia da Autonomia. 15a.ed. São Paulo, Paz e Terra, 2000.
Fromm, E. You Shall Be as Gods. Nova Iorque, Fawcett, 1969.
Funari, P.P.A. & Silva, G.J. Teoria da História, São Paulo, Brasiliense, 2008).
Funari, R.S. Imagens do Egito Antigo. São Paulo, Annablume/Unicamp, 2006.
Gay, P. The Cultivation of Hatred, New York, Norton, 2003.
Gebara, I. Teologia Feminista, São Paulo, Brasiliense, 2008.
Ginzburg, C. Il pré-giudizio aiuta la ricerca storica, Corriere della Sera, 24/07/2008, p.
27.
Gordon, M.T; Riger, S. Female Fear. Nova Iorque, Free Press, 1989.
211
Hacker, A. Obama, the price of being black, The New York Review of Books, 55, 14, 25
September 2008 http://www.nybooks.com/articles/21771.
Hands, D.W. Economics, history, and consumer choice theory, Social Science Research
Network May 2007, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=988125.
Hingley. R. Concepções de Roma: uma perspectiva inglesa. In Vernant, J.P. e R.
Hingley, Repensando o mundo antigo, tradução de Renata Senna Garraffoni,
Campinas, IFCH/Unicamp, 2005, 27-62.
Instituto Cultural Banco Santos, 2004.
Kaplan, A. A mulher e o cinema. Rio de Janeiro, Rocco, 1995.
Karnal, L. (Org.) A Escrita da Memória - Interpretações e Análises Documentais. 01. ed.
São Paulo, Instituto Cultural Santos, 2004.
Klausner, J. The Messianic Idea in Israel. Londres, Allen & Unwin, 1956.
Lacan, J. La signification du phallus. Paris, Seuil, 1966.
Leite, S.F. O cinema manipula a realidade? São Paulo, Paulus, 2005.
Lowenthal, D. The Past is a Foreign Country. Cambridge, Cambridge University Press,
1985, p. 317.
Malraux, A. Art, popular art and popular illusion, Partisan Review, September/October
1951.
Martins, J.S., Sociologia da Fotografia e da Imagem. São Paulo, Contexto, 2008.
Miceli. P.C. Por outras histórias do Brasil, O ensino de História e a criação do fato, São
Paulo, Contexto, 1988, org. Jaime Pinsky.
Moraes, A.C. A escola vista pelo cinema: uma proposta de pesquisa, A Cultura da
Mídia na Escola, Ensaios sobre cinema e educação, org. Maria da Graça Jacintho
212
Setton, São Paulo, Annablume, 2008, 53-65,avier, I. A Experiência do Cinema. Rio de
Janeiro, Graal/Embrafilme, 1983.
Morin, E. O Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa, Moraes editores, 1970.
Noe, D. From moralist to seducer: how fiction inverted the meaning of the real Dracula
bloodlust, Men’s News Daily, 10/08/2006.
Ory, P., Histoire Culturelle. Paris, Presses Universitaires de France, 2004.
Passetti, E. Éticas dos Amigos, invenções libertárias da vida. São Paulo,
ImaginárioE/Capes, 2003.
Patterson, T. A Social History of Anthropology in the United States. New York, Berg,
2001.
Rago, L. M. "O historiador e o tempo". In: Rossi, Vera Lúcia Sabongi; Zamboni, Ernesta.
(Org.). Quanto tempo o tempo tem!. 01 ed. Campinas: Alínea, 2003, v. 1, p. 25-48.
Rago, L. M.; Gimenes, R. A. Narrar o passado, repensar a história. 1. ed. campinas:
ifch, 2000.
Rago, M. Feminizar é preciso, ou por uma cultura filógina, La Manzana de la Discórdia,
2, 2007, 55-78.
Silva, G.J. História Antiga e Usos do Passado: um estudo de apropriações da
Antigüidade sob o Regime de Vichy (1940-1944). São Paulo, Annablume, 2007.
Silva, G.J. Imaginar, forjar, e utilizar a Antigüidade: representações dos gauleses e
construção da identidade nacional na França, de Pétain a Le Pen. Boletim do CPA,
UNICAMP - IFCH, Campinas, v. 18, p. 245-265, 2004.
Silva,G.J. e Martins, A. L. Genealogia e História Antiga, Subjetividades Antigas e
Modernas, São Paulo, Annablume, 2009, org. M. Rago e P.P.A. Funari (no prelo).
Swain, T. Subjetividades Antigas e Modernas, São Paulo, Annablume, 2009, org. M.
Rago e P.P.A. Funari (no prelo). 213
Szaif, J. Doxa and episteme as modes of acquaintance in Republic V, Les Études
Platoniciennes, 4, 2007, 253-272.
Tendler, S. A História vai ao cinema. Rio de Janeiro, Record, 2001.
Turner, G. O cinema como prática social. São Paulo, Sumus, 1997.
van der Sterren, H.A. The King Oedipus of Sophocles, The International Journal of
Psychoanalisis, 33, 1952, 343-350.
Vercoutter, J. Em busca do Egito esquecido, São Paulo, Objetiva, 2002.
Veyne, P. L’inventaire des differences. Paris, Seuil, 1976.
Vogler, C. A Jornada do Escritor: Estruturas míticas para contadores de história e roteir
istas/Tradução Ana Maria Machado. Rio de Janeiro - RJ: Ampersand Ed. 1997.
Wallis Budge, E.A. The Gods of the Egyptians, Nova Iorque, Dover, 1969.
Webb, T.W. A journey toward the ontological (and epistemological) position of the
approach of experimental pedagogy to project work, 1999, http://www.erzwiss.uni-
hamburg.de/Sonstiges/Dewey/WebbJO99.pdf.
White, R. Is “empowerment” the answer? Current theory and research on development
communication, International Communication Gazette, 66, 2004, 7-24.
Williams, R. Culture and Society, Londres, Thames and Hudson, 1958.
Xavier, I. A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro, Graal/Embrafilme, 1983.
214