reflexÕes sobre a definiÇÃo de arte no contexto … · o qual toda a arte contemporânea...
TRANSCRIPT
REFLEXÕES SOBRE A DEFINIÇÃO DE ARTE NO CONTEXTO DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX.
Rosi Leny Morokawa (Universidade Federal do Paraná/
Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
Resumo: As mudanças ocorridas na produção artística após meados do século XX geraram um intenso debate no âmbito filosófico e da crítica de arte. O que estava em questão era como a teoria poderia dar conta da intensa diversidade de obras da arte contemporânea, dentre elas a arte pop, conceitual e a minimalista. Teorias críticas a definições estéticas de arte foram propostas, como a de Arthur C. Danto e de George Dickie. A principal crítica às definições estéticas era a de que elas deixavam de fora parte da arte contemporânea. Contrapondo se a estas teorias, Monroe C. Beardsley, em 1983, apresentou uma definição de arte que retomou a discussão sobre a noção de experiência estética no fazer artístico e em sua recepção. Pretendo, neste trabalho, fazer uma análise de como parte da arte produzida na segunda metade do século XX impôs desafios à teoria da arte e mostrar tentativas de resposta a estes desafios. Para tal, utilizarei como objeto de análise algumas propostas de obras da arte conceitual, como a galeria fechada do artista norte-americano Robert Barry, de 1969, e Inserções em Circuitos Ideológicos do artista brasileiro Cildo Meireles, de 1970. Para a abordagem teórica utilizarei a definição estética de arte de Beardsley e apresentarei duas objeções a esta teoria, uma de Danto e outra de Dickie. Palavras-chaves: Definição de arte; teoria da arte; experiência estética; arte contemporânea. Financiamento: CAPES
O problema da definição de arte, que se intensificou nas discussões entre
filósofos e críticos na segunda metade do século XX, teve como pano de fundo a
diversificada e intensa produção artística do período. Algumas destas diversidades é
o que hoje definimos como arte pop, minimalismo e arte conceitual, entre outras. Neste
trabalho enfocarei a arte conceitual, que é delimitada historicamente em alguns anos
após o surgimento da arte pop e minimalismo. Porém, várias obras realizadas a partir
da década de 50 antecipam características das obras conceituais do final da década
de 60 e se tornam problemáticas e instigadoras do debate sobre definição de arte.
Obras como o Desenho de De Kooning apagado de Robert Rauschemberg e O Vazio
de Yves Klein são alguns destes exemplos que junto com a arte conceitual
propriamente dita, do final dos anos 60, questionaram os critérios até então
estabelecidos para a distinção entre arte e não arte, a crítica de arte, as instituições
de arte e os espaços da arte.
Algumas considerações sobre a “Arte conceitual”
O surgimento, o nome, o legado, quem a produz e a que se propõe, são
problemas que envolvem a “arte conceitual” desde o seu início. Artistas que viveram
o período, ainda vivos, reivindicam autonomia e autoridade na questão. A crítica de
arte que tentou responder a problemática surgida com as obras na década de 60 foi
questionada naquele momento por artistas. E os trabalhos de historiadores por vezes
se opõem nas interpretações sobre a “arte conceitual” (WOOD, 2002, p. 7).
A expressão “arte conceitual” é utilizada por Paul Wood para fazer referência a
arte produzida no final da década de 60 e na década seguinte. Segundo o historiador,
(...) o termo era usado na época para designar uma multiplicidade de -atividades com base na linguagem, fotografia e processos, as quais se esquivavam do embate que então se efetuava entre, de um lado a arte minimalista e várias práticas “antiformais” e, de outro, a instituição do modernismo, num contexto de crescente radicalismo cultural e político (WOOD, 2002, p. 7).
O artista Sol LeWitt foi o primeiro a usar o nome “arte conceitual” em
“Parágrafos sobre a arte conceitual”, publicado na revista Artforum em 1967. O artista
defende, sobre o tipo de produção em que estava envolvido, que “Na Arte Conceitual,
a ideia de conceito é o aspecto mais importante da obra” (WOOD, 2002, p.37). As
decisões e planejamentos são mais importantes do que a execução, esta poderia ser
realizada por outras pessoas e não pelo artista, caberia ao artista as ideias propostas.
LeWitt defende que o objetivo do artista envolvido com este tipo de produção é tornar
o trabalho interessante “mentalmente” para quem o vê e que as habilidades do artista
como artesão não estariam mais em questão (FERREIRA, COTRIM, 2006, p. 176). O
próprio trabalho de LeWitt neste período se constitui de coordenadas e planejamentos
para a realização de suas pinturas, evidenciando a arte como um projeto.
Anteriormente, o termo “arte conceito” foi utilizado em 1961 pela primeira vez
por Henry Flynt, músico e escritor, para se referir às atividades do grupo Fluxus1 em
Nova York. Alguns anos depois, em uma publicação de 1963, Flynt definirá “arte
conceito” como uma arte em que os materiais utilizados são acima de tudo,
“conceitos”. Assim, como os conceitos se vinculam a linguagem a “arte conceito” seria
uma arte cujo material é a própria linguagem (WOOD, 2002, p. 8).
Um terceiro termo, que veio a ter ampla circulação segundo Wood (2002), é
o de “conceitualismo”. O termo passou a ser empregado para definir qualquer conjunto
de práticas contemporâneas que não estivessem sob o jugo do tradicional na arte, ou
seja, que fugisse da prática da apresentação de objetos para a apreciação estética.
Neste sentido “conceitualismo” pode ser usado como algo que se opõe ao tradicional
e para conservadores que se opõem a arte contemporânea, com uma carga negativa.
Por outro lado, “conceitualismo” também é entendido como uma forma de explicar
algo além do que existiu no final da década de sessenta principalmente nos países
anglo-saxões. É frequentemente utilizado neste sentido como a difusão daquilo “sobre
o qual toda a arte contemporânea adquiriu sua existência”, com uma característica
presente nas obras que não são mais consideradas modernistas. Desta maneira,
considera-se “conceitualista” obras existentes desde a década de 50 e cada vez mais
novas obras sob esta abordagem são descobertas nos vários países, feitas não
somente por exegetas, desde a América Latina até a Ásia. Assim, o “conceitualismo”
é empregado em uma perspectiva mais ampla e mundial, como uma característica
central de certas obras e não um movimento ou a arte produzida em um período
histórico delimitado. Esta variedade de significados do termo tem guiado exposições
tanto no sentido mais restrito e histórico quanto no mais geral como uma característica
de certas obras, a exemplo da exposição Conceitualismo global organizada em 1999
em Nova York.
Para o historiador Michel Archer (1999, p. 78) há uma identificação do termo
“conceitualismo” na produção dos fins da década de 60, com uma arte que se tornou
“insubstancial”. O que antes eram pinturas e esculturas passaram a ser
1 Grupo que tinha associados na América, Europa e Ásia artistas, escritores e músicos como: Volfe Vostell, Joseph Boys, George Maciunas, John Cage, Yoko Ono, Nam June Paik, entre outros. Com influência dadaísta e da política Situacionista, desenvolviam trabalhos variados e experimentais com críticas aguçadas e humor extravagante.
“documentações, mapas, fotografia, listas de instruções e informações nas obras de,
entre outros, Douglas Hueber (1924-), Robert Barry, Mel Bochner, Stephen
Kaltenbach, (...)”. Este novo caráter da produção, que ultrapassavam as formas
pintura e escultura é o que Archer denomina “insubstancial”.
Desmaterialização e circulação de ideias: Robert Barry e Cildo Meireles
Em um sentido próximo ao do “insubstancial” de Archer a crítica de arte Lucy
Lippard, no artigo “A desmaterialização da arte” (1968)2, lista uma série de artistas e
trabalhos da arte que ela chama de “ultraconceitual” ou “desmaterializada”, porque
teriam quase ou totalmente o elemento físico eliminado. São alguns destes exemplos
de artistas e obras listados por Lippard:
Robert Rauschenberg: desenho de De Kooning apagado, então exibido como De Kooning apagado por Robert Rauschenberg. Yves Klein: galeria vazia, mostrado em Iris Clert, abril de 1958; e suas esculturas com fumaça, fogo e água. Christo: monumentos temporários, tal como o empacotamento da National Gallery of Modern Art em Roma, em março de 1968. Claes Oldenburg: numerosos projetos de monumentos, incluindo Monumento Cívico Plácido, uma trincheira escavada e preenchida novamente por coveiros atrás do Metropolitan Museum (aceito pela exposição de escultura da cidade de Nova York, outono de 1967). Robert Morris: numerosos projetos do começo dos anos 60, incluindo seu Fichário de referências cruzadas, e seus quatro cubos de espelhos que desapareciam em seus reflexos; seu projeto para jatos de vapor como escultura (recusado pela exposição de escultura da cidade de Nova York, em 1967) e para um baixo muro circular de terra a ser erguido no aeroporto do Texas. (...) Sol LeWitt: projetos seriais “não visuais” incorporando lógica conceitual e ilógica visual; exibição na Konrad Fischer Gallery, Düsseldorf, janeiro de 1968, de uma série de cubos escondidos indicados por linhas desenhadas a partir de suas bases; projeto para um cubo sepultado a ser enterrado no aeroporto do Texas. Mel Bochner: quatro painéis de negativos fotostáticos para a exibição Monumentos acima mencionada, três consistindo de citações facsímile (Duchamp, Sartre, e “John Daniels”) e uma consistindo da definição de dicionário da palavra “bloco”, primavera de 1967. Joseph Kosuth: pintura como ideia, o negativo fotostático sobre tela da definição de dicionário da palavra água, outono de 1967, sua Exposição de Livros na Lannis Gallery, consistindo dos livros favoritos, escolhidos por um grupo de artistas, muitos dos quais eram dicionários, manuais, listas, trabalhos matemáticos. Christine Kozlov: Composições para Estruturas de Áudio; lata de filme aberta contendo um rolo de filme transparente. On Kawara: telas com longitude e latitude de um local no deserto do Saara pintadas nelas; as pinturas de datas: uma tela
2 Da mesma autora ver o livro Six Years: The Dematerialization of the Art Object from 1966 to 1972 (1973).
por dia com as datas pintadas nelas (sua diária anotação das manchetes do jornal do dia). (LIPPARD, 1967, p. 156).
O artista nova-iorquino Robert Barry talvez seja um dos mais significativos
exemplos da tese da “desmaterialização da arte” realizada pela vanguarda3 artística
do final dos anos 60, defendida por Lippard e Chandler (1968). Barry juntamente com
os artistas Joseph Kosuth, Douglas Huebler, Lawrence Weiner e o galerista Seth
Siegelaub produziram trabalhos que instigavam questões sobre o que é uma
exposição, o trabalho do artista e os limites do que poderia ser arte. Exposições foram
organizadas em espaços alugados, alternativos, e a galeria ocupava o papel de um
catálogo para estas exposições, ela mesma elevada ao status primário e não
secundário da arte. A obra de arte passa a ser vista como “‘informação’ que se podia
fazer circular mais eficientemente através do meio constituído por textos e fotografias
do que por intermédio do transporte de objetos materiais propriamente dito” (WOOD,
2002, p. 36). Um catálogo de uma exposição poderia ocupar o lugar da própria
exposição, uma vez que as informações importantes estariam ali e o central para as
obras seriam estas informações.
O trabalho de Robert Barry Série de gás inerte, de 1969, consistia na
execução da liberação de determinado gás (neônio, xenônio e hélio) na atmosfera em
determinada data e local indicado por um texto. A Peça telemática era composta pelo
texto “algo próximo no espaço e no tempo, mas que ainda não me foi dado a conhecer”
(WOOD, 2002, p. 36). Outro conhecido trabalho de Barry, exibido em vários locais dos
Estados Unidos e Europa simultaneamente, foi a declaração “DURANTE A
EXPOSIÇÃO A GALERIA ESTARÁ FECHADA”, escrita no lado de fora da Eugenia
Butler Gallery, que se manteve fechada por três semanas, durante o período da
“exposição”. Segundo o artista e escritor Brian O’Dohert (1999, p. 115), “Na galeria
fechada, o espaço invisível (escuro? deserto?), desprovido do espectador ou do olho,
só pode ser penetrado pela mente”. A obra de Barry transmite ideias quase sem
3 A palavra “vanguarda” no francês avantgarde significa literalmente o que está à frente da guarda de um exército. Começou a ser utilizada no início do século XX para designar o que antecipa tendências na política ou nas artes. É utilizada no sentido do que está à frente de algo, o que antecipa o novo, que rompe com o vigente. A arte produzida no início do século XX passou a ser chamada de vanguardas artísticas ou vanguardas históricas. A palavra “vanguarda” é comumente usada para designar a arte que surge na década 50 e 60 que rompe com a arte já estabelecida como padrão.
palavras ou objetos. Sabemos que as coisas existem e estão lá, mas não as vemos,
não vemos o interior da galeria fechada. E assim com muitas obras da arte conceitual,
sabemos por registro que elas aconteceram, como por exemplo que o gás hélio foi
liberado conforme a descrição “No dia 4 de março de 1969, meio metro cúbico de hélio
foi devolvido à atmosfera no deserto de Mojave, Califórnia” e por registros fotográficos.
No contexto brasileiro, concomitante a produção artística estadunidense, o
artista Cildo Meireles trabalha com ideias, textos e ações fora dos espaços tradicionais
da arte. Na obra Inserções em jornais: classificados, de 1970, publica anúncios em
jornais de circulação massiva (FREIRE, 2006, p. 59). Na série Inserções em circuitos
ideológicos (1970), com o Projeto Coca-Cola e o Projeto cédula, trabalha com objetos
do uso comum, garrafas de Coca-cola e cédulas de dinheiro que altera e insere
novamente em seus meios de circulação. Nas cédulas carimba frases como “Quem
matou Herzog?”4 e nas garrafas imprime “Yankees go home”. Neste trabalho, assim
como em Inserções em jornais, está presente a ideia de circulação destes objetos em
um meio não artístico.
Para Cristina Freire (2006, p. 34) a obra Inserções em circuitos ideológicos
“funciona no interior de circuitos de controle de informação não centralizados e traz
uma perspectiva mais ativista para a dimensão crítica do readymade duchampiano”.
Os ready-mades5 colocariam em xeque o papel das instituições em definir o que é
arte em determinadas situações sociais, uma vez que impõem novas bases para
galeristas, curadores e colecionadores de arte. Na obra de Cildo Meireles, os objetos
ganhariam além dos contornos da crítica da arte conceitual aos meios da arte e
instituições, uma crítica contextual política.
No Brasil a produção artística conceitual feita no final dos anos 60 e na década
seguinte teve um caráter de contestação política mais presente do que a crítica às
instituições de arte ou a forma tradicional de se produzir e expor arte, embora as obras
4 A morte do jornalista Vladimir Herzog, militante do Partido Comunista Brasileiro e oponente do regime militar vigente no país, foi anunciada em 1975 como suicídio. Somente em 2012 seu registro de óbito foi alterado constando o seguinte texto: "morte decorreu de lesões e maus-tratos sofridos em dependência do II Exército – SP (Doi-Codi)". 5 Termo utilizado por Marcel Duchamp para objetos manufaturados ou industrializados com os quais ele trabalhava fazendo algumas pequenas alterações. Um de seus ready-mades mais conhecidos é o urinol que o artista inscreveu no Salão dos Independentes em 1917, em Nova York, deu o título de “Fonte” e assinou “R. Mutt”.
sejam radicalmente vanguardistas neste sentido. Podemos notar nas demais obras,
as citadas anteriormente – a de Barry e as listadas por Lippard, um comentário crítico
às instituições e instâncias de arte. O assunto destas obras é a própria arte, seus
meios, seus espaços, suas instituições. Se elas são comentários críticos, brincadeiras
e espécies de trotes, não abalariam a tarefa teórica de uma definição de arte, e
poderiam não ser incluídas em uma definição? Ou, ao contrário, demonstram outra
natureza da arte, colocando a tarefa de se refazer radicalmente a teorização sobre
arte em base um caráter institucional ou social da mesma?
A produção artística contemporânea e o problema da definição de arte
Com a arte produzida a partir de meados do século XX, o problema da
definição de arte se coloca de forma mais contundente. Uma teoria em base ao critério
de imitação de outras coisas reais; ou formalista baseada nas relações dos meios
físicos que compõem a obra; assim como uma teoria da expressão de sentimentos
não davam mais conta de responder a demanda da produção surgida com a arte
contemporânea.
Trabalhos cujo o foco dominante não é o objeto em si para apreciação em
espaços convencionais da arte, mas “uma multiplicidade de atividades com base na
linguagem, fotografia e processos, (...) num contexto de crescente radicalismo cultural
e político” (WOOD, 2002, p. 7) geram uma série de questionamentos como: O que é
a arte? Qualquer coisa pode ser arte, como proferiu Donald Judd e outros artistas?
Qual o papel da teorização filosófica? Qual a função da arte? O que é a experiência
estética e se faz sentido falar sobre ela com a arte contemporânea?
Teorias críticas a definições estéticas de arte se tornaram mais aceitas no
contexto histórico da produção artística das décadas de 60 e 70. Arthur C. Danto e
George Dickie foram dois filósofos que se tornaram conhecidos por elaborarem este
tipo de teoria, que estendiam o conceito de arte para as mais variadas obras
realizadas no período. Cada uma a sua maneira, estas teorias abarcam a diversidade
da produção do período em que são elaboradas. Aparentemente poderiam ter com
isto solucionado a questão, mas foram criticadas em outros aspectos, como por
exemplo, certa arbitrariedade no que definiria algo como arte.
Em "O mundo da arte" (1964), o filósofo e crítico de arte Arthur C. Danto tenta
responder à questão: o que faz com que fac-símiles de caixas de Brillo6 empilhadas
em uma galeria sejam arte e as caixas de Brillo empilhadas em um supermercado
não?
Segundo Danto, "podemos esquecer as questões relativas ao valor intrínseco
e indagar porque o pessoal da Brillo não pode manufaturar arte e porque Andy Warhol
não pode fazer nada senão obras de arte" (1964, p. 329). As diferenças, segundo o
filósofo, não estão no objeto em si. As caixas de Brillo e Brillo Box de Warhol possuem
as mesmas propriedades. Assim, não seria uma experiência estética que distinguiria
os dois objetos, nem as características físicas destes. Muito menos parece ser a
intenção do artista a de proporcionar uma experiência estética por meio da forma e
características do objeto. Danto então define:
O que, afinal de contas, faz a diferença entre uma caixa de Brillo e uma obra de arte consistente de uma caixa de Brillo é uma certa teoria da arte. É a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair na condição de objeto real que ela é (num sentido de é diferente do da identificação artística). É claro que, sem esta teoria, é improvável que alguém veja isto como arte e, a fim de vê-lo como parte do mundo da arte, a pessoa deve dominar uma boa dose de teoria artística, assim como uma quantia considerável da história da recente pintura nova-iorquina. (DANTO, 1964, p. 331).
Sem esta teoria, o objeto não seria visto como arte, e para que fosse visto
como parte do mundo da arte seria preciso um certo conhecimento de teoria artística,
assim como um conhecimento sobre a história da arte. Há um "mundo da arte", um
mundo dos objetos de arte composto por críticos, filósofos, artistas, curadores,
instituições e público receptor da arte. E há uma teoria, um conhecimento comum a
este mundo da arte ou parte dele, que recebe um objeto, conferindo-lhe o status de
arte. A exemplo das obras de arte contemporâneas, não haveria características
intrínsecas que as possa definir como a obras de arte.
O filósofo George Dickie (1974) parte da noção de “mundo da arte” de Danto,
utilizando a expressão para se referir a uma “instituição social alargada onde as obras
de arte têm o seu lugar próprio”, para desenvolver sua teoria institucional da arte.
6 Arthur Danto vê as obras de Andy Warhol expostas na Stable Gallery em 1964. “Brillo” é o nome
comercial de um produto de limpeza.
Quando chama o “mundo da arte” de “instituição” o filósofo afirma que se refere a uma
prática estabelecida e não a instituições como organizações sociais. Formula então
sua definição:
(...) uma obra de arte no sentido classificativo é 1) um artefacto 2) a um conjunto de cujas características foi atribuído o estatuto de candidato a apreciação por uma ou várias pessoas, que actuam em nome de determinada instituição social (o mundo da arte). (DICKIE, 1974, p.105).
Dickie define uma obra de arte como um artefato ao qual se confere a
condição de candidato à apreciação por um grupo de pessoas que podem atribuir tal
condição. Teatro, cinema, pintura, escultura, literatura, música, etc. seriam sistemas
dentro de um sistema maior, o mundo da arte, que proporcionam um contexto
institucional que atribui candidatos aos seus domínios.
A definição de arte de George Dickie é complementada por ele mais tarde em
The Art Circle, em 1984, com cinco enunciados que relacionam a produção da obra
de arte, sistemas que compõe o mundo da arte e o público:
1) Um artista é uma pessoa que participa com a compreensão na elaboração de uma obra de arte. 2) Uma obra de arte é um artefato de um tipo criado para ser apresentado a um público do mundo da arte. 3) Um público é um conjunto de pessoas cujos membros são preparados em um certo grau para compreender um objeto a que lhes é apresentado. 4) O mundo da arte é a totalidade de todos os sistemas do mundo da arte. 5) Um sistema do mundo da arte é uma estrutura para a apresentação de uma obra de arte de um artista para um público do mundo da arte. (1997b: 80-2). (DICKIE, 2004, p.58)
Esta estrutura apresentada por Dickie (2004, p. 59) em cinco enunciados
constituiria para o filósofo uma “essência cultural da instituição ao qual a arte tem seu
ser”. Defendendo que a segunda declaração “Uma obra de arte é um artefato de um
tipo criado para ser apresentado a um público do mundo da arte” é uma definição da
essência cultural de toda obra de arte.
O filósofo Monroe C. Beardsley em "A definição estética de arte”7 (1983)
apresenta uma definição de arte que se opõe a estas teorias, porque inclui a
experiência estética como parte da definição, mesmo que assim deixe fora parte da
produção contemporânea. Propõe então a seguinte definição: "Uma obra de arte é
7 An aesthetic definition of art.
algo produzido com a intenção de conferir-lhe a capacidade de satisfazer o interesse
estético." (1983, p. 58).
Se sabemos o que são obras de arte, uma vez que temos os exemplos
inquestionáveis, em uma sociedade, podemos identificar e analisar quais atividades
artísticas envolvem interação com estas obras. Duas atividades são centrais para
definir obra de arte: a “produção” e a “recepção” de arte (BEARDSLEY, 1983, p. 56).
A “produção” é utilizada de forma ampla, no sentido de fazer, alterar, montar, juntar,
organizar. Para que a produção de arte seja entendida de modo mais específico e
definido que uma produção geral, ela deve envolver uma intenção. A “recepção”
compreende uma variedade de atividades realizadas quando interagimos com obras
de arte, de forma presencial ou em memória. Ações como ver, ouvir, contemplar,
apreender, assistir, ler, pensar, etc. são recepções quando interagem com literatura,
música, apresentações, performances, filmes, pinturas, esculturas, dentre outras
obras de arte.
O resultado das atividades de produção de obra de arte é quase sempre algo
(um objeto ou evento) físico ou perceptivo. Muitas vezes o que é produzido pode não
ter características físicas e perceptíveis, como significados e mensagens. Assim,
mesmo um caso de arte conceitual como uma galeria fechada com uma inscrição
dizendo que a própria galeria é a obra de arte seria um produto de uma intenção
conforme a definição de Beardsley (1983, p. 57). Se é ou não uma obra de arte é uma
resposta que ele pretende dar com a sua definição de arte. Casos como as obras
conceituais de Robert Barry, por exemplo, não deixariam de ser arte pelos seus
aspectos imateriais.
A recepção de obra de arte nos possibilita caracterizar o tipo específico da
intenção envolvida na definição de arte: a intenção de gerar um interesse estético,
presente na produção da obra de arte. E, ainda que necessária para que haja arte,
esta intenção pode ser secundária diante de intenções políticas, econômicas ou
religiosas. Assim, uma obra cuja intenção do artista seja centralmente política, como
Circuitos ideológicos de Cildo Meireles, não abalaria a estrutura da definição estética.
Algumas das interações receptivas geram uma experiência, que pode ser
"percepções, sentimentos, emoções, impulsos, desejos, crenças, pensamentos"
(1983, p. 58). Uma experiência de um tipo específico, difícil de ser descrito e que,
segundo Beardsley,
(...) lida com um sentido de liberdade de preocupações sobre questões externas à coisa recebida, um afeto intenso que é, contudo, desligado de fins práticos, o sentido revigorante de exercitar capacidades de descoberta, integração do eu e suas experiências. Quando a experiência tem algumas ou todas estas propriedades, digo que tem um caráter estético ou é, como abreviação, uma experiência estética. (BEARDSLEY 1983, p. 58).
A experiência estética, segundo Beardsley, é uma interação receptiva da obra
de arte em obtermos como experiência percepções, sentimentos, emoções, impulsos,
desejos, crenças, pensamentos. Portanto, quando estamos diante do resultado de
uma produção de arte, que muitas vezes são feitos com a intenção de gerar uma
experiência estéticas, temos um interesse estético por estas obras. Cabe, no entanto,
sabermos o alcance desta experiência estética na produção artística contemporânea.
Considerações finais
Para responder as questões levantadas anteriormente – se a arte produzida
com a vanguarda após a década de 50 não abalaria a teorização sobre arte no sentido
de uma tentativa de encontrar características classificatórias de arte a partir de seus
exemplos paradigmáticos; ou, se a arte produzida neste contexto mostrou ser
necessária uma reformulação da teoria de modo a mostrar o caráter institucional e até
mesmo uma essência cultural da arte – é necessário um estudo mais aprofundado
sobre as teorias que tentam dar uma resposta satisfatória para a questão da definição
de arte. Pretendi, aqui, apresentar apenas um panorama geral da problemática
envolvendo a produção artística a partir de meados do século XX e de algumas teorias
que tentam respondê-la.
Referências bibliográficas
ARCHER, Michael. (1999). Arte contemporânea: uma história concisa. Tradução
Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2008. (Coleção a).
BEARDSLEY, Monroe C. (1983). An aesthetic definition of art. In: LAMARQUE, Peter.
(Org.). Aesthetics and the philosophy of art: the Analytic tradition. An anthology.
Oxford: Blackwell Publishing, 2005.
DANTO, Arthur C. (1964). O mundo da arte. Tradução Rodrigo Duarte. In: DUARTE,
Rodrigo (Org.). O Belo autônomo: textos clássicos de estética. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, Crisálida, 2013.
DICKIE, George (1974). O que é arte? Tradução Vítor Silva. In: D’OREY, Carmo (Org.)
O que é a arte? Lisboa: Dinalivro, 2007.
DICKIE, George. Defining Art. In: KIVY, Peter (Org.). Aesthetic. Oxford: Blackwell
Publishing, 2004.
FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecília (Orgs.). Escritos de artistas: Anos 60/70.
Tradução Pedro Süssekin et al. 2a ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
LIPPARD, Lucy; CHANDLER, John. (1968). A desmaterialização da arte. Tradução
Fernanda Pequeno e Mariana P. Menezes de Andrade. Arte & Ensaios, Rio de
Janeiro, n. 25, p. 151-165, 2013.
O’DOHERT, Brian. (1999). No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da
arte. Tradução Carlos S. Mendes Rosa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção
a).
WOOD, Paul. Arte conceitual. Tradução Bertina Bischof. São Paulo: Cosac Naify,
2002.