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RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO SOCIAL NO CAPITALISMO
CONTEMPORÂNEO: PROBLEMAS PARA EFETIVAÇÃO DE UMA POLÍTICA
REFORMISTA
Jones Manoel da Silva
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
GT7: TRABALHO, FLEXIBILIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO
RESUMO
Iremos analisar criticamente a partir do materialismo-histórico as transformações recentes do
capitalismo mundial com foco na reestruturação produtiva do capital, financeirização da
economia, reconfigurações do fundo público e mudanças políticas e geopolíticas após o fim
da União Soviética e do “campo socialista”, procurando demonstrar, através de várias
mediações, como essas transformações dificultam sobremaneira os ganhos redistributivos das
classes exploradas e a construção de direitos no cenário atual da luta de classe.
PALAVRAS-CHAVE: Neoliberalismo. Reformismo. Luta de classe. Estado de bem-estar
social.
INTRODUÇÃO
Ao fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo estava dividido em dois grandes
blocos: o mundo capitalista e o “campo socialista”. O primeiro tinha como principal
representante os Estados Unidos, e o segundo a União Soviética. A competição entre os
blocos envolvia, dentre outras coisas, a apresentação dos padrões de vida de cada “sistema”
como os melhores possíveis.
O “campo socialista” conseguiu eliminar o desemprego, a miséria, os índices mais
significativos de desigualdade social, e exibia uma robusta rede de proteção social; o mundo
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capitalista exibia os padrões de consumo do americanwayoflife e o Estado de bem-estar social
europeu como o ápice da humanidade.
A organização política dos trabalhadores em cada país e a pressão ideológica e
política exercida pela existência da União Soviética impulsionaram respostas políticas,
econômicas e institucionais das classes das dominantes dos países capitalistas que, em maior
ou menor medida, proporcionaram ganhos salariais, construção de uma rede de direitos
econômicos, sociais e trabalhistas, e mecanismos de estabilidade no emprego.
O Estado de bem-estar nos países centrais do capitalismo e o desenvolvimentismo
nos países da periferia expressaram estratégias adequadas ao padrão existente de reprodução
do capital para, sem superar o capitalismo, fazer frente ao “campo socialista”, produzindo
melhoras relativas nos níveis de consumo e padrão de reprodução das classes exploradas.
A partir dos anos 70, a contrarrevolução neoliberal consegue não só varrer dos países
centrais do capitalismo o “consenso keynesiano”, como derrotar o “campo socialista” e o
movimento terceiro-mundista. A classe operária de todo o mundo mergulhou num longo
período histórico de perdas salariais, retirada de direitos e regressão nos seus padrões de
subsistência e consumo (IAMAMOTO, 2010).
Contudo, as tentativas de reconstruir o Estado de bem-estar social e o
desenvolvimentismo não cessam: na Europa Ocidental, o grego Syriza, e o espanhol Podemos, e
na periferia capitalista, sobretudo na América Latina, os governos de centro-esquerda e esquerda
do chamado “ciclo progressista”, representam expressões de esperança e nostalgia em conseguir
uma nova “era de direitos” no capitalismo contemporâneo.
No entanto, essas experiências não vêm conseguindo obter êxito. O capitalismo atual
parece muito menos suscetível a reformas redistributivas e a construção de uma rede de direitos
sociais e econômicos. A metamorfose do Syriza de principal partido anti-austeridade na Europa
em gestor da austeridade em meses1 e as diversas derrotas do chamado “ciclo progressista” na
América Latina, impõem ao pensamento crítico uma reflexão sobre os limites e possibilidades
de uma política reformista no século XXI.
Nosso artigo pretende incidir, não sobre o debate relacionado à estratégia e tática das
organizações de esquerda, ou a política econômica dos governos ditos neoliberais ou
conservadores, mas procurar analisar os determinantes estruturais da dinâmica capitalista atual
que dificultam sobremaneira ganhos redistributivos da classe trabalhadora e reformas de grande
significação dentro da ordem do capital.
1Sobre a trajetória do Syriza no governo conferir:
http://resistir.info/brasil/edmilson_grecia_03ago15.html - Acessado em 02/03/2017.
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Abordaremos os processos de reestruturação produtiva e a flexibilização das relações
de trabalho, o processo de financeirização da economia, as novas formas de configuração do
fundo público e a dinâmica política e geopolítica do mundo capitalista na era pós-soviética.
Acreditamos que esses processos e sua dinâmica de interação e complementaridade complexa
criaram uma situação na luta de classe que restringem as possibilidades das vitórias parciais
da economia política do trabalho contra o capital forjando uma situação política cingida: o
momento histórico de brutal desarme organizativo, teórico e político das classes exploradas é
ao mesmo tempo o que lhes impõe uma prática política revolucionária como a necessária para
conseguir garantir patamares mínimos de sobrevivência.
1 - A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E A FLEXIBILIZAÇÃO DO TRABALHO
Lênin em seu clássico Imperialismo, etapa superior do capitalismo (2012) mostrou
que na passagem do século XIX para o XX houve uma profunda transformação no tipo
capitalista de empresa. As pequenas e médias unidades passaram a ser substituídas por
grandes monopólios com integração vertical dos diversos componentes do processo
produtivo: o mesmo grupo econômico controlava, desde a extração da matéria-prima e a
produção das fontes de energia, até o acabamento final do produto, configurando um processo
de concentração e centralização do capital.
Esse tipo de grande empresa vertical normalmente mantinha uma forte base nacional,
porque nas economias centrais, na fase imperialista, o Estado assumia maior protagonismo
através de políticas protecionistas e expansivas, isto é, as economias capitalistas adotaram
fortes políticas protecionistas para seus mercados internos e procuraram aumentar os
mercados disponíveis, através do colonialismo e neocolonialismo, e os trabalhadores, por
meio de suas lutas, mas também como uma possibilidade objetiva da fase imperialista do
capitalismo, passaram a ter um papel maior no fechamento do ciclo do capital através de
ampliado consumo operário.
Os países centrais do capitalismo formaram uma estrutura produtiva dominada por
essas grandes empresas verticalizadas que, na divisão internacional do trabalho, assumiram
uma posição de domínio frente aos capitais nos países coloniais, semicoloniais e dependentes,
e garantiram às economias imperialistas assumir a posição eixo de recepção de valor e
aguentar níveis redistributivos maiores, sem comprometer – ainda que por tempo limitado – a
taxa média de lucro do capital (ARRIGHI, 2008).
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A contraface desse tipo de empresa eram as plantas industriais gigantescas, com
milhares de operários que, principalmente ao final da Segunda Guerra Mundial, passaram a
gozar de maior estabilidade no emprego, através da política keynesiana de “pleno emprego”.
Esse tipo de relação empregatícia facilitava a instituição de uma rede de proteção social com
base na contribuição empregatícia e o financiamento, via fundo público, de serviços como
saúde e educação.
Para o capital, a regulação estatal só faz sentido quando gera um aumento da taxa de
lucros, intervindo como um pressuposto do capital em geral. Dentro disso é que se
torna aceitável certa redistribuição horizontal e limitada na forma de salários
indiretos, assegurados pelas políticas sociais. A demanda contraditória sobre o
Estado, por sua vez, é a expressão da contradição interna do capitalismo entre o
desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção (BEHRING,
BOSCHETTI, 2006, p.91).
Durante os “anos dourados” do capitalismo, as relações de trabalho nas economias
centrais tinham como características centrais: a) modelo de estabilidade regular no emprego;
b) grandes plantas industriais, que concentravam milhares de operários no mesmo ambiente
de produção, com grandes grupos econômicos controlando as diversas fases do processo
produtivo, através de integração vertical; c) um conjunto de políticas estatais que visavam
manter os níveis de emprego, salário e consumo; d) forte rede de proteção social e serviços
públicos, que era um dos principais símbolos do “pacto” de “humanização do capitalismo”; e)
intensa atuação dos sindicatos nos acordos de negociação coletiva, dos partidos operários
socialdemocratas e comunistas na formação e aplicação da política econômica dos Estados
capitalistas.
A contrarrevolução neoliberal marcou um período de profundas transformações nas
relações de trabalho, na forma da empresa capitalista e na divisão internacional do trabalho.
Acerca desse processo:
As raízes da crise, afirmavam Hayek [teórico pioneiro do neoliberalismo] e seus
companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de
maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de
acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua
pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais
(…) Esses dois processos destruíram os níveis necessários de lucros das empresas e
desencadearam processos inflacionários que não podiam deixar de terminar numa
crise generalizada das economias de mercado. O remédio, então, era claro: manter
um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no
controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções
econômicas. (ANDERSON, 1995, 10-11).
O neoliberalismo potencializou a transferência de fases inferiores do processo
produtivo para a periferia do capitalismo. Ao final da Segunda Guerra Mundial, o processo de
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inovação tecnológica no setor de bens de capital acelerou-se de tal forma que não era
possível, só pelo consumo nas economias centrais, amortizar o valor investido na produção e
tornou-se comum determinado equipamento já estar obsoleto pela média de produtividade.
Para resolver esse problema, foi necessário criar um mercado consumidor de bens de capital
de menor complexidade (MARINI, 2013)
Os investimentos nas economias periféricas, que antes da Segunda Guerra eram
basicamente na compra de matérias-primas e empréstimos, passaram a centrar-se em
investimento direto na instalação de plantas industriais. Esse movimento do capital criou
polos intermediários de produção industrial que não ameaçaram a centralidade produtiva e
tecnológica da tríade EUA, Japão e Alemanha, mas reduziram os níveis de emprego nos
países centrais. A partir dos anos 70 temos uma nova fase de deslocamento das plantas
industriais para o Sudeste Asiático, o que debilitou ainda mais os níveis de emprego na
Europa Ocidental e EUA (MARINI, 2013; BAMBIRRA, 2013).
As mudanças na divisão internacional do trabalho foram combinadas com uma
transformação na empresa capitalista. De grandes empresas com integração vertical, passou-
se para unidades menores com integração horizontal, de uma rede de fornecedores
formalmente “independentes” que iriam gerir seus custos e riscos, mas, em última instância,
dependentes completamente do grande capital controlador do processo, e com tendência
constante a reduzir a quantidade de força de trabalho, através da instituição de círculos de
controle, modernização tecnológica, aumento do número de funções médias dos operários e
produção de estoques mais enxutos, adaptados às necessidades imediatas de venda – o
chamado Just in time (ANTUNES, 1999).
A reestruturação produtiva do capitalismo, como uma das estratégias para retomar
um patamar médio de lucratividade e combater o poder da classe operária, produziu
desemprego em massa, redução do poder dos sindicatos e um período histórico de retirada de
direitos. A terceirização e o trabalho precário substituíram o padrão fordista como o
dominante nas relações de trabalho nos países centrais do capitalismo.
Assim, a crescente flexibilidade do trabalho, em todo mundo do trabalho,
evidenciada na subcontratação (terceirização), no emprego temporário, nas
atividades autônoma, na informalidade, nas cooperativas de trabalho e em outras
formas de trabalho assalariado disfarçado – na prática flexível de emprego e de
mercados de trabalho – constituem formas concretas de flexibilização que se
difundem em todas as atividades e lugares, associadas a processos de
desindustrialização e de descentralização geográfica de fábricas (DRUCK, 2002, 12-
13).
Cumpre destacar que houve bastante resistência dos trabalhadores às mudanças
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impostas pelo capitalismo. A greve dos mineiros na Inglaterra (ANTUNES, 1999) é um
exemplo paradigmático dessa resistência, os governos neoliberais, porém, trataram os
processos de desmonte do poder dos sindicatos como questão de tudo ou nada para a
economia capitalista e conseguiram no geral impor as vitórias do capital.
2 - A FINANCEIRIZAÇÃO DO CAPITALISMO
A contrarrevolução neoliberal também promoveu a financeirização do capitalismo.
Os governos neoliberais adotaram uma política de liberalização do fluxo de capitais,
potencializaram a distribuição de renda regressiva e desregulamentaram o mercado financeiro.
Um volume de capital cada vez maior entrou na esfera financeira-fictícia de valorização:
especulação imobiliária, títulos da dívida pública do Estado, aplicações na bolsa,
investimentos futuros etc.
A partir dos anos 70, temos nos países centrais do capitalismo uma crescente dívida
pública, que era associada ao excesso de gastos públicos, porém, a destruição dos direitos
sociais e econômicos, e a privatização das empresas avançaram, não reduzindo o montante
das dívidas; pelo contrário. A dívida pública passou a tomar o papel de uma alavanca central
no processo de valorização fictícia do capital, e houve deslocamentos em massa de capitais da
esfera produtiva para a especulativa.
Entretanto, há um outro mercado em que a defesa neoliberal pela sua
desregulamentação foi intensa. É nessa época que a lógica de desregulamentação e
abertura dos mercados financeiros, associado à crescente produção de novos
instrumentos financeiros, no que costuma chamar de inovações financeiras, começa
a ganhar corpo. O desenvolvimento dessa lógica nos anos 80 e, principalmente, nos
anos 90, é que dá a característica específica a esta etapa do capitalismo, ao
capitalismo contemporâneo (CARCANHOLO, 2014, p.4).
O peso crescente das finanças também foi sentido no padrão de gestão e
lucratividade dos grandes grupos econômicos do capitalismo. Os grandes conglomerados
passaram a atuar fundamentalmente na lógica de remuneração rápida de ativos, produzindo
fenômenos interessantes. É famoso o caso da empresa italiana que fechou unidades produtivas
lucrativas porque essa ação provocaria uma forte valorização das suas ações no mercado
financeiro (CHESNAIS, 2005).
A financeirização das grandes empresas também passou a colocar o mais-valor
expropriado cada vez mais na esfera financeira do que o reinvestimento na ampliação da
produção ou da produtividade. Grandes grupos econômicos das mais diversas áreas desde a
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biotecnologia, varejo, produção automobilística, informática, armamentos, alimentação etc.
passaram a ter em operações financeiras especulativas uma porção sempre maior do seu lucro.
O processo de financeirização do capitalismo fragilizou a capacidade do Estado de
tributar e regular o fluxo do capital. A política neoliberal tem como um dos seus dogmas a
liberdade de movimentação do capital e tende a desonerar a tributação de lucros oriundos de
operações financeiras, ao mesmo tempo, contudo, com o processo de financeirização consolidado,
mesmo um governo com interesse numa política de tributação e regulação desse setor enfrentaria
sérios problemas - como as gigantescas somas de capital em paraísos offshore que fogem,
parcialmente, à dimensão de controle do Estado-nação.
Os trabalhadores similarmente participaram de diversas formas do processo de
financeirização da economia. Nos EUA a ideologia dominante passou a fomentar o
imaginário do pequeno investidor e criar a imagem da bolsa de valores como o lugar de
oportunidades para o empreendedor ousado. O trabalhador que se torna microacionista e
acompanha nos jornais as cotações na bolsa na esperança de obter um bom retorno e garantir
a faculdade do seu filho e sua aposentadoria tornou-se algo comum nos anos 90 (CHESNAIS,
2005).
3 - RECONFIGURAÇÃO DO FUNDO PÚBLICO
O fundo público constitui uma parcela do valor produzido no processo produtivo que
é apropriada pelo Estado capitalista, através de diversos mecanismos – como tributos e
rolagem da dívida pública – e que retorna ao processo de valorização do valor sob diversas
formas. Assim como a luta de classe expressa no seio da produção a disputa de classe pela
apropriação do valor, a disputa pelo fundo público é uma continuidade diferenciada da luta de
classe pela riqueza socialmente produzida. Essa luta não começa na destinação dos recursos
públicos, mas sim na própria configuração desse fundo: no Brasil, por exemplo, a estrutura
tributária é regressiva e incide principalmente nos salários e consumo da classe trabalhadora;
já nas experiências social-democratas, a tendência era uma “contribuição” maior do capital na
composição do fundo público.
As transformações recentes do capitalismo, como já dito, provocaram uma profunda
desoneração do capital na composição do fundo público. Impostos progressivos, tributação sobre
ganhos de capital, lei de remessas de lucros, tributação sobre fusão e aquisição de empresas etc.
passaram a ser políticas raras nos países capitalistas. Ao mesmo tempo, o gasto público não parou
de crescer com serviços da dívida, indústria bélica, renúncias fiscais e políticas de promoção
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da valorização do capital.
Em especial, a partir da década de 80, os fundos de previdência privada e os fundos
de investimentos passam a aplicar cerca de um terço de suas carteiras em títulos da
dívida pública, tidos como investimentos mais seguros (...) O aumento da dívida
pública combina com a desigual distribuição de renda e a menor tributação das altas
rendas, por razões de ordem política, fazendo com que a maior carga tributária
recaia sobre os trabalhadores (IAMAMOTO, 2010, p. 113).
Essa composição regressiva do fundo público é combinada com um esvaziamento da
soberania popular na esfera eleitoral, na disputa pelas prioridades do fundo público2. O
neoliberalismo consolidou a ideologia de que o gasto público deve ser perenemente
controlado, dado que o déficit público é algo ruim em si e prejudica o saudável
funcionamento da economia. A chamado tripé macroeconômico é a chave para controlar o
gasto público: câmbio flutuante, regime de metas de inflação e meta fiscal. O que significa
esse tripé macroeconômico na prática?
O regime de metas da inflação colocou como prioridade primeira o controle da
inflação e isso significa, por exemplo, que os níveis de emprego ou desigualdade social são
secundários. Para controlar a inflação, o Governo elenca uma expectativa da taxa de inflação a
despeito de todos os outros indicadores da economia e passa a “trabalhar” para deixar a inflação
no centro da meta. A ideologia neoliberal afirma que, para controlar a inflação, a melhor forma de
fazê-lo é aumentar a taxa de juros – afinal toda inflação é de demanda – e reduzir o gasto
público.
O Banco Central - agora tratado como independente, o que na prática significa
independente da soberania popular expressa no voto – e os ministérios econômicos, em
associação com os monopólios de mídia, agências de risco e partidos políticos, passam a
operar numa lógica em que está fora de questão, por serem, em essência, antieconômicas,
políticas de promoção universal do bem-estar social e de pleno emprego.
Na materialidade, o cumprimento da meta fiscal significa garantir como prioridade
do Estado pagar os credores da dívida pública. E, como os juros se mantém sempre altos
como uma forma de “controlar a inflação”, o montante do fundo público destinado ao
pagamento da dívida pública está em constante crescimento.
2“Nos países de tradição liberal mais consolidada, afirmou-se um mecanismo eleitoral que – além de
reduzir a competição à disputa entre dois líderes mais ou menos carismáticos e de marginalizar os
partidos organizados com base num programa, e, em primeiro lugar, os partidos ligados às classes
subalternas – não hesita em cancelar o próprio princípio da soberania popular” (LOSURDO, 2004,
p.10)
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A institucionalização desse processo de blindagem constitucional do fundo público
frente aos pleitos da classe trabalhadora pode assumir diversas formas: desde a
tecnocratização das principais instituições de controle da política econômica da União
Europeia3, até a PEC 241/55, aprovada recentemente no Brasil, que congela por vinte anos o
gasto público real com direitos sociais4.
A composição cada vez mais regressiva do fundo público, a constitucionalização de
formas de blindagem do fundo público às demandas da classe trabalhadora e os mecanismos
de sequestro financeiro do Estado respondem não apenas ao nível de política econômica, mas
são também expressões da reestruturação produtiva do capital e da financeirização da
economia. As transformações do capitalismo pedem uma adequação da sua forma-política
para regular e garantir as novas formas de acumulação. Isso não significa, é claro, uma
transformação automática da mudança no “econômico” em espelhamento no “político”. Os
processos de reconfiguração institucional do Estado burguês acontecem através de muitas
lutas e resistências.
A questão que queremos destacar é que qualquer projeto de retorno do Estado de
bem-estar social através de uma reconfiguração do fundo público com política tributária
progressiva e destinação prioritária para direitos sociais e econômicos encontraria uma barreira
estrutural na configuração do padrão de reprodução do capital. Não nos parece coincidência que
as experiências reformistas de maior impacto nos últimos anos (nos referimos à Venezuela,
Bolívia e Equador) promoveram, em maior ou menor medida, ataques à propriedade privada, com
nacionalização de setores estratégicos da economia – especialmente gás natural, petróleo e
derivados –, e distribuição da propriedade da terra, como forma de garantir a efetivação do
seu programa político.
Concordamos com Castelo (2016) ao afirmar que os elogios de instituições como
FMI e Banco Mundial às políticas compensatórias e focalizadas de intra-transferência de
renda, como o Bolsa-família, sinalizam o projeto das burguesias em “responder” à “questão
social” com parcela ínfima do fundo público, e que não necessitam discutir sua configuração e
forma.
4 - POLÍTICA E GEOPOLÍTICA: A ERA PÓS-SOVIÉTICA
3Uma Europa cada vez menos democrática – Le Monde Diplomatique, acessado em 02/03/2017.
4A PEC 241 e a blindagem constitucional da hegemonia rentista – Boitempo, acessado em 01/03/2017.
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Depois da Revolução de Outubro, houve uma onda mundial de criação de Partidos
Comunistas. A classe trabalhadora dos países capitalistas e os povos coloniais alcançaram
novos patamares de organização, com o exemplo entusiástico da Revolução Russa.
Evidentemente, como sabemos, a vaga revolucionária dos anos 20 foi derrotada e a União
Soviética ficou insulada. Mas a existência do primeiro país socialista e a consolidação da
Internacional Comunista como o partido mundial da Revolução foram as expressões concretas
de uma nova conjuntura geopolítica na luta entre burguesia e proletariado.
A grande crise capitalista de 1929, combinada ao período dos grandiosos planos
quinquenais da URSS, marcou uma época onde o mundo capitalista debatia-se na crise e,
aparentemente, a União Soviética construía um mundo novo, sem crises, anarquia na produção,
desemprego, miséria etc. Aliada a isso, durante toda sua existência, a Internacional Comunista
apostou com afinco na revolta dos povos coloniais e semicoloniais, conseguindo com êxito ajudar
na criação e/ou fortalecimento de organizações de resistência nacional, e apoiar rebeliões e
revoltas em curso. Com a vitória sobre o nazifascismo, que à época foi mundialmente visto como
uma vitória dos soviéticos, e a criação das democracias populares no Leste Europeu, a URSS e o
comunismo viviam seu momento de máximo prestígio.
Os partidos comunistas cresciam em número de filiados, adesão de intelectuais,
influência nacional e expressão eleitoral em vários países. Na Itália e na França, os partidos
comunistas passaram a estar entre os três principais partidos políticos do país e, no último,
constitui-se uma cultura largamente tendente à esquerda
O partido [comunista] italiano salta de 5 mil membros em 1943 para 2 milhões em
1946; o francês vai a 1 milhão quando tinha 30 mil em 1943. Até mesmo o sempre
pequeno partido comunista inglês consegue triplicar seus adeptos: vai a
aproximadamente 50 mil filiados entre 1944-1945. Em países mais desenvolvidos,
como Áustria, Finlândia, Bélgica, Dinamarca e Noruega, que, agrupados, somavam
mais ou menos 100 mil membros, em 1947 já totalizavam 600 mil (BRAZ, 2011,
p.197-198).
Em Ásia e África, os processos de descolonização eram majoritariamente alinhados,
política e ideologicamente, ao movimento comunista e, em 1949, tivemos a Revolução
Chinesa.
Não é exagero afirmar que, de 1945 até 1968, o capitalismo estava na defensiva.
Crescimento contínuo dos Partidos Comunistas e dos movimentos anticoloniais, e a eclosão
de processos revolucionários vitoriosos em sua primeira fase, em todos os continentes do
mundo, com exceção da Oceania. Nessa situação política e geopolítica os intelectuais e
políticos da burguesia formulavam e explicitavam respostas à contenção do comunismo, que
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passavam pelo estabelecimento de concessões às classes trabalhadoras5.
Tanto na periferia do capitalismo, quanto nos países centrais, os teóricos da ordem
prometiam justiça social, igualdade e superação das agruras do subdesenvolvimento. Se hoje a
tônica da ideologia dominante é mostrar a brutal desigualdade social como algo natural e até
benéfico, nos anos 60, a promessa era um capitalismo cada vez mais humanizado e menos
injusto, onde não haveria mais motivos para a luta de classe.
Cabe pontuar também que, enquanto existia um “campo socialista”, tínhamos amplas
regiões do mundo “fechadas” ao processo de valorização do valor. A despeito das polêmicas
sobre o caráter socialista das experiências do século passado – especialmente a URSS – e o uso de
categorias polissêmicas como “capitalismo de Estado” para se referir a essas formações sociais, o
fato, expresso em diversos dados sobre o movimento de capital, é que a penetração de capital
estrangeiro provindo do mundo capitalista no “campo socialista” era baixíssima, estando numa
média abaixo de 10% (POMERANZ, 2012).
Esse espaço vedado, ou restrito, ao processo de valorização do mais-valor reduzia,
em nível global, as possibilidades de mobilidade do capital e, portanto, uma das
contratendências fundamentais do capitalismo – a expansão para áreas ou regiões não
incluídas no capitalismo mundial – estava enfraquecida.
Essa configuração política e geopolítica criou algumas tendências aparentemente
contraditórias mas que, na verdade, expressam as duas faces da mesma totalidade. A classe
dominante usou largamente de violência extrema na segunda metade do século XX para deter
projetos reformistas ou revolucionários. Na América Latina, por exemplo, o ciclo de ditaduras
militares patrocinadas pelo grande capital não foram contra projetos revolucionários, mas sim
nacional-reformistas. A burguesia tendia para o tudo ou nada em algumas regiões e, em
outras, aceitava largar concessões, desde que não inviabilizassem traços fundamentais à
acumulação de capital.
Com a derrota do “campo socialista”, a destruição do movimento anticolonial, o
enfraquecimento quase terminal do movimento comunista, a neoliberalização dos partidos
socialdemocratas e o enfraquecimento geral dos sindicatos, não existem mais razões políticas
sólidas, em âmbito geral – claro que podem haver exceções – para o capital aceitar conquistas
mínimas das classes trabalhadoras.
No plano das relações internacionais, não há dúvidas sobre o significado reacionário
da virada que ocorreu entre 1989 e 1991. E, exatamente em 1991, ano do colapso da
5Acerca dessas formulações tomando como exemplo a “questão urbana”, conferir (BOTELHO, 2013).
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URSS e da primeira Guerra do Golfo, uma prestigiosa revista inglesa (Internacional
Affairs) publica no número de julho um artigo de Barry G. Buzan que se concluía
anunciando com entusiasmo a boa nova: “O Ocidente triunfou tanto no comunismo
como no terceiro-mundismo”. A segunda vitória não era menos importante que o
primeiro: “hoje o centro tem uma posição mais dominante e a periferia uma posição
mais subordinada desde o início da descolonização”; podia-se considerar felizmente
arquivado o capítulo da história das revoluções anticoloniais (LOSURDO, 2015, p.
280).
A intransigência do imperialismo alemão frente ao Syriza na Grécia, e o
impedimento operado contra o Governo de Dilma do Partido dos Trabalhadores (PT) no
Brasil exemplificam o modo operante padrão do capital frente aos projetos reformistas.
Não deixa de ser curioso que, historicamente, as correntes socialdemocratas e
“socialistas democráticas” do movimento operário proclamassem sua superioridade sobre as
experiências socialistas, vistas como autoritárias e totalitárias, e muitos partidos e intelectuais
dessas correntes – até vertentes do marxismo – tenham comemorado a derrubada do “campo
socialista”, sem perceber que o fim da União Soviética e a quase destruição do movimento
comunista simbolizava o fim do maior “muro de contenção” das barbáries do capitalismo.
CONCLUSÃO
Esperamos ter demonstrado no decorrer do artigo que as transformações ocorridas no
capitalismo, nas últimas décadas, criaram uma situação econômica e política onde procurar
resgatar uma política keynesiana ou reerguer o Estado de bem-estar social, promovendo
pactos redistributivos com setores da classe dominante, não é algo factível. A nostalgia com o
WelfareStatee com o desenvolvimentismo não pode ser uma resposta adequada para a guerra
de classe que a burguesia opera contra patamares mínimos de civilização e dignidade da
classe trabalhadora.
O desconhecimento das transformações nas relações de produção e reprodução do
capitalismo, e na profunda reengenharia institucional do Estado burguês, induz ao erro de
reduzir a situação atual a uma escolha errada de política econômica, e crer que mais
democracia e “vontade política” são suficientes para reverter o quadro político. Esse tipo de
consciência com frequência enxerga a esfera eleitoral como única possível para os processos
de transformação, aposta emum messias e, quando decepcionada – a exemplo da rápida
metamorfose de Alexis Tsipras, líder do Syriza – recorre à pseudo-categoria de traição, não
percebendo que o desfecho já estava embutido no projeto.
Nossa análise também não objetiva demonstrar a impossibilidade de ganhos da
economia política do trabalho sobre o capital, afirmando que, conseguir aumentos nos salários
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ou construção de direitos só é possível com a revolução proletária. Isso seria, evidentemente,
esquerdismo teórico e político. A questão se posiciona de maneira diferente. As
transformações capitalistas das últimas décadas reposicionam o papel das lutas econômicas
por direitos e liberdades democráticas, e exigem uma reconfiguração nas táticas, estratégias e
formas-organizativa usadas pelos sujeitos em luta. Recorrendo a uma metáfora: não estamos
negando a possibilidade das vitórias parciais e a utilidade das lutas, mas procurando
esclarecer as condições do confronto.
A teoria crítica que compreende as possibilidades revolucionárias embutidas na
ordem do capital e formula sobre a forma-organizativa adequada para operar esse processo
revolucionário é mais atual do que nunca. Isso significa que o estudo sistemático do
capitalismo, combinado à apreciação de nossas vitórias e derrotas no século XX, devem nos
guiar a criação de bases teóricas para a realização de um novo radicalismo político comunista:
condição indispensável, para responder à guerra da classe dominante aos exploradores, e à
própria existência da humanidade.
REFERÊNCIAS
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim – origens e fundamentos do século XXI.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2008.
ANDERSON, Perry. “Balanço do neoliberalismo” in SADER, Emir; GENTILI, Pablo.
SADER, Emir; GENTILI, Pablo Orgs. O pós-neoliberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
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